OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 2 (Novembro 2022-Abril 2023)
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O TIANXIA E A POLÍTICA EXTERNA DA CHINA EM CONTEXTO DE PANDEMIA
LUÍS FILIPE PESTANA
pestana.1989@hotmail.com
Doutorando em Ciência Política pelo ISCSP da Universidade de Lisboa. Mestre em Relações
Internacionais: Segurança e Defesa pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa. Licenciado em Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos
da Universidade Católica Portuguesa. Professor de Língua e Cultura Portuguesa da
Universidade Normal de Pequim (China), tendo colaborado com a Embaixada da República
Portuguesa em Pequim na promoção da língua portuguesa e como examinador dos exames de
proficiência de língua CAPLE. Autor de artigos em publicações e revistas tanto de relações
internacionais, como ligadas ao ensino de PLE. Deu aulas e palestras à distância para diversas
instituições, tais como a Universidade Católica de Moçambique, Universidade Autónoma de
Lisboa e Universidade Aberta ISCED.
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
ngomes@autonoma.pt
Doutorada em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa. Mestre em Relações Internacionais pelo ISCSP, Universidade
Técnica de Lisboa. Licenciada em Estudos Internacionais, Faculdade de Ciências Económicas e
Sociais da Universidade Central da Venezuela. Professora Associada da Universidade
Autónoma de Lisboa (Portugal), Coordenadora Científica da Licenciatura em Relações
Internacionais; Coordenadora do Curso Avançado de Estudos sobre a América Latina (UAL e
Instituto da Defesa Nacional); e Coordenadora da Cátedra de Estudos Ibero-Americanos,
parceria da Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura
e UAL. Investigadora integrada do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL. É autora de
várias publicações científicas em revistas nacionais e internacionais na área da especialidade e
comentadora ocasional sobre assuntos relacionados com os países da América Latina na
comunicação social. Directora da Delegação da Fundação Universitária Ibero-Americana
(FUNIBER) em Portugal. Exerceu funções de Consultoria no Serviço de Educação e Bolsas da
Fundação Calouste Gulbenkian.
Resumo
A pandemia Covid-19 enquanto ameaça global tem permitido obter uma perspectiva
dinâmica acerca do comportamento dos Estados, e algumas luzes sobre o novo cenário
internacional. Neste contexto ficou claro que a República Popular da China e o Ocidente são
competidores em mais que uma área, e que será necessário cooperar com o gigante
asiático em prol da estabilidade/equilíbrio mundial. Neste artigo propomos um olhar
retrospectivo (histórico) sobre o Estado centralizado da China, para depois caracterizar o
regime actualmente vigente. No âmbito das Teorias das Relações Internacionais chinesas,
propomos desenvolver o conceito de tianxia como guia para a definição de uma estratégia
política, considerando as críticas e limitações à aplicação desse mesmo conceito. E ainda
no contexto pandémico, propomos uma leitura das acções políticas levadas a cabo pelo
regime chinês. O estudo do tianxia, seja qual for o cenário internacional que se configure,
poderá ajudar-nos a compreender alguns dos fundamentos históricos daquilo que é a RPC
hoje.
Palavras-chave
tianxia; valores universais; China; Política Externa; Covid-19
Abstract
The Covid-19 pandemic as a global threat has made it possible to gain a dynamic
perspective on the behavior of States, and some light on the new international scenario.
In this context, it has become clear that People's Republic of China (PRC) and the West are
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O tianxia e a política externa da China em contexto de pandemia
Luís Filipe Pestana, Nancy Elena Ferreira Gomes
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competitors in more than one area, and that it will be necessary to cooperate with the
Asian giant for global stability/balance. In this article, we propose a retrospective
(historical) look at the centralized State of China, and then characterize the current regime
in that country. In the context of Chinese theories of International Relations, we propose
to develop the concept of tianxia as a guide for the definition of a political strategy,
considering the criticisms and limitations to the application of that same concept. Still in
the pandemic context, we propose a reading of the political actions taken by the Chinese
regime. The study of tianxia, whatever international scenario is set, may help us to
understand some of the historical foundations of what PRC is today.
Keywords
tianxia; universal values; China; Foreign Policy; Covid-19
Como citar este artigo
Pestana, Luís; Gomes, Nancy Elena Ferreira (2022). O tianxia e a Política Externa da China,
em contexto de pandemia. Janus.net, e-journal of international relations, Vol13 N2,
Novembro 2022-Abril 2023. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.2.4
Artigo recebido em 21 de Março de 2021, aceite para publicação em 26 de Agosto de 2022
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O TIANXIA E A POLÍTICA EXTERNA DA CHINA
EM CONTEXTO DE PANDEMIA
LUÍS FILIPE PESTANA
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
Introdução
O despontar da pandemia Covid-19 trouxe à humanidade um duplo desafio: um
imediato, controlar o rus e o outro, a mais longo prazo, reduzir as desigualdades
dentro e entre os Estados, apelando à solidariedade, mas a crise sanitária expôs
também dois pressupostos que fazem parte do nosso imaginário algum tempo:
em primeiro lugar, que a República Popular da China (RPC) é hoje o grande adversário
do Ocidente no campo económico, mas cada vez mais noutros campos, e que será
necessário cooperar com o gigante asiático em prol da estabilidade global.
