OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
Dossiê temático: 200 anos depois da Revolução (1820-2020), Dezembro 2021
DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121
Editorial Jose Subtil, Cláudia Atallah, Sarita Mota, Rodrigo Dominguez pp 1-6
ARTIGOS
O crime de lesa-majestade de primeira cabeça na Conjuração Baiana de 1798: permanências na modernidade
jurídica Patrícia Valim pp 7-27
Às vésperas do Liberalismo, Boa Razão e prova do direito comum na América portuguesa (1769-1808) Cláudia
Atallah pp 28-41
Os “Contos Loucos” e as “Fantásticas Carrancas”: O Vintismo visto de Pernambuco Maria do Socorro Ferraz
pp 42-56
O Subsídio Literário. Continuidade ou rutura? Telma Ruas pp 57-80
Sociabilidade patriótica e defesa da causa constitucional Ana Cristina Araújo pp 81-91
Construção e Desconstrução da Ordem Internacional Liberal Luís Tomé pp 92-124
A Carta Constitucional de 1826 e a dissolução da Câmara dos Deputados. Normas legais, práticas políticas e
funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865) António Pedro Manique pp 125-145
Juízes populares e juízes letrados no liberalismo. Portugal (1820-1841) José Subtil pp 146-165
A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança Luís Valença Pinto pp 166-176
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Dezembro 2021
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EDITORIAL
200 ANOS DEPOIS DA REVOLUÇÃO (1820-2020)
JOSÉ SUBTIL
jsubtil@autonoma.pt
Licenciado em História pela FL da UL, Mestre em História dos séculos XIX e XX pela FCSH da
UNL, Doutor em História Política e Institucional Moderna e Agregado no Grupo de História, pela
mesma Faculdade. Foi Professor Coordenador com Agregação do IPVC. É, actualmente, Professor
Catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) onde é Presidente eleito do Conselho
Científico. Exerceu vários cargos públicos, Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Finanças
(1997-2000), vogal da Comissão de Reforma e Reinstalação do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo e Director de Serviços do Instituto Português de Arquivos (1990-1992). Foi Coordenador
Nacional da Comissão de Acreditação e vogal da Direcção do Instituto Nacional de Acreditação da
Formação de Professores. Tem dezenas de publicações individuais e coletivas, livros, capítulos de
livros e artigos. Recebeu o Prémio de Mérito Académico da Fundação Fernão de Magalhães nos
anos de 1996 e 1997 e quatro louvores públicos.
CLÁUDIA ATALLAH
clauatallah@gmail.com
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF, Brasil) e Professora Permanente do
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Possui graduação em História e Mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). É Doutora em História pela UFF, com a tese “Da justiça em nome d’El Rey:
justiça, ouvidores e inconfidência em Minas Gerais (Sabará, 1720-1777)”, publicada pela EdUERJ
(2016) com financiamento FAPERJ. Publicou as coletâneas Justiças, Governo e Bem Comum na
administração dos Impérios Ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII) com Junia Furtado e
Patrícia Silveira (2016); Estratégias de poder na América portuguesa: dimensões da cultura
política séculos XVII-XIX), com Helidacy Corrêa (2010).
SARITA MOTA
saritamota@gmail.com
Investigadora contratada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do Instituto
Universitário de Lisboa (IUL, Portugal), onde coordena o projeto “Terra, Poder e Territorialidades
na América Portuguesa (séc. XVI-XIX)”, e o Ciclo de Seminários Permanentes “Cidades e
Impérios: dinâmicas locais, fluxos globais”. Doutorou-se em Ciências Sociais na Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com uma tese sobre os institutos jurídicos da posse e
da propriedade da terra no Brasil (séc. XVI-XIX). Possui graduação em História e Mestrado em
Ciências Sociais, ambos pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autora de
artigos, capítulos de livros e verbetes em obras coletivas, e seu último artigo intitula-se “Entre la
ley y la práctica: antíguos y nuevos usos del Registro Parroquial em Brasil”, HAAL, 2(02), 103-
128, 2021.
RODRIGO DA COSTA DOMINGUEZ
rcdominguez@ics.uminho.pt
Rodrigo da Costa Dominguez é Licenciado em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte
Uni-BH (2001). É Mestre em História Medieval e do Renascimento (2006) e Doutor em História
(2013), sendo ambos os graus atribuídos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Atualmente é Investigador Júnior e Coordenador-adjunto do Centro Interdisciplinar de Ciências
Sociais (CICS.NOVA.UMinho, Portugal), na Universidade do Minho. Sua investigação e
publicações incluem a fiscalidade da Coroa portuguesa, o comércio e o transporte marítimo, e as
políticas institucionais fiscais e financeiras de Portugal no longo prazo (séculos XV-XIX). É co-
editor de Portugal in a European Context - Essays on Taxation and Fiscal Policies in Late Medieval
and Early Modern Western Europe, c. 1100-1700 (Palgrave Macmillan, no prelo) e autor de Fiscal
Policy in Early Modern Europe: Portugal in Comparative Context (Routledge, 2019).
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EDITORIAL
200 ANOS DEPOIS DA REVOLUÇÃO (1820-2020)
JOSÉ SUBTIL
CLÁUDIA ATALLAH
SARITA MOTA
RODRIGO DA COSTA DOMINGUEZ
No passado ano de 2020 procuramos destacar os 200 anos da Revolução Liberal, um
dos marcos historiográficos incontornáveis da História de Portugal e do Brasil. Fizemo-lo
através da organização de um webinar interuniversitário que contou com a participação
de investigadores de ambos os lados do Atlântico.
Nas palavras do historiador alemão Sebastian Conrad, os organizadores esforçaram-se
em criar uma abordagem ampla e universal deste evento histórico, contornando as
armadilhas do eurocentrismo e do vício das interpretações enviesadas por uma
perspetiva marcada e atrelada ao desenvolvimento dos «estados-nação» do século XIX.
Neste sentido, tornou-se fundamental a participação de diferentes especialistas nos
vários painéis que permitissem aos participantes e, consequentemente, aos leitores deste
número temático da revista janus.net, uma visão comparada, equilibrada e multilateral,
que abarca não as questões diretamente relacionadas ao contexto português,
imediatamente anterior e posterior à revolução, mas também aos seus desdobramentos
e impactos em diferentes contextos, em diferentes cronologias e em diferentes partes do
Atlântico.
Por outro lado, um viés importante a ser destacado é o complexo processo de mudança
de paradigma político a partir de meados do século XVIII, onde doutrinas, práticas e
simbolismos picos do Antigo Regime Ibérico começaram a tomar rumo em direção a um
Estado Liberal.
O texto de Patrícia Valim (Universidade Federal de Ouro Preto) sobre o crime de lesa-
majestade e sua aplicação na Conjuração Baiana (1798) evidencia o processo de
transformação. A autora joga luz sobre a passagem do pluralismo jurídico para uma
profissionalização do campo jurídico, com ênfase num direito pátrio e na conceção de
retidão legislativa e penal. Concede atenção às interpretações e jurisprudências que
surgiram a partir das discussões em torno do processo de julgamento dos envolvidos na
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Editorial 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
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revolta, dentro de um contexto de racionalização da lógica jurídica e do revisionismo da
ação punitiva do Estado, cada vez menos atrelado à ideia de uma justiça “pessoal” do
monarca e mais próxima de procedimentos claros, detalhados e realizados dentro de
contornos institucionais propriamente delimitados e trâmites jurídicos sob os auspícios
da Boa Razão. Nas palavras da autora, a dessacralização do direito divino hereditário
acaba por gerar uma nova economia política do poder punitivo do rei. De facto, a análise
dos autos da devassa expõe o alcance dos ideais de liberdade e igualdade no final do
Antigo Regime, especialmente as contradições dos magistrados envolvidos em práticas
ilícitas, os meandros da justiça e do poder monárquico bem como os rearranjos políticos
na sociedade soteropolitana. Apesar da negociação entre a coroa e as elites locais para
reprimir a “projetada revolução” e a “República Bahinense”, a pena de suplício recaiu
sobre quatro homens livres, pobres, pardos e ocupantes de postos de baixa patente
militar. Essas figuras justiçadas, os “Entes da Liberdade”, não são tratadas como
“mártires”; ao contrário, o ritual blico do suplício traduz o absolutismo despótico da
época, a submissão dos súditos à sumptuosidade da coroa, o peso das hierarquias sociais
sustentadas pela escravidão, o controlo político e os limites dos ideais republicanos.
No contexto da Lei da Boa Razão (1769), o artigo de Cláudia Atallah (Universidade
Federal Fluminense) descreve este mesmo cenário jurídico em transformação, ao analisar
a aplicabilidade do direito comum após a instituição da referida lei que demarcaria muito
bem o racionalismo político-jurídico almejado pelas reformas de Sebastião José de
Carvalho e Melo. O fortalecimento do Estado deveria passar, obrigatoriamente, pela
especialização do campo jurídico e profissionalismo de seus agentes. Num primeiro
momento, a autora realiza um balanço da historiografia sobre o chamado ministério
pombalino, problematizando as discussões acerca do caráter de rutura (ou não) atribuído
ao período em questão. Na sequência de sua análise, apresenta-nos um estudo de caso
sobre os impactos da referida lei sobre o universo jurídico da América portuguesa,
apresentando um parecer de Dom Rodrigo José de Menezes e Castro, governador da
capitania de Minas Gerais, escrito a Martinho de Melo e Castro, Secretário de Estado da
Marinha e do Ultramar do Reino de Portugal (1783). No documento, Menezes e Castro
relata as dificuldades em se fazer cumprir a lei régia e as peculiaridades de governar os
sertões coloniais. A autora analisa, tambémm, o aumento dos pedidos de prova do direito
comum que chegaram ao Conselho Ultramarino nos trinta anos após a Lei da Boa Razão.
O texto de Maria do Socorro Ferraz (Universidade Federal de Pernambuco) analisa as
contendas político-administrativas de Pernambuco no que diz respeito ao trato da
capitania, considerando suas relações com dois importantes centros de poder, Rio de
Janeiro e Lisboa. Ambas as cidades passavam por momentos de grande tensão política
e social, com a Insurreição Pernambucana de 1817 e a criação do Sinédrio, em Portugal,
em 1818. Descreve ainda o impacto da presença da Corte Portuguesa e das decisões
tomadas sobre as questões políticas e económicas que diziam respeito à Pernambuco,
clarificando as posições entre liberais «monarquistas» e liberais «republicanos». Entre os
fatores que fizeram eclodir a Revolução Pernambucana estava o descontentamento da
classe proprietária com a administração fazendária do governador português Caetano
Pinto de Miranda Montenegro, o excesso de tributação e a transferência da renda colonial.
Também é sintomático a circulação de um novo vocabulário político influenciado pela
literatura americana e francesa liberal: termos como “tirania real”, “manifesta injustiça”,
“opressão”, “nação”, “bravos patriotas”, “direito sociais” e “leis orgânicas”, utilizadas
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Editorial 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
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pelos revolucionários para arregimentar as camadas populares. O movimento foi
responsável pela forte repressão política e por inúmeras prisões de liberais
pernambucanos: os deres foram condenados à pena de morte; outros tiveram como
destino o desterro para a África e o encarceramento em rios presídios do Brasil,
enquanto outras foram enviadas para Lisboa sob acusação de partidários da
independência.
O trabalho de Telma Ruas (Universidade Autónoma de Lisboa) detém-se na análise do
imposto do "subsídio literário", uma taxa criada pelo reformismo pombalino para
sustentar a estratégia de ensino e que prevaleceu depois da revolução liberal, apesar dos
acesos debates para a sua extinção. A defesa do imposto, face às dificuldades das
finanças do Estado, sustentava-se na promoção da instrução primária e fundamentava a
sua pretensão no cumprimento dos deveres fiscais. A subsistência desta fonte tributária
foi determinante para o sistema de ensino e sublinharam a importância financeira da
contribuição que, como diz a autora, “fundamentaram as reivindicações de criação de
escolas de primeiras letras e de cadeiras de ensino secundário apelando ao cumprimento
das normas relativas à contribuição fiscal”, tanto pela via das petições individuais como
coletivas que chegavam às Cortes. O subsídio literário acabou por permitir que os
municípios pudessem aplicar as suas contribuições na instrução elementar e na aquisição
de competências técnicas para alavancarem o desenvolvimento e o crescimento
económico no seguimento dos valores essenciais das ideias de liberdade, igualdade e
justiça. Com este trabalho ficou evidenciado mais um campo de continuidade entre o
Antigo Regime e o Liberalismo numa das áreas fundamentais para a monarquia
constitucional.
O artigo de Ana Cristina Araújo (Universidade de Coimbra) centra-se em três
associações que, no final do século XVIII e inícios do século XIX, contribuíram para a
construção de redes de sociabilidades públicas, proporcionando, portanto, o debate de
ideias sobre a modernidade filosófica do Iluminismo: a sociedade dos Mancebos Patriotas
com sede em Coimbra (1780), o Montepio Literário (1813) e a Sociedade Patriótica
Literária de Lisboa (1822). Estas associações filantrópicas destacaram-se, sobretudo, na
divulgação e comunicação política e social no interior de uma atmosfera pública
emergente das transformações que estavam, nas palavras da autora, a ocorrer “nos
espaços, agentes e mecanismos de sociabilidade literária, cultural, científica e política na
sociedade portuguesa. Sob a influência das Luzes, marcada por novas perceções da
cultura e da filosofia de tipo enciclopedista, e tendo em conta os conhecidos canais de
acesso à produção impressa estrangeira, por meio da circulação clandestina de livros,
periódicos, novidades literárias e do teatro”. Esta participação cívica cresceu em espaços
de lazer e nas tertúlias literárias alimentadas por elites culturais que acabaram, também,
por operar mudanças na forma como se partilhou o conhecimento, no aproveitamento
dos convívios para aprimorar o debate e a ctica política e social. Estas novas formas
de sociabilidade tornaram-se, por isso mesmo, centrais para o reforço da modernidade
e como suporte das ideias liberais.
O trabalho de Luís Tomé (Universidade Autónoma de Lisboa) sobre as diversas ordens
internacionais limitadas no tempo e no espaço que, no caso decorrentes das revoluções
liberais, foi inspiradora de novas doutrinas e ideologias que marcariam a emergência dos
regimes para-democráticos, liberais, do Estado-Nação, dos multilateralismos e do
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institucionalismo que, no dizer do autor, “haveriam de marcar várias e distintas
mundivisões sobre “ordem internacionalsurgiram na Europa e disseminaram-se fruto
do domínio e expansão colonial das potências europeias”. A matriz dessa ordem
internacional liberal que não significa “ordem mundial”, é dominada pelo modelo
americano e reflete os valores e os interesses da sua cultura. No entanto, as contradições
e os paradoxos da ordem liberal conduziram à sua desconstrução, sobretudo tendo em
conta a hiperglobalização económica” que legitimou certas autocracias e favoreceu o
crescimento do poder mundial da China que, em conjunto com a Rússia, exportam o
autoritarismo e a doutrina da “não ingerência nos assuntos internos”, acabando por
subverter os princípios da convivência das nações no respeito pelas regras internacionais.
Estamos, por conseguinte, perante um trabalho que nos convida a refletir sobre a
exteriorização das revoluções liberais bem patente, aliás, no caso da revolução liberal
em Portugal.
O estudo de António Pedro Manique (Instituto Politécnico de Santarém) aborda o
direito de dissolução das câmaras eletivas dos parlamentos que, em Portugal, pela Carta
Constitucional de 1826 pertencia ao chamado quarto poder”, o poder moderador que
convivia com os tradicionais poderes legislativo, executivo e judicial. Esse poder, para
além da divisão tripartida, pertencia exclusivamente ao monarca, em acumulação com o
poder executivo, do qual era o chefe. Neste sentido, uma das competências régias no
âmbito deste poder moderador era a dissolução da Câmara dos Deputados quando as
razões da salvação do Estado” o exigissem, portanto, apenas em situações excecionais.
O autor assinala, no seu trabalho, que esta prerrogativa régia viria a ser banalizada,
“tornando-se um expediente político utilizado pelos governos para obterem maiorias
parlamentares através do recurso a eleições fraudulentas”. Assim, António Pedro
Manique demonstra que a prática política adulterou os princípios constitucionais e que se
tornou num expediente central do regime liberal, analisando, para o efeito, as dez
dissoluções da câmara dos deputados decretadas entre 1834 e 1865, evidenciando-se o
“enorme intervalo que separa a constituição formal da constituição real, resultando esta
das práticas políticas dos agentes do poder e das próprias instituições”. Com este
alcance, o autor chama-nos a atenção para as dificuldades e distorções causadas pelas
leituras formais dos documentos constitucionais se não tivermos em conta a dimensão
das práticas políticas.
José Subtil (Universidade Autónoma de Lisboa) escolheu tratar o problema central dos
liberais no debate sobre o regime da justiça, ou seja, a opção entre juízes letrados e
juízes populares. As principais conclusões que o autor retirou foram, fundamentalmente,
quatro. A primeira diz respeito ao facto deste debate ter proporcionado a marcação da
fronteira entre o grupo de liberais mais radicais, os moderados e os
conservadores/tradicionalistas. A segunda conclusão aponta para que a defesa dos juízes
populares foi, sobretudo, ideológica e teve dois pressupostos políticos: a crítica violenta
à magistratura régia do Antigo Regime e a defesa de uma justiça que fosse amovível pelo
voto e transitória no tempo de exercício. A terceira conclusão revela que os modelos
constitucionais e as leis de organização da justiça nunca tiveram uma manifestação
prática até à Novíssima Reforma (1841). E, finalmente, de que o liberalismo acabaria por
adotar um modelo assente nos juízes letrados, afastando-se do populismo, embora tenha
aceite uma versão mitigada de juízes populares, os chamados juízes de facto (jurados).
Este trabalho traça, portanto, o quadro geral do debate da justiça para os liberais e,
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também, uma comparação com o modelo em vigor no Antigo Regime, focando, para
ambos os períodos, o modelo de eleição dos juízes populares.
E, por fim, o texto de Luís Valença Pinto (Universidade Autónoma de Lisboa) chama-
nos a atenção para o entendimento de que a guerra fez evoluir o conceito de segurança
influenciado pelas ideias ligadas ao liberalismo e à democracia (segurança nacional,
segurança coletiva, segurança cooperativa), atenta à dimensão humana. Duas
circunstâncias definem conjugadamente a matriz dessa relação. Por um lado, o cunho
crescentemente liberal do contexto político e estratégico e, por outro lado, a também
crescente correlação e subordinação da segurança a esse contexto.
A equipa editorial deste número temático tem o prazer de oferecer aos leitores este
volume comemorativo da revolução liberal de 1820 que reflete um esforço interdisciplinar
para a problematização do conhecimento plural, ancorado no diálogo entre as áreas da
História, Direito, Cultura e Relações Internacionais.
Como citar este editorial
Subtil, José; Atallah, Cláudia; Mota, Sarita; Dominguez, Rodrigo da Costa (2021). Editorial:
200 anos depois da Revolução (1820-2020). Janus.net, e-journal of international relations.
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro
2021. Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.DT0121ED
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O CRIME DE LESA-MAJESTADE DE PRIMEIRA CABEÇA NA CONJURAÇÃO
BAIANA DE 1798: PERMANÊNCIAS NA MODERNIDADE JURÍDICA
PATRÍCIA VALIM
patricia.valim@ufba.br
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), em 2013. Desenvolveu
dois estágios de pesquisa em nível de pós-doutoramento em 2014 e 2019 na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP),
respectivamente. Desde 2015, é professora adjunta do Departamento de História e do Programa
de Pós-Graduação de História da UFBA (Brasil). Desde agosto de 2021 íntegra o Departamento
de História e do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP) em regime de cooperação técnica. Em 2018 publicou o livro pela EDUFBA "Corporação
dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798", um
crime de Lesa-majestade de primeira cabeça. Desde então, tem publicado artigos sobre o
Tribunal da Relação da Bahia e a cultura jurídica penal nas devassas das inconfidências que
antecederam as lutas pela independência política do Brasil, deflagrada em 1822.
Resumo
A partir das análises das informações dos Autos das Devassas da Conjuração Baiana de 1798,
percebe-se que, na lógica punitiva do poder local e das autoridades metropolitanas, a
circunscrição das bases sociais do evento decorreu de uma clivagem social com vistas à
manutenção de uma certa ordem cara, no aquém e no além-mar, à conjuntura do final do
século XVIII. Por um lado, puniu-se exemplarmente quatro homens livres, pobres e pardos,
reforçando a força e a superioridade intrínseca do absolutismo português quando questionado.
Por outro, para continuar governando, a coroa portuguesa precisou negociar com amplos
setores daquela sociedade, reconhecendo a legitimidade do exercício político e a luta por
direito daqueles homens. No entanto, a transição do pluralismo jurídico para a modernidade
jurídica no Antigo Regime português foi possível porque hierarquização inerente ao
escravismo não foi questionada.
Palavras chave
Lei da Boa Razão, Cultura Jurídica Penal, Lesa-Majestade, Conjuração Baiana
Como citar este artigo
Valim, Patrícia (2021). O crime de lesa-majestade de primeira cabeça na Conjuração Baiana
de 1798: permanências na modernidade jurídica. Janus.net, e-journal of international
relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1,
Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.1
Artigo recebido em 1 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 15 de Setembro de
2021
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O CRIME DE LESA-MAJESTADE DE PRIMEIRA CABEÇA NA
CONJURAÇÃO BAIANA DE 1798: PERMANÊNCIAS NA
MODERNIDADE JURÍDICA
PATRÍCIA VALIM
Em artigo sobre o papel político da alta magistratura do Tribunal da Relação da Bahia na
segunda metade do século XVIII, publicado na Revista Tempo em 2018, demonstrei as
mudanças e permanências na cultura jurídica penal deflagradas pelas reformas
pombalinas no ordenamento jurídico do Império Português. Uma das principais
mudanças é a referência ético-religiosa que dominou o direito penal sobre os foros
internos e externos dos súditos da coroa portuguesa substituída pelo prevalecimento dos
direitos, laicidade e razão, utilidade e proporção, ordem, certeza e garantia, inspirando
a secularização e a legalidade dos delitos e das penas. A partir da chamada Lei da Boa
Razão, as novas pautas consagradas pelo “moderno direito natural” (Valim, 2018) foram
o ponto culminante do processo de afirmação das autoridades políticas seculares, de
sorte que, no final do século XVIII, diversos juristas se esforçaram por discriminar as
ideias de delito e pena, e de crime de lesa-majestade, de modo a torná-los operacionais
dentro de um direito mais racional e sistematizado, diferenciando-as das noções de
pecado e vício que balizaram o direito até então.
Isso ocorreu porque a partir da segunda metade do século XVIII, houve o
questionamento de um dos pilares do Antigo Regime e do Direito Divino Hereditário: a
ligação essencial da justiça com o poder monárquico, de sorte que o poder do monarca
era identificado com sua vontade de punir. Assim, no processo de transição do pluralismo
jurídico para a modernidade jurídica o que estava causa para os juristas sobre a
necessidade ou não de um Código Penal era o estabelecimento de uma nova economia
política do poder punitivo, eliminando a punição como um ato de vingança do monarca.
Trata-se, ao fim e ao cabo, da formação do Estado moderno normativo e disciplinador no
qual o ato de punir passa a ser considerado como algo técnico, detalhado, eficaz,
pedagógico e realizado no interior de instituições específicas (Foucault, 2013; Valim,
2015).
Para Wolkmer (2004), a subjetividade é o centro do processo de constituição da
modernidade jurídica, pois ao expressar valores como a liberdade e igualdade estabelece
os parâmetros que possibilitam a origem ideal de toda formação política,
fundamentando-se, assim, a vinculação entre os direitos subjetivos originados no
indivíduo e a possibilidade de legitimidade política a partir da consagração e proteção
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O crime de lesa-majestade de primeira cabeça na Conjuração Baiana de 1798:
permanências na modernidade jurídica
Patrícia Valim
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daqueles. Nesse sentido é que a subjetividade jurídica seo reconhecimento dos direitos
naturais, entendidos como poderes ou liberdades que expressam condições para o pleno
desenvolvimento de cada um e do conjunto da sociedade.
No entanto, embora a literatura jurídica do final do setecentos propusesse a
sistematização, a racionalização da ordem jurídica e a imparcialidade judicial,
prospectando uma intervenção racional e ordenadora sobre a realidade social dos crimes,
a análise das denúncias de prevaricação dos desembargadores responsáveis pelas
devassas da Conjuração Baiana de 1798 demonstrou a contradição entre as premissas
do moderno direito natural e a permanência do personalismo real no processo de
transição do pluralismo jurídico para a modernidade jurídica. Isso fica mais evidente
quando se analisa o próprio evento, seus agentes, suas demandas, as devassas, as
testemunhas, a defesa e o acórdão final que o qualificou como crime de Lesa Majestade
de Primeira Cabeça (Valim, 2018).
De acordo com um dos maiores especialistas no assunto, Mario Sbriccoli, o crime de lesa-
majestade definido no Livro V das Ordenações Filipinas previa “traição contra a pessoa
do Rei ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos
sabedores tanto estranharão, que o comparavão à lepra que enche todo o corpo, sem
nunca mais se poder curar” (Sbriccoli, 1974: 250). Esse crime era dividido em lesa-
majestade divina e lesa-majestade humana: o primeiro tratava de afrontas relacionadas
à ou à religião, dos crimes de sacrilégio, blasfêmia, heresia, por exemplo. A lesa-
majestade humana tratava de ofensas ligadas diretamente à pessoa física do rei ou ao
Real Estado, configurando-se no crime político propriamente dito e expresso nas revoltas,
revoluções, tumultos, traições, motins, sedições e conspirações.
Mario Sbriccoli não é o único especialista no crime de lesa-majestade, mas foi o primeiro
a demonstrar a margem para o arbítrio político na distinção dos crimes de lesa-majestade
humana entre os de primeira cabeça (“prima caput”) e os de segunda cabeça (“secunda
caput”). Para o autor, a hierarquização dos crimes fortalecia a interpretação dos
magistrados, que poderia concentrar na definição de “primeira cabeça” todos os possíveis
crimes políticos ao tempo em que atribuía à categoria de segunda cabeça” uma série de
outros crimes, abrindo ltiplas possibilidades interpretativas e oportunidades políticas
aos Estados (Sbricoli, 1974; Pinillos, 2020; Dalri Junior, 2005). Não é outro o tema deste
artigo: a construção da chamada Conjuração Baiana de 1798 como um crime de lesa-
majestade de primeira cabeça por magistrados envolvidos em situações e atividades
pouco lícitas, seja pelas relações estabelecidas entre o poder e os notáveis, seja pelo
desvio de comportamento gerado no cotidiano de uma sociedade pautada pelo
escravismo e por um Estado cujos cargos eram fatiados em benefício de um grupo que
garantia coesão social ante os conflitos inerentes ao processo colonizador (Valim, 2018).
Em sua dissertação de mestrado sobre os trâmites do ordenamento jurídico na capitania
da Bahia no final do século XVIII, Pinillos (2020) analisou o crime de resistência à justiça
pelo qual o tenente Antônio Manuel da Mata foi acusado em 1783 e também considerado
crime de Lesa Majestade de Primeira Cabeça
1
. A autora demonstra a multiplicação de
possibilidades verificáveis do crime de lesa-majestade na prática cotidiana da justiça em
1
Para o período colonial brasileiro, os dois episódios ocorridos na Bahia e a Inconfidência Mineira de 1789
foram os únicos casos de crimes de lesa-majestade que se tem notícias.
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decorrência do paradoxo da cultura jurídica penal cadenciada pela ilustração portuguesa
de matriz católica que ao fim e ao cabo fortalecia mais ainda o poder do rei: apesar de a
Lei da Boa Razão suscitar o fim do pluralismo jurídico e o casuísmo da legislação como
vontade do monarca, houve um recrudescimento da legislação penal no período,
sobretudo quando o rei e seus representantes eram alvos ameaçados.
A ampliação das variáveis que definiam o crime de alta traição política e o alargamento
no mero de condutas e a extensão dos comportamentos passíveis de punição
conheceram uma espécie de “hierarquização operativa”, que se refletia na gravidade do
crime: “atentar contra a vida do rei e atentar contra a vida de um oficial da justiça, ainda
que ambos personificassem o poder com qualidades e intensidades distintas, não
estavam no mesmo patamar” (Pinillos, 2020: 120). Esse debate não é de pouca
relevância uma vez que alguns autores portugueses tendem a considerar o pluralismo
jurídico como ausência de controle régio do sistema de justiça e analisar as lutas pela
independência política do Brasil como consequência de uma “centralização tardia” do
absolutismo português no além-mar por meio do aumento da aplicação da pena capital
e de sua utilização com objetivos políticos (Monteiro, 2006: 124).
A hipótese deste artigo caminha em outra direção: o arbítrio da justiça para o crime de
lesa-majestade de primeira cabeça funcionou como um eficaz mecanismo de rearranjo
político da coroa portuguesa com amplos setores da sociedade soteropolitana na
conflituosa transição do século XVIII para o século XIX, a despeito de um dos últimos
espetáculos fúnebres do Antigo Regime português no Brasil: o suplício do enforcamento
seguido do esquartejamento dos corpos de quatro homens livres pobres e pardos
considerados os cabeças da Conjuração Baiana de 1798. O que se apresenta neste artigo,
portanto, é analisar as permanências na investigação e punição de um crime de lesa-
majestade movimento político como redefinições de procedimentos de exclusão e parte
incontornável da construção do sujeito de direito, subjetividade moderna e do próprio
Direito como agente e vetor de normalização.
***
Durante os anos de 1797-1798 várias denúncias, a maioria apócrifa, chegaram ao Reino
dando conta dos desmandos cometidos pelos desembargadores do Tribunal da Relação
da Bahia sem que a coroa portuguesa investigasse as denúncias. Das várias razões que
explicam essa atitude, a mais óbvia é que não havia na colônia órgão superior ao Tribunal
da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro, cujos desembargadores eram os nobres da
administração colonial, os mais respeitados e cheios de privilégios entre os funcionários
régios. Em obra seminal sobre o tema, Stuart Schwarz demonstra que a coroa portuguesa
via o Tribunal da Relação como o principal guardião de seus interesses em razão de
ocupar posição central dentro de um sistema burocrático contraditório, com
superposições jurisdicionais e com objetivos ltiplos. Justamente por isso, em casos de
conflitos de jurisdição, conflitos entre os desembargadores ou denúncias de prevaricação,
eventualmente tais situações eram remetidas ao Conselho Ultramarino para que a coroa
desse seu parecer final. Situação que não ocorreu naquele final de século na Bahia, pois
conforme a tese de Schwartz (1979: 287), as falhas dos magistrados eram compensadas
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pelas funções políticas que eles acabavam desempenhando. Como de fato ocorreu com
os magistrados que conduziram as investigações da Conjuração Baiana de 1798.
A Conjuração Baiana de 1798 foi um movimento de contestação deflagrado nas ruas de
Salvador na manhã de 12 de agosto por meio de boletins manuscritos afixados em
prédios públicos cujo conteúdo tocava em pontos extremamente delicados para a
governança dos dois lados do Atlântico naquela conflituosa conjuntura, a começar pela
mensagem: O Povo Bahinense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro
seja feita nesta cidade e seu termo a sua digníssima Revolução”. A informação foi
acrescida pela convocação da população a participar do levante projetado pelo Partido
da Liberdade, um grupo heterogêneo que se intitulava Anônimos Republicanos, que
tornou público o objetivo da “República Bahinense”: “Animai-vos, povo bahinense, que
está para chegar o tempo feliz da liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos,
todos seremos iguais”.
Em outro boletim, os “Entes da Liberdade” atacaram diretamente o príncipe regente d.
João VI: “Povos que viveis flagelados com o Pleno poder do Indigno coroado [...]”. Eles
questionavam a legitimidade da regência do Príncipe desde 1792, quando a senilidade
de sua mãe e Rainha, d. Maria I foi diagnostica. Também tomaram partido na aliança
entre Castela e França, escolhendo a França revolucionária para o livre comércio com a
futura “República Bahinense”. Além da abertura do porto de Salvador, o grupo também
reivindicou o aumento de soldo dos milicianos para 200 réis diários, o fim dos impostos
e das taxas cobradas pela Coroa Portuguesa, a liberação do comércio de açúcar, tabaco,
pau-brasil e todos os demais gêneros de negócio, isonomia e mérito nos critérios de
ascensão na carreira militar, da administração local e para a escolha dos clérigos que
comandariam a religião local. Em razão das demandas, anunciadas publicamente, as
autoridades locais logo desconfiaram, e com razão, que o grupo era constituídos por
pessoas de distinta condição social.
A Coroa Portuguesa e as autoridades locais, capitaneadas pelo governador da capitania
da Bahia (1788-1801), d. Fernando José de Portugal e Castro, agiram rápido, iniciaram
as investigações, contando com a colaboração de alguns desembargadores do Tribunal
da Relação da Bahia e de um grupo de homens poderosos e ricos, chamado de
“corporação dos enteados” pelo cronista Luís dos Santos Vilhena (1969), em razão das
denúncias de “ausência de limpeza de os” nos postos da administração pública e
participação no movimento. Dois membros desse grupo de poderosos foram convocados
pelos desembargadores a formularem denúncias e contaram sobre o episódio “pronta
entrega de escravos” no qual José Pires de Carvalho e Albuquerque, o terceiro homem
mais rico da capitania e Secretário de Estado do Brasil, entregou pessoalmente onze
escravos desse grupo à justiça. Episódios que acabaram interferindo nos rumos das
investigações e na circunscrição social do levante.
No dia 7 de setembro de 1798, Francisco Vicente Viana, homem branco, Ouvidor da
Bahia, Juiz dos Órfãos e Ausentes, proprietário dos Engenhos Madruga Cedo, Paramerim
e Monte, todos localizados no distrito da Vila de São Francisco do Sergipe do Conde,
formulou culpa sobre a participação de Luiz Gonzaga das Virgens na projectada
revolução”. No mesmo dia, foi chamado a formular culpa outro senhor de escravo, Manoel
José Villela de Carvalho, homem branco, solteiro, Tesoureiro da Real Fazenda, negociante
de grosso trato e proprietário do Engenho Marapé, em São Francisco da Barra de Sergipe
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do Conde. Seguindo o padrão da denúncia de Francisco Vicente Viana, Manoel José Vilela
de Carvalho afirmou ao desembargador Costa Pinto que sabia:
por ouvir dizer constante e notoriamente que se projectava fazer hum Levante
nesta Cidade com saque e assassinos para se estabellecer hum Governo
Democrático, livre e independente, e que os authores desta empreza forão
huns poucos de mulatos, entre os quais forão os primeiros Luiz Gonzaga das
Virgens, […] que dizem espalhara pouco antes huns papéis sediciozos e
libertinos, pelos Lugares Públicos e mais Sagrados”. Terminou sua culpa
afirmando que delatou tudo o que sabia ao “Illustríssimo e Excellentíssimo
Governador, fazendo pronta-entrega dos escravos”
2
.
Razão pela qual passados pouco mais de dois meses das primeiras prisões decorrentes
da publicização dos pasquins de conteúdo “revoltoso”, na mande 12 de agosto de
1798, d. Fernando José de Portugal e Castro, então governador-general da Bahia, enviou
uma extensa carta a d. Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro de d. Maria I
3
explicando os
procedimentos adotados na consecução das Devassas instauradas para se descobrir,
respectivamente, o(s) autor(es) dos pasquins e os partícipes do movimento. Justificando-
se, inicialmente, pelas providências imediatamente tomadas, que pedia matéria tão
delicada e melindrosa”, o governador afirma que para descobrir os autores dos “papéis”
ele praticaria todos os mais procedimentos que julgasse necessários”. E assim o fez.
Após as prisões e as informações obtidas nas primeiras acareações, o governador
pondera com d. Rodrigo sobre os meios mais adequados para se descobrir os réus
reflectindo eu ao meio da devaça, posto que o mais conforme a Ley neste
cazo, não he regularmente o [meio] mais eficaz para se descobrirem os Reos
dessa qualidade de delicto, que procuram usar de todo o desfarce, segredo e
cautela quando o cometem, para que faltem testemunhas oculares que o
comprovem, e que se devião fazer todas as averiguacoens, ainda que incertas
e duvidosas
4
.
O caminho duvidoso, escolhido por d. Fernando foi o exame de várias petições antigas
que se encontravam na Secretaria de Estado e Governo do Brasil, sob o comando de José
Pires de Carvalho e Albuquerque. O objetivo era confrontar as letras dos documentos
oficiais com a letra dos “pasquins sediciosos”. Note-se que os documentos entregues ao
governador eram documentos referentes às tropas urbanas de milícia, circunscrevendo
o(s) réu(s) antecipadamente a um determinado grupo daquela sociedade, os milicianos.
O exame resultou na descoberta de duas petições que indicavam ser de autoria de
Domingos da Silva Lisboa, homem pardo. A prisão foi decretada “ainda que esse indício
fosse remoto e falível”, pois o governador “ouviu dizer” ser o dito Domingos alguém
2
Cf. “Testemunhas da devassa...”. Ler, especialmente o depoimento da testemunha n. 6, Francisco Vicente
Viana. In: Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates. Arquivo Público do Estado da Bahia, 1998, vol.
2, pp. 923-924. Doravante ADCA.
3
Biblioteca Nacional do Rio Janeiro, doravante BNRJ, Sessão de Manuscritos, I-28, 26, 1, no. 13. Carta de
20 de outubro de 1798.
4
Idem.
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tanto solto de lingoa
5
. Para além da frouxidão verbal do acusado, pesou sobre ele seu
ofício.
Era praxe para a averiguação de crimes, fossem eles quais fossem, a elaboração do
termo de prisão, hábito e tonsura no mesmo dia, ou no dia seguinte, da prisão do
acusado, para assegurar sua integridade física, a partir da descrição de suas
características (Wehling, 1986: 151). No caso de Domingos da Silva Lisboa, chama a
atenção o fato de que a data exata de sua prisão não consta nos autos. Entretanto, pode-
se asseverar pelo “auto de achada e aprehensão”, realizado em 17 de agosto de 1798,
que o acusado, se não foi preso no mesmo dia, foi no dia seguinte. Contudo, seu termo
de prisão foi elaborado oito meses depois, precisamente no dia 02 de março de 1799.
Esse estranho procedimento também ocorreu com o próximo acusado.
A suspeita do governador da Bahia em relação a Domingos da Silva Lisboa, não se
confirma. Dez dias após a referida prisão, apareceram dois bilhetes destinados ao Prior
dos Carmelitas Descalços, provando que não fora Domingos da Silva Lisboa o autor dos
papéis, e o tal meio utilizado para a averiguação dos “cabeças” do movimento era de fato
bem duvidoso. Não obstante, o governador novamente procura evidências nas tais
petições da Secretaria de Estado e encontra três documentos que “comprovam”, dessa
vez, que os pasquins foram escritos por Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, homem
igualmente pardo e soldado do Primeiro Regimento de Linha da Praça da Salvador e
Quarta Companhia de Granadeiros
6
. Ocorre que dessa vez pesou sobre o réu um
“requerimento atrevido”, enviado certa feita pelo acusado, para que d. Fernando
o nomeasse Ajudante do quarto Regimento de Milícias desta Cidade,
composto de homens pardos, alegando que estes devião ser igualmente
attendidos que os brancos, a que não deferi, e que conservava em meu poder
pela sua extravagância
7
.
Por analogia ao teor da carta, o governador chega ao conteúdo dos pasquins sediciosos,
uma vez que os papéis também inculcavão aquela mesma igualdade entre os pardos,
pretos e brancos. Isto posto, faz não conjecturar mas persuadir ser elle [Luiz
Gonzaga das Virgens e Veiga], e não outrem o autor dos Papeis Sediciozoz
8
. Apesar de
ter sido preso em 23 de agosto de 1798, seu termo de prisão foi elaborado em 24 de
fevereiro de 1799, uma semana antes do termo de prisão do então primeiro acusado,
5
“Auto de exame, e combinação das Letras dos pesquins [sic], e mais papeis sedicciozos [sic], que
apparecerão nas esquinas, ruas, e Igrejas desta Cidade que se achão incorporados na Devassa, que esta
debaixo do N. 1 e do papel que elles estão escritos, com as letras de Domingos da Silva Lisboa nas peticoens,
que forão achadas em sua caza, e com o papel limpo, que ahi tambem se achou, e tudo se acha junto ao
auto da achada, e aprehensão constante do appenso N. 9”. In: Autos da Devassa da Conspiração dos
Alfaiates. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1998, vol. 1, pp. 86-89.
6
“Auto de combinação de letra dos pesquins [sic], e papeis sediciosos, que apparecerão nas esquinas, ruas
e Igrejas desta Cidade, incorporados na Devassa debaixo do n. 1 com a letra de Luiz Gonzaga das Virgens
nas peticoens que estão no appenso n. 4 e papeis juntos por linha ao appenso n. 5, e com a letra de
Domingos da Silva Lisboa nas peticoens...”. In: ADCA, vol. 1, pp.123-124.
7
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Sessão de Manuscritos, I-28-26, 1, n. 13. Carta de Luiz Gonzaga das
Virgens de 1797.
8
“Cópia do termo de prizão habito e tonçura feita ao Reo Luis Gonzaga das Virgens”. In: ADCA, vol. 1, pp.
142-143.
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Domingos da Silva Lisboa. O governador da capitania da Bahia cria ter resolvido com a
maior prontidão o crime sobre os papéis sediciosos. Todavia, não foi o que ocorreu.
O soldado Luiz Gonzaga das Virgens foi preso no dia 23 de agosto de 1798 sob a acusação
de ter sido ele, e o Domingos da Silva Lisboa, o autor dos pasquins sediciosos. Luiz
Gonzaga das Virgens era bem conhecido das autoridades locais. Aos vinte anos, o soldado
assentou praça e foi destacado para a companhia de granadeiros do 1o. regimento de
tropa de linha, jurando bandeira a 30 de agosto de 1781, e teve baixa como desertor em
30 de outubro do mesmo ano. Jurou bandeira e desertou por mais duas vezes, sendo
que depois de 1791 vagou pelos sertões até ser preso e responder processo verbal no
Conselho de Guerra, instalado a 9 de abril de 1793
9
.
Foi na documentação sobre Luiz Gonzaga, no Conselho de Guerra, que ficava guardada
na Secretaria de Estado, que o governador comparara a letra dos pasquins com algumas
petições que o acusado escrevera certa feita. A petição que corroborou para sua
condenação dava conta de que
sendo os homens pardos recrutados e adscritos ao grêmio Militar das Tropas
pagas [...] eram os ditos homens pardos da mesma massa, e sensibilidade
dos outros indivíduos albicantes [sic] da Sociedade Militar, e Civil, sem maior
differença que a da cor, accidente dissimilar com que os distinguio a natureza
[...] ficando contudo equivalentes aos brancos, tanto pela substancia Material,
como a principal, a espiritual, [entretanto, são tratados] como objectos da
escravidão, do desprezo [corroído] e finalmente como exterminados, ou
espúrios do mínimo accéso, e graduação dos postos [...], e sem premio, que
he só, o que faz gostozos os trabalhos pretéritos
10
.
Luiz Gonzaga finaliza a petição solicitando isonomia para ascensão dos postos mais
graduados da carreira militar, alegando que sendo ele “hum individuo da classe dos
referidos desgraçados [pardos] tem a magua, magua inconsolável de ver subir aos postos
[...] a cor branca, o havendo outros relevantes motivos que [não] differentes
merecimentos, e nobiliarchia”
11
.Antes da plubicização dos pasquins sediciosos, na manhã
de 12 de agosto de 1798, Luiz Gonzaga pediu a mercê de “hum anno de licença sem
perda de soldo, pão, e seqüentes; para que mais comodamente, em razão da sua
pobreza”
12
. Pedido que lhe foi negado, antes de aparecer preso na Relação. Durante os
depoimentos, Luiz Gonzaga forneceu informações importantes sobre o que fizera por
ocasião de sua estada no sertão. Disse ter conhecido João da Silva Norbonha, na cidade
de Natal dos Reis Magos, no Rio Grande do Norte. Informou que o dito João era português
nascido no Porto, negociante que morava em Salvador, mas várias vezes ia para o
Recôncavo a negócios. Foi perguntado sobre os nomes das pessoas com as quais o dito
9
ADCA...vol. 1, p. 127 Concelho de Guerra feito a Luiz Gonzaga das Virgens.
10
Cf. Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 581, apenso n. 5, letra L Comparação da assinatura de Luiz
Gonzaga das Virgens no documento do Conselho de Guerra com as petições e requerimentos que ele teria
escrito. Este documento foi incorporado na segunda edição dos Autos das Devassas, de 1998, por ocasião
das perguntas feitas a Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Cf. ADCA, vol. 1, pp. 116-117.
11
Idem, p. 117.
12
AHU_CU_Baía_Cx. 96, doc. 18920: Requerimento de Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, no qual pede um
anno de licença para tratar no Reino dos seus interesses. Tem anotação de José Luiz de Magalhães e
Menezes ao dia 4 de maio de 1798.
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João mantivera conversas, pelo que Luiz Gonzaga respondeu que “tinha [João] amizade
em Caza do Padre Francisco Agostinho Gomes e Jacinto Dias Damasio, e muitos outros
homens da Praia, e que em casas destes tomava fazendas para o seu negócio”
13
.
Perguntado sobre o que eles costumavam conversar, Luiz Gonzaga disse que João da
Silva Norbonha era um homem muito instruído e informado dos acontecimentos na
Europa, pelo que lia nos jornais, sobre a situação da França e Inglaterra, e que discorria
frequentemente sobre a igualdade dos homens e humanidade com que deviam ser
tratados, “principalmente sobre a injustiça de nam serem admitidos os pardos a maiores
asseços, sem que contudo isso intervisse máxima alguma contra a Igreja ou contra o
Estado
14
. As autoridades nada mais perguntaram, retomando o depoimento em outra
data e adotando o mesmo padrão dos depoimentos dos escravos e de Domingos da Silva
Lisboa.
O teor das petições e dos depoimentos, das assentadas e das acareações, demonstram
que os termos das ideias libertárias e de “francezia” de Luiz Gonzaga das Virgens
significavam, sobretudo, maior inserção na hierarquia militar, da qual ele ocupava o mais
baixo posto. O entendimento do que o soldado ouvira das conversas que tivera com João
da Silva Norbonha sobre os acontecimentos revolucionários na França e a leitura dos
textos de d’Anglas, Carra, Volney e o Aviso de São Petersburgo encontrados em sua casa
sugerem que tais leituras potencializaram as reivindicações daqueles homens milicianos
e tornaram-se ferramentas com as quais eles criam poder mudar suas vidas de alguma
maneira. Os cativos e os milicianos que sabiam ler e escrever criam ter condições de
reivindicar por seus direitos, uma vez que essa sociabilidade política os tornaram mais
sensíveis para a hierarquização da qual eram vítimas. Com efeito, relatar às autoridades
locais a participação de homens colocados entre os povos”, na “projetada revolução”,
não foi uma estratégia apenas dos cativos.
No dia 25 de agosto de 1798, dois dias após a prisão de Luiz Gonzaga, o governador é
surpreendido por três denúncias, cujo teor davam conta de que outro pardo, João de
Deus do Nascimento, havia convidado algumas pessoas do Regimento de Artilharia para
uma reunião que seria realizada naquela noite, no Campo do Dique do Desterro, cujo
objetivo era
formar huma rebelião, e revolução, que entravão outras pessoas que tão bem
chamara ao seu partido rogando-lhe que se achasse na noite do dia seguinte
em sua caza, para ir dali com elle [João de Deus] e os mais, ao Campo do
Dique, a fim de ajustarem o modo, meios, e occazião em que havia ter efeito
a projectada revolução
15
.
A reunião no Campo do Dique, como se sabe, foi abortada. Uma das razões foi haver
entre os partícipes quem reconhecesse os denunciantes e desconfiasse de suas
13
ADCA, vol. 1, p. 101 Perguntas feitas a Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, soldado da Companhia de
Granadeiros do Primeiro Regimento desta Praça.
14
ADCA, vol.1, pp. 104-105.
15
“Denúncia publica jurada e necessária que dá Joaquim Joze da Veiga, homem pardo, forro, cazado e official
de ferrador [...]”; “Denúncia publica [...] que o Capitão do Regimento Auxiliar dos homens pretos
Joaquim Joze de Santa Anna [...]; “Denuncia publica [...] Joze Joaquim de Serqueira, homem branco e
Soldado Garnadeiro do primeiro Regimento pago desta Praça [...]”. In: ADCA, vol. II, pp. 910-920.
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presenças. Após esse episódio, no dia 26 de agosto do mesmo ano, outra devassa foi
instaurada para investigar o crime de conjuração, sob os cuidados do desembargador
Francisco Sabino da Costa Pinto. Várias pessoas foram presas ao longo de seis meses.
Dentre elas, algumas apenas prestaram esclarecimentos, outras foram consideradas
culpadas a priori, pois o que ocorreu foi a clivagem social para que houvesse
diferenciação entre os acusados, conforme d. Fernando José de Portugal e Castro
explicitou a d. Rodrigo de Sousa Coutinho
o contexto dos Papeis sediciozoz, tão mal organizados, posto que sumamente
atrevidos e descarados; o caracter e qualidade do seu autor, e das principaes
cabeças que trataram da rebelião taes como Luiz Gonzaga das Virgens, João
de Deos Alfaiate, Lucas Dantas, e Luiz Pires lavrante, todos quatro homens
pardos, de péssima conducta, e faltos de Religião, me fez capacitar, que
nestes attentados, nem entravão pessoa de consideração, nem de
entendimento, ou que tivessem conhecimento e Luzes, o que melhor se tem
acontecido pelas confissoens destes Réos
16
.
Segundo as informações dos autos, a situação não era exatamente a narrada na carta
por d. Fernando. Paralelamente às prisões, os desembargadores Manoel Magalhães
Pinto e Avellar de Barbedo e Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto colhiam, desde
o dia 17 de agosto de 1798, os depoimentos dos presos e coordenavam as
“Assentadas”, depoimentos de testemunhas que, nesse caso, eram senhores de
engenho, comerciantes, treze mulheres e alguns homens livres que alguma relação
tiveram com os acusados. Estava cada vez mais explícito que a sociabilidade política
entre os partícipes do evento não estava circunscrita às médias e baixas camadas
daquela sociedade, como d. Fernando insistia em afirmar para d. Rodrigo de Sousa
Coutinho, pois, por ocasião do relato da prisão do primeiro acusado, Domingos da
Silva Lisboa estivera [...] aliciando e convidando para este fim [revolta], como
convidarão, a vários Escravos de diversos Senhores, e alguns soldados, e outros
indivíduos que foram sucessivamente prezos [...]
17
.
Ao longo de cinco meses dos depoimentos para se confirmar o autor dos papeis
revoltosos e nervosos, as testemunhas afirmaram que “ouviram dizer” sobre o
conteúdo dos ditos papéis, mas que não tinham certeza de seu autor. O testemunho
de Francisco Pereira Rabello, homem branco, Alferes do Terço Auxiliar das Ordenanças
e morador em Itapagipe, cercania de Salvador, é bastante significativo. Afirma o
Alferes
que publicamente tem ouvido dizer que aparesserão huns certos papeis
atrevidos pellas Esquinas, porem que elle [...] nem tem noticia de quem os
fizesse ou para isso concorresse. E [...] estando elle no Citio do Bomfim e
dando-se a noticia da prizão de Domingos da Sylva Lisboa, elle testemunha
16
Carta de D. Fernando José de Portugal e Castro a D. Rodrigo de Souza Coutinho de 20 de outubro de 1798.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Sessão de Manuscritos, doc. cit.
17
Idem.
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VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), Dezembro 2021, pp. 7-27
O crime de lesa-majestade de primeira cabeça na Conjuração Baiana de 1798:
permanências na modernidade jurídica
Patrícia Valim
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dissera que o dito Lisboa não tinha cido Autor dos papeis mas sim que seos
maiores e que so lhes faltava ter a Tropa a seo favor
18
.
Doutor Manoel Magalhães Pinto de Avelar e Barbedo o verificou a informação do
depoente, preferindo relatá-la ao governador
19
. Ciente da possibilidade de os
comandantes das tropas urbanas estarem entre os “cabeças” do movimento e
comandarem um grande número de homens para a execução do levante, d. Fernando
não comentou essas denúncias na carta enviada a d. Rodrigo de Souza Coutinho,
preferindo ganhar tempo na consecução das devassas, contando com um cúmplice
mecanismo de silenciamento de algumas informações operacionalizado pelos
desembargadores. Isso porque no decorrer das investigações, as autoridades locais não
tinham mais como esconder de Lisboa que o levante foi planejado por pessoas de
condição social diversas e que suas demandas explicitadas nas ruas de Salvador
questionavam a ordem por meio de um projeto de “República”, que além de uma forma
de governo para o bem comum, também podia se desdobrar em uma ética republicana
vivenciada por todos os membros de uma determinada comunidade (Mattos, 1998: 71).
Os depoimentos dos réus no inquérito também destacavam o envolvimento desses
senhores em reuniões que discutiam “ideias de francezias”, termo frequentemente
associado ao sistema de governo republicano e às ideias de liberdade, igualdade e
fraternidade que cadenciaram o fim do Antigo Regime francês. A principal queixa versava
sobre a tentativa de reforma de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro da Marinha e dos
Domínios Ultramarinos, que comprometia os privilégios desse grupo com o fim dos
monopólios, taxação justa, entre outras “vexações”. A presteza em encarcerar os
escravizados serviria, portanto, para evitar que mais informações fossem reveladas e
afastar as suspeitas que eram levantadas no processo e reafirmar lealdade à Coroa
Portuguesa. Ainda que a composição social dos réus tenha sido circunscrita desde o início
das investigações aos milicianos, retirando homens poderosos das investigações e
minimizando a participação dos escravos na revolta, os processos foram formalizados e
todos os ritos processuais previstos foram preservados. Em 12 de março de 1799, sete
meses depois de deflagrada a revolta, o advogado da Santa Casa da Misericórdia, o
bacharel “formado” José Barbosa de Oliveira, nomeado defensor e curador dos réus,
permitindo também que outros advogados pudessem fazer outras alegações em sua
defesa. Os presos tiveram o direito de defesa por cinco dias, e, apesar de a nomeação
do advogado ter ocorrido em 12 de março, a defesa começou em 12 de junho de 1799.
José Barbosa de Oliveira iniciou sua defesa valendo-se das formalidades do moderno
direito natural:
Porque Logo, que pela Ordenação do Livro 5 título 6 se acha estabelecida a
pena de morte naturalmente cruelmente, contra aquele que for convencido
de haver cometido o horrorozo crime de Leza Magestade, e que pelo sobredito
acordão Respeitável se manda, que os Embargantes digão de facto, e de
Direito os fundamentos das suas defezas, certo, que na expozição delas,
os Embargantes procurão mostrar a sua inocência, e exclusiva do delicto
18
ADCA, vol. 1, p. 61.
19
Idem.
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de que são acusados, sem que nesta acção Se aggravem mais as suas culpas,
depois de ser Direito Natural, Divino e Pozitivo a defesa de qualquer Reo
20
.
Três importantes questões pautaram o argumento central da defesa de José Barbosa de
Oliveira. A primeira delas, e a mais importante, foi a ausência de provas para o crime de
lesa-majestade de primeira cabeça (crime político contra a Coroa de Portugal): a
ausência de exame de Corpo de Delito nos presos seria suficiente para se pedir a
suspensão de qualquer pena contra os embargantes “ainda que aliás eles estivessem
plenamente convencidos do crime, visto que o Corpo de Delicto hé o fundamento total
do Juízo Criminal, pela Regra”. Para o advogado de defesa, a segunda questão
fundamental para a defesa dos réus era a magnitude do crime “uma Confederação contra
a Augusta Majestade e seu Estado”, de maneira que os desembargadores teriam de
considerar que “sem armas ou disposições o se podia cometer o horrorozo delicto de
Sublevação a huma Cidade tão populosa, e a Capital da América”. Segundo José Barbosa
de Oliveira, a ausência de provas da acusação está intimamente relacionada com a
segunda questão do argumento central de sua defesa, a maneira como as denúncias
foram formalizadas por “testemunhas menos legaes”: senhores de engenho e membros
da administração local que fizeram “pronta-entrega” de seus escravos à justiça para se
livrarem dos boatos sobre “ausência de limpeza de mãos” e “crime de sedição”.
José Barbosa de Oliveira conclui o argumento central da defesa, afirmando:
Porque nunca podião os Embargantes terem intenção alguma de promoverem
hum Levantamento, e Sedição contra o Estado, com o fim de estabelecerem
um Governo Democratico; pois que se os {fl 48} os Embargantes erão huns
Officiaes de alfayate; outros de pedreiro; outros de Soldados Razos;
escravos; e de menor idade, todas pessoas de baixa-Relé, faltava-lhes as
Luzes necessárias, e Sabedoria, ou conhecimentos, para poderem estabelecer
hum Governo daquela qualidade, que pede Leys especiaes, e a cujo
estabelecimento não podia chegar a inferior qualidade, e abjeta condição do
Embargantes
21
.
A peça do acórdão final da defesa reitera a necessidade de que as provas “concluão com
a mayor exacção, desprezada essa opinião, de que bastão testemunhas menos Legaes,
em atenção à gravidade do delicto. Antes por essa mesma razão, mayor Solenidade Se
Requer, para o conhecimento do verdadeiro delinquente”
22
. Depois de sugerir que os
acusados assumiram a culpa por meio de castigos físicos e ausência de exame de corpo
de delito, para o advogado de defesa a condução das devassas não conseguiu provar a
culpa dos acusados por crime de lesa-majestade de primeira cabeça mesma. Ao
contrário: “só se descobrem os depoimentos de notoriedade, e publicidade, da qual não
Rezulta senão huma fama, ou hum indício Remoto, que por si só não basta, para a
imposição da pena última, como nem ainda para a tortura” (Valim, 2018: 135)
20
ADCA, p. 947-949.
21
ADCA, p. 952.
22
Idem.
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Com o acórdão final da defesa demonstrando a falta de prova do crime de lesa-majestade
pelos acusados e diante das evidências de participação de homens poderosos no crime
de sedição que poderiam comprometer a carreira do governador da capitania da
Bahia
23
, d. Fernando José de Portugal e Castro passou a participar de forma mais efetiva
na condução das devassas, afirmando para d. Rodrigo de Sousa Coutinho:
o que sempre se receou nas colônias é a escravatura [...] não sendo o
natural que os homens bem empregados e estabelecidos, que têm bens e
propriedades, queiram concorrer para uma conspiração ou atentado, de que
lhes resultariam péssimas conseqüências
24
.
O esforço do governador em circunscrever homens livres, pobres e pardos como os
únicos réus possíveis para o crime de lesa-majestade fez com que a coroa portuguesa
ordenasse a imperiosa punição exemplar sobre os partícipes da projetada revolução:
sejão estes Réos sentenciados em Rellação pello merecimento dos autos
devendo elles ser julgados com maior promptidão, e com a publicidade que
permitem as Leys [...] recebendo o merecido castigo pelos seos crimes,
uzando-se com elles de toda a severidade das Leys, tanto a respeito dos
Cabeças, como dos que aceitarão o convite; e dos que não denunciarão tal, e
enorme Crime, devendo para o futuro constar a todos que em tão grande
atentado o bem público, não sofre moderação alguma de pena ordenada pella
Ley.
25
Face às ordens da Coroa e das informações que os depoentes forneceram ao longo das
devassas, d. Fernando pondera sobre a necessária distinção na aplicação da pena, uma
vez que
consta haver varias classes de Réos, huns no numero talvez de quatro ou seis
reputados como principaes cabeças desta sedição, outros que posto o
fossem os autores prestaram o seu consentimento, e convidarão varias
pessoas, outros que aceitarão o convite e assistião aos conventiculos em que
alternadamente comparecião, outros que sendo convidados não denunciarão
como erão obrigados, e alguns, finalmente, que ainda nem aceitarão o convite
antes repugnarão, ou que foram meramente sabedores desta desordem,
tiverão a inconsideração de se calarem e guardarem segredo, ou por
assentarem que não terião effeito semelhantes projectos revolucionários, ou
por ignorância, se he que a podem alegar de faltarem a primeira, e a mais
23
D. Fernando José de Portugal e Castro era filho de uma família de fidalgos que servira à Coroa portuguesa
desde o século XVI. Formou-se em Leis pela Universidade de Coimbra. Foi membro do Tribunal da Relação
do Porto e Desembargador da Casa de Suplicação de Lisboa. Foi governador da Bahia durante os anos de
1788-1801, depois vice-rei (1801-1806) e, retornando a Portugal, presidiu o Conselho Ultramarino entre
os anos de 1806-1807. Em 1808, novamente no Brasil, foi nomeado por d. João VI, Ministro dos Negócios
do Reino, cargo que ocupou até a sua morte em 1817. Cf. REISEWITZ, Mariane. Dom Fernando José de
Portugal e Castro: prática ilustrada na colônia (1788-1801). Dissertação de Mestrado, São Paulo,
DH/FFLCH/USP, 2001.
24
Ibidem.
25
pia da Carta Régia de sua Majestade Fidelíssima, d. Maria I a D. Fernando José de Portugal e Castro.
ADCA, vol. 1, pp. 71-72.
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essencial obrigação de hum vassalo, estando por conseqüência incursos huns
em pena ordinária e Capital, e outros na de degredo, mais, ou menos grave,
por maior ou menor numero de annos, segundo diversos graos de imputação
que contra elles houver”
26
.
Assim, aos dezoito dias do mês de outubro de 1799, foram definidos os critérios para as
sentenças e o termo de conclusão da devassa instaurada para averiguar a “projectada
revolução”. Concluiu-se que alguns habitantes da cidade de Salvador tentaram executar
uma sublevação para subtrair o governo de Portugal. Para que se chegasse ao termo da
sublevação, as autoridades afirmaram que os partícipes elegeram chefes e cabeças que
eram
indivíduos das mais baixa [...] classe dos homens pardos, qualidade que lhes
era odioza pretendendo por isso extingui-la por meio da indistincta igualdade
a que aspiravão [...] fasendo disseminar ideas Livres e sentimentos
antipoliticos entre aquelles que suppunhão mais capazes e dispostos à segui-
los [...] as imaginarias vantagens, e prosperidades d’huma Republica
Democrática, onde todos serião Communs sem diferença da cor e nem da
condição, onde elles occuparião os primeiros Ministérios, vivendo debaixo
d’huma geral abundância, e contentamento
27
.
