OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 2 (Novembro 2022-Abril 2023)
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VIAGEM NA BELLE ÉPOQUE: OS PORTUGUESES E O ESTRANGEIRO
MARIA JOÃO CASTRO
mariajoaocastro@fcsh.unl.pt
Doutorada em História da Arte Contemporânea e investigadora integrada do Centro de
Humanidades (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (NOVA/FCSH, Portugal), centra os seus domínios de especialização na História da Cultura
Contemporânea, infletindo na ligação da Arte com o Poder quer em relação à Viagem e aos
Estudos (Pós-)Coloniais, quer no que concerne ao Turismo. É pós-doc com bolsa da FCT no
projeto intitulado “ArTravel. Viagem e Arte Colonial na Cultura Contemporânea”.
Resumo
O grande movimento de viagem de lazer ocorrido no século XIX chegou tarde a Portugal,
muito por influência das vicissitudes geopolíticas da primeira metade de Oitocentos e de que
se destaca as invasões francesas e o consequente refúgio da corte portuguesa para o Brasil,
bem como a guerra civil liberal subsequente. Nesta atmosfera cambiante, a dimensão do
estrangeiro tornou-se, para os nacionais, num imperativo mais desejado e cantado do que
vivido, pelo que, quase no fim do século, se reuniam as condições necessárias para alguns
portugueses fazerem as malas e partirem além-fronteiras. Daí os seus testemunhos
(literários, artísticos) constituírem registos preciosos de um tempo icónico: a Belle Époque.
Este artigo propõe uma reflexão transversal assente no legado deixado por alguns dos
portugueses viajantes entre o final de século XIX e o início do século XX cruzando um
fenómeno transversal à sociedade ocidental em mutação numa consideração da viagem como
elemento de modernidade. Nesse sentido, e reunindo um conjunto de nomes da cultura
portuguesa que experienciaram a saída para o estrangeiro, pretende-se perspetivar uma
temática de mundividência autoral herdeira da viagem da Expansão Portuguesa cuja
genealogia moldou o globo a uma escala planetária e de que o século XXI é herdeiro.
Palavras-chave
Fin-de-siècle, Turismo, Exotismo, Colonialismo, Relatos, Pintura
Abstract
The great leisure travel movement that occurred in the 19th century came late to Portugal,
largely due to the influence of the geo-political vicissitudes of the first half of the 19th century,
particularly the French invasions and the consequent refuge of the Portuguese court to Brazil,
as well as the subsequent liberal civil war. In this changing atmosphere, the foreign dimension
became, for Portuguese nationals, an imperative that was more desired and sung about than
experienced, so that it was only towards the end of the century that the necessary conditions
were met for some Portuguese to pack their bags and set off across borders. Hence, their
testimonies (literary and artistic) are precious records of an iconic time: the Belle Époque.
This article proposes a transversal reflection based on the legacy left by some of the
Portuguese travellers between the end of the 19th century and the beginning of the 20th
century, crossing a phenomenon that is transversal to western society in mutation in a
consideration of travel as an element of modernity. In this sense, and bringing together a set
of names of Portuguese culture who experienced the journey abroad, it is intended to
perspective a thematic of authorial worldview heir to the journey of the Portuguese Expansion
whose genealogy shaped the globe on a planetary scale and which the twenty-first century is
heir to.
Keywords
Fin-de-siècle; Tourism; Exoticism; Colonialism; Reports; Painting
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Como citar este artigo
Castro, Maria João (2022). Viagem na Belle Époque: os portugueses e o estrangeiro. Janus.net, e-
journal of international relations, Vol13 N2, Novembro 2022-Abril 2023. Consultado [em linha] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.2.14
Artigo recebido em 22 de Fevereiro de 2022, aceite para publicação em 09 de Março de 2022
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VIAGEM NA BELLE ÉPOQUE:
OS PORTUGUESES E O ESTRANGEIRO
1
MARIA JOÃO CASTRO
1. Enquadramento histórico
Todos os retratos que são pintados com sentimento
são retratos do artista e não do modelo.
Este (o modelo) é apenas o acaso, a ocasião.
Não é ele que o pintor revela;
é antes o pintor que, na tela, se revela a si próprio.
Basil Hallward em Dorian Gray de Oscar Wilde
Sabe-se que variadíssimos estrangeiros visitaram Portugal desde finais do século XVIII:
William Beckford (1787-9), James Murphy (1789-90) ou Carl Ruders (1798-1802). Com
as invasões francesas dá-se um hiato no fluxo de viajantes europeus para Portugal,
condição superada após o respetivo restabelecimento das relações diplomáticas e de
que são exemplos as visitas de Heinrich Link (1808), Lord Byron (1809), Dora
Wordsworth (1846) e, mais tarde, Catherine Hannah Jackson (1873) ou Maria Rattazzi
(1876). Contudo, sabe-se menos do curso inverso, ou seja, dos portugueses que fizeram
a viagem para o estrangeiro visitando e experienciando uma Europa e um mundo
frequentemente díspar da realidade portuguesa.