A ascensão da China tem sido vista por vários autores como um factor de
destabilização potencial da ordem mundial. Para Nicholas Spykman, uma China
poderosa ameaçaria as potências ocidentais na área do “Mediterrâneo Asiático”1 ,
sendo por isso fundamental uma aliança entre os EUA e o Japão para manter o
equilíbrio de poderes na região de Ásia-Pacífico (Spykman in Sempa, 2019). No mesmo
sentido, na década de 1960, o historiador Arnold Toynbee alertaria para o seguinte:
(durante a Guerra Fria), cada uma delas (EUA e a URSS) passará a
desconfiar da outra, e a confiança mútua, sem a qual uma cooperação
positiva entre elas seria impraticável, seria difícil de estabelecer.
Portanto, era possível que a América e a Rússia fizessem «a grande
recusa» e, se a fizessem, estariam deixando a iniciativa para a China. Seria
então a vez desta de fazer sua tentativa, se assim escolhesse, para
estabelecer a organização mundial política que, na era atómica, era a única
alternativa da humanidade para o final suicídio em massa. (Toynbee,
Arnold, 1968: 163).
Vejamos, no século XIX, o declínio da China ditou o fim de uma era de liderança que
terá durado 90% da existência do mundo moderno (García, 2020: 30). Seguindo a
lógica natural do próprio tianxia, o domínio chinês foi substituído primeiro, pela
1
Composto pelos mares do Japão, da China Oriental e do Sul da China. O acesso a esses mares permitia
(e permite) à China ligar-se ao Pacífico e às vias de comunicação com o Índico (Sempa, 2019).
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expansão colonial europeia, e posteriormente, pela ascensão dos Estados Unidos da
América. até quem considere que a liderança de Washington é uma interpretação
americana do sistema originado na China por respeitar a sua base: todas as terras
debaixo do Céu; uma escolha pública que represente os desejos da Humanidade; e
um sistema político universal (Sempa, 2017). O que é certo é que é cada vez mais
evidente que tanto académicos chineses como a própria classe política daquele país
têm procurado reafirmar a posição da RPC como não apenas um líder mundial, mas
também um que se responsabilize pela estabilidade do mundo. O presidente Xi Jinping
tem manifestado esse compromisso ao nível do discurso político e da acção: Os Jogos
Olímpicos de Inverno de 2022 realizados em Pequim foram um momento de afirmação
de poder de Xi (Buckley, 2022), ao mesmo tempo que cimentam a postura da China
em liderar o processo de globalização (Xi, 2017: 18) e em criar uma Comunidade com
Futuro Compartilhado para a Humanidade.2 Trata-se, pois, de um desafio para o
Ocidente numa era que tenderá ao equilíbrio, se as Grandes Potências em competição,
optarem pela via da cooperação para resolver os seus atritos.
Para K. Holsti (1995), as políticas externas dos Estados o definidas em função de
objectivos, mas também visões ou ideias que orientam e legitimam o
comportamento (acções e decisões) dos Estados. Um objectivo que pudesse parecer
para um Estado uma aspiração a longo prazo, para outro, em determinado momento,
podia ser considerado central para a sua sobrevivência. Para isso têm contribuído,
claramente, as teorias.
As Teorias das Relações Internacionais e as suas imagens do mundo têm evoluído ao
longo do tempo, e mostrado uma certa vocação para a acção prática. Em relação à
China, não tem sido muito diferente do resto do mundo. Nesse sentido, Arenal (2013)
afirma que as interpretações que aparecem nos escritos de Mêncio e Confúcio na China
Antiga são uma evidente expressão de que as Teorias das Relações Internacionais
encontraram a sua expressão num âmbito cultural distinto do Ocidente.
As Teorias das Relações Internacionais chinesas, em construção, apoiam-se
claramente em conceitos da cultura clássica que sirvam como instrumento para a
interpretação do cenário internacional.
Neste estudo, vamos definir o conceito de tianxia e explicar, à luz da teoria de autores
como Tingyang Zhao, entre outros, e através de vários exemplos históricos concretos,
como o modelo ideal foi seguido por várias dinastias. Visando compreender as acções
e decisões da actual liderança chinesa, vamos desenvolver a ideia de
internacionalização do tianxia, relacionando ao mesmo tempo, pensamento
confucionista e decisão política. O potencial de liderança mundial da China será
analisado à luz das críticas e limitações encontradas à aplicação do conceito na política
chinesa.
1. O tianxia: “debaixo do Céu” chinês
Uma das características identificáveis do regime totalitário vigente na China é a sua
essência colectivista e/ou unitária. Desde a fundação do Partido Comunista Chinês
2
Introduzido na Constituição da RPC em 2018 tem em vista criar uma comunidade de Estados que
cooperem entre si de modo a alcançar benefício mútuo (Mardell, 2017).
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(PCC) em 1921 e especialmente a partir da fundação da RPC (1949), tem sido feito
um esforço por parte da liderança comunista de criar um forte sentido coletivo.
Aquando do acto fundador do regime, Mao Zedong propôs a mobilização das massas
para concretizar a revolução.
Ao longo dos últimos setenta anos de história, diversos exemplos desse espírito podem
ser facilmente identificados: a movimentação social em defesa da Coreia do Norte
durante o conflito de 1950-1953 (Brown, 2012), o Grande Salto em Frente (1958-
1962) e a tentativa desastrosa de impulsionar a produção industrial chinesa
3
ou a
própria teoria das Três Representações de Jiang Zemin. Em traços gerais, este tipo de
iniciativas que servem para congregar a população em prol de uma iniciativa ou
projecto são um dos pergaminhos do PCC. Esta centralidade é um dos elementos
cruciais para justificar a posição do partido actualmente. No entanto, deve ser
esclarecido que a existência de um Estado central como aquele que hoje existe não é
uma novidade na história chinesa.