O relato minucioso do termo de conclusão demonstra que “inculcando ao mesmo tempo
de sabedores, e interessados na sua execução [convidaram] pessoas de tal
preheminencia, autoridade, e honra, que estas mesmas qualidades as excluem do mais
leve pensamento de infidelidade”, e, após um ano, em que machinavão a oculta
conspiração”, foram achados nas ruas, templos e igrejas vários pasquins, os mais
ímpios, atrevidos e sediciozos, que podia abortar húa imaginação esquentada e destituída
de lume da Religião, e respeito devido ao Sumo Imperante” que resultou na captura de
um “monstro de maldades. Após a primeira prisão, os desembargadores concluíram que
o encontro do dia 25 de agosto no Campo do Dique do Desterro ocorrera porque após as
declarações do então acusado, os partícipes por
receo de serem descubertos pelas Confissoens, e declaracoens do seu Sócio
e Amigo [Luiz Gonzaga das Virgens] e considerando-se em húa Crize
arriscadas, e perigoza, tomarão o partido de desenvolver todo o fel dos seus
projectos, procurando os meios de os adiantar, e reduzir a effectiva
execução
28
.
Concluiu-se que os culpados de crime de lesa-majestade de primeira cabeça, por
conspirarem contra a Coroa portuguesa, ao projetarem um levante no Campo do Dique
do Desterro, foram
26
Carta de d. Fernando José de Portugal a d. Rodrigo de Souza Coutinho. BN, Sessão de manuscritos.
27
ADCA, vol. II, pp. 1122-1123.
28
Idem, p. 1124.
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os infelices, e desgraçados RR [réus] Lucas Dantas de Amorim, João de Deos
do Nascimento, Manoel Faustino dos Santos Lira, Romão Pinheiro e o auzente
Luis Pires Condemnados a morte pelo Respeitável Acórdão [em branco],
assim como também o Tenente do 2. Regimento de Linha desta Praça
Hermógenes Francisco de Aguillar Condemnado em hum anno de prizão, e os
RR [réus] Manoel Jose da Vera Crus e Ignácio Pires condemnados em 500
açoutes, e vendidos para fora da Capitania
29
.
Luiz Gonzaga das Virgens, por sua vez, foi o único condenado de ser o autor dos pasquins
sediciosos afixados nas ruas da Salvador na manhã de 12 de agosto de 1798, pois se
concluiu que Domingos da Silva Lisboa não poderia ser autor dos papéis. A 7 de
novembro de 1799, o termo de conclusão da devassa instaurada para averiguar o autor
dos pasquins proferiu
Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este execrável reo Luiz
Gonzaga das Virgens, homem pardo, natural desta Cidade [Salvador], a que
com baraço, e pregão seja levado ate o lugar da forca, erigida para este
supplicio, e que nella morra morte natural para sempre sendo-lhe depois de
morto separadas as mãos, e cortada a cabeça, que ficarão postadas no dito
lugar da execução, ate que o tempo as consuma, no que foi condenado, e na
confiscação de seos bens para o Fisco, e Câmara Real, e nas custas por
Acórdão da Relação que outrosim declarou infame sua memória, de seos filhos
e netos, mandando outrosim que sendo propria a caza de sua habitação, seja
demolida, Salgada para nunca mais se edificar
30
.
Quanto aos escravos entregues por seus donos à justiça José Felix da Costa e Luís Leal,
que formularam culpa na devassa de Luiz Gonzaga das Virgens e depois foram indiciados
na devassa para averiguação da “projectada revolução”: um foi degredado para as
regiões da África fora dos domínios de Portugal e outro foi inocentado por ser
absolutamente isento de qualquer culpa”. Os escravos do secretário de Estado do Brasil,
José Pires de Carvalho e Albuquerque, por sua vez, tiveram suas penas aliviadas, pois
foram culpados pella falta de delatação do crime projectado, tendo delle noticia, a sua
ignorância os contistue na necessidade de merecerem o alivio referido. Sendo escravos
elles não podião saber da obrigação de delatarem
31
.
Em relação aos “abomináveis princípios franceses” que tanto preocupavam os agentes
metropolitanos, os desembargadores do Tribunal da Relação concluíram que apenas os
homens pardos eram sectários dos “perniciosos princípios”, pois, após as investigações,
as denúncias que davam conta de que algumas pessoas importantes também aprovavam
a doutrina, não procediam. Eram arroubos intelectuais de rapaziada impossíveis de
atalhar, pois não somente os impressos em que se baseavam eram de controle difícil e
29
Idem, p. 1144.
30
“Termo de concluzão, Notificação do Acórdão e Pregão para o reo Luiz Gonzaga das Virgens. ADCA, vol. 1,
pp. 175-176.
31
ADCA, vol.2, p. 1161 e 1191.
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circulavam livremente
32
. Se as autoridades não levaram adiante essas informações, é
porque não interessava à Coroa Portuguesa romper a parceria com um setor que lhe
dava base de sustentação para a exploração colonial na principal capitania da América
Portuguesa, razão pela qual as autoridades régias tinham muito interesse em
circunscrever a composição social do evento aos setores médios e baixos daquela
sociedade com o objetivo de deslegitimar socialmente qualquer projeto de nação de
cunho republicano.
Assim, na manhã quente de 8 de novembro de 1799, segundo o frei, as tropas de linha
ocuparam desde cedo a Praça da Liberdade, amplo quadrilátero localizado no centro de
Salvador. O povo curioso não parava de chegar. Estabeleceu-se um cordão de isolamento
entre a tropa e o patíbulo público construído especialmente para a ocasião. Pelas onze
horas, iniciou-se a procissão. À frente, banda de cornetas e tambores, seguida das
irmandades revestidas das suas opas e capas, de cruz alçada e com seus respectivos
vigários. Logo após, os condenados a degredo caminhavam de os atadas às costas,
precedidos do porteiro do Conselho, com as insígnias do seu cargo, seguido dos quatro
réus condenados à pena capital pelo crime de lesa-majestade de primeira cabeça,
acompanhados de dois frades franciscanos, além de todos os escrivães, meirinhos e o
porteiro do Tribunal da Relação da Bahia.
Seguiam-nos empunhando a bandeira de Portugal o Senado da Câmara, os vereadores,
os alcaides-mores e mirins, e o procurador do Conselho. Mais atrás, a irmandade da
Misericórdia e o carrasco, ostentando as insígnias de seu ofício. As gentes iam lotando
as janelas das casas para ver a procissão dos condenados. O cortejo percorreu as ruas
da Sé, desde o Terreiro de Jesus até o cimo da ladeira do Tira Preguiça, chegando em
frente à Piedade. Após o ruflar dos tambores, o meirinho-mor leu pela última vez os
pregões reais que anunciavam a morbidez com a qual os acusados seriam punidos por
serem considerados pelas autoridades régias os cabeças da “projectada revolução” que
instituiria um governo democrático no Brasil. Diante dos três regimentos pagos daquela
praça, postos em armas para prevenir qualquer acidente que pudesse originar em favor
dos réus, os condenados subiram ao cadafalso
33
.
O primeiro a ser enforcado foi Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Antes, segundo o
carmelita descalço, o réu o chamou para um “ato de protestação”, arrependendo-se de
seus atos, especialmente por ter desrespeitado a Igreja. A “admiração que cauzou a
todos o q’ dice Gonzaga foi singular”. O religioso afirmou que Luiz Gonzaga disse para
todos ouvirem eu confeço, q’este Pai piedozo [...] derramou não só por elles, mas
também por muitos o seu sangue para me salvar; neste espero o meu remédio [...]”.
Continuou sua confissão pública queixando-se do dano que lhe causaram as más
companhias, aconselhando a todas as gentes a fugirem delas, e pediu perdão por não
ter seguido os virtuosos conselhos que sua madrinha lhe dera. Terminou fazendo as mais
“ternas súplicas a Deus para qse dignasse salvalo (sic)”. Após a confissão, foi enforcado,
em meio à comoção das gentes diante de suas exclamações. Chorando muito após
32
In: Accioli, op. cit., vol. III, p. 133
33
Outra relação feita pelo P. Fr. Joze D’Monte Carmelo, religiozo carmelita descalço. Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Notícia da Bahia, tomo IV, Lata 402, manuscrito 69. Arquivo Histórico Ultramarino,
inventário Castro e Almeida, Bahia, documentos avulsos, caixas: 41 a 82. O documento “Outra relação...”
está integralmente transcrito na obra de Luís Henrique Dias Tavares. História da Sedição intentada na Bahia
em 1798 (A Conspiração dos Alfaiates). São Paulo/Brasília: Pioneira/INL, 1975, pp. 123-137, passim.
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presenciar o enforcamento de Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, João de Deus do
Nascimento pede que frei Jo se aproxime para “um fervoroso ato de contrição”.
Segundo o carmelita descalço, minutos antes de ser enforcado, João de Deus despediu-
se da vida dizendo ao “inumerável povo que se encontrava naquela praça” que
Sigao’ a ley [do] verdadeiro Deos, a Religiao’ Catolica he, a so e única
verdadeira, e tudo o mais he engano; quando eu a seguia sem dúvida alguma
vivia e nao’ (sic) bem ainda q’pobre, talvez independente, porem depois q’eu
dei ouvidos a uns cadernos, a um Voltaire, a um Calvino, a um Rousseau,
deixei o q’nao’ devera e por isso vim parar a este lugar. Senhores quem quizer
ser mau seja so para si, e nao’ convoque os mais. [...] Liberdade e igualdade
he isto apontando pª. a forca.
Ainda de acordo com o frei
dizia João de Deus a todos q’ o ouviao’ e sendo chegado o último momento
de sua vida, e emplorando de Deus misericórdia, e pedindo socorro dos
Sacerdotes; pedio também ao algoz q’ lhe desse uma boa morte. Então’ antes
que caísse do patíbulo, agitandosse (sic) até morrer, e gritando por Jesus
Maria, chaio ultimamente do patíbulo, acabando a última de suas palavras na
vida dizendo: misericórdia, misericórdia.
34
À execução dos outros dois réus seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de
Lucas Dantas foi degolada, assim como as dos outros três, e depois espetada em um
poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços foram expostos no caminho do Largo de
São Francisco, onde Lucas Dantas residiu. Em frente ao mesmo local, foi colocada a
cabeça de Manuel Faustino dos Santos Lira, por ser ele frequentador assíduo daquela
residência e por não ter endereço fixo. A cabeça de João de Deus foi exposta na rua
Direita do Palácio, atual rua Chile; suas pernas, os braços e o tronco foram espalhados
pelas ruas do Comércio, local de grande movimento da Cidade Baixa. No patíbulo ficaram
espetadas as cabeças e as os de Luiz Gonzaga, por ter sido considerado pelas
autoridades régias o responsável pelos pasquins que anunciaram à população a
“projectada revolução”. No dia seguinte ao mórbido espetáculo, os corpos expostos ao
calor davam sinais de rápida decomposição e atraíam uma revoada de urubus que
enchiam a cidade de emanações pestilentas. No dia 11 de novembro de 1799, o ar da
cidade era irrespirável; a podridão invadira todas as casas e a população temia por sua
saúde. Diante do precário estado sanitário da cidade, algumas autoridades e irmãos da
Misericórdia intervieram junto ao governador d. Fernando Jo de Portugal e Castro,
solicitando a retirada dos corpos mortos e expostos a mando da justiça para o exemplo
dos povos. O pedido foi deferido na madrugada do dia 15. Os despojos foram recolhidos
pelas autoridades e enterrados em local até hoje desconhecido (Valim, 2009: 14).
***
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O perigo do desvio da natureza humana, a paixão, as luzes da razão, como a possibilidade
de corromper o homem e o tecido social, parece ser uma das faces do relato laudatório
do frei que, ao se deixar arrebatar pelo conteúdo normativo da sociedade baiana do final
do século XVIII, converteu o milagre da misericórdia divina, após o arrependimento dos
condenados, como parte da dimensão política da punição exemplar. A dimensão política
conferida ao milagre da misericórdia divina é um dos desdobramentos da lógica da
punição exemplar. Além de o arrependimento dos réus em praça blica ter significado
a conversão dos mesmos, ele também significou uma confissão blica. Cabe lembrar
que na narrativa de frei José o arrependimento dos condenados ocorreu em momentos
de suplício dos mesmos. Significativas, neste sentido, foram as palavras finais de João
de Deus do Nascimento que disse entre muitas lágrimas”, no momento que seria
enforcado, sigao’ a ley de Deos, a Religiao’ Catolica [...] quando eu a seguia sem dúvida
alguma vivia bem ainda q’ pobre [...] Liberdades e igualdades he isto”, apontando para
a forca e sendo enforcado em seguida.
As punições exemplares no Absolutismo tinham em comum o fato de comportarem algum
tipo de sofrimento físico e, portanto, tinham por alvo o corpo (Foucault, 2009). Mesmo
nas formas de punições mais recorrentes, como o banimento, pode-se encontrar alguma
dimensão de suplício”, seja pela exposição, pela multa, pelo açoite ou marcação a ferro.
Longe de ser um procedimento selvagem, o autor nos chama atenção para o fato de que
o suplício é uma forma de sofrimento calculado, no qual o poder político procura
estabelecer publicamente relações causais entre o crime e a punição, de acordo com os
usos políticos que se pode ter nesse procedimento.
Como um dos últimos espetáculos punitivos do absolutismo português no Brasil, o
suplício dos réus da Conjuração Baiana de 1798 não corresponde apenas ao castigo
corporal, mas também e, sobretudo, a um ritual organizado de maneira a reforçar o
poder da monarquia portuguesa no Brasil
35
. O ritual do suplício expressa, portanto, a
suntuosidade da soberania, a força do monarca em seu exercício de direito. A morte dos
réus no patíbulo público da cidade de Salvador, com efeito, foi um espetáculo que
objetivou reafirmar a clivagem entre as forças do soberano e do súdito, uma vez que o
suplício dos réus narrados pelo frei José pode ser considerado como um modo bastante
eficaz de fazer funcionar, até um extremo, a dessimetria entre o súdito que ousou violar
a lei e o poder absolutista que faz valer sua força.
No entanto, em 25 de outubro de 1799, dez dias antes de ocorrer o enforcamento seguido
do esquartejamento dos corpos dos homens considerados réus da Conjuração Baiana de
1798, a coroa portuguesa enviou um Alvará ao Bispo de Olinda, José Joaquim da Cunha
Azeredo Coutinho, sobre a criação de um novo Regimento com sede em Recife e atuação
em uma vasta região, incluindo a Capitania da Bahia. O novo Regimento deveria ser
composto por 1600 homens, à semelhança do Arsenal Real do Exército, passando a
funcionar por meio de resoluções "em pública clareza". Além de atender a principal
demanda dos milicianos que participaram da Conjuração Baiana de 1798, estabelecendo
o pagamento de 200 réis de soldo diário, o Novo Regimento previa data de recebimento
de soldo, treinamento de um s para a tropa e concurso público para ascender na
35
Idem.
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O crime de lesa-majestade de primeira cabeça na Conjuração Baiana de 1798:
permanências na modernidade jurídica
Patrícia Valim
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carreira militar, com provas em cinco etapas e uma banca composta por três
examinadores: Tenente-coronel, Major e Capitão
36
.
Fato significativo na conflituosa transição do século XVIII para o XIX, a análise da
documentação do Novo Regimento a um só tempo a mudança de critérios típicos do
Antigo Regime para o princípio de isonomia na esfera pública e a solução de compromisso
que a coroa portuguesa estabeleceu com os milicianos que participaram do movimento,
atendendo suas principais reivindicações como forma de contenção dos insubmissos. Ao
transformá-los em “sujeitos de direito”, a coroa portuguesa reconheceu a legitimidade
da reinvindicação e da luta na esfera pública daqueles homens. Quando homens de
distinta condição social convocaram a população a aderir ao levante que instituiria um
governo republicano, eles romperam o círculo do fazer política restrito aos homens
virtuosos do poder, na tradição de Montesquieu, e embaralharam a clivagem entre quem
trabalha e quem faz política; entre quem manda e quem obedece; e quem ousou desviar
sua trajetória original.
A fratura causada pela radicalidade do discurso nos boletins manuscritos e da ação
daqueles homens dos médios e baixo setores fez com que as autoridades percebessem
que não bastava deixar os poderosos à margem das investigações para o
restabelecimento da ordem. Era preciso eliminar no interior desses setores o rastro dessa
experiência nas ruas de Salvador. Era necessário também reafirmar a superioridade
intrínseca da Coroa Portuguesa por meio da punição exemplar dos homens que ousaram
fazer política, questionando a ordem e propondo alternativas de futuro. No entanto, nada
foi como antes: após mais de um ano de investigações, a Coroa Portuguesa empreendeu
uma série de soluções de compromisso com a corporação dos enteados para criar um
consenso político em torno do qual esses homens aumentariam seus cabedais, seus
privilégios e poderes, e continuariam a constituir, na capitania da Bahia, a base social
para a manutenção da exploração colonial. Alguns dos escravos entregues por seus
donos à justiça foram condenados à pena de degredo, outros tentaram fugir dos 500
açoites no Pelourinho, outros, ainda, tiveram a pena comutada após o “auto de
justificação”, pois não denunciaram seus senhores.
As contradições dos conceitos de liberdade e igualdade são a síntese das ideias de
República formulada na Conjuração Baiana de 1798 e da própria crise do Antigo Regime
onde o novo e o velho conviviam em constante tensão, disputando espaços, ideias,
corações e mentes. A “República Bahinense” esboçada por aqueles homens e politizada
nas ruas de Salvador representou, antes de tudo, a possibilidade de todos os setores
fazerem política e elaborarem alternativas para o viver em colônia, conferindo cores e
ritmos próprios para a linguagem política da França revolucionária que na época atingia
vários domínios ultramarinos. A ética republicana do sentir-se livre anunciou, naquele
final de século conflituoso, que o homem poderia realizar sua humanidade na e pela
política e não mais pela religião ou apenas pelo trabalho.
A maior fragilidade da “República Bahinense” e dessa modernidade, contudo, residiu na
crítica conservadora à escravidão explicitada nos limites do projeto de libertar aquele
grupo de escravos e não acabar com a escravidão, conforme o depoimento do africano
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“1799 Formação do Batalhão e do Estado Maior para conter a Inconfidência Baiana”. Documentação de
fundo privado cedida para a pesquisa.
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permanências na modernidade jurídica
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Vicente. O escravismo como o limite do republicanismo possível e a distinção pela
capacidade como o limite da coalização política entre os setores daquela sociedade
sugerem que as ideias de liberdade e igualdade no universo colonial, no final do século
XVIII, podem estimular tanto as revoluções como as reformas para evitá-las, pois nesse
universo qualquer tentativa de diminuição das estruturais desigualdades soava como
Revolução.
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ÀS VÉSPERAS DO LIBERALISMO, BOA RAZÃO E PROVA DO DIREITO COMUM NA
AMÉRICA PORTUGUESA (1769-1808)
CLÁUDIA ATALLAH
clauatallah@gmail.com
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF, Brasil) e Professora Permanente do
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Possui graduação em História e Mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). É Doutora em História pela UFF, com a tese “Da justiça em nome d’El Rey:
justiça, ouvidores e inconfidência em Minas Gerais (Sabará, 1720-1777)”, publicada pela EdUERJ
(2016) com financiamento FAPERJ. Publicou as coletâneas Justiças, Governo e Bem Comum na
administração dos Impérios Ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII) com Junia Furtado e
Patrícia Silveira (2016); Estratégias de poder na América portuguesa: dimensões da cultura
política séculos XVII-XIX), com Helidacy Corrêa (2010).
Resumo
O artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa, ainda em andamento, que investiga
as formas pelas quais a justiça administrativa do império português era exercida no reino e
em seus domínios na América, em fins do Antigo Regime. Para tanto procurarei concentrar-
me nos impactos da Lei Máxima de 18 de agosto de 1769, mais tarde intitulada Lei da Boa
Razão, na América Portuguesa, considerando, mormente, a validade do direito comum e das
práticas consuetudinárias durante o período estudado (1769 a 1808). A referida lei,
promulgada pelo Secretário dos Negócios do Reino de Dom José I, Sebastião José de Carvalho
e Melo (Conde de Oeiras e Marquês de Pombal), instituía a obrigatoriedade do direito pátrio
e subjugava as práticas costumeiras então operantes por todo império.
Palavras chave
Direito comum, Reformas, Razão, Justiça, Minas Gerais
Como citar este artigo
Atallah, Cláudia (2021). Às vésperas do Liberalismo, Boa Razão e prova do direito comum na
América portuguesa (1769-1808). Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê
temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.DT0121.2
Artigo recebido em 12 de Abril de 2021 e aceite para publicação em 2 de Setembro de
2021
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Às vésperas do liberalismo, boa razão e prova do Direito Comum na América portuguesa (1769-1808)
Cláudia Atallah
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ÀS VÉSPERAS DO LIBERALISMO, BOA RAZÃO E PROVA DO
DIREITO COMUM NA AMÉRICA PORTUGUESA (1769-1808)
CLÁUDIA ATALLAH
Introdução
O texto que apresento aos leitores tratará do uso do direito comum na América
portuguesa após a instituição da Lei Máxima de 18 de agosto de 1769. Num primeiro
momento, se feito um balanço da historiografia sobre as reformas pombalinas. O
objetivo é compreender as cardinais interpretações acerca das transformações
promovidas por Carvalho e Melo durante seu período como Secretário de Estado e, da
mesma forma, analisar as leituras feitas pelos principais autores sobre o período pós-
pombalino. Mais à frente, analisarei a incidência da Boa Razão e da exigência do legalismo
jurídico sobre as dinâmicas cotidianas e do poder local a partir dos pedidos de prova do
direito comum que subiam ao Conselho Ultramarino, registrados durante o período
apontado (1770-1808) depositados no Projeto Resgate. As capitanias em investigação
são: Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (e as comarcas que as cortavam
territorialmente)
1
.
A historiografia das reformas pombalinas
A teoria acerca da gradativa centralização política operada nas monarquias modernas
durante as últimas décadas vem sendo problematizada. Alguns estudos propõem certa
pluralidade político-jurídico ao analisar as estruturas de poder do Antigo Regime
português. A intenção é rever as bases estruturantes de investigação ao observar as
conformações de auto-organização social medievais, bem como as relações de
interdependência e os indícios corporativos daquela sociedade. Esses debates sugerem a
ausência do Estado como entidade soberana no âmbito doutrinal e das práticas políticas
(Cardim, 1998). O debate em torno do assunto não esteve restrito a Portugal,
estendendo-se a toda Europa moderna. (Elliot, 1992; Ladurie, 1994; Greene, 1994)
António Manuel Hespanha nos demonstrou o quanto as práticas cotidianas se pautavam
em costumes consuetudinários e heranças tardo-medievais que avançaram quase
irretocáveis ao longo do tempo. Dessa forma, a coroa se adequou, ao longo da época
moderna, à essas estruturas de poder, buscando meios de fortalecimento dos laços de
1
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso Brasileira Projeto Resgate. Disponível em
http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
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interdependência com os vassalos, relações que pairavam no campo simbólico e
costumeiro (Hespanha, 1994).
O autor chamou a atenção também para a precariedade de aplicabilidade de mecanismos
de controle sobre as instituições de poder, tanto no reino quanto no mundo colonial
português. Funcionários régios, nomeados para fiscalizar as posturas camarárias e
exercer a justiça em nome do rei, quase sempre se envolviam nas tramas de poderes
locais, fato que tornava ainda mais complexo a administração e fiscalização à distância.
De qualquer forma, a governabilidade era, cotidianamente, exercida pelas instâncias
locais de poder, responsáveis pela seleção de seus representantes e pelo ônus municipal.
As leis estatutárias eram limitadas e ineficientes, mormente quando alargadas para fora
dos limites territoriais do reino. As relações administrativas e jurídicas cediam espaço a
moralidades e costumes, que demarcavam tempos as relações sociais e políticas e
envolviam os agentes régios no cotidiano administrativo local (Hespanha, 1994;
Hespanha, 2010).
Segundo Nuno Gonçalo Monteiro os anos que precederam ao reinado de D. José teriam
sido marcados por uma “mutação silenciosa”. Sob D. João V, os rituais e práticas de
sociabilidades foram redefinidos, reconfigurando novos simbolismos e nichos de
representações, reorganizando, assim, as formas de exercício de poder e das redes de
interdependência. Nesse aspecto, a monarquia assumiu posição central. E, segundo o
autor, um dos grandes focos dessa mutação a qual se refere é a reforma das Secretarias
de Estado em 1736. Essa nova configuração seria mantida até o reinado de D. José,
quando as secretarias alcançariam o status de ministérios, tal como as monarquias
vizinhas a Portugal. Nesse período de quase vinte anos (1736-1750), as relações entre
o centro administrativo e as conquistas tornariam a administração ainda mais complexa,
reforçando a importância dos agentes reinóis que exerciam seus cargos no ultramar.
Entretanto, em que pese todos esses argumentos, o autor afirmou que “as reformas mais
sistemáticas estavam por vir” e seria durante o secretariado do marquês de Pombal que
as esferas de intervenção da monarquia se alargariam consideravelmente (Monteiro,
2006: 36 e 37).
Em “O terramoto político”, José Manuel Subtil recorreu a uma metáfora, numa analogia
entre o sismo que assolou Lisboa em 1755 e a ascensão de Sebastião José de Carvalho
e Melo, o futuro Marquês de Pombal, à Secretaria de Negócios do Reino, em 1756. Após
examinar minuciosamente a composição das Secretarias de Estado, antes e após a
reforma de 1736, o autor chegou a uma conclusão bastante peculiar: as práticas que
demarcaram a política dos secretários ainda suscitavam os costumes políticos matizados
às relações pessoais o caros à política de Antigo Regime. “Quer isto dizer que em
nenhum momento do reinado de D. João V houve uma remodelação política do governo
e que mesmo o início do reinado de D. José não foi aproveitado para formar um novo
governo” (Subtil, 2006: 39).
A despeito dessa “mutação silenciosa”, Subtil (2006: 45) afirma que, no reinado de D.
João V, as relações sociais, tal como as estruturas políticas, eram ainda alicerçadas por
“ordens simbólicas” que tão bem representavam o patrimônio simbólico de Antigo
Regime. Na sua opinião, a centralidade régia que Lisboa passou a representar, nessa
época, possuía maior relação com a capacidade de ordenar a administração e suas
complexidades que emanavam das localidades continentais e do além-mar.
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Nesse sentido, as transformações operadas com a monarquia de D. José I representaram,
ainda segundo o autor, o “momento de ruptura política com o passado” (Subtil, 2006:
12). As incertezas e flutuações ocasionadas pelo terremoto de 1755 criaram condições
para que Sebastião José de Carvalho e Melo tomasse a frente da administração política
e elegesse as reformas como estratégia para a recuperação do país, tudo isso ao assumir,
em 1756, a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. A partir daí, as intenções de
superação da tradição corporativa e jurisdicional, que eram discutidas nos meios
intelectuais e diplomáticos lusitanos meio século, demarcariam seus planos
reformistas (Subtil, 2011).
Mais recentemente, António Manuel Hespanha nos deixou estudo fundamental para
compreendermos toda essa conjuntura de mudanças de paradigmas entre o século XVIII
para o século XIX no mundo ibérico. Analisando certo equilíbrio entre as fontes legais do
Direito e as doutrinais e sua persistência durante boa parte do século XIX, observou a
importância dos códigos modernos instituídos e como estavam “caucionadas com a
autoridade de um legislador que, se não estava ainda legitimado pelo voto, o estava
pela sua sapiência e pela autoridade do monarca, que a doutrina jurídica do pós-
iluminismo pressupunha” (Hespanha, 2017: 52). Seja como for, o autor demarcou muito
bem a complexidade que a influência das reformas assumiu durante esse período e, por
outro lado, a persistência de traços tradicionais na construção do Direito contemporâneo.
Sobre o tema, ainda que a historiografia sobre o tema parta de diferentes interpretações,
é unânime em reconhecer a incidência do período pombalino e de suas reformas sobre o
processo de modernização, para os moldes da época, sofrido pelas instituições
portuguesas setecentistas, às vésperas da Revolução Liberal de 1820.
As reformas na justiça e o cumpra-se da Lei Máxima de 18 de agosto de
1769
No que diz respeito à aplicabilidade das leis, o pombalismo buscou a construção do campo
jurídico, dentro de uma razão estatal e sob os auspícios das “forças reguladoras”
(Antunes, 2011: 18), a instrução e a norma, objetivando a retidão nos julgamentos das
causas
2
.
O ponto latente das pretensões reformistas na área do Direito e da justiça foi a Lei
Máxima de 18 de agosto de 1769, mais tarde intitulada Lei da Boa Razão.
3
Composta por
catorze itens, trazia, em sua estrutura, a pretensão de formalizar o direito português e
o alinhar à tutela do Estado. Um direito pátrio, forjado à luz do iluminismo e da
racionalização das instituições. Tal projeto abrigou-se sob a égide de um conjunto de
reformas comandadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, nomeado Secretário de
Estado dos Negócios do Reino em 1756 (Subtil, 2006; Pollig, 2017).
2
Pierre Bourdieu chamou a atenção para a ideia de campo jurídico: um lugar onde disputas são estabelecidas
pela garantia do “monopólio do direito de dizer o direito” configurando, desse modo, a “boa ordem”. Agentes
sociais, munidos de técnica e previamente reconhecidos, legitimam a interpretação dos textos que
“consagram a visão legítima, justa, do mundo social”. Segundo Bourdieu, é um processo que contempla
profissionalização, hierarquização e apropriações simbólicas. (Bourdieu, 2010: 212 e 213)
3
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Lei de 18 de agosto de 1769. A partir do comentário
crítico tecido pelo jurista José Homem Correia Telles em 1824, com o objetivo de contrapor ao pluralismo
jurídico típico do antigo regime que havia ficado para traz. (Telles, 1824.)
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O terramoto de 1755 criou a conjuntura necessária para uma espécie de “grau zero da
política”. Segundo José Subtil, a partir dali a autonomia do “grupo de criaturas de
Pombal” alavancou ligeiramente. A frente do delinear das providências a serem tomadas
estava alguns notáveis desembargadores que detinham a confiança do astuto secretário
dos Negócios do Reino. Após os quatro primeiros anos, ao sufocar alguns conflitos e
perseguições, Carvalho e Mello aniquilaria de vez o “grupo conservador que mantinha
influência na Corte” e inicia um consistente “ciclo de reformas” que abalou
profundamente as estruturas político-jurídicas do Antigo Regime (Subtil, 2013: 276).
Para o autor, tais reformas se estenderam ao período mariano-joanino e se desdobraram
no Estado de Polícia, “um Estado proto liberal” que estabeleceu um diálogo com alguns
“aspectos identitários do liberalismo” ao mesmo tempo em que instalou mecanismos de
disciplina reguladores da vida social, estabelecendo códigos de conduta que criavam
modelos de cidadania e de marginalidade (Subtil, 2020: 3).
Nesse aspecto, a Lei da Boa Razão significou a demarcação de um campo jurídico que
objetivava a profissionalização e especialização dos seus agentes, além do controle sobre
suas ações nos auditórios e nos cargos reinóis. Além da observância restrita das leis do
reino, fixava a jurisprudência a partir dos Assentos da Casa de Suplicação (Subtil, 2020).
O objetivo de tais medidas era proibir (ou ao menos aniquilar) as práticas costumeiras e
do direito comum que estavam arreigadas naquela sociedade há tempos.
A instituição da Lei de 18 de agosto também visava dirimir a autoridade intocável e
simbólica, até então inquestionável, do jurista. Baseada numa cultura do litígio, a
administração da justiça, durante o Antigo Regime, confundia-se, por vezes, com as
práticas políticas e possuía um espaço plural de atuação e de interpretações. Homens
cultos, formados sob a ética coimbrense e aos cuidados do neotomismo jesuítico,
bacharéis, corregedores e ouvidores tinham a consciência de representar a justiça real
e, em casos de conflitos e litígios, deveriam agir em nome da monarquia (Atallah, 2016).
Essa lógica, impregnada que estava do direito romano, impunha ao monarca a função de
mediador e dava forma à teoria “dos dois corpos do rei”: o corpo do monarca e o de
Cristo, “uma persona mista”, faziam-no responsável pela justiça divina e a dos homens
(Kantorowicz, 1998: 48).
De forma semelhante, a Lei de 1769 revogava a autoridade secular do direito canônico,
proibindo sua invocação nos auditórios civis, prática permitida pelas Ordenações e
habitualmente usada por juristas e oficiais da justiça. A partir daí, a utilização do Direito
canônico fica restrito aos tribunais eclesiásticos
4
.
Esse panorama de reformas e institucionalização de um racionalismo jurídico que vinha
atender aos interesses de um Estado forte e regulador e seu primado da lei (Hespanha,
1993) gerou conflitos e resistências por todo império português: acusações de
inconfidência por blasfêmias contra Pombal e(ou) D. José (Catão, 2005; Atallah, 2016);
ampliação das Ordenações Filipinas no que tange ao poder dos ministros e oficiais do
reino, transformando qualquer resistência a esses homens em crime de lesa-majestade
4
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Item 8. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
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de Segunda Cabeça
5
; condenação e execução por lesa majestade dos principais líderes
das rebeliões em Vila Rica e em Salvador (Furtado, 2002; Valim, 2018).
Quanto à Lei da Boa Razão, o cotidiano da América portuguesa teria dificuldades de se
adaptar, àquela altura, à imposição do legalismo racionalista. Os povos das conquistas
acreditavam poder gerir suas vidas a partir de códigos locais, regionais, enraizados
socialmente tempos. Tal perspectiva gerou embates jurídicos entre os auditórios
coloniais e o reino e, muitas vezes, envolviam os agentes da coroa que exerciam seus
cargos na banda ocidental do império português.
A prova do direito comum e o exercício dos costumes nas paragens
coloniais o caso das Minas
Em oito de maio de 1783, Dom Rodrigo José de Menezes e Castro, governador da
capitania de Minas Gerais, escrevia a Martinho de Melo e Castro, Secretário de Estado da
Marinha e do Ultramar do Reino de Portugal, para tratar do “estabelecimento na dita
capitania do direito costumário, oposto à disposição da lei”
6
.
Dom Rodrigo havia assumido o governo das Minas Gerais em fevereiro de 1780, umas
das capitanias mais importantes, no que diz respeito aos trânsitos mercantis e
populacionais, do império português. A região enfrentava, nessa época, um acirramento
da escassez aurífera e das dívidas ao fisco, o que era justificado, segundo as autoridades,
pelo aumento do contrabando e a lassidão como tal quadro era tratado. Também
enfrentara, há muito, o povoamento clandestino das regiões de sertões, panorama que,
ao final do século XVIII, somente se complexou (Rodrigues, 2003).
Eram tempos difíceis. Além de buscar meios de controle sobre a mineração e os
devedores dos impostos reais, o governador se viu às voltas com as indefinições
fronteiriças das minas de ouro, envolvendo-se num emaranhado de poderes locais que
desafiava os oficiais régios e impunha dinâmicas políticas e sociais próprias. Por toda a
América portuguesa, bandos comandados por homens que adquiriram certa prerrogativa
social e política nas localidades ao longo do processo de conquista incomodavam
profundamente os poderes instituídos (Anastasia, 2005). Em sua jurisdição, esteve
envolvido no desbravamento dessas terras de sertão e de suas redes. A intenção era
extinguir as áreas tidas como “proibidas” e integrá-las, política e socialmente, aos
domínios da coroa. Os sertanejos, até aquele momento marginalizados pela legislação,
deveriam ser transformados em fiéis vassalos
7
.
O historiador Charles Boxer foi um dos pioneiros a demarcar o grande êxito de Portugal
de Antigo Regime ao consolidar sua soberania em áreas tão desconectas e remotas entre
si. Um império marítimo: de uma ponta a outra do hemisfério sul, “as sociedades
humanas que floresceram e declinaram em toda a América, e em grande parte da África
5
Coleções da Leis, Decretos e Alvarás que compreende o feliz reinado Del Rei Fidelíssimo D. José o I. Tomo
II. Lisboa, Oficina Miguel Rodrigues, 1761 a 1769.
6
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
7
Arquivo Público Mineiro. Seção Colônia. Registro de Ofícios do governador à Secretaria de Estado. Códice
224.
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e do Pacífico, eram completamente desconhecidas dos que viviam na Europa e na Ásia”
(Boxer, 2002: 15).
Dom Rodrigo José de Meneses observou, com excelência, toda essa descontinuidade
territorial e política nas Minas e em seu entorno. Em suas reflexões escritas para Martinho
de Melo e Castro reconhecia, conforme dito acima, a utilização do direito costumeiro em
“quase todos os contratos das mais avultadas somas” julgados nas minas. Justificava-
o, porém, observando o quanto a América portuguesa era inóspita e como as grandes
distâncias que de uma a outras povoações” dificultavam “os contínuos tratos de
comércio interior que pede toda a rapidez nas suas operações”. Decerto, reconhecia a
inoperância das dinâmicas reinóis frente à descontinuidade daquelas terras, povoadas,
porém alheias, em grande parte, às leis escritas em voga
8
.
O governador fazia referência à Lei Máxima de 18 de agosto de 1769, promulgada por
Carvalho e Melo. Suas preocupações giravam em torno dos inúmeros contratos de vidas
e penhora que existiam na região e das dificuldades de julgar as cobranças judiciais sob
a nova lei. Ainda afirmava que
Quase todos os contratos das mais avultadas somas se celebravam por
simples obrigações particulares o que os ministros de Justiça vendo a geral
desordem que de contrário resultaria foram obrigados a dar a força de
Penhoras públicas julgando pela sua existência ou validade das maiores
dívidas e vendo na Relação confirmadas as suas sentenças
9
.
Portanto, e não com bases no parecer do governador, gostaria de levar o leitor a
refletir sobre as dificuldades de imposição das leis régias naquelas paragens, onde a
manutenção da ordem dependeu sempre de negociações entre os povos e os agentes
régios, as relações costumeiras ampararam certo equilíbrio precário que fazia o império
funcionar. Os ministros da justiça conviviam, cotidianamente, com a pluralidade da
justiça e com práticas jurídicas tardo-medievais que suplantavam, àquela época, as
reformas legislativas implementadas por Pombal.
Segundo D. Rodrigo, todo o panorama que descrevia em sua carta, ainda que desditoso,
fazia-se necessário devido às “circunstâncias” sob as quais viviam as minas. Os ouvidores
do rei, em suas correições e julgamento das sentenças, viam-se muitas vezes obrigados
a refletir quanto a aplicabilidade da lei e de suas interpretações.
não obstante a necessidade obrigada a seguir os princípios estabelecidos pela
serie dos tempos, contudo, ao Legislador pertencia atender às
Circunstâncias para derrogar ou declarar em todo ou em parte a Disposição
da Lei e conformando-se a ela deram algumas sentenças condenando na
parte em que a mesma Lei dá validade às ditas obrigações
10
.
8
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
9
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
10
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
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A retidão jurídica teria ocasionado o desaparecimento da “boa aparente entre os
homens”, além de consternar os credores, dificultando-os “demandarem os seus mais
temidos devedores com o receio de verem perdidos até a esperança os seus cabedais”.
Nesse universo costumeiro, perdia também a Real Fazenda. Segundo o governador, a
dificuldade de cobranças das dívidas prejudicava também os cofres reais, haja vista
“somas avultadíssimas” fossem perdidas pelas dificuldades de cobrança das querelas que
tramitavam no juizado dos feitos
11
.
Segundo as reflexões de D. Rodrigo, era de suma importância que a coroa reconhecesse
a necessidade de os ouvidores julgarem as querelas ancorados nas observâncias do
direito comum, sob a influência do direito romano, que séculos amparava a
aplicabilidade da justiça em Portugal e, ulteriormente, em seus domínios. Esse era o
cotidiano das minas e de todo império português.
A prova do direito comum foi um recurso cada vez mais utilizado pelos povos das
conquistas para resolver suas contendas judiciais. António Manuel Hespanha já afirmou
o quanto a lei era precária no universo jurídico de Antigo Regime. O “viver o direito
possuía relações com as condições sociais, culturais e políticas” das quais o direito
depende (Hespanha, 1993: 8). Durante a maior parte dessa época (séculos XVI e XVIII)
“teria se vivido” sob a guarida “do direito régio e o direito comum”, principalmente sob
a Glossa de Acúrsio, nos comentários de Bartolo e, mais tarde “na communis opinio dos
‘modernos’” (Hespanha, 2005: 49).
Ao alargar das fronteiras imperiais, as condições de governabilidade se complexaram,
devido às dificuldades de demarcação dos territórios e de seu conturbado controle.
Gustavo Cabral nos adverte que, em se tratando da análise do direito em terras luso-
americanas, “há dificuldades em se falar em um direito colonial brasileiro como uma
categoria geral válida como parâmetro amplo, tal qual ocorreu na América Hispânica
(Cabral, 2018). O espaço jurídico, na América portuguesa, se apresentou quase sempre
de forma fluida e precariamente definido por leis escritas. Segundo o autor, o chamado
“direito colonial brasileiro” pode ser entendido, seguindo um viés interpretativo adotado
por António Manuel Hespanha, a partir de um conjunto práticas, muitas vezes não
escritas, baseadas em costumes e nas decisões judiciais.
Ainda há de se considerar as prerrogativas políticas e sociais das quais os poderes locais
eram detentores. Interessante notar também que pouco do direito consuetudinário foi
registrado pelas comunidades políticas, apesar de as ordenações do reino
recomendassem que o fizesse
12
. Pouco dessas práticas costumeiras foi, ao longo do
tempo, sendo registrado nos livros de posturas das câmaras (Hespanha, 2005).
Na América portuguesa, pedidos de prova do direito comum já eram registrados pelo
Conselho Ultramarino desde fins do século XVII, embora menos usualmente. Conforme
encimado, embora a dispersão do império tenha sido uma constante a ser neutralizada
pelas autoridades régias, na maioria das vezes sem sucesso, a Lei da Boa Razão somente
11
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
12
Ordenações Afonsinas. Livro Primeiro. Título 27, Item 8. Disponível em
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/ Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Título 66, Item 28. Disponível
em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm Ordenações Manuelinas. Livro I. Título 46, Item
8 disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/
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instituiu o cumpra-se em 1769. A partir daí, observa-se um aumento significativo dessas
solicitações, conforme veremos.
Recomendava-se que a legislação do Reino, parcamente estendida aos domínios, fosse
aplicada pelos legisladores: o que deveria ser praxe nos auditórios do império, no
entanto, não era. O Projeto Resgate, que reuniu documentos relativos à administração
ultramarina, possui registros dessa prática anteriores a 1769. A maioria dos catalogados
por essa pesquisa teve suas solicitações deferidas pela coroa
13
.
Para a capitania das Minas Gerais registraram-se dois casos. Em vinte e oito de novembro
de 1726, Francisco Ribeiro, no “juízo geral da ouvidoria da vila de São João Del Rey (...)
ofereceu (...) um libelo contra o sargento mor Simão de Almeida Campos”. A contenda
girava em torno da propriedade de uma “negra” escravizada e de suas “crias”, que havia
recebido em dote pelo casamento com sua filha e estava em pose do sargento mor. O
noivo buscava retomar seu dote através de testemunhas, haja vista não “ter contrato”
que o comprovasse. Interessante notar que Francisco chamava a atenção, como D.
Rodrigo José de Meneses, para o fato de que a contenda corria na “forma que se
pratica naquelas conquistas”. Menciona a demora imposta pelas grandes distâncias, o
que dificultava a retidão legislativa.
Quadro 1 - Solicitações para Prova do Direito Comum (1770-1808)
Fonte: Biblioteca Nacional. Projeto Resgate. Biblioteca Luso Brasileira. Minas Gerais; Rio de Janeiro
e São Paulo. Disponível em http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
Em dezembro do mesmo ano, o ouvidor do Rio das Mortes, Thomé Godinho Ribeiro,
emitia parecer favorável ao pleito, confirmado em terceira instância em janeiro de
1727.
14
Noutro caso, José Fernandes Carreiros, morador da Vila de Mariana, requeria a coroa “a
mercê de lhe permitir exigir (...) segundo a prova do direito comum” a cobrança de uma
13
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. São Paulo Alfredo Mendes
Gouveia (1618-1823): 30 de outubro de 1710. Caixa 1; Documento 89. Bahia Luísa da Fonseca (1599-
1700): 7 de novembro de 1673. Caixa 14; Documento 1191 e 26 de janeiro de 1689. Caixa 12; Documento
1549. Bahia Avulsos (1604-1828): Anterior a 3 de setembro de 1720. Caixa 14; Documento 1191.
Disponível em http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
14
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate Minas Gerais (1680-
1832): Anterior a 20 de janeiro de 1727. Caixa 10; Documento 9.
Capitania
Comarca
Quantidade
Minas Gerais
Vila Rica
23
Rio das Mortes
4
Rio das Velhas
1
Serro do Frio
1
Sem Informação
7
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
81
Espírito Santo
1
Sem Informação
33
São Paulo
Sem Registros
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dívida de Francisco Rodrigues do Passo. Possuo poucas informações a respeito desse
processo, mas indícios que tal contenda se arrastava anos e recebeu parecer
favorável em agosto de 1748
15
. Como se e até onde a pesquisa realizada pôde chegar,
as solicitações de prova do direito comum anteriores à Boa Razão eram exíguas.
Ainda de se investigar, contudo, se todas as contendas tratadas sob a lógica
costumeira chegavam até os tribunais.
A partir do Quadro 1
16
, as solicitações de prova do direito comum, ou ao menos o registro
destas, multiplicaram-se após a instituição da lei de 1769. Considerando as capitanias
pesquisadas e as comarcas que as recortavam, Rio de Janeiro e Minas Gerais
concentraram grande parte desse material.
Epicentros de alguns dos maiores centros urbanos de toda América colonial, essas
capitanias estavam interligadas, àquela altura, por caminhos e fronteiras que definiam a
territorialidade administrativa e, ao mesmo tempo, delineavam transações clandestinas
que estavam alheias à administração reinol (Furtado, 2006; Oliveira, 2014). A comarca
do Rio de Janeiro era uma das maiores da América portuguesa. Criada em 1608, possuía,
no limiar do século XVIII, uma jurisdição que cortava boa parte do litoral do Estado do
Brasil. A norte, seus limites eram demarcados pela capitania da Paraíba do Sul dos
Campos dos Goytacazes, região de conflitos constantes, pois se dividia entre uma
administração distrital sob responsabilidade da capitania do Rio de Janeiro e a jurisdição
da comarca do Espírito Santo, da qual era termo (Cunha e Nunes, 2016; Atallah, 2019.).
A complexidade da governabilidade à distância e das tradições costumeiras ditava o
cotidiano das conquistas. As reformas empreendidas nos anos pombalinos e confirmadas
no período mariano-joanino seriam de difícil aplicabilidade nessas paragens, por vezes
as leis do reino não as alcançavam. E, como exímio administrador em nome do rei e um
astuto negociante dos equilíbrios de poder, Dom Rodrigo José de Meneses havia
percebido tal conjuntura.
Em sua carta ao conselheiro ultramarino, o governador solicitava a rainha Maria I
declarasse “a validade das referidas obrigações nesta Capitania pelo menos de todas as
que até agora se tem feito na boa fé”, pois “em que os credores se acharam de que por
elas tinham um Direito incontestável para requererem o seu reembolso”. Reconhecia que
De outro modo se viram repentinamente transtornadas todas as fortunas
particulares a Real Fazenda experimentará uma perda considerável e tirará
15
Como explicado no resumo, a pesquisa está sendo feita junto ao acervo digital do Projeto Regate, disponível
no site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate Minas Gerais (1680-1832): Anterior a
31 de agosto de 1748. Caixa 52; Documento 81. Importante registrar que Arno Wehling e Maria José
Wehling nos informam que esses documentos aqui analisados fazem parte da demanda que chegava ao
Conselho Ultramarino e que esses processos corriam, igualmente, pelos tribunais de Relação. Nesse sentido,
pode haver algumas distinções nos números aqui apresentados. A intenção inicial desse projeto que está
em andamento foi justamente identificar a demanda reunida pelo CU, principal Tribunal responsável pelas
contendas ultramarinas (Wehling e Wehling, 1997).
16
Agradeço aos bolsistas de iniciação científica do projeto de pesquisa Alexandre de Azevedo, Felipe Mathias,
Fernanda Figueiredo e Hiago Rangel a pesquisa e organização desses registros a partir do acervo relativo
às capitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo reunidos pelo Projeto Resgate. Agradeço à FAPERJ
e ao CNPq a concessão das referidas bolsas.
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utilidade a do devedor que se quiserem aproveitar do Benefício da Lei
cujo espírito não pode nunca dirigir-se a patrocinar Cavilações
17
.
Infelizmente o encontrei indícios de que esse clamor de Dom Rodrigo tenha sido
respondido pela rainha ou por Melo e Castro. No entanto, conforme demonstrado acima,
a coroa portuguesa costumava acatar as solicitações por prova do direito comum que
chegavam das conquistas.
Em agosto de 1779, anos antes da carta do governador das Minas, o alferes José de
Sousa Codeço requeria à rainha “provisão para apresentar sua prova do pagamento feito
a Francisco José de Fonseca do valor correspondente da compra do contrato dos dízimos
do Rio de Janeiro realizada com José Francisco de Almeida pelo direito comum.” O que
nos interessa, nesse caso, é a resposta dada pelo Conselho Ultramarino:
Não obstante que a graça pedida pelo alferes (...) seja a todos concessível e
V. Mag. a não denegue, por mais que as partes a impugnem, a que o
recorrente pede parece a deve V. Mag. denegar, vistas a forma o súplica, e a
porta que com ela pretende franquear, para as suas bem conhecidas
iniquidades.
18
Ao que parece, o alferes Codeço era bastante conhecido das autoridades por “suas
intrigas, as falsidades de que era mancomunado com outros a defraudar os negociantes
do Rio de Janeiro”. O Conselho também o acusava de criar falsas escrituras e apresentar
falsas testemunhas. Mais a frente, afirmava que
V. Mag. costuma dispensar na Lei do Reino para se provarem os [litígios] por
testemunhas os contratos que por blica escritura se celebram, quando os
recorrentes o de boa e, com a mesma, declaram na súplica quais as
testemunhas que produziram ou querem produzir
19
.
O Conselho Ultramarino reconhecia o costume de conceder provisões que dispensavam
os súditos da retidão das leis do reino. Porém, não deixava de analisar as súplicas que
lhe chegavam. Podemos supor, com bases nas afirmações colhidas no documento
apresentado acima e nas justificativas descritas pelo governador, que a sua carta tenha
recebido uma resposta positiva do Secretário de Estado do Ultramar, Martinho de Melo e
Castro.
Conclusão
Gostaria de chamar a atenção para os conflitos gerados pelas imposições institucionais
advindas das reformas de Pombal. O império, com suas dimensões marítimas e
17
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento. 31.
18
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 11 de agosto de 1779.
Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
19
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Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
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descontínuas, estava sob a égide de um conjunto de leis insuficientes que tornava a
administração central frágil e dependente dos agentes régios e dos poderes locais, bem
como de seus rearranjos políticos. Essa governabilidade dependia do equilíbrio, quase
sempre precário, entre essas negociações e as dinâmicas locais e regionais que
demarcavam o cotidiano. As solicitações de prova de direito comum, sobretudo com o
beneplácito de um experiente governador que convivia tempos com os povos da
conquista e suas experiências, pode nos ajudar a compreender parte dessa conjuntura.
Sua justificativa para tais práticas reflete as mutações pelas quais passavam a política
administrativa imperial ao atravessar o Atlântico. Da mesma forma, acende uma luz
sobre a pertinência da longevidade e da problematização (cada vez mais presente na
historiografia a respeito) das reformas promovidas por Pombal, a partir do reinado de
Dona Maria.
Referências
Fontes manuscritas
Biblioteca da Universidade de Coimbra:
Coleções da Leis, Decretos e Alvarás que compreende o feliz reinado Del Rei Fidelíssimo
D. José o I. Tomo II. Lisboa, Oficina Miguel Rodrigues, 1761 a 1769.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate:
Bahia Luísa da Fonseca (1599-1700): 7 de novembro de 1673. Caixa 14; Documento
1191 e 26 de janeiro de 1689. Caixa 12; Documento 1549.
Bahia Avulsos (1604-1828): Anterior a 3 de setembro de 1720. Caixa 14; Documento
1191.
Minas Gerais. 8 de maio de 1783. Caixa 119, doc. 31.
Minas Gerais (1680-1832): Anterior a 20 de janeiro de 1727. Caixa 10; Documento 9.
Minas Gerais (1680-1832): Anterior a 31 de agosto de 1748. Caixa 52; Documento 81.
Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
São Paulo Alfredo Mendes Gouveia (1618-1823): 30 de outubro de 1710. Caixa 1;
Documento 89.
Arquivo Público Mineiro
Registro de Ofícios do governador à Secretaria de Estado. Seção Colonial, Códice 224.
Fontes Impressas
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http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Lei de 18 de agosto de 1769. A partir
do comentário crítico tecido pelo jurista José Homem Correia Telles em 1824, com o
objetivo de contrapor ao pluralismo jurídico típico do antigo regime que havia ficado para
traz. Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
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Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. tulo 66, Item 28. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
Ordenações Manuelinas. Livro I. Título 46, Item 8. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
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OS “CONTOS LOUCOS” E AS “FANTÁSTICAS CARRANCAS”:
O VINTISMO VISTO DE PERNAMBUCO
MARIA DO SOCORRO FERRAZ
slinsferraz@uol.com.br
Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE, Brasil), com estudos doutorais na Universidade de Bielefeld, de 1974 a 1980 sob
orientação do Professor Johannes Helweg. Doutorou-se em História em 1992 na Universidade de
São Paulo, sob orientação do prof. José Jobson Arruda. Professora Visitante na Faculdade de
História e Geografia da Universidade de Salamanca/Espanha, durante o primeiro semestre de
2002. Entre suas publicações, destacam-se: Sertão Fronteira do Medo (Ed. UFPE, 2015);
República Brasileira em Debate (Ed. UFPE, 2010); Fontes Repatriadas, anotações de História
Colonial (Ed. UFPE, 2006); Sertão um Espaço Construído (Ed. Universitária Salamanca, 2005);
Caneca, Acusação e Defesa (Ed. UFPE, 2000); Liberais & Liberais (Ed. da UFPE, 1996).
Resumo
Este artigo trata de questões relacionadas aos conflitos entre liberais monarquistas e liberais
republicanos, na província de Pernambuco, no período que antecede a Revolução do Porto
1820 até o momento da Independência do Brasil. Salienta as dificuldades da elite colonial em
tratar administrativamente e politicamente com os dois centros de poder: Rio de Janeiro
versus Lisboa, Pedro versus D. João VI.
Palavras chave
Liberalismo, Constitucionalismo, Elite, Pernambuco, Conflitos
Como citar este artigo
Ferraz, Maria do Socorro (2021). Os “Contos Loucos” e as “Fantásticas Carrancas”: O Vintismo
visto de Pernambuco. Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos
depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha]
em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.3
Artigo recebido em 28 de Julho de 2021 e aceite para publicação em 30 de Setembro de
2021
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Os “contos loucos” e as “fantásticas carrancas”: o vintismo visto de Pernambuco
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OS “CONTOS LOUCOS” E AS “FANTÁSTICAS CARRANCAS”:
O VINTISMO VISTO DE PERNAMBUCO
MARIA DO SOCORRO FERRAZ
O historiador Carlos Guilherme Mota definiu o momento marcado pelos movimentos
insurrecionais, que se alastraram pelo país nas primeiras décadas do século XIX, como
um “segundo descobrimento do Brasile destaca entre esses movimentos a Revolução
de 18l7, como o ápice de um processo de descobrimento (Mota, 2016: 252). Nesse
sentido, se o Sul se descobre nos projetos de inconfidência dos árcades, dos mineiros,
paulistas e cariocas, na verdade, é no Nordeste que vamos ter a insurreição mais forte,
quando no Brasil se inicia a discussão sobre a forma de governo que teremos, com a
possível independência do Reino unido a Portugal. A elite pernambucana apresentará,
através dos escritos do Frei Caneca (Caneca 1875 e 1976) o modelo de nação mais
radical. A influência das ideias ilustradas vinha de longe.
Em 1798, D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro da Marinha e Ultramar apresentou, um
programa de reformas
1
à Junta de Ministros de Portugal pautado nas idéias moderadas
do Abade Raynal, no liberalismo de Adam Smith, nas ideias do Bispo Azeredo Coutinho
experimentadas durante o período em que exerceu o cargo em Pernambuco e em Elvas,
Portugal. Nesse programa foram realçados alguns pontos: a crise do sistema colonial
articulada à conjuntura mundial e, à inquietação na colônia. Azeredo Coutinho havia
indicado que a integração da metrópole com o Brasil se impunha, sendo uma iniciativa
que reforçaria os laços entre a colônia e a metrópole. A perda de uma colônia da categoria
do Brasil abalaria a existência não apenas da metrópole, mas sobretudo da monarquia
portuguesa e provavelmente da autonomia da nação portuguesa.
Na opinião dos reformistas, Portugal deveria criar dois centros de força política no Brasil:
um no norte e outro no sul, de forma que os dois pudessem representar o poder
português e se auxiliar mutuamente; mudanças na taxação improdutiva deveriam
acontecer, pois, muitas queixas dos colonos se relacionavam com impostos cobrados
confundidos com extorsão, prática de funcionários autoritários e eticamente duvidosos;
expedições científicas para desbravar o Brasil e conhe-lo melhor em suas riquezas
estavam previstas. A exploração dos recursos existentes e o experimento de novas
culturas, no Brasil, faziam parte da nova política, que tentava inserção nas mudanças
produzidas pela revolução industrial.
1
Discurso pronunciado perante a Junta de Ministros e outras pessoas sobre assuntos referentes ao
desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil (Lyra,
1994: 245).
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Em 1788, Portugal recebia amostras de café produzido no Brasil. Em 1795 se iniciava
a exploração de minério de ferro em Bonito, na capitania de Pernambuco. Em 1798, o
governo português procurava informações sobre a cochinilha
2
e recomendava a criação
de um Jardim Botânico para o cultivo e reconhecimento de plantas para os mais diversos
destinos. Em 1801, se enviava, de Pernambuco para Portugal, mudas e sementes da
árvore do sândalo. E, com a presença do Príncipe Regente, no Brasil, em novembro de
1812, um Aviso Régio ordenava ao Governador da Capitania de Pernambuco que
remetesse varas de parreira às quintas reais em Lisboa, por todos os navios que se
destinassem àquele porto. Em 1813, do Jardim Botânico de Olinda foram remetidas 100
varas de parreira
3
.
Dentro desse projeto de descobrir riquezas no Brasil e melhorar os métodos e as técnicas
de exploração estaria a formação de nacionais como José Bonifácio, que estudou
mineralogia na Alemanha e de Manuel de Arruda Câmara, considerado pelo historiador
José Antonio Gonsalves de Mello, o “representante modular da geração ilustrada do final
do século XVIII” (Mello, 1982: 58). Manuel de Arruda Câmara, doutorou-se em medicina
pela Universidade de Montpelier e fez importantes estudos na área de botânica. Pertence
a uma geração que se debruçou sobre ciência, política e economia do Brasil, consciente
de sua contribuição para a nova sociedade que surgia. Arruda Câmara aplicou resultados
de pesquisas de ponta, da sua época, realizadas na França, desmistificando a crença que,
o aumento da colheita poderia se dar pela fermentação de qualquer qualidade de grão.
A mentalidade portuguesa ilustrada da época compreendia que o debilitado império
colonial poderia se transformar no novo império articulando-se com sua colônia
americana visando sustentar a monarquia e outros domínios ultramarinos.
No rol das reformas propostas pelo Ministro Rodrigo Coutinho indicava-se a fundação do
Seminário de Olinda, em 1796, proposto mais como Colégio para jovens do que um
seminário formador de religiosos; dois anos depois, para dirigi-lo o Governo português
designou um homem ilustrado, nascido na vila de São Salvador dos Campos dos
Goitacazes, em 1742, na capitania da Paraíba do Sul, e educado em Portugal, o bispo
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Em Pernambuco, o bispo Azeredo Coutinho
exerceu várias funções e em todas se destacou como um ilustrado português de sua
época, defensor da monarquia e de reformas limitadas ao despotismo esclarecido. Os
trabalhos do Seminário foram iniciados no ano de 1800.
O bispo Azeredo Coutinho
4
escreve ao Príncipe Regente, sobre o seu desempenho na
capitania de Pernambuco não apenas para expor suas atividades religiosas, mas como
diretor geral de estudos no Seminário de Olinda, como governador interino da capitania
de Pernambuco e presidente da Junta da Fazenda em Pernambuco. Na prestação de
contas ao seu Príncipe ele descreve suas ações e realizações coerentes com o
pensamento ilustrado da época: providenciou a redução de curatos à igrejas matrizes;
fez um estatuto para instruir a mocidade portuguesa, em todos os principais ramos da
literatura, destinado não apenas para os eclesiásticos, mas para todo cidadão que se
propunha a servir ao Estado; estabeleceu um seminário para jovens do sexo feminino
2
Vegetal utilizado na tintura de tecidos.
3
Estas informações sobre o trânsito de culturas recém-descobertas ou recém-exploradas no Brasil são dadas
por F. A. Pereira da Costa (1951) In Anais Pernambucanos. Recife: Imprensa Oficial.
4
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Carta de 20 de janeiro de 1816. Cartas que o excmo. bispo d'Elvas,
don José Joaquim da Cunha d'Azeredo Coutinho, escreveu aos excmos. generaes inglezes que mais
concorrerão para a restauração de Portugal. Por Coutinho, José Joaquim da Cunha de Azeredo, 1742-1821.
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com estatuto destinado principalmente àquelas que queriam ser mães de família;
reconciliou quatro nações de índios rebeldes com o Estado e a Igreja; informou
claramente, em sua carta que, como governador não consentiu que os ricos oprimissem
os pobres; comenta sobre a escassez e a carestia da carne verde no Recife e Olinda, e,
a abundância dessa mercadoria nos sertões. Para solucionar esta disparidade propõe a
abertura de uma estrada geral de comunicação entre Olinda e os Sertões, para que o
gado pudesse chegar ao litoral, encontrar bons mercados e supri-los. Preocupou-se em
demonstrar a D. João a necessidade do funcionamento de uma boa alfândega para se
evitar furtos e roubos; comprou uma fragata pequena e armou-a para enfrentar os
piratas que infestavam as costas de Pernambuco; pôs telégrafo e sentinelas por toda a
costa para vigiarem navios inimigos; combateu a fome nos sertões. Como Presidente da
Junta da Fazenda de PE arrematou as rendas da Fazenda Real por produtos e por
freguesias.