Sabe-se também que, contrariamente ao viajante diletante do Grand Tour
2
, o viajante
romântico procurou privilegiar e obter uma experiência interior decisiva, consubstanciada
na procura do outro, do desconhecido e do diferente e não tanto nas culturas herdeiras
1
Agradecimentos a: Arquivo Municipal de Lisboa; Arquivo Nacional Torre do Tombo; Biblioteca Nacional de
Portugal; Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, S. Miguel, Açores; .Museu Nacional Soares dos Reis, Porto
2
Movimento iniciado nos finais do século XVII (e plenamente experienciado durante os séculos XVIII e XIX),
consistiu numa viagem final de educação, de complemento e confirmação prático- visual das matérias
instruídas a nível académico. Feita inicialmente por jovens aristocratas ingleses (gentry”) e depois
difundida pela classe média burguesa saída da Revolução Industrial, tinha como destino a Europa
(continental) e o seu legado de Antiguidade Clássica, daí incidir em destinos como a Itália e a Grécia
alargando-se depois aos demais centros culturais europeus, como Paris. O seu carácter, primeiro avulso
(século XVIIII) depois de forma sistemática (século XIX), fez com que se tornasse numa prática e numa
moda repetida e plasmada em distintos registos escritos e imagéticos, frequentemente acompanhados de
desenhos e em seguida da fotografia.
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da Antiguidade Clássica e do Renascimento. Era toda uma nova sensibilidade adquirida,
um novo despertar idealizado a partir de uma origem tripartida:
a) O progresso técnico saído da Revolução Industrial que as exposições universais
difundiam;
b) Uma “era” imperial europeia a promover a exploração das suas possessões d’além-
mar;
c) Uma literatura e pintura que mostrava pela primeira vez, destinos longínquos e
exóticos instituindo, entre outras, a moda do Orientalismo.
3
Se a primeira provocou uma melhoria nos meios de transporte e estruturas de
acolhimento locais, a segunda fez com que uma elite metropolitana mergulhasse no
universo colonial ao passo que a terceira estimulou o desejo de empreender a viagem
por pura fruição e experimentação de um universo ainda mítico e ignoto. É neste tempo
único que se assiste não só a uma proliferação de viagens científicas (especialmente de
naturalistas), como de expedições com carácter exploratório saídas da Conferência de
Berlim de 1884-85 e da consequente “Partilha de África” (como foi o caso de David
Livingstone ou dos portugueses Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto).
Recorrentemente, este tipo de deslocações incorporou nas suas comitivas artistas e
escritores que, no regresso, produziram obras que permitiam visualizar, pela primeira
vez, essas terras imaginadas na multissecularidade europeia. E foi assim que a imagem
do “outro” se foi construindo e estruturando desenvolvendo-se numa fase posterior com
a experimentação efetiva desses destinos por parte primeiro por uma elite de aristocratas
(diplomatas, etc.) depois secundada pela nova burguesia saída da Revolução Industrial
(que dispunha agora de tempo e dinheiro e ansiava imitar a elite nobre) e, já no século
XX, reiterada pela população assalariada e de que o turismo de massas é herdeiro.
Verdadeiramente, a dinâmica do culto da evasão nos finais do século XIX e primórdios
do XX fez com que as práticas de um eu que olha o “outro” implicassem a construção de
uma alteridade e identidade próprias daí as suas consequências terem sido
frequentemente desiguais mas não de somenos importância.
Por outro lado, as inovações tecnológicas inspiraram novas perceções da realidade que
cada nação cristalizou à sua maneira numa história a várias velocidades. No que diz
respeito aos viandantes portugueses da Belle Époque período balizado entre o último
quartel do século XIX e a eclosão da Primeira Guerra Mundial estes seguiram os seus
congéneres europeus na procura de uma mundividência externa se bem que numa
prática pouco frequente e inconsequente.
Numa altura em que a viagem ainda não era ligeira e acarretava consigo mais
desconforto e imprevistos do suposto à partida, um conjunto raro de intrépidos
portugueses propôs-se a fazer da deslocação ao estrangeiro um marco nas suas vidas,
trespassando para a sociedade e cultura os ecos e derivas de tal empreendimento.
3
Note-se que o Oriente Oitocentista compreendia todos os territórios que não fossem a Europa conhecida de
então: África, Levante, Médio e Extremo Oriente, assim como as culturas da América.
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2. Metodologia
De acordo com Onfray (2009), o estudo da viagem contemporânea pode ser melhor
compreendido e perspetivado se agrupado em núcleos sociais e/ou profissionais, uma
vez que essa estruturação oferece uma maior perceção das características e derivas
tentaculares de cada um.
Neste contexto, e por necessidade de delimitação da pesquisa, o presente capítulo
circunscreve-se a uma amostragem de categorias sociais/profissionais que se
consideraram significativas tendo em conta um maior impacto na sociedade portuguesa
da época. Esta abordagem parcial não deixa de contemplar uma perspetiva integrada e
um olhar abrangente da dinâmica viandante nacional além-fronteira, perfazendo um
quadro cujas componentes se articulam entre si. A justificação de tal escolha assenta
no facto de a estratificação social europeia vigente durante a Belle Époque ter
permitido condensar em cada classe, as suas aspirações, concretizações e derivas que
a definiu sendo um espelho de uma mundividência cujas particularidades caracterizam
as sociedades onde se inserem. Ora a portuguesa não foi exceção e, ainda que pouco
regular, as suas deslocações ao estrangeiro revestiram-se de singularidades
significativas que interessa revelar.