1.1. A dinastia Zhou e a ideia de um Estado central
A dinastia Zhou (século XI a.C.-256 a.C.) contribuiu de forma decisiva para o
estabelecimento de uma ideia de Estado central assente num poder de atração
centrífugo que ainda hoje perdura, servindo como justificação para o facto de o actual
Estado não ser meramente o produto de uma corrente ideológica Ocidental do século
XIX adaptada às preferências chinesas.
O Estado de Zhou chegou ao poder em circunstâncias especiais. Não sendo aquele
com o maior exército ou com mais recursos, este Estado teve de procurar outras vias
para ganhar, exercer e manter o poder. Através de uma estratégia que passava pelo
estabelecimento de relações de cooperação, os restantes Estados do mundo
sinocêntrico foram atraídos para dentro de um sistema que promovia a
interdependência. Este tianxia, ou “todos debaixo do Céu”, pode ser visto como uma
clara tentativa de organizar o mundo dentro de uma esfera de valores ou práticas que
promoviam aquilo que hoje poderia ser chamado de benefício mútuo.
A localização estratégica do Estado de Zhou na região das planícies centrais da China
facilitou a ascensão do reino à posição de der do mundo sinocêntrico. Para além de
ser um importante centro de comunicações, Zhao (2019) destaca três elementos que
caracterizavam este Estado:
Em primeiro lugar, a escrita utilizada era inteligível para os distintos povos que
habitavam naquelas planícies. Esta forma de expressão não tinha uma equivalente
oral fixa, ou seja, cada povo tinha a sua própria pronúncia dos caracteres chineses
permitindo e ou facilitando a sua expansão (Zhao, 2019: 29-31):
Owing to their ability to exist and be understood independently from
pronunciation as an ideographic writing, Chinese characters can be
naturally shared far and wide, thus becoming the common script for many
ethnic groups; and the spiritual world in Chinese writing also becomes a
common spiritual world for all. (Zhao, 2019: 30).
3 Dikötter (2010: 333) aponta que terão morrido cerca de 45 milhões de pessoas naquele período.
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Em segundo lugar, o próprio tianxia encontrava-se aberto a qualquer um. Por outras
palavras, este sistema era inclusivo dado que era o “reflexo do Céu”. Se pensarmos
no Céu como um espaço partilhado por todos, o tianxia será representado de forma
similar. Essa compatibilidade permite a que outros Estados possam integrar o sistema,
sem que isso perturbe o seu funcionamento ou exclua grupos étnicos diferentes (Zhao,
2019: 31). O modo como o tianxia conseguia abraçar diferentes culturas sem as
eliminar fez com que fosse o modelo ideal a seguir por dinastias posteriores. Por
exemplo, a dinastia Han (202 a.C.-220 d.C.) ao expandir-se para as regiões ocidentais,
não procurou alterar os costumes destas pois os seus líderes compreenderam que era
mais fácil manter a unidade do território sem apagar as características únicas dos
povos abrangidos pelo seu governo (Zhao, 2019: 37). O fundador da dinastia Yuan4,
o mongol Khublai Khan, foi considerado pelos pensadores confucionistas da época
como um defensor dos ideais de Confúcio e como um dos “seus” (Clements, 2010:
221). A própria dinastia Qing (1636-1911) - hoje conhecida como a responsável pelo
declínio da China Imperial no século XIX - foi capaz de criar um período de paz e
harmonia internas entre a maioria Han e as diferentes minorias étnicas num ambiente
verdadeiramente cosmopolita (Hang, 2016: 11).
Em terceiro e último lugar, mas não menos importante, Zhao destaca a existência de
uma certa teologia política patente na perpetuação do mito da sucessão do tianxia.
Trata-se, essencialmente, de um processo de adaptação a um sistema pré-existente,
dado que os custos de criar algo que o substitua são demasiado elevados e não
obteriam suficiente apoio para que alcançasse os seus objetivos (Zhao, 2019: 31).
1.2. O tianxia e a República
Sun Yat-sen, pai do republicanismo chinês compreendeu a dificuldade de suceder a
um regime que se apresentava como abarcador de diversos grupos étnicos e
realidades. Ao implementar a República em 1912, o nacionalismo chinês estava
impregnado por posições anti-manchu que haviam sido essenciais na queda da
dinastia Qing. A nova liderança chinesa, temendo o desmoronar da união territorial,
declarou-se como sendo a República das Cinco Raças ou Nacionalidades (Duara, 1997:
1041). na etapa comunista da história chinesa, em 1999, o livro branco National
Minorities Policy and Its Practice in China procurou assegurar que o país é multi-étnico
desde os tempos da dinastia Qin (221 a.C.-206 a.C.) e que a unidade tem sido a norma
da realidade chinesa (China-ONU, 1999).
As sucessivas dinastias, assim como, os diferentes governos na era republicana da
China procuraram manter os pergaminhos deste conceito, alargando-o, inclusive, para
fora, isto é, estendendo o sistema para uma perspectiva internacional e o
necessariamente chinesa. Nesse sentido, Sun Yat-sen fala-nos do tianxia weigong” (
天下为公)5, ou seja, que o tianxia pertence a todos (Por, 2020). Para que
4 Yuan () significa “primeiro” ou “original”. A sugestão do nome foi feita pelo conselheiro Liu Bingzhong
para assinalar uma nova era (Clements, 2010: 101).
