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PEDRO ABRUNHOSA E EMBAIXADA RUSSA: NÃO HOUVE “INGERÊNCIA NA SOBERANIA NACIONAL” E INTERVENÇÃO DO PARLAMENTO É “OPCIONAL”

GUERRA NA UCRÂNIA

Pedro Abrunhosa e embaixada russa: não houve “ingerência na soberania nacional” e
intervenção do Parlamento é “opcional”

“Qualquer concretização desta putativa ameaça seria imediatamente atribuída ao Estado russo”, diz
André Pereira Matos

Nem Pedro Abrunhosa procura “a fama que já tem”, nem exagerou. Investigadores
das áreas de Ciências Políticas e Relações Internacionais entendem que a embaixada
russa não operou uma “ingerência na soberania nacional”, mas atentou contra a
liberdade de expressão de um país democrático. Ouvidos pelo Expresso, os
especialistas dizem que levar o assunto para o Parlamento poderia empolar uma
situação que se quer “circunscrita”

Catarina Maldonado Vasconcelos
Jornalista

O’Big Brother’ está de olho, e Pedro Abrunhosa é apenas um ponto captado pelo
imenso radar russo, que já se alastrou, maioritariamente pela Europa e pelos Estados
Unidos. Das palavras às intromissões em atos eleitorais e alegados envenenamentos, a
“proatividade russa” começou ainda antes da invasão da Ucrânia. Na Bulgária, na
Lituânia, na Eslovénia, na Albânia, na Alemanha, no Reino Unido, na Grécia e em
Itália, Moscovo já fez uso da sua retórica para tentar impor autoridade. O embaixador
russo em Itália enviou um e-mail intimidatório aos deputados da Comissão de
Negócios Estrangeiros e Defesa, afirmando que as sanções contra a Rússia “não
ficarão sem resposta”. Na Grécia, a embaixada da Rússia chegou mesmo a ditar nas
redes sociais o canal de televisão que os gregos deveriam ver se queriam receber
informação “objetiva”, e, na Bulgária, a embaixadora russa acabou por ter de se
desculpar perante o primeiro-ministro do país, após ter comparado a invasão da
Ucrânia ao processo de libertação da Bulgária que ocorreu há 144 anos. Apesar de,
como já elucidaram os serviços de informação britânicos e norte-americanos, ter sido
diminuída a capacidade de espionagem russa e atenuada a capacidade de influência na
política nacional, dada a expulsão de diplomatas e outros profissionais russos, a
“teia” de recolha de dados ditos “de interesse” não foi totalmente interrompida.

Luísa Godinho, doutorada em Ciência Política pela Universidade de Genebra e
professora associada na Universidade Autónoma de Lisboa, lembra que, por cá, a
reação da embaixada russa às palavras antiguerra (e anti-Putin) proferidas por Pedro
Abrunhosa durante um concerto em Águeda “insere-se nessa estratégia sistemática
de afirmação e defesa da posição da Rússia face a atitudes críticas, chegando à
intimidação dos envolvidos”.

AS AMEAÇAS: PEDRO ABRUNHOSA TEM MOTIVOS PARA TEMER?

20 de julho de 2022. “Senhor Abrunhosa”, como a embaixada russa – distanciando-se
mas apontando-lhe o dedo – lhe chama, fica a saber: “nenhumas provocações
ignóbeis ficarão sem resposta”, porque “as suas palavras, indignas do homem de
cultura que ainda por cima representa o país, que está a manifestar-se abertamente
contra qualquer tipo de ódio e discriminação, foram ouvidas”. Dois dias depois, o
artista caracteriza a intervenção do órgão diplomático como “inédita e muito
preocupante”. Estará uma ameaça velada patente no comunicado da embaixada russa?
A mensagem subliminar que remete para uma “resposta” não conhecida potencia
validamente o temor ou a indignação de Pedro Abrunhosa?
Rui Henrique Santos, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais
(IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, acredita que esta missiva da embaixada “foi
apenas uma tomada de posição da Rússia, que tem acontecido em todas as capitais
europeias ou em todos os sítios onde há manifestações artísticas, políticas, culturais
ou sociais que Moscovo entende que são contra aquilo a que chamam a sua ‘operação
militar especial'”. Existe uma preocupação muito latente de “avisar que [os
representantes políticos russos] estão atentos”, mas “que possam advir daí ações
contra Pedro Abrunhosa ou contra outras pessoas… não”, pondera o investigador.