As investidas da metrópole em modernizar a Colônia atingiam, também, uma esfera não
muito privilegiada na época o lazer. Para espanto da população, um aviso ao Governo
de Pernambuco comunicava a concessão que foi dada a Francisco Antonio Todi,
empresário do teatro o Carlos, em Lisboa, para estabelecer uma Casa de Sortes na
cidade de Olinda. A concessão, que recomendava cautela e inspeção pública, traduzia a
nova mentalidade, que se queria introduzir na Colônia
5
.
Enquanto Portugal conduzia o soerguimento do Império a partir de uma política de
integração com sua colônia americana, por entender a sua fragilidade diante de nações
mais poderosas como França e Inglaterra, os conflitos entre estes dois impérios
acabaram por impor ao governo português uma decisão, que há muito tempo havia sido
pensada, entre seus dirigentes, mas protelada.
A vinda da família real e o deslocamento do aparelho de estado português para o Brasil
podem ser avaliados como uma ação positiva de longo alcance para o futuro próximo
brasileiro; enquanto para a nação portuguesa esta mesma ação a colocou diante da
tragédia de ter o seu território ocupado por franceses, por ingleses, por espanhóis, enfim,
pela guerra, penúria... O próprio Ministro Souza Coutinho já havia comentado, em 1803,
sobre a possibilidade da criação no Brasil de um poderoso império. A opinião do Marquês
de Belas
6
sobre esta conjuntura é bastante esclarecedora: “Fechadas as portas do
continente pelos franceses por dentro e, pelos ingleses por fora”, não havia alternativa
para a monarquia portuguesa, naquela conjuntura, a não ser migrar para o Brasil.
No jogo político e econômico, entre a França e a Inglaterra, o Regente D. João VI ao
chegar ao Brasil tomou decisões favoráveis a Inglaterra, que seriam também do interesse
brasileiro em curto tempo. Independentemente do esforço para manter as forças que
sustentavam o Império, o bloco do poder dava sinais de desagregação; eles não surgiram
tão explicitamente do aparelho do estado, apareceram com mais vigor da sociedade civil.
(Valentim, 1993: 392).
As decisões tomadas na Colônia pelo Príncipe Regente, como a Abertura dos Portos, a
assinatura do Tratado de Navegação e Comércio de 1810 e a elevação do Brasil à
categoria de Reino Unido, possibilitaram a ruptura do bloco do poder. Os ofícios dos
5
Costa, F.A.P. da (1983). Anais Pernambucanos, vol.X. Recife, FUNDARPE.
6
“Memória do Marquês de Belas”, sem data, citada por Ângelo Pereira (1953). D. João VI Príncipe e Rei, vol.
III, p. 40, Lisboa, Editora Empresa Nacional de Publicidade.
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Governadores do Reino são as melhores denúncias desta desagregação, que trouxe
diferentes resultados aos seus sustentadores: positivos para a burguesia
senhorial/colonial e, negativos à burguesia e aristocracia metropolitanas.
Mesmo sendo positivos os resultados relacionados ao Brasil, a distribuição dos mesmos
não se deu de forma homogênea. Na desagregação do bloco do poder, a Capitania de
Pernambuco jogou um papel diferente das outras capitanias, que se dividiram entre o
poder do Rio de Janeiro e o poder de Lisboa.
Chega a Pernambuco, em 1804, Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Era Governador
em Cuiabá e fez este deslocamento por terra, cobrindo uma distância de 670 léguas. Em
1805, foi nomeado governador de Angola. Um abaixo-assinado de moradores da
capitania de Pernambuco pede ao Príncipe Regente a sua permanência, no que é
atendido. Até a chegada da família imperial no Brasil o Governador Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, é visto como homem probo, bom administrador, seu caráter era
elogiável; durante dez anos governou com prudência; não arriscou grandes inovações,
mas permitiu alguns melhoramentos; ouviu queixas dos pobres e dos ricos. Era
considerado um “homem justo”.
Ajudava à administração do Caetano Pinto de Miranda Montenegro as mudanças
realizadas pelo governo do Príncipe Regente. Por exemplo, as franquias comerciais
outorgadas por D. João começavam a mudar hábitos e costumes da sociedade colonial.
O escrivão da Mesa Grande Caetano Francisco Lumachi de Melo comenta, no seu
relatório, que antes de 1799 os rendimentos da alfândega eram muito mais baixos. De
1799 a 1810 esses rendimentos quase que triplicaram e até 1823 montam mais de um
milhão
7
.
No início do século XIX, Pernambuco disputava com a Bahia ora o segundo ora o terceiro
lugar nas importações e exportações; o Rio Janeiro continuava preponderante.
Em 10 de março de 1808, Caetano Pinto de Miranda Montenegro é chamado ao Rio de
Janeiro, por seu soberano e permaneceu até setembro do mesmo ano. Na sua volta
trouxe para si uma comenda da Ordem do Cristo e outra regalia a de Cavaleiro de Capa
e Espada do Conselho da Fazenda, mas para o povo pernambucano uma bagagem pesada
de impostos: o imposto da décima das casas, o imposto das heranças e legados, a
administração do dízimo do açúcar e o projeto de D. João, o Príncipe Regente, para
invadir Caiena na Guiana Francesa e, outros vexames para garantir o fausto da Corte,
despesas que gravavam o tesouro nacional.
Apesar da boa arrematação das rendas de Pernambuco, do ponto de vista de alguns
produtos, principalmente o açúcar, pode-se falar em decréscimo das rendas, diante das
despesas, inclusive as despendidas pela ocupação de Caiena pelas tropas. A situação
social era de opressão por causa dos impostos. Portugal declara guerra a França,
prepara-se para ocupar Caiena e exige dos pernambucanos 1000 homens para esta
expedição militar. O Governador compartilha com esta nova política tributária. O padre
Dias Martins observou que ele voltou do Rio de Janeiro com a incumbência de enviar a
Corte todo o dinheiro da Província, sem pensar nas obrigações com os credores. Aliás,
estes impostos foram gerais a todo país. Contudo, o governador Caetano Pinto oficiou ao
7
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Relatório do escrivão da Mesa Grande Francisco Lumachi de Melo
apresentado ao Governo do Rio de Janeiro. Registro de Correspondência 1808/1833, CGPP 9, 50.
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Príncipe Regente sobre a inconveniência de ao mesmo tempo cobrar mais impostos e
arrancar das famílias os seus sustentadores ou entes queridos. Apesar da reação dos
pernambucanos, foram enviados 300 homens para a ocupação de Caiena, em 1809.
A situação do Brasil era de déficit contínuo e a de Portugal de completa degradação:
pilhado, com o seu comércio interrompido e os campos desertos. Em julho de 1811, o
Príncipe Regente mandou levantar um empréstimo no Reino, dando como garantia de
pagamento as rendas das províncias da Bahia, Pernambuco e Maranhão, com o intuito
de restaurar a indústria e a lavoura de Portugal. Na opinião de Hipólito da Costa este
empréstimo contraído no Reino o empobrecia, pois o dinheiro conseguido em metal
escoaria para o bolso dos americanos e outros comerciantes. (Costa, 2001).
Em 1812, a situação econômico-financeira e sociopolítica em Portugal era muito difícil.
Em Lisboa, o desconto do papel moeda era de 25%, dada a evasão da moeda metálica,
trocada por mercadorias estrangeiras, principalmente as dos Estados Unidos. Até as
remessas de libras de Londres para pagamento das tropas inglesas e das nacionais
terminaram por também caírem no bolso dos negociantes americanos. Uma lei proibia a
saída do ouro e da prata. Inútil. Segundo as opiniões da época, incentivar o comércio
com o Brasil seria a única chance de Portugal ter sua moeda de volta.
No final de 1812, o déficit de Portugal era de 12 milhões de cruzados. Além da compra
de alimentos, a despesa com gastos militares pesava sobre as finanças. D. João tenta
um empréstimo com a Inglaterra, mas não consegue. Restou-lhe a venda dos bens livres
da Coroa.
8
Havia uma desordem nas finanças. A marinha tinha mais oficiais que vasos de guerra.
No Brasil, não se pagava mais em dia as letras de câmbio, os juros dos empréstimos e
nem ao funcionalismo, apesar de rasparem todos os cofres, incluindo defuntos e
ausentes, na linguagem de Hipólito da Costa (2001). Fazia as contas do que se apurava
nas Capitanias, e sugeria o seguinte: recolher os saldos das Capitanias, calculado em
1530 contos ao Erário, pagando-se suas despesas através do Banco do Brasil; as
despesas do Brasil deveriam ser diminuídas e a receita aumentada. A velha fórmula. Rio
de Janeiro, Bahia e Pernambuco tinham as melhores receitas, portanto estas deveriam
ser gravadas. O Governo deveria taxar pesadamente as importações.
E o Tratado de 1810, permitiria? Como reagiriam os governos de além e aquém mar?
A regência de Lisboa proibiu a saída dos metais; o governo do Rio de Janeiro fez o mesmo
para as outras províncias do Brasil. Os pagamentos seriam feitos em letras sobre o Banco
do Brasil ou negociantes, resgatáveis nas respectivas praças.
As mudanças nas taxas de importação foram bem mais tarde e muito tímidas. Tendo o
Rio de Janeiro se transformado no centro das atividades mercantis estaria mais implicado
num processo de dependência com a Inglaterra do que Pernambuco, que nesta
conjuntura optou por se preparar para sair do Império. Os negociantes do Rio de Janeiro,
em fins do século XVIII, constituíram-se em um grupo de pressão, independente dos
homens da aristocracia rural os grandes proprietários de terras. Pelo volume de
8
Pela Carta Régia de 13 de dezembro de 1812, D. João autoriza a venda de bens livres da Coroa para socorrer
despesas, que estavam insolventes. Índice das Cartas de Leis, Alvarás, Decretos e Cartas Régias de 1812.
Disponível em
http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/18322/colleccao_leis_1812_parte1.pdf?sequence
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negócios que faziam, puderam acumular capital e fornecer crédito ao Rei e aos
proprietários rurais.
A posição dos comerciantes do Rio de Janeiro é bem superior à dos comerciantes de
Pernambuco. Mais abastados que os pernambucanos e com maior prestígio social, eram
até agraciados com a ordem de Cristo, que lhes conferia status aristocrático. os
negociantes de Pernambuco, massacrados pela Companhia de Comércio da Paraíba e de
Pernambuco, somente se enobreciam, caso se tornassem proprietários de terras e não
estavam familiarizados com o sistema de créditos e juros.
A Revolução Pernambucana de 1817 é fruto desses novos padrões instituídos pelo projeto
de reformas de Souza Coutinho e pela conjuntura da época. Liderada pelos
pernambucanos, mas com importantes apoios na Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte
é um bom exemplo dessas fissuras, que aos poucos foram minando o Império. Para se
ter uma ideia dessas rachaduras, em uma Proclamação de Caetano Pinto de M.
Montenegro aos pernambucanos, em 05 de março de 1817, portanto às vésperas da
Revolução, reafirma a intenção do rei em reunir os reinos e denuncia os infiéis, conforme
podemos conferir:
Pernambucanos: tranquilizai vossos ânimos, não deis ouvidos a vozes e
rumores encarecidos: algumas palavras inconsideradas proferidas em
excesso de alegria, não decidem do caráter dos homens nem os fazem infiéis
e traidores. Sua majestade acaba de unir em um todos os seus reinos:
esta feliz união deve difundir-se do seu real com os nossos. Que fundamento
pois poderia ter esses partidos em que alguns malvados vos pretendem
dividir? Todos somos portugueses, todos somos vassalos do mesmo
Soberano, todos somos concidadãos do mesmo Reyno Unido: nem os homens
se distinguem pelo lugar do nascimento, porém pelo amor e fidelidade ao seu
Rey, e a sua Pátria, sendo esta a honrosa divisa dos portugueses pelos seus
talentos, virtudes e exatidão com que cumprem seus deveres
9
.
Em resposta às inúmeras proclamações dos governantes leais ao Rei, os revolucionários
fazem publicar também proclamações Veremos uma, já no final da Revolução a de 15
de abril de 1817:
Quem quer que vos sois
Vieram-nos a mão as vossas proclamações dignas de quem as faz e digna de
quem as espalha. E admiramos a graduação das vossas ameaças: em a
primeira, em 21 de março, vos contentáveis de nos tratar de indignos; nas
duas de 29 de março passam a tratar-nos de infames, desprezíveis e outros
epítetos que de certo mais vos pertencem que a nós. Requereis nosso
assassino e prometeis passar tudo a espada se não instaurarem as Leys do
vosso bom Rey, vede quão diferentes somos nós, não vos aborrecemos, não
vos odiamos, mas daremos assassino por assassino, fogo por fogo e guerra
por guerra. Não vos tememos, vinde, desembarcareis e experimentareis o
que são homens livres. Em paga das vossas três proclamações vos
9
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Documentos Históricos: Revolução de 1817(1954) v. CVI
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remetemos outras três e adverti que se algum dos nossos jangadeiros sofrer
algum insulto temos em nossas os vossos Marechais, Brigadeiros, e oficiais
que pagarão cabeça por cabeça.
Casa do Governo Provisório em Pernambuco, 15 de abril de 1817.
Assinam: Padre João Ribeiro Pessoa, Domingos Jo Martins, José Luiz de
Mendonça, Manoel Correia de Araújo, Manoel José Pereira Caldas, Antonio
Carlos Ribeiro de Andrade, Miguel João de Almeida e Castro
10
.
Ao saber da eclosão da revolta D. João determinou a partida da frota destinada a bloquear
o porto do Recife sob o comando do almirante Rodrigo JoFerreira Lobo. Um exército
com oito batalhões, artilharia e cavalaria saiu do Rio em 04 de maio em 10 veleiros. O
comando geral foi confiado ao general Luís do Rego Barreto, que considerava as ideias
liberais e revolucionárias dos pernambucanos atos insanos. Pela influência da literatura
dos liberais franceses e americanos, introduzida na Colônia por diversas formas, inclusive
por Arruda Câmara, parecia a Luís do Rego “contos loucos” estes sonhos de
independência; e, aos batalhões formados e dirigidos pelos nativos, o General
pejorativamente denominava-os de “fantásticas carrancas”
11
.
A situação dos revolucionários tornou-se insustentável. As tentativas de apoio das
províncias vizinhas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará foram bem-sucedidas, mas as
tentativas de apoio militar dos Estados Unidos não chegaram a contento, como os
revolucionários desejavam, por mais esforço que os irmãos maçons tenham feito. A troca
de proclamações entre os chefes militares das partes em contenda também não surtiram
efeito. A Corte do Rio de Janeiro enviou uma alçada presidida pelo General Luís do Rego
Barreto, que por anos consecutivos submeteu os pernambucanos a muitos vexames. Os
principais líderes da Revolução foram condenados à morte, ao esquartejamento e à
exposição dos seus restos mortais em praças públicas.
Não satisfeito, o Governador Luís do Rego Barreto prendeu a torto e a direito cidadãos
pernambucanos; castigou uns, com desterro para a África, outros para vários presídios
do Brasil e quarenta e dois pernambucanos para serem julgados por tribunais de Lisboa,
sob a acusação de serem partidários da independência. Na sequência, o Ministro da
Justiça, em Portugal, ordenou ao corregedor de Belém que conduzisse os presos ao
Castelo, ao Regedor das Justiças e, que os processasse imediatamente.
Hipólito José da Costa, nos informa, ainda, que os presos foram em procissão pelas ruas
de Lisboa, expostos aos olhares horrorizados dos Lisboetas, escoltados pela cavalaria e
infantaria com rufar de tambores e mais pompas, com o aparato de um triunfo. E, como
suas roupas haviam ficado presas em seus baús, na Alfândega, o estavam vestidos
com dignidade. Os quarenta e dois presos conheceram o peso do absolutismo das Cortes
portuguesas, na humilhação deste desfile e no triunfo do Governador Luís do Rego.
O general Luís do Rego Barreto acreditou que havia derrotado os contos loucos” e “as
fantásticas carrancas”. Entretanto, os contos loucos” voltaram de onde vieram,
atravessaram o Atlântico e foram povoar a cabeça de constitucionalistas portugueses,
10
Idem.
11
Uma alusão às cabeças de monstros que se colocavam na proa dos barcos do Rio São Francisco,
representando animais ferozes, supostamente para afugentar maus espíritos.
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Os “contos loucos” e as “fantásticas carrancas”: o vintismo visto de Pernambuco
Maria do Socorro Ferraz
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vitoriosos com a Revolução Vintista Constitucionalista em Portugal, que obrigou ao Rei
D. João VI voltar para Portugal e assinar uma constituição liberal, aprovada por
deputados eleitos de várias partes do Reino, liderados pelas Cortes. Simpáticas aos
liberais constitucionalistas pernambucanos, as Cortes de Lisboa participantes da
Revolução de 1820, mandaram libertar os sobreviventes revolucionários de 1817
12
e
criaram Juntas Governativas em todas as províncias numa atitude de desrespeito aos
governadores absolutistas, como Luís do Rego Barreto.
Assim como em Pernambuco de 1817, militares e magistrados da cidade do Porto
preparavam a revolução constitucionalista alguns anos antes de agosto de 1820. O
bacharel José Ferreira Borges, participante do Conselho da Revolução do Porto de 1820
foi membro do Sinédrio, associação fundada no Porto, em 1817, por Manuel Fernandes
Tomás, cuja finalidade era preparar uma revolução liberal em Portugal.
A conjuntura portuguesa à época trouxe insatisfação tanto para a burguesia, como para
os agricultores e para os militares: o fechamento de fábricas, o abandono da agricultura,
atraso no pagamento dos ordenados e soldos aos militares, a tutela britânica, a primazia
brasileira e as invasões que Portugal sofreu da França e da Espanha. Com a abertura dos
portos brasileiros ‘às nações amigas’, leia-se Inglaterra, a concorrência inglesa arrasou
a economia portuguesa.
A Revolução do Porto de 1820 ainda enfrentava outros problemas: os monarquistas
absolutistas portugueses, que seguiam D. João VI, não optavam pela volta do Rei; o
Brasil e os brasileiros divididos, tomaram posições diferentes; alguns preferiam o
constitucionalismo das Cortes ao governo do regente Pedro; o ministro inglês Thornton
e o Conde de Palmela pressionavam o Rei a enviar seu filho Pedro ou voltar para Lisboa,
sustando, assim, o lado democrático do movimento de 1820; e os austríacos, embora
ilustrados, não apoiaram o movimento vintista, continuaram absolutistas
13
.
As argumentações políticas dos liberais constitucionalistas e dos mais conservadores
portugueses se originavam nas duas tendências dentro da monarquia portuguesa: o
absolutismo e o constitucionalismo. Os portugueses constitucionalistas apresentavam a
Constituição como o remédio para todos os males que afligiam Portugal, acenando
inclusive com a recolonização do Brasil. Prometiam à burguesia da cidade do Porto
indústrias que poderiam transformar em manufaturas as matérias primas brasileiras o
algodão em têxteis, o açúcar bruto em açúcar refinado e sua distribuição no mercado
europeu.
E o Tratado de 1810 com a Inglaterra, seria desrespeitado, reformulado?
A burguesia necessitava da relação de D. João VI com a Inglaterra na construção de
outra revolução, a industrial, incluindo as novas negociações com os britânicos. Os
constitucionalistas, na tentativa de acalmar o Rei tentam naturalizar o liberalismo o
vinculando à tradição, recordando as imaginárias Cortes de Lamego (Lima, 1997: 16).
12
Após o julgamento dos processos dos 42 presos de Pernambuco pela Casa da Suplicação eles foram
libertados e recebidos em Pernambuco com grandes festividades. O julgamento final se deu em 27 de
outubro de 1821 (Costa, 2001: 325).
13
Ainda não se fez um estudo mais detalhado sobre os interesses do Imperador Francisco I, do Sacro Império
Romano Germânico em casar sua filha Maria Leopoldina com Pedro de Alcântara provavelmente esta casa
real via no Brasil alguma importância para sua política, principalmente em relação aos ingleses ou poderiam
jogar mais longe investindo em algo no continente americano.
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O que muda no Brasil com a vitória do Vintismo?
Portugueses radicados no Brasil, tanto os comerciantes como os burocratas do aparelho
de Estado e, brasileiros bem situados com a presença do Rei não queriam perder as
vantagens obtidas com a vinda da Corte pois estavam conscientes, de que a volta do Rei
lhes traria inconvenientes: o Brasil perdia sua condição de Reino Unido e
consequentemente o status de sede do Governo Português.
D. João VI viajou a Portugal, para atender as Cortes Constitucionalistas em abril de 1821.
O seu filho Pedro se tornou o Príncipe Regente. Ao contrário dos liberais
constitucionalistas portugueses, Silvestre Pinheiro Ferreira
14
previu que a volta do Rei
traria danos irreparáveis ao Império português. Os fatos comprovaram esta assertiva. O
poder de Pedro era muito menos acatado do que o poder de D. João VI. Os brasileiros
viram-se, de repente, sujeitos à obediência de leis, mandados e decretos vindos de dois
centros de poder: o das Cortes Constitucionalistas, instaladas em Lisboa e o da Regência
de Pedro, instalado no Rio de Janeiro, medindo forças com aquele. Os portugueses
radicados no Brasil, a maioria comerciantes, e militares pressionavam para que ele
aceitasse as ordens vindas de Lisboa. As manifestações, neste sentido, tornaram-se
constantes nas principais cidades brasileiras.
O decreto, de 1º de outubro de 1821, das Cortes de Lisboa criava Juntas Provisórias nas
Províncias, o que reduzia o poder de Pedro, pois a administração alfandegária e o
Comando Militar ficavam sob a responsabilidade de Lisboa, o que possibilitou lutas entre
facções adversárias.
As províncias do Pará, do Maranhão e da Bahia passaram a obedecer às Cortes de Lisboa;
no Rio de Janeiro a guarnição portuguesa se insubordinou e obrigou o Príncipe a formar
uma Junta Provisória dependente de Lisboa. As províncias do Rio de Janeiro, o Paulo
e Minas Gerais eram diretamente regidas pelo Príncipe Regente.
Na discussão das Cortes Constitucionalistas de Lisboa sobre a administração do ultramar,
entrou em pauta o problema da uniformidade administrativa entre Portugal e Brasil. O
cargo de Governador das Províncias, com o seu ranço absolutista, não encontrava
correspondente em Portugal, após a Revolução de 1820; logo foi substituído pela eleição
das Juntas Provisórias. As Juntas recém-eleitas dentro do espírito do movimento
constitucionalista foram formadas geralmente por brasileiros, que se sentiam vigiados
institucionalmente por militares portugueses e reduzidos a simples fiscais dos tributos
alfandegários portugueses. Sem definição clara do limite de poder do Príncipe, as Juntas
eram na verdade, entidades desamparadas e utilizadas pelos dois centros de poder: o
Rio de Janeiro e Lisboa.
Os acontecimentos em Pernambuco podem ser, em relação a esse período, sui generis
e, portanto, merece análise especial.
A notícia do êxito do movimento constitucionalista na cidade do Porto, chega ao Rio de
Janeiro e cinco dias depois se sabia em Pernambuco. O Governador Luís do Rego,
somente foi organizar e presidir o Conselho Constitucional Governativo da Província de
14
Silvestre Pinheiro Ferreira esteve no Brasil como ministro do exterior e da guerra, entre os anos de 1810 a
1821 e, também, como seu conselheiro; entre os anos de 1814 e 1815, escreveu por ordem do Príncipe
Regente “Memórias Políticas sobre os Abusos Gerais e o Modo de os Reformar e Prevenir a Revolução
Popular” (Silvestre Ferreira, 2012).
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Pernambuco, em 30 de agosto de 1821. Havia interesse em não divulgar oficialmente
esta notícia; durante um ano queria esconder de todos a vitória constitucionalista, o que
era impossível, pois periódicos, panfletos, notícias avulsas chegavam à Província dando
conta das novidades. Sobre este assunto comenta Denis Bernardes,
“Ao contrário do que ocorreu na Bahia e no Rio de Janeiro, a tropa portuguesa
em Pernambuco não apoiou o movimento constitucionalista, mantendo-se fiel
às ordens do Governador. Isto explica, entre outras razões, o fato de que se
passou cerca de um ano entre a chegada das primeiras notícias da revolução
do Porto e a eleição de uma Junta, dentro das novas regras adotadas pelas
Cortes e a capacidade de Luís do Rego de permanecer à frente do Governo.”
(Bernardes, 2001: 368).
A comarca de Goiana
15
, por o querer se sujeitar ao mando de Luís do Rego, não
reconheceu como legítimo este Conselho. Uma grande parte das Comarcas de
Pernambuco a apoiam. Algumas outras do sul da Província se declararam obedientes a
Luís do Rego. Aos liberais pernambucanos com a amarga experiência da repressão à
Revolução de 1817, como foi comentado antes, seria mais cauteloso ganhar tempo,
assumir a reorganização da Província, esperar os acontecimentos entre Lisboa e Rio de
Janeiro, entre a defesa do constitucionalismo português e uma independência mesclada
de autoritarismo liderada pelo regente Pedro. Na avaliação desses liberais
pernambucanos a proximidade da guerra no Brasil era iminente; poderia ser longa,
exaurindo os dois centros de poder. A república, para esta região, poderia deixar de ser
um sonho.
Luís do Rego Barreto recebeu denúncia sobre o movimento constitucionalista de Goiana
e tomou as primeiras providências mandando prender vários oficiais militares e civis.
Imediatamente envia ofício ao Rei D. João VI, dando conta dos últimos acontecimentos
em Pernambuco. Em seu comunicado confirma que Pernambuco é revolucionário e que
partidos que queriam mesmo a independência absoluta da metrópole e que no
momento se regem pela Constituição da América. O governador Luís do Rego ainda
contava com a tropa portuguesa do Batalhão de Algarves. Em 21 de agosto de 1821, o
Regente enviou um ofício autorizando a criação de uma Junta Provisória de Governo, em
Pernambuco. Luís do Rego Barreto, em 17 de setembro deste mesmo ano remete o à
Câmara do Recife, para as providências necessárias. Entretanto, a esta altura, a praça
do Recife estava em plena revolução. Este ofício foi vulgarizado pela imprensa da época.
A Câmara de Olinda tentou uma conciliação, mas os de Goiana não aceitaram.
A revolta de Goiana se intitulou Governo Constitucional Temporário e apoiou
publicamente à Revolução do Porto. Em 10 de outubro de 1821, a Junta de Goiana enviou
um ofício ao Rei historiando os recentes acontecimentos políticos em Pernambuco,
15
A fundação de Goiana data de época anterior a 1570, primitivamente habitada por índios caetés e
potiguares. Foi elevada à categoria de freguesia em 1568. Nessa época pertencia à capitania de Itamaracá.
Pelo incremento que teve, foi elevada à categoria de vila acolhendo então a Câmara e Justiça e se tornando
a cabeça da Capitania de Itamaracá. Parte da capitania de Itamaracá foi incorporada à Capitania de
Pernambuco em 1763. Foi Goiana o primeiro município de Pernambuco a declarar extinto o elemento servil,
antes da lei de 13 de maio de 1888. Ver Galvão (2006).
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justificando sua instalação e denunciando os desmandos de Luís do Rego Barreto
16
. Na
sequência, enviou um emissário ao Rei e às Cortes Manoel Clemente Cavalcanti de
Albuquerque numa demonstração que não era adepta do movimento de independência.
A instalação da Junta foi convocada pelo Juiz de Fora, com representantes do clero,
nobreza, militares e povo, em 29 de agosto de 1821. Em 21 se setembro, do mesmo
ano, houve uma batalha sangrenta em Olinda, entre as forças de Goiana e as do General
Luís do Rego.
As forças de Goiana marcharam sobre o Recife, na verdade, contra as tropas comandadas
pelo General e, na povoação de Beberibe fizeram seu acampamento. O cerco do Recife
pelos goianenses ia desde o Rio Doce, ao norte, até os Afogados, ao sul. Com receio de
ser esmagado pelas forças militares de outras comarcas de Pernambuco, que aderiram
aos batalhões de Goiana, o Governador Luís do Rego enviou emissários solicitando um
armistício.
Seu grande opositor o foi outro general e sim o comerciante Gervásio Pires Ferreira.
Homem de negócios, foi o avaliador do sistema fiscal da República de 1817, propondo
reformas e melhoramentos. Libertado da prisão, em Lisboa, em 22 de fevereiro de 1821,
voltou à Província com prestígio maior que antes. Dirige-se a Beberibe e num acordo
assinado entre as forças revolucionárias e o General ficou decidido o embarque imediato
deste para Lisboa com todos os batalhões portugueses. Este acordo tomou a
denominação de Convenção de Beberibe.
Em 15 de outubro de 1821 chega o ofício de Lisboa ordenando a instalação do novo
governo constitucional e no dia 26 de outubro é eleita a Junta Governativa Provisória,
presidida por Gervásio Pires Ferreira
17
. Nesse mesmo dia, Luís do Rego embarca para
Lisboa, juntamente com parte da tropa portuguesa. Um novo governador de armas
estava chegando de Portugal para substituir o Marechal Salazar. Uma tarefa difícil e
delicada para a Junta foi a de comunicar ao Príncipe Regente, no Rio de Janeiro e a sua
Alteza Real em Portugal as mudanças ocorridas em Pernambuco, porque a nova Junta
não era aliada incondicional de nenhum dos dois poderes, mesmo que não se
pronunciasse explicitamente sobre o assunto.
A guerra pela independência que se desencadeou no Brasil, desarticulou o trabalho
rotineiro entre as províncias e o poder central, do Rio de Janeiro. Muitas questões
administrativas na Província se colocavam no cotidiano e o Governo Provisório não tinha
respostas imediatas. Resolveu-se convocar um Grande Conselho, uma espécie de
Assembleia numa tentativa de administrar a heterogeneidade e de experimentar
momentos de democracia expandindo participações e responsabilidades. Dele faziam
16
O governador de Pernambuco determinou mudanças, que prejudicaram a economia de Goiana. Esta vila
fornecia carnes verdes para o abastecimento do Recife e de outras localidades; o imposto por este serviço
era alto. O governador proibiu este comércio e privilegiou outra vila, Vitória de Santo Antão. O imposto
continuou alto e isto abalou a economia, de Goiana. Outro episódio que pode parecer simples, mas foi
desmoralizante para os goianenses: o Governador ocupou a Vila à noite e com sua tropa arrancou todas as
urupemas das janelas da Vila, que eram os anteparos contra o sol e, depois fez com elas uma grande
fogueira. Este ato despótico obrigava a população a comprar grade de ferro e vidros, que eram produtos
ingleses. Comparar a Ferraz (1996:145).
17
A Junta Governativa Provisória era constituída dos seguintes membros: Gervásio Pires Ferreira presidente,
Pe. Laurentino Antonio Moreira de Carvalho secretário e, pelos membros: Manuel Ignácio de Carvalho,
Antonio José Vitorino Borges da Fonseca, Filipe Neri Ferreira, Joaquim José de Miranda e Bento José da
Costa.
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parte senhores proprietários, padres, deputados, desembargadores, juízes, inspetores e
militares.
As primeiras providências tomadas pela nova Junta Governativa foram no sentido do
restabelecimento da ordem na Província. Alguns batalhões portugueses ainda o
haviam embarcado, por falta de espaço nos navios, o que provocava temores na
população.
Esvaziado o poder militar na Província, cuidou o poder constituído de organizar uma força
militar com raízes nativas e nas questões sócio raciais. Foram criadas duas companhias
de pretos e duas de pardos, que recebiam soldo por este serviço e eram comandadas por
sargentos-mores da mesma raça e classe, respectivamente. Eram as “fantásticas
carrancas” de volta.
As relações entre a Junta presidida por Gervásio Pires e o governo do Rio de Janeiro
foram, desde o começo, tensas. O poder do Rio de Janeiro não confiava numa Junta
presidida por um ex-revolucionário de 1817. O jogo de equilíbrio entre os dois pontos
fora sempre perigoso para Pernambuco. Entre os dois centros de poder, a Junta presidida
por Gervásio, prestigiou em todos os seus atos, as Cortes, o Rei, Lisboa como o centro
do poder; entretanto, sentia-se desamparada na sua política contrária ao poder do Rio
de Janeiro. Da Província saíam tributos para pagamentos da iluminação e da polícia do
Rio de Janeiro. Por mais que Pernambuco solicitasse diminuição dos impostos, não
recebia nenhuma compreensão da parte dos dois poderes. Os pequenos e médios
produtores de aguardente, uma elite secundária, não foram atendidos por Lisboa,
enquanto os grandes proprietários não foram gravados em suas fortunas. Em represália
aqueles passaram a apoiar o Príncipe Regente, no Rio de Janeiro. Chegava até a corte
do Rio denúncias de que Gervásio Pires não apoiaria a independência proposta por Pedro
e pelo ministério dos Andrada.
Em de junho de 1822, o recinto, onde estavam reunidos os membros da Junta de
Pernambuco, foi invadido por emissários do ministro José Bonifácio de Andrada,
representantes dos quatro corpos militares, obrigando Gervásio Pires Ferreira a assinar
um documento de fidelidade e adesão à regência de Sua Alteza Real, D. Pedro. Reagindo
contra aquele motim, Gervásio respondeu que aquela atitude não era um ato regular do
povo e por isto se demitia da Presidência
18
; um dos emissários do Rio de Janeiro, João
Pedro Estanislau respondeu que o povo tem assumido os seus direitos, o povo quer é
preciso obedecer.” À deposição de Gervásio Pires Ferreira seguiu-se sua prisão na Bahia
e posteriormente o envio para outra prisão, em Lisboa
19
.
Em um período confuso, em que se misturavam independência nacional e liberalismo, a
ideia de democracia aparecia associada à anarquia popular. A população esteve revoltada
por qualquer boato. Esse estado de rebelião tem causas mais profundas; aparece sob
várias formas, ora nos conflitos entre as frações da classe dominante ora na formação
dos batalhões militares da Colônia. Esta insubmissão recorrente da região norte
20
em
18
Ata da Junta de 1º de junho de 1822 in Atas do Conselho do Governo de Pernambuco, vol. I, 1821 a 1824.
(1997). Recife: CEPE Editora, p. 104.
19
Idem, p. 105.
20
Por região norte deve-se entender o conjunto de províncias, que se localizavam acima da Bahia. E por
região sul, além das províncias do sul do Brasil, o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
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relação à região sul é sinal de que o modelo de nação que esta região impôs, explicitado
nos escritos de José Bonifácio, prejudicaria a região norte na visão dos revolucionários.
Referências
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1808/1833, CGPP 9, 50.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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Dezembro 2021
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O SUBSÍDIO LITERÁRIO. CONTINUIDADE OU RUTURA?
TELMA DE MATTOS RUAS
telmaruas@grupoceu.pt
Licenciada em História pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) em 1987. Mestre em
História Cultural e Política pela Universidade Nova de Lisboa em 1995. Frequentou o curso de
doutoramento em Comunicación Institucional e Empresarial da Universidad Complutense de
Madrid, tendo obtido o Diploma de Estudos Avançados em 2002. Participou em Novembro de
2007 na Universidade da Virgínia Darden Bussinesss School & Curry School of Education- no
curso para Leaders in Education School Turnaround Leadership Program,” Starting Fresh:
Establishing Leadership, Building a Vision and Creating the Conditions for Student Success”.
Frequentou o Programa Interuniversitário de Doutoramento em “História: mudança e
continuidade num mundo global” e encontra-se a preparar a tese de doutoramento, publicando
no âmbito do mesmo doutoramento diversos artigos avaliados por revisores. Assessora
pedagógica do Conselho de Administração da UAL (Portugal), coordena os processos de
submissão de novos ciclos de estudos e supervisiona os guiões para os ciclos de estudos em
funcionamento
Resumo
Este texto insere-se no estudo que temos vindo a realizar sobre a educação no período liberal
a partir das atas das sessões das Cortes. A análise da atividade parlamentar - o debate político
e a consequente ação legislativa conferiram relevo aos assuntos da Instrução e da Educação
com o desígnio de satisfazer as necessidades do Estado Liberal. Sustentando-se na
contribuição tributária do “subsídio literário,” imposto criado pelo Marquês de Pombal, em 10
de novembro de 1772, a sociedade Oitocentista reivindicou o direito de promover a instrução
primária fundamentando a sua pretensão no cumprimento dos deveres ficais. A continuidade
da ação política pombalina corporizou os interesses e a vontade da Nação liberal. Contudo a
exigência ideológica do liberalismo reclamou no debate parlamentar a sua extinção. A
oscilação entre continuidade ou rutura marcou a apreciação político-económica do “subsídio
literário” em Oitocentos.
Palavras chave
Educação, Instrução, Subsídio Literário, Discurso Parlamenta, Orçamento de Estado
Como citar este artigo
Ruas, Telma de Mattos (2021). O Subsídio Literário. Continuidade ou rutura? Janus.net, e-
journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020),
VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.4
Artigo recebido em 29 de Setembro de 2021 e aceite para publicação em 2 de Novembro
de 2021
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Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), Dezembro 2021, pp. 57-80
O subsídio literário. Continuidade ou rutura?
Telma de Mattos Ruas
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O SUBSÍDIO LITERÁRIO. CONTINUIDADE OU RUTURA?
TELMA DE MATTOS RUAS
Introdução
A revolução de 1820 afirmou inequivocamente na sociedade portuguesa os ideais
filosóficos iluministas, amplamente difundidos no final do século das luzes e nos primeiros
anos do novo século. Os ecos revolucionários sustentados em novos valores e em
renovados poderes institucionais, colocando nas os dos homens, dotados de direitos
individuais, o dever de reorganizar a nova ordem moral e política consubstanciada na
liberdade e no consentimento popular, foram responsáveis pela reconstrução social. A
sociedade reformada, modernizada convocou todos à participação, solicitou a partilha e
a colaboração individual e coletiva para o seu desenvolvimento, requereu a
disponibilidade de todos, para em conjunto, contribuírem para o progresso nacional.
Contributos que implicavam necessariamente a aquisição de saberes e competências
escolares, reconhecendo, desse modo, a importância da sua transmissão pela via formal.
Competências que se adquiriam pela educação e pela instrução de todos - crianças,
jovens e adultos -. Aquisições que privilegiaram o direito paternal, a esfera privada na
definição dos objetivos para a educação moral virtudes e talentos - determinando, em
função do estrato social, as habilitações escolares e as aptidões sociais a desenvolver.
Simultaneamente atribuiu-se à esfera pública, a maior missão: a formação dos cidadãos
a instrução.
Sob a alçada do Estado dotava-se a mocidade de aprendizagens elementares,
fundamentais, para o exercício da participação cívica, e proporcionavam-se
ensinamentos técnico-profissionais, permitindo tornar a sociedade mais ilustrada, mais
civilizada. Encargo político que o Estado reconheceu como direito individual e como dever
e responsabilidade, função que partilhou com a esfera privada a família, - consagrando
na lei suprema do Estado as diferentes ações. Reconhecemos, portanto, que as palavras,
Educação e Instrução, assumiram, apesar da identidade no seu significado,
representações e ações distintas na época contemporânea.
Importa sublinhar que a utilização dos vocábulos educação e instrução sinónimos na
consulta a um dicionário, - não foram empregues como palavras para reforçar o sentido
do discurso político, ou para identificar ideologias. A sua utilização assumiu protagonismo
na comunicação, pelo que o conhecimento do seu significado, o seu uso linguístico e
semântico revelou-se fundamental para compreender o discurso e a ação política
oitocentista. Situação comum à que se tinha verificado no Antigo Regime, revelando,
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portanto, continuidade na utilização, identificação e representação das palavras na
comunicação. Reconhecemos, todavia, que após a revolução de 1820, o discurso tornou-
se mais moderno, referenciador das ideias revolucionárias, sustentadas nos direitos
individuais e na liberdade, revelando-se uma comunicação mais atrativa aos sinais de
mudança, às propostas de investimento na alfabetização e na formação. Os argumentos
de desenvolvimento da instrução e da educação sustentaram-se em ações políticas
reveladoras de incentivo à ilustração e de preocupação em responder às necessidades
sociais.
Os Projetos Educativos no Antigo Regime
Recordemos a ação política de apoio à educação e instrução no Antigo Regime.
A criação do imposto do subsídio literário em 1772, pelo Marquês de Pombal, destinado
a promover a instrução pública revelou-se um marco importante para o desenvolvimento
da formação. A disposição jurídica regulamentou os procedimentos para a arrecadação
fiscal extinguindo anteriores consignações de apoio financeiro à instrução pública e
instituiu um órgão responsável pela administração dos fundos Junta -, apontando para
a atenta fiscalização do Estado na formação da mocidade. Importa sublinhar que a
regulamentação da criação de escolas menores, promulgada anteriormente, com a
pequena diferença de quatro dias, sustentou a sua ação política, na tributação
financeira
1
.
No ano seguinte, em 1773, três outras regulamentações, o alvará de 15 de fevereiro, as
Instruções de 4 de setembro, e o diploma de 16 de dezembro clarificaram a importância
do imposto para o desenvolvimento da instrução pública, permitindo avaliar a extensão
da rede escolar. Desse modo, sublinhamos que a ordenação legislativa colocou na
questão fiscal, na distribuição financeira do tributo, a essência do projeto reformista do
sistema de ensino, que pretendeu, em primeiro lugar, promover o desenvolvimento da
instrução pública, e em particular, a aprendizagem das primeiras letras sob a tutela do
Estado. Face a estas ações colocam-se-nos duas questões: A reestruturação do sistema
de ensino conduziu a uma política de promoção da aprendizagem elementar? Estamos
perante a proposta de generalização do sistema de ensino elementar?
Reconhecemos que a intenção do Marquês de Pombal foi o desenvolvimento da ilustração
e da civilização, promovendo através da formação, em todos os níveis de ensino, a
disseminação das ideias das luzes, valorizando os saberes e a preparação técnica e
científica, contribuindo desse modo para a modernização de um Estado forte tendo em
consideração os seus interesses políticos, económicos e sociais, os benefícios e a utilidade
do Reino. Reconhecemos igualmente que a sua ação se orientou para o progresso
político, favorecendo uma elite social que se revelou empenhada e dedicada no
crescimento económico do Estado centralizado. Assim sendo, e apesar do passo
significativo no sentido de promover a formação elementar, temos que admitir que o
projeto reformista do ensino das primeiras letras não conseguiu estimular e fomentar o
1
A Carta de Lei de 6 de novembro de 1772, determinou a organização administrativa dos estabelecimentos
escolares, por forma a permitir que todos pudessem aprender, e reorganizou, modernizando, os planos
curriculares de estudos. Definiu igualmente as regras de concurso para a prática docente, as funções a
exercer, e estatuiu os meios de “subsistência” a atribuir aos “mestres e professores “de modo a assegurar
e a preservar o sistema de ensino em todo o Reino e nas províncias.
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alargamento da rede escolar, popularizando a instrução. Todavia, sublinhamos,
relembrando a importância da disposição jurídica que determinou a criação do imposto
do subsídio literário como instrumento financeiro fundamental para a promoção da
aprendizagem.
Prosseguindo uma ação política de continuidade, no que à instrução e educação diz
respeito, o reinado de D. Maria I, ainda que se possa discutir a opção régia de favorecer
de novo a Igreja entregando às Ursulinas a direção da formação escolar, apostou na
criação do ensino feminino gratuito, no estabelecimento de aulas especializadas em áreas
cientificas e técnicas - matemática, línguas estrangeiras (francês e inglês) filosofia
racional e moral, comércio e agricultura- nomeadamente na cidade do Porto, e apoiou
igualmente a formação qualificada no sector dos lanifícios. Estas medidas revelaram-se
essenciais ao incentivo e ao desenvolvimento continuado da educação e da instrução
2
.
Importa ainda sublinhar a distinção legislativa concedida aos mais desfavorecidos e à
instrução feminina.
Começamos pelos diplomas de 24 e 31 de outubro de 1814. O primeiro providenciou
medidas de proteção e benefícios às crianças órfãs e desvalidas, o segundo concedeu a
três requerentes. Margarida de Jesus, Teresa Rosa de Jesus e Maria Procópia, autorização
para continuarem a exercer atividade letiva “nas casas das suas atuais residências “a
formação a 20 meninas -em cada casa- promovendo a educação moral e a instrução
elementar “ler, escrever, contar,” às quais se acrescentaram outras competências
consideradas essenciais “costurar e fazer vestidos na forma que se oferecem,“ recebendo
cada mestra uma gratificação de 6.000 réis mensais, “pagos pelo subsídio literário”,
ficando, a atividade docente subordinada à fiscalização da Junta da Diretoria Geral dos
Estudos (RDHE, Legislação, 1814: 334). O Edital de 15 de maio de 1815, em
conformidade com a anterior resolução régia de 31 de outubro de 1814, confirmou a
determinação de estabelecimento de 18 escolas para meninas na cidade de Lisboa
promovendo a instrução de saberes elementares, valores morais de “doutrina cristã” e a
aprendizagem de lavores” fiar, fazer meia, cozer, bordar e cortar,” (Legislação Régia,
1815: 57).
Face a estas ões políticas constatamos continuidade nas propostas públicas de
educação e instrução, evidenciando, claramente, três perspetivas de atuação: a
preocupação cultural, a intervenção social e igualmente a abordagem económico-
financeira, convergindo todas para um único propósito: desenvolvimento do sistema de
instrução promovendo a utilidade dos saberes escolares, científicos e técnicos colocando-
os ao serviço do Reino. Benefício, naturalmente, sustentado na lei fiscal “subsidio
literário”.
2
O alvará de 31 de julho de 1788 concedeu privilégios e isenções por um período de dez anos à fábrica de
lanifícios e tinturaria da Vila de Covilhã e à Escola de fiação em Celorico da Beira considerando a sua
“utilidade”. Os diplomas de 24 e 31 de outubro de 1814 evidenciaram preocupação pelo desenvolvimento
da instrução. O primeiro providenciou medidas de proteção e benefícios às crianças órfãos e desvalidas e o
segundo concedeu a Margarida de Jesus, Teresa Rosa de Jesus e Maria Procópia autorização para
continuarem a exercer atividade letiva “nas casas das suas atuais residências “a formação a 20 meninas
(em cada uma) recebendo uma gratificação de 6.000 réis mensais, “pagos pelo subsídio literário”
(Repositório Digital da História da Educação, Legislação, Resolução Régia 31-10-1814: 334). O Edital de 15
de maio de 1815 determinou o estabelecimento de 18 escolas para meninas na cidade de Lisboa com o
intuito de “ensinar, doutrina cristã, ler, escrever, contar, fiar, fazer meia, cozer, bordar e cortar” (Legislação
Régia, Edital, 15-5-1815: 57).
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Um outro olhar sobre a Instrução e a Educação no período liberal
Se pode aperceber-se um outro olhar no período liberal sobre a instrução e a educação,
o desígnio mantém-se: o progresso da Nação. A sociedade portuguesa a partir de 1820
promove e incentiva a formação escolar de todos os cidadãos como forma de sustentar
o seu desenvolvimento.
A reforma do sistema ensino, nos diferentes níveis de aprendizagem, revelou-se
essencial, sublinhando e evidenciando as principais áreas de intervenção. A coroar a
pirâmide de aperfeiçoamento escolar a premente necessidade de promover o ensino das
primeiras letras, permitindo à mocidade a aprendizagem dos saberes elementares, a
educação moral, a instrução dos ideais liberais, necessários à exigente participação
cívica, não esquecendo a inclusão nos planos de formação das atividades de educação
física, indispensáveis ao salutar desenvolvimento físico de crianças e jovens. A par, a
modernização dos planos curriculares de formação de nível secundário e superior,
introduzindo novas áreas científicas de cariz académico, como também de nível técnico
especializado, promovendo desse modo o enriquecimento sociocultural e o
desenvolvimento de competências profissionais. Destacamos deste contexto o debate
parlamentar dedicado à introdução do estudo da economia política e de novas disciplinas
na área do direito.
Num segundo patamar e para responder às necessidades de investimento na instrução
das primeiras letras, as preocupações sociais reuniram-se nas seguintes prioridades:
estabelecimento de instituições de ensino básico, possibilitando o alargamento da
rede escolar;
diversificação de metodologias de ensino, adoção de material didático atualizado e
adequado aos diversos níveis de ensino e idades escolares;
modernização ou edificação de espaços escolares destinados à prática do ensino-
aprendizagem, incluindo projetos para a fundação e dotação de bibliotecas
despertando o gosto pela aprendizagem e pela leitura;
verificação de competências pedagógicas e administrativas pelos órgãos de gestão
sob a tutela do ministério do Reino a Junta da Diretoria- Geral dos Estudos, o
Conselho Superior de Instrução Pública e a Direção Geral da Instrução Pública e
consequentemente o debate sobre a necessidade da formação pedagógica de
professores que se revelou de grande importância para a melhoria do sistema.
Seguiram-se os temas de organização administrativa que convocaram o envolvimento
de outras entidades responsáveis pela gestão política e territorial, suscitando e
convocando, mais frequentemente, a intervenção do poder municipal quer na
responsabilidade da administração escolar regional, quer na supervisão pedagógica.
Começamos por destacar os concursos de admissão de professores à carreira docente,
os procedimentos para provimento das disciplinas, que permitiam a regularização da
carreira profissional. A estes assuntos somaram-se a inspeção pedagógica, já referida,
permitindo assegurar boas práticas académicas e didáticas, e por último, a questão que
se revelou ser a mais importante: a atribuição da remuneração devida aos professores e
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auxiliares. As dificuldades de remunerar atempadamente os professores em atividade ou
jubilados, representaram um número muito significativo de petições que deram entrada
nas Cortes durante o séc. XIX, identificando-o como um verdadeiro problema de natureza
política e social.
As representações recorrentes e persistentes, em nome individual e coletivo, incidiram
principalmente sobre as dificuldades financeiras que os professores e as suas famílias
atravessavam. O principal fundamento das petições recaiu sobre o atraso no pagamento
das remunerações. A este argumento adicionou-se outra fundamentação que denunciou
a irregular e controversa gestão da arrecadação e distribuição das verbas resultantes do
imposto do subsídio literário que foi por vezes desviado para atender a outras
necessidades da ilustração nacional.
A ação pombalina de apoio à instrução pública foi referenciada com agrado pela maioria
dos representantes da Nação ainda que a administração e utilização dos fundos
financeiros tenha sido objeto de comentários e opiniões parlamentares depreciativas.
Ainda assim não podemos esquecer que a criação e a manutenção do subsídio literário
contribuíram de forma relevante para o incentivo à formação de nível elementar. A
receita proveniente dessa taxa permitiu dar resposta a evidentes carências do sistema
educativo, para além de ter contribuído para uma melhor definição das orientações
estratégicas tendo em vista o desenvolvimento de todos os níveis de ensino.
Estes temas foram debatidos e analisados diligentemente nas sessões das Cortes,
participando amiudamente na discussão os responsáveis políticos pelas pastas do Reino
e da Fazenda. Nenhuma petição ficou por ler na Câmara dos representantes, todas foram
depois de apresentadas, cuidadosamente encaminhadas para uma segunda leitura, para
uma apreciação mais detalhada nas distintas comissões parlamentares ou seguiram para
outros serviços ministeriais. A preocupação e a urgência política em dar respostas às
súplicas assim o exigiam. A celeridade que se impôs em atender a todos pedidos
sobrepôs-se a uma outra necessidade: o cuidado social e a atenção que todas as
solicitações mereciam. Assim a ação política procurou encontrar respostas adequadas
aos requerimentos tendo também em atenção as possibilidades financeiras da Nação. Foi
um trabalho espinhoso, mas foi igualmente, reconhecemos, um período intenso e
estimulante de debate político-social.
As petições enviadas às Cortes revelaram diferentes perspetivas, misturando
sentimentos distintos que oscilaram entre o entusiasmo da participação cívica,
consagrada na Constituição, o estímulo social em atender às necessidades de reforma
contribuindo para a modernização cultural e a constatação das debilidades económico-
financeiras que o País atravessou
3
. A maior dificuldade política foi a impossibilidade de
3
É interessante recordar que os textos constitucionais promulgados em 1822, 1826 e 1838 e as reformas
administrativas que o País foi adotando ao longo do séc. XIX. A consagração dos direitos e deveres
individuais do cidadão assegurando a todos o direito à instrução a atribuição de competências específicas
aos poderes municipais foi sendo ajustada ao momento político. Sob a bandeira da descentralização do
poder político a centralização política exercida pelo executivo reestruturou o mapa administrativo e
consequentemente as suas competências. Sublinhamos na perspetiva mais liberal o artigo 223ª da
Constituição de 1822 (titulo VI Do Governo Administrativo e Economico, capítulo II- Das Câmaras)
entregou aos Concelhos a obrigação de “Cuidar das escolas de primeiras letras, e de outros
estabelecimentos de educação que forem pagos pelos rendimentos públicos, e bem assim dos hospitais,
casas de expostos, e outros estabelecimentos de beneficência, com as exceções e pela forma que as leis
determinarem” (Assembleia da República, Constituições Portuguesas, 1992: 93). os textos
constitucionais de 1826 e 1838 remeteram essas prerrogativas para a lei regulamentar garantindo o direito
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dar resposta aos problemas recorrentes de natureza económica e financeira que
afetavam persistentemente os profissionais da educação. As dificuldades do executivo
em resolver os atrasos no pagamento das remunerações devidas aos professores,
particularmente aos mestres de primeiras letras, apesar da cobrança do imposto do
subsídio literário ser a principal fonte de receita para o desenvolvimento da instrução
pública elementar, foi então um dos principais temas do debate político, a par da reforma
do sistema de ensino que foi insistentemente reivindicada.
As justas reclamações da aplicação do Subsídio Literário
Conforme já referimos foram muitas as petições que deram entrada nas Cortes ao longo
do séc. XIX solicitando a aplicação da contribuição fiscal do subsídio literário na instrução
pública. O primeiro requerimento foi apresentado no parlamento em 14 de abril de 1821.
Tratou-se de uma carta de felicitação dirigida pelo Município de Torres Novas aos
representantes da Nação. À mensagem de congratulação pelo sucesso político
revolucionário, seguiram-se as solicitações de intervenção tendo em vista a regularização
da instrução primária e secundária na comarca. A falta de provimentos das disciplinas de
ensino primário e secundário revelou-se incompreensível para os munícipes face ao
cumprimento regular dos seus impostos.
Os habitantes da sobredita Vila não podem ser espectadores indiferentes de
semelhante falta, quando recordam a considerável colecta que lhe importa
sobre seus vinhos, e que persolvem todos os anos, cuja colecta por isso que
destinada pela lei da sua criação á sustentação dos Mestres, e Professores de
semelhantes cacholas, não transcende com tudo na sua aplicação aquela Vila
em proporção do seu computo.” (DP-MCCGE, sessão 58, 14/04/1821:
578).
O município de Torres Novas determinado a implementar a instrução primária enviou às
Cortes nova súplica em 24 de abril do mesmo ano. Apesar do despacho da Junta da
Diretoria Geral dos Estudos ratificar a pretensão da comarca, a decisão política recaiu
sobre a Comissão da Fazenda. Cremos, no entanto, que a deliberação terá satisfeito os
interesses do município, considerando o teor de outros requerimentos apresentados que
evocaram como exemplo o sucesso da comarca de Torres Novas nas suas solicitações.
à instrução primária gratuita (Carta Constitucional, título VIII “Das Disposições Gerais e Garantias dos
Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Portugueses” - artigo 145º, §30; Constituição de 1838, Título III-
“Dos direitos e garantais dos Portugueses, artigos 28º e 29º). Das reformas administrativas destacamos: a
Carta de lei de 20 de julho de 1822 publicada em 1 de agosto do mesmo ano. O decreto de 16 de maio de
1832 precedido do extenso relatório sobre os poderes da administração pública, da justiça e da fazenda
destacou as medidas da “organização e administração da Fazenda”, segundo o modelo napoleónico. O do
Código administrativo de 1836 que reestruturou o novo mapa de administração concelhia. As alterações
sob o governo de António Bernardo da Costa Cabral Código Administrativo de 1842-. Na segunda metade
do séc. XIX as reorganizações administrativas e territoriais que foram promulgadas em 1867, 1870, 1878,
1886 e 1895-1896 revelaram a principal preocupação do Estado liberal, a redefinição política do mapa dos
poderes autárquicos, a supressão dos concelhos, a duração dos mandatos e as competências atribuídas aos
órgãos e aos membros nomeados.
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Situação semelhante repetiu-se, uns anos mais tarde, nas sessões de 23 e 27 de janeiro
de 1835, tendo rios municípios da Província do Minho reclamado a aplicação dos fundos
tributários no desenvolvimento da instrução pública na região.
Recordamos igualmente no mesmo ano parlamentar duas intervenções do deputado José
Ferreira de Castro. A primeira proferida em 14 de março sublinhando o cumprimento
legislativo que instituiu o liceu de Lisboa (Decreto de 17 de novembro de 1836) para em
seguida chamar a atenção para a relevância da cobrança fiscal do subsídio literário,
essencial à promoção da instrução pública sugerindo rigorosa utilização das verbas no
incentivo à formação. Na segunda requereu a aprovação de “algumas pequenas, e
provisorias medidas” (DP- MCCDN, sessão 54, 28/03/1835: 696) que permitissem
fundar escolas de instrução primária nas freguesias rurais e criar nas cabeças de comarca
cadeiras de formação complementar lógica, metafísica, filosofia e ética- com o intuito
de desenvolver a educação da mocidade, fundamentando a materialização das propostas
na boa administração do subsídio literário.
Em 1837 os seis requerimentos relativos à instrução primária reivindicaram o pagamento
atempado dos professores e referiram-se aos diversos procedimentos de utilização do
subsídio literário em localidades distintas, sublinhando arbitrariedades na sua aplicação.
Aliás, o deputado Barão da Ribeira de Sabrosa na sessão de 13 de março apontou essas
mesmas discricionariedades. Tenhamos em consideração a sua afirmação:
Na vila de Canelas, tria do mui nobre amigo, o Sr. Deputado João de
Lacerda, pagam-se setecentos mil réis de subsídio literário, mas nunca ali
houve um mestre de primeiras letras, nem hoje o ainda: pelo contrário,
na Beira Baixa, vilas que não pagam mais de 20$000 réis de subsídio literário,
tiveram sempre mestres de primeiras letras. O pior é que estes mesmos
poucos professores, que existem, andam sempre mal pagos. Eu creio que o
Sr. Passos já mandou pagar a alguns destes desgraçados; mas é certo que o
mestre de primeiras letras da minha própria aldeia, não havia recebido, ainda
pouco, um vintém, depois que se restabelecera o Governo da Rainha.
(DP-MCCGE, sessão nº 43, 13/03/1837: 16).
Circunstâncias análogas foram evidenciadas em 1839 e em 1840. As solicitações
coletivas dos professores primários dos concelhos de Torres Novas, S. Pedro do Sul,
Alcobaça, Alpedrinha, Évora, Aveiro e Porto Santo reivindicaram os pagamentos das suas
remunerações. O argumento comum apresentado para o pagamento dos seus
vencimentos sustentou-se no rendimento do subsídio literário, rejeitando as alterações
administrativas aprovadas em 1836, que colocavam maior pressão financeira nos
municípios.
4
4
Sobre a reforma territorial e administrativa os seus reflexos nas estruturas e procedimentos político-
financeiros, destacamos as seguintes referencias: SÁ, Victor de A reforma administrativa liberal que
precedeu a de Mouzinho da Silveira. Revista da Faculdade de Letras. 2 (1985), p. 202. Sublinhamos
outros estudos sobre a administração local e regional. Destacamos a obra coordenada pelos Professores
Monteiro, Nuno Gonçalo; Oliveira, César História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade
Média à União Europeia. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, de Silveira, Luís Espinha da Território e poder:
nas origens do Estado contemporâneo em Portugal. Cascais: Patrimonia Histórica, 1997, de Manique,
António Pedro Mouzinho da Silveira, liberalismo e administração pública. Lisboa: Livros Horizonte, 1989,
e ao artigo Liberalismo e Finanças Municipais da Extinção das Sisas à Proliferação dos Tributos concelhios,
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O representante da Nação Alberto Carlos Cerqueira de Faria juntou a sua voz aos
protestos defendendo a preservação do imposto admitindo, no entanto, que as
importâncias arrecadadas se revelavam insuficientes para o desenvolvimento da
instrução. Opinião controversa. Muitos outros deputados consideraram suficientes as
verbas recebidas para a sustentação da instrução no Reino estendendo a sua ação política
e administrativa às províncias ultramarinas
5
.
Sublinhamos ainda um outro caso. O do município da Ilha do Porto Santo que decidiu
aplicar os proveitos fiscais no pagamento dos vencimentos aos professores, no aluguer
do edifício escolar e também na aquisição de material didático. Foi sem dúvida um
exemplo ímpar, revelando uma administração escrupulosa da tributação fiscal.
Em 1842 registamos um pedido de informação sobre os rendimentos do imposto do
subsídio literário referentes aos distritos de Lisboa, Santarém e Leiria nos dois últimos
anos. Foi uma solicitação invulgar? Não. O pedido foi apresentado pelo deputado
Bartolomeu dos Mártires Dias e Sousa na sessão de 24 de agosto. Foi sua intenção obter
conhecimento pormenorizado das movimentações da barra de Lisboa em particular a
quantidade do vinho exportado
6
. Foram, portanto, razões de natureza económica que
motivaram o seu requerimento. Contudo, porque o valor das exportações influenciava os
assuntos da instrução e da educação e ainda porque em 1841 tinham sido aprovadas
Penélope, Fazer e Desfazer História, nº3 junho 1989, de Fernandes, Paulo Jorge Azevedo As faces de
Proteu-elites urbanas e o poder municipal de finais do século XVIII a 1851. Lisboa: Câmara Municipal, 1999,
de Catroga, Fernando Natureza e História na fundamentação do municipalismo da Revolução Liberal ao
Estado Novo (uma síntese). In Silva A, Francisco Ribeiro da... [et.al.], org. Estudos em homenagem a
Luís António de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004 e A república
una e indivisível: no princípio era a província. Revista de História das Ideias. Coimbra. V. 27 (2006), de
Silva, Carlos Manique da, Da vontade unificadora do Estado à adaptação da escola às realidades locais: o
papel dos governadores civis e dos comissários de estudos (anos de 1840-1860) Revista da Faculdade de
Letras, História, Porto, III série, vol. 10, 2009, pp 151-160, de Tomás, Ana; Valério, Nuno Autarquias
locais e divisões administrativas em Portugal 1836-2013. Lisboa: Instituto Superior de Economia e Gestão
da Universidade de Lisboa, 2019 e ainda a referência ao artigo de Langhans, Franz Paul de Almeida
Organização administrativa e local. In Serrão, Joel, dir. Dicionário de História Portugal. Porto: Livraria
Figueirinhas, 1984. vol. IV.
