OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 2 (Novembro 2022-Abril 2023)
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NOTAS E REFLEXÕES
REFLEXÕES SOBRE A GUERRA NA UCRÂNIA: NOVAS ILUSÕES OU
VERDADEIRAS PROMESSAS PARA A SEGURANÇA EUROPEIA?
EVANTHIA BALLA
eballa@uevora.pt
Doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais (Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa), é Mestre em Política Internacional (Universidade Livre de
Bruxelas) e Mestre em Estudos Europeus (Universidade de Reading), Licenciada em Ciência
Política e Administração pública (Universidade de Atenas). Alumni do Georgetown University
Leadership Seminar. É Professora Auxiliar na Universidade de Évora (Portugal) e Diretora do
Mestrado em Relações Internacionais e Estudos Europeus. É colaboradora do Centro de
Investigação em Ciência Política. O principal foco de investigação é a integração europeia e a
Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia.É autora de livros e inúmeros ensaios
e artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacioais.
No dia 24 de fevereiro a invasão da Ucrânia pela Rússia coloca fim a um período de três
décadas de uma ‘paz fria’, como descrito por Bugajski (Bugajski 2004). Na realidade,
após o fim da guerra fria, o Oriente e o Ocidente distanciaram-se sistematicamente. Entre
1999 e 2020 a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), desconsiderando as
promessas verbais que a administração americana sob a liderança de George Bush tinha
dado à Rússia de que a Organização o iria ultrapassar a fronteira oriental de uma
Alemanha unida, avança para um grande alargamento, inclusive integrando países que
fazem fronteira com a Rússia, como a Letónia e a Estónia. Por sua vez, Putin inicia uma
estratégia sistemática e de longo prazo para recuperar a influência russa sobre os seus
antigos satélites e limitar a presença e influência ocidentais em regiões consideradas
chave para sua segurança.
Neste cenário, a União Europeia (UE) tem permanecido ‘uma bela adormecida’, utilizando
o termo que o ex-Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, empregou para
caracterizar a ‘Cooperação Estruturada Permanente’ entre Estados Membros da União,
isto é, não tendo demonstrado esforços análogos aos desafios que a rodeiam no domínio
de segurança e defesa (Juncker 2017).
A União depara-se, assim, com uma nova realidade trágica e inesperada, ou como
Timothy Gardon Ash, o conhecido historiador e professor de Estudos Europeus da
Universidade de Oxford relata, ‘vestida apenas com os fragmentos das nossas ilusões
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Notas e Reflexões
Reflexões sobre a guerra na Ucrânia: novas ilusões ou verdadeiras promessas
para a segurança europeia?
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perdidas’. No seu artigo publicado um dia após a invasão, Timothy Gardon Ash coloca
uma pergunta, simples, mas ao mesmo tempo desafiante devido a problemática que
expõe: porque é que nós, os europeus, cometemos sempre o mesmo erro?
Após o fim das guerras dos Balcãs (1912-1913) considerámos os conflitos terminados,
mas logo um ano mais tarde enfrentámos a Primeira Guerra Mundial. Em 1938, a
anexação da Checoslováquia por Adolf Hitler também não nos alarmou, mas na realidade
estávamos a caminhar para uma Segunda Guerra Mundial (Ash, 2022). Desde 1990, a
Rússia apoiou diretamente ou indiretamente o surgimento de várias regiões étnicas
separatistas na Eurásia (Transnístria na Moldávia, Crimeia, Lugansk e Donetsk na
Ucrânia, Ossétia e Abkhazia na Geórgia e Nagorno-Karabakh no Azerbaijão) (Mankoff
2022). Todavia, a invasão da Ucrânia no dia 24 de fevereiro veio surpreender de novo
os europeus, marcando o início de uma nova era de insegurança e instabilidade na
Europa.