5 Apenas os mais habilitados devem governar e o trono não é monopolizável, tal como se encontra descrito
no Livro dos Ritos (Kallio, 2016: 6).
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compreendamos a importância desta afirmação é necessário olhar novamente para as
origens do conceito: quem detinha o poder (Filho do Céu) tinha o Mandato do Céu e
tinha de governar com base em normas morais. Essas normas deveriam assegurar o
bem-estar da população em prol da construção de uma ordem moral civilizacional
(Liang, 2018), ou seja, o líder teria de governar com virtude. Um líder incapaz de
governar de forma moral corria o risco de perder o seu estatuto (Zhao, 2019: 15).
2. Sobre a internacionalização do tianxia
Encontramo-nos num ponto que muitos consideram ser de viragem. É velha a ideia de
que o Ocidente encontra-se em decadência: a queda dos ideais ocidentais não advém
apenas de forças externas ou civilizações que ameaçam o seu domínio (Huntington,
1993: 3) , mas também das próprias experiências no seio dos seus sistemas políticos
que acabaram por ser debilitantes para as estruturas que sustentam as suas
sociedades (Mahbubani, 1993: 41).
Perante o “declínio ocidental”, surge a resposta chinesa, vista muitas vezes como
sendo totalitária. No 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping,
através do voto do Comité Central, eliminou o limite de mandatos da presidência e
não nomeou um sucessor para o Comité Central do Politburo. O peso destas medidas
tornou-se ainda mais relevante pelo facto de Xi se ter tornado no líder supremo da
RPC ao deter três cargos fundamentais: secretário-geral do PCC, presidente da China
e presidente da Comissão Militar Central da RPC (Stoffey, 2021). Este comportamento
do governo chinês foi interpretado pelos meios de comunicação internacionais como
sendo uma quebra do antecedente proposto por Deng Xiaoping de limitar a presidência
a apenas dois mandatos de cinco anos (Huang, 2018; The Economist, 2018; Marschik,
2018).
Outra perspectiva para compreender ditas acções, segundo Stoffey (2021), é que se
trata de apenas de uma extensão daquilo que tem sido a política chinesa até hoje: dos
seis líderes da RPC, apenas dois prepararam a sua sucessão (Jiang Zemin e Hu Jintao)
e acabaram por respeitar o limite de mandatos.
No nosso entender, a decisão por parte do presidente Xi em estender a sua governação
para além de 2022 não nasce da influência e posição de poder do PCC, mas sim tem
origem no pensamento confucionista. Historicamente, a China atravessou largos
períodos de instabilidade que incluíram guerras, fomes e rebeliões constantes
6
, que
alimentaram a necessidade de ter lideranças fortes:
La imagen del no orden, el caos animal, la injusticia humana, tiene como
respuesta la creación de un Estado poderoso, unipersonal, capacitado, al
cual se le enviste de un poder absoluto, a cambio de su compromiso con la
sociedad. El poder central y absoluto se fundamenta en China desde su
época de las 100 escuelas
7
y pervive, bajo diversas facetas hasta la
presente fecha (García, 2019: 40).
6 A revolta Taiping (1850-1864) terá resultado na morte de cerca de 20 milhões de pessoas (Brittanica,
2021). Mais recentemente, a grande fome de Henan de 1942 terá conduzido à morte por volta de 3
milhões de pessoas (Ho, 2013).
7 As Cem Escolas de Pensamento surgiram no Período da Primavera e Outono (770-476 a.C.) e no Período
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2.1. Pensamento Confucionista e Decisão Política
Na China, a legitimidade de um governante ou, em termos práticos, de uma dinastia
esteve sempre intrinsecamente ligado ao Mandato do Céu. Através desta criação, a
dinastia Zhou procurou justificar a sua tomada de poder face à dinastia Shang.
Segundo a lógica deste conceito, o Filho do Céu é o seu representante máximo,
recebendo legitimidade divina para governar. Contudo, o Filho do Céu não possui
qualquer forma de propriedade sobre os bens e terras do mundo, mas sim apenas
funciona como um administrador daquelas que são as posses do Céu. De acordo com
Zhao (2019), o governo do filho do Céu deve ser justo, por outras palavras, deveria
garantir a felicidade e o bem-estar daqueles que governa (Zhao, 2019: 7). Existe uma
certa similitude com o direito divino que na Europa legitimava o poder dos reis. No
entanto, há uma diferença fundamental: um imperador na China antiga alcançava essa
posição de liderança através da sua virtude e em detrimento dos governantes
anteriores incapazes de providenciar boa qualidade de vida aos seus bditos (Zhao,
2019: 7). No fundo, a ideia de que uma dinastia pode perdurar no tempo é
completamente dependente do mérito dos seus governantes, existindo sempre a
possibilidade de perda de legitimidade e de uma dinastia ser sucedida por uma nova.
O mesmo se aplica a todo o sistema chinês de vassalagem. O Estado suserano, através
de uma governação virtuosa, gere as relações que mantém com os seus vassalos.
Estes últimos, por seu turno, ofereciam diferentes tributos ao Filho do Céu sem que
isso significasse que não poderiam tomar o poder no futuro. Perante a perda de
legitimidade, uma aliança de Estados vassalos tinha o direito de se rebelar contra o
suserano (Zhao, 2019: 15). Mas, de que forma tais conceitos ainda se encontram
presentes na actual liderança chinesa?