5
A disposição legislativa publicada em 24 de julho de 1851 pelo Ministério da Marinha reconheceu a
importância financeira da tributação do subsídio literário em todas as ilhas da província de Cabo Verde,
assinalando o seu contributo para o desenvolvimento da educação na província ultramarina. A este propósito
apontamos também o decreto de 1 de setembro de 1881 no qual se promulgou a manutenção de cobrança
do imposto no Estado da Índia.
6
Os estudos do Professor Fernando de Sousa sobre a Real Companhia Velha permitem-nos um novo olhar
sobre a empresa e as suas relações comerciais. Em o Arquivo Real da Companhia Velha, revela a
complexidade da cobrança de impostos na região norte. No artigo conjunto -Fernando de Sousa, Francisco
Vieira e Joana Dias - A cobrança de impostos régios pela Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do
Alto Douro (1872-1832) -nos conhecer alguns dados sobre a relevância dos impostos, o montante de
arrecadação e o seu efeito na estrutura do Estado. Sobre o imposto do subsídio literário Companhia
arrecadava em “produção e comercialização” cerca de “315 reis em pipa de vinho maduro (…) 120 réis em
pipa de vinho verde, (…) 210 réis em exportação para o Ultramar; 105 reis em pipa de vinho para o Brasil”
importâncias que foram sendo reduzidas a partir de 1825. Seguem-se ainda discriminados os montantes
do rendimento do imposto na região Norte no “Porto seu termo e concelhos” pela Companhia e por
particulares, registando-se no ano em análise,1802, a importância total de 25.710$206. Na obra A real
Companhia Velha. Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro(2006) num dos seus capítulos
A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, Empresa Majestática (1756-1834) ( Fernando
de Sousa, Diogo Ferreira, Francisco Vieira e Ricardo Rocha) dão continuidade à analise dos dados
financeiros confirmando a importância dos impostos subsídio literário e militar - como “responsáveis por
em todos os anos por mais de 62% do montante global” (229) assinalando a duplicação das receitas entre
1802e 1814. Informação mais pormenorizada sobre a cobrança dos impostos diretos e indiretos a partir da
década de 1830 do século XIX encontra-se nos documentos dos orçamentos de estado, em consulta livre
em repositório da Secretaria geral do ministério das finanças.
http://purl.sgmf.pt/repositorio/orcamentos/index.html
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duas disposições jurídicas sobre a arrematação do imposto nos distritos do continente
23 outubro e 2 de novembro- tivemos em consideração os documentos relativos ao
orçamento de Estado previsto para o ano económico 1839-1840. Assim, nesse sentido,
e para melhor interpretação, analisámos às seguintes rúbricas: rendimentos e encargos
do Estado e outros documentos específicos. A partir de documentos relativos ao
Ministério do Reino foi possível apreciar o estado da educação tendo como ponto de
partida a solicitação do parlamentar eleito pelo círculo da Madeira
7
. Aproveitamos
também para sublinhar a opinião do deputado Alberto Carlos Cerqueira de Faria,
apresentada anteriormente, defendendo que os rendimentos do subsídio literário eram
insuficientes para atender às necessidades da instrução pública.
Atentemos aos documentos apresentados nas Cortes relativos às contas públicas para o
exercício do ano económico de 1839-1840. Começamos pelo relatório do titular da pasta
chamando a atenção para as dificuldades do Estado, tendo em conta as vidas e
encargos dos ministérios. A questão da dívida pública, problema maior e de resolução
complexa, foi retratado nos diversos mapas que foram entregues na Assembleia para
devida análise. Para um deficit estimado em 1.413.896$137 a dívida ativa atingiu o
montante de 2.588.171$219 apesar de apontarem medidas para a sua atenuação. Assim
após serem “atendidas a alteração” foi necessário levar a cabo um complexo trabalho
financeiro.
Relativamente ao rendimento direto do “subsídio literário” estimou-se a sua cobrança em
120.61$828. O aumento de imposto estava contemplado no relatório do responsável pela
pasta da Fazenda, assim sendo a lei determinou um aumento em 600 reis por cada pipa
de vinte seis almudes sem distinção do tipo de vinho, nos impostos que se cobravam na
alfândega das Sete Casas, estimando-se um rendimento de 200.000$000, o que elevou
a receita total em 320.616$828. Se tivermos em consideração a proposta orçamental
para a rúbrica da Instrução Pública primária e secundária o valor estimado foi de
209.871$254, menos 55.183$334 que no ano anterior. No entanto, a estimativa em 31
de julho de 1840 calculou os encargos na ordem dos 266.048$561, valor muito superior
ao apresentado. É também interessante e relevante observarmos os seguintes mapas:
recurso do Estado em 30 de junho de 1839, a tabela dos impostos cobrados em 1837-
7
Chamamos a atenção para as disposições legislativas que solicitaram informações detalhadas sobre os
rendimentos do imposto do subsídio literário. A Portaria de 18 de novembro de 1837 requereu discriminação
sobre a arrecadação fiscal nos anos de 1834,1835 e 1836 em todo o Reino, situação idêntica foi publicada
em 28 de junho de 1851, reclamando a apreciação para o biénio de julho de 1851 a junho de 1853. As leis
de 20 de maio, 29 de agosto, 16 e 10 de outubro, 11 de novembro de 1837 solicitou dados sobre a cobrança
nos concelhos de Guarda, Santarém, Coimbra, Vila Real, Lisboa e Aveiro; os despachos de 15 março e 7
junho de 1838 defiram procedimentos de cobrança do imposto em todo o Reino. Em 12 de Julho do mesmo
ano foi publicada tabela de arrematação do rendimento para o período de 1 de julho de 1838 até 30 de
junho de 1842. Seguiram-se projetos-lei promulgados no mesmo ano e referentes ao distrito de Leiria. A
portaria de 12 de julho de 1839 solicitou as certidões de remessa do imposto relativo ao distrito de Coimbra.
As duas portarias em 22 de outubro e 2 de novembro de 1841 definiram os procedimentos de cobrança no
Reino. Solicitações requeridas igualmente em 10 de dezembro de 1844, 12 janeiro e 18 de março de 1850
e em 24 de dezembro de 1852. Em 19 de Fevereiro de 1853 foi adicionada nova condição ao processo de
arrematação para o distrito de Aveiro em cumprimento com o Regulamento de e a Lei de 15 de abril de
1857extinguindo o imposto no Continente e substituindo-o pela taxa fiscal da contribuição predial,
mantendo-se a sua cobrança nas ilhas. A portaria determinou ainda que o rendimento médio dos últimos
10 anos económicos- 1846-1856 fixado em 115.904$780 era colocado diretamente na receita total da
contribuição predial, sendo posteriormente repartida pelos distritos administrativos. Mais fez saber que a
importância cobrada no ano de 1857 1.328:752$000 era distribuída pelos 17 distrito, segundo a
reordenação administrativa e territorial- 24 de outubro de 1855- e em cumprimento com as condições
estipuladas em 17 de julho de 1855 pondo em prática princípios de equidade fiscal.
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1838 e em 1838-1839 em todos os distritos administrativos e, por último a demonstração
por distritos, para que possamos melhor compreender a solicitação do deputado.
No primeiro documento registamos as importâncias apuradas por cobrar no Continente -
193.743$783- e no distrito do Funchal 10.45$462 - relativas ao subsídio literário, no
segundo discriminamos em três colunas: a regularização da cobrança na sua totalidade
nos anos económicos de 1837-1838 e 1838-1839, os valores em falta relativamente aos
impostos diretos, onde se inclui o rendimento do mencionado imposto e o valor total das
cobranças em falta rendimentos próprios, impostos diretos e indiretos, diversos
rendimentos e relaxado ao contencioso -, referindo-nos somente às três regiões
apontadas na solicitação do deputado Dias e Sousa. Apesar de reconhecermos o esforço
político empreendido pelo Estado os valores totais em cobrança em 30 de junho de 1839
eram ainda muito significativos.
Quadro 1 - Tabela da Contadoria da Fazenda relativa à cobrança e arrecadação do imposto do
subsídio literário
Contadoria da Fazenda
Valores totais cobrados nos
anos económicos 1837-38 e
1838-39
Impostos diretos
Valores totais
em cobrança
85.414$318
24.071$081
54.318$216
404.233$435
851.997$928
567.748$926
95.293$213
102.139$815
55.518$411
Fonte: Ministério das Finanças, Secretaria Geral - Repositório, Orçamentos de Estado 1839
No que diz respeito ao “subsídio literário” podemos confirmar a partir da mesma tabela
que a regularização do pagamento do imposto no ano económico de 1837-1838 elevou-
se em 56.492$973 e no ano seguinte em 53.215$178. Poderemos considerar auspiciosa
em especial para a instrução a recuperação económica empreendida pelo Governo? Para
o Estado sim. Não temos dúvidas. Para o sector da educação, designadamente para o
corpo docente, não estamos em crer. A interpretação imediata permite-nos constatar e
compreender, a perseverante estratégia política do executivo, no sentido de tentar
equilibrar os rendimentos e as despesas do Estado, procurando atenuar as fragilidades
económico-financeiras. Mas, por outro não podemos deixar de confirmar as profundas
dificuldades económicas e sociais dos professores exemplarmente retratadas nas
petições entregues nas Cortes.
Apesar dos dados pormenorizados nos documentos referentes ao Ministério do Reino, a
ausência da indicação do número de professores afetos a cada região administrativa e
respetivas remunerações, não nos permitiram elaborar um mapa da rede escolar. Assim
sendo, entendemos ser conveniente recuar e avançar um ano económico para que seja
possível construir o mapa da rede escolar. Constatámos que o corpo docente nomeado
em 1838 era precisamente o mesmo em 1840 no que diz respeito ao nível de ensino
elementar nos distritos de Leiria, Lisboa e Santarém. No caso da instrução secundária,
registamos pontual diminuição na região de Lisboa, mantendo-se nas outras duas regiões
o mesmo número de contratações.
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Quadro 2 - Mapa da Rede escolar para os distritos de Leiria, Lisboa e Santarém nos anos de 1838
e 1840
Instrução primária
Instrução Secundária
Distrito
1838
1840
1838
1840
Leiria
38 Professores
1 Mestra
1 Prof. ensino
mútuo + 1 Ajudante
38 Professores
1 Mestra
1 Prof. ensino
mútuo e 1
Ajudante
5 Prof. Latim
1 Prof. Retórica
1 Prof. Lógica
5 Prof. Latim
1 Prof. Retórica
1 Prof. Lógica
Lisboa
117 Professores
18 Mestras
1 Prof. ensino
mútuo + 1 Ajudante
(Lisboa)
1 Prof. ensino
mútuo (Belém
Casa Pia)
117 Professores
18 Mestras
1 Prof. ensino
mútuo + 1
Ajudante
(Lisboa)
1 Prof. ensino
mútuo (Belém
Casa Pia)
1 Prof. Língua
Árabe
3 Prof. Filosofia
6 Prof. Latim
3 Prof. Grego
2 Prof. Retórica
3 Prof. substitutos
1 Prof. Língua
Árabe
1 Prof. História
Natural
6 Prof. Latim
3 Prof. Grego
2 Prof. Retórica
1 Prof. substituto
Santarém
44 Professores
1 Mestra
1 Prof. ensino
mútuo + 1 Ajudante
44 Professores
1 Mestra
1 Prof. de ensino
mútuo + 1
Ajudante
7 Prof. Latim
1 Prof. Retórica
1 Prof. Lógica
7 Prof. Latim
1 Prof. Retórica
1 Prof. Lógica
Fonte: Ministério das Finanças, Secretaria Geral - Repositório, Orçamentos de Estado de 1838 e
1840
Da observação do mapa da rede podemos concluir que, os dados relativos a 1839 não
devem diferir muitos dos que se apresentaram para 1838 e 1840.
Entendemos igualmente importante analisar o orçamento de estado para o ano
económico de 1840-1841, procurando encontrar mais evidências que permitam
comprovar melhorias na administração das contas públicas e na gestão escolar. O
rendimento direto da cobrança do “subsídio literário” para o referido ano económico
estimou-se em 114.809$000, proveniente da alfândega das Sete Casas, refletindo uma
diminuição face ao ano anterior em cerca de 56$000. A arrecadação por distrito
apresentou as seguintes importâncias: Leiria 4.640$000; Lisboa 16.787$000 e
Santarém 10.330$000.
O orçamento de Estado para a instrução primária e secundária estimou-se em
209.871$254, menos 1.413$346 que no ano anterior. Se tivermos em consideração o
valor total da taxa fiscal (114.809$000) e a proposta orçamental para os assuntos do
ensino elementar e complementar (209.871$254) apercebemo-nos claramente da
insuficiência de meios financeiros para fazer face a todas as despesas com a educação.
8
Se tivermos em consideração o rendimento da taxa fiscal e a proposta orçamental para
o ano económico de 1840-1841, compreendemos o desafio que o governo enfrentou.
8
Considerámos interessante aqui apontar a intervenção do deputado João Baptista da Silva Leitão de Almeida
Garrett na sessão de 9 de julho de 1841 no decorrer da discussão do projeto, apresentado pelo governo
para o lançamento da décima. O parlamentar chamou a atenção para as propostas de aumento do imposto
“subsídio literário”, que tinham por objetivo de colmatar as diferenças financeiras na instrução,
proporcionando desse modo o seu necessário desenvolvimento, recusando aceitá-las manifestando-se
contra as iniciativas que promoviam o aumento de impostos.
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Quadro 3 - Registo dos rendimentos do imposto do subsídio literário pela Alfandega das Sete Casas
e orçamento para a instrução pública primária e secundária
Distrito
Imposto “Subsídio Literário”
Orçamento
Leiria
4.640$000
5.456$666
Lisboa
16.787$000
22.400$000
Santarém
10.330$000
6.456$666
Fonte: Ministério das Finanças, Secretaria Geral - Repositório, Orçamentos de Estado de 1840
Os valores evidenciados nos distritos de Leiria e Lisboa revelaram óbvias dificuldades no
que diz respeito à sustentação financeira do corpo docente. Ainda que tenhamos que ter
em conta que a informação detalhada sobre o número de professores por disciplinas nem
sempre tenha correspondido á sua efetiva colocação, relembramos as repetidas petições
que reclamavam a nomeação de docentes. É também interessante realçar que a
aquisição de materiais didáticos e a renovação dos espaços escolares não se encontrava
contemplada no orçamento, criando desse modo uma interpretação imprecisa das
despesas com a instrução. Todavia, o podemos deixar de sublinhar o esforço dos
poderes públicos Câmara dos Representantes e Governo- no incentivo à formação de
crianças e jovens, ainda que o retrato da rede escolar não evidencie essa atuação, no
quadro que apresentámos relativo aos distritos de Leiria e Lisboa. O principal motivo
impeditivo de uma ação mais robusta, e reiteradamente o evocamos, encontra-se na
exigência de controle orçamental que se manifestou de forma expressiva na redução da
contratação de professores ao longo da década de 40 do século XIX.
No ano de 1849 duas representações deram entrada na Assembleia pelas mãos do
representante da Estremadura Francisco António da Fonseca. A primeira requereu a
criação de uma escola de instrução primária sob a administração da junta de paróquia
da freguesia do Carvalhal - concelho do Cadaval - tendo sido enviada a solicitação para
a comissão de instrução. A segunda petição subscrita pelos proprietários agrícolas do
mesmo concelho solicitou melhorias na agricultura vinhateira, tendo seguido o respetivo
requerimento para a comissão especial dos vinhos. A apresentação conjunta dos pedidos,
não é indicativa de uma ação política concertada tendo em conta a interpretação que
suscitam. Estamos em crer que foi uma oportuna coincidência, como muitas outras que
encontramos na leitura das atas parlamentares. No entanto, não podemos deixar de
aqui registar a sua pertinência e conveniência. Ao requerimento do concelho do Cadaval
juntar-se-ão outros da mesma região do Oeste (Aldeia Galega, Merceana, Alenquer,
Lourinhã, Óbidos, Alcoentre) e do concelho de Leiria, da zona da Península de Setúbal e
Alentejo, reclamando controle e proteção nas pautas comerciais e reconhecimento de
prémios de produção. Obviamente que não poderíamos deixar de referir que as
reivindicações da principal região de produção vinícola nacional, o Alto Douro, se refletiu
em outros assuntos de natureza económica e social, centrados também na produção
agrícola e nos encargos financeiros. Porém sublinhamos na apreciação a estas
reivindicações, a intenção do município de Leiria em requerer a aprovação de medidas
especializadas na agricultura e a “total abolição” ou diminuição da sua contribuição no
imposto do “subsídio literário”. (DP-MCCDN, sessão n.º 77, 11/04/1849: 87). O
cumprimento e a exigência dos compromissos financeiros revelavam-se cada vez mais
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pesados contribuindo sucessivamente para a debilidade económica. A resistência política,
o apego ás características da sociedade de Antigo Regime eram ainda muito marcantes,
ainda que reconheçamos a vontade política em promover a(s) reforma(s).
O parecer da comissão de instrução em relação ao requerimento de Francisco António da
Fonseca não se fez tardar. A resposta foi concordante com a fundamentação dos
moradores da freguesia alegando o pagamento do imposto em 400$000 na proporção de
a freguesia contar “mais de trezentos fogos”. Perante o argumento que fundamentou o
pedido no exemplar cumprimento fiscal a pronta deliberação da comissão foi aprovada
sem discussão parlamentar, seguindo-se a tramitação para o executivo. Procedimentos
que terão sido muito morosos, considerando nova representação da Junta de paróquia
apresentada pelo deputado Paulo Romeiro da Fonseca em 16 de março de 1857,
sublinhando na sua intervenção as “grossas colectasefetuadas pelos munícipes tendo
em conta as características vinícolas da região, sugerindo desse modo “o dever de
restituição” (DP-MCCDN, sessão n.º 57, 16/03/1857: 140) para apoio do
desenvolvimento da instrução primária no concelho.
Em 1849 a comissão de instrução pública não teve dúvidas em aprovar o justo pedido
dos moradores da freguesia do Carvalhal relativo à fundação de uma escola de instrução
primária. No ano seguinte o deputado Agostinho Albano apresentou uma interpelação
ao ministro da Fazenda sobre a evolução do imposto nos últimos anos face ao aumento
da produção vinícola e os respetivos arrolamentos, arrematação e fiscalização da
cobrança, revelando desproporcionalidades na produção e inventariação dos preços,
identificando irregularidades na arrecadação do imposto, em prejuízo do erário publico.
A resposta ministerial de António José de Ávila, foi breve e sucinta apontando
decisivamente para a extinção do imposto, ainda que não tenha apresentado qualquer
proposta nesse sentido.
A proposta legislativa chegou pelas mãos do deputado por Viseu José Isidoro Guedes,
nomeando o projeto–lei como “salvador da nossa lavoura dos vinhos” (DP-MCCDN,
sessão n.º 88, 7/05/1850: 62). Nele regulamentou a atividade produtora e respetiva
exportação, propondo a abolição do imposto do “subsídio literário” permitindo a rescisão
dos contratos e a arrecadação dos rendimentos calculados, expressando vontade política
e ambição social na condução à alteração do sistema fiscal.
A contestação política à manutenção da contribuição fiscal do subsídio literário” era cada
vez mais ruidosa. As inconsistências na definição da cobrança e as irregularidades na
administração dos rendimentos eram os principais focos de objeção. No entanto, não
podemos deixar de assinalar as incertezas políticas que a eliminação do imposto provocou
no debate parlamentar e na reapreciação das diferentes rúbricas das contas blicas.
Assim como também não podemos deixar de relevar a contínua importância do contributo
fiscal na promoção da instrução elementar.
O subsídio literário sob o movimento da “Regeneração”. Continuidade
ou Rutura
Os requerimentos lidos e analisados nas sessões das Cortes a partir de 1851 não
evidenciaram arbitrariedades e excessos na administração dos rendimentos do “subsídio
literário” destinados à formação elementar. Nenhuma solicitação convocou o imposto
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como motivo principal para o atraso na remuneração dos professores de instrução
primária.
A questão económica e financeira continuou a ser a principal razão que mobilizou os
professores dos diversos níveis de ensino. Os argumentos que sustentaram as
reclamações prosseguiram os mesmos desígnios: o pagamento das remunerações,
providenciando o sustento da família, e o respeito pela dignidade da carreira docente.
Seguiram-se outras exigências, mencionadas e reconhecidas anteriormente: a fundação
de escolas de instrução primária e secundária, a promoção do ensino feminino, que
sublinhamos tendo em conta a maior atenção que foi lhe foi dedicada, o restabelecimento
de cadeiras complementares, o apoio e incentivo às aprendizagens elementares para os
trabalhadores, vulgarizando o ensino noturno e a formação de adultos. Outras
convocações foram também analisadas nas Cortes, expondo outras necessidades,
apresentando outras apreciações e perspetivas sobre a instrução pública. Destacamos, a
solicitação regular de relatórios institucionais aos órgãos de administração política sobre
o sistema de ensino, sobre a fiscalização de práticas pedagógicas, sobre a avaliação de
metodologias de aprendizagem, nomeadamente sobre o método repentino, ou
português, sobre o incentivo e o apoio à produção científica de obras académicas e
materiais didáticos, e ainda sobre a organização dos procedimentos administrativos na
gestão escolar. Estes requerimentos não foram somente apresentados pela sociedade
civil, foram igualmente exigidos pelos representantes da Nação. De facto, podemos
assegurar que decorridos estes primeiros anos de experiência e afirmação liberal, a
década de 50 assomou-se na defesa e confirmação dos princípios políticos que
enformavam o movimento liberal.
Prosseguindo a afirmação ideológica e preservando os princípios de liberdade política, os
representantes da Nação continuaram solicitamente a atender a todos os requerimentos
que deram entrada na Assembleia, e a todos eles celeremente responderam. A diligência
parlamentar das décadas anteriores manter-se-ia. Assim como a decisão política, a
derradeira deliberação, permanecia nas mãos no governo que procurou decidir com
rapidez embora a execução tenha sido amiudadamente morosa.
As dificuldades financeiras que o País continuou a atravessar na segunda metade do séc.
XIX exigiram a maior disciplina na realização de despesas. Assim não surpreende a opção
de continuidade na atividade política, apesar da aprovação de algumas reformas.
Sublinhamos as consequências das alterações administrativas- territoriais que
prolongaram o controverso debate relevando as divisões socioeconómicas que se
manifestaram nas Cortes. Destacamos igualmente a continuidade do sistema tributário
assegurando, de certo modo, estabilidade à ação do executivo. No entanto, não podemos
deixar de realçar o estimulante debate parlamentar sobre a sua modernização conferindo
à discussão, sobretudo a partir da segunda metade do séc. XIX, um certo fascínio pela
mudança e, simultaneamente, dúvidas e interrogações que caracterizaram o cenário
político. As dificuldades de cobrança de impostos, conforme verificamos, a
possibilidade de aumento das contribuições, dificilmente bem acolhidas, ou a extinção de
tributos obrigavam à alteração de procedimentos institucionais e administrativos, ou
seja, impeliam à reforma do Estado. E tal renovação impunha aos principais atores, a
decisão, de modernizar, de atualizar as instituições políticas com custos para o Estado.
(Freire, Lains, Miranda, 2011: 347).
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A reclamada modernização fiscal colocou, rapidamente em 1821,- Cortes Gerais e
Extraordinárias da Nação- sob análise a crítica aplicação dos rendimentos do imposto do
“subsídio literário”. Regulamentado para prover à educação de meninos e jovens
assegurando a criação dos “meios necessário para a perpétua conservação” (L.R, 1772:
642) dos mestres e professores, determinou os procedimentos administrativos de
cobrança e definiu os órgãos de jurisdição, também remunerados pela determinação
régia. Nos primeiros anos de administração fiscal os rendimentos provenientes do
subsídio literário foram efetivamente superiores pelo que foi possível providenciar as
remunerações dos professores de instrução pública -primeiras letras e menor-,
proporcionando ainda atribuição de verbas para as regulares necessidades do Colégio
dos Nobres e para o ensino superior. O desvio de verbas do “subsídio literáriopara
outras finalidades que não as que presidiram à sua criação foi fortemente criticado nas
primeiras assembleias legislativas Oitocentistas, reclamando-se veementemente o
imediato desenvolvimento da instrução das primeiras letras. Estas Opiniões foram sendo
proferidas de forma cada vez mais vigorosa exigindo aos governos o respeito institucional
e o cumprimento rigoroso do regulamento.
A possibilidade de extinção do imposto do “subsidio literário” foi assinalada pelo ministro
da fazenda António José de Ávila na sessão de 16 de fevereiro de 1850 no decorrer da
nota de interpelação feita pelo deputado Agostinho Albano, a que fizemos referência,
sobre a desconformidade entre os cálculos da produção vinícola e a real cobrança de
impostos expressa no Orçamento do Estado, situação que se traduziu em prejuízo
financeiro do Tesouro, face aos benefícios económicos que os arrematantes alcançavam.
A crítica parlamentar sobre as receitas do imposto deixou de se cingir à aplicação dos
rendimentos fiscais no desenvolvimento da instrução primária e secundária em
conformidade com a disposição jurídica tomando um outro rumo: a defesa da justiça
fiscal.
As irregularidades na cobrança tributária, acentuaram sistematicamente, os prejuízos
financeiros do Estado e o seu reflexo evidenciou-se explicitamente na apreciação global
das receitas públicas. Desse modo, o discurso político privilegiou e priorizou “na oratória
dos seus ministros e parlamentares, a eficiência da liquidação e arrecadação” (Mata,
2006; 70) como bandeira de combate às desigualdades sociais.
Considerando que o nosso estudo é dedicado à promoção da instrução pública e sua
concretização, direcionámos a nossa análise para uma linha diferente: a da apreciação
dos Orçamentos de Estado entre 1851-1861 nas rúbricas: -receitas impostos diretos
“subsídio literário” - e despesas com a instrução pública primária e secundária.
Ao analisarmos o quadro construído a partir dos documentos: orçamento do rendimento
e cálculo de despesas para o capítulo da instrução pública e para as rúbricas do ensino
primário e secundário nos diferentes anos económicos, constatamos ser impossível
satisfazer as necessidades da alfabetização e da formação complementar nas receitas do
imposto.
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Quadro 4 Tabela comparativa por anos económicos relativa a receitas e despesas com a instrução
pública na sua totalidade e por níveis de ensino
Ano Económico
Receitas
Impostos Diretos- “Subsídio
Literário”
Despesas
Instrução Pública
Despesas
Instrução Primária e
Secundária
Continente
Ilhas
1851-1852
127:695$560
5:393$378
368:257$710
198:279$900
1852-1853
127:717$900
6:221$000
387:775$710
198:169$900
1853-1854
127:376$434
7:777$469
378:516$610
203:630$300
1854-1855
123:643$000
3:289$207
408:774$090
212:922$100
1855-1856
123:643$382
2:086$382
411:914$510
215:337$200
1856-1857
123:643$382
2:086$665
425:809$145
221:361$823
1857-1858
123:643$000
3:832$635
413:826$820
237:109$640
1858-1859
-----------
3:033$507
463:123$790
241.181$775
1859-1860
-----------
2:017$378
474:142$115
250:543$600
1860-1861
-----------
609$531
527:388$220
258:045$970
1861-1862
-----------
370$826
559:949$720
270:226$095
Fonte: Ministério das Finanças, Secretaria Geral - Repositório, Orçamentos de Estado de 1851 a
1861
A leitura dos documentos permite-nos igualmente comprovar um aumento regular dos
encargos com a instrução pública na sua generalidade, ainda que as medidas de controle
orçamental discutidas nas Cortes e exigidas pelos sucessivos atores políticos tenham
estado sempre presentes na agenda política. À primeira vista, e tendo em conta o que
afirmámos, assistimos a um aumento das despesas para a Instrução Pública na ordem
dos 10%-15%, à exceção dos anos económicos de 1853-1854 e de 1857-1858, em que
verificamos uma quebra percentual aproximadamente dos mesmos valores. Se
observarmos a coluna das verbas destinadas à instrução primária e secundária a
oscilação ainda que pequena expressou uma aposta no desenvolvimento desse ensino.
Relevamos também, apesar de não se encontrar indicado no quadro, as retificações
financeiras registadas ao longo dos anos económicos elevando os montantes inicialmente
previstos para as despesas com a instrução pública em cerca de 5%. É, sem dúvida, mais
um sinal que devemos ter em atenção e que pode explicar a ação política de
desenvolvimento da instrução pública, independentemente do nível de formação.
Mas tenhamos em conta outros elementos relativos aos primeiros níveis de instrução.
Começamos pelas verbas atribuídas às escolas de formação pedagógica de Professores,
ainda que possam ser consideradas verbas residuais. A institucionalização das escolas de
formação de professores foi concretizada para o sexo masculino em 1862 e para o
sexo feminino em 1866.
9
No entanto, a indicação das quantias destinadas à formação e
9
Desde 1852 que os documentos sobre as estimativas de despesas para o ministério do Reino referente à
instrução pública primária apresentavam valores financeiros a atribuir á formação pedagógica dos
professores, ainda que a atividade tenha sido inexistente. Será apenas a partir de 1857 até 1869 e em
conformidade com o artigo 5º do regulamento de 20 de fevereiro de 1856 que a indicação das verbas para
as escolas normais sediadas em Lisboa e em Santarém correspondem à sua efetiva realização. A partir da
década de 70 do século XIX assistimos a propostas de alargamento da rede de formação de professores
(Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Viseu). Foi durante a governação de António Bernardo da Costa Cabral
Ministério do Reino- que se publicou O regulamento da Escola Normal Primária do Distrito de Lisboa (1845)
instituindo a formação pedagógica de professores. Todavia, a sua implementação ocorreu anos mais tarde
em 1862 em Marvila, dedicando-se a instituição à formação didática de professores para o sexo masculino.
No caso da educação feminina a escola situada no Recolhimento do Santíssimo Sacramento, no calvário
iniciou a sua atividade formal em 1866. Os estudos de Joaquim Pintassilgo e Lurdes Serrazina, A escola
Normal de Lisboa e a Formação de Professores _ arquivo, História e Memória (2009), de Joaquim Pintassilgo
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habilitação da careira docente foi continuadamente apontada desde 1852 nos orçamentos
do Estado.
Assinalamos igualmente a indicação oficial por distritos administrativos do número de
professores por níveis de instrução designados para a prática escolar, ainda que muitas
disciplinas estivessem por prover e permanecessem inativas. Poder-se novamente
considerar que se tratava de valores muito reduzidos. Sem dúvida, mas não despicientes.
Por último, apontamos a insignificante, e por vezes, inexistente atribuição de verbas para
a aquisição de material didático, para a renovação dos espaços escolares e para a dotação
de mobiliário adequado à prática de ensino
10
. A promoção de instrumentos didáticos
adequados à idade e nível de aprendizagem, a adoção de novas metodologias de ensino,
que aliassem a instrução elementar aos valores morais permitindo alfabetizar e
desenvolver competências, bem como a definição adequada dos espaços para a prática
letiva incluindo espaços específicos para a prática da atividade física, foram temas que
suscitaram atenção académica e apreciação política.
Ainda que possamos ter muitas vidas sobre aplicação do imposto do “subsídio literário”
no desenvolvimento da instrução primária e da formação complementar pública temos
que reconhecer que os valores financeiros arrecadados durante o período da
“Regeneração” eram insuficientes para sustentar a instrução nos dois níveis de ensino. E
desse modo, melhor compreendemos os pedidos reivindicando a sua extinção.
O debate parlamentar sobre o projeto de lei proposto pelo Governo para extinguir o
“subsídio literário “teve lugar nas sessões de 21 e de 23 de março de 1857. O preâmbulo
da proposta apresentada pela Comissão da Fazenda acentuou as desiguais
contribuições”, o “excessivo” peso fiscal que recaia “sobre algumas classes de
contribuintes”, aludindo de seguida aos procedimentos administrativos “dispendiosos” e
aos benefícios dos “contratadores” reconhecendo, desse modo a injustiça social,
colocando em perigo os princípios da sociedade liberal.
11
O “subsídio literário” era
substituído pelo aumento “da contribuição predial na importância do termo medio do
produto deste imposto nos dez últimos anos de arrematação”, ou seja, o valor médio
apurado, calculado em 115:904$780 réis, entrava diretamente nas contas da
contribuição predial, sendo repartida equitativamente pelos distritos administrativos do
território continental. (DP-MCCDN, sessão nº 62, 21/03/1857: 196).
e Maria João Mogarro, Das escolas normais às escolas do magistério primário: percurso histórico das escolas
de formação de professores do ensino primário (2014) e de Nuno Martins Ferreira, A escola normal primária
de Lisboa em Benfica -1916-1930- (2018) contribuem para um melhor conhecimento da formação de
professores no seus primórdios.
10
O estímulo à leitura e ao desenvolvimento cultural, a vulgarização da instrução e da formação enformam a
sociedade Oitocentista e neste contexto a promoção das bibliotecas publicas na segunda metade do século
XIX, a partir da década de 70 assumiram um papel mobilizador que deve ser recordado. Sublinhamos os
estudos de Maria Manuela Tavares Ribeiro, (1999) Livros e Leituras no Século XIX, o artigo de Eduardo
Arriada, Gabriela Medeiros Nogueira e Mônica Maciel Vahl (2012) A sala de aula no século XIX: disciplina,
controle, organização, a tese de Doutoramento Maria de Fátima Machado Martins Pinto,(2017) Bibliotecas
Populares em Portugal: práticas e representações esboçar de uma missão (1870-193), de Carlos Manique
da Silva, (2013) Escolas , Higiene e Pedagogia: Espaços desenhados para o ensino em Portugal (1860-
1920), (2016) Práticas Pedagógico-didáticas e a sua influência na configuração do espaço escolar. A
materialidade das escolas de ensino mútuo em Portugal. À luz dos diretórios do Método (1835-1844).
11
Para uma perspetiva ideológica ver os capítulos obra de José Luis Cardoso História do Pensamento
Económico, Temas e Problemas, (2001) referentes à Ética e Economia: a dimensão moral na análise
económica; Economia e Direito: enquadramento normativo da ação económica; Mercado e Estado: papeis
e funções dos agentes ecomicos; Economia aberta ou fechada? A falsa opção entre livre-cambismo e
protecionismo, as referências ao período liberal.
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Atentemos ao debate. A primeira intervenção política revelando “apreensão “foi proferida
pelo deputado Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, Conde de Samodães. A
argumentação distinguiu duas posições. Sustentando-se nos mesmos princípios -
“injustiça” e “desigualdade” - o deputado defendeu simultaneamente quer a sua
supressão, quer a sua manutenção. As justificações apresentadas para a manutenção do
imposto apoiavam-se na defesa dos interesses económicos dos grandes proprietários,
em particular dos agricultores vinhateiros da região do Douro, duvidando da distribuição
equitativa dos rendimentos pelos distritos administrativos que o executivo apresentava
na proposta.
12
Para o deputado a aprovação ou rejeição da proposta obrigava os
representantes da Nação a assumir uma posição que os dividia entre proteger os
interesses de natureza económica, ou amparar a sociedade, que para o Conde de
Samodães permanecia na “miséria”. O peso financeiro provocado pela falta de produção
vinícola, a dificuldade de controle do deficit, a defesa dos interesses económicos dos
proprietários e sobretudo o risco de sobrecarregar a sociedade com mais impostos
deveriam ser equacionadas pela Câmara no momento da votação. Estava dado o mote
para o debate.
Seguiu-se a intervenção do deputado eleito pelo círculo da Lousã José de Morais Pinto de
Almeida. Apesar da inicial declaração de voto a favor do projeto, a sua intervenção
acompanhou as preocupações levantadas pelo Conde de Samodães, em torno das
questões económicas e socias sublinhando a falta de fiscalização do executivo na
concessão de moratórias aos mais devedores, prejudicando toda a sociedade.
António Rodrigues Sampaio, Maximiano Xavier Osório de Figueiredo, António de Serpa
Pimentel, Paulo Romeiro, José Ferreira de Macedo Pinto e António Xavier Rodrigues
Cordeiro expressaram o seu apoio ao executivo, ainda que se tenham feito sentir algumas
inconsistências na comunicação, evidenciando dúvidas, contradições e crispações
políticas relativas aos procedimentos a adotar na cobrança do imposto e na sua respetiva
distribuição por regiões administrativas. As questões de natureza económico-financeira
dominaram claramente o debate político na primeira sessão de discussão pública. E sobre
a relevância política do imposto no desenvolvimento da instrução nem uma única palavra.
Foi na sessão seguinte que o deputado Rodrigues Cordeiro convocou a atenção da
Câmara para o momento da criação do “subsídio literário” aludindo à sua maior relevância
na “sustentação das escolas” para de imediato enveredar pela análise económica
referindo-se à importância das taxas fiscais, á sua proporcionalidade nas regiões
vinhateiras e às “moléstias” que atingiam as vinhas. A apreciação do projeto, na segunda
sessão parlamentar encaminhou-se de novo para as dúvidas de natureza política, social,
económica que a extinção do imposto necessariamente suscitava. As controversas
posições políticas, oscilando entre a aprovação e a impugnação à alteração fiscal a que
tínhamos assistido na sessão de 21 de março, mantiveram-se nos discursos dos
12
A nota que adicionamos à intervenção do deputado é alusiva à referência que o próprio fez durante a sua
intervenção política justificando que as demonstrações estatísticas que apresentou relativas aos níveis de
produção vinícola, aos rendimentos da atividade e às dificuldades dos seus proprietários não advém
exclusivamente do facto de ser um representante do circulo eleitoral do Douro mas porque concorda com
os “princípios de justiça e equidade , princípios que a Comissão ( da Fazenda) inculca no seu parecer” esta
foi a única razão que o deputado manteve ao longo da sua comunicação. (DP-MCCDN, sessão 62,
21/03/1857: 200).
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representantes da Nação: José come Correia, António Luís de Seabra, António de
Serpa Pimentel, Roque Joaquim Fernandes Thomaz, Faustino da Gama e Paulo Romeiro.
A importância de salvaguardar os interesses da Nação da “injustiça” e da “desigualdade”
que assinalou a análise à obrigação tributária marcou todas as intervenções
parlamentares. A garantia da igualdade fiscal, evitando o aumento de impostos e a
cobrança desproporcional quer do ponto de vista social, quer em função das regiões
administrativas distinguiram continuadamente o discurso político.
Ainda assim, a importância que o “subsídio literáriotinha na promoção da instrução
pública, apesar da referência inicial feita pelo parlamentar Rodrigues Cordeiro, na sessão
de 23 de março, só voltou a ser mencionado, e muito brevemente, pelo deputado Paulo
Romeiro na mesma reunião. Atentemos ao excerto da sua intervenção onde se refere à
instrução pública:
O subsidio literário, como muito bem disse o meu ilustre amigo e colega por
Leiria, que abriu hoje este debate, foi criado para subsidiar e desenvolver a
instrução publica no país. Não entrarei na apreciação da maneira por que o
seu rendimento se aplicou constantemente em relação ao fim para que foi
instituído. Mas o que é verdade, é que nem esse fim, tão santo e justo como
é, pode justificar hoje a sua ressurreição. Pois que! A instrução publica não é
um beneficio comum a toda a sociedade, não deve toda ela contribuir para a
sua retribuição? As portas da ciência estão porventura, ou devem estar
vedadas a qualquer classe ou a qualquer individuo que as procura? Não é um
dever da sociedade moderna, não só abri-las de par em par para todos, mas
chamar e atrair todos para ela? A classe agrícola foi nunca mais favorecida do
que. as outras n'esta partilha da civilização? Por que se de dizer a essa
classe, a quem, se olhou sempre com mais desfavor do que a nenhuma outra
- paga tu só, para beneficio de todos? - Por que não hão de ser extensivos a
todos os encargos, como o são os benefícios que devem resultar d'eles? (DP-
MCCDN, sessão nº63, 23/03/1857: 22)
Terminada a discussão parlamentar a proposta foi aprovada pela Câmara. Quanto ás
tabelas relativas ao pagamento do imposto em função da proporcionalidade populacional
(fogos) nos diferentes distritos (contribuição total) a votação foi nominal evidenciando-
se claramente a divisão política na Cortes (76 a favor, 41 contra). Tendo sido promulgada
a lei em 15 de abril de 1857.
Na sessão de 27 de agosto de 1861 discutiu-se a extinção do imposto nas ilhas
adjacentes. A experiência política de 1857 refletiu-se na apreciação do projeto-lei 103,
propondo a extinção dos “dízimos, décima predial, quinto, subsídio literário, finto na ilha
da Madeira, e quartos de maquias na ilha de S. Miguel, “(DP-MCCDN, sessão nº142,
27/08/1861: 2434). Apresentados pedidos de aditamento ao projeto a discussão foi feita
na especialidade e os artigos foram sendo sucessivamente analisados e aprovados,
consoante as particularidades das ilhas
13
. Assim sendo, e em conformidade com os
13
O primeiro suplemento foi apresentado pelo deputado José Maria Sieuve de Menezes (círculo de Vila Praia
da Vitória). Seguiram-se propostas muito específicas dos deputados das Ilhas de Francisco Manuel Raposo
Bicudo Correia (Ribeira Grande) António Vicente Peixoto de Mendonça e Costa (Horta)e António Gonçalves
de Freita (Ponta do Sol) juntando-se ao debate os representantes: Joaquim Tomás Lobo de Ávila
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procedimentos administrativos, respeitando a Carta constitucional, a sua publicação foi
registada em 11 de Setembro do mesmo ano, passando a ser aplicada a partir de 1 de
janeiro de 1863 na Madeira e desde 30 de junho do mesmo ano nas ilhas açorianas
assegurando “a organização das respetivas matrizes” para que a lei de acordo com os
prazos estabelecidos “possa ter execução” (L.R. 1861: 367)
Conclusão
O estudo que temos vindo a realizar sobre as políticas públicas de instrução a partir da
leitura das atas das sessões parlamentares permite-nos ter uma imagem, em diversas
perspetivas, da sociedade portuguesa revelando os seus contrastes. A experiência do
liberalismo político, iniciado em 1820 e entrecortado pela reação absolutista em 1823,
foi oscilando entre os processos de regeneração política e os movimentos
contrarrevolucionários. Esta ação pendular na atividade política teve naturalmente os
mesmos efeitos na estrutura social, refletindo-se igualmente nas questões de natureza
económica.
A situação económica caracterizada pelo deputado Manuel Fernandes Tomás em 5 de
fevereiro de 1821 revelou as grandes fragilidades do país. Debilidades que provocaram
a agitação política, comprometendo o grande desígnio da Nação: o progresso. Palavra
determinante na comunicação política, vocábulo mobilizador da sociedade liberal.
A exigência ideológica dos ideais liberais reclamando a rutura com o passado foi, ao longo
do século XIX, chocando com uma mentalidade mais conservadora que procurava
assegurar continuidade nos processos políticos. Pensamentos e ações percorreram
caminhos distintos entre a modernidade suscitando a mudança e, a tradição preservando
o costume e a memória. Percursos que se entrelaçaram de forma contínua, confirmando
a renovação pretendida, apesar das frequentes oposições à mudança.
As manifestações ideológicas divergentes, na apreciação dos assuntos da instrução e da
educação, não devem ser apreciadas de forma depreciativa, pelo contrário devem ser
tidas em consideração, tendo presente a vontade e a aspiração da Nação no progresso.
o espectro das dificuldades financeiras que ensombrou o Estado, e que se foram
fazendo sentir nos diversos sectores de forma constante, apesar do ânimo que a
sociedade portuguesa foi acalentando, foram determinantes para compreender as ações
prudentes tomadas pelos governos muitas vezes escolhendo uma opção de continuidade
política, ainda que tenhamos que reconhecer e enaltecer as intervenções invocando a
necessidade reformista.
Tenhamos em conta as leis supremas do Estado. As Constituições políticas da Nação
promulgadas em 1822, 1826 e 1838, sob o auspício da liberdade, consagraram o direito
à instrução. Não obstante as diferenças significativas na redação dos artigos que
confirmaram o direito individual à formação escolar, a gratuitidade da aprendizagem das
primeiras letras, adjudicando ao Estado, ao Tesouro Público, a sua preservação financeira
revelou de forma clara uma importante opção política. A manutenção do imposto do
(Santarém), Francisco Manuel da Costa (Minho) e Joaquim José da Costa Simas (Bragança). O Ministro da
Fazenda António José de Avila que acompanhou o debate esclarecendo as dúvidas dos representantes da
Nação sobre pormenores processuais tendo em vista a aplicação da lei nas diferentes regiões
administrativas assegurando sempre o princípio da equidade fiscal.
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subsídio literário, criado por Pombal, permitiu em larga medida a prossecução das linhas
de orientação política para o desenvolvimento do sistema de ensino.
Apesar da muita contestação parlamentar, especialmente ideológica e em particular
durante a vigência das Cortes Extraordinárias 1821-1822, a sua subsistência tributária
foi determinante para a apreciação generalizada do sistema de ensino. Os indícios de
desvio dos rendimentos do imposto “subsídio literário” para remunerar os professores do
Colégio dos Nobres- também instituído por Pombal e para suprir outras dificuldades do
tesouro satisfazendo outras instituições e graus de ensino sublinharam a importância
financeira da contribuição, evidenciando o valor económico dos rendimentos.
As petições em nome individual ou coletivo lidas e analisadas nas Cortes fundamentaram
as reivindicações de criação de escolas de primeiras letras e de cadeiras de ensino
secundário apelando ao cumprimento das normas relativas à contribuição fiscal. O devido
pagamento do imposto do “subsídio literário” permitiu à sociedade civil e aos poderes
municipais reclamar a sua correta aplicação na instrução elementar, na educação moral
e na aprendizagem dos valores cívicos, a par a formação e aquisição de competências
técnicas que proporcionavam o desenvolvimento do Estado e o seu crescimento
económico.
Aprendizagens que proporcionavam o exercício e a participação cívica que se exigiu, e
que se contínua a exigir ao cidadão. Valores essenciais no passado, e no presente, para
o desenvolvimento sociocultural para o crescimento económico, para o progresso da
Nação. Princípios que o Estado pretendeu e ambiciona preservar consolidando nas ideias
de liberdade, igualdade e justiça, a construção social. Ideias primordiais que
fundamentaram a debate sobre a extinção do imposto do subsídio literário.
Referências
Fontes e Bibliografia
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de Portugal 1143-2010. Lisboa: A esfera dos livros
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XIX, Encontros Ibéricos da Educação, Vol.5, Encontro, p 49-73
Legislação Régia - 1815-1816 (1815-1816) - Colecção Legislação (parlamento.pt). 1815,
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Legislação Régia - 1861 (1861) - Colecção Legislação (parlamento.pt). 1861, p. 366 e
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Martins Ferreira, Nuno (2018). A Escola Normal de Lisboa em Benfica (1916-1930).
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Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Sessão 54 (28/03/1835). [Consult. 01/03/2016]. Disponível na Internet: Debates
Parlamentares - Diário 054, p. 689 (1835-03-28) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Cortes Geraes, Extarordinárias e Constituintes da Nação Portugueza [Em Linha]. Lisboa:
Assembleia da República, Sessão 43 (13/03/1837). [Consult. 01/03/2016]. Disponível
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Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
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Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Sessão 88 (07/05/1850). [Consult. 01/03/2016]. Disponível na Internet: Debates
Parlamentares - Diário 088, p. 60 (1850-05-07) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Sessão 57, 62 e 63 (16/03/1857) (21/03/1857) (23/03/1857) . [Consult.
01/03/2016]. Disponíveis na Internet: Debates Parlamentares - Diário 057, p. 139
(1857-03-16) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Debates Parlamentares - Diário 062, p. 193 (1857-03-21) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Debates Parlamentares - Diário 063, p. 211 (1857-03-23) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Câmara dos Senhores Deputados da Nação [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da República,
Sessão 142, (27/08/1861) . [Consult. 01/03/2016]. Disponíveis na Internet:
Debates Parlamentares - Diário 142, p. 2432 (1861-08-27) (parlamento.pt)
Portugal - Assembleia da República Debates Parlamentares: Monarquia Constitucional:
Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza [Em Linha]. Lisboa: Assembleia da
República,
Portugal - Assembleia da República Legislação Régia: Colecção Legislação [Em Linha].
Lisboa: Assembleia da República, 1772, p. 642. [Consult. 03/12/2017]. Disponível na
Internet: Legislação Régia - 1763-1774 (1763-1774) - Colecção Legislação
(parlamento.pt);
Portugal Ministério da Educação - Secretária Geral da Educação e Ciência- Repositório
Digital da História da Educação, Legislação, [Em Linha].Resolução Régia 31-10-1814,
p.334. [Consult. 10/11/2016]. Secretaria-Geral da Educação e Ciência (mec.pt)
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Portugal Ministério das Finanças, Secretária Geral - Repositório, Orçamentos de Estado
[Em Linha]. [Consult. 01/07/2021]. Orçamentos | SGMF
Sousa, Fernando de; Vieira, Francisco; Dias, Joana (2004). A cobrança de impostos
régios pela Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (1772-1832).
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p 1033-1046
Valério, Nuno; Nunes, Ana Bela; Bastien, Carlos; Mata, Maria Eugénia (2006). Os
orçamentos no Parlamento Português, Lisboa: Assembleia da República e Publicações
Dom Quixote
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Dezembro 2021
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SOCIABILIDADE PATRIÓTICA E DEFESA DA CAUSA CONSTITUCIONAL
ANA CRISTINA ARAÚJO
araujo.anacris@sapo.pt
Doutorada em História Moderna e Contemporânea, é Professora Associada com agregação na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal), investigadora do Centro de História
da Sociedade e da Cultura e diretora da Revista de História das Ideias. Tem-se dedicado à
investigação em História das Ideias e da Cultura, séculos XVIII e XIX. É autora de numerosos
artigos, em publicações nacionais e estrangeiras, e de vários livros, como A morte em Lisboa.
Atitudes e Representações (1700-1830), Lisboa, 1997; A Cultura das Luzes em Portugal. Temas
e Problemas, Lisboa, 2003; e Memórias Políticas de Ricardo Raimundo Nogueira (1810-1820),
Coimbra, 2011. Co-coordenou recentemente o livro Gomes Freire de Andrade e as Vésperas da
Revolução de 1820, Lisboa, 2018 e obras coletivas de referência sobre a Universidade no período
pombalino.
Resumo
A modernidade filosófica do Iluminismo contribuiu para a mudança de agentes culturais e
de redes internacionais do conhecimento. Os veículos de comunicação intelectual, à escala
europeia, foram expandidos e secularizados. Novas formas de sociabilidade intelectual e
patriótica surgiram na esfera pública. Neste contexto, a sociabilidade mundana foi marcada
pelo estabelecimento de associações filantrópicas, económicas e patrióticas. Neste estudo
destacamos a importância que três associações tiveram no final do século XVIII e inícios do
século XIX: a Sociedade dos Mancebos Patriotas com sede em Coimbra (1780); o Montepio
Literário (1813); e a Sociedade Patriótica Literária de Lisboa (1822).
Palavras chave
Luzes, Sociabilidade, Sociedades Patrióticas, Filantropia
Como citar este artigo
Araújo, Ana Cristina (2021). Sociabilidade patriótica e defesa da causa constitucional.
Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução
(1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.5
Artigo recebido em 21 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 29 de Julho de 2021
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SOCIABILIDADE PATRIÓTICA E
DEFESA DA CAUSA CONSTITUCIONAL
ANA CRISTINA ARAÚJO
No período que medeia entre a segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX
ocorreram mutações significativas nos espaços, agentes e mecanismos de sociabilidade
literária, cultural, científica e política na sociedade portuguesa. Sob a influência das
Luzes, marcada por novas perceções da cultura e da filosofia de tipo enciclopedista, e
tendo em conta os conhecidos canais de acesso à produção impressa estrangeira, por
meio da circulação clandestina de livros, periódicos, novidades literárias e do teatro,
foram despertando em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra um conjunto diversificado
de instituições associativas (Araújo, 2003). Em Portugal, à semelhança do que aconteceu
em outros países europeus, a participação e a interação mundana caracterizaram os
espaços de lazer, as tertúlias literárias e as sessões de recriação filosófica frequentados
pelas elites culturais e por homens e mulheres letrados (Chartier, 1990). O convívio social
e a acuidade a temas e problemas ligados à atualidade por parte destes grupos sociais
acabaram por refletir as mudanças operadas no modo de apropriação e partilha do
conhecimento, ensaiada primeiro em círculos culturais de recorte cosmopolita, em
certames e encontros marginais aos tradicionais convívios cortesãos e em sessões
académicas (Araújo, 2017a).
Portanto, as modernas dinâmicas de sociabilidade fizeram-se sentir de forma diferente
em associações de cunho intelectual com reportório marcadamente pedagógico, como
era o caso das academias literárias, científicas e militares, em sociedades económicas,
como foi o caso da Sociedade Económica dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público
de Ponte de Lima, direcionadas para o desenvolvimento económico e educativo local, e
em reuniões mais ou menos anónimas, no café, no botequim e no passeio público,
espaços onde a politização dos debates foi especialmente evidente a partir do alvorecer
de Oitocentos. Nas grandes cidades, a par destes lugares de conversação e convívio
expostos ao olhar de curiosos e à denúncia de espias ou agentes da Intendência Geral
de Polícia, havia ainda os salões literários, o mais conhecido dos quais tutelado pela
marquesa de Alorna, as assembleias privadas e públicas, as lojas maçónicas, as
sociedades patrióticas, os gabinetes de leitura, a Biblioteca Pública de Lisboa, criada em
1796, e outras bibliotecas de acesso mais controlado, mas igualmente frequentadas por
curiosos e eruditos de vários quadrantes sociais. Estes lugares propiciaram o
alargamento de diversos elos de sociabilidade, nem sempre encadeados entre si, mas
quase sempre dominados por preocupações mundanas, filosóficas e políticas. Apreciados
em conjunto, estes espaços sinalizavam a emergência de uma nova morfologia
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sociocultural urbana, especialmente em Lisboa, e contribuíam para desarticular os
tradicionais suportes de convivência das elites, conferindo um cunho mais interclassista
às associações de natureza instrutiva e recreativa.
Apesar das diferenças existentes entre as associações e as instituições atrás
mencionadas organizadas ou informais, espontâneas ou seletas, com ou sem
patrocínio do rei ou de um mecenas, secretas ou públicas , verifica-se que na maioria
delas os seus membros perseguiam o desígnio de progresso da sociedade e de
modernização cultural. No âmago de uma renovada convivialidade de eixo presentista,
moldada por preocupações seculares, características do horizonte filosófico e científico
da segunda metade do século XVIII, mas também no seio dos mais variados cenáculos
literários e académicos, “os indivíduos procuravam um lugar, mais do que meramente
devotado ao ócio, onde pudessem pensar, debater e criticar livremente. Desprendidos
que estavam das habituais diligências e convenções a que, noutras instâncias como a
Corte ou a Universidade, se achavam obrigados, eles vão, assim, ao mesmo tempo,
atualizando os seus interesses e gostos e redefinindo, enquanto atores, a esfera pública
em que se inserem” (Silva, 2020: 27).
Como afirma Maria Alexandre Lousada, esses novos espaços de encontro e debate de
ideias funcionaram como autênticos “laboratórios sociais” e revelaram-se fundamentais
para a emergência da esfera pública política em inícios de Oitocentos, já sob os auspícios
da Revolução Francesa (Lousada, 2017: 319).
Não é possível avaliar, em breves palavras, os modelos de organização e reunião destas
agremiações, nem tão-pouco o produto do labor empenhado de algumas delas, mas a
partir de um ou de outro caso é fácil perceber que muitas tinham como ponto de partida
discussões em círculos de amigos versando temas relacionados com projetos de
melhoramento público, obras filantrópicas e educativas. Os espíritos mais esclarecidos
consideravam portanto que a amizade e a filantropia convergiam para o aperfeiçoamento
do género humano, inspirando a ação de notórias figuras identificadas com os ideais das
Luzes (Ramos, 1988: 99).
Neste contexto, sem outro fim que não fosse o contributo desinteressado de uns em prol
de todos, nasceram as chamadas sociedades dos amigos do bem comum, também ditas
sociedades patrióticas. O programa destas sociedades mostrava que a mobilização civil
era determinada pela correlação prática da instrução, da filantropia, da divulgação
científica e do fomento da atividade económica. Em Portugal, o modelo que vingou, com
manifesta tibieza, foi inspirado no robusto figurino espanhol das sociedades economicas
de los amigos del pais. Do outro lado da fronteira, o movimento de expansão das
sociedades económicas iniciou-se no País Basco, com a Sociedade Vascongada (1764) e
contou com o apoio expresso do ministro Campomanes. Em Portugal, as sociedades
económicas constituídas por bons patriotas, no âmbito da sociedade civil, participavam
de um novo entendimento da cultura científica e da sua utilidade para o bem-estar da
nação. Eram também portadoras de uma renovada visão do patriotismo, não ancorado
em feitos bélicos, na ancestralidade dos antepassados e em grandes honrarias mas numa
dimensão vica de pertença territorial, de presença social e de participação ativa na vida
da comunidade. Em termos práticos, apontava-se para um patriotismo alicerçado na
participação de cada em prol do bem de todos e para o desenvolvimento económico da
região, da localidade e do país (Catroga, 2013).
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Nas décadas de 70 e 80 do século XVIII, surgiram nas regiões do Minho, Elvas, Douro,
Valença e Évora, várias tentativas de constituição de sociedades patrióticas (Cardoso,
1989: 110; Vaz, 2002: 222). A única que chegou a ter um funcionamento regular foi a
Sociedade Económica dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público de Ponte de Lima,
fundada em 1779-1780. Tinha por objetivos promover a Agricultura em todos os ramos,
que a respeitão, as Artes, e a Industria. Previa a constituição de uma livraria enriquecida
com obras de natureza económica, a publicação de memórias e a instituição de escolas
patrióticas, gratuitas, onde se ensinariam ofícios, por exemplo, a tecer e branquear o
linho. Previa também a aquisição de máquinas, utensílios agrícolas, sementes e plantas,
bem como a concessão de prémios monetários, depois de devidamente aprovados pelos
sócios, àqueles que solucionassem problemas respeitantes aos diversos ramos da
agricultura.
Dispondo de um programa objetivamente ambicioso, a Sociedade Económica de Ponte
de Lima, muito por falta de uma base social de apoio sólida acabaria, à semelhança de
outros projetos, por soçobrar. A despeito disso, porém, não deve ser negligenciado o
facto de ter tido como vice-presidente um limiano ilustrado, o ministro António de Araújo
de Azevedo, futuro conde da Barca, e de as suas aspirações reformistas terem
permanecido em embrião e influenciado a formação de outras associações congéneres.
Neste campo, merece destaque a tentativa de constituição de uma Sociedade dos
Mancebos Patriotas Estabelecida em Coimbra no ano de 1780 debaixo da Real Protecção
de sua Alteza o Serenissimo Senhor Principe do Brazil, cujos Estatutos Literários.
Provinda do meio académico e arquitetada por um grupo de estudantes, esta associação
económica procurava incorporar e levar mais longe o espírito científico, de matriz técnico-
experimental e racionalista que presidira à reforma pombalina da Universidade de
Coimbra (1772). Guiados pela certeza de que era imperiosa a instrução e vulgarização
do conhecimento científico pretendiam os mancebos, ou seja, os rapazes sócios da
agremiação patriótica instituir um organismo versado nas ciências naturais e ativo no
processo de desenvolvimento da produção regional. Dito de outro modo, pretendiam criar
uma sociedade patriótica que fosse capaz de sensibilizar os cidadãos das províncias do
reino para a utilidade social do conhecimento técnico-científico. O Memorial que
acompanhava os Estatutos Literários e Económicos da Sociedade afirmava, portanto, que
“os mancebos estudiosos, filhos da Universidade, aplicados às Sciencias da Natureza [...]
para o futuro jurarão prestar à Pátria os esforços dos seus talentos”
1
.
A sociedade que “nasceu sobre os votos dos bons cidadãos” recomendava que nas suas
atividades e reuniões blicas e particulares se praticasse “a união, a simplicidade no
comportamento, a sinceridade nas consultas e conferencias”
2
. Entre outras atividades,
relacionadas com recolha de amostras de História Natural, com a promoção de culturas
apropriadas à natureza dos solos e com o desenvolvimento das manufaturas locais, os
sócios deviam produzir regularmente memórias científicas sobre os trabalhos de campo
a empreender.
Neste capítulo, contavam com a tradução de inúmeras obras didáticas e memórias
instrutivas consentâneas com este e outros projetos de sociedades patrióticas. Refiram-
se apenas alguns títulos desta moderna e especializada biblioteca de textos económicos
1
ANTT, Real Mesa Censória, nº 702.
2
ANTT, Real Mesa Censória, nº 702, fls. 26-27.
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e patrióticos. O Discurso sobre a Educação e Fomento dos Artistas (1774) de
Camponanes, divulgado em diferentes versões portuguesas, remetia claramente para o
modelo instrutivo de promoção das atividades económicas praticado em Espanha. Mas
outros textos circularam em Portugal na década de oitenta do século XVIII, como
demonstram as traduções e artigos publicados na Miscellanea Curioza e Proveitoza, entre
1781 e 1785 (Nunes, 2001: 55-61); as remissões à Sociedade Económica de Berna,
criada em 1766, feitas por Jo António de no Compendio de Observaçoens que
formão o plano de Viagem Politica e Filosofica que se deve fazer dentro da Patria (1783)
e por Vilalobos e Vasconcelos nos Elementos de Polícia Geral de Hum Estado (1786-
1787); e como atesta ainda a tradução de Francisco Xavier do Rego Aranha dos
Elementos de Agricultura fundados sobre os mais sólidos princípios da razão, e da
experiência, para uso das pessoas do campo, que mereceram o premio da Sociedade
Economica de Berne em 1774 por Mr. Bertrand, dada ao prelo, em Lisboa, em 1788. A
conceção deste livro remonta ao tempo de fundação e/ou refundação da Sociedade dos
Mancebos Patriotas de Coimbra, aceitando como balizas do ciclo de vida desta
agremiação, de acordo com as datas de 1780 e a rasura de 1785 que constam do texto
manuscrito dos seus Estatutos. Conforme explica na dedicatória e na advertência a esta
edição Manuel Henrique de Paiva, que dá ao prelo a obra, a tradução daquela memória,
cujo autor era pastor protestante e membro da Sociedade de Berna, fora realizada pelo
“bacharel F. X. Aranha (...) no tempo, em que estudava jurisprudencia e historia natural
na Universidade de Coimbra: e havendo-ma entregado para della fazer o que entendesse,
assentei comigo que faria grande utilidade ao Publico, publicando-a com algumas notas,
que esclarecessem a matéria” (Araújo, 2017b: 114-115).