Outro aspeto central da metodologia utilizada no presente estudo é o de se encontrar
balizado numa cronologia transversal europeia, ou seja, de relação com os territórios
europeus mais próximos tendo em conta a geopolítica à época, nomeadamente no que
concerne aos impérios ultramarinos do Velho Continente e à visitação das suas colónias
de além-mar.
A última parte do artigo avança com algumas reflexões e considerações perspetivando
a relevância e impacto das viagens nacionais ao estrangeiro durante o período
estudado correlacionando a vivência nacional com a internacional.
3. Corpus
Monarquia
Começando pelo topo da hierarquia social a corte a viagem em 1903 da rainha D.
Amélia ao Egito foi um catalisador para que uma certa aristocracia lhe seguisse no
encalço (nobre e militar) tendo sido posteriormente alargada ao universo cultural-
artístico da sociedade intelectual de então (escritores e artistas). A partir do Álbum
fotográfico
4
da viagem da rainha pode-se ter uma noção precisa não do itinerário régio
como auferir das relações entre Ocidente/Oriente, arqueologia e colonialismo,
constituindo um testemunho singular da viagem enquanto fenómeno cultural e elitista
4
O álbum documenta a viagem realizada pela rainha D. Amélia, o Príncipe D. Luís e o Infante D. Manuel,
entre 28 de Fevereiro e 28 de Abril de 1903. O itinerário tinha como destino final o Cairo, com passagem
por alguns dos principais portos do Mediterrâneo como Cádis, Gibraltar, Argélia, Túnis, Malta e Alexandria.
Na viagem de regresso, o iate aportou em Nápoles e Capri, para uma visita às ruínas de Pompeia. O álbum
é constituído, na sua maioria, por fotografias tiradas pelo Príncipe D. Luís, pelo pintor Casanova e ainda
pelo Infante D. Manuel. Organizado de forma cronológica e geográfica, o documento apresenta um total
236 fotografias, que foram criteriosamente montadas e distribuídas por 36 páginas, acompanhadas de
legendas manuscritas pela rainha, que identificam os registos e os autores dos mesmos.
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de domínio imperial. Acima de tudo, esta deslocação a terras de faraós funcionou como
elemento de divulgação e disseminação de estereótipos acerca do Oriente, sendo parte
integrante e colaborativa na instauração dum conceito ocidental de Orientalismo, que a
teoria e crítica histórica contemporâneas têm vindo a dissecar, como é o caso da obra de
Edward Said. Desde as invasões napoleónicas de 1798, as ruínas do Egito era marco e
símbolo de um culto romântico do belo enquanto decadência. É por isso evidente, quando
analisamos o álbum da família real, que os pontos de interesse das ruínas arqueológicas
egípcias correspondam a um itinerário que obedecia aos desenvolvimentos das
escavações e à sua divulgação no Ocidente, o que era determinante para o modo como
aquela civilização era entendida e observada. De modo a capitalizar a viagem de lazer
em proveito nacional, a família reinante adquiriu e trouxe para Portugal um conjunto de
cerca de 200 peças de antiguidades egípcias, que seriam integradas em 1910 no acervo
do Museu Nacional de Arqueologia, cumprindo a tradição das monarquias europeias de
trazer para casa relíquias de civilizações “perdidas” e subjugadas. Num certo sentido, e
dentro do ecletismo de transição do século, esta visita não visou a fruição e experiência
cultural mas teve uma forte componente colonial e económica de dominação política.
5
Imagem 1 - Rainha D. Amélia e comitiva no Egito, 1903. Álbum Fotográfico
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal
5
Convém referir duas viagens régias, antes e depois da viagem de D. Amélia, ainda que uma tenha tido um
carácter militar e outra colonial. A primeira, anterior, foi a de D. Afonso Henriques de Bragança (1865-
1920) à Índia portuguesa, em 1895, e deveu-se a objetivos militares pelo que constitui uma deslocação
com um carácter distinto da que aqui se pretende retratar. Outra, a de D. Luís a África (1887-1908) tem
uma índole particular uma vez que foi a única de um futuro monarca português às províncias do império
ultramarino. O efémero sucessor do rei D. Carlos I (1863-1908) embarcou em 1907 no navio África para
uma viagem de estudo e conhecimento dos territórios d’além mar. Foi o primeiro príncipe a visitar as
colónias africanas tendo como objetivo a legitimação nacional dos territórios portugueses da África Oriental
e Ocidental. Isso significa que, para além de uma viagem de estudo e de compreensão, esta tinha o
propósito de consagrar o esforço colonizador português e de mostrar ao futuro rei a importância, a riqueza
material e moral dos territórios ultramarinos e das gentes que lá viviam.
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Outras viagens régias houve antes e depois desta de D. Amélia mas nenhuma para
um destino extraeuropeu.
6
Aliás, estava programada uma viagem do seu marido, o rei
D. Carlos, em março de 1908 ao Brasil que o regicídio de 1 de fevereiro impossibilitou.
Fora do espaço geográfico português, mas ainda relativo à monarquia portuguesa há a
mencionar as viagens de D. Pedro II, imperador do Brasil (1825-1891) em 1876 aos
Estados Unidos, Europa e Médio Oriente. Nos diários desta viagem, e após atravessar o
Atlântico, o autor refere a sua visita a vários países do Velho Continente, Egito, Líbano,
Síria e Palestina. Note-se que D. Pedro II havia já feito uma viagem à Europa e ao
Egito em 1871, mas dela não se encontraram cronicas pessoais.