A União revelou unidade e determinação, algo que não tem sido o padrão normal da sua
atuação face aos seus desafios externos. Decisões e ações inéditas, sucederam-se num
curto prazo e em domínios considerados ‘tabupara a integração europeia, isto é, no
domínio da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e da Política Comum de
Segurança e Defesa (PCSD). A Alemanha ao enunciar o envio de armamento para a
Ucrânia reverte a sua política pós-Segunda Guerra Mundial, que impedia o país de enviar
armas letais para zonas de conflito. Duas outras nações tradicionalmente não alinhadas,
Finlândia e Suécia, também não hesitaram em enviar armas para apoiar a resistência
ucraniana contra a invasão russa. Países esses que assinaram protocolos de adesão à
OTAN no passado dia 05 de julho. Igualmente, a Alemanha e vários outros países da
Organização, comprometeram-se a investir 2% do Produto Interno Bruto (PIB) no
controverso domínio de defesa, e a Dinamarca demonstrou intenção de integrar a PCSD,
permitindo que o país participe tanto em operações militares conjuntas como no
desenvolvimento e aquisições militares no quadro da União.
Será então a União a avançar com um novo paradigma securitário e de integração?
Neste crítico momento é importante refletir sobre os verdadeiros poderes da UE, para
não cair de novo em ilusões e expectativas falsas. Com efeito, a União desempenha um
papel de protagonismo como ator regional. Todavia, como isso foi conseguido e o que
significa na prática?
O conceito de uma “defesa coletiva” para a Europa surge em 1948, antes da criação da
OTAN, até antes da Declaração de Robert Schumann de 1950. O Reino Unido, a França,
a lgica, o Luxemburgo e a Holanda assinam o Tratado de Bruxelas, estabelecendo uma
base de ação coletiva e de garantia de que os países signatários teriam o apoio militar
por parte dos demais em caso de agressão. Abriu-se assim o caminho para a organização
transatlântica, e a nível europeu para a criação da União da Europa Ocidental (UEO) em
1954 e que permaneceu ativa até 2011.
Na realidade, porém, desde a falhada tentativa de criar uma Comunidade Europeia de
Defesa nos anos ´50 e o fracasso dos planos Fouchet (I e II) nos anos ´60 para incluir a
defesa no quadro da integração europeia, os países da Europa Ocidental demonstraram
que a cooperação no domínio da defesa materializou-se sobretudo dentro do contexto da
OTAN.
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As Políticas Externa, de Segurança e de Defesa, enquanto áreas de ação política da
integração europeia, seriam retomadas pelos Estados Membros apenas em 1992, com o
Tratado de Maastricht. Na conferência de Maastricht os então doze Estados Membros
decidiram r em prática uma Política Externa e de Segurança Comum, incluindo o
compromisso, a prazo, de uma política comum de defesa. Mas como afirmam Keukeleire
e Delreux, a PESC ‘was a panicked response to turbulent geopolitics (Keukeleire e Delreux
2022, 111)”.
De facto, o Tratado de Maastricht foi assinado num período marcado por um contexto
internacional próprio, após o fim da Guerra Fria. A UE embarcava para um ambicioso
aprofundamento e alargamento, incluindo uma União Económica e Monetária e de uma
moeda única em três etapas. Os Estados Unidos por outro lado estavam a desviar cada
vez mais a atenção para a região Ásia Pacífico, começando a exigir aos europeus o burden
sharing - partilha justa dos encargos - para com a responsabilidade do continente
europeu. Tragicamente, a Guerra Civil Jugoslava revelou a vergonhosa incapacidade da
UE de garantir a segurança e a estabilidade de países membros da ‘família’ europeia.
Na realidade, o Tratado de Maastricht tinha permitido uma eventual ‘cooperação
sistemática’ entre os Estados Membros e a realização de ‘ações comuns’ nos domínios
que os mesmos teriam interesse em cooperar. Quanto ao sistema de decisão desta
atuação, o Conselho Europeu, composto pelos Chefes de Estado ou de Governo dos
países membros, fixavam por consenso as linhas gerais da PESC. O Conselho de Ministros
por sua vez decidia, por unanimidade, se uma questão concreta deveria ser ou não objeto
de uma ação comum. Em caso afirmativo, o Conselho decidia sobre os domínios em que
as decisões complementares poderiam ser tomadas por maioria qualificada.