No que diz respeito à presidência de Xi Jinping, a legitimidade da sua governação
advém, em primeira instância da centralização de poder na sua figura. Em 2018,
aquando do 19º Congresso do Partido Comunista Chinês, a centralização do poder em
Xi ficou completa do ponto de vista formal. Para além da designação de lingxiu 领袖
(líder), o pensamento de Xi também foi incluído na constituição e espera-se que
permaneça no poder para de 2022 (Jash, 2018: 1 e 2). Este desfecho foi possível
devido, em grande medida, à grande campanha de combate à corrupção que eliminou
diversos dos opositores políticos de Xi e ao centralizar o controlo sobre as Forças
Armadas na figura do presidente (Jash, 2018: 3). Desta forma, o presidente Xi
consolida a sua posição de líder supremo, abrindo a possibilidade para desenvolver
projectos que alarguem o poder chinês no exterior, nomeadamente, a Iniciativa Faixa
e Rota e o Banco Asiático de Investimento em Infra-estrutura.
Para a China e em particular para Xi Jinping, trata-se de uma forma de oferecer uma
alternativa ao mundo e de alcançar um patamar mais elevado de desenvolvimento
através de mecanismos de cooperação. Observamos, no entanto, que as ideias do
reino de Zhou e do confucionismo estão presentes na retórica e nas acções políticas
da RPC. Tal afirmação encontra fundamento nos conceitos de justiça e de virtude. Este
último é de especial destaque. Para Confúcio, trata-se de um dom que o Homem
dos Estados Combatentes (475-221 a.C.) (China Culture, 2021).
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recebe do Céu e apenas um governo virtuoso pode garantir que os cidadãos se
consigam melhorar a si mesmos:
Guide them (the common people) by virtue, keep them in line with the
rites, and they will, besides having sense of shame, reform themselves.
(Confucius, II. 3: 63).
Governar com virtude vai derivar do mesmo sistema governativo da Dinastia Zhou.
Em traços gerais, os benefícios devem ser universais, ou seja, deve haver uma
repartição justa e equitativa dos ganhos obtidos. Para Zhao (2019), trata-se de
maximizar os ganhos para todos e o apenas para um grupo restrito de pessoas.
Dadas as limitações militares dos governantes Zhou, o investimento numa liderança
virtuosa demonstrou ser a melhor opção facto comprovado pela longevidade desta
dinastia:
The Duke of Zhou’s political consciousness discovered a true political
concept: rule by force is not politics, but just a way of ruling; true politics
is an art that creates universal cooperation and coexistence. In that sense,
Zhou’s Tianxia system is not merely a political experiment, but also an
ideal political concept (Zhao 2019: 9).
O mesmo conceito aparenta estar a ser promovido pelo actual governo chinês. No
comunicado do 4º Plenário do 18º Comité Central do Partido Comunista Chinês vem a
expressão “combine the rule of law with the rule of virtue” (China, 2014), numa alusão
ao conceito confucionista. A justiça ou as acções justas acabam por derivar do conceito
de virtude. Por este prisma, apesar da importância dos interesses nacionais para a
China, este não devem ser alcançados através de meios injustos. Contudo, esses
mesmos objectivos, alerta Kallio (2016), não devem ser negligenciados. O autor cita
Ye Zicheng da Universidade de Pequim que destaca a importância do equilíbrio entre
justiça e interesses. Em suma, as acções do país devem ser sempre de acordo com as
possibilidades do mesmo, ainda que seja desejável apoiar os mais fracos (Kallio 2016:
5).
Acima de tudo, a China de hoje procura trilhar um caminho em que se apresenta ao
mundo como o país mais virtuoso, ao lado dos menos desenvolvidos, em contraponto
com os EUA. A forma activa como a RPC se aproxima de diversos Estados africanos,
asiáticos e latino-americanos, prometendo benefícios mútuos, acaba por reforçar a
ideia de que a sua liderança é virtuosa e capaz de criar as condições para, nas palavras
de Xi Jinping, “criar uma comunidade de futuro partilhado para a Humanidade”
(Xinhuanet, 2020).
2.2. O tianxia e a Política Externa da China
A política externa da China tem sofrido várias adaptações ao longo dos anos. Em 1990
- 1991, Deng Xiaoping assumiu a necessidade de keeping a low profile
8
(KLP) dada a
8 “Não dar nas vistas ou “ter uma posição discreta” (trad. dos autores).
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relativa debilidade da China na época, não querendo por isso levantar suspeitas quanto
às reais intenções do Estado chinês. Igualmente, a RPC reconhecia o estatuto de
superpotência dos EUA ademais de determinar que não se encontrava em posição de
competir com os norte-americanos (Yan, 2014: 155-156). Aquilo que o século XXI
trouxe, no entanto, foi uma mudança clara desse pressuposto. Isto leva-nos a pensar
se estaremos a assistir à definição de uma estratégia de internacionalização do tianxia.
Entre as razões que podem estar na base desta estratégia de internacionalização,
podemos destacar, o agravamento da desconfiança face às reais intenções da China
no contexto da pandemia da Covid-19, e ainda o aumento da tensão no quadro das
disputas territoriais do mar do Sul da China, a partir de 2009 e 2010 (Yan, 2014: 155-
156)
9
. No quadro das políticas que estão na base da mesma estratégia, destacamos
ainda a chegada do presidente Xi ao poder, adoptando uma política externa assente
em striving for achievements
10
(SFA) em que a China procura influenciar outros
Estados (poder) através de ferramentas para aumentar essa influência (força). Em
suma, trata-se de Pequim assumir a responsabilidade de intervir nas questões mais
importantes da Humanidade ao mesmo tempo que se comporta com moralidade para
atrair mais aliados (Yan, 2014: 163-170).