Mas o desconhecimento aguça a imaginação, e uma manifestação de intenções sem
que o seu conteúdo seja esclarecido pode, sim, motivar múltiplas interpretações,
como sustenta André Pereira Matos, coordenador dos mestrado e licenciatura em
relações internacionais e diplomacia da Universidade Portucalense. “De facto, não
existe no comunicado da embaixada russa qualquer ameaça explícita. No entanto, o
tom que utiliza para referir que ‘as suas palavras foram ouvidas’ e que serão retiradas
consequências, sem as identificarem ou sequer a sua natureza – judicial, por exemplo
-, não pode deixar de ser interpretado como uma forma mais velada de uma intenção
que, sendo desconhecida, pode ser intimidatória, precisamente pelo desconhecimento
em que nos mantém quanto às possíveis consequências.”

É um argumento que Luísa Godinho endossa. A embaixada russa afirma, em
comunicado, “que as ‘provocações ignóbeis’ – como são qualificadas as palavras de
Abrunhosa – não ficarão sem resposta, sem, no entanto, indicar qual ela possa ser,
insinuando uma possibilidade de retaliação, o que naturalmente procura causar
temor”. Esta linguagem, “usada num país alheio, soberano e democrático, é
totalmente inaceitável”, analisa a investigadora, que considera, aliás, todo o conteúdo
intimidatório, por levantar, pelo menos, a hipótese de um processo judicial contra o
cantor.

André Pereira Matos acredita que, pela visibilidade e exposição pública que tem e que
“exponenciou com esta polémica”, o artista e autor de “Talvez F****” não terá o que
temer. “Qualquer concretização desta putativa ameaça seria imediatamente atribuída
ao Estado russo e daria origem a uma situação diplomática muito constrangedora, no
mínimo”, consolida o investigador.

PEDRO ABRUNHOSA EXAGEROU?

Não, quando o assunto é a liberdade de expressão, advogam os investigadores. Rui
Henrique Santos explica que a reação do cantor deve ser contextualizada, à luz de um
Estado democrático e soberano e atendendo ao conhecimento já adquirido acerca do
regime russo em vigor. “Do nosso ponto de vista de ocidentais, atendendo à liberdade
de expressão e à liberdade de opinião, que realmente na Rússia não são dadas, o
espaço dado à criatividade intelectual deve ser mantido e alargado”, vinca o
investigador. “Há uma História de censura na Rússia – às Pussy Riot e outros grupos –
que não podem livremente dizer o que pensam”, pelo que “não foi exagerado, nem
Pedro Abrunhosa foi à procura da fama que já tem”.

“Dentro de um contexto em que se estão a colocar, de um lado, os artistas que vão ao
Avante!, com bastantes críticas a serem feitas, e, do outro lado, os artistas que estão
contra a guerra e o senhor Putin, o que Pedro Abrunhosa fez foi bem feito”, sublinha o
professor. Ainda assim, e quanto a esta ideia, todos os investigadores estão de acordo:
é exagero [do cantor] alegar “ingerência na soberania nacional”.

André Pereira Matos também se refere a uma ocasião em que, após uma conversa com
Marques Mendes, Pedro Abrunhosa proferiu estas palavras: “O parlamento tem de se
pronunciar porque é uma ingerência na soberania nacional.” Esta acusação é
“excessiva”, segundo o investigador. “O Estado russo entendeu que devia emitir um
comunicado, perante alegadas queixas de cidadãos que representa, e fê-lo com um
tom típico de um Estado autocrático que não se constrange nem a criar alguma tensão
diplomática nem a posicionar-se quanto a um comportamento que é, no mínimo,
questionável quanto ao respeito por normas internas e internacionais relativas à
liberdade de expressão.” A ingerência na soberania portuguesa confirmar-se-ia, em
vez disso, “se houvesse influência russa, por exemplo, num processo judicial contra o
cantor ou algum tipo de resposta condicionada por parte do Estado português, o que
não foi, claramente, o caso”.
O professor diz que a presumível tentativa de intimidação é característica da retórica
de um “regime autocrático”, que desconsidera “direitos e liberdades fundamentais,
como é o caso da liberdade de expressão”. O especialista em Relações Internacionais
assinala que países com este tipo de regime político são “tradicionalmente muito
sensíveis a qualquer forma de demonstração pública de oposição à sua identidade
nacional, às suas instituições ou decisões políticas”.

Apesar de não negar que há um “tom desproporcionalmente agressivo e acusatório”
no comunicado da entidade diplomática russa, André Pereira Matos faz um
diagnóstico mais amplo. “A repressão política interna na Rússia é, pelo menos parte
dela, conhecida e é um traço comum a todos os regimes não democráticos. Portanto,
este posicionamento é expectável, é coerente com o regime em vigor e com a
agressividade com o que o país lida com qualquer forma de oposição.” Rui Henrique
Santos concorda: “Este é o tipo de linguagem usado pela Rússia, mesmo antes da
guerra”. Há uma tentativa de mostrar que a Rússia consegue fazer mais do que o que
lhe é possível hoje em dia.