Militares
Numa vertente militar destaca-se a figura de Francisco Afonso Chaves. Naturalista
açoriano, Chaves (1857-1926) teve um papel fulcral no desenvolvimento científico,
sobretudo na biologia, geologia, geofísica, vulcanologia, sismologia, e meteorologia, mas
as suas viagens repercutem muito mais do que o mero conhecimento académico.
Efetivamente, Chaves manteve um vasto interesse por outras áreas temáticas que
concretizou em viagens de trabalho que perfazem um álbum não científico, mas que
inclui instantâneos de lugares num puro deleite pelas formas do mundo. Dito de outro
modo: Francisco Afonso Chaves combina a curiosidade do cientista com a sensibilidade
do artista. Visitou Londres e Veneza, Marrocos e Paris, mas foi a sua deambulação
africana em 1906 que melhor traduz o seu olhar singular. A bordo do vapor Lusitânia, o
açoriano visitou Moçambique, África do Sul e Zanzibar numa viagem cujas imagens nos
ajudam a construir um olhar atento sobre esses destinos pouco frequentados pelos
viajantes nacionais. Fazendo da estereoscopia a sua técnica principal, o seu trabalho
fotográfico do Continente Negro é de uma qualidade inusitada como denota o espólio
depositado no Museu Carlos Machado em Ponta Delgada, Açores, instituição que ajudou
a formar. Assente numa rara interação e até fusão entre arte e ciência, e combinando a
curiosidade do cientista com a sensibilidade do fotógrafo, o registo sistemático da
paisagem, dos costumes e tradições torna-o um caso único na sua geração. Detentor de
uma metódica construção conceptual e formal, Chaves explora formas inovadoras de
perceção e imersão visual, como plasmam as imagens do périplo africano expressando
uma errância e um testemunho da sua paixão de conhecimento do mundo que
complementa com diários de viagem que ajudam a percecionar melhor a sua
mundividência completando um olhar cruzado entre escrita e imagem, fruição e erudição.
6
Para uma elencagem mais completa ver Miguel Ribeiro Pedras. Viajar com os Reis de Portugal. A Esfera dos
Livros: Lisboa, 2020; António Ferreira Basto. Viagens por Terra com El-Rei D. Carlos. Lisboa: Chaves
Ferreira Publicações,1997; Filipa Lowndes Vicente. Viagens e Exposições. D. Pedro V na Europa do Século
XIX. Lisboa: Gótica, 2003.
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Imagem 2 - Zanzibar, 1906, Francisco Afonso Chaves (Arquivo) CAC2218
Fonte: Coleção Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, Açores.
a assinalar igualmente a figura de Adolfo Ferreira de Loureiro (1836-1911), militar,
engenheiro, escritor, poeta e político português que, em 1883, foi em Comissão à Índia
Britânica, Ceilão, Singapura, China e Macau tendo resultado os dois volumes No Oriente,
de Nápoles à China, publicados por ocasião da Exposição do Centenário da Índia, em
1898. O seu relato do (Extremo-)Oriente constitui um documento raro onde desenvolve
interessantes apontamentos acerca da cultura e sociedade de cada um dos destinos
percorridos. O testemunho deste general condensa um olhar transversal ao mundo de
finais de Oitocentos que vai muito para além do mero boletim militar, uma vez que o
escrito revela não informações de matriz profissional mas especialmente opiniões de
âmbito sociocultural de viajante atento e desperto.
Escritores
Mas seria no registo literário que a cultura viática portuguesa durante a Belle Époque
concentraria um fulgor de maior pujança. É que, no dealbar do século XX, os testemunhos
literários de alguns escritores portugueses constituem um corpus de referência do olhar
nacional sobre o outro” sobretudo no espaço extraeuropeu. É o caso de Ramalho Ortigão
(1836-1915) nas suas obras A Hollanda de 1885 (onde a par da pintura de paisagens e
ambientes exteriores ressalta notações estéticas de uma viagem interior), Pela Terra
Alheia onde relata além das suas jornadas pela Europa, a sua viagem transatlântica a
terras da Argentina e do Brasil (1887), onde se encontrava seu irmão.