1
Nestes
termos, as decisões importantes permaneciam nas mãos dos governos europeus. Assim,
antes da União conseguir falar com uma única voz’, teria de concertar ltiplos
interesses geoestratégicos divergentes.
O Tratado de Amesterdão assinado em 1997 após a entrada da Áustria, Finlândia e
Suécia, veio introduzir inovações nos domínios da PESC, de forma a dar resposta aos
desafios externos, procurando facilitar e reforçar a cooperação entre os parceiros
europeus. A título de exemplo, o novo Tratado criou a possibilidade de uma ‘cooperação
reforçada’ entre Estados Membros no quadro dos Tratados, utilizando procedimentos e
meios da União. Criou também a possibilidade de ‘abstenção construtiva’ por parte de
Estados minoritários que não quisessem participar em estratégias comuns’ europeias,
mas com direito de veto por razões de interesse nacional vital. Igualmente, o Tratado
estabeleceu um Alto Representante para a PESC e introduziu os Acordos de Petersberg
destinados a missões humanitárias ou de restabelecimento da paz. Do mesmo modo,
introduziu o recurso à UEO para executar decisões neste quadro (JO C 340). A UEO
permanecerá, no entanto, separada da União em virtude da oposição do Reino Unido e
da Dinamarca, apoiados pelos países neutros, à integração daquela organização na
União. Um ano mais tarde, após iniciativa Franco-britânica assinava-se a declaração de
St. Malo; Declaração essa que criaria as bases para o lançamento de uma Política
Europeia de Segurança e Defesa em 2000.
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Título V Disposições Relativas à Política Externa e de Segurança Comum, JO C 191.
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O início do novo século foi marcado pelos ataques terroristas em Nova York e Washington
em 11 de setembro 2001 e pela subsequente guerra no Afeganistão. Estes
acontecimentos tiveram um efeito tanto divisivo como revigorante para a UE e a sua
relevância como ator regional e global. Num processo de continuo aprofundamento do
projeto europeu e preparando-se para o seu maior alargamento com dez novos países:
da Europa Central e Oriental, Chipre e Malta em 2004, a União procurou reforçar e
facilitar de novo os mecanismos e métodos de cooperação entre os seus Estados nos
domínios em questão. Neste contexto, o Tratado de Nice de 2003 veio introduzir novas
modificações para otimizar o processo de decisão inclusive no domínio da segurança e
defesa. A título de exemplo, as funções de gestão de crise da União da Europa Ocidental
ficaram incorporadas na UE.
As guerras do Afeganistão e do Iraque, e também o alargamento de 2004, vieram
destacar ainda mais a necessidade de a União reforçar mais as suas capacidades no
domínio da política externa, segurança e defesa. Com o Tratado de Lisboa, assinado em
2007, a UE adquiriu personalidade jurídica, e a PCSD torna-se parte integrante da PESC.
O Tratado de Lisboa também criou o Serviço Europeu para a Ação Externa e instituiu o
Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, de
forma a apoiar na execução dessas políticas. Do mesmo modo, introduziu a ‘cooperação
estruturada permanente’, isto é, a possibilidade de determinados países da União
reforçarem a sua colaboração no domínio militar através da criação de uma cooperação
estruturada permanente (CEP) (artigo 42.°, n.º 6 e do artigo 46.° TUE). Hoje, todos os
Estados membros da UE participam na CEP, com exceção da Dinamarca e Malta. Quanto
a questões de crises ou agressão contra um Estado Membro, de acordo com o artigo 42.7
do TUE, os seus parceiros “devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao
seu alcance, em conformidade com o artigo 51.o da Carta das Nações Unidas(Artigo
42.º, n7 TUE). A importância da OTAN como principal fiador da defesa coletiva e como
instância própria para a concretizar é também destacada no mesmo artigo. Importa
referir que o Tratado de Lisboa veio abolir a construção assente em três pilares, mas
manteve a PESC sob o controlo dos governos nacionais, não alterando fundamentalmente
o sistema de decisão puramente intergovernamental; confirmando assim que old habits
die hard (Keukeleire e Delreux 2022, 126).