Apesar da sua envolvência institucional e instrutiva, a Sociedade dos Mancebos Patriotas
Estabelecida em Coimbra não chegou a sair do papel, pois os estudantes envolvidos na
sua conceção acabaram julgados em 1781 depois de terem sido imputadas condutas
errantes e libertinas a Manuel Henriques de Paiva, Vicente Seabra da Silva Teles,
Francisco José de Almeida, Francisco de Melo Franco, António de Moraes Silva, Pereira
Caldas e outros estudantes (Ramos, 2001: 311-326).
Também ligada à instrução pública, mas com uma finalidade eminentemente filantrópica
surgiu, em 1813, com um outro figurino associativo, o Monte Pio privativo dos
professores e mestres da Corte, que passou a funcionar regularmente a partir de 1816
(Araújo, 2021). O Montepio formou-se por iniciativa de um grupo de professores régios
que se uniu com o propósito de remediar o progressivo empobrecimento da classe e de
responder às dificuldades vividas durante as invasões francesas (1807-1811) e no pós-
guerra. Os fundamentos da associação assentavam, portanto, num programa filantrópico
e mutualista destinado a um conjunto amplo de associados e famílias de professores e
homens de letras.
No essencial, os fundadores do Montepio procuraram acautelar, de forma voluntária e
livre, condições dignas de sobrevivência na velhice a um grupo considerável de indivíduos
que se superiorizavam da população em geral pelo domínio da cultura escrita mas cujos
recursos materiais eram notoriamente baixos. A iniciativa de constituição desta
associação patriótica e mutualista replicava assim o sentido originário de outras
associações mutualistas e de beneficência existentes na Europa, conforme comprovavam
os estatutos da associação.
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O projeto do Montepio Literário, designação porque ficou conhecida esta associação, foi
ideado por Joaquim Lemos Seixas Castel-Branco, professor régio de primeiras letras na
cidade de Lisboa, cavaleiro da ordem de Cristo e proprietário do colégio dos Cardaes de
Jesus, por ele fundado na capital, em 1815. Joaquim de Seixas Castel-Branco era um
homem ilustrado, subescrevia os Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, jornal de
exílio, publicado, em Paris, por Solano Constâncio, e procurava ajustar a sua atividade
pedagógica aos ideais humanitaristas e filantrópicos das Luzes. À época era também
adepto do constitucionalismo liberal britânico. Antes de lançar, com outros apoiantes, o
projeto do Montepio Literário deu ao prelo, em 1809, um curioso opúsculo intitulado
Breve mas circunstanciada noticia do governo e constituição da Grã-Bretanha, com huma
noticia geral de todas as revoluções que tem acontecido aos reis e á nação. Tanto quanto
sabemos, trata-se do primeiro escrito de que há notícia de adesão expressa ao modelo
constitucional inglês publicado em Portugal. Portanto, não foi indiferente à consumação
do paradigma de sociabilidade mutualista de Joaquim Lemos Seixas Castel-Branco esta
referência ideológica que, sendo fruto da sua formação intelectual, acabou por ser
publicamente sustentada no contexto das guerras napoleónicas e da crise internacional
de inícios do século XIX.
Mas voltando agora ao Compromisso do Montepio, ou estatutos, é sabido que o termo
de aprovação desta associação foi subscrito, inicialmente, por pouco mais de 130
professores e homens de letras. Aos requerentes a sócios do Montepio pedia-se que
atestassem a sua profissão, morada e idade e, não sendo professores, que
apresentassem também uma certidão de vitae et moribus passada pelo pároco da sua
freguesia. Em suma, todos os associados deviam ser indivíduos virtuosos e
trabalhadores, discretos e respeitadores do compromisso lido no ato de matrícula e sobre
o qual haviam prestado juramento ao serem admitidos. Uma vez matriculados, passavam
a ter o estatuto de compromissários. Contraíam um encargo financeiro inicial e pagavam
mensalmente ao cofre do Montepio uma contribuição, com o objetivo de acautelarem
uma subvenção, em caso de doença e fatalidade de perda de emprego na velhice, ou
uma tença, por morte, a favor, primacialmente, de suas viúvas e órfãos. No termo de
inscrição ou matrícula o compromissário devia declarar os nomes dos familiares diretos
que estatutariamente podiam beneficiar do cofre da associação mutualista.
O Montepio congregou, à partida, inúmeros espíritos ilustrados. Alguns dos seus
membros eram maçons, como António Maria do Couto (Marques, 1990, 342) e, com
grande probabilidade, alguns associados terão mesmo mantido contactos com o grupo
de conspiradores que reunia na Rua do Salitre, em vésperas da conspiração de Gomes
Freire de Andrade.
Pelos seus propósitos mutualistas, sociais e culturais, esta associação prenunciava a
emergência de um padrão secularizado de sociabilidade e de novas preocupações
filantrópicas na esfera civil. De forma livre, voluntária e a coberto de um sistema de
quotizações, oferecia aos seus associados uma série de socorros mútuos, incluindo a
pensão de reforma atribuída aos associados e suas viúvas a partir da constituição de um
fundo financeiro próprio.
Mas outros aspetos importantes a referir: o Montepio ramificou-se por todo o país, ou
seja, tinha sede em Lisboa e delegações nas províncias. Era uma associação secularizada
formada por homens livres e beneficentes, com uma filosofia distinta do modelo de
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caridade das confrarias e irmandades religiosas. Os seus estatutos proibiam mesmo os
associados de envergarem, na sua festa anual, hábito religioso, opa ou qualquer insígnia
de alheia confraternidade. Os estatutos contemplavam também a “construção de hum
colegio de educação” destinado a acolher os órfãos dos associados e um recolhimento
para as suas viúvas e filhas solteiras que o chegou a ser criado (Couto 1816: 27). Com
o objetivo de praticar o bem e instruir os sócios aventou-se, mais tarde, a integração do
Gabinete Literário que funcionava, em 1821, contíguo às instalações do estabelecimento
mutualista num mesmo espaço comum sito na Rua dos Douradores, número 31.
Nos primeiros cinco anos de funcionamento do Montepio, o número de compromissários
foi sempre aumentando. Até ao ano de 1821, só em Lisboa candidataram-se a sócios do
Montepio cerca de mil indivíduos (Couto 1821: p. 11). Apesar do seu poder de
mobilização e da sua atratividade social, a associação mutualista passou por dificuldades
financeiras e logo após a instalação da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino
na capital, um dos seus primeiros atos blicos foi o agraciamento de Manuel Fernandes
Tomás com uma dula de compromissário honorário” do Montepio Literário
3
. O
reconhecimento de uma das figuras políticas mais influentes do movimento liberal,
assinalava assim a adesão da associação mutualista ao novo regime.
Para melhor inteligência da lei chegaram a ser coligidas, no decurso do triénio liberal,
novas regras a observar na instituição, que passaria a ter a designação de “Monte Pio
Nacional”
4
. Estas normas comportavam continuidades e mudanças, sendo a mais
relevante a que franqueava o acesso das mulheres ao Montepio, com o estatuto de
associadas ou compromissárias, isto é de benfeitoras
5
.
Ainda que não tenham sido postas em prática as recomendações da Comissão
administrativa Montepio Literário
6
, criada pelo executivo liberal, as preocupações
filantrópicas e humanitaristas da classe política ampliaram o debate, conferindo-lhe um
carácter interclassista e chamando à liça a participação das mulheres na associação
mutualista.
No contexto da revolução de 1820, disseminaram-se os focos de sociabilidade patriótica
e política. Muitos destes ativos polos de convergência de cidadãos empenhados na
mudança de regime tinham origem em instituições maçónicas e paramaçónicas fundadas
no âmbito da cultura, da beneficência, da atividade jornalística e da política parlamentar
(Gil Novales, 1975). Segundo A. H de Oliveira Marques a “maioria das sociedades
patrióticas que surgiu em Portugal em 1820-23 (estamos a falar de 18 sociedades
patrióticas) e, depois, em 1834-42, “teve origem maçónica”. Para todos os efeitos, este
autor não as equipara às lojas mas considera-as organizações paramaçónicas. (Marques,
1997: 267).
3
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, docs. 6 e 8. A cédula, lacrada e datada de 1 de outubro de 1820,
está assinada pelo Provedor substituto Joaquim José Ferreira de Carvalho, pelo Tesoureiro José António
Monteiro e pelo secretário Caetano Pedro da Silva. A carta justificativa desta concessão graciosa é também
assinada pelo promotor geral António Maria do Couto.
4
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, doc. 9, fl. 63 a 68v Coleção de Regras para o regimen do Monte
Pio Nacional.
5
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, doc. 9, fl. 64v-65 Coleção de Regras para o regimen do Monte Pio
Nacional.
6
Da incerta evolução posterior do Montepio pouco se sabe. Terá sobrevivido com dificuldades acrescidas até
se extinguir por total falta de crédito antes de findar segunda década do século XIX.
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A mais importante Sociedade patriótica do período vintista, foi fundada oficialmente em
Lisboa (2-1-1822) e chegou a reunir 269 afiliados. Referimo-nos à Sociedade Literária
Patriótica que teve também a sua origem ligada ao Gabinete de Leitura e Composição,
Gabinete Literário, fundado por uma Associação de Patriotas Portugueses e destinado a
congregar e a empreender todos os esforços em prol da Liberdade pela mais perfeita
Constituição
7
.
José Portelli que esteve diretamente envolvido na criação e funcionamento do Montepio
Literário foi também um dos fundadores da Sociedade Literária Patriótica, e do Gabinete
de Leitura e Composição
8
, levando-nos a presumir que uma e outra instituição eram
produto de uma mesma ideia-mãe. Isso mesmo é afirmado por Adrien Balbi no Essai
Statistique Sur Le Royaume De Portugal Et D’Algarve que relaciona os “membres qui
formaient le cabinet littéraire de Lisbonne, établi en 1821”, com a Académie littéraire,
sous le titre de Sociedade Literária Patriotica de Lisboa” (Balbi, 1822: 1-19).
Beneficiando das liberdades de reunião e comunicação que o novo regime possibilitara,
o Gabinete de Leitura e Composição desenvolveu inicialmente um plano de atividade de
clara orientação política liberal, mais inspirado no modelo das sociedades patrióticas do
que no clássico figurino dos cabinets de lecture (em França) ou das circulating librairies
(no Reino Unido). Pretendiam os fundadores do gabinete que o seu projeto servisse de
esteio a um ordenado e esclarecido processo de formação cívica, cuja intenção suprema
seria a de firmar a Liberdade pela mais perfeita Constituição.
Para tal, consideravam necessário assegurar, primeiro, a observância de uma série de
condições indispensáveis à sustentação e consolidação da Sociedade Literária Patriótica
que se formou a partir do Gabinete de Leitura e Composição. Cuidaram assim de garantir
através da cotização dos seus membros a viabilidade financeira da sociedade patriótica
e aplicaram todos os seus esforços na definição de um programa de formação ideológica
da sociedade civil. Entre os requisitos de funcionamento da sociedade avultava o carácter
internacional conferido à atividade dos cios. Estes deviam manter contacto regular com
o estrangeiro, nomeadamente por meio da consulta de jornais e periódicos espanhóis,
italianos, ingleses e franceses e estimular, sempre que possível, o relacionamento
próximo com agentes liberais desses países. Deste modo a Sociedade Literária Patriótica
participou ativamente daquilo a que Maurizio Izabella chamou a Internacional Liberal do
sul da Europa, no tempo da Restauração.
A Sociedade Literária Patriótica teve portanto um gabinete literário com oficinas de
leitura, previu editar obras originais e trabalhos de tradução e publicou um jornal,
ambição comum a outras organizações congéneres, nomeadamente, à Sociedade
Patriótica Constitucional ao Gabinete de Minerva que, no entanto, não conseguiram
materializar essa intenção.
O jornal da Sociedade Literária Patriótica era generalista. Continha uma série de artigos
sobre política mas também sobre arte, indústria, comércio, economia, ciência, história e
literatura. Dava a conhecer, com frequência, os assuntos tratados nas reuniões da
Sociedade Literária, que tinham lugar semanalmente. Noticiava e comentava os mais
7
O Portuguez Constitucional, nº 37, 4 de novembro de 1820.
8
Assim corrobora na Gazeta Universal nº 30, 7 de fevereiro de 1822, p. 2 quando noticia: “o M. R. P. Portelli,
Pai e fundador da Soc., de cujo prospecto he author, e para as bases da qual lançou pedra fundamental no
seu Gabinete Litterario”.
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recentes acontecimentos políticos internacionais (com destaque para os avanços da
Santa Aliança e para as pretensões de independência dos deputados do Brasil) e
publicava ainda leis, decretos, portarias, bem como extratos das sessões das Cortes.
Os responsáveis pela redação do jornal eram, ao todo, cinco distintos sócios. Entre os
redatores constavam Almeida Garrett e Nuno Álvares Pereira Pato Moniz, a quem se
atribui, aliás, a direção da redação do jornal (Balbi, 1822: 2-138), embora nenhum artigo
publicado no periódico da Sociedade Literária se faça, na verdade, acompanhar da
identificação de autoria.
O jornal era bissemanal e o seu corpo redatorial previra a publicação de suplementos
dedicados à causa da Constituição e da Liberdade. Na verdade encontramos artigos sobre
estas temáticas, como o célebre texto intitulado: Dos amigos e inimigos da patria e da
Constituição escrito com o intuito de reforçar o apoio á causa constitucional e de reprovar
todos aqueles que manchavam as leys fundamentaes ou Constituição do estado
9
.
A análise do corpo de sócios evidencia, como foi sublinhado por Maria Carlos Radich e
Diana Silva, o seu inegável carácter burguês (Radich, 1982: 2-125; Silva, 2020: 102-
103). No total, cerca de 40% dos seus membros estavam diretamente ligados ao
comércio e a atividades produtivas. Para além disso, 33% dos membros da Sociedade
Literária Patriótica pertenciam efetivamente à Maçonaria (Marques, 1997: 270).
As características sociológicas e culturais da associação revelavam-se consentâneas com
a transformação das práticas e dos espaços de sociabilidade ocorridos na sociedade
portuguesa na transição do século XVIII para o século XIX. Dito de outro modo, o
patriotismo cívico destas organizações emergentes correlacionava-se com a ascensão de
certos grupos sociais que, destacando-se pelas letras ou fazendo fortuna, procuraram
granjear no espaço de convívio intelectual e de lazer, prestígio, notoriedade e influência
política. Neste contexto, percebe-se o impacto que as sociedades patrióticas tiveram
sobre as camadas burguesas, mobilizando-as para a adesão ao liberalismo e para o
desenvolvimento do espírito cívico e político indispensável à conservação do regime
constitucional. Em grande medida, o crédito público da Sociedade Literária Patriótica
passou também pela discussão, esclarecimento e comunicação de tudo o que se discutia
nas Cortes Vintistas.
Finalmente é também interessante constatar que foi precisamente pela mão de um dos
sócios da Sociedade (e/ou sob sua tutela), João Damásio Roussado Gorjão, com a
colaboração provável de outros colegas, que nasceu a célebre obra de propaganda
eleitoral, Galeria dos deputados das Cortes Geraes Extraordinarias e Constituintes da
Nação Portuguesa, referente à primeira época do liberalismo e publicada para informação
do público, em vésperas das eleições para a segunda legislatura das Cortes
Referências
Fontes
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ANTT, Ministério do Reino, maço 360.
9
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Dezembro 2021
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CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
ltome@autonoma.pt
Professor Catedrático na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), onde é Director do
Departamento de Relações Internacionais, Director da unidade de investigação OBSERVARE-
Observatório de Relações Exteriores e Coordenador do Doutoramento em Relações Internacionais:
Geopolítica e Geoeconomia Investigador nas áreas das Relações Internacionais, Geopolítica e
Estudos de Segurança especializado nas regiões Euro-Atlântica, EurAsiática e Ásia-Pacífico.
É autor e coautor de mais de uma dezena de livros e de inúmeros ensaios e artigos publicados nas
revistas da especialidade.
Resumo
O que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir entre “ordem mundial” e “ordem
internacional”? Em que bases emergiu a ordem liberal e quais os factores que contribuem
para a sua erosão? Este artigo procura responder a estas questões, num texto dividido em
quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de “ordem” nas relações internacionais (RI),
a diferenciação entre ordem “internacional” e “mundial” e a nossa concepção de “ordem
internacional liberal”. Na segunda, justificamos o paradoxo de considerarmos que a ordem
liberal foi construída sobre o que muitos apelidam de “sistema vestefaliano” embora
rejeitemos essa designação e tipificação e, por outro lado, a tentativa inicial de construir uma
ordem liberal mundial a seguir à I Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na
terceira parte demonstramos a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II
Guerra Mundial, no quadro de uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria.
E na quarta evidenciamos que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria,
mas que esse processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a
sua desconstrução.
Palavras chave
Ordem Internacional, Ordem Mundial, Liberalismo, Relações Internacionais, História
Como citar este artigo
Tomé, Luis (2021). Construção e Desconstrução da Ordem Internacional Liberal. Janus.net,
e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-
2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.6
Artigo recebido em 30 de Agosto de 2021 e aceite para publicação em 13 de Outubro de
2021
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Construção e desconstrução da ordem internacional liberal
Luis Tomé
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CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO
DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
Introdução
Alguns dos debates mais emblemáticos e intensos nas Relações Internacionais incidem
sobre a caracterização da ordem internacional. Curiosamente, as muitas visões distintas
e contrastantes convergem na percepção de erosão da “ordem liberal”, tanto entre os
seus defensores como entre os seus opositores, alvitrando desde «O Fim da Ordem
Mundial Americana» (Acharya, 2014) a «Uma Nova Ordem Mundial Made in China»
(Gazibo e Chantal, 2011), «Ordem Mundial 2.0» (Haass, 2017), «um Mundo Pós-
Ocidental» (Flockhart et al., 2014), «A Emergência do Resto» (Beeson, 2020: 17-27) ou
«O Regresso da Anarquia» (Gaspar, 2019). Se para uns terá chegado ao fim a ordem
liberal «que nunca existiu» (Barnet, 2019; Ferguson e Zakaria, 2017), para outros «a
ordem liberal está viciada» (Colgan e Keohane, 2017) e outros questionam «Porque é
que o Internacionalismo Liberal Falhou» (Mead, 2021) ou se «A China Ganhou»
(Mahbubani, 2020). Enquanto alguns entendem que a ordem liberal é uma espécie de
regime constitucional da sociedade internacional e que, portanto, a sua continuidade não
depende das oscilações estratégicas das grandes potências, incluindo os Estados Unidos
(Ikenberry e Nexon, 2019), outros consideram que a ordem liberal pode existir num
sistema unipolar «onde o Estado líder é uma democracia liberal» (Mearsheimer, 2019:
7) ou que «Trump pode ser o catalisador involuntário para uma era mais equitativa... um
mundo multipolar» (Deo and Phatak, 2016). Se uns consideram os EUA um hegemon
benigno (Monteiro, 2014; Ikenberry e Nexon, 2019, Mearsheimer, 2018), outros
condenam o “hegemonismo” dos EUA e esperam que «Um período de colapso abra
possibilidades de criação de uma nova ordem mundial; esperançosamente, uma ordem
mais justa, estável e pacífica do que tem sido experienciado» (Karaganov e Suslov, 2019:
72). Se uns falam na emergência de uma “segunda” Guerra Fria ou até que EUA e China
poderão estar «destinados a entrar em Guerra» (Allison, 2017), outros acreditam que
«Não Haverá uma Nova Guerra Fria» (Christensen, 2021; Nexon, 2021) ou propõem um
“novo concerto de potências” que «Previna a Catástrofe e Promova Estabilidade num
Mundo Multipolar» (Hass e Kupchan, 2021). E enquanto para uns a ordem internacional
liberal «estava destinada a falhar desde o início, pois continha as sementes da sua própria
destruição», e que será inevitalmente substituida por uma «ordem realista»
(Mearsheimer, 2019: 7-9), outros sustentam que é possível salvar a ordem liberal
através de um «novo consenso normativo» (Kupchan, 2014 e Hass, 2021) ou
reformando-a (Colgan e Keohane, 2017 e Kundnani, 2017).
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Construção e desconstrução da ordem internacional liberal
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A estes debates somam-se confusões conceptuais promovidas também por dirigentes
políticos. Por exemplo, o Presidente Francês Emmanuel Macron, num discurso na
Assembleia-Geral da ONU, falou numa profunda crise na «ordre international libéral
westphalien», transcrita como «Westphalian liberal world order» na versão oficial em
inglês (Macron, 2018)
1
. Ou seja, Macron não se refere a uma “ordem liberal
vestefaliana” (portanto, assumindo numa mesma o que para muitos são duas ordens
distintas e opostas, a vestefaliana e a liberal) como usa indistintamente ordem
“internacional” e “mundial” apenas com variação no idioma em que se exprime.
Mas o que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir ordem mundiale “ordem
internacional” ou significam o mesmo? Por outro lado, em que bases emergiu a ordem
liberal e quais os factores que contribuem para a sua erosão e crise? Este artigo procura
responder a estas questões, explorando a construção da ordem internacional liberal e as
várias razões que explicam a sua desconstrução, perscrutando também os seus
elementos constitutivos e os dilemas e contradições que lhe são inerentes.
Em linha com outros trabalhos nossos, seguimos aqui uma abordagem eclética
2
e as
“teorias da complexidade”
3
. Com base num modelo descritivo-analítico, e apoiado em
literatura especializada e documentos e discursos oficiais, apresentamos os nossos
argumentos num texto dividido em quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de
“ordem” nas relações internacionais, a diferenciação entre ordem “internacional” e
“mundial” e a nossa concepção de “ordem internacional liberal”. Na segunda justificamos
o paradoxo de considerarmos que a ordem liberal foi construída sobre o que muitos
apelidam de sistema vestefaliano” embora rejeitemos essa designação e tipificação e,
por outro lado, a tentativa inicial de construir uma ordem liberal mundial a seguir à I
Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na terceira parte demonstramos
a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II Guerra Mundial, no quadro de
uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria. E na quarta evidenciamos
que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria, mas que esse
processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a sua
desconstrução.
1
A frase completa de E. Macron é a seguinte, nas duas línguas: «Nous vivons aujourd’hui une crise profonde
de l’ordre international libéral westphalien que nous avons connu» / «We are currently experiencing a deep
crisis of the Westphalian liberal world order that we have known».
2
A abordagem eclética assume que nenhuma das tradições de pesquisa/paradigmas/teorias convencionais
das RI, isoladamente e por si só, consegue abarcar e explicar toda a realidade internacional que, por
natureza, é complexa, dinâmica, imprevisível, adaptativa e coevolutiva. Assim, limitando o risco de a priori
alienar aspectos que podem ser cruciais, com pragmatismo e prudência, a abordagem eclética ultrapassa
as “expectativas naturais” dessas teorias, combina diferentes hipóteses explicativas e aproveita o potencial
das complementaridades aspecto ainda mais relevante pelas visões e propostas opostas e com que
frequentemente se digladiam as teorias liberais, realistas, construtivistas, sistémicas, funcionalistas,
estruturalistas, críticas e outras a respeito da ordem internacional. Para uma mais detalhada explicação
nossa sobre a “abordagem eclética” ver Tomé (2016).
3
Das teorias da complexidade extraímos, sobretudo, a assumpção de “não-linearidade”, que o resultado dos
comportamentos e interacções é “naturalmente imprevisível” e a noção de “sistemas complexos
adaptativos”, enfatizando as ideias de complexidade, coadaptação e coevolução dos actores e do sistema.
Uma nossa mais desenvolvida explicação acerca da pertinência e utilidade das teorias da complexidade e
da noção de “sistemas complexos adaptativos” na análise das Relações Internacionais encontra-se em Tomé
e Açikalin (2019). Para uma mais ampla explicitação das teorias do caos e da complexidade e o seu emprego
em diversas áreas científicas, designadamente nas ciências sociais e humanas ver, por exemplo, Erçetin
and Açikalin (2020).
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1. Ordem nas relações internacionais e ordem internacional liberal
Falar de “ordem” nas relações internacionais pode parecer contraditório, considerando o
carácter relativamente “anárquico” do sistema internacional radicado na soberania dos
Estados. Essa aparente contradição explica que vários teóricos evitem utilizar o termo.
Por exemplo, Raymond Aron refere-se somente a “paz”, que não é obviamente a mesma
coisa: para ele, as relações internacionais têm apenas duas formas, a guerra e a paz,
entendendo esta como «a suspensão, mais ou menos duradoura, de formas violentas de
rivalidade entre unidades políticas», descortinando «três tipos de paz: equilíbrio,
hegemonia e império» (Aron, 1984: 158). Já Hedley Bull prefere falar em “sociedade
internacional”, concebida como uma «sociedade de Estados [...] quando um grupo de
Estados, conscientes de certos interesses e valores comuns, formam uma sociedade na
medida em que concebem para si próprios limites nas suas relações mútuas por um
conjunto comum de regras e participam na atividade de instituições comuns» (Bull, 1977:
13). Pelo seu caráter exclusivamente estato-cêntrico, estas visões de teóricos realistas
são contestadas pelas teorias liberais, construtivistas, funcionalistas, estruturalistas,
críticas e outras. E, por exemplo, numa perspetiva radicalmente distinta estão aqueles
que sobrelevam o papel e o impacto dos actores o-estatais, capazes não só de
influenciar as decisões dos Estados, mas também o sistema internacional e até de
promover uma «sociedade civil global» (Keck e Sikkink, 1998).
Facto é que também entre os realistas há muitos que assumem o conceito de “ordem”
nas RI, como John J. Mearsheimer (2019: 9) que a define simplesmente como «um grupo
organizado de instituições internacionais que ajudam a governar as interacções entre os
Estados-membros». Na mesma linha, Bart M.J. Szewczyk (2019: 34) concebe “ordem”
como «um conjunto de regras e normas para governar o comportamento Estatal e não-
estatal, através do direito internacional baseado na Carta das Nações Unidas, tratados
multilaterais e normas políticas decorrentes da prática estatal». Todavia, enquanto
Szewczyk entende que o objectivo primário da ordem é «minimizar a violência e
proporcionar estabilidade. O seu oposto era a "desordem", caracterizada pela guerra,
conflito e incerteza.» (ibid.), Mearsheimer (2019: 9, nota 3) considera que ordem «não
é o oposto de desordem, termo que remete para caos e conflito».
Outra questão concerne à utilização, frequentemente de forma indistinta, das
terminologias “ordem internacional” e ordem mundial” além de “ordem global” que
alguns referem (Hurrel, 2007; Lo, 2020). O seu uso e distinção raras vezes é explicada
pelos autores (Bertrand, 2004), mas é relevante para nós aqui. Hedley Bull faz essa
diferença, considerando que «A ordem mundial é mais vasta» e «do qual o sistema
interestatal é apenas parte» (Bull, 1977: 21). Acrescenta que «A ordem mundial é mais
fundamental e primordial do que a ordem internacional porque as unidades finais da
sociedade de toda a humanidade não são Estados (ou nações, tribos, impérios, classes
ou partidos), mas seres humanos individuais [...]. A ordem mundial é moralmente
superior à ordem internacional», uma vez que os seus valores são os de toda a
Humanidade, e não apenas os que prevalecem na sociedade de Estados (ibid.). Na
mesma linha, embora com pressupostos distintos, James N. Rosenau, uma das principais
figuras da escola liberal das RI, desenvolveu o modelo de «bifurcação» entre dois mundos
no que apelidou de era da «política pós-internacional»: fundamentalmente,
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“internacionalcaracteriza a ordem no «mundo estato-cêntrico» entre Estados «limitados
pela soberania», utilizando “pós-internacional”, “mundial” ou “global” para descrever a
ordem no «mundo multicêntrico» dos actores não-estatais «livres de soberania»
(Rosenau, 1990 e 1997).
Em nosso entender, distinguir entre ordem “internacional” e “mundial” pretendendo que
a primeira se refere a uma ordem entre Estados soberanos e a segunda a uma que
envolva também os actores não-estatais, não faz sentido. A diferença é conceptualmente
pertinente e muito útil, mas com outros fundamentos. Na nossa concepção, “ordem
internacional” refere e caracteriza o padrão proeminente de ideias, valores, interesses,
regras, instituições, comportamentos e interacções entre actores, estatais e não-estatais,
podendo existir tanto numa escala regional como mundial, e incluir apenas uma parte
dos actores ou a sua generalidade. Quando a ordem internacional abrange o espaço-
mundo e os actores principais, transforma-se em “ordem mundial”. Dito de outro modo,
a ordem mundial pode incluir várias e distintas ordens internacionais, mas uma ordem
internacional é mundial ou global se e quando alargada à escala planetária. A distinção
assim feita é importante porque um dos nossos argumentos, como veremos adiante, é
que a ordem internacional liberal só se tornou mundial no final da Guerra Fria.
Por outro lado, ordem não é sinónimo de paz nem de estabilidade nem ausência de
competição, tal como não é simplesmente o contrário de desordem (caos e conflito) nem
um conceito caracterizador da balança de poder numa região ou no mundo. Mas está
associada a tudo isso, porquanto ordem atenua o carácter anárquico do sistema
internacional e o recurso à violência, limita a dependência dos jogos de poder e
proporciona um certo tipo de autoridade, regulação e estabilidade na convivência entre
actores. Uma ordem internacional pode existir e ser referenciada em função da estrutura
de poder, mas é mais do que o simples reflexo disso. A construção da ordem liberal está
ligada à supremacia do “Ocidente” e à hegemonia dos Estados Unidos, mas "liberal"
significa um conjunto específico de valores, normas e instituições, naturalmente distinto
do de outras visões e ordens internacionais. Importa, por isso, explicitar os seus
elementos constitutivos.
A ordem internacional liberal é normalmente caracterizada em torno de duas ideias
primordiais: por um lado, é «aberta e baseada em regras», em contraste com outra
«organizada em blocos rivais ou esferas regionais exclusivas» (Ikenberry, 2011b: xii),
estando «consagrada em instituições como as Nações Unidas e normas como o
multilateralismo» (Ikenberry, 2011a: 56); por outro, a associação entre liberalismo
político e liberalismo económico, também referidos à luz de termos como “democracia”
e “capitalismo”, o que para alguns cria «uma ordem internacional profundamente
dependente da natureza interna das unidades que a compõem» (Simão, 2019: 42).
Assim, a ordem internacional liberal inclui «mercados abertos, instituições internacionais,
comunidade democrática de segurança cooperativa, mudança progressiva, resolução
colectiva de problemas, soberania partilhada, primado da lei» (Ikenberry, 2011b: 6). Ou
é «baseada principalmente na democracia, nos direitos humanos, no primado da lei, nas
economias de mercado e no comércio justo.» (Szewczyk, 2019: 34) e no pressuposto de
que «apenas a ordem liberal considera o indivíduo um actor central com direitos
inalienáveis» (ibid.: 35). Outros preferem caracterizar a ordem liberal desagregando
tematicamente os seus «três elementos: a ordem de segurança, a ordem económica e a
ordem de direitos humanos» (Kundnani, 2017: 4-8). À ordem liberal estão também
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frequentemente associadas teorias como as da “paz democrática”, “interdependência
económica” e Pax Americana.
Independentemente das múltiplas formas de a caracterizar e referenciar os seus
elementos constitutivos, entendemos que a ordem internacional liberal se baseia na
promoção da Democracia Liberal; na economia de mercado aberta e no comércio livre;
numa certa limitação das soberanias dos Estados e na partilha de responsabilidades,
através da criação conjunta de regras comuns, primado da lei, multilateralismo e ação
colectiva; na segurança colectiva (segurança por todos, para todos e em nome de todos);
na livre navegação dos mares; no acesso livre aos "bens comuns globais" e na
disseminação e protecção dos “bens públicos globais”; no reconhecimento da
legitimidade de diferentes actores internacionais, estatais e o-estatais; e numa
concepção dos Direitos Humanos que implica a salvaguarda da liberdade individual,
dignidade humana e respeito dos direitos inalienáveis do indivíduo.
Alguns destes elementos podem enformar outras ordens internacionais, mas, no seu
conjunto, definem e distinguem o que consideramos ordem internacional liberal. Por
outro lado, os elementos constitutivos indicados foram evoluindo e sendo adaptados ao
longo da construção da ordem internacional liberal. No entanto, deve salientar-se que
nem todos esses elementos são reconhecidos como parte da ordem liberal, quer pelos
seus opositores, quer também por alguns dos seus defensores; que a sua caracterização
geral não significa que os promotores da ordem liberal respeitem sempre e todos os seus
preceitos; e que tensões e contradições entre elementos constitutivos da ordem
liberal.
2. Ordens anteriores e tentativa inicial de construir uma ordem
internacional liberal
Ao longo da História, existiram múltiplas e distintas ordens internacionais, normalmente
associadas a poderes imperiais e autoridades divinais. Essas diversas ordens
internacionais foram sempre limitadas no tempo e também no espaço (com sucessivas e
coexistentes ordens na Europa, no Médio Oriente, na Ásia e, entretanto, também no
Continente Americano), mesmo que algumas se pretendessem “universais”. Devemos
reconhecer, todavia, que o “Ocidente” tem sido o principal inspirador e âncora de certas
ordens internacionais e também da ordem mundial de grande parte dos últimos séculos.
Com efeito, muitas das ideias, doutrinas e ideologias (do liberalismo ao nacionalismo,
passando pelo capitalismo, socialismo, democracia, Estado-nação, soberania,
multilateralismo, institucionalismo) que haveriam de marcar várias e distintas
mundivisões sobre “ordem internacionalsurgiram na Europa e disseminaram-se fruto
do domínio e expansão colonial das potências europeias e, entretanto, da ascensão dos
Estados Unidos. Ainda assim, até ao Século XIX, partes substanciais do mundo e certos
actores, como o Império Otomano, a China ou o Japão, por exemplo, eram alheios a
essas ideias, e as ordens internacionais na Europa, na Ásia, no Médio Oriente e nas
Américas permaneciam largamente desconectadas entre si. Ou seja, existiam múltiplas
ordens internacionais regionais, mas não uma “ordem mundial”.
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A prévia ordem anárquica, mas não “vestefaliana”
Por outro lado, é muito frequente a ideia de que a ordem internacional liberal surgiu por
oposição e/ou foi construída sobre a “ordem vestefaliana”. Porém, não é adequado
associar aos Tratados de Vestefália (Münster e Osnabrück) de 1648 uma “ordem
internacional ou sequer um novo sistema internacional”, normalmente descrito como
“sistema vestefaliano”. Conforme demonstra com particular clareza Luís Moita (2012), a
Paz de Vestefália que pôs fim à “Guerra dos Trinta anos” na Europa não representou a
origem do Estado nacional territorializado, não inaugurou o conceito de soberania e não
fundou o “moderno” sistema europeu de Estados-Nações. Sem escamotear a importância
dos Tratados de Vestefália, a ordem europeia em meados do Século XVII não
corresponde a um sistema homogéneo estato-cêntrico. Prevaleceu uma situação difusa,
nela coincidindo formações políticas muito diversas e sobrepostas (de impérios a
principados, passando por Estados, reinos e outros territórios organizados sob diversas
configurações e designações) com diferentes graus de autonomia e em que, no essencial,
o Estado era “principesco” e os regimes absolutistas. mais tarde, no decurso dos
Séculos XVIII e XIX, se assistiu à disseminação e consolidação dos Estados nacionais no
sentido moderno, incluindo as unificadas Itália (1870) e Alemanha (1871), sendo etapas
decisivas nesse processo as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) e a
Revolução Industrial. Segundo Luís Moita (2012: 38)
o Estado-Nação, no sentido moderno do termo, resulta historicamente de uma
confluência de elementos: por um lado, o fim do ancien régime ditado pela
revolução francesa, por outro, a emergência do capitalismo industrial. O
primeiro factor sublinha a dimensão político-institucional, o segundo a
dimensão sócio-económica do processo», acrescentando que «a origem do
moderno Estado-Nação se deve articular com a emergência da sociedade
industrial e com o fenómeno do nacionalismo (ibid.: 39).
Entretanto, após as Guerras Napoleónicas, as grandes potências europeias
(essencialmente, “impérios”) estabeleceram, no Congresso de Viena de 1815, um
“Concerto” a fim de evitar a guerra entre elas, manter a estabilidade no Velho Continente
e preservar as dinastias reinantes. Porém, o “concerto de Viena” foi de curta duração e
nunca constituiu, obviamente, uma verdadeira ordem mundial basta recordar, por
exemplo, que nas Américas a ordem internacional evoluiu distintamente entre rias
independências e a proeminência dos EUA, que no Médio Oriente e Norte de África a
ordem era, essencialmente, a “Otomana” e que na Ásia Oriental era a do “Império do
Meio”. Por outro lado, o Congresso de Viena de 1815 foi apenas um de vários exemplos
de diplomacia multilateral que, na Europa, ao longo do Século XIX e no início do Século
XX, procurou regular certas questões e estipular regras de convivência
4
, a que se
somaram os muitos tratados bilaterais. Também ao longo do Século XIX, tirando partido
da dianteira na Revolução Industrial, o Reino Unido fomentou a sua primazia económico-
comercial e naval, promovendo uma economia e um comércio internacionalizados sob os
4
Outros exemplos salientes são os Congressos de San Stefano e de Berlim de 1878 (divisão dos Balcãs) ou
a Conferência de Berlim de 1884-85 (partilha de África).
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auspícios da Pax Britannica. Mas nem os concertos multilaterais nem a supremacia
britânica significaram “ordem mundial” e nem sequer estabilidade internacional, tal como
não impediram novas guerras na Europa, nas Américas e na Ásia Oriental
5
.
Paralelamente, ocorreram transformações substanciais nas estruturas de poder quer na
Europa (por exemplo, por via do recuo do Império Otomano nos Balcãs e da unificação
da Itália e da Alemanha), que nas Américas (hegemonia dos EUA) quer na Ásia (declínio
da China e ascensão do Japão), salientando-se a emergência de novas grandes potências
no final do Século XIX/início do culo XX, designadamente a Alemanha, os Estados
Unidos e o Japão que não impactaram nos sistemas regionais como, a par das “velhas
grandes potências”, consolidaram uma estrutura de poder global multipolar.
Paradoxalmente, embora rejeitemos a designação de “ordem vestefaliana” pelas razões
atrás referidas, reconhecemos que o sistema internacional e as ordens internacionais
regionais que, no culo XIX e no início do Século XX se caracterizavam, genericamente,
pelos elementos que são comummente atribuídos ao tal “sistema vestefaliano”
correspondendo ao que John Mearsheimer (2019: 12-13) chama de “ordem realista” - ,
ou seja, formado por Estados nacionais soberanos alegadamente “iguais” em direitos e
obrigações, designadamente a não ingerência nos “assuntos internos” uns dos outros;
para atenuar o carácter inerentemente anárquico do sistema, os Estados têm o dever de
respeitar os compromissos assumidos (Pacta Sunt Servanda) e as regras que soberana
e conjuntamente estipulam (Direito Internacional); se e quando necessário, os Estados
soberanos resolvem e regulam certas questões internacionais através da concertação
multilateral (congressos e conferências had hoc). Ainda neste sistema, prevalece uma
lógica de comércio livre (imposto pelos “Ocidentais”, por exemplo, à China e ao Japão),
de domínios coloniais, de áreas de influência e de balança de poder, residindo
precisamente nos jogos e (des)equilíbrios entre as grandes potências a (des)ordem nas
relações internacionais.
Uma primeira tentativa, rapidamente desconstruída
Como corolário deste sistema e das evoluções e transformações ocorridas no final do
Século XIX/início do Século XX, ocorreu mais uma grande guerra entre potências
europeias que, entretanto, se alastrou e envolveu outras importantes potências não
europeias, no que ficaria para a História como a I Guerra Mundial, provocando uma
devastação sem precedentes. O final dessa Grande Guerra de 1914-18 foi marcado pela
ambição de criar uma “nova ordem mundial” visando garantir que não voltaria a ocorrer
um conflito dessa magnitude. Foi neste contexto que, entre os vencedores, sobressaíram
os Estados Unidos que definiram, pela primeira vez, aquelas que deveriam ser as linhas
orientadoras de uma “nova ordem mundial”, configurando também a primeira real
tentativa de transpor para a ordem internacional a visão liberal. No seu discurso ao
Congresso Americano, em 2 Abril de 1917, onde pediu a declaração de guerra contra a
Alemanha, o Presidente Wilson justificou a entrada dos EUA no conflito para «tornar o
mundo seguro para a democracia» (Wilson, 1917). Menos de um ano depois, em 8 de
Janeiro de 1918, num novo discurso ao Congresso, o mesmo Presidente Americano,
5
Como as guerras da Crimeia de 1853-56, a Franco-Prussiana de 1870-71 ou as balcânicas de 1912-13;
entre os EUA e Espanha, em 1898; ou as “guerras do ópio” contra a China imperial, a guerra sino-japonesa
de 1894-95 ou a russo-japonesa de 1904-05.
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Democrata, articulou os seus famosos “14 pontos”, metade dos quais dedicados às
questões territoriais específicas entre os países beligerantes e os restantes prescrevendo
uma visão para a paz e a nova ordem mundial propondo, em síntese: uma “paz sem
vencidos nem humilhados”, o fim dos acordos secretos e a transparência nas relações
internacionais, a “absoluta” livre navegação dos mares, o comércio livre, a redução dos
armamentos, «A free, open-minded, and absolutely impartial adjustment of all colonial
claims, based upon a strict observance of the principle that in determining all such
questions of sovereignty the interests of the populations concerned must have equal
weight with the equitable claims of the government whose title is to be determinede
ainda «A general association of nations must be formed under specific covenants for the
purpose of affording mutual guarantees of political independence and territorial integrity
to great and small states alike.» (Wilson, 2018).
O idealismo do Presidente Wilson valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz 1919 e inspirou o que
pode ser designado “ordem internacional liberal”. Todavia, no imediato, não convenceu
nem os seus Aliados nem o Senado Americano. As grandes vencedoras europeias,
concretamente as democráticas França e Reino Unido, partilhavam do liberalismo político
e económico dos EUA, mas não inteiramente da visão do Presidente Wilson para as
relações internacionais. Daí que Paris e Londres tenham preferido impor uma paz
humilhante aos vencidos, sobretudo, a Alemanha, e utilizado o “princípio das
nacionalidades” apenas no quadro do desmantelamento dos Impérios Alemão, Austro-
Húngaro, Otomano e Russo, sem o estenderem às suas possessões coloniais. Por outro
lado, foi criada a Sociedade das Nações nos termos propostos por Wilson, mas o Senado
Americano não ratificou a adesão dos EUA à SdN prevalecendo em Washington,
portanto, o ímpeto “isolacionista” por contraposição ao “internacionalismo”.
A ordem pós-Grande Guerra de 1914-18 é bastante distinta das ordens internacionais
que a precederam, não só em virtude de alterações substanciais na estrutura de poder,
mas também pela criação da inovadora Sociedade das Nações de inspiração “liberal” e
“Ocidental” que, sendo de carácter "mundial” (abrangendo todo o espaço-mundo e
participantes de todos os Continentes), deveria salvaguardar a “livre navegação dos
mares” e o “comércio livre”, fazer respeitar os tratados e garantir a paz e a estabilidade
entre os Estados soberanos com base no Direito Internacional, na diplomacia multilateral
permanente e na segurança colectiva. É nessa linha que se estabeleceram também
outras importantes convenções internacionais, como o Protocolo de Genebra de 1925
que proibiu o uso das armas biológicas, primeiro tratado multilateral proibindo a
utilização de “armas de destruição massiva”. Significa isto que uma certa ordem liberal
“mundial” começou a ser construída no pós-Grande Guerra.
No entanto, o alheamento e a falta de empenho das principais potências liberais
impediram que se consolidasse como verdadeira ordem internacional. Continuaram a
vigorar os elementos fundamentais do sistema “anárquico” anterior, quer globalmente
quer nos reconstruídos Médio Oriente, Europa e Ásia. Na Europa, a nova ordem pode ser
designada como a “de Versalhes” por referência ao Tratado de Paz de 1919 imposto pelos
Aliados à Alemanha, com as potências vencedoras interessadas em manter os resultados
do conflito e as potências derrotadas e desmanteladas interessadas, sobretudo, em
recuperar das humilhações e condições impostas. Além disso, para a nova República da
China, o Japão ou a novíssima Turquia, a concepção liberal da ordem internacional era
relativamente estranha; e a nova “Rússia soviética”, surgida no contexto da Grande
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Guerra, tinha uma concepção da política, da economia, da sociedade e, portanto, das
relações internacionais não distinta como hostil à visão liberal. Entretanto, a
emergência de certo tipo de “nacionalismos ofensivos”, do fascismo e do nacional-
socialismo, contrários aos princípios liberais - com destaque para o espaço vital da
Alemanha Nazi e a “esfera de co-properidade da Ásia Oriental” do Japão imperialista -,
iriam desmantelar quer os aspectos liberais do sistema internacional quer as ordens
regionais quer a frágil “ordem mundial” pós-Grande Guerra, provocando uma II Guerra
Mundial ainda mais devastadora. Em suma, a construção inicial da ordem liberal nas
relações internacionais, primeiro, fundiu-se no sistema anárquico e, depois, foi desfeita
por ele.
3. A consolidação de uma ordem internacional liberal, mas não mundial
Foi em plena II GM (1939-1945) que novamente dirigentes Ocidentais iniciaram a
reconstrução de uma ordem liberal. Ainda antes dos EUA se tornarem beligerantes no
conflito (o que aconteceria em dezembro de 1941), o seu Presidente Franklin Delano
Roosevelt referiu-se às «four freedoms» - freedom of speech, freedom of worship,
freedom from want, and freedom from fear - that should exist «anywhere in the world»
(Roosevelt, 1941), numa mensagem ao Congresso Americano, em 6 de Janeiro de 1941.
Nesse mesmo ano, o Presidente Roosevelt e o Primeiro-Ministro britânico Winston
Churchill proclamaram a “Carta do Atlântico”
6
, cujos princípios seriam incorporados na
“Declaração das Nações Unidas” de 1 de Janeiro de 1942, assinada por 26 países Aliados,
não apenas Ocidentais, mas também, por exemplo, União Soviética, China, Cuba ou
África do Sul, e a que se associariam depois mais de duas dezenas de outros, do Brasil à
Etiópia ou à Turquia. Seriam, igualmente, integrados na “Carta das Nações Unidas”,
assinada em São Francisco, a 26 de Junho de 1945, por representantes de 50 países,
entrando em vigor a 24 de Outubro desse mesmo ano. Por outro lado, no final da II
Guerra Mundial, os Estados Unidos gozavam de uma hegemonia sem precedentes (em
todos os domínios, incluindo o exclusivo da arma atómica) traçando, pela segunda vez
no Século XX, as linhas orientadoras de uma nova ordem mundial, agora pelas mãos
dos democratas Presidentes Roosevelt e Truman. E desta vez, ao contrário de 1918-19,
os EUA tornaram-se membros fundadores da ONU e o retiraram, apenas reduziram,
os seus dispositivos militares dos teatros europeu e asiático assumindo, portanto, a
responsabilidade da reorganização mundial pós-Guerra.
6
Afirmando que os respectivos países não procurariam nenhum engrandecimento territorial nem de outra
natureza; as modificações territoriais deveriam ocorrer de acordo com os desejos livremente expostos
pelos povos atingidos; o direito que assiste a todos os povos de escolherem a forma de governo sob a qual
querem viver e a restituição dos direitos soberanos e a independência aos povos que deles foram despojados
pela força; todos os Estados, grandes ou pequenos, vitoriosos ou vencidos, devem ter acesso em igualdade
de condições ao comércio e às matérias primas do mundo; promover, no campo da economia, a mais ampla
colaboração entre todas as nações, com o fim de conseguir, para todos, melhores condições de trabalho,
prosperidade económica e segurança social; uma paz que proporcione a todas as nações os meios de viver
em segurança dentro de suas próprias fronteiras, e aos homens em todos os locais a garantia de existências
livres de temor e de privações; liberdade de navegação nos mares e oceanos; a renúncia ao emprego da
força e o desarmamento dos potenciais agressores; e o estabelecimento de um sistema mais amplo e
duradouro de segurança geral (Atlantic Charter, 1941).
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A nova ONU não era uma réplica exata da defunta SdN, mas os seus objectivos e
princípios eram basicamente os mesmos
7
. Embora a Carta das Nações Unidas inicie com
a expressão “Nós, os Povos” (de inspiração liberal e lembrando a Constituição dos
Estados Unidos de 1787), os seus membros eram Estados que de algum modo
autolimitavam a sua soberania pelo respeito da Carta e do Direito Internacional, da
segurança colectiva, do direito de autodeterminação e dos direitos humanos, ao mesmo
tempo que conferiam à organização, em especial ao seu Conselho de Segurança, a
autoridade e a legitimidade para reconhecer novos Estados, decidir sobre questões de
guerra e paz e sancionar os agressores e violadores das regras estabelecidas. A isso
soma-se a edificação de uma série de novos organismos da “família onusiana”, incluindo
comissões, programas, fundos e agências especializadas - do Tribunal Internacional de
Justiça ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Organização
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) à Organização Mundial de Saúde (OMS) e
novas convenções internacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (também de inspiração Ocidental e liberal) adoptada pela Assembleia-Geral da
ONU, em 1948. Ou seja, o “sistema onusiano” foi estabelecido fazendo equilíbrios entre
a soberania dos Estados e o associado princípio de não ingerência nos assuntos internos,
o supranacionalismo do Conselho de Segurança e do Direito Internacional e ainda os
direitos dos povos e dos indivíduos.
Significa isto que da Guerra de 1939-45 emergiu uma ordem liberal mundial resultante
de duzentos anos de “ascendência liberal” fundida no “sistema vestefaliano”, conforme
defende John Ikenberry (2011b: 2)? Só parcialmente. Ainda que de inspiração Ocidental
e liberal, o desenho da nova ONU coube aos EUA, Reino Unido e também URSS, os “três
grandes” que, a par das por eles convidadas França e China, assumiram os lugares de
Membros-Permanentes do Conselho de Segurança da nova organização dispondo do
direito exclusivo de veto. Paralelamente, os EUA e a URSS articularam e partilharam
entre si, enquanto aliados e em contexto de guerra, nas Cimeiras de Ialta e de Potsdam,
respectivamente, em Fevereiro e Julho-Agosto de 1945 - onde também participou o Reino
Unido -, as condições de rendição da Alemanha e do Japão e, sobretudo, áreas respetivas
de influência nos teatros europeu e asiático. Essa “partilha” conduziria, a partir de 1946-
47, à Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética que marcou as relações internacionais
até 1989-91.
A ordem mundial da Guerra Fria
A estrutura de poder global que se estabeleceu no pós-II Guerra Mundial não foi unipolar
(conforme sugeria a hegemonia dos EUA) nem multipolar (como indiciava a constituição
do CSNU com os seus cinco membros-permanentes), mas sim “bipolar” pela emergência
7
Com os seus membros decididos a «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra… A reafirmar a
nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; A estabelecer as
condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de
outras fontes do direito internacional; A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro
de um conceito mais amplo de liberdade; e para tais fins A praticar a tolerância e a viver em paz…; A unir
as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; A garantir, pela aceitação de princípios e
a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; A empregar
mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos (United
Nations Charter, 1945: Preamble)
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de duas superpotências. EUA e URSS perfilhavam de ideologias opostas, o liberalismo e
o marxismo-leninismo, mas «ambos eram ideologias esclarecidas que buscavam
expandir-se à civilização universal» (Gray, 2007: 30). Envolveram-se, então, numa
disputa estratégica, económica e ideológica que começou na Europa e se alastrou
rapidamente a todas as regiões do mundo, determinando sistemas de alianças,
alinhamentos económicos, conflitos, regras, instituições, comportamentos e interacções
entre a generalidade dos actores, estatais e o estatais. Muito mais do que a ONU e o
Direito Internacional, foram as armas nucleares (que a URSS também passou a possuir
desde 1949) e a dissuasão pela “destruição mútua garantida” que obrigou americanos e
soviéticos a coexistirem em Guerra Fria e o mundo viver sob esse “equilíbrio do terror”.
Cada uma das superpotências dispunha de “áreas de influência” no mundo e nasrias
regiões, liderando e organizando o seu “bloco” em função dos respectivos interesses,
visões e instituições. Desta confrontação bipolar resultaram diretamente inúmeros
conflitos, guerras civis, golpes de Estado, movimentos de guerrilha e subversivos,
“guerras por procuração” e “crises” e guerras internacionais.
Paralelamente, ainda que sempre em competição, os EUA e a URSS foram conseguindo
cooperar e articular-se quando os seus interesses convergiam. Por exemplo, ambos
favoreceram o direito da autodeterminação e a descolonização pelos países europeus, tal
como condenaram certas posturas neocoloniais (como na Crise do Suez de 1956). Foi
possível desenvolver o “sistema onusiano”, reconhecer inúmeros novos Estados
independentes e até lançar “missões de paz” da ONU (quando nenhum exerceu o seu
direito de veto no CSNU). A articulação entre os “blocos” Leste e Oeste foi igualmente
crucial para a celebração do armistício que pôs fim à Guerra da Coreia de 1950-53,
Acordos de Paz como os de Genebra de 1954, a “substituição” da República da
China/Taiwan pela República Popular da China na ONU (e logo como membro-
permanente do seu Conselho de Segurança), em 1971, ou os Acordos de Helsínquia
alcançados na Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), em 1975.
E se é certo que o nível de interdependência económica e comercial entre os dois lados
era nimo e não justificou o desenvolvimento de regras e instituições comuns nesse
domínio, articularam-se para criar ou apoiar o desenvolvimento de novas normas e, por
vezes, instituições, a respeito do controlo de armamentos, da não militarização de certos
espaços ou da não proliferação de armas nucleares, nos níveis bilateral e multilateral, de
que são exemplo o Antarctic Treaty System, o Moon Agreement, o Outer Space Treaty,
os Tratados Anti-Ballistic Missile (ABM), Strategic Arms Limitations Talks (SALT) 1 e 2 e
Strategic Arms Reductions Talks (START), a Convention on Certain Conventional
Weapons, Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Civil
Aviation, a Biological Weapons Convention aos Seabed Arms Control Treaty, o
Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty, o Partial Test Ban Treaty , o Tratado de Não
Proliferação Nuclear, a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) ou o Nuclear
Suppliers Group.
Portanto, a ordem mundial que vigorou entre 1946-47 e 1989-91 foi, essencialmente, a
da Guerra Fria, fundida com o “sistema onusiano” que, apesar de tudo, se desenvolveu
e alargou a muitos novos Estados resultantes dos processos de descolonização que a
organização apoiou, sobretudo, através da sua Assembleia-Geral (ver O’Sullivan, 2005).
No âmbito e coexistindo com essa ordem mundial, estabeleceram-se outras duas outras
ordens internacionais correspondendo aos campos” liderados por cada uma das
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superpotências: de um lado, o “Ocidente”, “Capitalista”, “Liberal”, “Democrático” ou
“Mundo Livre”; do outro, o “Comunista”, “Bloco Leste”, “Soviético” ou das “Democracias
Populares”. Essas duas ordens internacionais eram dinâmicas e foram sofrendo
alterações: basta lembrar, por exemplo, a cisão sino-soviética que rasgou o “campo
comunista”, despoletou uma nova “guerra fria” entre a URSS e a RPC e introduziu uma
dinâmica triangular Washington-Moscovo-Pequim. Por outro lado, essas ordens não eram
definidas numa lógica regional, mas sim em blocos ideológicos, estratégicos e
económicos com as respetivas convenções e instituições multilaterais (ver Crump e
Godard, 2018). Pode ainda admitir-se uma terceira ordem internacional que foi tentando
ser promovida, corporizada no espírito da Conferência Ásia-África de Bandung e do
Movimento de o Alinhados, bem como na “doutrina dos três mundos” chinesa, na
adopção pela AGNU do conceito de “soberania permanente sobre recursos naturais”
8
ou
na ideia de uma “Nova Ordem Económica Mundial”
9
. No fundo, a ordem mundial nas
décadas subsequentes à II Guerra Mundial era um compósito complexo de várias ordens
internacionais, sendo a liberal apenas uma delas.
A ordem internacional liberal no “Ocidente”
Essa ordem internacional liberal é radicada no liberalismo político e económico e nas
quatro liberdades enunciadas pelo Presidente Roosevelt, em 1941, baseando-se na
“democracia liberal” (distinta da “democracia popular” comunista) e em preceitos
igualmente distintivos a respeito da organização económica e social ou dos direitos
humanos, corporizando-se em regras e instituições próprias para do “universo
onusiano” e opostos à “ordem soviética”. Por exemplo, na Europa, as democracias
europeias cedo criaram a União da Europa Ocidental (UEO), em 1948 e o Conselho da
Europa, em 1949, ao mesmo tempo que os EUA criavam no Continente Americano, e
com sede em Washington, a Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948.
Dados os constrangimentos associados ao ideal da “segurança colectiva” inscrita na ONU,
os EUA estabeleceram com o Canadá e países europeus ocidentais, desde 1949, a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), mecanismo multilateral de
“defesa colectiva”, a fim de conter a expansão da União Soviética e do comunismo e «to
safeguard the freedom, common heritage and civilisation of their peoples, founded on
the principles of democracy, individual liberty and the rule of law» (NATO, 1949).
Todavia, nem todos os fundadores da NATO eram “democracias liberais”, como Portugal
do “Estado Novo”, o que demonstra o peso das considerações geoestratégicas ligadas à
8
Foi a partir dos anos 1950 que o conceito de "soberania permanente" dos Estados (de conteúdo económico,
distinto da habitual concepção simplesmente política) começou a emergir no seio da AGNU, com a adopção
de uma resolução, em 1952 sobre o “direito de se explorar livremente os recursos e riquezas naturais”. Na
década seguinte verificou-se uma mudança na terminologia adotada pelas resoluções da ONU, referindo a
"soberania permanente sobre os recursos". Um marco nessa evolução foi a adopção pela AGNU, em 14 de
dezembro de 1962, da Resolução 1.803 (XVII) sobre "Soberania Permanente sobre Recursos Naturais",
desenvolvida em resoluções subsequentes em 1966 e 1973. No fundo, estas resolução apoiam os esforços
dos países em desenvolvimento (ou do "terceiro mundo") para controlo efectivo sobre os recursos naturais
nos seus territórios, reconhecendo que cada Estado tinha o direito a determinar o montante de compensação
e o modo de pagamento, e que possíveis litígios deveriam ser resolvidos de acordo com a legislação nacional
de cada Estado.
9
Resoluções 3.201 e 3.202 de Maio de 1974 adoptadas pela AGNU, englobando a "Declaração sobre o
Estabelecimento de uma Nova Ordem Económica Internacional" e o "Programa de Ação para o
Estabelecimento de Nova Ordem Económica Internacional", a que se seguiu a “Carta de Direitos e Deveres
Económicos dos Estados” (Resolução 3.281) de Dezembro desse ano.
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Guerra Fria. Os mesmos objectivos e imperativos geoestratégicos presidiram à
generalidade do Sistema de alianças dos EUA nas outras regiões e que incluiu quer
alianças bilaterais (das Filipinas ao Paquistão, passando por Japão, Coreia do Sul,
República da China/Taiwan ou Tailândia) quer trilaterais (como a ANZUS entre Austrália,
Nova Zelândia e EUA) quer multilaterais, desde o Tratado InterAmericano de Assistência
Recíproca (TIAR ou Tratado do Rio) à Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE
ou Pacto de Manila) e Organização do Tratado Central (OTC/CENTO ou Pacto de
Bagdade). Nem todas estas alianças foram bem sucedidas, algumas até se
desmantelaram (como a SEATO e o CENTO, nos anos 1970), e nem todos os aliados
eram democracias liberais, tendo apenas a “vantagem” de serem anticomunistas. Mas o
facto é que muitas delas foram cruciais para consolidar e/ou expandir a democracia
liberal e manter a paz entre democracias, sendo a Pax Americana susentáculo da ordem
internacional liberal.
O pilar económico radica no “sistema de Bretton Woods”, conjunto de acordos alcançados
na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas realizada na cidade de Bretton
Woods, no Estado Americano de New Hampshire, em julho de 1944, com a presença de
delegações de 44 países. ficou definida a base para a gestão monetária do comércio
internacional, passando o valor das outras moedas a ser associado ao dólar dos EUA e
continuando este a ter o seu valor ligado ao do ouro. Em Bretton Woods ficou também
acordada a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) - responsável por manter um
fundo de emergência para auxiliar os países que tivessem défices comerciais
incomportáveis e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)
para apoiar a reconstrução dos países. O BIRD seria integrado no Banco Mundial que, tal
como o FMI, foi formalmente estabelecido em 1945. Dois anos depois, em 1947, juntou-
se-lhes o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), a fim de impulsionar o comércio
internacional pelo esbatimento de barreiras alfandegárias. No mesmo ano, os EUA
lançaram o Plano Marshall” destinado a ajudar a recuperação económica da Europa e
eliminar as condições que favoreceriam a expansão do comunismo (ver Leffler, 1988) e,
em 1950, estabeleceram o Comité Coordenador para o Controlo Multilateral das
Exportações (CoCom) para embargo de bens, tecnologias e armas aos países do Comité
de Assistência Económica Mútua (COMECOM) liderado pela URSS (Mastanduno, 1992).
Foi com base nesses princípios e debaixo do “chapéu americano” que se estabeleceram
e desenvolveram, igualmente, certas organizações regionais, com destaque para as
Comunidades Europeias do Carvão e do o (CECA), em 1951 e da Energia Atómica
(CEEA ou Euratom) e Económica (CEE), em 1957. Seriam ainda criadas outras
instituições, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE), em 1961, a fim de estimular o progresso económico e o comércio internacional.
De um modo geral, os países dessa ordem económica liberal conheceram um
desenvolvimento económico e social significativo, em particular, na América do Norte, na
Europa Ocidental, Japão, Austrália, Nova Zelândia e “Novos Países Industrializados” da
Ásia Oriental. Porém, nunca se encontraram respostas totalmente satisfatórias para a
redistribuição da riqueza, gerando excluídos e desigualdades quer dentro dos países quer
entre eles, ao mesmo tempo que manteve muitos outros povos e Estados,
designadamente do “terceiro mundo”, largamente arredados desse desenvolvimento (ver
Keohane, 1984 e Krasner, 1999). Por outro lado, a erosão do sistema de Bretton Woods
levou o Presidente Richard Nixon, em 1971, a determinar que o dólar americano deixaria
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de estar associado ao ouro, pondo fim ao histórico padrão-ouro e inaugurando uma nova
fase de “câmbios flutuantes”. Logo a seguir, a crise petrolífera de 1973 evidenciou as
vulnerabilidades associadas às interdependências económicas e à insuficiente regulação
dos mercados internacionalizados. Este tipo de distorções e insuficiências levariam a
revisões e readaptações da ordem económica liberal, através de reformas e novas regras
no FMI, no GATT ou na OCDE, da criação de novos quadros intergovernamentais de
cooperação e regulação - como o G7
10
, cuja primeira cimeira teria lugar em 1975 - ou
ainda de novos mecanismos de diálogo entre o sector privado e dirigentes políticos, de
que talvez o melhor exemplo seja o Fórum Económico Mundial/Fórum de Davos, lançado
em 1971.