7
7
Ver Jorge Alves, O Brasil sob o Olhar Europeu de Ramalho Ortigão, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2022. Em linha: https://digitalis-
dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/42766/1/O%20Brasil%20sob%20o%20olhar%20europeu.pdf
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Uma outra figura literária e viandante, comparsa de Ramalho Ortigão foi Eça de Queirós
(1845-1900). A sua viagem ao Cairo em 1869 por ocasião da inauguração do canal do
Suez resultou numa das suas mais interessantes narrativas, crítica e lúcida sobre o
conflito entre a herança cultural e as tensões políticas, económicas e coloniais que se
colocavam ao moderno Egito. Publicadas na coluna “Folhetins” do Diário de Notícias, as
suas crónicas (postumamente compiladas no livro O Egito. Notas de Viagem) narram o
seu desembarque em Alexandria, o trajeto até Port Said e ao Suez tomando depois a
direção da Síria e Palestina. Nestes apontamentos chega mesmo a registar, com algum
detalhe, locais por onde não passou, mas que ‘visitou’ graças às obras de alguns dos
mais famosos visitantes do Oriente da época, como Maxime du Camp, Gérard de Nerval,
Edmond About ou Théophile Gautier, o último dos quais encontraria no Shepheard’s
Hotel, no Cairo. Eça foi herdeiro de um filão de literatura de viagens que entretanto lera
e o inspirara tendo a consciência estar a percorrer um caminho literário trilhado por
outros mas imprescindível a quem queria estar na frente da modernidade. Anotando as
suas impressões em cadernos de bolso, Eça relata os passeios no Cairo, o porto de
Alexandria, as viagens de comboio e de barco cujos detalhes lhe serviriam, à posteriori,
compor e enriquecer a vida das personagens como Teodorico Raposo (em A Relíquia) e
Fradique Mendes. Terá sido durante esta deambulação pelo Médio Oriente que Eça de
Queirós ganhou o gosto pela diplomacia que haveria de levá-lo, mais tarde, à América,
nomeadamente nas Antilhas Espanholas (hoje Cuba), onde foi cônsul em 1872. Durante
a sua permanência em Havana aproveitou para visitar os Estados Unidos e o Canadá
sendo depois transferido para Paris; anteriormente havia vivido em Inglaterra. Foram
com toda a certeza as viagens que conferiram a Eça de Queirós o seu humanismo e olhar
perspicaz e assertivo à sociedade portuguesa que o tornaram numa figura de proa da
literatura portuguesa dos princípios de Novecentos.
Na senda da viagem de Eça ao Egito, em 1876, Ricardo Guimarães (1830-1889) haveria
de publicar De Lisboa ao Cairo. Scenas de Viagem.
8
São da sua lavra ainda Impressões
de viagem: Cadiz, Gibraltar, Paris e Londres (1869), Vienna e a Exposição (1873) e Na
Itália (1876) mas é o texto De Lisboa ao Cairo o mais incomum uma vez que nele não
uma mitificação do Oriente mas uma descrição pouco idílica e uma necessidade de
mudança civilizacional muito comum ao discurso de índole colonialista.
O escritor Jaime de Magalhães Lima (1859-1936) viajou pelo norte da Europa e África
numa deambulação registada e publicada em 1880, Cidades e Paizagens. Nela, o autor
reflete sobre os motivos que podem levar um indivíduo a viajar estabelecendo tipos de
viagem numa classificação fundadora.
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) foi outro viajante invulgar não pelos
destinos percorridos mas pela forma como traduz o pensamento do país visitado.
Historiador, político e cientista, Oliveira Martins foi uma figura-chave da historiografia
portuguesa contemporânea com uma elevada plasticidade às múltiplas correntes de
ideias que atravessaram o século e é essa a sua mais-valia nos escritos viandantes que
deixou. Publicado em 1905, o seu escrito A Inglaterra de hoje. Cartas de um viajante -
8
Em resultado da sua nomeação como cônsul em Macau em 1868, Ricardo Guimarães partiu para o Oriente
mas desistiu a meio da viagem por motivos de saúde tendo regressado a casa. Para além das narrativas de
viagem ao estrangeiro, Ricardo Guimarães seria também um entusiasta das viagens no seu próprio país,
tendo registado essas impressões em muitos folhetins que foram, posteriormente, coligidos para volume
Leituras do Verão (1883).
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nos conta das impressões recolhidas sobre as paisagens britânicas refletindo sobre
questões civilizacionais, culturais e económico-políticas, numa abordagem temática
transversal e profundamente agregadora, característica rara às crónicas de viagem da
época.
No âmbito feminino, rareiam as escritoras viajantes, muito por força da sociedade
conservadora e tradicional de então a o dar espaço às mulheres para terem uma
carreira própria, acusando as poucas que o intentaram de moral duvidosa. Daí a
singularidade de Guiomar Torrezão (1844-1898), jornalista e autora de A Grande
Velocidade (Notas de Gare), um escrito publicado anos depois da viagem efetiva à capital
espanhola,
9
pelo que abarca uma dimensão ficcionada de uma Espanha lendária,
romanticamente exótica e pitoresca. Essas imagens estereotipadas não passam de uma
súmula de outras descrições vivazes fixadas por anteriores viajantes, conforme Guiomar
Torrezão escreve com os olhos postos nesses livros, como é o caso da descrição da
mulher madrilena a lembrar ostensivamente a descrição que Ramalho Ortigão tinha feito
das espanholas, alguns anos antes (Ortigão, 1949).
10
De facto, o desenvolvimento
industrial, o crescimento das cidades, a explosão demográfica e a rapidez dos transportes
diluiria muitas das tradições e da etnografia que os românticos tanto apreciavam. Por
outras palavras: a viagem deixara de ser uma aventura existencial que oferecia emoção
e entusiamo para se vulgarizar numa homogeneização contrária à que caracterizara a
elite finissecular. Mais tarde, Torrezão apanharia o Sud Express
11
para a capital francesa,
destino último cujos escritos serão publicados em 1888, sob o tulo Paris, Impressões
de viagem e dedicado à condessa de Edla.
12
conhece Alexandre Dumas Filho e Victor
Hugo naquela que era a cidade-símbolo da Belle Époque. A cosmopolita e efervescente
Paris entre guerras (a Franco-Prussiana e a Primeira Guerra Mundial) era o exemplo a
seguir pelas congéneres europeias liderando as mudanças culturais e sociais, com um
clima intelectual nos salões e teatros; e boêmio, nos bailes e cabarés. E foi nessa Paris
pré Torre Eiffel que, em 1885, desembarcou Guiomar Torrezão.