Para que esta postura tenha êxito, a política externa chinesa tem vindo a criar e
desenvolver diversos mecanismos políticos que, apesar de conterem também uma
componente económica, servem para reforçar a posição chinesa a nível mundial: em
2013, o presidente Xi apresentou a Faixa Económica da Rota da Seda no Cazaquistão
e, posteriormente, a Rota da Seda Marítima do Século XXI na Indonésia (Chatzky &
MacBride, 2015). Durante os primeiros seis anos do projecto, cerca de $575 milhões
de dólares terão sido investidos, valores que poderão chegar a mais de $8 biliões
(Hillman, 2018). Até Janeiro de 2021, 140 países assinaram memorandos de
entendimento tendo em vista participar na Iniciativa Faixa e Rota (Nedopil, 2021). A
Parceria Regional Económica Abrangente (sigla inglesa, RCEP) deu origem à maior
zona de comércio livre do mundo, mesmo com a ausência da Índia (Shotaro, 2020).
A crescente influência da China no seio da Organização Mundial de Saúde (OMS) após
a saída dos Estados Unidos
11
também deve ser destacada como um sinal de como a
China procura através das normas internacionais exercer o seu peso.
Todas estas iniciativas podem ser resumidas naquilo que Zhao (2018: 13) chama de
relational rationality, ou seja, que a coexistência precede a existência. Ao defender
uma forma de universalismo baseado nas relações entre Estados que proteja os
interesses não da China como também da Humanidade, Pequim recentra-se no
conceito zhongyong (中庸) do confucionismo: sendo impossível eliminar tensão e
potenciais conflitos, o fundamental deste conceito é que as duas metades (yin-yang,
阴阳) não se eliminem mutuamente e contribuam para que as relações entre os Estados
sejam o principal factor a afectar o ambiente internacional (Qin, 2016: 40 e 44).
A internacionalização do tianxia está reflectida, pois, num centro de poder que procura
administrar os assuntos debaixo do Céu, manter as características de cada Estado que
9 A resposta da administração Obama em seguir uma política mais participativa na Ásia-Pacífico é indicada
como um exemplo do fracasso da KLP (Yan, 2014: 156).
10 “Aspirar a resultados” (trad. dos autores).
11 Decisão entretanto revertida pela administração Biden (Morales, 2021).
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esteja abrangido por este e promover a interdependência e cooperação entre todos.
No entanto, esta visão não está isenta de críticas:
Em primeiro lugar, a concentração de poder na figura de Xi Jinping é um claro
distanciamento do caminho traçado por Deng Xiaoping. Temendo a possibilidade de
surgir um novo líder que centralizasse o poder no seu cargo e criasse um culto de
personalidade (como sucedeu com Mao Zedong), Deng propôs uma liderança colectiva
baseada em consensos, na partilha de poder e num esquema de sucessão ordeiro.
Aquilo que o presidente Xi alcançou com as suas reformas constitucionais foi um
retrocesso até aos tempos de governação assente numa figura incontestável o que
limita quaisquer possibilidades de reformas democráticas.
Em segundo lugar, e igualmente relevante, as acções do Exército de Libertação Popular
encontram-se condicionadas pela liderança de Xi. Mesmo em questões que se referem
ao futuro das forças armadas chinesas, a última palavra será sempre do presidente da
RPC (Jash, 2018).
Outra questão fundamental que os críticos colocam é se a China actual é uma
representação fiel do tianxia. Em parágrafos anteriores, argumentou-se que o regime
comunista actual não é mais do que uma continuação natural daquilo que havia sido
estabelecido pelo reino de Zhou 3000 anos, inclusivamente que o próprio tianxia é
ocasionalmente usado para justificar as ações governamentais.
Com efeito, a dinastia Qing foi capaz de administrar um vasto território multi-étnico.
O seu êxito deveu-se à forma como seguiu o tianxia e os seus três círculos
concêntricos: o círculo central era governado directamente pelo imperador através do
sistema burocrático; o círculo intermédio incluía as regiões fronteiriças do império
regidas em nome do imperador por vassalos, deres tribais e outros títulos
hereditários; e o círculo exterior era composto pelo sistema tributário em que outras
nações prestavam vassalagem ao imperador (Xu, 2015). Mas, este sistema hierárquico
não é replicável actualmente e é desejável que a nova forma de tianxia esteja assente
em valores universais, não sendo suficiente que a RPC transite para um regime
democrático:
Given China’s power, size, and population, once it rises it will be a great
power with the capacity to dominate. Even if it becomes an “empire of
freedom,” it will make neighboring countries fearful, particularly small
ones. (Xu, 2015).
Aquilo que parece faltar à RPC, pois, é um certo universalismo capaz de criar harmonia
entre diferentes grupos étnicos e regiões sem criar tensão. Para Xu (2015), o
nacionalismo exacerbado hoje presente na China coloca em causa a formação do
mesmo tianxia. Um aspecto fundamental que exemplifica esse problema é que o
Estado-nação faz com que a identidade das diversas minorias se dilua em prol da
formação de uma cidadania chinesa baseada na maioria Han. A “unidade na
diversidade” de Fei Xiaotong exemplificada na administração Qing foi substituída por
políticas que colocam em causa a integridade territorial da China, especialmente,
devido ao separatismo de Xinjiang e do Tibete (Xu, 2015).