As liberdades e direitos existentes nas democracias liberais foram atraindo cada vez mais
povos e indivíduos externos” à ordem liberal, incluindo muitos “dissidentes” do “Bloco
Leste”. De igual modo, o desenvolvimento económico propiciado pelo modelo liberal
atraía muitos povos e mesmo dirigentes de modelos opostos. Foi este o caso de Deng
Xiaoping que, a partir de 1978, abandonando a ortodoxia maoísta e com grande
pragmatismo, lançou na República Popular da China reformas profundas no sentido de
“criar o socialismo de características chinesas com os meios do capitalismo”. Alguns anos
depois, em 1985, Mikhail Gorbatchov viu os hierarcas do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS) aprovarem a sua Perestroika. A diferença é que as reformas chinesas
nunca puseram em causa o papel dirigente do Partido Comunista da China (PCC) e estão
na base da modernização e ressurgência da China até aos dias de hoje, enquanto a
Perestroika de Gorbatchov não impediu, em poucos anos, o fim do “império soviético” e
o colapso do PCUS e da própria URSS. A implosão soviética pôs fim à ordem mundial da
Guerra Fria, favorecendo a expansão da ordem internacional liberal.
4. Da mundialização à desconstrução da ordem liberal
A ordem mundial alterou-se subitamente, marcada por eventos significativos: em 1989,
ruiu o “muro de Berlim”, símbolo maior da divisão da Europa e do mundo em Guerra
Fria; em 1990, o CSNU autorizou o uso da força para expulsar o Iraque do Kuwait por
uma ampla coligação internacional liderada pelos EUA; em 1991, desfaziam-se
oficialmente o COMECOM e o Pacto de Varsóvia e a URSS dava lugar a 15 novos Estados
independentes, um deles a Federação Russa. Pelo meio, a União Soviética e a RPChina
normalizaram as suas relações, em 1989, ano em que também ocorreu a “tragédia de
Tiananmen”. É importante recordar estes últimos eventos para sublinhar que terminava,
assim, a “dupla Guerra Fria”, com dois vencedores principais, os EUA e a China; e que
com a repressão brutal dos anseios democráticos na China, o regime do PCC se colocou
no sentido contrário da tendência de liberalização politica da época.
A mundialização da ordem internacional liberal
Os EUA ficavam sozinhos na categoria de superpotência, numa estrutura de poder que
passava, então, a ser unipolar. E pela terceira vez no Século XX, traçavam as linhas
10
Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido e República Federal da Alemanha.
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orientadoras de uma “nova ordem mundial”, com o Presidente Republicano George Bush
a proclamar, na AGNU, a visão
of a new partnership of nations… based on consultation, cooperation, and
collective action, especially through international and regional organizations…
the rule of law…a partnership whose goals are to increase democracy,
increase prosperity, increase the peace, and reduce arms…. Calls for
democracy and human rights are being reborn everywhere... (Bush, 1990a).
No ano seguinte, na ressaca da vitória na Guerra do Golfo”, o mesmo Presidente
Americano assegurava que «in our quest for a new world order… the United States has
no intention of striving for a “Pax Americana”…. we seek a “Pax Universalis” built upon
shared responsibilities and aspirations.» (Bush, 1991). Os sucessivos inquilinos da Casa
Branca assumiram com entusiasmo o papel de hyperpuissance: «Não há substituto para
a liderança americana», disse Bush (1990b); ou «Nação Indispensável», conforme
preferiam dizer a Secretária de Estado da Administração Clinton, Madeleine Albright
(1998) e o Presidente Barak Obama (2014). Por outro lado, sob a liderança dos EUA
apoiados pelos seus aliados e parceiros “Ocidentais”, a ordem liberal expandiu-se e
mundializou-se.
O fim da Guerra Fria desencadeou novas vagas de democratização por todo o globo,
parecendo confirmar a tese de Fukuyama (1989) de que não havia outra alternativa de
organização política viável. Aliás, a Carta de Paris” de 1990, subscrita por quase todos
os países europeus e também Estados Unidos, Canadá e URSS estabelecia «democracy
as the only system of government of our nations»
11
. A grande maioria dos ex-regimes
comunistas, do Leste europeu à Mongólia, passando pela nova Rússia, abraçou a
democracia liberal, o mesmo acontecendo com inúmeros antigos regimes autocráticos
anticomunistas e outros autoritarismos. Segundo a Freedom House (2017), 34% dos
países eram “democracias”, em 1986; essa percentagem saltou para 41%, em 1996 e
47%, em 2006. O novo contexto internacional permitiu também pôr termo a certas
situações antes existentes, como o fim do regime segregacionista do apartheid na África
do Sul ou o fim da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia e o exercício da
autodeterminação timorense.
Paralelamente, a concepção liberal/Ocidental dos Direitos Humanos “universalizou-se”,
favorecendo inúmeras campanhas a favor dos direitos humanos e desde a defesa das
minorias e da liberdade religiosa aos direitos das mulheres visando, frequentemente,
governos e dirigentes autocráticos. Estes são os principais visados também de noções
como “segurança humana”, que ganhou relevo desde meados dos anos 1990 com base
na defesa da “dignidade humana” e na fórmula “liberdade de temer e liberdade de
querer”. O novo primado dos direitos humanos está, igualmente, associado a outros
princípios controversos como o “direito de ingerência humanitária” (invocado pela NATO
na intervenção no Kosovo, em 1999) ou a “Responsabilidade de Proteger”, adoptada na
Cimeira Mundial da ONU, em 2005. E precisamente para reforço dos direitos humanos
11
E explicita ainda: «Democratic government is based on the will of the people, expressed regularly through
free and fair elections. Democracy has as its foundation respect for the human person and the rule of law.
Democracy is the best safeguard of freedom of expression, tolerance of all groups of society, and equality
of opportunity for each person» (Charter of Paris, 1990).
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no mundo e com competência específica nesse domínio, a AGNU criou, em 2006, o
Conselho dos Direitos Humanos, herdeiro da extinta Comissão dos Direitos Humanos. Por
outro lado, surgiram novas convenções internacionais e “pactos globais” visando maior
protecção dos direitos das crianças, das mulheres, das pessoas com deficiência ou dos
migrantes e refugiados. Ganhou interesse e impacto a perseguição internacional aos
violadores dos direitos humanos, levando alguns a dizer que «As Acções Judiciais em
matéria de Direitos Humanos estão a mudar a Política Mundial» (Sikkink, 2011).
Desenvolveu-se ainda a justiça penal internacional (Teles e Kowalski, 2017) e
estabeleceu-se o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 2002. Tal como ganharam “nova
vida” o Tribunal Internacional de Justiça, órgão jurisdicional da ONU e o Tribunal
Permanente de Arbitragem e outros tribunais. Inevitavelmente, muitos destes
desenvolvimentos significaram a erosão da soberania tradicional do Estado, característica
distintiva de ordens internacionais anteriores.
No domínio da segurança, expandiu-se a Pax Americana. Os EUA mantiveram o seu
sistema de alianças legado da Guerra Fria, estabeleceram novas parcerias estratégicas
bilaterais e multilaterais (como o “Quad” com o Japão, a Austrália e a Índia, desde 2007)
e a NATO alargou-se, quase duplicando o número de membros, maioritariamente antigos
adversários do Leste Europeu. Além disso, mantiveram a sua omnipresença estratégica
global e continuaram a manter o papel de “equilibrador” na Europa, no Médio Oriente e
na Ásia-Pacífico. E intervieram militarmente, não apenas na liderança de missões da ONU
(Guerra do Golfo ou Somália), mas também da NATO (da Bósnia ao Afeganistão,
passando pelo Kosovo e pela Líbia) e de certas “coligações de vontade” (do Haiti ao
Iraque e à Síria), bem como invadindo e ocupando o Afeganistão em “legítima defesa”
na sequência do 11 de setembro. Acrescem as muitas operações especiais, os
bombardeamentos cirúrgicos, múltiplos exercícios militares e de “livre navegação dos
mares” ou ainda a perseguição implacável aos seus inimigos, de Milosevic a Saddam
Hussein, Ossama Bin Laden, Muammar Gaddafi ou Abu Bakr al-Bagdadi por vezes,
exercitando uma espécie de “direito de ingerência antiterrorista”.
Por outro lado, o fim da Guerra Fria favoreceu, de imediato, rios processos de paz,
desde o Camboja a Angola, do conflito Israelo-Palestiniano a Moçambique. Aumentou
consideravelmente o número de “missões de paz” da ONU, disparando o número de
peacekeepers e de países participantes e diversificando-se a natureza e tipologia dessas
missões, desde a prevenção de conflitos à estabilização e reconstrução pós-bélica (ver
United Nations Peacekeeping). A “segurança colectiva” conhecia novo impulso reforçada,
entretanto, também pelas missões levadas a cabo por várias organizações regionais
NATO, UE, OSCE, UA, CEDEAO/ECOWAS, OEA - e por coligações internacionais ad hoc,
incluindo na luta contra o terrorismo ou a pirataria marítima (SIPRI Multilateral Peace
Operations Database). Entretanto, a CSCE deu origem à Organização para a Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE), em 1994, ano em que também se estabeleceu o ASEAN
Regional Forum (ARF) na Ásia-Pacífico. A África do Sul, a Líbia e os ex-soviéticos
Bielorrúsia, Cazaquistão e Ucrânia desistiram dos seus programas nucleares, e foi
possível também estabelecer o “acordo nuclear” com o Irão, em 2015
12
.
12
Formalmente, Plano de Ação Conjunto Global (Joint Comprehensive Plan Of Action-JCPOA) celebrado entre
os cinco Membros-Permanentes do CSNU mais a Alemanha (5+1) com o Irão, em 2015.
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No domínio da economia, aumentaram as interdependências e acelerou bruscamente a
“globalização económica”. Assistiu-se ao reforço e alargamento do FMI, do Banco Mundial
ou da OCDE, e o Fórum Económico Mundial / Fórum de Davos passou a convidar
empresários e dirigentes políticos de antigos regimes comunistas e das novas “economias
emergentes”. E estabeleceram-se inúmeros novos acordos e zonas de comércio livre,
novas instituições e novos mecanismos multilaterais: destacam-se o G20 que, desde
1999, reúne as maiores economias do mundo e, sobretudo, a criação, em 1995, da
Organização Mundial do Comércio, em substituição do antigo GATT, considerada por
Ikenberry (2011a: 62) «a instituição mais formal e desenvolvida da ordem internacional
liberal». No espírito do “comércio livre”, mas também como contrapeso à crescente
influência económica da China, os EUA promoveram novos quadros mega-regionais”
com os seus parceiros tradicionais, concretamente a Parceria Trans-Pacífico /Trans-
Pacific Partnership (TPP) acordada entre 12 países
13
, em 2015 e o Acordo de Parceria
Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) com a UE, negociado desde 2013.
Paralelamente, proliferaram as organizações internacionais e regionais, em todos os
domínios e todas as regiões do mundo. A ONU alargou-se quer a Estados antes
existentes (como as duas Coreias, em 1991) quer aos novos Estados independentes, dos
ex-soviéticos e ex-jugoslavos a Timor-Leste ou Sudão do Sul, tendo atualmente quase
quatro vezes mais membros do que quando foi fundada, ao mesmo tempo que se foi
reformando e expandindo o “sistema onusiano”. O Conselho da Europa estendeu-se aos
antigos adversários e as antigas Comunidades Europeias deram lugar à União Europeia
(UE) que se aprofundou e também alargou a muitos novos membros, essencialmente,
da Europa Central e Oriental, incluindo ex-soviéticos. A antiga Organização da Unidade
Africana foi substituída pela nova União Africana (UA), abrangendo a generalidade dos
países do Continente Africano, tal como a Associação das Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) que se alargou a praticamente todos os países dessa região (a excepção é
Timor-Leste) e aprofundou enquanto “Comunidade”. Por outro lado, foram criadas
inúmeras novas organizações regionais, sub-regionais, pan-regionais e inter-regionais,
da Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC) ao North American Free Trade Agreement
(NAFTA), da Comunidade de Estados Independentes (CEI) ao Mercosul e à Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral (CEDEAO/SADC). Com efeito, o “regionalismo” é o
outro lado da “globalização”, entendida como a intensificação de todo o tipo de fluxos e
a diminuição de distâncias espaciais e temporais à escala global. A multiplicação de
instituições foi acompanhada pela adesão de mais Estados a convenções internacionais
e por um sem número de novos acordos internacionais e regionais sobre as mais variadas
matérias, incluindo algumas que ganharam relevo na agenda global
14
.
No sentido de “mundializar” a ordem liberal, os Estados Unidos e seus aliados procuraram
envolver em instituições-chave, entre muitos outros, a Rússia e a China. A Federação
Russa foi logo reconhecida como substituta da defunta URSS no lugar de Membro-
Permanente do CSNU, em 1991, aderindo também ao FMI e ao Banco Mundial, em 1992,
ao G7, em 1997 (que passou a “G8”, até 2014) e à OMC, em 2012. Pelo meio, a Rússia
13
Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura
e Vietname.
14
De que são exemplo a Convenção Internacional para a Repressão dos Atos de Terrorismo Nuclear (2005) e
a “Estratégia Global Contra o Terrorismo” (2006), o Protocolo de Quioto (1995) e o Acordo de Paris sobre
alterações climáticas (2015) ou a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime (2001) e a Resolução 74/197
da AGNU (2019) sobre Tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento sustentável.
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tornou-se parceira formal da NATO
15
e concretizou com os EUA vários acordos sobre
redução e controlo de armamentos estratégicos
16
. A República Popular da China (RPC)
era membro do CSNU, desde 1971 e do FMI e do Banco Mundial, desde 1980, quando
tomou o lugar anteriormente ocupado pela República da China/Taiwan nessas
instituições. E apesar das tensões provocadas pela tragédia de Tiananmen, foi
rapidamente integrada na APEC, em 1991 e, mais importante, na OMC, em 2001. Os
EUA, a China e a Rússia envolveram-se também em múltiplos outros mecanismos
multilaterais, desde as “Conversações a Seis”
17
sobre o programa nuclear e ssil da
Coreia do Norte à Iniciativa Global para Combater o Terrorismo Nuclear, do G20 ao ARF.
Paradoxos e ambivalências de uma ordem liberal mundializada em desconstrução
Um dos aspectos mais salientes da ordem mundial pós-Guerra Fria foi a proliferação e o
aumento da relevância dos actores não estatais, desde as organizações internacionais e
regionais às empresas multinacionais, associações vicas e ativistas transnacionais,
grupos terroristas, redes de criminalidade organizada, ONG’s ou hackers. Porém, a ordem
internacional é aquilo que os principais actores fazem dela e, portanto, as grandes
potências continuam a ser os seus grandes artífices.
Esta é apenas uma das muitas ambivalências da ordem liberal mundializada, algumas
das quais contribuem, paradoxalmente, para a sua desconstrução. Por exemplo, a vaga
de democratização o impediu a subsistência de muitos autoritarismos por todo o
mundo, incluindo alguns regimes oficialmente “socialistas”. Registar-se-iam, entretanto,
alguns “retrocessos”, incluindo na Rússia desde a ascensão de Vladimir Putin ao poder,
em 1999. Paradoxalmente, em vez do liberalismo económico contribuir para o liberalismo
político, a hiperglobalização económica pareceu subverter a democracia (Rodrik, 2011 e
Halper, 2012), dado que o sucesso económico se tornou num factor de “legitimação” de
certas autocracias, com destaque para a RPChina. Por outro lado, continuam a verificar-
se violações massivas dos Direitos Humanos, e as instituições e convenções
internacionais mostram ter um impacto limitado no comportamento dos Estados e de ser
incapazes de regular eficaz e eficientemente algumas questões cruciais.
No domínio económico, apesar de uma redução muito significativa da pobreza no mundo
e da melhoria das condições de vida de centenas de milhões de pessoas, o se
impediram certas “crises” em inúmeros países e várias regiões, como a de 1997-98 no
Sudeste Asiático, mas com destaque para a crise económico-financeira que começou nos
EUA, em 2007-08, e rapidamente se tornou global. Paradoxalmente, a
“hiperglobalização” retirou influência aos dois lados do Atlântico Norte e, ao invés,
contribuiu para a centralidade da China e da Ásia-Pacífico na economia e no comércio
mundiais
18
. E o crescimento económico está na base do aumento do “poder nacional
15
A Federação Russa aderiu ao Conselho de Cooperação do Atlântico Norte, em 1991 - fórum de diálogo
substituído, em 1997, pelo Euro-Atlantic Partnership Council - e ao programa Parceria para a Paz, em 1994,
formalizando o relacionamento bilateral com o “Ato Fundador”, em 1997 e o Conselho NATO-Rússia, desde
2002.
16
Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF), START 1 e START 2, Tratado de Moscovo
sobre Redução de Armas Estratégicas Ofensivas (SORT) e Novo START.
17
Também com a participação das duas Coreias e do Japão.
18
Em 1990, as “economias avançadas” representavam um share no PIB mundial em paridades de poder de
compra (PPP) de 63.25%, enquanto o das “economias emergentes” era de 36.75%; a situação inverteu-se
totalmente e, em 2021, essa parcela das economias avançadas baixou para 44.43% e o das economias
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abrangente” da China, com reflexos em todos os domínios, das capacidades militares à
ciência e tecnologia e à influência político-diplomática.
O progresso da segurança colectiva e a Pax Americana não impediram o genocídio do
Ruanda nem outros falhanços na Somália, no Haiti, na RDCongo ou no Sudão.
Continuaram por resolver inúmeros diferendos e disputas territoriais, fronteiriças e sobre
zonas económicas exclusivas, persistindo também alguns “hotspots” como a Palestina,
Caxemira, Taiwan, Mares da China do Sul e Oriental ou Península Coreana. Eclodiram
novos conflitos, da Geórgia à Síria, da região do Sahel à Ucrânia e ao Iémen. A “Primavera
Árabe” resultou num turbulento “caos” que instigou mais instabilidade, insegurança e
violência. Proliferaram as redes transnacionais de criminalidade organizada e surgiram
novos e poderosos grupos terroristas, como a Al-Qaeda e o ISIS. Entretanto, a Índia e o
Paquistão (ambos, em 1998) e a Coreia do Norte (em 2006), nuclearizaram-se.
Paralelamente, depois de uma primeira década de redução global dos orçamentos
militares, as despesas militares mundiais voltaram a subir, ultrapassando as do tempo
da Guerra Fria
19
. E regressaram as “corridas aos armamentos”, em particular no Médio
Oriente e na Ásia-Pacífico, registando-se, entretanto, alterações substanciais no ranking
dos maiores orçamentos de defesa, com destaque para a ascensão da China
20
.
A hegemonia dos EUA também não eliminou as aspirações de outras potências, da China
à Rússia, Índia, Japão, UE, África do Sul, Brasil, Turquia, Arábia Saudita ou Irão. Com
efeito, o fim da bipolaridade EUA-URSS foi encarado por várias potências como a
possibilidade de lhe suceder um sistema “multipolar”, pelo que o “hegemonismo” e o
“unilateralismo” dos EUA foi sendo crescentemente contestado. Entretanto, o “momento
unipolar” (Krauthammer, 1990/91) ou o “interregno unipolar” (Gaspar, 2019: 123-172)
foi dando lugar a uma estrutura “uni-multi-polar” (Tomé, 2003 e 2004) e, depois, “uni-
bi-multi-polar” (Tomé, 2016, 2018 e 2021), onde a supremacia americana cada vez mais
incompleta coexiste com vários outros polos de poder, globais e regionais, dos quais se
passou a destacar a ressurgente China. Acresce que a visão sobre a “ordem
internacional” e, em particular, sobre os putativos benefícios universais da ordem liberal
nunca foram partilhados por muitos fora do “Ocidente” nem por todos os Ocidentais.
A China tem sido a principal beneficiária da ordem mundial pós-Guerra Fria, mas o regime
do PCC nunca deixou de criticar o “hegemonismo” dos Estados Unidos, de reclamar a
“multipolaridade” e de vociferar contra a ingerência dos países Ocidentais nos seus
emergentes subiu para 55.57% (IMF, 2021). Paralelamente, o share no PIB mundial em PPP da América do
Norte era, em 1990, de 26.53%, o da Europa Ocidental de 26.13% e o da Ásia-Pacífico de 27.52%; em
2021, essas parcelas da América do Norte e da Europa Ocidental caíram para 19.29% e 15.18%,
respectivamente, enquanto o da Ásia-Pacífico disparou para 45.14% (ibid.). A China foi mesmo a grande
ganhadora da globalização, tornando-se central na economia e no comércio mundiais: a sua parcela no PIB
mundial em PPP disparou de 4.03%, em 1990, para 18.78%, em 2021, enquanto no mesmo período os
shares dos EUA e da UE baixaram, respectivamente, de 21.64% para 15.97% e de 23.60% para 14.74%
(ibid.). A RPC tende a tornar-se a maior economia do mundo também em termos nominais dentro de poucos
anos, sendo já o maior exportador e importador mundial e o maior parceiro comercial dos EUA, da UE27,
da ASEAN10 e de mais de cem países por todo o mundo (WTO website).
19
Em 1990, o mundo gastava globalmente 1.372 Mil Milhões USD, valor que, a preços constantes, foi
ultrapassado a partir de 2004, atingindo os 1.960 Mil Milhões USD, em 2020 (SIPRI, 2021).
20
Embora permanecendo sempre destacados no topo desse ranking, os EUA começaram a ver reduzir o seu
share; as potências europeias foram caindo posições e perdendo parcelas; ainda que mantendo a paridade
nuclear com os EUA, a Rússia viu amentar o hiato face aos EUA e, entretanto, foi ultrapassada pela China
e, em alguns anos, também pela Índia e pela Arábia Saudita; e a China subiu ao segundo lugar destacado
desse ranking, aproximando-se gradualmente dos EUA e distanciando-se cada vez mais das restantes
potências (ver SIPRI, 2021).
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assuntos internos (China, 2019a e 2019b). Na realidade, o regime de Pequim não
esconde a «distinction between three elements of the “U.S.-led world order”: “the
American value system,” “the U.S. military alignment system”; and the international
institutions including the UN system”» (Fu Ying, 2016). Pelo que quando os dirigentes
chineses falam em “apoiar a ordem internacional estão a referir-se a uma “ordem
baseada em regras”, mas não a um sistema baseado nos valores ocidentais nem à Pax
Americana. De uma e outra forma, é isso que Pequim repete à exaustão, incluindo pela
voz do Presidente da RPC e Secretário-Geral do PPC:
we should stay committed to international law and international rules instead
of seeking one’s own supremacy… China will continue to promote a new type
of international relations…Let us all join hands and let multilateralism light our
way toward a community with a shared future for mankind. (Xi Jinping, 2021).
A verdade é que o regime chinês viola muitas dessas regras, incluindo as que
formalmente subscreve: por exemplo, apesar de ser parte da Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), Pequim não só não acatou a decisão do Tribunal
de Arbitragem sobre o Mar do Sul da China que, em 2016, sentenciou que «China’s claims
to historic rights, or other sovereign rights or jurisdiction, with respect to the maritime
areas of the South China Sea encompassed by the relevant part of the ‘nine-dash line’
are contrary to the Convention [UNCLOS] and without lawful effect» (PCA, 2016: 473,
X.B.2), como continuou a militarizar e reforçar as suas posições no Mar do Sul da China,
tentando estabelecer uma espécie de mare nostrum ou mare clausum. Com efeito, o PCC
parece empenhado em restaurar a centralidade da China, expandir a sua esfera de
influência e ter um papel de liderança na reforma do sistema global de governação:
China moving closer to center stage… new era of great power diplomacy with
Chinese characteristics… take an active part in leading the reform of the global
governance system… a leading position in terms of economic and
technological strength, defense capabilities, and composite national
strength… crossed the threshold into a New Era» (Xi Jinping, 2017).
É largamente este o sentido do “sonho chinês” e da “Nova Era” de uma China mais
autoconfiante e cada vez mais assertiva nas suas revindicações, sobretudo, desde a
ascensão de Xi Jinping à liderança do PCC e da RPC, em 2012 (Shambaugh, 2020;
Markey, 2020). Entretanto, o seu crescente poder económico tornou a China numa
extraordinária parceira alternativa ao “Ocidente”, prejudicando os esforços de europeus
e americanos no sentido de promover a democracia, os direitos humanos e o estado de
direito.
Por seu lado, a ssia considera-se a principal vítima do fim da Guerra Fria, opondo-se
muito ao alargamento da NATO e à expansão da influência dos “actores extra-
regionais” Ocidentais (EUA, NATO e UE) no espaço pós-soviético, entendidos como
ameaça, ingerência na sua “vizinhança próxima” e uma reedição da «infamous policy of
containment» (Putin, 2014). O Presidente Russo considera mesmo que «the collapse of
the Soviet Union was a major geopolitical disaster» (Putin, 2005), por duas razões
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fundamentais: por um lado, porque a Rússia perdeu muito do que é seu”
21
; por outro,
porque provocou um desequilíbrio de poder no mundo que os EUA aproveitaram para
forçar o seu unilateralismo e o Ocidente para impor os seus valores e interesses,
desencadeando caos e instabilidade
22
. Tal como Pequim, Moscovo defende a
multipolaridade, dispondo-se a utilizar todos os meios para salvaguardar os seus
interesses e objectivos estratégicos. Isso passou, por exemplo, por desenvolver parcerias
estratégicas com a China e a Índia; por invadir a Geórgia e reconhecer unilateralmente
as independências da Abkázia e da Ossétia do Sul, em 2008; por anexar a Crimeia
ucraniana, em 2014 e “dividir” o que resta da Ucrânia controlando o separatismo no
Donbas; ou por intervir militarmente na ria, desde 2015, em apoio ao regime de Bashar
al-Assad. A Rússia não é a União Soviética, mas Putin atua como se fosse (Tomé,
2018/19), insistindo no regresso a um concerto entre grandes potências e de partilha de
zonas de influência similar às conferências de Ialta e Potsdam de 1945. Acresce que o
Presidente Russo passou a considerar que «The liberal idea has become obsolet(Putin,
2019).
As visões da China e da Rússia sobre a ordem mundial não são inteiramente coincidentes,
mas isso não prejudica a sua articulação estratégica que se intensificou desde a anexação
russa da Crimeia (Lukin, 2018; Gaspar, 2019; Tomé, 2018 e 2019; Sutter, 2019; Lo,
2020; Markey, 2020; Stent, 2020). Não por serem membros de uma “internacional
autocrática”, mas porque consideram que isso serve os seus respectivos propósitos
geopolíticos, estratégicos e económicos - incluindo conter a supremacia dos EUA, dividir
o Ocidente e as potências democráticas e suprimir influências políticas liberais nas
organizações e convenções internacionais e na ordem mundial. Ambas partilham o
pressuposto de que as grandes potências têm certos “direitos naturais”, incluindo esferas
regionais de influência; têm uma noção tradicional de segurança e de soberania,
absolutizando de forma instrumental o princípio da “não ingerência nos assuntos
internos”; e são concordantes a respeito de ideias como a “internet soberana”.
Paralelamente, Moscovo e Pequim têm sustentando certos regimes autocráticos, da
Coreia do Norte à Venezuela, Irão, Cuba, Síria, Bielorrússia, Myanmar e inúmeros países
africanos com apoio político e travando sanções no CSNU (usando o seu direito de
veto), furando sanções e bloqueios internacionais, vendendo-lhes armamentos e fazendo
negócios.
Essa desconstrução da ordem liberal passa também pelas organizações internacionais.
Moscovo e Pequim promovem, cada uma à sua maneira, uma espécie de embeded
revisionismnas instituições que integram conjuntamente com as potências ocidentais,
da ONU à OMC. Por outro lado, institucionalizam “realidades paralelas”. Com efeito, a
China e a Rússia estão entre as principais grandes potências e “potências intermédias”
que lançaram novas instituições e novos mecanismos de diálogo e cooperação bilaterais,
trilaterais e multilaterais, criando aquilo que Barma, Ratner e Weber (2007) apelidaram
21
«After the collapse of the USSR, Russia, which was known as the Soviet Union or Soviet Russia abroad, lost
23.8 percent of its national territory, 48.5 percent of its population, 41 of the gdp, 39.4 percent of its
industrial potential (nearly half of our potential, I would underscore), as well as 44.6 percent of its military
capability due to the division of the Soviet Armed Forces among the former Soviet republics» (Putin, 2018).
22
«What is happening in today’s world... is a tentative to introduce precisely this concept into international
affairs, the concept of a unipolar world… first and foremost the United States, has overstepped its national
borders in every way» (Putin, 2007); «After the dissolution of bipolarity on the planet, we no longer have
stability… instead of democracy and freedom, there was chaos, outbreaks in violence and a series of
upheavals» (Putin, 2014).
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de «um mundo sem o Ocidente». Exemplos disso o o Triângulo Estratégico ssia,
Índia e China, desde 2003
23
, ou o diálogo trilateral China-Japão-Coreia do Sul, desde
2008; grupos de países como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul, criado em 2003), o
BRICS (Brasil, Rússia, Índia e China, desde 2006)
24
ou o MIKTA (México, Indonésia,
Coreia do Sul, Turquia e Austrália, desde 2013); e instituições como a Organização de
Cooperação de Xangai, desde 2001. Somam-se o Novo Banco de Desenvolvimento/New
Development Bank (NDB) criado pelos BRICS, em 2014 e o Banco Asiático de
Investimento em Infraestruturas/Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB),
estabelecido por 57 países fundadores, em 2015. A Rússia criou ainda a Comunidade
Económica Eurasiática-União Económica Eurasiática (a primeira foi criada em 2000,
sendo substituída pela segunda, em 2014) e a Organização do Tratado de Segurança
Colectiva (CTSO/CSTO), em 2002. No caso da China, essa “ordem sino-cêntrica” envolve,
igualmente, os muitos acordos bilaterais de comércio livre e investimento, a concessão
de créditos e empréstimos, o “consenso de Pequim” alternativo ao consenso de
Washington” (ver Ramo, 2004 e Halper, 2012) e, claro, a Belt and Road Initiative (BRI)
ou “Nova Rota da Seda” lançada pelo Presidente Xi Jinping em 2013 (Leandro e Duarte,
2020). Acrescem outros quadros como o Belt and Road Forum for International
Cooperation, China International Import Expo, Hongqiao International Economic Forum,
Fórum de Cooperação China-África, Fórum de Cooperação China-Estados Árabes, Fórum
da China e Comunidade dos Estados da América Latina e Caraíbas, Boao Forum for Asia,
Conferência sobre Diálogo das Civilizações Asiáticas, World Internet Conference, Fórum
Macau da China com os Países de Língua Portuguesa ou o mecanismo China + 17 países
do Centro e Leste europeu e Grécia.
Para a desconstrução da ordem liberal mundializada têm contribuído também vários
governos Ocidentais. Desde logo, os EUA e os seus aliados mostraram estar dispostos a
“quebrar as regras” da ordem de segurança, com destaque para as intervenções militares
da NATO contra a Sérvia, em 1999 e a anglo-americana contra o Iraque de Saddam, em
2003 - embora nenhuma tenha envolvido a anexação de território ou certos abusos na
“Guerra Global contra o Terrorismo”, fragilizando a autoridade moral do “Ocidente” como
defensor de “uma ordem baseada em regras”. Além disso, os EUA retiraram
atabalhoadamente do Iraque e do Afeganistão, em 2011 e 2021, respectivamente,
favorecendo a ascensão do ISIS (ver Tomé, 2015) e o regresso dos Talibã ao poder em
Cabul. Também noutras intervenções, como no Haiti, na Somália, na bia ou na ria,
os resultados não foram a democracia e o estado de direito, “abandonando”, aliás, os
seus aliados democráticos locais. Por outro lado, os EUA não ratificaram certas
convenções internacionais a que aderiu a maioria dos países (como o Protocolo Quioto
sobre redução dos gases com efeito de estufa ou a Convenção sobre trabalho forçado da
Organização Internacional do Trabalho), tal como nunca se associaram à Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Os EUA e vários dos seus aliados e
parceiros também não se juntaram ao TPI e, frequentemente, parecem instrumentalizar
o direito de ingerência humanitária, o princípio da responsabilidade de proteger, a
23
Esta data refere a primeira reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos RIC à margem de uma
sessão da AGNU, em Nova Iorque, na sequência de proposta do antigo Primeiro-Ministro russo Yevgeny
Primakov no final dos anos 1990.
24
Os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Brasil, Rússia, Índia e China reuniram-se primeiramente
enquanto BRIC, em setembro de 2006, à margem de uma reunião da AGNU, em Nova Iorque. A primeira
Cimeira dos BRIC ocorreria em junho de 2009, em Ecaterineburgo, Rússia. A África do Sul juntou-se ao
grupo a partir de 2011, passando a sigla a ser "BRICS".
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“segurança humana” e certas “revoluções coloridas” não para promover a democracia, o
estado de direito e os direitos humanos, mas antes para projectar os seus interesses e
influência. Acresce que americanos e europeus têm preferido promover a segurança
colectiva através de missões da NATO, da UE e de coligações de vontade” em vez de
disponibilizarem mais peacekeepers para as missões da ONU. Todos estes aspectos
ilustram que pode haver tensão entre “liberalismo” e “ordem”, ou como Geor Sorensen
(2006) referiu, entre “liberalismo de restrição e liberalismo de imposição”.
De igual modo, o “Ocidente”, principal artífice da ordem económica liberal e das regras
e instituições que lhe estão associadas, é o principal responsável pela insuficiente
regulação da economia e do comércio mundiais ou pelas desvantagens comparativas do
próprio “Ocidente” na era da hiperglobalização. E foi nos EUA que teve início, em 2007-
08, a crise económico-financeira que contagiou o mundo. Por outro lado, com muita
frequência, os EUA e os seus parceiros Ocidentais secundarizam a democracia, o estado
de direito e os direitos humanos em favor de interesses económicos, como bem
exemplifica a entrada da China na OMC, em 2001. O que também revela as tensões entre
pilares da ordem liberal. Na realidade, americanos e europeus tendem a identificar os
seus valores e interesses com os da comunidade internacional” e, para tornar a ordem
mundial mais liberal, foram minando e adulterando as bases dessa mesma ordem.
Para a desconstrução da ordem liberal acrescem ainda dois outros factores: a polarização
do “Ocidente” e o recuo da Democracia. As divergências e divisões quer transatlânticas
quer intra-europeias vêm em crescendo desde a viragem do Século, a respeito do
reconhecimento da independência do Kosovo, da doutrina americana da “guerra
preventiva”, da intervenção no Iraque, da crise das vidas soberanas, da gestão da crise
migratória, do Brexit, das tensões com a Turquia e disputas no Mediterrâneo Oriental,
da “partilha do fardo”, da situação na Palestina, das relações com a Rússia e com a China
ou da gestão da crise pandémica. Por outro lado, os autoritarismos, nacionalismos,
protecionismos e populismos foram ganhando expressão também no “Ocidente” - por
vezes, violando fundamentos do liberalismo político, como o estado de direito, a liberdade
de imprensa e a separação de poderes; adulterando “valores universais” de salvaguarda
de direitos das minorias, dos migrantes e dos refugiados; e atacando o multilateralismo
e as instituições internacionais. A realidade é que a Democracia está, de facto, em recuo:
por exemplo, o mais recente “Freedom in the World” da Freedom House (2021) marca o
15º ano consecutivo de declínio da liberdade global, do mesmo modo que o último
“Democracy Index” do The Economist Intelligence Unit (2021) regista o pior resultado
de sempre desde que o Índice foi publicado pela primeira vez, em 2006.
Estes aspectos agravaram-se durante a Presidência de Donald Trump, cujo “America
First” foi a antítese da ordem liberal. A postura de Trump baseia-se na ideia de que o
internacionalismo liberal é prejudicial para a posição global dos EUA e que favorece
os seus inimigos e adversários, pelo que rompeu com muitas das regras e instituições
para assumir uma posição ostensivamente nacionalista e confrontacional num “mundo
competitivo” (ver The White House, 2017), e não contra a China. Trump enveredou
por uma linha nacionalista, populista e protecionista que não não colocou a democracia
e os direitos humanos entre as prioridades da política externa americana como foi
antagonista do comércio livre e das instituições e convenções internacionais. Por
exemplo, com Trump os EUA desfizeram o NAFTA (recriando-o enquanto United-States-
Mexico-Canada Agreement or USMCA) e retiraram-se do Acordo de Paris sobre Alterações
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Climáticas, do Acordo Nuclear com o Irão, do Tratado INF, do Conselho dos Direitos
Humanos da ONU, da UNESCO, do Tribunal Internacional de Justiça, do Pacto Global
sobre Migrações e Refugiados, do Tratado das Nações Unidas sobre o Comércio de Armas
(ATT), do Tratado de Céus Abertos (Open Skyes) e da Organização Mundial de Saúde
(OMS). Paralelamente, além da “guerra comercialcom a China, o proteccionismo de
Trump visou os seus tradicionais aliados e parceiros, incluindo novas tarifas impostas ao
Japão e à União Europeia e a retirada dos EUA do TPP e das negociações do TTIP com a
UE. Trump atacou também instituições centrais como a ONU e a OMC, e fruto das suas
opções, os aliados e parceiros dos EUA ficaram frequentemente do lado oposto dos EUA
(e do mesmo lado da China e da Rússia). Além disso, os seus aliados e parceiros
mantiveram a linha do “comércio livre” e aprofundaram quer os laços entre si - como
espelham a manutenção do TPP, reconvertido em Comprehensive and Progressive
Agreement for Trans-Pacific Partnership (CPTPP ou TPP11) e o estabelecimento do EU-
Japan Strategic Partnership Agreement, EU-Japan Economic Partnership Agreement e
EU-Japan area of safe data flow) quer também com a China: em 15 de novembro de
2020, os 10 países ASEAN, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram
juntamente com a China o Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) e, em
30 de dezembro de 2020, a UE e a China chegaram a acordo de princípio acerca do
“Acordo Global sobre Investimento” (Comprehensive Agreement on Investment-CAI)
bilateral. Por outro lado, a Administração Trump abdicou de liderar o mundo numa crise
global como foi a pandemia Covid-19 o que, somando-se à desastrosa gestão interna da
crise pandémica, fez novamente questionar a posição dos Estados Unidos na ordem
internacional. E como se não bastasse, Trump acentuou divisões na sociedade e na
política dos EUA e pôs em causa a própria democracia americana, tentando travar a sua
derrota/vitória de Joe Biden-Kamala Harris inventando “fraudes” e incentivando o ataque
popular ao Capitólio.
A Administração Biden procura reverter muito desse legado de Trump e restaurar os
alicerces tradicionais da política externa americana com base no slogan “America is
Back”. Mantendo e até agravando o tom competitivo e confrontacional face a China e
também à Russia (Tomé, 2021), Biden pretende «Lead and sustain a stable and open
international system, underwritten by strong democratic alliances, partnerships,
multilateral institutions, and rules» (The White House, 2021: 9). Nesse sentido, por
exemplo, fez regressar os EUA ao Acordo de Paris e à OMS, mostra-se disponível para
recuperar o “acordo nuclear” com o Irão, renovou o empenho dos EUA na NATO e na
ONU, estendeu por cinco anos o Tratado Novo START com a Rússia, promoveu a primeira
Cimeira entre Chefes de Estado e de Governo do Quad, organizou uma “Cimeira Mundial
de Líderes sobre o Clima” (com a participação de Xi Jinping e Putin), incentivou convites
à Austrália, à Índia, à Coreia do Sul e à África do Sul para participarem na Cimeira do G7
e convocou, para dezembro de 2021, uma “cimeira para a democracia” juntando líderes
políticos e sociedade civil. Biden tem, de facto, procurado recuperar uma certa ordem
liberal, mas não removeu certas tarifas da era de Trump nem fez os EUA regressar ao
TPP ou ao TTIP.
A questão é que nem os EUA nem o “Ocidente” têm o poder, a centralidade e a coesão
para determinar o curso da ordem mundial. Como também reconhece a Administração
Biden, «the distribution of power across the world is changing China is the only
competitor potentially capable of combining its economic, diplomatic, military, and
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technological power to mount a sustained challenge to a stable and open international
system» (The White House, 2021: 7-8), pelo que outro dos seus objectivos, porventura
o principal, é «Promote a favorable distribution of power» (ibid: 9). Ora, para manter a
supremacia e liderança no mundo, os EUA podem ter que sacrificar certas premissas da
ordem liberal. Aliás, Biden admite a reconstrução da ordem mundial com outros,
designadamente a China, num misto de competição e cooperação: «We cannot and must
not return to the reflexive opposition and rigid blocs of the Cold War», acrescentando
que
we cannot focus only on the competition among countries that threaten to
divide the world, or only on global challenges that threaten to sink us all
together if we fail to cooperate. We must do bothCompetition must not
lock out cooperation on issues that affect us all (Biden, 2021).
Por seu lado, os aliados e parceiros dos EUA estarão mais interessados em cultivar uma
determinada “ordem” envolvendo a China, a Rússia ou o Irão do que, simplesmente,
aceitar todos os ditames de Washington ou insistir numa ordem exclusivamente” liberal.
Daí que, por incapacidade e por opção, o “Ocidente” afirme, sobretudo, que «We are
committed to the rules-based international order» (NATO, 2021), o que não significa
necessariamente uma ordem liberal. Na realidade, sobre a ordem liberal mundializada
desconstruída está a ser edificada uma nova ordem mundial “baseada em regras”,
mas com “novas regras”, muitas delas “à chinesa”.
Considerações Finais
Tem fundamento afirmar a existência de “ordem” nas relações internacionais, tal como
se justifica referir uma “ordem internacional liberal”, mas não significando esta
necessariamente o mesmo que “ordem mundial”. Ordem internacional também não
equivale a estrutura de poder, embora reflita os valores, interesses e poder das suas
unidades principais. A construção da ordem liberal está associada à hegemonia dos EUA
e à mundivisão Ocidental, mas caracteriza-se por um conjunto de elementos constitutivos
distinto do de outras ordens internacionais, baseado no liberalismo político e económico
e em direitos humanos inalienáveis, e corporizado em determinadas regras e instituições
internacionais. A primeira tentativa de construir uma ordem liberal surgiu após a I Guerra
Mundial, a fim de impedir as terríveis consequências do tradicional sistema anárquico,
porém, rapidamente desconstruída pela falta de empenho das principais potências
democráticas e desfeita pelas grandes potências antiliberais. Em plena II Guerra Mundial,
iniciou-se a reconstrução da ordem liberal, mas que viria a estabelecer-se apenas no
“Mundo Livre” e no quadro mais amplo da ordem mundial da Guerra Fria. Só com o fim
desta é que a ordem liberal se “mundializou”, o que é verificável no plano das ideias e
dos valores e também em novas vagas de democratização, no alargamento e
aprofundamento das organizações que vinham da ordem liberal Ocidental e na
proliferação de novas instituições multilaterais, expansão da Pax Americana,
multiplicação de regras e convenções internacionais, reforço da segurança colectiva e
aceleração da “globalização” económica.
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No entanto, os muitos paradoxos e ambivalências da ordem liberal mundializada
conduziram à sua desconstrução. A hiperglobalização económica pareceu subverter a
democracia e “legitimarcertas autocracias, ao mesmo tempo que retirou influência ao
“Ocidente” e favoreceu o crescimento do poder nacional abrangente da China. A China e
também a Rússia são dois dos principais opositores da ordem liberal, que confundem
com o “hegemonismo” dos EUA e a “arrogância” do Ocidente: ameaçando os seus
vizinhos, exportando autoritarismo, absolutizando o princípio da “não ingerência nos
assuntos internos”, vinculando-se a um número limitado de regras internacionais que em
nada prejudicam a sua soberania, moldando as instituições e as convenções
internacionais existentes aos seus interesses e criando, paralelamente, novas instituições
e mecanismos. Por seu lado, seja na tentativa de tornar a ordem mundial mais liberal
seja para manter a sua primazia, os EUA e seus aliados europeus mostraram estar
dispostos a “quebrar as regras” da ordem liberal, o que ilustra que pode haver tensão
entre “liberalismo” e “ordem” e entre os pilares liberais da segurança, da economia e dos
direitos humanos. A isto acrescem, entretanto, a polarização do Ocidente”, o recuo da
Democracia e os impactos da Presidência Trump. A Administração Biden reintroduziu
normalidade na política externa dos EUA, mas isso significa uma outra forma de tentar
manter a primazia e liderança americana no sistema internacional e não que a ordem
mundial possa voltar a ser o que já foi.
Como sempre, a ordem internacional depende do que os principais actores fazem dela.
Aparentemente, a ordem liberal está numa desconstrução irreversível, estando a ordem
mundial a ser recriada numa intensa dinâmica simultânea de competição e cooperação,
fundamentalmente, entre os EUA e a China, mas não só. O que isso significa ao certo, e
o que se manterá liberal nessa nova ordem, ainda é cedo para perceber.
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A CARTA CONSTITUCIONAL DE 1826 E A DISSOLUÇÃO DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS. NORMAS LEGAIS, PRÁTICAS POLÍTICAS E FUNCIONAMENTO DO
REGIME MONÁRQUICO-LIBERAL OITOCENTISTA (1834-1865)
ANTÓNIO PEDRO MANIQUE
apmanique@gmail.com
Licenciado em História pela FL da UL (1979) e Mestre em História dos Séculos XIX e XX pela
FCSH da UNL (1987). Professor Coordenador do Ensino Superior Politécnico (Portugal), com a
dissertação: Processo Legislativo e Conflitualidade Política na Primeira Fase da Regeneração
(1851-1865), Santarém, ESES, 1992. Foi presidente dos conselhos Científico e Diretivo,
coordenador de curso e do Departamento de Ciências Sociais da ESE do IPS. Foi docente
convidado da Faculdade de Letras de Lisboa (1988-1991) e da Universidade Autónoma de Lisboa
(1991-1993 e 2019) e membro da International Commission for the History of Representative
and Parliamentary Institutions e da sua secção portuguesa; e da ATEE - Association for Teacher
Education in Europe.n Investiga temas de história institucional e política do século XIX e tem
diversos livros e artigos publicados em revistas da especialidade, portuguesas e estrangeiras.
Resumo
O direito de dissolução das câmaras eletivas dos parlamentos foi genericamente consagrado
nas constituições liberais europeias do século XIX como uma das prerrogativas dos chefes de
Estado no exercício do poder executivo que lhes era atribuído. Em Portugal, a Carta
Constitucional de 1826 instituiu um quarto poder o Poder Moderador que acrescentou aos
tradicionais poderes legislativo, executivo e judicial e que pertencia exclusivamente ao
monarca, em acumulação com o poder executivo, do qual era o chefe. Por influência de
Benjamim Constant, uma das competências régias no âmbito do poder moderador era a da
dissolução da Câmara dos Deputados, que o monarca podia decretar quando o exigisse “a
salvação do Estado”. Tratava-se de uma medida excecional que deveria ser utilizada apenas
em casos extremos da vida política nacional. Mas esta prerrogativa régia viria a ser banalizada,
tornando-se um expediente político utilizado pelos governos para obterem maiorias
parlamentares através do recurso a eleições fraudulentas. As práticas políticas afastaram-se
significativamente da norma constitucional e as dissoluções da câmara eletiva viriam a
desempenhar um importante papel no funcionamento do regime.
Neste texto abordam-se as normas constitucionais e analisam-se as dez dissoluções da
câmara dos deputados decretadas entre 1834 e 1865, evidenciando-se o enorme intervalo
que separa a constituição formal da constituição real, resultando esta das práticas políticas
dos agentes do poder e das próprias instituições.
Palavras chave
Liberalismo, Carta Constitucional, Parlamento, Câmara dos Deputados, Dissolução
Como citar este artigo
Manique, António Pedro (2021). A Carta Constitucional de 1826 e a dissolução da Câmara dos
Deputados. Normas legais, práticas políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal
oitocentista (1834-1865). Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200
anos depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em
linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.7
Artigo recebido em 23 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 10 de Setembro de
2021
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A Carta Constitucional de1826 e a dissolução da Câmara dos Deputados. Normas legais, práticas
políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
António Pedro Manique
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A CARTA CONSTITUCIONAL DE 1826 E A DISSOLUÇÃO DA
CÂMARA DOS DEPUTADOS. NORMAS LEGAIS, PRÁTICAS
POLÍTICAS E FUNCIONAMENTO DO REGIME MONÁRQUICO-
LIBERAL OITOCENTISTA (1834-1865)
ANTÓNIO PEDRO MANIQUE
Introdução
A história dos parlamentos reveste-se da maior importância para a compreensão dos
sistemas políticos liberais. Constituindo os órgãos legislativos por excelência, eles
situavam-se no centro de complexas redes de relações de poder estabelecidas em torno
da produção das leis e por eles passavam os processos de conflitualidade política que
envolviam outros órgãos do Estado, em especial os governos, sujeitos, em maior ou
menor escala, à fiscalização das assembleias eletivas representantes da soberania
nacional.
Em Portugal existem alguns estudos incidentes sobre a organização do parlamento
oitocentista, mas é ainda mal conhecida a história das práticas políticas a ele relativas, a
qual se afigura de importância crucial para a compreensão do papel desempenhado pelo
órgão legislativo no conjunto das instituições políticas do Estado liberal. Se é
imprescindível o conhecimento das normas constitucionais que regulamentam a
organização e o funcionamento dos órgãos estatais, não pode esquecer-se o intervalo
sempre existente entre estas e a constituição real, isto é, as práticas políticas que, em
definitivo, moldam as instituições e o próprio regime e que nem sempre coincidem em
absoluto com os normativos prescritos pela constituição formal. Importa perceber de que
forma é que a arquitetura do Estado delineada pela Carta Constitucional de 1826 foi
moldada pelas práticas políticas dos agentes do poder e das próprias instituições e qual
o resultado dessas práticas na comunicação política e na interação entre o parlamento e
o governo e entre estes e o chefe do Estado. Permitiu a “soberania parlamentar” uma
autonomia do poder legislativo face ao governo ou, ao contrário, serviu o parlamento
oitocentista para legitimar os governos e as suas políticas?
1
As respostas a estas questões passam pela abordagem de um aspeto particular relativo
ao funcionamento do parlamento: a dissolução da Câmara dos Deputados e a forma como
foi utilizada a prerrogativa régia da dissolução consagrada na Carta Constitucional de
1
Para uma abordagem desta problemática no caso inglês veja-se Judge, David (1993). The Parliamentary
State. Londres: Sage Publications.
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A Carta Constitucional de1826 e a dissolução da Câmara dos Deputados. Normas legais, práticas
políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
António Pedro Manique
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1826
2
. Neste artigo procede-se à análise do período compreendido entre 1834 e 1865,
procurando-se estabelecer relações entre as normas constitucionais e as práticas políticas
que condicionaram as 10 dissoluções decretadas nesse período.
A dissolução da Câmara dos Deputados tornou-se um expediente político fundamental
para o funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista
3
. Entre o início da
construção do Estado liberal, em 1834, e o fim da monarquia, o recurso à dissolução foi
utilizado 31 vezes, donde resultou que, das 41 legislaturas existentes no mesmo período,
apenas 15 se completaram, sendo as restantes interrompidas antes de esgotarem o
tempo integral constitucionalmente estabelecido (quatro anos até 1885, três anos depois
dessa data; a Constituição de 1838 estabeleceu igualmente legislaturas de três anos).
Do frequente recurso à dissolução da Câmara dos Deputados resultou que, em vez dos
21 ou 22 atos eleitorais que, em condições normais, deveriam ter tido lugar entre 1834
e 1910, realizaram-se 42, situação que na Europa liberal teve paralelo, nas últimas
décadas do século XIX, na Grécia e, em menor medida, em Espanha (Almeida, 1991:
82).
Importa, pois, preceder à análise, não dos normativos constitucionais, mas também
das práticas que condicionaram este importante fenómeno político do Oitocentismo
português.
A Carta Constitucional de 1826 e o direito de dissolução da Câmara dos
Deputados
A Carta Constitucional de 1826, outorgada por D. Pedro IV na sequência da morte de D.
João VI, teve como fontes principais a carta constitucional francesa de 1814, doada à
França por Luís XVIII, e a constituição brasileira de 1824, colhendo ainda inspiração na
constituição portuguesa de 1822. Do ponto de vista doutrinário, é patente uma influência
marcante das ideias de Benjamim Constant, expressas no seu Esquisse de Constitution,
publicado em França em 1814.
Uma das novidades da Carta Constitucional relativamente à Constituição de 1822 e a
outras constituições da época é a instituição de quatro poderes distintos: aos tradicionais
legislativo, executivo e judicial, acrescenta-se o poder moderador, considerado “a chave
de toda a organização política”
4
. A conceção e teorização deste quarto poder pertenceu
a Benjamin Constant, para quem, aos três poderes enunciados por Montesquieu, havia
que adicionar um outro o poder real neutro, que assegurasse e garantisse o
funcionamento regular e independente dos três primeiros, através de uma ação
reguladora que mantivesse a harmonia e o equilíbrio entre eles
5
. O poder moderador
pertence exclusivamente ao monarca e confere-lhe atribuições típicas de chefe de Estado
2
As ideias desenvolvidas neste texto foram por mim apresentadas, pela primeira vez, no trabalho académico
Processo legislativo e conflitualidade política na primeira fase da Regeneração (1851-1865). Santarém.
ESES: 1992 (policopiado).
3
Para o período compreendido entre 1852 e 1865, veja-se Manique, António Pedro (1992). O direito de
dissolução em Portugal. Normas e práticas constitucionais (1852-1865. In Constituição da Europa,
Constituições da Europa. Europeísmo e Nacionalismo na História Constitucional Europeia. Lisboa:
Assembleia da República.
4
Carta Constitucional da Monarchia Portuguesa. Lisboa: Impressão Régia, 1826. artigos 11º e 71º.
5
Constant, Benjamin (1872). Cours de politique constitutionnelle ou collection des ouvrages publiés sur le
gouvernement représentatif. Paris: Librairie de Guillaumin. 2 vol.
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A Carta Constitucional de1826 e a dissolução da Câmara dos Deputados. Normas legais, práticas
políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
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(o rei é designado por Chefe Supremo da Nação), permitindo-lhe intervir ativamente no
poder legislativo, quer pela convocação, prorrogação ou adiamento das Cortes
(Parlamento), quer pela nomeação dos membros de uma das câmaras que o compõem
(Câmara dos Pares), quer ainda pela capacidade de dissolver a Câmara dos Deputados,
cabendo-lhe também a sanção das leis e o direito de veto absoluto sobre as mesmas
6
.
Nos seus Principes de Politique (1815), Constant consagra um capítulo ao “direito de
dissolver as assembleias representativas”
7
, onde considera, por um lado, a sua
indispensabilidade nas monarquias constitucionais e, por outro, a necessidade de controlo
da sua atividade por parte do Chefe de Estado. “Num grande país não pode existir
qualquer liberdade sem assembleias fortes, numerosas e independentes; mas essas
assembleias não existem sem perigos e, no interesse da própria liberdade, é necessário
preparar meios infalíveis para prevenir os seus desvios” (Constant, 1815: 30). Constant
considerava que a multiplicidade de leis votadas pelas câmaras em certos peodos, sob
os impulsos da paixão política, podia transformar-se em opressão para o povo,
pervertendo o papel fundamental dos parlamentos. Se o veto podia obstar a tais
desmandos, o seu uso frequente causava atritos políticos e não desarmava
completamente as assembleias, pelo que o recurso à dissolução era a única forma de
limitar a “autoridade representativa”. Sem limitações, os representantes do povo “não
seriam defensores da liberdade, mas candidatos à tirania”; por isso, o direito de
dissolução não constituía um ultraje aos direitos do povo, mas, pelo contrário, era uma
garantia do exercício desses direitos porque lhe permitia a escolha de representantes que
defendessem os seus interesses. Era, pois, absolutamente necessário que as assembleias
representativas fossem “livres e poderosas”, mas era igualmente indispensável “que os
seus desvios pudessem ser reprimidos” (Constant, 1815: 31).
Considerando ainda a hipótese de as assembleias não produzirem legislação suficiente
ou adequada aos problemas nacionais, e numa justificação final do direito de dissolução,
interrogava-se Benjamim Constant: “Entre uma assembleia que se obstinasse a não
produzir qualquer lei, a não prover a nenhuma necessidade, e um governo que não
tivesse o direito de a dissolver, que meio de administração restaria?” (Constant, 1872:
189-190). Todavia, o teórico o deixou de advertir para um problema fundamental: é
que o mecanismo que defendia funcionaria bem se as eleições fossem livres; porque se
o não fossem não haveria, pura e simplesmente, sistema representativo.
O princípio da prerrogativa régia de dissolução das câmaras eletivas foi consagrado, de
forma geral, nas leis fundamentais europeias do século XIX, inserindo-se, na maior parte
dos casos, nas competências do poder executivo, de que o monarca era o chefe. As cartas
constitucionais francesas de 1814 e 1830 inscreveram-no nos seus articulados, impondo
ao monarca a obrigatoriedade de convocação de nova assembleia nos três meses
posteriores à dissolução
8
. Em Espanha, o Estatuto Real de 1834 estabelecia o prazo de
6
Para uma visão mais ampla dos normativos constitucionais e do funcionamento do Parlamento veja-se:
Manique, António Pedro (2020). Parlamento, Governo e produção legislativa na primeira fase da
Regeneração. Normas legais e práticas políticas (1851-1865). In Cadernos do Arquivo Municipal, série,
nº 14. Lisboa: CML.
7
Principes de Politique, cap. III. In Cours de Politique… cit.
8
Ver Godechot, Jacques (1979). Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris: Garnier-Flammarion, pp.
217 e 247.
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políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
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um ano, após a dissolução, para nova reunião parlamentar
9
, mas as constituições de
1837 e 1845 adotaram e precisaram a norma francesa dos três meses como prazo
máximo para a convocação e reunião do congresso dos deputados, após o decreto régio
de dissolução do mesmo
10
.
A constituição brasileira de 1824 prescreveu igualmente a prerrogativa imperial de
dissolução da câmara dos deputados, impondo ao poder moderador a obrigação de
“convocar imediatamente” outra que a substituísse
11
, sem estipular prazo para a reunião
da nova câmara.
Embora a constituição portuguesa de 1822 não tivesse consagrado tal faculdade, a Carta
Constitucional de 1826 concede ao rei, no exercício do poder moderador, o direito de
dissolver a Câmara dos Deputados, mas apenas “nos casos em que o exigir a salvação
do Estado” (artigo 74º). Quanto à convocação de nova câmara para substituir a
dissolvida, prevaleceu a fórmula vaga decalcada da constituição brasileira, impondo-se
ao monarca a obrigatoriedade de convocar “imediatamente outra que a substitua”, sem
contudo se estabelecer qualquer prazo para a nova reunião das Cortes após a dissolução.
De facto, é da máxima importância a distinção entre o ato de convocação das Cortes e a
sua reunião efetiva, uma vez que a ausência de normativos claros permitia que o
soberano, ao exercer a prerrogativa, utilizasse o próprio decreto de dissolução para
convocar a nova Câmara dos Deputados, cumprindo, assim, o preceito constitucional,
mas marcando a sua reunião para uma data que podia recair vários meses depois da
dissolução, o que acarretava transtornos para a regularidade da vida política nacional e
favorecia a ocorrência de ditaduras. O Acto Adicional de 1852 não introduziu qualquer
alteração às disposições constitucionais referentes a esta matéria. Só o segundo Acto
Adicional, de 1885, viria a prescrever que, em caso de dissolução da Câmara dos
Deputados, as novas Cortes seriam obrigatoriamente convocadas e reunidas dentro de
três meses. Assim, limitava-se o arbítrio relativo ao intervalo temporal decorrido entre
duas reuniões do Parlamento separadas pelo ato da dissolução.
Não havendo rigor nos prazos constitucionalmente estabelecidos, eram as circunstâncias
conjunturais que determinavam a maior ou menor urgência na reunião das Cortes após
a dissolução. Se na primeira metade do século XIX os intervalos que separavam as
dissoluções das novas reuniões das Cortes foram relativamente longos, a partir de 1852
a tendência geral foi no sentido de reduzir esses intervalos para cerca de três meses.
Assim, as práticas políticas aproximavam o funcionamento do regime dos seus
congéneres estrangeiros.
O entendimento geral do direito de dissolução e as posições assumidas face ao seu
exercício dependiam, claro está, do posicionamento político-ideológico das
personalidades que se pronunciavam sobre o assunto. Para Consiglieri Pedroso, militante
e doutrinador republicano, o direito de dissolução consagrado na Carta Constitucional era
“um atentado contra a representação nacional” e a forma como o poder moderador
abusava dele, com a aquiescência dos partidos monárquicos, constituía “um atentado
contra a soberania popular” (Pedroso, 1887: 9). Na sua opinião, tal direito era condenável
porque permitia que um poder que não representava legitimamente a nação pudesse
9
Esteban, Jorge (1988). Las Constituciones de España. Madrid: Taurus, p. 97.
10
Idem, pp. 105 e 119.
11
Miranda, Jorge (1990). Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: INCM, pp.197-227.
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políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
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aniquilar a vontade nacional expressa através do voto; e como nos conflitos travados
entre a Câmara dos Deputados e os governos eram sempre estes os vencedores, o direito
de dissolução transformara-se numa “simples arma de que se servia o poder executivo
para dominar a câmara dos deputados e com ela a nação” (Idem, 16-17).
Diferente foi a posição assumida por José Tavares, lente de Direito nos últimos anos da
monarquia. Analisando o direito de dissolução em vários países europeus, bem como no
caso português, aproxima-se, doutrinariamente, de Benjamim Constant ao considerar
que tal prerrogativa constituía “uma garantia eficaz contra o abuso ou a incompetência
do mais forte dos poderes o poder legislativo sendo, por isso, como que uma das
sanções indispensáveis ao princípio da divisão de poderes” (Tavares, 1909: 132-133). Ao
permitir a resolução de conflitos entre os poderes legislativo e executivo, garantindo a
convocação do corpo eleitoral chamado a pronunciar-se sobre os problemas mais graves
da administração, o direito de dissolução era “a consagração mais perfeita do regime
representativo”, constituindo “uma das afirmações mais concretas do princípio da
soberania nacional” (Idem).