Também Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921) merece ser mencionada. Escritora
e colaboradora em diversos jornais (Diário Popular) e revistas (A Ilustração Portugueza,
O Occidente), a sua casa foi um dos primeiros salões literários lisboetas por onde
passaram personagens como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Camilo Castelo Branco e
Guerra Junqueiro, entre outros. Em 1896 publica Pelo Mundo Fora, uma obra resultante
de uma viagem a Paris que a sua educação muito marcada pela cultura francesa
enalteceu. Isso traduziu-se no facto da viandante se deixar guiar por uma biblioteca
mental de artistas que transformou este escrito numa obra de crítica literária anunciada
como um livro de viagens. Como refere Maria Amália, a França, a que minha alma
aspirava (...) era a França que desde Jean Goujon até Rodin, e desde o Poussin até Puvis
de Chavannes, e desde Froissart até Michelet, e desde Mme. Laffayette até Georges
Sand, e desde Balzac até Zola, e desde Pascal até Renan (...) e desde Ronsard até Victor
Hugo, e desde Marot até Verlaine, e desde a grande renascença do seculo XVI até ao
9
Para fazer a cobertura do casamento da irmã do Rei de Espanha, Afonso XII, a infanta D. Paz, com o Príncipe
D. Luís da Baviera, a 2 de Abril de 1883.
10
Ramalho Ortigão. Pela Terra Alheia. Quetzal: Lisboa, 1949, p. 120.
11
O Sud-Express foi inaugurado em 1887, assegurando a ligação de Lisboa a Madrid e a Paris, e que se
projetara inicialmente como ramo de uma grande linha transcontinental de Lisboa a S. Petersburgo nunca
efetivada.
12
https://books.google.pt/books?id=EG8_AQAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false
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magnifico movimento do romantismo, tem enchido o mundo da arte, e da poesia, e da
realidade, e da ficção, de obras primas sem conta e sem medida!”
13
Visita museus, atenta
na paisagem, distinguindo-se o seu relato pela capacidade de viajar motivada apenas
pelos seus próprios interesses, satisfazendo a própria curiosidade em conhecer e
experienciar um país, uma cidade e uma cultura que tanto admira.
Imagem 3 - Maria Amália Vaz de Carvalho, 1911
Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa.
Há ainda um conjunto lato de civis burgueses, proprietários rurais, entre outros que
procuram viajar por motivos religiosos, em peregrinações que aliam cultura e devoção,
como foi o caso de Pereira Pinto Balsemão. Em 1904, Balsemão publica Notas de Viagem
Do Porto a Lourdes, um relato onde se conta a viagem de peregrinação completada
com algum excursionismo por várias cidades de Espanha como Salamanca, Valladolid,
Burgos, San Sebastian e Biarritz, numa descrição que pretendia “ajudar os viajantes que
se decidam por uma viagem cultural onde Lourdes é a etapa especial, motivação e
álibi”.
14
13
Maria Amália Carvalho. Pelo Mundo Fora. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1896, p. 14. Em acesso
aberto: https://purl.pt/6306/6/l-41045-p_PDF/l-41045-p_PDF_24-C-R0150/l-41045-p_0000_capa1-
capa4_t24-C-R0150.pdf
14
Sérgio Brito. Notas Sobre a Evolução do Viajar e a Formação do Turismo. Lisboa: Medialivros, 2003, p. 353.
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Pintores
E é no universo pictórico que talvez se encontre o registo mais representativo de um
modo de olhar o “outro”, olhar esse fruto das viagens dos artistas portugueses da Belle
Époque. Com uma ascendência preliminar da literatura de viagens de pendor
“orientalizante”,
15
a pintura tornou visíveis as paisagens narradas pelos escritores
ajudando a formular um ideário no público das metrópoles que o levou a querer viajar
para esses destinos do império. Artistas como David Roberts (1796-1864) ou Eugène
Delacroix (1798-1863) e foram mesmo mais longe e não se limitaram a pintar um império
imaginado mas deslocaram-se até ele para melhor o representarem. Ora essa moda de
cariz orientalizante foi largamente mostrada nas grandes exposições universais,
mundiais, internacionais e coloniais, iniciadas em 1851 em Inglaterra e logo repetidas
em Paris nos anos subsequentes. E foi nelas que o grande público citadino viu, pela
primeira vez, esse Oriente remoto que foi depois estendido ao Salon e às galerias de arte
privada numa confluência temática que viria a ser o motor para as vanguardas
europeias.
16
No contexto português, o cenário foi um pouco distinto e teve as suas particularidades
pois foi do meio académico das Belas Artes
17
que saíram os primeiros estudantes
bolseiros para pintar o estrangeiro do final de século. Com o intuito de alargar horizontes
e apurar cnicas principalmente em Paris estes jovens pintores produzirão um
conjunto de obras que darão a conhecer territórios senão ultramarinos pelo menos
algumas das geografias além-fronteiras.