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3. O tianxia e o Nacionalismo chinês
Cabestan (2005) aponta diversas formas de nacionalismo que despontaram na China
no último século e meio. As primeiras manifestações nacionalistas terão surgido no
seguimento da Primeira Guerra do Ópio, em 1840. O autor destaca que o PPC,
entretanto procurou implementar a sua própria retórica nacionalista com base no êxito
da revolução e triunfo desta ideologia em 1949. Zheng (2019) alarga esta questão ao
considerar que o movimento de 4 de maio foi, na verdade, o momento unificador da
nação chinesa, tratando-se não de uma rejeição do domínio colonial imposto ao
território chinês, como da própria dinastia Qing. A este nacionalismo centrado no
Estado, prossegue Cabestan, junta-se um de cariz mais revanchista e xenófobo que
teve algumas das suas expressões mais blicas em 2005 e 2012, por exemplo,
aquando dos protestos em massa contra o Japão. A estes junta-se o nacionalismo
pragmático, derivado do sucesso económico chinês das últimas décadas.
No entanto, aquilo a que hoje se assiste é a uma mensagem nacionalista voltada para
o consumo interno. Wong (2020) afirma que o começo da pandemia da Covid-19 foi o
catalisador de muitas das críticas ocidentais dirigidas ao PCC e à falta de transparência
em torno da crise pandémica. A resposta do governo chinês tem sido a de considerar
essas críticas como uma forma de interferência nos assuntos internos da China, o que
alimenta a própria retórica do governo. A tal questão agrega-se uma reacção em
muitos casos xenófoba dirigida ao próprio povo chinês12, tendo sido acusado de ser
responsável pela propagação da doença. Os jovens que hoje compõem o corpo
diplomático chinês são justamente, segundo Wong (2020) aquilo que a RPC necessita
para alimentar este pensamento ao defenderem a posição do seu país em detrimento
da melhoria das relações da China com os seus vizinhos. O blico-alvo são os
"consumidores chineses”:
Chinese nationalism is what is sold here, and the new consumers are
China’s COVID-battered population. (Wong, 2020).
Para o autor (Wong, 2020), existem cinco motivos principais para esta alteração na
abordagem da diplomacia chinesa:
1) A adopção de uma forma mais beligerante de fazer diplomacia é vista como a mais
adequada para a presente situação, sendo que uma atitude mais cooperante,
sobejamente conhecida no passado, passou a ser vista como uma fraqueza;
2) A recusa determinada de qualquer envolvimento da RPC na origem da Covid-19
como resposta aos pedidos ocidentais de maior transparência. No começo, esta
reacção aliou-se ao envio de ajuda médica a diferentes partes do mundo. Contudo,
os seus efeitos não parecem ter sido suficientes, dado que rios Estados não
mostraram, de acordo com a opinião blica chinesa, gratidão suficiente pela ajuda
de Pequim.
3) O nacionalismo é também usado como forma de desviar as atenções de problemas
12 Quatro jovens foram condenados em França por insultos de carácter racista e incitamento ao crime no
auge da pandemia na China (Poupon & Wojazer, 2021).
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mais sérios que afectam a China, por exemplo, o possível colapso demográfico que
o país poderá sofrer caso não reverta a trajectória negativa de crescimento dos
últimos anos13.
4) Demonstrações públicas das autoridades chinesas de preocupação pelo bem-estar
da população também servem para alimentar essa resposta nacionalista da parte
do povo chinês. Um dos casos mais sintomáticos diz respeito à liderança do próprio
primeiro-ministro Li Keqiang da Crisis Response Team criada no âmbito da
pandemia.
5) Finalmente, Wong (2020) destaca o surgimento de ataques xenófobos contra
cidadãos chineses no exterior14, dando não razões para que exista uma ligação
forte com aqueles que residem fora do país, mas também para que os cidadãos se
preocupem com a situação da diáspora.
Por outro lado, a chegada ao poder de Xi Jinping também deu lugar a um crescente
reforço da retórica ideológica coligada com nacionalismo. Durante as eras de Jiang
Zemin e Hu Jintao, a RPC apresentou sinais de maior abertura política e menor rigidez
ideológica, como adianta Sahoo (2021). Com a presidência de Xi, o país tem
regressado à sua base ideológica desta feita centrada na figura do próprio presidente
enquanto líder providencial perante aquilo que são ameaças externas à ascensão da
China. O Documento 9, que veio a público em 2013, expõe como Xi percepciona
aqueles que são os perigos para o Império do Meio e para o comunismo,
nomeadamente, a democracia liberal, a defesa dos direitos humanos e valores
universais ou a própria interpretação de eventos históricos, como o massacre da Praça
de Tiananmen (China File ed., 2013)15. As críticas vindas do exterior em torno de
Xinjiang, Hong Kong e da pandemia da Covid-19 são vistas, em traços gerais, como
agressões externas que procuram manchar a imagem chinesa internacionalmente. Na
celebração dos 100 anos do Partido Comunista Chinês, o presidente Xi enalteceu o
esforço do povo chinês na construção da RPC, assim como os esforços para concretizar
a completa unificação da China com Taiwan. No entanto, o grande destaque do
discurso foram as palavras referentes às ameaças externas:
We Chinese are a people who uphold justice and are not intimidated by
threats of force. As a nation, we have a strong sense of pride and
confidence. We have never bullied, oppressed, or subjugated the people of
any other country, and we never will. By the same token, we will never
allow any foreign force to bully, oppress, or subjugate us. Anyone who
would attempt to do so will find themselves on a collision course with a
13 A recente Política de Três Filhos visa reverter essa tendência. O governo receia que as populações activa
e a idosa (EAF, 2021) alcancem níveis que comprometam a possibilidade de o país alcançar as suas
metas até 2049, as chamadas Global China Initiative 2049 (ODI, 2021).