Quanto aos agentes políticos, naturalmente que os seus juízos dependiam das posições
em que se encontravam face ao exercício do poder. Nogueira Soares notou, com
perspicácia, as variações de opinião em função das circunstâncias. “Quando (os partidos)
estão no gozo do poder, o rei reina e não governa. Como chefe do poder executivo, o rei
deve limitar-se a assinar, sem observações nem reflexões, todos os despachos que os
ministros lhe apresentam, por mais escandalosos ou mais contrários à moral pública (…).
Como poder moderador, o rei deve limitar-se a decretar, sem exame nem discussão,
todas as dissoluções da câmara dos deputados, todas as fornadas na câmara dos pares,
todos os adiamentos das Cortes que os ministros julgarem convenientes. Quando lidam
na oposição (…), esses partidos sustentam que o rei deve recusar-se a assinar todos os
despachos que eles julgam injustos ou escandalosos; que deve negar aos ministros
quaisquer dissoluções, fornadas, adiamentos, recomposições ministeriais; que deve opor
o veto às leis aprovadas por ambas as casas do Parlamento” (Soares, 1883: 152-153).
Na verdade, as posições adotadas pelas figuras partidárias não dependiam da defesa de
princípios doutrinários, mas tão-só do pragmatismo político ditado pelas conjunturas. As
dissoluções justificavam-se ou não conforme as circunstâncias em que ocorriam e,
naturalmente, eram sempre legítimas para as forças políticas que as decretavam, da
mesma forma que eram invariavelmente condenáveis para as que se encontravam na
oposição. No entanto, as críticas feitas ao mecanismo da dissolução incidiam, não tanto
sobre a prerrogativa em si mesma, mas sobretudo no mau uso que dela se fazia, ao ser
utilizada para “forjar” maiorias parlamentares através de eleições fraudulentas.
Alguns debates travados na imprensa sintetizam com clareza as ideias dominantes na
segunda metade do século XIX acerca da problemática da dissolução da câmara dos
deputados. É significativo um artigo de Rodrigues Sampaio, figura proeminente do
jornalismo e da política, que abordava frequentemente a questão. Considerava Sampaio
que as restrições impostas pela Carta ao direito de dissolução não podiam ser encaradas
na mesma ótica do legislador de 1826, pois, entendido na sua conceção original, tal
direito de pouco servia e melhor fora tê-lo negado à Coroa. “O direito de dissolver não é
o direito da Carta como ela o concebia, nem pode, por consequência, ser restringido a
esses gravíssimos e arriscadíssimos apuros. O direito de dissolver é o direito de aferir a
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opinião do país. Estas operações de aferimento podem fazer-se a miúdo e podem fazer-
se raríssimas vezes. Não é a frequência que as torna perigosas; é o fim, é a conjuntura
e o modo que determinam o seu caráter e a sua influência nas instituições e na
tranquilidade pública”
12
. Entedia Sampaio que se podia dissolver quando os corpos
legislativos não acompanhavam as mudanças da opinião nacional, quando as
necessidades blicas o exigissem, quando era necessário resolver grandes dúvidas da
governação que impusessem a consulta popular, quando os parlamentos não tivessem
maiorias decididas e autorizadas, em suma, quando as circunstâncias o aconselhassem.
“A dissolução, portanto, não é em si um princípio de revolução, nem caminho para ela. A
dissolução é um direito inocente. O que o torna às vezes nocivo são as eleições viciadas
e violentadas”
13
.
O mesmo Rodrigues Sampaio que, em 1859, expendia a doutrina acima referida, quando
ocorrera uma dissolução decretada pelas forças políticas em que se integrava, escrevera,
em 1858, um irónico e cáustico artigo a propósito da mesma questão, em que vilipendiava
o governo da época e concluía: “Basta que assentemos num princípio em que esteja toda
a teoria do direito de dissolver. O princípio é: que nunca se devem dissolver parlamentos
senão para salvar os ministérios ineptos”
14
. É que o governo “dissolvente” de então era
o do Marquês de Loulé, que Sampaio combatia na oposição parlamentar.
A dissolução da câmara dos deputados tornou-se, pois, um fenómeno político vulgar ao
longo do século XIX. As práticas políticas afastaram-se significativamente das normas
constitucionais, tornando corrente e banal uma medida primitivamente concebida para
utilizações raras e excecionais. Com a agravante de ser decidida pelos governos e o
pelo monarca, em virtude da captura do poder moderador pelo Executivo desde o início
da construção do Estado liberal
15
, como demonstra a análise das dissoluções que se
segue.
As dissoluções da Câmara dos Deputados (1834-1865)
O Parlamento era formado por duas câmaras (Câmara dos Pares e Câmara dos
Deputados) com poderes iguais quanto à aprovação das leis, isto é, qualquer medida
legislativa carecia de aprovação de ambas. Sendo a primeira de nomeação régia, quando
nela não tinham maioria, os governos recorriam às fornadas, ou seja, à nomeação de
conjuntos variáveis de novos pares considerados politicamente próximos do governo que
os propunha ao monarca.
Quanto à Câmara dos Deputados, eletiva, o recurso à dissolução era a única forma de os
governos obterem maiorias, sendo certo que as conseguiam através da manipulação e
da fraude eleitoral. Entre 1834 e 1910 foram decretadas 31 dissoluções da Câmara dos
Deputados, 10 das quais no período aqui analisado.
12
A Revolução de Setembro, nº 5273, 29-11-1859.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, nº 4780, 31-03.1858.
15
Ver Manique, Parlamento, Governo…, cit.
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Quadro 1 Dissoluções da Câmara dos Deputados (1834-1865)
Data (a)
Presidente do Conselho de Ministros
1
4-6-1836
Duque da Terceira
2
25-2-1840
Conde do Bonfim
3
10-2-1842
Duque da Terceira
4
23-5-1846
Duque de Palmela
5
25-5-1851
Duque de Saldanha
6
26-7-1852
Duque de Saldanha
7
26-3-1858
Marquês de Loulé
8
24-11-1859
Duque da Terceira
9
27-3-1861
Marquês de Loulé
10
15-5-1865
Marquês de Sá da Bandeira
Fontes: AHP: Registo das sessões reais, prorrogação das sessões e adiamento das mesmas e da
dissolução da Câmara dos Deputados, Livro 788.
Santos, Manuel Pinto dos (1986). Monarquia Constitucional. Organização e Relações do Poder
Governamental com a Câmara dos Deputados (1834-1910). Lisboa: A. República.
(a) Consideram-se aqui as datas de leitura dos decretos de dissolução no plenário da Câmara, a
partir das quais produziam efeitos, e que nem sempre coincidem com as datas de assinatura
dos mesmos.
A construção do regime liberal após o fim da guerra civil iniciou-se com a abertura das
Cortes a 15 de agosto de 1834. Perante a debilidade física de D. Pedro (que viria a falecer
a 24 de setembro), o Parlamento decretou a maioridade de D. Maria II, que jurou a Carta
Constitucional a 20 de setembro e que, quatro dias depois, nomeou o seu primeiro
governo, presidido pelo Duque de Palmela. Até à Revolução de Setembro mais quatro
governos se sucederam, convivendo todos eles com um parlamento onde os conflitos
partidários impediam a aprovação de medidas necessárias à resolução dos difíceis
problemas financeiros, económicos e sociais com que o país se debatia à saída de uma
guerra civil devastadora.
Na Câmara dos Deputados digladiavam-se os “ministeriais” (fação mais conservadora dos
liberais, identificados com os princípios da Carta Constitucional de 1826), e os
“antiministeriais”, mais radicais, críticos da Carta e identificados com os princípios do
Vintismo, onde se distinguiam figuras como Passos Manuel e outros que viriam a integrar
o Setembrismo. Nem os governos conservadores, liderados por Palmela, Saldanha e
Terceira, nem o governo “de esquerda”, presidido por José Jorge Loureiro
16
, conseguiram
fazer aprovar a legislação que pretendiam, o que conduziu à primeira dissolução da
Câmara dos Deputados, decretada em 4 de junho de 1836.
Com efeito, a rainha negou a dissolução a JoJorge Loureiro (Bonifácio, 2002: 34), mas
concedeu-a ao Duque da Terceira, presidente do Conselho de Ministros a partir de 19 de
abril de 1836. Terceira dissolveu a Câmara dos Deputados para reunir gente sua”, na
expressão de Oliveira Martins, ou seja, para obter maioria parlamentar. O Governo fez
as eleições, que foram como todas; e como sempre, venceu(O. Martins, 1977, II: 53-
54). Dessas eleições, realizadas em julho, resultou, de facto, uma maioria de deputados
“ministerial”, circunstância que de nada serviu ao governo, dado que a Câmara não
16
Presidente do Conselho de Ministros entre 25/11/1835 e 19/04/1836.
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chegou a reunir, em virtude da ocorrência da Revolução de Setembro, que determinou a
queda do mesmo Executivo.
A prerrogativa régia de dissolução da Câmara dos Deputados concretizou-se através de
uma “proposta dos Ministros”, aprovada por unanimidade pelo Conselho de Estado
17
. Ou
seja, a iniciativa pertence ao governo em funções e a intenção é “fabricar” uma maioria
parlamentar que o sustente, a qual é conseguida por recurso a mecanismos diversos que
distorcem o princípio da representação eleitoral.
A segunda dissolução foi decretada em 25 de fevereiro de 1840, na vigência da
Constituição de 1838, que consagrava a prerrogativa régia no âmbito do poder executivo,
de que o monarca era o chefe. A Câmara dos Deputados eleita em agosto de 1838 apoiou
o governo de da Bandeira, que organizou as eleições na sequência da aprovação da
nova Constituição
18
, mas conviveu mal com o ministério do Conde de Bonfim, nomeado
em novembro de 1839, com as Cortes encerradas, e que integrava Costa Cabral na
pasta da Justiça. Este governo, que representava o enterro do Setembrismo (Bonifácio,
1999: 168) e a ascensão do “partido da ordem”, debateu-se com uma forte oposição
protagonizada pelos deputados representantes da corrente setembrista, pelo que
solicitou a dissolução, alegando que a Câmara dos Deputados não representava a
opinião nacional e que era incapaz de aprovar as medidas legislativas de que o país
necessitava. Curiosamente, o Diário da Câmara regista que, após a leitura do decreto de
dissolução, “na sala e nas galerias ressoaram palmas e aplausos dos Deputados e pessoas
de todas as opiniões; e não houve uma expressão sequer de menos respeito para com a
prerrogativa real exercida nesse momento”
19
.
É claro que o governo em funções voltou a obter maioria parlamentar e a nova Câmara
sobreviveu até à restauração da Carta Constitucional, em fevereiro de 1842, na sequência
do movimento levado a cabo por Costa Cabral.
A dissolução de 10 de fevereiro de 1842 foi consequência natural da restauração da Carta
e da nomeação, a 9 de fevereiro, do governo presidido pelo Duque da Terceira, mas
verdadeiramente liderado por Costa Cabral, que ocupou a pasta do Reino. A Câmara dos
Deputados eleita em junho desse ano viria a ser o suporte do “cabralismo” e funcionaria
até 1845, dando origem à primeira legislatura completa desde o início do reinado de D.
Maria II.
As eleições de agosto de 1845, organizadas e “manipuladas” pelo Ministro do Reino, Costa
Cabral, voltaram a produzir uma Câmara dos Deputados maioritariamente apoiante do
governo e que viria a ser apelidada de “facciosa e prostituta” pelas forças políticas
contrárias ao cabralismo (Bonifácio, 2002: 45), não sobrevivendo à sua queda. Com
efeito, a revolta da Maria da Fonte, em abril de 1846, precipitou a queda do Ministério e
o exilio, em Espanha, de Costa Cabral e do irmão. Em sua substituição foi nomeado, a
20 de maio, um novo governo chefiado pelo Duque de Palmela, que procedeu à dissolução
17
ANTT, Actas do Conselho de Estado, Casa Forte, Livro 77A, sessão de 4/6/1836.
18
As eleições de 12 de agosto de 1838 foram diretas, nos termos da Constituição de 4 de abril do mesmo ano.
Em simultâneo com os deputados, foram eleitos também os senadores que comporiam a respetiva Câmara,
nos termos da nova Constituição.
19
Diário da Câmara dos Deputados (1840). Lisboa: I. N., 2º vol., p. 321. O Dário da Câmara dos Deputados
foi a fonte principal para o estudo de todas as dissoluções aqui analisadas, pelo que se dispensa a sua
constante referência.
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da Câmara dos Deputados três dias depois. A dissolução de 23 de maio de 1846 foi, pois,
o resultado dos conflitos políticos e das movimentações militares suscitadas pela
governação de Costa Cabral e que culminariam na guerra civil da Patuleia.
O Parlamento o funcionou durante todo o ano de 1847 e em novembro foram
realizadas eleições, convocadas pelo governo de Saldanha, que substituiu o anterior. A
nova Câmara dos Deputados reuniu a 2 de janeiro de 1848, nos termos constitucionais,
e conviveu com todos os governos
20
que se sucederam até ao pronunciamento militar da
Regeneração, cumprindo as quatro sessões legislativas. Em 9 de abril de 1851 procedeu-
se ao adiamento dos trabalhos parlamentares até 2 de junho, mas as Cortes não
voltariam a reunir, uma vez que o governo do Duque de Saldanha, resultante do
movimento da Regeneração e empossado a 22 de maio, procedeu à dissolução da Câmara
dos Deputados três dias depois.
O Decreto de 25 de maio de 1851 não dissolve a Câmara dos Deputados, mas convoca
também eleições que confeririam aos deputados poderes extraordinários para a revisão
da Carta Constitucional, prometida desde 1842 e agora exigida pelos setores políticos
mais progressistas que apoiaram o movimento regenerador. Assim, D. Maria II,
considerando-se investida de poderes extraordinários, ultrapassa os artigos 140º a 143º
da Carta Constitucional, que regulamentam a revisão, abrindo a porta às alterações que
tornariam a Lei Fundamental aceitável por todos.
Se as dissoluções decretadas entre 1836 e 1851 foram condicionadas, em maior ou
menor escala, pela instabilidade política e militar
21
que caracterizou a primeira metade
do século XIX, o mesmo não aconteceu com as que ocorreram a partir de 1852, uma vez
que as alterações à Carta Constitucional consagradas no primeiro Acto Adicional
acentuaram a vertente parlamentar do regime e estabeleceram novas formas de
relacionamento entre os poderes legislativo e executivo. Com efeito, o Acto Adicional de
5 de julho de 1852 introduziu normativos que reforçaram os poderes do Parlamento,
designadamente: medidas relativas a questões de Fazenda (votação parlamentar anual
dos impostos, obrigatoriedade de aplicação das verbas orçamentais a despesas
previamente determinadas, prescrição de prazos rígidos para apresentação do
Orçamento do Estado por parte do governo); obrigatoriedade de ratificação parlamentar
dos tratados celebrados com potências estrangeiras; e a faculdade de as câmaras
legislativas procederem, através de comissões de inquérito, ao exame dos atos da
governação. Este reforço da função fiscalizadora do Parlamento obrigou o Executivo a
submeter-se a um controlo parlamentar mais apertado do que o inicialmente previsto na
Lei Fundamental. Por outro lado, o fim dos pronunciamentos militares que, no período
anterior, opunham as diversas fações do Liberalismo, transferiu a luta política para o
parlamento, que se tornou o palco privilegiado dos confrontos de ideias e estratégias
governativas.
Também a institucionalização do cargo de Presidente do Conselho de Ministros (1855)
22
e o caráter de “Gabinete” que, legalmente, foi assumido pelo Ministério, aproximaram o
20
Governos chefiados por Saldanha, Costa Cabral, Duque da Terceira e novamente Saldanha.
21
Sobre os movimentos militares neste período ver: Marques, Fernando Pereira (1999). Exército, mudança e
modernização na primeira metade do século XIX. Lisboa: Cosmos/IDN
22
Apesar de D. Maria II ter nomeado um presidente do conselho de ministros logo no seu primeiro governo,
o cargo foi regulamentado apenas em 1855 (Lei de 23 de junho). Existiu, portanto, um vazio legal durante
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regime de um parlamentarismo dualista ou orleanista (Duverger, 1985: 139-140), em
que o governo era duplamente responsável: perante o rei, que o nomeava e demitia; e
perante o Parlamento que, embora constitucionalmente o não pudesse derrubar, exercia
uma ação fiscalizadora e crítica que condicionava fortemente a existência dos gabinetes
ministeriais. Exemplo disso são as moções de censura que, em certos momentos,
conduziram à demissão dos governos em funções.
Além dos novos preceitos legais, também as práticas dos agentes políticos e o seu
entendimento do funcionamento das instituições condicionaram a feição assumida pelo
regime na segunda metade de Oitocentos. A ascensão dos “históricos” à governação foi
acompanhada da defesa clara dos princípios parlamentares, contrastando com a atitude
dos regeneradores, geralmente mais limitada à contabilização das maiorias ou minorias
existentes nas câmaras legislativas. Enquanto Saldanha teria exclamado a D. Pedro V,
ao solicitar-lhe a recusada fornada de pares, que “sem câmaras, Vossa Majestade e eu
faríamos Portugal feliz” (Cruz, 1970: 29), o Jornal do Comércio, órgão próximo dos
históricos, declarava em 1858: “Os encarregados de cada uma das repartições precisam
necessariamente de dar contas em público, perante a representação nacional, dos
negócios especiais a seu cargo. (…) Assim como não pode haver governos sem maiorias,
igualmente se tornam impossíveis as maiorias na ausência dos governos”
23
. Por sua vez,
A Opinião, jornal assumidamente defensor dos ministérios históricos, considerava, em
1859: “Estamos em pleno governo parlamentar (…). Entre nós são agora impossíveis
situações políticas que não nasçam nem vivam das condições parlamentares”.
Congratulando-se com uma reunião ocorrida entre a maioria dos deputados e o governo,
o jornal exultava com “os efeitos benéficos das instituições” e com “a interpretação que
se lhes tem dado nos últimos anos de governo”
24
, ou seja, com o desenvolvimento da
vertente parlamentar incentivado desde 1856 pelo governo do Marquês de Loulé. A
harmonia entre os princípios fundamentais da Carta Constitucional e a “norma
governativa” tinha conduzido a um regímen eminentemente parlamentar”
25
, que era
necessário preservar e defender.
A atitude dos governos relativamente às câmaras dissolvidas difere também entre
regeneradores e históricos, pelo menos na primeira fase da regeneração, como adiante
demonstraremos. As dissoluções de 1852 e 1859 (governos dos Duques de Saldanha e
da Terceira, respetivamente) foram abruptamente decretadas, enquanto as restantes, da
responsabilidade de ministérios presididos por históricos (Marquês de Loulé e Marquês de
da Bandeira) resultaram de processos conflituosos complexos, em que a solução
extrema aparece como a única capaz de pôr fim às situações políticas então criadas.
Embora utilizado por ambas as forças políticas dominantes na governação, o recurso à
prerrogativa da dissolução parece ter suscitado maiores escrúpulos por parte dos
históricos, o que indicia uma forma diferente de encarar as relações estabelecidas entre
o poder executivo e a representação nacional.
A dissolução da Câmara dos Deputados decretada em 26 de julho de 1852 foi o resultado
do primeiro grande conflito travado entre o governo e a representação nacional depois
mais de vinte anos, o que constitui um bom exemplo do afastamento entre as normas constitucionais e as
práticas políticas.
23
Jornal do Comércio, nº 1350, 21-3-1858.
24
A Opinião, nº 632, 6-2-1859.
25
Idem, nº 635, 10-2-1859; nº 640, 16-2-1859.
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políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
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do movimento regenerador que conduziu o Duque de Saldanha à presidência do Conselho
de Ministros. Embora o pretexto imediato tenha sido a atitude parlamentar de recusa de
uma medida financeira decretada ditatorialmente pelo governo, a sua ocorrência
inscreve-se num quadro conflituoso mais vasto que importa caraterizar e cuja
compreensão passa, em primeiro lugar, pela consideração da estrutura governativa e da
realidade político-ideológica constituída pela câmara eleita em novembro de 1851.
O Ministério chefiado pelo Duque de Saldanha (empossado a 22 de maio de 1851) refletia
um compromisso entre vários setores políticos opositores do cabralismo que apoiaram o
movimento militar regenerador, uma vez que Saldanha atraíra para a sua causa os
antigos setembristas e os cartistas moderados, descontentes com a situação política e
com o conjunto de escândalos que caraterizaram o último período do governo de Costa
Cabral. O elenco ministerial apresentava uma heterogeneidade que procurava conciliar
tendências políticas diversas e congregá-las em torno de objetivos nacionais de que a
Regeneração se tornou estandarte, configurando-se como “uma coalisão em que
entravam partidos diversos”
26
e que sofreu sucessivas remodelações tendentes a afastar
os elementos mais radicais e a consolidar o poder dos mais fiéis seguidores de Saldanha.
O Marquês de Loulé foi afastado da pasta da Marinha logo em julho de 1851, bem como
Joaquim Filipe de Soure da da Justiça, enquanto Almeida Garrett e António Luís de
Seabra, de passado setembrista, não resistiram mais de cinco meses (março a agosto de
1852) nos ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça, respetivamente. O
ministério da Fazenda conheceu dois titulares (Marino Franzini e Silva Ferrão) antes de
ser encontrado o “providencial” Fontes Pereira de Melo; e a importante pasta do Reino
passou pelas mãos de José Ferreira Pestana, afastado para dar lugar ao futuro segundo
homem forte da nova situação, Rodrigo da Fonseca Magalhães. Não foi, portanto, uma
estrutura governativa consolidada e estável que enfrentou a Câmara dos Deputados, mas
um conjunto de indivíduos de ideias diversas, onde as contradições políticas encontravam
terreno fértil para o seu desenvolvimento.
O Parlamento, aberto a 15 de dezembro de 1851, apresentava uma Câmara de Deputados
(eleita em novembro) que não deixava de refletir as movimentações governamentais. O
velho Partido Progressista dominava a esmagadora maioria da câmara, mas tal estrutura
partidária, longe de ser homogénea, apresentava diversas fações, rapidamente
incompatibilizadas a propósito do apoio a prestar ao governo de Saldanha. As arrumações
e alinhamentos políticos no interior da câmara foram complexos e lentos e o próprio
governo teve dificuldade em contabilizar os seus apoiantes, cujo número não chegou a
fixar-se, variando conforme os assuntos discutidos. O Partido Progressista viria, na sua
fação maioritária, a apoiar o governo, embora esse apoio não fosse incondicional,
revelando a câmara uma razoável autonomia relativamente aos intentos ministeriais.
O relacionamento da Câmara dos Deputados com o governo pautou-se, inicialmente, por
posições de exigência e de convicção política. O seu “ministerialismo” não resultava de
qualquer fidelidade cega ao governo, mas “da convicção de que o Ministério deve ser
apoiado; este ministerialismo supõe merecimento em quem o recebe e independência
em quem o dá”
27
, escrevia Rodrigues Sampaio, sintetizando os sentimentos do grupo de
26
A Revolução de Setembro, nº 3099, 30-07-1852.
27
A Revolução de Setembro, nº 3002, 02-04-1852.
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Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), Dezembro 2021, pp. 125-145
A Carta Constitucional de1826 e a dissolução da Câmara dos Deputados. Normas legais, práticas
políticas e funcionamento do regime monárquico-liberal oitocentista (1834-1865)
António Pedro Manique
137
deputados que dispensava ao governo um apoio “ilustrado e consciencioso, e não um
apoio ilimitado e sem condições”
28
.
O conflito travado entre o Governo e a Câmara dos Deputados, que culminaria na
dissolução, conheceu três etapas fundamentais: a questão da presidência, logo no início
dos trabalhos parlamentares; a discussão do Acto Adicional e os aditamentos nele
introduzidos pelos deputados; e, finalmente, a recusa da ratificação do decreto ditatorial
de 3 de dezembro de 1851. A conflitualidade política entre as duas instâncias do poder
aumentou progressivamente até atingir a rutura, em julho de 1852, a propósito da
ratificação parlamentar das medidas ditatoriais decretadas pelo Executivo entre maio e
dezembro de 1851, na ausência de trabalhos das Cortes, encerradas quando ocorreu o
movimento militar regenerador
29
.
Foi o Decreto de 3 de dezembro de 1851 que esteve diretamente na origem do conflito
entre o governo e os deputados. Considerado uma das mais importantes medidas
promulgadas pelo Executivo, o decreto procedia à capitalização dos juros da vida
pública e constituía um dos pilares fundamentais da política financeira da Regeneração.
Atendendo às implicações orçamentais do decreto, a comissão parlamentar de Fazenda
pretendeu suspender a sua aplicação até à aprovação do orçamento geral do Estado,
opondo à capitalização defendida pelo governo o princípio da amortização da dívida
pública, prontamente rejeitado pelo Executivo. O plenário, por sua vez, viria a pretender
uma análise específica do decreto, separando-o do conjunto das 100 (cem) medidas
legislativas que o governo apresentou a ratificação.
O confronto teve por base as posições irredutíveis das duas partes envolvidas. O governo
não admitiu qualquer alteração ao Decreto de 3 de dezembro de 1851, exigindo a
ratificação em bloco do “pacote” legislativo apresentado; e a Câmara dos Deputados não
abdicou dos seus direitos de legislar, vindo a rejeitar, simultaneamente, a capitalização
e a amortização da dívida, esperando, com tal atitude, criar condições para um
entendimento com o Executivo a propósito da questão financeira, por todos considerada
da máxima importância e urgência.
O presidente do Conselho de Ministros, Saldanha, chegou a declarar na Câmara dos
Deputados que o Executivo se demitiria caso fosse derrotado no confronto com os
parlamentares, mas viria a proceder de forma contrária, dissolvendo a representação
nacional em consequência da sua atitude de recusa das exigências governamentais. Com
efeito, rejeitada a pretensão governamental a 23 de julho, o decreto régio de dissolução
da Câmara dos Deputados foi assinado a 24, embora produzisse efeitos apenas a 26
30
. A
iniciativa da dissolução partiu do governo e revela a sua incapacidade para dominar uma
câmara que fizera eleger, mas que revelou uma enorme autonomia face ao Executivo,
apoiando-o nas medidas que considerava corretas, mas sem abdicar do exercício da
28
Idem, 3095, 27-07-1852. Para o relacionamento Governo/Câmara dos Deputados na primeira fase da
Regeneração, veja-se o Diário da Câmara dos Deputados, Lisboa, I.N., 1851-1865.
29
Para uma análise mais aprofundada das ditaduras e das respetivas ratificações parlamentares, veja-se o
nosso trabalho “Parlamento, Governo e produção legislativa na primeira fase da Regeneração. Normas legais
e práticas políticas (1851-1865)”. Cadernos do Arquivo Municipal, 2ª Série, 14, Lisboa, CML, 2020, pp.
41-63.
30
A dissolução da Câmara dos Deputados consumava-se com a leitura do decreto régio no plenário, altura em
que o presidente encerrava a sessão, e não na data em que o mesmo era assinado. Daí que possa não
haver coincidência das duas datas, como aconteceu neste caso.
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função legislativa que constitucionalmente lhe pertencia
31
. Nas eleições subsequentes, o
governo obteve maioria parlamentar, a qual viria a ratificar, sem conflitos, as medidas
ditatoriais rejeitadas pela câmara sua antecessora. O braço de ferro entre o governo e os
deputados, que condicionou esta dissolução, conduziu a uma profunda dissidência no
bloco político progressista, que daria origem à futura estruturação dos partidos
Regenerador e Histórico (Sardica, 2001: 149 e ss.).
A dissolução da Câmara dos Deputados ocorrida em 26 de março de 1858 inscreve-se
numa conjuntura política de ampla contestação parlamentar ao governo chefiado pelo
Marquês de Loulé. Eleita em novembro de 1856, poucos meses após a ascensão ao poder
do Partido Histórico, a Câmara manteve sempre com o Executivo um relacionamento
pouco fácil, sendo frequente a sintonia entre as suas críticas à política governamental e
as produzidas na Câmara dos Pares, onde a oposição contava com um numeroso grupo
de membros que não poupavam o governo nas apreciações que faziam do andamento
dos negócios públicos.
As eleições de 1856 foram marcadas pela concorrência às urnas de quatro partidos
políticos (Regenerador, Histórico, Cartista e Legitimista)
32
, tendo o governo apresentado
listas próprias, mas estabelecendo acordos eleitorais com as três primeiras forças
partidárias, de onde resultou uma câmara heterogénea, “composta de diversas fações
pertencentes aos antigos partidos; com uma grande oposição forte em número e em
recursos parlamentares; com a maioria flutuante, incerta, desanimada pelo presente e
descoroçoada pelo futuro”
33
.
O primeiro conflito travado entre a câmara eletiva e o Ministério ocorreu em meados de
janeiro de 1858 e traduziu-se numa moção de censura que, embora derrotada por uma
escassa maioria de seis votos, motivou o pedido de demissão do governo. Pedido que
viria a ser rejeitado por D. Pedro V, em virtude de não conseguir formar outro Executivo
nos termos em que o desejava, mantendo-se o Marquês de Loulé na presidência do
Conselho de Ministros. O fenómeno político que opôs o Parlamento ao Governo foi a
questão do funcionamento do Conselho de Estado, suscitada na Câmara dos Pares em
meados de fevereiro de 1858 e que, durante mais de um mês, agitou os ânimos dos
parlamentares e dos governantes. Com efeito, a Câmara Alta, numa atitude de frontal
oposição ao Executivo, lembrou-se de questionar o funcionamento do Conselho de Estado
que, de acordo com a Lei de 3 de maio de 1845, que o reorganizara, se dividia em
Conselho de Estado Político e Conselho de Estado Administrativo, cabendo ao primeiro as
funções de aconselhamento do monarca e ao segundo o papel de tribunal supremo que,
em última instância, julgava os recursos interpostos das decisões administrativas em
matéria contenciosa que opunham as autoridades administrativas e judiciais. A maior
parte dos conselheiros de Estado eram membros do parlamento, uma vez que a Carta
permitia, excecionalmente, a acumulação das duas funções. Ora, a Câmara dos Pares
resolveu, em 1858, fazer uma interpretação restritiva de uma norma constitucional que
condicionava o exercício de outras funções públicas, por parte dos parlamentares, à
autorização das câmaras legislativas, a qual só podia ser concedida mediante solicitação
31
O debate desta problemática pode ser seguido no Diário da Câmara dos Deputados, 1852, sessões de 2 a
23 de julho.
32
Para a evolução partidária neste período ver Sardica, José Miguel (2001). A Regeneração sob o signo do
Consenso: a política e os partidos entre 1851 e 1861, Lisboa, ICS.
33
Jornal do Comércio, nº 1361, 07-04-1858.
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do governo. Aprovando uma resolução que impedia os pares conselheiros de Estado de
participarem nos trabalhos da secção administrativa do Conselho, a câmara hereditária
fez paralisar aquele órgão, uma vez que o governo se recusou a solicitar a pretendida
autorização, por entender que a deliberação da câmara, além de contrariar uma prática
de longos anos, não tinha fundamento legal. Governo e Câmara dos Pares confrontaram-
se de forma violenta, compreendendo o Executivo que o podia contar com qualquer
apoio político daquela casa do Parlamento.
Pretendendo resolver legalmente o problema do Conselho de Estado, o Executivo
transferiu-o para a mara dos Deputados ao apresentar, na sessão de 16 de março,
uma proposta de lei que contrariava a deliberação da câmara alta. Mas a oposição da
câmara eletiva, em consonância com o que acontecera com os pares, criticou
asperamente o governo, fazendo-o pressentir a impossibilidade de obter aprovação para
a sua proposta. Perante a hostilidade das duas câmaras, o Executivo dispunha de duas
alternativas: demitir-se, ou dissolver a representação nacional e procurar, através do
recurso a eleições, alcançar uma nova maioria parlamentar que o apoiasse na política
que pretendia prosseguir. O caminho escolhido foi o segundo, sendo a dissolução,
solicitada pelo governo, decretada a 26 de março, contra a vontade da maioria do
Conselho de Estado (cuja audição era obrigatória) que, expressamente, se manifestou
contra ela
34
. A dissolução de 1858 assumiu, assim, um caráter punitivo, ainda que
indireto, mais à Câmara dos Pares do que à dos Deputados, que esta não chegara a
expressar formalmente qualquer voto de protesto contra o Executivo. Uma vez mais,
numa situação de conflitualidade institucional, o governo utilizou uma arma política de
que dispunha para vencer a representação nacional, mostrando que a prerrogativa régia
da dissolução o era utilizada autonomamente pelo monarca enquanto árbitro dos
conflitos políticos, mas pelo Executivo, quando pretendia livrar-se de câmaras eletivas
incómodas que não se dispunham a aceitar pacificamente a política ministerial.
A Câmara dos Deputados eleita em maio de 1858, na sequência da dissolução referida,
viria a ser dissolvida novembro de 1859, num contexto político bastante diferente daquele
que presidira à sua eleição. De todas a menos justificada, por não resultar de qualquer
processo de conflitualidade declarada, a dissolução de 1859 tem de ser compreendida à
luz dos jogos de forças então atuantes no sistema político, os quais determinaram a
utilização de uma medida já utilizada de forma banal e ligeira pelos governantes de todos
os quadrantes partidários.
A primeira fase de preponderância política do Partido Histórico, iniciada em 1856 e
traduzida na liderança governativa do Marquês de Loulé, terminou em março de 1859,
com a demissão do Gabinete várias vezes recomposto e a sua substituição por um outro,
de cariz regenerador-cartista, chefiado pelo Duque da Terceira. Foi o governo Terceira
que, não confiando plenamente numa câmara de deputados eleita sob influência de forças
políticas de sinal contrário, procedeu à sua dissolução em 24 de novembro de 1859,
justificando tal medida com a necessidade de r em prática a recém-aprovada lei
eleitoral
35
, que substituía os círculos plurinominais pelo princípio dos rculos uninominais.
O empate verificado na votação do Conselho de Estado não impediu D. Pedro V de
decretar a dissolução, solidarizando-se, assim, com os seus ministros, como acontecera
34
Cf. Actas do Conselho de Estado, ANTT, Casa Forte, Livro 77B, fs 213v-219 (sessão de 26-03-1858).
35
Idem, fs 280v-283 (sessão 23-11-1859).
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em épocas anteriores. Esta dissolução ilustra cabalmente a prática estabelecida de
primeiro se nomearem os governos e depois se fazerem eleições que lhes dão (quase)
sempre maiorias parlamentares. Prática que resulta da norma constitucional que atribui
ao poder moderador a capacidade de nomear e demitir “livremente os Ministros de
Estado”
36
, mas que distorce completamente o princípio da representação nacional,
atendendo à manipulação e à fraude presentes nos atos eleitorais ao longo do século XIX,
nos quais o caciquismo local assumia papel de relevo
37
.
O regresso do Partido Histórico ao Poder, em 1860, reacendeu velhos problemas políticos
e condicionou um relacionamento tenso entre o Gabinete e o Parlamento, dando origem,
em 1861, a uma conflitualidade de vel equivalente ao ocorrido em 1858 e que, à
semelhança do que então acontecera, culminou na dissolução da Câmara dos Deputados.
O grande problema político que, no início de 1861, opôs o governo ao parlamento, foi o
das irmãs da caridade, religiosas francesas vindas para Portugal em 1857 e cuja presença
no país foi fortemente contestada pelas forças políticas anticlericais, que viam na ação
das freiras uma forma de reação que entendiam dever ser combatida. A questão das
irmãs da caridade assumiu características políticas preocupantes em princípios de 1861,
fazendo desencadear, em Lisboa, manifestações populares de protesto que, no
entendimento do governo e do parlamento, punham em causa a legalidade constitucional
vigente e ameaçavam a segurança do Estado e a liberdade dos cidadãos. As religiosas
acabariam por ser expulsas do país pelo governo de Loulé, que foi fortemente criticado
nas duas câmaras legislativas (em especial na Câmara dos Pares), pelas medidas que
tomou relativamente àquela questão.
O confronto governo/câmara dos deputados teve, no entanto, razões mais profundas. É
que a câmara fora eleita, em 1860, sob influência do governo do Duque da Terceira e
apoiara, sucessivamente, três governos: o que a fizera eleger, o de Joaquim António de
Aguiar, que lhe sucedeu e, finalmente, o do Marquês de Loulé, de coloração política
contrária aos anteriores. O governo quis, por isso, testar a confiança da câmara,
solicitando aos deputados, designadamente aos da oposição regeneradora, apoio
parlamentar para medidas legislativas que pretendia ver aprovadas
38
. Perante a recusa
da oposição, o Executivo decidiu-se pela dissolução da Câmara dos Deputados,
escolhendo para pretexto a apresentação, na sessão de 18 de março, de uma proposta
de lei de meios que a mara viria a rejeitar por maioria. Perdida a confiança parlamentar
e, uma vez mais, perante as alternativas de demissão ou de dissolução da câmara eletiva,
o Executivo enveredou por esta última, saindo de novo vencedor de um conflito que o
opôs à representação nacional e logrando, nas eleições subsequentes, obter uma maioria
de deputados que lhe permitiu fazer aprovar as medidas legislativas que considerava
necessárias à prossecução da sua política, mantendo-se no poder até 1865.
Quanto à forte e persistente oposição da câmara alta, o Marquês de Loulé tentou
ultrapassá-la com duas fornadas de novos pares, em 1861 (15 nomeações) e 1862 (25
nomeações), o que lhe facilitou a governação até 1865.
36
Carta Constitucional de 1826, artº 74, p. 5º.
37
Para a compreensão dos fenómenos eleitorais veja-se Almeida, Pedro Tavares de (1991). Eleições e
Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868-1890). Lisboa: Difel.
38
A Opinião, nº 260, 16-03-1861.
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A dissolução da Câmara dos Deputados decretada em 1865 inscreve-se numa conjuntura
de profunda crise das forças políticas que governavam o país desde 1851 e só adquire
significado à luz das dissensões internas que dilaceravam o Partido Histórico, principal
responsável pela governação durante a maior parte da primeira fase da Regeneração. A
câmara eleita em 1861, na sequência da dissolução anterior, cumpriu, pela segunda vez
desde o movimento regenerador, a legislatura completa, sendo substituída em eleições
realizadas em setembro de 1864, nas quais o governo em exercício (Duque de Loulé)
obteve uma confortável maioria de cerca de dois terços dos deputados. No entanto, os
resultados eleitorais conseguidos pelo governo não obstaram à manifestação de um vasto
conjunto de dificuldades com que o mesmo viria a debater-se e resultantes, por um lado,
do desgaste político provocado por cerca de cinco anos de exercício do poder e, por outro,
do combate implacável que contra ele foi travado pela oposição regeneradora.
As dificuldades do Partido Histórico articulavam-se com a sua divisão interna em duas
fações - a “unha branca” e a “unha negra” sendo a primeira maioritária e chefiada por
Loulé, e agrupando-se a segunda em torno de Joaquim Tomás Lobo de Ávila. Foram os
conflitos partidários que conduziram à demissão do Gabinete Loulé, substituído, em 1865,
por um outro chefiado pelo Marquês de Sá da Bandeira. A complexa situação política
traduzia-se, na Câmara dos Deputados, numa forte oposição ao Executivo por parte dos
regeneradores que, no entanto, não possuíam força suficiente para formar governo.
Circunstância que fez aproximar regeneradores e históricos (na sua fação maioritária),
os quais estabeleceram um compromisso para a formação de uma coligação de “fusão”
dos dois partidos, como forma de resolver os problemas políticos com que o país se
debatia. Embora inicialmente não agradasse a boa parte de ambas as forças partidárias,
a ideia de “fusão” viria a adquirir apoio significativo, especialmente entre os deputados,
que se afastaram progressivamente da política governamental e, sob influência dos
principais líderes partidários (Loulé, pelos históricos e Fontes Pereira de Melo pelos
regeneradores) viriam mesmo a concertar esforços para o derrube do governo de Sá da
Bandeira, principal opositor às intenções fusionistas.
Compreendendo que não podia governar com a câmara dos deputados existente, da
Bandeira pretendeu testar a confiança dos parlamentares através da apresentação, na
sessão de 8 de maio, de uma proposta de lei de meios, a qual viria a motivar uma moção
de censura ao Executivo, aprovada pela esmagadora maioria da câmara. Perante a
censura parlamentar, e quando se esperava a demissão do Gabinete, este decidiu-se pela
dissolução da Câmara dos Deputados, que lhe foi previamente anunciada, numa atitude
inédita em Portugal e que mereceu ao chefe do governo elogios parlamentares, mesmo
da oposição, pela sinceridade e transparência que introduzia na vida política.
A dissolução da Câmara dos Deputados decretada a 15 de maio foi uma tentativa, por
parte de da Bandeira, de vir a obter uma maioria parlamentar que evitasse a fusão
dos dois partidos. No entanto, o governo viria a perder as eleições (facto raro na história
do Liberalismo português), acabando por demitir-se, em fins de agosto, para dar lugar a
um governo de “fusão” entre regeneradores e históricos presidido por Joaquim António
de Aguiar e que governou o país até janeiro de 1868. Concretizava-se, assim, uma velha,
ainda que mitigada, aspiração de unidade de duas forças partidárias que tinham raízes
comuns e cujos discursos e práticas políticas não eram substancialmente diferentes.
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Ao anunciar, na Câmara dos Deputados, que o governo tinha apresentado a demissão
(que D. Luís aceitou), Sá da Bandeira declara: “Este passo dado pelos ministros tem por
fim facilitar a prática de governar parlamentarmente (…). É preciso que haja um governo
que seja apoiado por uma maioria suficiente. Da minha parte e, seguramente, da parte
dos meus colegas, o se suscitará, decerto, embaraço a que se forme um Ministério que
possa administrar segundo os interesses da Nação”
39
. Ou seja, o respeito pela
representação nacional mostrava que a vertente parlamentar do regime se tinha
consolidado e que, pelo menos para alguns agentes políticos, já o era aceitável o
desprezo pelo parlamento evidenciado na primeira metade do século XIX.
Conclusão
Contrariamente às normas constitucionais que previam a dissolução da Câmara dos
Deputados apenas em casos extremos de necessidade de “salvação do Estado”, o recurso
à dissolução da câmara eletiva foi utilizado desde o início da construção do Estado liberal
e tornou-se frequente e banal na segunda metade do século XIX. A prerrogativa régia
nunca foi decidida autonomamente pelo monarca, enquanto árbitro dos conflitos políticos
(embora lhe coubesse sempre a assinatura dos decretos, no exercício do poder
moderador), mas pelos governos, como forma de se imporem à representação nacional,
quando não a dominavam, e de promoverem eleições que lhes permitiam, através de
mecanismos fraudulentos, fazer eleger para o Parlamento deputados que se dispusessem
a aprovar pacificamente as medidas legislativas propostas pelos ministros.
A análise deste expediente político, no período considerado, permite constatar que o
recurso à dissolução era uma forma de resolver, a favor do governo, processos de
conflitualidade política que o opunham ao parlamento, invertendo o princípio básico dos
regimes representativos que consiste em nomear governos de acordo com as maiorias
parlamentares obtidas em eleições livres. A Carta Constitucional, ao permitir que o chefe
do Estado nomeasse e demitisse livremente os agentes do poder executivo, sancionava
uma prática política que se banalizou e que teve um importante papel no funcionamento
do regime monárquico-liberal oitocentista. Por outro lado, as frequentes dissoluções da
câmara eletiva demonstram que as representações nacionais nem sempre eram
inteiramente submissas aos governos, daí que estes as dissolvessem quando elas se
tornavam incómodas.
O caráter dúbio da Carta Constitucional de 1826, que permitia que se praticasse, quer
uma monarquia simplesmente representativa, em que o monarca assumisse papel de
relevo na condução dos negócios públicos, quer uma monarquia parlamentar, em que as
relações Governo/Parlamento fossem preponderantes no sistema político, foi clarificado
pelo Acto Adicional de 1852, que acentuou fortemente a componente parlamentar do
regime. Nesse contexto, a importância assumida por estes dois órgãos estatais tornou-
os protagonistas dos processos de conflitualidade política cuja resolução, geralmente
favorável ao governo, era conseguida através de um recurso que evidencia a existência
de uma significativa distância entre as normas constitucionais e as práticas políticas.
Distância que, se considerada de forma mais ampla, pode explicar, pelo menos em parte,
39
Sessão da Câmara dos Deputados de 31-8-1865. Diário de Lisboa, nº 197, 2-9-1865.
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a longa vigência da Carta Constitucional de 1826, uma das constituições mais duradouras
da Europa liberal oitocentista.
Referências
Fontes manuscritas
Arquivo Histórico Parlamentar (Assembleia da República)
Actas das Sessões da Câmara dos Deputados, Secções I/II, caixas 197-205
Actas das Sessões da Câmara dos Pares, Secção VI, caixas 85-93
Cadernos para se lançarem os pedidos de documentos e esclarecimentos feitos ao
Governo pelos membros das comissões, Livros 2739-2774
Registo das sessões reais, prorrogação das sessões e adiamento das mesmas e da
dissolução da Câmara dos Deputados, Livro 788
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Actas do Conselho de Estado, Casa Forte, Livros 77, 77A, 77B, 77C; Ministério do Interior,
Livros 3, 5
Actas do Conselho de Ministros, Ministério do Interior, Livros 4, 6
Fontes Impressas
Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa (1826). Lisboa: Impressão Régia
Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa e Acto Adicional (1855). Lisboa: Imprensa
Nacional
Colecção Oficial de Legislação Portuguesa (vários anos). Lisboa: Imprensa Nacional
Diário da Câmara dos Pares do Reino de Portugal (1842-1843). Lisboa: Imprensa
Nacional
Diário da Câmara dos Deputados (1842-1865). Lisboa: Imprensa Nacional
Diário do Governo (vários anos). Lisboa: Imprensa Nacional
Regimento Interno da Câmara dos Dignos Pares do Reino (1826). Lisboa: Impressão
Régia
Regimento Interno da Câmara dos Senhores Deputados de 23 de Janeiro de 1827,
acompanhado das deliberações que o modificam ou ampliam (1867). Lisboa: Imprensa
Nacional
Publicações Periódicas
Jornal do Comércio (1853-1865). Lisboa
A Opinião (1856-1863). Lisboa
O Parlamento (1858-1861). Lisboa
O Portuguez (1853-1866). Lisboa
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Rei e Ordem (1857-1860). Lisboa
A Revolução de Setembro (1851-1865). Lisboa
Bibliografia
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(1868-1890). Lisboa: Difel
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146
JUÍZES POPULARES E JUÍZES LETRADOS NO LIBERALISMO.
PORTUGAL (1820-1841)
JOSÉ SUBTIL
josesubtil@outlook.pt
Licenciado em História pela FL da UL, Mestre em História dos séculos XIX e XX pela FCSH da UNL,
Doutor em História Política e Institucional Moderna e Agregado no Grupo de História, pela mesma
Faculdade. Foi Professor Coordenador com Agregação do IPVC. É, actualmente, Professor
Catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) onde é Presidente eleito do Conselho
Científico. Exerceu vários cargos públicos, Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Finanças
(1997-2000), vogal da Comissão de Reforma e Reinstalação do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo e Director de Serviços do Instituto Português de Arquivos (1990-1992). Foi Coordenador
Nacional da Comissão de Acreditação e vogal da Direcção do Instituto Nacional de Acreditação da
Formação de Professores. Tem dezenas de publicações individuais e coletivas, livros, capítulos de
livros e artigos. Recebeu o Prémio de Mérito Académico da Fundação Fernão de Magalhães nos
anos de 1996 e 1997 e quatro louvores públicos.
Resumo
O tema da justiça foi muito discutido e considerado como o mais importante para o novo
regime liberal. O confronto político marcou as fronteiras entre a fação liberal mais radical, a
moderada, a conservadora e a reacionária. As opções oscilaram entre um modelo popular de
justiça e um modelo elitista, passando por escolhas híbridas. Os principais momentos destas
escolhas foram a Constituição de 1822, a Carta Constitucional de 1826, a Reforma de
Mouzinho da Silveira de 1832, a Nova Reforma de 1837 (setembrista), a Constituição de 1838
e a Novíssima Reforma de 1841 (cabralista). O presente texto analisa e passa em revista a
definição do modelo de justiça liberal.
Palavras chave
Justiça, Liberalismo, Juízes de Direito, Juízes Populares
Como citar este artigo
Subtil, Jo(2021). Juízes populares e juízes letrados no liberalismo. Portugal (1820-1841).
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(1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.8
Artigo recebido em 24 de Maio de 2021 e aceite para publicação em 29 de Julho de 2021
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JUÍZES POPULARES E JUÍZES LETRADOS NO LIBERALISMO.
PORTUGAL (1820-1841)
JOSÉ SUBTIL
Introdução
O debate pela escolha entre juízes letrados e eletivos teve lugar num ambiente
parlamentar novo, ou seja, entre deputados recém-eleitos (Brochado, 2020).
Depois da revolução de 24 de agosto de 1820, o primeiro momento eleitoral que
assinalaria a emergência das eleições liberais ocorreu em dezembro de 1820 para a
escolha dos deputados que viriam a compor as Cortes Constituintes (Vieira, 1992). Esta
primeira experiência eleitoral foi regulada por duas instruções (31 de outubro e 22 de
novembro de 1820) forçadas, aliás, pelo golpe contrarrevolucionário da «Martinhada» em
11 de novembro (Costa, 2019).
O essencial do sufrágio assentava no poder legitimador das juntas eleitorais, presididas
pelo juiz de fora (vide Almeida, 2016; Almeida, 2010). Nas freguesias, estas juntas eram
compostas por todos os cidadãos domiciliados e residentes, sendo que, por cada 200
fogos, seria eleito um eleitor, cidadão maior de 25 anos e morador na freguesia. Estes
eleitores juntar-se-iam, na cabeça da comarca, para elegerem o eleitor ou eleitores da
comarca para que estes, depois, elegessem os deputados que deviam ter mais de 25
anos, terem nascido ou estarem domiciliados há mais de sete anos na província.
No computo geral, foram eleitos 100 deputados com a seguinte distribuição: província
Algarve (3), Alentejo (10), Estremadura (24), Beira (29), Minho (25) e Trás-os-Montes
(9).
O ano parlamentar das Cortes Constituintes iniciou-se a 24 de janeiro de 1821 e encerrou
a 31 de dezembro para recomeçar em 28 de janeiro de 1822 e terminar em 4 de
novembro. E, em 13 de outubro de 1822, realizar-se-iam as eleições para a Câmara
Municipal de Lisboa (vereadores e procuradores)
1
segundo a lei de 11 de julho de 1822
que passou a regular, também, a eleição para os deputados às Cortes Ordinárias. O
pacote desta legislação eleitoral foi completado com a Lei de 27 de julho de 1822 que
definiu as regras para a eleição dos juízes ordinários e os oficiais das câmaras,
1
Admitia-se a eleição de nove vereadores, um procurador e, como substitutos, três vereadores e um
procurador. Em cada freguesia existia um livro de matrículas no qual o pároco assentava os nomes e as
profissões de todos os moradores que tinham capacidade eleitoral. As assembleias eleitorais (59 para 74
freguesias) reuniam-se nas igrejas das freguesias. Cada eleitor entregava em duas urnas diferentes, duas
listas, uma com 12 vereadores e outra com dois procuradores. Depois de se proceder ao apuramento dos
votos, o vereador mais votado era eleito presidente da câmara constitucional.
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fundamental para dar seguimento às escolhas dos juízes populares
2
.
De acordo com ambas as leis, podiam votar os cidadãos maiores de 25 anos (ou casados
com, pelo menos, 20 anos) e podiam ser votados os eleitores com rendas suficientes
para se sustentarem, nascidos ou residentes há mais de cinco anos na província onde se
faziam as eleições
3
. O sufrágio era direto, secreto e censitário. Não podiam votar os
“filhos de família", ou seja, os que viviam na companhia dos pais, os criados, os vadios,
os membros das ordens monásticas e as mulheres (Antónia, 2000).
Entre o modelo eleitoral de 1820 e o de 1822, a principal diferença foi a passagem do
método de eleição indireto para o método direto e a atenuação do carácter censitário,
confirmando-se, porém, as dificuldades sentidas pelos liberais para acertaram num
modelo eleitoral para a escolha de deputados (Vargas, 1993).
Estas dificuldades repercutir-se-ão nas fórmulas para encontrar os juízes eleitos,
qualquer que tenha sido a opção política, mais radical ou moderada. O debate centrou-
se em três aspetos: na escolha dos juízes (letrados e eletivos), no modelo para selecionar
os juízes eletivos e na fórmula para responsabilizar e avaliar as suas funções e carreiras.
Se foi assim durante o debate nas Cortes Constituintes, o mesmo continuou a seguir à
aprovação da Constituição porque, nas Cortes Ordinárias, os diplomas relacionados com
a justiça, a regulação dos juízes e a organização dos tribunais foram dos primeiros a
serem aprovados.
E a fronteira que separou os deputados entre as Cortes Constituinte e as Cortes
Ordinárias, muito embora tenham ocorrido mudanças na composição das duas câmaras,
foi a escolha entre juízes letrados e juízes populares, uma opção que percorreria todo o
período liberal até à Novíssima Reforma (1841). Uma escolha que definiria as fronteiras
entre os liberais radicais, os moderados e os conservadores, apesar dos fatores inibidores
das escolhas eletivas que tinham a ver, sobretudo, com três problemas.
Em primeiro lugar, a enorme taxa de analfabetismo que tolhia a formação de contingentes
capazes de interagirem com os tribunais dominados pelos juízes letrados, uma situação
com consequências na própria autonomia e independência destes juízes populares e na
degradação dos procedimentos burocráticos.
Em segundo lugar, a desconformidade entre o espaço político do Antigo Regime com a
modelação de um sistema racionalizado, desejado pelos liberais, não facilitava a
constituição de assembleias de eleitores por causa da imensa rede com mais de 800
municípios, dos quais 228 tinham menos de 200 fogos e 177 ultrapassavam os mil
fogos. A reforma municipal, iniciada com Mouzinho da Silveira (1832) e concretizada com
Passos Manuel (Decreto de 6 de novembro de 1836), extinguiria perto de cinco centenas
de concelhos, reduzindo-os a 351. Em 1855 (Decreto de 24 de outubro) voltariam a
reduzir para 256, números próximos dos que chegariam até final da monarquia
constitucional (Manique, 2020 e 2018). Mas esta nova territorialidade se, por um lado,
2
Para as sessões das Cortes Ordinárias, ver Diário das Cortes iniciados a 15 de novembro de 1822,
disponibilizados em http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc.
3
Este quadro eleitoral seria interrompido com o golpe miguelista da Vila-Francada (27 de maio de 1823),
sendo as Cortes suspensas (2 de junho) e restaurado o modelo das velhas cortes (10 de junho e 19 de
junho de 1823) que se manterá até ao final da guerra civil (1832-34).
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se ajustava a um sistema eleitoral alargado, por outro lado levantava a resistências das
autonomias locais (Manique, 1996).
E, em terceiro lugar, a moldura política e cultural, dominada pelo jurisdicionalismo
pluralista, com uma longa tradição de autonomia e práticas sociais, estava em
contradição com uma cultura centralista e centralizadora.
Acresceu, ainda, a estes problemas o saber-se como os magistrados deviam ser
responsabilizados pelos seus atos, quais os critérios que deviam orientar as carreiras e a
imposição, ou não, de uma mobilidade obrigatória ou dependente, apenas, da vontade
de cada um.
Importa, por conseguinte, traçar as linhas gerais da herança da monarquia tradicional,
comparar as propostas liberais e identificar os momentos de reforma no período que
medeia entre a validade de textos constitucionais até à definitiva imposição da Carta
Constitucional, ou seja, entre o início da revolução (1820) e a Novíssima Reforma
(1841)
4
.
I. A organização da justiça no Antigo Regime
I.1. A justiça letrada
Segundo a generalidade dos deputados, alinhados pelo discurso político mais inflamado
ou moderado, a justiça era considerada central para mudar o regime, por isso, um dos
maiores emblemas da revolução. Os magistrados do Antigo Regime foram, por isso
mesmo, acusados de despotismo e de práticas protecionistas. Como as leis eram
consideradas abusivas e discricionárias por não terem fundamento popular e o
emergiram de um órgão eleito. E os tribunais eram vistos como um recurso elitista para
os que tinham cabedal, podiam pagar a advogados e suportar o peso financeiro dos
processos.
O alvo dos deputados liberais era, sem dúvida, a justiça letrada (juízes de fora,
corregedores, desembargadores e, também, provedores no quadro do controlo das
contas régias), que dominava os tribunais de primeira instância e segunda instância e
que julgavam, decidiam recursos, apelações e agravos (Hespanha, 1994; Subtil, 2011;
Camarinhas,2010)
5
. Mas, de certa forma, esta crítica era paradoxal na medida em que a
maioria dos membros do Congresso eram, justamente, diplomados em Direito, com
exercício ou não da prática do ofício e, os mais notáveis dirigentes liberais, foram quase
todos magistrados.
Os tribunais de primeira instância, sediados nas câmaras municipais, podiam ser
presididos por juízes de fora, em cerca de duas centenas de câmaras, ou por juízes
ordinários, em mais de seis centenas de municípios. A sala de audiência e a secretaria do
tribunal confinavam, quase sempre, com a sala de reunião da vereação onde tomavam
assento os vereadores, o procurador do concelho e o presidente da câmara que era, em
4
Ao utilizarmos a expressão "juízes populares" queremos identificar as categorias de juízes que não
obtiveram o curso de direito e eram eleitos, de diversas formas, pelos povos: juízes ordinários, juízes
pedâneos, juízes eleitos das freguesias, juízes de paz e jurados. Exceção para os juízes conciliatórios que
eram escolhidos pelas partes.
5
Sobre o quadro legal ver Ordenações Filipinas, Livro I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
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simultâneo, presidente do tribunal. Podia, ainda, acontecer, nos concelhos com maior
população, que surgissem outros juízes letrados e/ou eletivos como juízes dos órfãos,
juízes dos defuntos e ausentes, que se encarregavam dos processos de administração e
tutoria dos menores, dos ausentes e defuntos, viúvas e órfãos.
Os tribunais de segunda instância eram, apenas, dois. O mais importante, com sede na
cidade de Lisboa, era a Casa da Suplicação com jurisdição para o território abaixo da
linha do Mondego. O outro tribunal, da Relação do Norte, ou Casa do Porto, com sede no
Porto, tinha jurisdição para as terras acima do Mondego. Estes dois tribunais superiores
eram governados por um Chanceler e compostos por desembargadores, magistrados
especiais que deixavam de estar dependentes de transferências de lugares e passavam
a um regime de nomeação definitiva como, também, deixavam de estar sujeitos aos
autos de residência.
Não havia um supremo tribunal de justiça, mas um tribunal superior de "graça", o
Desembargo do Paço (Subtil, 2011), que não apreciava as causas em justiça, mas podia
dispensar as leis e suprimir ou encurtar sentenças a pedido dos suplicantes. Os
desembargadores deste tribunal constituíam, portanto, a elite dos magistrados, e eram
considerados, na doutrina da época, como a extensão das os, dos ouvidos e dos olhos
do monarca, ou seja, extensões do corpo régio o que justificava que os crimes praticados
contra estes magistrados fossem considerados de «lesa-majestade».
Este tribunal tinha, também, a seu cargo a gestão da carreira dos magistrados letrados
e a aprovação das pautas eleitorais de cada município para a escolha dos vereadores,
procuradores e, se fosse o caso, dos juízes ordinários.
Sempre que a nomeação de um juiz letrado fosse feita pela primeira vez, o Desembargo
do Paço tinha em atenção a nota do curso na Universidade de Coimbra e a nota obtida
no exame da «Leitura de Bacharel» realizado no próprio tribunal, um exame fundamental
para a carreira, que era precedido de uma inquirição sobre a qualidade social e familiar
do candidato (uma certa «pureza» de sangue).
Se, porém, a nomeação fosse seguida de exercício de funções, entrava para a avaliação
da nova nomeação o resultado do «auto de residência» a cargo de um magistrado
sindicante de categoria superior ao sindicado. Nestes autos eram recolhidos pareceres e
testemunhos do desempenho do magistrado, por isso, marcavam um momento
importante na auscultação das elites locais e do povo em geral e registavam, em
audiência aberta pelo ministro sindicante, o que de mais relevante aconteceu durante o
triénio do ministro sindicado.
As nomeações para os lugares de primeira instância eram feitas por um período de três
anos findo o qual, em regra, o magistrado era transferido de lugar. Acontecia, por vezes,
que a pedido dos moradores e do próprio juiz, o mandato era prorrogado, podendo atingir
o sexénio ou mesmo mais.
A ambição destes juízes era conseguir ser nomeado para um lugar de corregedor ou de
provedor, lugares que abrangiam a jurisdição das comarcas e provedorias que agrupavam
vários concelhos. Nestas funções deviam fazer a correição, ou seja, percorrer durante o
ano, em audiência e fiscalização, todas as câmaras da comarca. Eram, portanto,
magistrados em trânsito, embora tivessem uma escrivaninha na sede da comarca (o
concelho mais importante) e um assento provisório nas secretarias das câmaras que os
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recebiam em regime de aposentadoria. Como a correspondência que mantinham com o
Desembargo do Paço e outros conselhos e tribunais da Coroa era feita em modo
ambulante, não há arquivos comarcais, apenas arquivos municipais e, naturalmente, da
administração central onde ficavam depositados os processos, relatórios e cartas.
No entanto, como já foi dito, grande parte dos concelhos era governada por juízes
ordinários eleitos pelos moradores dos concelhos, na grande maioria analfabetos, pelo
que, nestas câmaras, o comportamento e a jurisdição dos corregedores era distinta. Se
não podiam apreciar reclamações ou pedidos de revisão de sentenças feitas pelos colegas
letrados, somente da competência dos tribunais de segunda instância, podiam, contudo,
rever e apreciar as queixas e reclamações dos juízes populares, os juízes ordinários.
Os provedores, no território das suas provedorias, geralmente coincidentes com o
território das comarcas (número que variou entre 50 e 70 comarcas/provedorias) ou
próximo dos seus limites, exerciam o mesmo poder de «correição», mas no âmbito
financeiro, ou seja, auditavam as contas das câmaras e demais corporações com
jurisdição régia como misericórdias, confrarias e irmandades.
Os corregedores e provedores eram, também, nomeados por períodos trienais, sujeitos
a autos de residência, e o lugar era um trampolim para acederem à categoria de
desembargador e ocuparem um lugar de nomeação definitiva nos tribunais de segunda
instância, começando no tribunal da Relação do Porto e terminando na Casa da
Suplicação.