Em 1879, a poucos meses da inauguração solene dos trabalhos para a abertura da
Avenida da Liberdade e a consequente demolição do Passeio blico símbolo do
romantismo e prenúncio de uma viragem estrutural regressavam a Portugal dois dos
primeiros pensionistas de Belas: Marques de Oliveira (1853-1927)
18
e Silva Porto
19
(1859-1893), este último a fundar o Grupo do Leão
20
, núcleo à volta do qual se agregaria
a primeira e a segunda geração de naturalistas nacionais. Nesse mesmo ano, parte para
Paris o bolseiro Artur Loureiro (1853-1932) artista que foi mais além no itinerário
viandante, partindo em 1884 para a Austrália onde viveu vários anos até regressar ao
Porto, sua terra natal. Constituindo um exemplo único da arte e da viagem entre Portugal
e os antípodas, Artur Loureiro construiu um percurso de pintor-viajante que gravitou
entre a Europa e a Oceânia, mais precisamente Melbourne onde viveu anos até regressar
ao Porto, sua terra-natal. De matriz naturalista mas permeável a distintas influências
criativas (nomeadamente o Simbolismo), a sua obra reflete a história global, a cultura
visual e as itinerâncias que pontuaram uma existência singular.
15
Integrando obras de autores como Chateaubriand, Lamartine, Nerval ou o precursor de todos eles, Victor
Hugo com Les Orientales.
16
É o caso de pintores como Paul Gauguin (no Taiti) ou de Henri Matisse (em Marrocos), artistas que se
deslocaram às colónias do império neste caso francês para melhor as pintar.
17
A Academia de Belas Artes em Lisboa e a Academia Portuense de Belas Artes foram criadas em 1836.
18
Viveu em França como pensionista entre 1873 e 1879 e viajou com Silva Porto pela Bélgica, Países Baixos,
Inglaterra e Itália. Participou nos Salons de Paris de 1876 e 1878.
19
Estudou na capital francesa entre 1876 e 1877, tendo viajado pelos países limítrofes, como Itália em 1879.
20
Grupo espontaneamente construído em torno de uma mesa de uma cervejaria da Baixa, uma associação
livre de artistas que se reuniam para discutir, confraternizar e promover exposições.
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Porém, talvez o artista viajante mais inovador no modo como absorveu o estrangeiro
tenha sido o jovem Henrique Pousão (1859-1894). A sua brevíssima carreira não impediu
que fosse considerado o mais radical da sua geração. Bolseiro em Paris (1881), cidade
que trocou depois (1883) por Roma, Nápoles, Capri e Anacapri onde se instala, os seus
quadros de viagem definem uma visão pictural muito pessoal onde sobressai uma
ousadia do tratamento plástico da paisagem/figura que não teve seguidores. Se as suas
“impressões” de viagem não passaram despercebidas à Academia de então, a
modernidade da sua obra assenta numa estética própria sem preocupações ilustrativas
ou narrativas, antes profundamente abstratas, mostrando o quanto se encontrava à
frente do seu tempo. Por entre o seu roteiro do pintor-viajante, a obra de Henrique
Pousão condensa um entendimento da pintura que se autonomiza como puro valor
lumínico, via de acesso à contemporaneidade de uma obra feita de pinceladas que se
tornam numa impressão de viagem não só efetiva mas, acima de tudo, interior.
Imagem 4 - Fachada de casa Soterrada, Henrique Pousão, Roma, 1882.
Fonte: Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.
Ainda ligado à primeira geração de naturalistas portuguesas convém enunciar o nome de
José Júlio de Sousa Pinto (1856-1939) colega de Henrique Pousão em Paris e que se
integrou de tal maneira na vida artística parisiense que desenvolveu uma carreira
sólida, permeada com frequentes visitas a Portugal.
A segunda geração de naturalistas portugueses composta por artistas como José
Malhoa (1855-1933), Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)
21
e seu irmão Columbano
Bordalo Pinheiro (1857-1929)
22
bem como por Veloso Salgado
23
(1864-1945) viajou
de forma intermitente pelo estrangeiro tendo sido poucos os que passaram para os seus
quadros as paisagens além-fronteira circunscritas ao eixo europeu França-Itália. Não foi
21
Visitou Espanha (1873), Rio de Janeiro (onde viveu de 1875 até 1879), Paris (1889 por ocasião da
participação na Exposição Universal cujo pavilhão português é por si decorado) e novamente Brasil (em
1899).
22
Viajou regularmente para Paris.
23
Nascido na Galiza, Salgado foi bolseiro em Paris, local a partir do qual viajou pela Bretanha e Itália. Em
1898 venceu o concurso das comemorações do Centenário do descobrimento da Índia com o quadro
histórico Vasco da Gama perante o Samorim, centrando-se numa pintura histórica herdeira das paisagens
naturalistas estrangeiras que conheceu.
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o caso de Adriano de Sousa Lopes (1879-1944) que haveria de ir um pouco mais além
visitando o norte de África.
Também Aurélia de Sousa (1866-1922) ocupa um lugar próprio na viagem ao estrangeiro
da Belle Époque. Nascida no Chile e crescida no Porto, frequenta a Academia Portuense
e depois a Julian, de Paris, onde passa a residir a partir de 1898. Viaja pela Europa
apreendendo as coleções expostas nos principais museus de Bruxelas, Antuérpia, Berlim,
Roma, Florença, Veneza, Madrid e Sevilha e que depois a inspirarão a criar uma obra
invulgar.