Na prática, desde 2003 a UE realizou 36 operações e missões em três continentes. Desde
maio de 2021, estão a decorrer 17 missões e operações da PCSD, das quais 11 o
missões civis e seis militares, com a participação de cerca de 5.000 militares e civis da
UE (Legrand, vide sítio eletrónico oficial do PE). Todavia, estes desenvolvimentos,
independentemente da relevância que possam ter, não significam que os Estados
Membros têm abdicado das suas soberanias, deixando o poder de decisão e ação a
Bruxelas. A política ‘comum’ é ‘comum’ em nome, mas não em substância.
A invasão russa da Ucrânia ipso facto obrigou a União Europeia a abandonar os seus
‘tabus’ sobre Segurança e Defesa. Ursula von der Leyen descreve este momento como
um ‘momento de viragem’, afirmado que “a Segurança e Defesa evoluíram mais nos
últimos seis dias do que nas duas últimas décadas” (Discurso, 1 de maio de 2022). No
entanto, parece que quando falamos sobre o acordar de uma União mais ‘bélica’ após
invasão da Ucrânia estamos a falar sobre mais instrumentos, cargos, respostas
funcionais, no fundo respostas reativas a esta crise. A União, porém, já se deparava com
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uma série de serviços e agências e um modelo de decisão basicamente
intergovernamental, apoiado pelo ‘aparelho eurocrata’, e ‘sem a participação responsável
dos povos europeus’ (Morreira 1999, 232-233); no fundo sem o reconhecimento do
‘primado do político’ no projeto da integração europeia, e sem o qual não poderá existir
uma verdadeira política ‘comum’ entre os povos europeus.
Se a Europa continuar a ser apenas forjada nas suas crises e ser a soma das soluções
adotadas para essas crises, como considerava Jean Monnet, correrá o risco de enfrentar
crises perpetuas. A União parece então a necessitar de um ‘novo paradigma político’ na
sua atuação, e não um padrão déjà vu.
Referências
Bugajski, Janusz (2004). Cold Peace: Russia's New Imperialism. Westport: Praeger; First
Printing edition
Juncker, Jean-Claude (2017). Speech at the Defence and Security Conference Prague:
In defence of Europe’. Prague, 9 June. http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-
171581_en.htm Consultado em 05 de abril 2022
Gardon Ash, Timothy. “The war on Ukraine will change the face of Europe forever”. The
Guardian, 25 de fevereiro de 2022
Mankoff, Jeffrey (2022). Empires of Eurasia: How Imperial Legacies Shape International
Security. Yale University Press. Kindle Edition
Morreira, Andriano. (1999). Estudos da Conjuntura Internacional. Publicações Dom
Quixote. 1999.
Keukeleire e Delreux (2022). The Foreign Policy of the European Union (The European
Union Series). Bloomsbury Publishing. Kindle Edition
Legrand Jérôme. Parlamento Europeu. Fichas temáticas sobre a União Europeia. 09-
2021. https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/159/politica-comum-de-
seguranca-e-defesa
Leyen, Von Der (2022). Speech at the European Parliament Plenary on the Russian
aggression against Ukraine. Brussels, 1 March 2022.
https://cyprus.representation.ec.europa.eu/news/speech-president-von-der-leyen-
european-parliament-plenary-russian-aggression-against-ukraine-2022-03-01_en
Tratados
Tratado de Lisboa. JO C 306. 17.12.2007. EUR-Lex: Direito da UE
Tratado de Nice. JO C 80. 10.3.2001. EUR-Lex: Direito da UE
Tratado de Amsterdão. JO C 340. 10.11.1997. EUR-Lex: Direito da UE
Tratado de Maastricht. JO C 191. 29.7.92. EUR-Lex: Direito da UE
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promessas para a segurança europeia?. Notas e Reflexões in Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 2, Novembro 2022-Abril 2023. Consultado [em linha] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.2.01