No conjunto da rede municipal e comarcal e nos tribunais de Relação, o contingente global
dos magistrados letrados andaria à volta de quatro a cinco centenas de ministros, um
mercado de trabalho que, no final do século XVIII, foi insuficiente para absorver o
aumento de bacharéis saídos da universidade de Coimbra depois da reforma dos
Estatutos (1772). Em alternativa, estes letrados passaram a concorrer a lugares no
Ultramar, abraçaram outras profissões como advogados, solicitadores e procuradores das
partes, por exemplo, ou ingressaram na política como vereadores ou assessores das
câmaras.
Este desfasamento entre a oferta da Coroa e os candidatos aos lugares da magistratura
constituiu, sem dúvida, um fator de mal-estar que alimentou a insatisfação destes
bacharéis e motivou a adesão de muitos às doutrinas liberais e à cultura iluminista o que
explica, em certa medida, a grande participação dos magistrados na revolução de 1820.
I.2. A justiça popular
Os magistrados letrados de primeira instância eram, como foi anotado, uma minoria
no conjunto dos juízes e, consequentemente, no governo dos municípios. Das oito
centenas de municípios, apenas cerca de 20% tinham juízes de fora. O mais comum, que
cobria mais de 80% dos municípios, era o cargo de juiz de primeira instância ser exercido
por um juiz popular, o chamado juiz ordinário, que não tinha formação académica, muitas
das vezes nem sequer sabia ler e escrever, ficando dependente dos escrivães do juízo
para os procedimentos burocráticos. E, ainda, existiam juízes de vintena que atuavam
em aldeias com uma população muito reduzida (entre 20 e 50 fogos), também eleitos
pelos fregueses e confirmados no lugar pelo senado das câmaras.
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Vejamos o modelo de eleição destes juízes ordinários para termos uma noção do vel de
representação política e social e do envolvimento dos eleitores.
O processo eleitoral coincidia com o apuramento eleitoral dos vereadores, procuradores
e oficias das câmaras e o modelo irá inspirar, de certo modo, o adotado nas eleições do
regime liberal com a diferença quanto à base de recrutamento de eleitos e eleitores (vide
Subtil,1998).
O arranque das eleições começava com uma provisão do Desembargo do Paço para o
magistrado (corregedor, provedor ou um juiz de fora) que iria supervisionar as eleições,
apurar as pautas e os eleitos para o triénio em causa.
Chegado à câmara, o magistrado sindicante escolhia duas a três pessoas dos notáveis da
terra, conhecidos como «arruadores», para elaboravam um rol ou caderno da nobreza
com a relação das pessoas que consideravam capazes para desempenhar cargos de
governação. Os chamados a votar nestes róis, os homens nobres e bons, naturais da
terra, sem raça alguma e com zelo do bem comum, eram convocados por pregão para
comparecerem na câmara.
Os seis primeiros mais votados formavam o conjunto de eleitores, ou «pauteiros», e eram
agrupados aos pares, formando, portanto, três conjuntos de dois eleitores. Cada par
elaborava, então, uma pauta com nove vereadores (três por cada ano do triénio), três
procuradores, um para cada ano do triénio e, conforme a tradição, outros ofícios a eleger,
no caso que nos interessa, três juízes ordinários, um para cada ano do triénio. As três
pautas eram, depois, cruzadas para, de acordo com os votos somados, o magistrado
encarregue das eleições apurar a pauta final para o triénio.
Estas pautas eram, depois, enviadas ao Desembargo do Paço para o tribunal proceder às
nomeações, expurgando das pautas possíveis conflitualidades de parentesco,
incapacidades de comportamento ou de inconveniência política, podendo, inclusive,
retirar nomes e substituir outros, embora este procedimento tenha ocorrido raramente.
Para tomar estas decisões, o tribunal usava o arquivo próprio e as informações deixadas
à margem de cada eleito, obtidas, por indagação e ´ouvido`, pelo magistrado que
procedia aos autos das eleições. O processo era, portanto, constituído pelos autos, as
pautas, as informações «secretas» e, ainda, por um relatório que dava conta do ambiente
social em que decorreram as eleições.
Como se percebe pelo que foi dito, a escolha dos juízes ordinários era bastante
mediatizada e permitia que os homens notáveis da terra exercessem influência nas
nomeações, muito embora o magistrado que presidia às eleições pudesse condicionar,
também, a decisão do Desembargo do Paço. Seja como for, o povo era chamado à sede
do concelho para participar nas votações e, pelos testemunhos dos autos, representavam
vários ofícios e sensibilidades da vila. O próprio ritual inerente ao processo desencadeava
sociabilidades que tendiam a assegurar a ocupação dos lugares por linhagens oligárquicas
e familiares.
Do que foi dito, sobretudo pela pluralidade de jurisdições, territórios, nomeações e
eleições, podemos retirar algumas conclusões (Hespanha, 2019b).
Uma referente aos juízes letrados. A permanente avaliação das suas competências era
um facto, permitindo, em princípio, que a progressão nas carreiras fosse assegurada
pelos mais aptos, embora o conjunto destes juízes fosse diminuto.
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Juízes populares e juízes letrados no liberalismo. Portugal (1820-1841)
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Quanto aos juízes populares (juízes ordinários), o que nos revelam as eleições indiretas
é que a representação popular era residual. As suas jurisdições estavam muito limitadas,
tanto para as causas cíveis e crime, o que permitia, em diferido, a intervenção ou o
recurso para os magistrados letrados. No entanto, as causas a cargo dos juízes ordinários
eram a maioria e cobriam o que de mais frequente acontecia nas comunidades, cujas
sentenças eram sem apelo nem agravo. Infelizmente não conhecemos, de forma
sistematizada, o sentido das suas ações e intervenções porque os arquivos municipais
não conservaram estes processos porque os autos e as sentenças foram pronunciados
oralmente.
Para além dos recursos, apelações e agravos a cargo da Relação do Porto ou da Casa da
Suplicação, o sistema permitia, ainda, um último recurso, chamado de "graça", através
do qual o Desembargo do Paço podia consultar o monarca para a dispensa da lei ou a
concessão de mercês e privilégios.
Nas ouvidorias, cuja jurisdição régia tinha sido transferida para o donatário, nobre ou
eclesiástico, competia aos senhores das terras dirigir o processo das eleições para os
juízes ordinários, muito semelhante ao modelo régio, mas com a supervisão do ouvidor
letrado nomeado pelo donatário.
II. A organização da justiça no primeiro liberalismo
II.1. O debate nas Cortes Constituintes e o texto constitucional de
1822
As Cortes aprovaram o texto constitucional no dia 23 de setembro de 1822 e o juramento
régio de D. João VI ocorreu no dia 1 de outubro, seguindo-se o das maras municipais
e outras entidades. Mas, mesmo nos defensores da Constituição, crescia, cada vez mais,
a ideia de que não havia condições para a sua aplicação e, nos primeiros debates das
Cortes Ordinárias, começou a falar-se na sua revisão.
E, pouco tempo depois, a Constituição seria suspensa, após o golpe da "Vila-Francada"
(maio de 1823), e as Cortes Ordinárias acabaram por ser encerradas (vide Hespanha,
2012a, 2009, 2004).
Para termos a noção da dimensão do debate sobre o poder judicial que os liberais
acreditavam ser a garantia para o cumprimento das leis, mas sobre o qual tinham uma
imagem muito crítica, corrupta e desgastada, comecemos por confrontar o projeto da
constituição com o texto constitucional (Moreira, 2018; Pereira, 2018).
Antes, porém, passemos, sumariamente, em revista as categorias de juízes referidos no
texto da Constituição de 1822 (Título V, "Do poder judicial").
A começar por uma das inovações do novo regime liberal, «os juízes de facto», para as
causas crime e cíveis e, também, para os delitos de abuso de liberdade de imprensa.
Estes juízes seriam eleitos, em cada distrito, através da constituição de listas de pessoas
com as qualidades legais para o efeito. Das decisões destes juízes se podia recorrer
para a Relação para tomar "conhecimento e decisão do mesmo ou em diverso conselho
de juízes de facto" nos casos em que a lei a determinar.
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Depois, os «juízes letrados», que exerceriam jurisdição em cada distrito, havendo um
juiz letrado de primeira instância em cada um para julgar de direito as causas em que
houvesse juízes de facto e, para julgar de facto e de direito, nas que não houvesse. A
alçada destes juízes, sem apelo nem agravo, tanto para as causas cíveis como crime,
seria determinada por lei e o recurso para a segunda instância cobriria os processos que
excedessem esses limites. Em Lisboa, no Porto e nas cidades mais populosas haveria
tantos juízes letrados quantos os necessários. Para se ser juiz letrado era necessário ser
cidadão português, ter 35 anos e ser bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra
que detinha o monopólio da formação dos juristas.
Ficou consagrado, também, que os juízes letrados seriam perpétuos, passíveis de
transferência de lugar no final de cada triénio e que a promoção seguiria a regra da
antiguidade.
Os «juízes eletivos», escolhidos para as subdivisões dos distritos, seriam eleitos pelos
cidadãos da mesma forma que os vereadores das câmaras. Estes magistrados julgariam
sem recurso as causas cíveis de pequena importância e as criminais de crimes leves,
limites a fixar em lei. O julgamento seria feito verbalmente, ouvindo as partes e
deduzindo a sentença em auto público. Podiam, ainda, exercitar os juízes de conciliação
e assumir a segurança e conservação da ordem pública.
Os «juízes árbitros», que podiam ser nomeados pelas partes para decidirem "nas causas
cíveis e nas penas civilmente intentadas", dependiam, portanto, do acerto dos envolvidos
em cada processo.
E, finalmente, «os juízes de conciliaçãque podiam ser acionados pelos juízes eletivos
nas causas e pelo modo que a lei viesse a determinar
6
.
Esta tipologia de juízes elencada na Constituição não correspondia, de todo, ao texto do
projeto constitucional, apresentado às Cortes em 25 de junho de 1821, que entrou em
discussão no dia 9 de junho
7
, embora a parte referente ao poder judicial tenha começado
a ser debatida no início de 1822 e demorado perto de dois meses para ser aprovada
(Subtil, 1986).
Ao contrário, o projeto constitucional defendia a escolha dos juízes letrados, referidos
como o modelo de juiz a seguir, na linha, aliás, da tradição dos juízes de fora. Esta opção
política foi assumida pelos deputados Sarmento, Borges Carneiro e Pinto de Magalhães
que justificaram a opção devido à complexidade das sociedades liberais garantirem a
liberdade, aumentar as leis e defender o pacto social, na linha do que disseram
justamente "para sermos livres, é indispensável que sejamos escravos da lei: nenhuma
Nação por consequência que mais leis deva ter que uma nação livre, e constitucional"
8
.
6
Os tribunais de Relação julgariam em segunda e última instância e um Supremo Tribunal da Justiça, com
sede em Lisboa, composto por juízes letrados nomeados pelo rei, conheceria os erros de ofício dos ministros,
das Relações, secretários de estado, diplomatas e regentes do reino, com competências para conceder
revistas ou negá-las, exceto dos juízes de facto.
7
Os subscritores do projeto constitucional foram os deputados José Joaquim Ferreiras de Moura (Beira), Luís,
Bispo de Beja (Beira), João Maria Soares de Castelo Branco (Estremadura), Francisco Soares Franco
(Estremadura), Bento Pereira do Carmo (Estremadura), António Pinheiro de Azevedo e Silva (Beira), Manoel
Fernandes Thomaz (Beira), Manuel Borges Carneiro (Estremadura) e Joaquim Pereira Annes de Carvalho
(Alentejo).
8
Intervenção de Pinto de Magalhães, 11 de janeiro de 1822, Diário das Cortes, tomo IV, p. 3.665.
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O projeto constitucional não previa, portanto, juízes ordinários e admitia juízes de facto
(conselho de jurados) apenas nas causas crime, sempre presididos por um juiz letrado.
Sobre os juízes conciliatórios, o projeto previa-os desde que exercitados pelos juízes
letrados.
Quanto às carreiras dos juízes letrados, afirmava-se o princípio da perpetuidade do ofício
e o princípio da antiguidade como critério de progressão. o foi previsto nenhum
mecanismo de controlo e fiscalização.
O projeto constitucional sobre o poder judicial era, por conseguinte, um texto tradicional
e conservador, de certo modo, pouco consentâneo com as críticas ao "maldito espírito de
corpo" da magistratura que, como diria o deputado Girão, "nas Cortes predominavão
sempre os magistrados, e por isso deixarão a Nação escrava delles".
A defesa do projeto constitucional coube, em grande parte, ao deputado subscritor José
de Moura e a dois dos seus colegas, Borges Carneiro e Castelo Branco, mas que
acabariam, durante o debate, por se afastarem do mesmo. O primeiro, opondo-se ao
critério da antiguidade para a progressão na carreira, defendendo um sistema de
supervisão para responsabilizar os juízes. O segundo, mais radical, defendendo a
prevalência dos juízes ordinários e a prática das eleições para legitimar o ofício de juiz.
Os outros subscritores da Comissão assumiram uma opção mais moderada como foi o
caso dos deputados Fernandes Thomaz, Pereira do Carmo e Pinheiro de Azevedo.
No campo oposto, o combate político ao projeto constitucional foi assumido pelo deputado
José Joaquim Rodrigues de Basto (Minho) que defendia, em exclusivo, os juízes
ordinários, escolhidos por sufrágio eleitoral, com cargos amovíveis e vigência de um ano.
Foi acompanhado, no essencial, pelos deputados Martins Ramos, Vilela, Barata e Barreto
Feio.
A estas duas posições, a opção pelos juízes letrados e a defesa pelos juízes
ordinários/eletivos, juntar-se-ia uma terceira tendência, de pendor conciliatório que,
defendendo a prevalência dos juízes letrados, aceitava rever o principio da antiguidade,
da inamovibilidade, da intervenção dos juízes de facto e a responsabilização do ofício
desde que enquadrada num código que abrangesse mais ofícios da administração pública
como viria a acontecer no célebre dia 13 de janeiro de 1823, para alguns o dia mais
importante depois da revolução (Subtil, 1988).
No final do debate, o texto constitucional alteraria, por completo, o texto do projeto
constitucional quanto aos jurados, juízes ordinários e conciliatórios. Os juízes de facto
(jurados) ficaram consagrados para as causas crime e cíveis, os juízes ordinários
julgariam pequenas causas crime e cíveis, sem apelo e recurso, e aos juízes conciliatórios
ficou reservado um lugar importante na filtragem de litígios para tribunais.
Sem dúvida que o figurino que acabou por prevalecer no texto constitucional, com a
consagração dos juízes de facto, dos juízes eletivos
9
e dos juízes conciliatórios, teve em
vista, por um lado, legitimar o novo regime no apoio popular e, por outro lado, diminuir
o fluxo das causas em tribunal e, por conseguinte, limitar o poder de intervenção dos
juízes letrados nos tribunais de primeira e segunda instância.
9
O modelo de eleição foi regulado pelos decretos de 20 de julho e 9 de agosto de 1822.
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Em conclusão, tratou-se de uma vitória da ala mais radical do Congresso, vitória bem
expressa nas palavras do moderado e prestigiado deputado Fernandes Tomás quando
afirmou, no final da aprovação do texto constitucional, que se quis "cortar as unhas tão
rentes" à magistratura
10
.
Seja como for, com este aceso debate político ficou lançado, para o futuro, o mote e os
argumentos para a discussão sobre os modelos liberais para justiça, a escolha por tipos
de juízes, o papel e a autonomia dos juízes letrados e a amplitude das eleições diretas
ou indiretas na escolha dos juízes populares.
É precisamente isto que iremos passar em revista, focando-nos, sobretudo, na Reforma
de Mouzinho da Silveira (1832), na Nova Reforma (1838) e na Novíssima Reforma
(1841).
II.2. A reforma de Mouzinho da Silveira (1832)
Com a revogação da Constituição de 1822, procurando limitar a ofensiva dos
"ultrarrealistas" e liberais radicais, D. João VI nomearia uma junta, formada por
personalidades moderadas e de grande prestígio político e académico, para propor uma
nova Constituição. Alguns projetos constitucionais de vários cidadãos foram, também,
enviados à junta para comporem o novo texto constitucional (Hespanha, 2004: 128-152).
Mas o certo é que seria a Carta Constitucional, influenciada pela teoria politico-
constitucional de Benjamin Constant, outorgada por D. Pedro IV, no Rio de Janeiro (29
de abril de 1826), que se tornaria na grande alternativa a uma Constituição, precisamente
por ir de encontro aos interesses de várias fações liberais, incluindo os mais tradicionais.
O primeiro período de vigência da Carta Constitucional foi na legislatura de 1826-1828 e,
depois da derrota miguelista na guerra civil, quando as Cortes voltaram a reunir em 15
de agosto de 1834.
No que aos juízes diz respeito, o mais emblemático da Carta Constitucional foi,
indiscutivelmente, a eliminação dos juízes eletivos no quadro da organização da justiça e
a identificação do poder judicial com os juízes de direito, tornados perpétuos, embora
passiveis de mudarem de lugar ou serem suspensos pelo rei, ouvido o Conselho de Estado
ou na sequência de suborno, peita, peculato ou concussão.
Apesar da adoção por este modelo, a Carta Constitucional concedia a intervenção dos
jurados nas causas cíveis e crime para apurarem os factos de acordo com o que os
códigos viessem a determinar
11
. E, de forma obrigatória, reconhecia os juízes de paz,
eleitos pelo mesmo modo dos vereadores, para tentarem a conciliação antes de qualquer
processo judicial. A Carta Constitucional admitia, também, juízes árbitros nas causas
cíveis e crime por nomeação das partes, podendo as sentenças revestirem caráter
definitivo, por acordo das mesmas.
Mas nem a Constituição, nem a Carta Constitucional, previram a regulação do sistema de
justiça, deixando para futuras leis essa organização. Deste modo, a primeira reforma da
10
Sessão de 5 de outubro de 1822, Diário das Cortes, tomo VII, p. 695.
11
A Constituição de 1822, no artigo 191.º, instituiu, em Lisboa, um Supremo Tribunal de Justiça. A Carta
Constitucional, no artigo 130.º, e a Constituição de 1838, no artigo 126.º confirmam o Supremo Tribunal
da Justiça.
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justiça, tendo por objetivo substituir o modelo do Antigo Regime que se ainda encontrava
em vigor, decorridos mais de dez anos depois da revolução, foi o Decreto de 16 de maio
de 1832 (decreto n.º 23), integrado num vasto pacote legislativo, da autoria de Mouzinho
da Silveira (Manique, 1989; Pereira, 2009). Contudo, a reforma foi de tal forma complexa
e complicada que estava destinada ao fracasso como, efetivamente, aconteceria passado
o curto período entre o final da guerra civil entre liberais e absolutistas (1834) e a
revolução de setembro (1836)
12
.
O programa aprovado na Ilha Terceira adotava, para todo o Reino, juízes de primeira e
de segunda instância, perpétuos, letrados e nomeados pelo governo que aplicariam a lei
com inteira autonomia, exceto nas causas crime cujos factos eram apurados pelos
jurados e sobre os quais os juízes de direito aplicariam a lei
13
.
As restantes categorias de juízes representavam uma enorme panóplia, desde os juízes
de paz, juízes ordinários, juízes pedâneos, juízes árbitros até aos jurados (Subtil, 2021).
Os juízes de paz seriam eleitos pelos povos e as suas funções, exercidas sem
remuneração, consistiriam em conciliar as partes nas demandas, tal como já indiciavam
os textos constitucionais. A eleição, anual e por escrutínio secreto, decorria na assembleia
dos chefes de família de cada freguesia, reunidos na igreja matriz (assembleia paroquial)
no último domingo de junho de cada ano e presidida por um vereador. Seria eleito o que
obtivesse a maioria de votos e, em caso de empate, seria escolhido o mais velho
14
. A
indicação do secretário e dos escrutinadores era feita por aclamação na reunião.
Na mesma assembleia eram eleitos, ainda, três cidadãos para formarem a pauta dos
juízes pedâneos
15
e, também, eleitos dois deputados por freguesia para assegurarem
uma representação na municipalidade. O conjunto destes deputados (membros do
município e deputados das freguesias) elegiam, posteriormente, três pessoas para
formarem a pauta dos juízes ordinários.
Depois da feitura das pautas dos juízes ordinários, os autos eram remetidos ao juiz de
direito da comarca que os submetia ao presidente do tribunal de segunda instância para,
então, escolher um juiz ordinário e um juiz pedâneo e passar-lhes a respetiva carta de
nomeação por um ano.
Um modelo que, como foi referido, comungava de muitos elementos praticados na
monarquia corporativa com a diferença, neste caso, do universo de eleitores ser mais
alargado. Mas este modelo de Mouzinho de Silveira exigia um recrutamento desmesurado
12
O diploma de Mouzinho da Silveira tem 293 artigos e o aparelho judicial divide-se em círculos judiciais,
estes em comarcas, as comarcas em julgados e os julgados em freguesias. Por decreto de 28 de junho de
1833 a divisão do território ficou assim estabelecida: quatro distritos judiciais (Lisboa, Porto, Lamego e
Castelo Branco). O de Lisboa teria 15 comarcas e 200 concelhos; o de Castelo Branco quatro comarcas e
135 concelhos; o de Lamego oito comarcas e 232 concelhos; o Porto 13 comarcas e 230 concelhos. O total
contabilizava 40 comarcas e 796 concelhos e um contingente de 47 juízes de direito e quatro tribunais de
Relação.
13
Collecção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por Sua Magestade Imperial o Regente do Reino
desde que assumiu a Regência em 3 de março de 1832 até á sua Entrada em Lisboa em 28 de julho de
1833, Lisboa, Imprensa Nacional, 1836 (segunda série), pp. 102-147.
14
As condições de elegibilidade dos juízes de paz eram ter a cidadania portuguesa, o pleno exercício dos
direitos políticos, morada obrigatória na freguesia e ter uma renda anual de 200 mil reis (nas cidades) e de
50 mil nas aldeias.
15
A elegibilidade obedecia aos mesmos critérios dos juízes de paz, mas com os limites de rendimento a
variarem entre 50 mil reis para as cidades e 20 mil reis nas vilas e aldeias.
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de cidadãos, ainda por cima eleitos por períodos curtos, obrigando, portanto, a repetidas
eleições, banalizando, por conseguinte, o exercício dos cargos (Domingues, 2018).
Vejamos, agora, a tipologia de juízes, funções e competências, algumas das quais eram
potencialmente conflituosas.
Os juízes ordinários podiam avocar as causas que não excedessem os 12 mil reis em bens
de raiz e 24 mil reis em bens móveis, enquanto os juízes pedâneos conheceriam as causas
por danos causados por pessoas ou gados em "searas, vinhas, hortas, pomares,
pastagens e arvoredos", cabendo-lhes uma intervenção especial no mundo rural onde a
multiplicação de conflitos era grande, com a vantagem destes juízes conhecerem o
território e a população (Domingues, 2018).
Os processos destes juízes pedâneos eram verbais e podiam determinar penhoras,
avaliação e venda em leilão, levantar autos por crimes, evitar rixas, tumultos e motins,
prender em flagrante delito e mandar apresentar os delinquentes ao juiz ordinário ou de
direito, ficando obrigados a satisfazer os pedidos destes juízes de primeira instância.
Como eram nomeados pelo juiz presidente do tribunal de segunda instância podiam,
também, ser suspensos por ele.
Quanto aos juízes-árbitros eram escolhidos pelas partes para exercitarem a arbitragem
e não podiam recusar a missão.
Finalmente, os jurados (aqueles que «juram para julgar») retirados de um livro de
matrícula pertencente aos arquivos das câmaras e atualizado no mês de maio de cada
ano. A matrícula era individual e pertencia a cada cidadão que estivesse nas condições
de inscrição e a não inscrição acarretava sanções, multas e perdas de direitos.
A composição anual dos jurados era apurada na câmara, no primeiro dia do mês de
janeiro de cada ano, numa reunião com o juiz de direito e o delegado do procurador régio
ou com o juiz ordinário e o subdelegado régio. Do livro de matrícula formavam-se três
pautas. Uma pauta de jurados para o primeiro trimestre, outra para jurados de pronúncia
para as causas crime e, ainda, uma outra para sentenças para causas cíveis e crime.
Constituídas as pautas, faziam-se bilhetes individuais para serem lançados numa urna de
onde eram tirados, por um mancebo com menos de 10 anos, os primeiros jurados e
depois, novamente, os bilhetes eram lançados numa outra urna para se fazerem as
pautas para os trimestres seguintes. Competia ao juiz de direito ou ao juiz ordinário,
depois do apuramento, notificar os jurados dos dias em que teriam de servir o tribunal
do júri.
Esta reforma de Mouzinho da Silveira, para além da variedade de jurisdições obrigava,
como foi dito, à constituição de um enorme contingente de jurados, de juízes
ordinários, de paz e pedâneos com uma rotatividade anual, implicando, repetidas
reuniões nas câmaras municipais, eleições e notificações que perturbariam o quotidiano
da vida política e social local para atos que não tinham como objetivo a verdadeira prática
da justiça.
Se esta reforma era, por si, impraticável, ficou, porém, como ilustração de uma intenção
panfletária no contexto da guerra civil e como um exemplo especulativo por ter sido
pensada sem ter em conta a realidade de um país analfabeto e incrustado por práticas
oligárquicas.
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II.3. A Nova Reforma (1836) e a Novíssima Reforma (1841)
Com o final da guerra civil e a vitória dos liberais (1834) regressaria o combate entre as
fações liberais cujo desfecho levará ao poder o grupo identificado com as opções mais
radicais (revolução de 9 de setembro de 1836) e, naturalmente, à recuperação do texto
constitucional de 1822 para a adoção de uma nova que viria a ser aprovada em 1838
(Gomes, 2013; Hespanha, 2019a; 2018;2012a;2012b).
Contudo, uma das primeiras medidas do novo governo setembrista foi decretar a reforma
judiciária e organizar o sistema da justiça através do Decreto de 29 de novembro de
1836, da autoria do Visconde de da Bandeira, Manuel da Silva Passos e António Manuel
Lopes Vieira de Castro. Esta Nova Reforma enunciava, no relatório que a sustentava,
dois objetivos a atingir, ou seja, a proximidade da justiça aos cidadãos, daí a
concentração dos esforços numa nova territorialização administrativa e o objetivo da
clareza dos procedimentos devido à confusão legislativa.
A divisão do novo espaço político, que não tinha sido concretizado com a legislação de
Mouzinho da Silveira, ficou definida no Decreto de 13 de janeiro de 1837
16
com os mapas
das 48 comarcas e concelhos, 351 julgados e freguesias, os três tribunais de segunda
instância, o de Lisboa (com 21 juízes), do Porto (com 21 juízes) e de Ponta Delgada (com
sete). Ficava, também, prometido a reforma do processo civil, ordinário e sumário, e do
processo criminal.
Nesta nova orientação, muito próxima da legislação da Terceira, manteve-se,
praticamente, o mesmo modelo de justiça com simplificações notórias.
Os juízes de direito, de nomeação régia e com lugar vitalício, julgariam nos tribunais de
primeira instância em cada comarca e presidiriam aos tribunais de Polícia Correcional e
aos Conselhos de Família.
As comarcas dividiam-se, por sua vez, em julgados, sob jurisdição de um juiz ordinário,
eleito pelos povos, com exceção de Lisboa e Porto onde não haveria juiz ordinário
17
. Estes
juízes ordinários julgavam as causas de menor valor, conheciam o recurso dos juízes
eleitos das freguesias e preparavam os processos destinados ao juiz de Direito. Os
julgados dividiam-se em freguesias onde um juiz eleito julgaria as causas mínimas.
Tínhamos, ainda, um juiz de paz (eleito) que podia intervir numa freguesia ou mais,
dependendo da população, mas pelo menos haveria um juiz de paz por 200 fogos,
cabendo-lhe, com caráter obrigatório, tentar chegar a um entendimento entre as partes
antes de os processos entrarem nos tribunais
18
. E, finalmente, os jurados que seguiam
as orientações já definidas.
A Constituição de 1838
19
tratou da justiça num curtíssimo título (Título VII) onde
identificava, apenas, os juízes e jurados, tanto no cível como no crime. Os juízes de
16
Reforma judiciária approvada pelos Decretos de 29 de novembro de 1836 e 13 de janeiro de 1837, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1837. O Decreto-Lei de 13 de janeiro de 1837 viria a estabelecer as regras do processo
civil e criminal.
17
Eram eleitos pelo povo, por dois anos, podendo ser reeleitos. A eleição era feita por pautas apuradas pelo
juiz de direito.
18
Os juízes de paz, ordinários e juízes eleitos das freguesias não careciam de confirmação régia. A eleição era
igual à dos vereadores.
19
Dirio do Governo, de 24 de Abril de 1838, n.º 98.
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160
direito seriam nomeados pelo rei, os juízes ordinários eleitos pelo povo, acontecendo o
mesmo com os juízes de paz que intervinham sempre antes do juízo contencioso. Admitia
tribunais de Relação e um Supremo Tribunal de Justiça. Os juízes de direito mantinham
a inamovibilidade dos cargos, embora os de primeira instância pudessem ser mudados
de lugar de três em três anos.
A Novíssima Reforma, concretizada pelo Decreto de 21 de maio de 1841, durante o
governo do Conde do Bonfim com Costa Cabral como ministro da Justiça, antecedeu,
nalguns meses, a restauração definitiva da Carta Constitucional (1842) que estabeleceria
o regime da monarquia constitucional até à implantação da República (1910)
20
. As
novidades desta reforma foram, porém, muito poucas e não resolveram o intrincado
problema das jurisdições múltiplas, a complicada rede de juízes populares e o intenso
calendário das eleições.
No que toca à organização do território jurisdicional, os níveis de hierarquia passaram a
contemplar o distrito, a comarca, o julgado e a freguesia. Cada distrito teria direito à
supervisão de um tribunal de Relação que julgaria em segunda e última instância, o
distrito de Lisboa com 21 juízes, o distrito do Porto com igual quadro e o distrito de Ponta
Delgada com sete juízes.
O segundo nível era formado pela comarca, onde haveria um juiz de direito e, no terceiro
nível, o círculo de julgado, haveria um juiz ordinário e um ou mais juízes de paz que
exerceriam jurisdição de conciliação no próprio domicílio: "Nenhuma causa se começará
em juízo contencioso, sem que o seu objeto tenha sido previamente submetido ao Juízo
de Conciliação, ou seja por mandado do Juiz de Paz, ou por voluntário comparecimento
das partes (artigo 210.º). Finalmente, ao nível da freguesia, caberia a um juiz eleito
decidir verbalmente, depois de ouvir as testemunhas e apurar os factos.
E, na linha das anteriores reformas, as partes podiam nomear juízes árbitros cuja escolha
podia recair em qualquer cidadão.
Entre as poucas novidades da Novíssima Reforma podemos referir o novo recorte
institucional do jury. O conselho de jurados, que se pronunciava sobre os factos nas
causas cíveis e crime, passou a ser dispensado sempre que os factos pudessem ser
provados por documentos, inspeção, exame ou vistoria expressa, ou, então, quando uma
das partes não consentisse no julgamento por jurado. Estes juízes ficaram, ainda,
divididos entre jurados de pronúncia e jurados de sentença.
Outra novidade foi a criação de um tribunal de polícia correcional em cada comarca, a
intervenção do Ministério blico junto dos juízes ordinários e, como principal, a
indiscutível redução da participação popular na administração da justiça.
Conclusão
Se uma das bandeiras políticas dos primeiros anos do liberalismo (1820-1841) foi a
contundente crítica ao sistema de justiça do Antigo Regime, o certo é que o modelo
adotado pelo novo regime não pôde dispensar duas heranças: o sistema dos juízes
20
Decreto de 21 de Maio de 1841, que contém a Novíssima Reforma Judiciaria com os Mappas da Divisão do
Território, e as Tabellas dos Emolumentos Reformadas em virtude da Carta de Lei de 28 de julho de 1848,
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letrados, à semelhança do papel dos juízes de fora, e a replicação dos juízes ordinários
para afirmar o carácter popular da justiça como esteio para a independência do poder
judicial, da defesa da liberdade e do cumprimento da lei.
As várias reformas comungaram, por isso, de quatro princípios: o da independência dos
tribunais como garantia da aplicação das leis, a defesa da inamovibilidade dos cargos, o
julgamento com recurso aos jurados e a representatividade dos vários tipos de juízes
eletivos. Os dois últimos princípios foram considerados basilares da liberdade e da defesa
da divisão dos poderes.
O caso dos jurados (jury) atesta esta convicção e evidencia as mudanças políticas do
novo regime. Admitidos desde a Constituição de 1822 para certificarem o apuramento
dos factos, deixavam para os juízes letrados a simples aplicação da lei, remetendo-os,
portanto, para papéis meramente burocráticos. Contudo, esta intervenção dos jurados
irá variar, posteriormente, nas causas crime e nas causas cíveis, nos limites e nas
relações mantidas com os juízes letrados. Foram, aliás, estes os sinais que marcaram o
sentido político das reformas, a começar com a de 1836 em que o ri perdeu alguma
relevância nas causas cíveis, afinal, a matéria política e social mais substantiva para
apreciação nos tribunais. E com a Novíssima Reforma (1841) ficaram sujeitos ao acordo
de ambas as partes, retirando o carácter obrigatório que foi imposto desde a reforma de
Mouzinho da Silveira.
Quanto aos juízes ordinários, o regime liberal percebeu, desde muito cedo, que não podia
dispensar uma organização que atuava e intervinha em mais de 700 concelhos, com um
peso muito grande na vida das comunidades. E percebeu, também, que não os podia
dispensar para reforçar a natureza popular que queria emprestar ao sistema de justiça
liberal.
Mas esta escolha do regime liberal encontrou uma enorme contrariedade, precisamente
o facto dos juízes ordinários estarem marcados por práticas autonomistas associadas aos
micro poderes concelhios, contrárias à centralização desejada pelo Estado Liberal que
provaria, sem vida, essas intenções com a redução drástica dos municípios e a retirada
de regalias fiscais, numa clara ofensiva contra a municipalidade herdada do Antigo
Regime.
Sobre as formas não judiciais para resolver conflitos e litígios, com recurso aos juízes
eleitos das freguesias, juízes de paz, árbitros e juízes pedâneos, o regime liberal foi
amaciando a obrigatoriedade das suas intervenções a partir da Nova Reforma com o
apoio, evidentemente, dos juízes letrados para quem estes juízes populares eram
inconvenientes, política e socialmente, devido à radicalização popular, à insignificante
pratica jurídica e ao baixo nível cultural.
Mas, paradoxalmente, estas instituições populares representaram alternativas
contraditórias para a dogmática jurídica liberal, isto é, uma dupla face, positiva para a
afirmação popular do sistema, e negativa para a construção centralizadora do Estado.
A independência dos magistrados e o resguardo para a sua efetivação acabaram,
também, por originarem uma certa «governamentalização» dos tribunais e dos próprios
juízes que, progressivamente, se assumiram como atores importantes na construção do
Estado, misturando a esfera da justiça com a intervenção administrativa, mesmo depois
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da aprovação do código administrativo setembrista (6 de novembro de 1836) e do código
administrativo cabralista (16 de março de 1842).
O debate que acabamos de sistematizar em torno das escolhas entre juízes letrados e
juízes populares mostra, por outro lado, como a definição do sistema judicial foi central
para afirmar o domínio do Direito na doutrina política liberal, mesmo que as vicissitudes
das escolhas políticas tenham agudizado as resistências dos poderes locais, em especial
após a nova territorialidade jurisdicional e administrativa.
Em conclusão, entre as continuidades e as singularidades, poderíamos alinhar quatro
ideias estruturantes.
A primeira, de natureza institucional, refere-se à importância das «assembleias», desde
as reuniões comunitárias e municipais até às assembleias parlamentares. Tanto no Antigo
Regime como no liberalismo acreditava-se que as reuniões de cidadãos, mais ou menos
alargadas e legitimadas, tinham o poder de «criar poder» e o direito para ordenarem a
sociedade.
A segunda, associa o direito com a cultura do senso comum, para reajustar e conjugar
as normas, tanto as legislativas como as tradicionais, às realidades sociais e políticas. A
cultura moldou, de certo modo, a construção do direito, incluindo as práticas o escritas
assentes em formas comunitárias de justiça. Mais do que leis sobravam os «juízes para
fazer justiça» como, a propósito, invocou, de forma exemplar, Bartolomé Clavero
21
.
Como terceira ideia, realçaríamos a iustitia letrada, a rede de juízes e tribunais, os
chamados «conhecedores» do direito, para mostrar como o liberalismo, ultrapassada a
fase panfletária da revolução, começou a traçar o caminho de uma justiça
tendencialmente profissionalizante, a desenvolver a jurisprudência como corpus iuris,
contrapondo ao ius commune o ius proprium.
E, finalmente, realçar a absoluta necessidade, nesta nova sociedade liberal, de um direito
político, substantivamente um direito administrativo, próprio do poder executivo, nem
parlamentar nem judicial, na medida em que a legislação parlamentar, a intervenção dos
juízes letrados e populares, se mostrava insuficiente para apoiar o campo de intervenção
do governo.
Deste direito novo, um direito administrativo, passaria a encarregar-se, doravante, o
poder executivo, definindo as áreas do seu controlo, organizando uma jurisdição própria,
administrativa e não judicial, fechando, cada vez mais, o campo de intervenção dos juízes
populares nas matérias cíveis, remetendo-os à esfera do crime e, mesmo assim,
residualmente.
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A VISÃO LIBERAL E O PROGRESSO NA COMPREENSÃO DA SEGURANÇA
LUÍS VALENÇA PINTO
lvpinto@autonoma.pt
General do Exército. Na sua carreira militar desempenhou, entre muitas outras, as funções de
Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, Chefe do Estado Maior do Exército,
Comandante da Logística do Exército, Diretor do Instituto da Defesa Nacional, Representante
Nacional junto do Quartel-General Aliado (SHAPE/NATO), Comandante da Escola Prática de
Engenharia e de Conselheiro na Delegação de Portugal junto da NATO e da UEO. Foi também
professor de Estratégia e de Geopolítica no Instituto de Altos Estudos Militares. É professor
catedrático convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigador integrado
no OBSERVARE. É autor de cerca de cem estudos, capítulos de livros e artigos sobre as temáticas
da Segurança e Defesa e conferencista em diversas instituições, em Portugal e no estrangeiro.
Resumo
Nos últimos dois séculos o progresso do entendimento sobre a Guerra fez evoluir o conceito
de Segurança. Nisso foram influentes as ideias ligadas ao liberalismo. Ao longo desse período
foi possível ir decantando as noções de Guerra, de Estratégia e de Segurança e aprofundar a
compreensão dos seus modelos. No que se refere à Segurança um trajeto que, no essencial,
vai da Segurança Nacional à Segurança Coletiva, até ao modelo contemporâneo de Segurança
Cooperativa, atenta à dimensão humana e cuja base de sustentação integra as ideias de
liberdade, de democracia e de liberalismo.
Palavras chave
Guerra, Segurança, Liberalismo, Pessoas, Cooperação
Como citar este artigo
Valença Pinto, Luís (2021). A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança.
Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução
(1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.9
Artigo recebido em 15 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 10 de Novembro de
2021
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A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança
Luís Valença Pinto
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A VISÃO LIBERAL E O PROGRESSO
NA COMPREENSÃO DA SEGURANÇA
LUÍS VALENÇA PINTO
“…se alguém, algum dia, proclamasse a mais absoluta das verdades,
não o poderia fazer,
tudo está entretecido de conjetura”
Aristófanes, citado por Karl Popper em Em busca de um Mundo melhor
Introdução
Nunca é correto nem realista reduzir ideias manifestamente transcendentes a um
conceito. Muito menos encerrá-las nessa insuficiente e redutora perspetiva.
Ainda assim, e procurando identificar o que está no centro da questão que aqui se
pretende trabalhar, será porventura aceitável que se faça a simplificação de tentar
compreender as ideias liberais como tendo o Homem como sua causa primeira e como
seu objetivo último.
Também e muito justamente, se observa hoje que as Pessoas estão, ou se pretende que
estejam, no centro da compreensão contemporânea da Segurança. Ainda que não sejam
os seus referenciais únicos.
Radica nesta dupla leitura a questão que motiva este texto: que influência teve e tem a
visão liberal na evolução do entendimento quanto à Segurança?
Um fundamento para a relação entre Liberalismo e Segurança?
Uma primeira constatação é que não foi desde sempre que os conceitos de Liberalismo e
de Segurança se entrelaçaram. Nem podia ser diferentemente.
Não sofre contestação que o imperativo da Segurança e a correspondente noção
antecederam muito longamente a pulsão liberal, tal como ela se tem manifestado em
séculos recentes.
Poder-se-iam tecer considerações interessantíssimas relativas a tempos historicamente
mais recuados, mas talvez o objetivo deste ensaio, focado nos dois séculos mais recentes,
as possa dispensar.
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A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança
Luís Valença Pinto
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E talvez seja também consentido que aqui se labore na abstração de não levar em linha
de conta os relevantes contributos de culturas distintas das do Mundo ocidental. O facto
do movimento do liberalismo ser essencialmente um processo do Mundo ocidental
legitima essa opção.
De modo historicamente mais próximo é razoavelmente ajustado identificar duas
referências fundamentais para o progresso do ideário liberal.
A primeira, para reconhecer que, embora a ideia do liberalismo remonte aos alvores do
período do Iluminismo, é fundamentalmente com o pensamento de John Locke, que as
teses liberais ganham corpo e sustentação. Por isso John Locke (1632-1704) é tomado
por muitos como sendo o Pai do liberalismo. Para essa interpretação muito contribuem
as teses que elaborou, nomeadamente a propósito do contrato social e da tolerância. É
de Locke a ideia, tão central para esta reflexão, que a Paz tem que assentar em Homens
livres e iguais (Locke, 1689).1
Para ele os Homens nascem na posse de direitos naturais, num estado de natureza
caraterizado por Paz, concórdia e harmonia. As realidades de vida coletiva conduzem,
porém à necessidade de práticas regulatórias e, por essa via, à organização política da
sociedade e, portanto, ao Estado, ente que, fundamentado na escolha livre dos Homens,
traduz um pacto social (Mello, 2000: 85).
Sem ignorar a Revolução Gloriosa e a Revolução Americana, a segunda grande referência
para a afirmação e expansão das ideias liberais encontra-se na Revolução Francesa. Foi
com ela, em particular com o pensamento que a inspirou e que marcou a sua fase inicial
que, em termos com verdadeiro e significativo impacto na sociedade, se consolidou e
expandiu uma fonte particularmente forte dos ventos da visão liberal. Pelo menos
enquanto ventos consistentes e reiterados. Ventos que foram realmente ventos da
História e que sopraram por muitas geografias.
Por isso o tempo pós-Revolução Francesa, a Idade Contemporânea, é o tempo em que,
com mais propriedade, se pode tentar identificar e compreender a relação entre visão
liberal e Segurança.
Entender a Segurança
A ideia de Segurança é tão velha como o Homem. Primeiro sob a perspetiva da mera
sobrevivência individual. Depois alargando progressivamente o seu âmbito à proteção da
família, do clã e da tribo.
No seu âmbito a Segurança corresponde a uma prática política e pública decorrente da
necessidade de regulação da vida coletiva. Na sua natureza é uma condição indispensável
à vida social. Barry Buzan compreendeu a Segurança como a special kind of politics or
above politics (Buzan et al, 1997: 23).
Mas importa menos definir com exatidão o conceito de Segurança do que perceber a sua
necessidade e identificar as vias que a construam, a promovam e a sustentem.
1 Locke, John (1978). Segundo Tratado sobre o Governo Civil, São Paulo: ed. Abril Cultural, edição de
1689).
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A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança
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Naturalmente que as diversas fórmulas de Segurança decorrem e atendem aos contextos
moral, histórico, político e estratégico em que se inscrevem (Pinto, 2013: 806).
Enquanto prática regulatória de âmbito coletivo, a Segurança foi-se estruturando na
perspetiva do outro. De quem era compreendido e receado como um potencial agressor.
Quando da tribo se evoluiu para a Nação o modelo de construção da Segurança continuou
a ser basicamente esse. Sob uma ótica mais coletiva e, portanto, mais política, o
agressor, ou simplesmente o agressor potencial, passou a ser tido como o Inimigo e ao
modelo, passando a estar referenciado ao Estado, chamou-se de Segurança Nacional.
Os objetivos desta Segurança, agora de natureza estatocêntrica, permaneceram no
essencial os mesmos, apenas alargados para a dimensão da Nação e politicamente
traduzidos pelos valores da defesa da independência nacional, da afirmação da soberania
e da preservação da integridade territorial.
Tratou-se de uma fórmula binária. Nós e os outros. A compreensão de Poder que culos
mais tarde foi conceptualmente elaborada e que continua a manter pertinência e
legitimidade, ainda que não de forma exclusiva, tem aqui o seu fundamento. O Poder
percebido como a capacidade de impor a vontade própria à vontade dos outros.
Segurança, Guerra e Estratégia
Se um Inimigo, mesmo que apenas potencial, pressupõe-se a Guerra. Pelo menos o
risco e a probabilidade da Guerra. E se essa equação contém duas vontades opostas,
ambas inteligentes e ambas de natureza política, o quadro é o de um exercício
característico da Estratégia.
Assenta nisto a correlação entre as ideias de Guerra, de Estratégia e de Segurança. Nas
suas géneses e, em particular, no que respeita à evolução da compreensão que,
relativamente a cada uma delas, se foi afirmando.
Historicamente foi mais do que uma correlação. Teve aspetos de manifesto sincretismo.
De facto e durante muitos séculos, basicamente desde a Grécia Antiga, Guerra e
Estratégia foram ideias dificilmente dissociáveis. O que também implica que durante todo
esse longo percurso a Estratégia foi percebida como algo apenas respeitante ao contexto
bélico.
Foi apenas na primeira metade do século XIX que no Mundo Ocidental a Guerra foi
assumida como algo muito mais vasto e complexo do que um processo exclusivamente
militar. Esse tremendo salto conceptual filiou-se no pensamento de Carl von Clausewitz,
tornado público em 1832 com a publicação do seu monumental tratado “Da Guerra”.
Não teria verdadeiro fundamento pretender relacionar diretamente Clausewitz com o
ideário liberal. Mas é verdade que na sua obra, Clausewitz, se refletiu por um lado, a sua
experiência e observação enquanto participante ativo nas campanhas europeias do
período napoleónico e imediatamente posterior, também refletiu, por outro, uma
compreensão da organização da sociedade e do Estado marcada pela influência da
ideia liberal.
Pela primeira vez no Mundo ocidental a Guerra, pese embora a presença da violência e
as suas dramáticas consequências, perdeu o seu caráter dir-se-ia de “jogo de xadrez em
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ambiente indefinido e quase abstrato”, de vinculação discutível e sobretudo ligada à
vontade do soberano, para passar a ser olhada como um fenómeno integrante de um
contexto político, económico e social. A Guerra tornou-se uma coisa pública, respeitante
à Nação e ao conjunto da sociedade e não aos militares.
Clausewitz foi categórico na subordinação da Guerra à Política. A essa luz tornou explícitos
preceitos até então nunca claramente formulados.
No seu conjunto esses preceitos definiram e regularam a Guerra em moldes novos e
radicalmente diferentes, acentuando que a Guerra é um instrumento da Política, que não
tem objetivos ou lógica próprios, que antes visa satisfazer as finalidades da Política em
obediência e em coerência com a lógica dessa mesma Política. Uma lógica que deve,
portanto, nortear a ação estratégica, compreendida como apenas militar, e que deve ter
a Paz como o seu propósito, assim se evidenciando a Paz como sendo o verdadeiro fim
da Guerra (Clausewitz, 1976)
Esta inédita e tão diferente visão marcou de facto um extraordinário momento de ruptura.
Contudo e apesar desta nova e tão desafiante abordagem, os conceitos de Estratégia e
de Segurança permaneceram imbricados ainda durante largo tempo.
Mas ambos ganharam plenamente a dimensão de práticas públicas, respeitantes ao
conjunto social e ao Estado e regidas pelo superior valor e responsabilidade da Política.
O alicerce dessa situação de interpenetração dos dois conceitos encontra-se na
convergência e até na sobreposição de dois aspetos principais. A Segurança era assente
e quase que exclusivamente encerrada na dimensão militar, e os meios com que se
contava para a ação estratégica eram fundamentalmente os meios militares.
Tardou a que os dois conceitos se individualizassem. Enquanto referência, o ser humano
esteve presente e foi decisivamente marcante em ambas as evoluções.
Foi na primeira metade do século XX que melhor se percebeu que, para bem servir os
objetivos da Política, a Estratégica carecia de usar todos os recursos disponíveis. Os de
natureza material, de que os militares eram apenas uns, e também os intangíveis, os de
natureza moral (Hart, 1991: 322).
Quando, por esta via, o universo da Estratégia se abriu para dimensões como a
económica, a social, a cultural e a psicológica, o conjunto da sociedade e com isso o
Homem, foram trazidos para o âmago da ação estratégica.
A consequente necessidade de assegurar o bom e útil emprego de todas essas dimensões
em conjugação e em simultaneidade com o emprego da dimensão militar, tornou muito
mais saliente a função tutelar e reguladora da Política, tanto como definidora das
finalidades, mas igualmente como guia e como indispensável instrumento de controlo da
ação. E é despiciendo salientar a obrigatória intervenção humana no domínio da Política.
Por outro lado, a convocatória, tanto para o axis como para a praxis da Estratégia, dos
recursos intangíveis, como o moral, a vontade ou o patriotismo, todos valores com origem
e repercussão no ser humano, acentuou a nova importância que, designadamente a partir
da primeira metade do século XX, foi reconhecida ao valor e ao papel do Homem.
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Evolução recente dos modelos de Segurança
posteriormente o percurso da ideia de Segurança veio a conhecer um novo
desenvolvimento apreciável. Um desenvolvimento identicamente no sentido do humano
e nessa dimensão muito significativo. O que decorreu da natural e obrigatória
dependência e subordinação da Segurança em relação ao contexto político e estratégico
em que se inscreve e que deve servir.
No fundamental o paradigma clássico de uma Segurança orientada para as questões
atinentes à independência, à soberania e à manutenção do território permaneceu
inalterado, até ao fim da Guerra Fria. Apenas modificado pela compreensão que nas
circunstâncias muito exigentes que se foram revelando e confirmando, a Segurança
Nacional seria melhor assegurada num quadro coletivo, agregando Aliados e Parceiros
em torno de valores e objetivos comuns e de compromissos tuos. Mas essa foi uma
mudança basicamente instrumental.
Nos seus fundamentos a ideia de Segurança Coletiva, que de algum modo se tentou que
existisse após a GM e que teve evidente consagração no pós Guerra Mundial, não
diferia e não difere do modelo da Segurança Nacional. É assim quanto aos seus objetivos
e quanto à identificação das ameaças e ao tipo de recursos que mobiliza.
Em ambas essas figuras, Segurança Nacional e Segurança Coletiva, o Homem é
referência, ainda que num registo que talvez se posa considerar como apenas implícito.
Em ambas está presente a preocupação em afirmar e preservar a liberdade, condição
indispensável à existência digna e responsável das Pessoas.
No ambiente do pós-Guerra Fria, tudo isso se manteve. Tanto no quadro dos Estados
como no quadro das Organizações Internacionais que integram a Segurança no seu
múnus. Seria estranho que assim o fosse. Mas muitos dos parâmetros definidores da
Segurança conheceram então e continuam a conhecer hoje, uma considerável evolução.
Deixou de se estar focado num Inimigo potencial, identificou-se a cooperação como uma
via de inestimável valor, percebeu-se que para além da clássica expressão da coerção,
aliás cada vez mais difícil de afirmar, o Poder se exprimia também por influência e até
por atratividade, relacionou-se insegurança com exclusão, ao vetor militar enquanto pilar
de Segurança e num plano agora de importância equivalente, juntaram-se outros como
o diplomático, o económico, o social e o cultural. Todos eles tutelados pela ação política,
como forma de garantir que a sua ação, ainda que diversa na sua natureza, seja
convergente com os fins e seja igualmente coerente e coordenada.
Percebeu-se também que não era possível ignorar o caráter intensamente comunicacional
do tempo atual, e que, ao contrário, era mesmo positivo que se utilizasse essa nova
faceta, utilizando-a na identificação e construção de soluções suscetíveis de receberem
um acolhimento favorável quando expostas ao escrutínio político e público, assim se
tornando porventura mais conformes à ética e à moral e, de um ponto de vista
pragmático, mais sustentáveis.
Os objetivos clássicos permaneceram inalterados e mantiveram a sua natural e destacada
consagração nos ltiplos quadros constitucionais, mas a eles foram adicionadas
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preocupações com a salvaguarda da vida, dos valores, dos direitos e dos bens das
Pessoas.
A esta nova noção, fundamentalmente caracterizada pela multidimensionalidade das
ações e pela busca da cooperação, se chama Segurança Cooperativa. (Pinto, 2013: 808).
Uma fórmula que, agora e de maneira explícita, tem as Pessoas no seu centro, tanto
como sujeitos ativos, como na qualidade de objeto da Segurança.
Por isso frequentemente se este modelo de Segurança ser também designado como
Segurança Humana. Mas talvez seja mais ajustado designá-lo como Segurança
Cooperativa e conferir-lhe uma forte dimensão humana, atenta aos imperativos das
Pessoas, seja no plano da sua inerente dignidade, seja nos ltiplos planos das suas
condições materiais de vida. Da nutrição, à escolaridade, à saúde ou às infraestruturas
básicas.
Articulando de modo muito evidente Segurança com Desenvolvimento e Bem Estar.
Consagrando um nexo entre esses dois objetivos primaciais e permanentes.
Mais uma vez assim se cruzam os caminhos das ideias liberais e da Segurança,
convidando a uma leitura a isso favorável e que assente no reconhecimento que, também
no que se reporta à Segurança, “o Homem é visto como um fim e não como um meio”,
fazendo aqui uma apropriação do preceito de Immanuel Kant (1724-1804) 2
A centragem no Homem faz também com que a lógica última da Segurança Cooperativa
seja do tipo win-win, afastando-se assim das lógicas das Segurança Nacional e Coletiva
que, muito naturalmente, são win-lose (Mihalka, 2001: 3)
Esta mais recente fórmula não é binária, mas sim compósita, envolvendo múltiplos
Atores. É também uma fórmula cuja gestão não se pretende hierarquizada nem
setorializada ou segmentada, mas antes que seja feita em rede, dando sentido
operacional à interconectividade que carateriza o Mundo do presente e que se antevê
reforçada no futuro.
Os modelos de Segurança no tempo presente
O que realmente hoje se verifica no Mundo é a coexistência natural dos três modelos
básicos de Segurança: o Nacional, o Coletivo e o Cooperativo.
As exigências da Segurança Nacional não são descartáveis para ninguém, o modo mais
eficaz de as observar é o modo coletivo e a fórmula cooperativa vai-se progressivamente
afirmando, seja porque as circunstâncias políticas e estratégicas assim o recomendam e
permitem, seja porque, verificando-se essa condição de possibilidade, os seus
fundamentos vão ganhando uma adesão crescente.
Nunca perdendo de vista a Segurança puramente Nacional, uma síntese enunciável, uma
formulação dir-se-ia “em banda larga”, corresponde à visão que aquilo que hoje mais
generalizadamente se pratica corresponde a Segurança Coletiva contra ninguém e
Segurança Cooperativa com todos os que a queiram promover e praticar (Pinto, 2013:
808).
2 Kant, Immanuel (2013). Crítica da Razão Pura. Lisboa: ed Fundação Calouste Gulbenkian, edição.
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Como é natural a dependência do contexto político e estratégico determina que o teor e
a intensidade com que este triplo entendimento da Segurança se manifesta sejam
diferentes consoante os distintos espaços geopolíticos.
O multilateralismo de visão liberal e a validação da Segurança
Tem também aqui lugar recordar que, independentemente do modelo a que respeitam,
os objetivos da Segurança têm uma validade reforçada quando emanam de vontades
políticas cuja matriz legitimadora é de natureza liberal, tem consagração constitucional.
e beneficia de escrutínio público. Sob esse enquadramento mais exigente as visões e as
decisões, mesmo que porventura mais difíceis de afirmar, tornam-se particularmente
robustas.
No plano internacional esta observação conduz-nos à reflexão sobre o tipo de
instrumentos de regulação e tendencialmente ordenadores que melhor podem estimular
uma agenda securitária legítima, adequada e assim compreendida.
Nessa ótica, a visão liberal que tem informado o multilateralismo surge novamente como
um privilegiado fator potenciador. Sobretudo se nos reportarmos à visão que prevaleceu
no pós-Guerra Fria e se empenhadamente a expurgarmos das perspetivas ditas neo-
liberais e economicistas que, em particular no início desse período, também se
afirmaram.
É preciso, porém dar corpo a um renovado e mais profundo multilateralismo, que acentue
o enfoque nas Pessoas e que, sem deixar de reconhecer e de atentar em aspetos de
competição, de oposição e de perturbação políticos e estratégicos, se afaste ou pelo
menos se tente afastar, das chamadas Geopolíticas de Poder, centradas numa
competição ou pelo menos num antagonismo político e estratégico vistos como
praticamente inevitáveis.
A renovação e aprofundamento do multilateralismo que por enquanto conhecemos deve
incluir o reconhecimento da existência de outros e relevantes Atores, para além dos
Estados e das Organizações Internacionais. A presença na cena política e estratégica
internacional do presente das grandes empresas transnacionais, das Igrejas, dos
operadores da comunicação social, das Regiões, das redes de cidades, das ONGD e das
Pessoas é um dado indesmentível. Mas até aqui estes outros Atores não têm sido
suficientemente convocados para contribuírem de modo construtivo para as agendas
globais e, por essa via, a comprometerem-se com elas.
Mas, para além do alargamento aos novos Atores, importará também a um renovado
multilateralismo reconhecer e observar a abrangência contemporânea do âmbito da
Segurança, daí retirando como normativo fundamental que a Segurança não pode ser
promovida e construída contra as Pessoas e sem as Pessoas. O que é um preceito a que
as teses das Geopolíticas de Poder, não atendem, nem aparentam mostrar a preocupação
de atenderem.
Se sobrelevar no Mundo a lucidez e a determinação para trilhar esta via de refrescamento
e aprofundamento do multilateralismo de correta inspiração liberal, será mais fácil
encontrar soluções que melhor satisfaçam valores tão essenciais como a liberdade e a
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democracia. E que melhor fundamentem uma Segurança mais humana, mais equitativa
e mais legítima (Guterres, 2020).
Não será um exercício simples.
Numa perspetiva imediatista as construções mentais ligadas às Geopolíticas de Poder
sugerem conter uma grande evidência. Uma evidência que de resto é servida por muitos
indicadores e abundantes estatísticas de que se procuram extrair tendências e conclusões
achadas inapeláveis.
Porém, uma leitura mais atenta, mais ambiciosa e mais exigente aponta que não pode
ser negligenciável atentar que a agenda que o Mundo tem pela frente está preenchida
por desafios muito marcantes, como são os ligados ao ambiente, às alterações climáticas,
ao controle de pandemias, aos riscos de proliferação de Armas de Destruição Massivas,
em particular as Armas Nucleares, ao ciberespaço, ao progresso tecnológico e às
possibilidade e riscos que dele se antecipam, aos movimentos migratórios desregulados,
às crises da democracia representativa e da economia de mercado, à fome, à escassez
sistémica de recursos, à pobreza e à persistência de amplas manchas de
subdesenvolvimento.
São desafios que, pela sua natureza, estão para além da simples escala de prioridades e
que, com propriedade, devem ser rotulados como existenciais.
É impossível deixar de reconhecer que tudo isso reclama mais cooperação e menos
competição. E também que tudo isso define uma agenda essencial de promoção,
construção e sustentação da Segurança como um valor individual e coletivo, definindo
uma arquitetura de Segurança de caráter multinível: local, regional e global.
A relevância e a premência desses desafios superam as considerações que se façam
acerca dos riscos subjacentes a um e outro dos dois modelos, Geopolítica de Poder e
Cooperação Multilateral.
Nessa linha vão as abordagens que têm informado os Relatórios de Desenvolvimento
Humano da Nações Unidas e que se baseiam na identificação das possibilidade e
limitações que se encontram nos campos político, económico e social, visando que seja
desejavelmente possível promover e sustentar as dimensões de Segurança que importam
ao Homem (Rezende, 2016: 307).3
O que se espera é o enunciado de propostas e a construção de soluções políticas e práticas
que cubram a pluralidade da vida contemporânea, incluindo as novas ameaças e riscos,
e que sejam suscetíveis de agregarem todos os Atores da Sociedade Internacional.
A abordagem multilateralista, que se deseja renovada e valorizada, sendo certamente
muito mais exigente, é a única cuja natureza e inerente objetivo permitirá trilhar essa
via e assim servir os propósitos comuns e superiores da Humanidade. Um
multilateralismo que traga resultados às Pessoas que visa servir (Guterres, 2020).
3 No quadro do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) são consideradas sete dimensões
da Segurança Humana: económica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, política e comunitária
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Considerações finais
Ainda que não seja realista estabelecer relações de causalidade direta entre os valores e
as propostas do liberalismo e o entendimento relativo à Segurança, é um facto que a
noção de Segurança e nomeadamente a sua evolução mais recente, têm vindo a ser
inspirados e influenciados por valores intrínsecos à visão liberal.
Duas circunstâncias definem conjugadamente a matriz dessa relação. Por um lado, o
cunho crescentemente liberal do contexto político e estratégico e, por outro lado, a
também crescente correlação e subordinação da Segurança a esse contexto.
São também dois os planos em que isso é particularmente manifesto e decisivo.
Um, respeita à moderna centralidade das Pessoas no quadro da Segurança. Seja como
Atores, seja como objeto.
O segundo, tem que ver com compreensão da Segurança enquanto indispensável,
permanente e muito relevante política pública que, como tal e para ser inteiramente
legítima, carece de validação, regulação, escrutínio e fiscalização por parte da sociedade.
Os propósitos contemporâneos de uma Segurança atenta à dimensão humana,
particularmente orientados para as dimensões política, económica e social da vida, que
nas últimas décadas têm vindo ser enunciados e promovidos, designadamente pela
Organização das Nações Unidas, constituem a este propósito um claro paradigma.
Um paradigma que será melhor servido por um renovado multilateralismo, associando
tão articuladamente como possível todos os Atores da sociedade internacional e cobrindo
a pluralidade das ameaça e riscos que hoje se identificam e afirmam.
Compreender, construir e manter a Segurança global sob essa perspectiva humana
significa optar por ter o Homem no centro da ação, por estimular a liberdade e a inclusão
e, consequentemente, por promover uma Paz Justa e verdadeira.
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