Quanto ao seu conterrâneo Raul Maria Pereira (1877-1933), também aluno da Academia
Portuense, foi bolseiro em Roma (1903), local a partir do qual aproveitou para viajar
pelos centros artísticos de Itália e da Grécia e de cidades como Viena, Budapeste,
Istambul, Munique, Paris e Madrid. Levado pela sua ânsia de viajar e de conhecer novas
paisagens, Raúl Maria Pereira atravessou o Atlântico e foi instalar se na República do
Equador (1908) e em 1917-18 transferiu-se para o Perú desenvolvendo um percurso
internacional incomum à época.
Imagem 5 - Damas da Belle Époque na Praia das Maçãs com o hotel Royal Bellevue em fundo,
1913.
Fonte: A.N.T.T., Col. O Século, Benoliel, lote 8, cx. 1.
Considerações finais
Desde a Época Moderna, Portugal foi um país cujo imperativo da Viagem se enraizou
num ideário e numa prática reiterada ao longo das centúrias seguintes e de que a
Expansão Portuguesa foi o marco basilar. Porém, com as vicissitudes dos (desa-)acertos
da história portuguesa no início de Oitocentos, e dentro da configuração
contemporânea, esta vocação viandante enfraqueceu e diluiu-se numa vivência
confinada a intramuros. E este indicador faz perceber que o desenvolvimento das práticas
turísticas está intimamente ligado ao processo de construção das identidades nacionais.
Numa análise sinóptica veja-se: a monarquia vivia tempos conturbados e a República,
quando proclamada, preocupou-se em subsistir nas agitadas águas de um país
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circunscrito ao território metropolitano. Daí que a da Belle Époque portuguesa não tenha
correspondido a uma verdadeira “Época Dourada”, pelo menos no que à viagem diz
respeito: o estrangeiro ficava longe e os meios (físicos, monetários, culturais) para a
concretização da viagem ociosa escasseavam num país que se situava na ponta de uma
Europa a desenvolver-se a várias velocidades. Os poucos a saírem, preferiram um
estrangeiro moderno e próximo eurocêntrico (Paris, principalmente) sendo que
um punhado se aventurou a ir mais longe experimentando o exótico (África, Médio
Oriente, Ásia) em consonância com a política hegemónica de legitimação dos territórios
imperiais europeus. Para os portugueses de final de Oitocentos, a miragem oriental
essa espécie de antídoto à monotonia de uma sociedade cada vez mais industrializada e
uniforme bem como a procura de autenticidade e pureza (“Bom Selvagem”) que decorre
da não contaminação pelos vícios do Homem europeu, burguês e urbano encontrava-
se a anos-luz da realidade nacional que, isolada, se escapava para uma literatura de
viagens a devolver-lhe parte do “Élan” da deslocação efetiva. Deste modo, e numa época
charneira, os registos deixados resultam de um itinerário externo a traduzir percursos
singulares e solitários numa prática pouco incentivada presa ao tardar do país em
acompanhar o progresso tecnológico e consequente abertura intelectual e de
mentalidade. Daí que de entre as diferentes linguagens (escrita, pictórica, fotográfica)
dos viajantes nacionais para o estrangeiro na passagem do século XIX para o XX, a que
se evidenciou foi a da escrita e, no registo interno, a pictórica.
Cristalizando a reflexão proposta verifica-se que o apelo do exterior é distante,
fragmentado, num Portugal anacrónico que resiste ao avanço da modernidade europeia
como que suspenso num tempo fora da ribalta do progresso a granjear por grande parte
das metrópoles do Velho Continente. Nele sobreviveram modos de vida e ofícios antigos
preservando uma ruralidade pré-industrial de vocação e raiz campestre. Numa Europa
então em completa mutação, os ecos e derivas da viagem em solo nacional ancoraram-
se num provincianismo multissecular, característica que conferiu à Belle Époque
portuguesa uma especificidade e um tom a ignorar os “ismos” do final de Oitocentos e
início de Novecentos correspondentes às vanguardas europeias: impressionismo,
fauvismo, cubismo, abstracionismo, futurismo, expressionismo. Nessa altura, e a fechar
o grande final da Belle Époque, Portugal via surgir a obra pictórica de Amadeo de Souza-
Cardoso (1887-1918) a distanciar-se das artes tradicionais para aderirem ao ritmo das
vanguardas que a Primeira Guerra inviabilizaria, se bem que fossem precisos mais de 50
anos após a sua morte para se começar a reconhecer a grandeza dos seus trabalhos
artísticos.
Em suma, nas suas múltiplas vertentes e especificidades, para os portugueses na Belle
Époque fossem eles aristocratas, militares, escritores ou artistas, a viagem efetiva para
o estrangeiro foi um acontecimento lateral ainda que provocador de uma escrita e de
uma arte, entendidas aqui como um programa estético e plástico próprio. Os poucos que
se aventuraram para lá da fronteira circunscreveram-se maioritariamente a uma Europa
ocidental a ano-luz da realidade nacional tendo sido raríssimos os que ousaram ir mais
além (Oriente, Extremo-Oriente, África, América). Em todo o caso, os relatos que
deixaram escritos e pictóricos devolvem “o ar do tempo” não dos espaços visitados,
mas principalmente, e tal como a epígrafe deste texto enuncia, “se revelam a si próprios”.
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