A questão torna-se grave por duas razões, sistematiza Luísa Godinho: “Por um lado,
pelo facto de estar em causa um ato corrente de liberdade de expressão, um direito
fundamental. Por outro lado, por incluir a formulação de ameaças, o que é, isso sim,
inadmissível num Estado de Direito democrático”.

Ainda assim, Rui Henrique Santos assevera que, “do ponto de vista global, não tem o
impacto que nós aqui lhe demos; é um assunto circunscrito à realidade portuguesa,
mas que se repetiu e está a repetir em vários sítios da Europa e dos Estados Unidos”.

A CADA UM O SEU LUGAR: O PAPEL DA EMBAIXADA E DOS ÓRGÃOS DE SOBERANIA NACIONAL

A estratégia de reação, “assiduamente intimidatória e de intromissão”, das
embaixadas russas a afirmações e atos que têm lugar noutros países é marca indelével
do mundo de hoje, mas Luísa Godinho relembra que “uma embaixada serve para
defender os interesses de um Estado junto de outro, pelo que é admissível que se
manifeste face a críticas proferidas em público contra o Estado que representa”. Não
lhe assiste “qualquer direito de intimidação, algo inadmissível e intrusivo nos
assuntos internos de um outro país”, pelo que o “regime russo manifesta, deste
modo, a sua dificuldade em lidar com princípios democráticos”.

E, posto isto, quais são e a quem devem pertencer as respostas cabíveis? Os três
investigadores ouvidos pelo Expresso estão de acordo com o posicionamento do
Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Tal como a embaixada russa teve o direito de
se posicionar perante as palavras dirigidas contra uma instituição sua, também o
Estado português tem o direito de se manifestar, neste caso, de forma também ela
coerente com o seu regime político, a sua Constituição democrática e com as
obrigações internacionais de proteção dos Direitos Humanos, defendendo o seu
cidadão e, acima de tudo, o ambiente de liberdade de expressão, especialmente no
campo da cultura e das artes, uma vez que é nestes domínios que se exercem de forma
mais livre”, refere André Pereira Matos.
Se Luísa Godinho considera “opcional” a tomada de posição por parte do Parlamento,
Rui Henrique Santos acredita que não valerá a pena empolar a situação. “O Ministério
dos Negócios Estrangeiros, bem, fez, através dos canais diplomáticos, saber a
Moscovo que aquela nota da embaixada não era uma nota correta. Mais do que isso
seria, aí sim, politicamente exagerar um assunto que não tem a importância que se
quer dar.”

“Puxar a Assembleia da República a este assunto não seria muito vantajoso, porque
iria colocar algumas posições do Parlamento ainda mais em destaque”, acrescenta o
investigador de Relações Internacionais.

Rui Henrique Santos fala de um problema circunscrito, em que deve ser ponderado
quais os atores que é conveniente colocar a intervir: “Na política internacional,
costumamos dividir aquilo que se passa em vários níveis: as relações entre as pessoas,
os Estados e sistema internacional. Esta é uma situação ao nível dos indivíduos”. Luísa
Godinho também analisa, na mesma linha, que “o cantor manifestou publicamente a
sua opinião quanto à guerra na Ucrânia, e, obviamente, este só pode representar-se a
si próprio e não ao Estado português”.

POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS DIPLOMÁTICAS ENTRE OS DOIS PAÍSES

“A ‘bola’ está agora do lado dos russos, por isso tudo dependerá dos seus próximos
passos”, atira André Pereira Matos. Apesar de as relações diplomáticas já quase não
existirem, por causa da invasão de 24 de fevereiro, os investigadores portugueses não
excluem que o incidente tenha causado arranhões ao ambiente já tenso entre a Rússia
e Portugal. “Até ao momento, tanto quanto se sabe, criou algum desconforto
diplomático entre os dois países, mas que, num cenário de guerra, não é
particularmente tenso”, comenta André Pereira Matos. A ajuda portuguesa à Ucrânia
pode ser interpretada como mais ofensiva para os interesses russos do que um
comunicado a defender o artista português. No entanto, “é possível que exista uma
certa escalada desta tensão também por força dessas variáveis acumuladas”, admite o
investigador.

Também Luísa Godinho deixa em aberto: “Todos os atos dos Estados se refletem nas
suas relações. A questão é saber a que nível, mas isso só o futuro dirá. O atual contexto
é, obviamente, demasiado complexo para concludentes respostas, neste momento”.

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