14 O “vírus chinês”, como designou o então presidente Donald Trump, foi um dos factores determinantes
para o aumento dos crimes de ódio racial contra a comunidade chinesa nos EUA (Tavernise & Oppel Jr.,
2021).
15 Para controlar a influência externa, o governo proibiu o ensino à distância de língua inglesa com
professores no estrangeiro a menores de 15 anos (Luo, 2021a). A esta medida juntam-se medidas de
diferentes governos provinciais que visam a acabar com o uso de manuais estrangeiros nas escolas.
Estas medidas afectam, no caso de Pequim, alunos do ao anos de escolaridade (Luo, 2021b).
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great wall of steel forged by over 1.4 billion Chinese people. (Xi, 2021).
Trata-se de um momento em que Xi, através de um ataque ao posicionamento político
de vários Estados ocidentais em relação à China, fala para os seus apoiantes no país.
Em suma, ao adoptar uma postura de defesa aberta dos interesses da China usando
uma retórica agressiva e de confronto, acaba por apaziguar as vozes internas que
clamam por maior assertividade da parte da RPC.
Contudo, quem acredite que este nacionalismo exacerbado tem mais consequências
negativas do que positivas para a política externa chinesa. Recentemente, tem havido
uma tentativa de atenuar alguma retórica dados os receios de conduzir a um
isolamento da China no panorama internacional. A wolf-warrior diplomacy, crucial no
confronto com a administração Trump, é hoje considerada por alguns sectores da
política chinesa como prejudicial para a imagem chinesa. Zhang (2021) afirma que é
aconselhável para o país que a sua liderança adopte uma linguagem menos agressiva
no panorama internacional:
China would be unwise to surrender to such temptations, however. Now is
not the time to get more forceful in the South China Sea, demand
concessions from major trading partners, aggressively reinvigorate the Belt
and Road project or engage in a nationalist diplomatic offensive against
Western critics. Quite the opposite: China should be pivoting to a quieter,
softer foreign policy. (Zhang, 2021)
É uma questão de grande relevância, uma vez que no seio dos países desenvolvidos a
postura de Pequim face às críticas dirigidas a si tem apenas contribuído para a
deterioração das relações sino-ocidentais. Por exemplo, o acordo de investimento
China-UE encontra-se sem efeito e a Nova Zelândia encetou algumas críticas face ao
ocorrido em Xinjiang e Hong Kong (Meyers & Bradsher, 2021)16. Em certo sentido,
existe o entendimento claro que seguir uma retórica agressiva com laivos nacionalistas
poderá ser contraproducente numa altura em que a China procura atingir um estatuto
que lhe permita confrontar os americanos.
Considerações finais
Tal como foi aqui definido, o tianxia não é sinocêntrico e pode ser replicado por
qualquer centro de poder capaz de liderar as terras debaixo do Céu. Trata-se de um
argumento válido, dado que não se sabe ao certo se a RPC está ou não a respeitar os
pressupostos básicos desse conceito milenar. Se é verdade que procura lidar com os
seus parceiros de forma igualitária e sem ostracizar os que seguem regimes políticos
diferentes do seu, a presente forma do tianxia seguido por Pequim parece mais assente
no nacionalismo do que em ideais universais que possam ser seguidos pela
Humanidade. A preocupação chinesa em defender a sua integridade territorial sem
16 A mudança de discurso do governo de Jacinda Ardern é de particular destaque, dado que o seu país tem
sido várias vezes elogiado pelas autoridades chinesas pelas suas políticas responsáveis (Meyers &
Bradsher, 2021).
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aceitar qualquer tipo de crítica externa revela que diferenças ideológicas que estão
em confronto.
Seja qual for o cenário internacional que se configure, o estudo do tianxia ajuda-nos
a compreender alguns dos fundamentos históricos daquilo que é a RPC hoje. A
tentativa de organizar o mundo dentro de uma esfera de valores, um sistema inclusivo
que promove o benefício mútuo, foi o modelo ideal a seguir pelas diferentes dinastias.
No que diz respeito à presidência de Xi Jinping, a legitimidade da sua governação
advém, em primeira instância da centralização de poder na sua figura, nada de novo
na política local, assim como não é novidade a presença de um sistema que procura
administrar os Estados que circundam o poder central. As ideias do reino de Zhou e
do confucionismo estão presentes também na retórica e nas acções políticas da RPC.
No entanto, o que hoje temos é uma China que vai para além da sua área natural de
influência, capaz de influenciar outros países a seguir a sua liderança e a promover
iniciativas que favorecem os seus interesses a longo prazo. A sua posição de líder
tornou-se ainda mais evidente durante esta pandemia quando nos deparamos,
inicialmente, pelas falhas nas repostas americana e europeia. O que esta crise nos
mostra é que a China está numa posição de potencialmente assumir o comando
mundial, cabendo ao Ocidente a responsabilidade de zelar pelos seus interesses ao
mesmo tempo que coopera e demonstra que continua a ser um sistema de valores
universais com potencial e capacidade suficiente de atracção.
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