OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
Vol 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1
ARTIGOS
O dilema de segurança na nova Estratégia Nacional de Segurança russa: entre militarismo e pivot
geográfico - Sandra Fernandes e Marco Cruz - pp 1-19
Proteção dos processos democráticos e dos atos eleitoriais contra medidas ativas digitais russas:
2016 como ano de referência Ricardo Silvestre pp 20-36
A resiliência do Partido Comunista da China Ls Cunha pp 37-52
Liberdade, igualdade e laicidade: o uso do hijab nas escolas públicas como uma ameaça à ontologia
republicana francesa (1989-2004) - Bruno Pedrosa pp 53-64
A paradiplomacia como resultado da transformação do Estado na era da globalização: o caso da
Indonésia - Ario Bimo Utomo pp 65-80
Assumir a ultraperiferia: o papel da CRPM na Estratégia de Mobilização Territorial do Governo dos
Açores junto da União Europeia André Pimentel Garcia e Sandrina Ferreira Antunes pp 81-100
A diplomacia científica portuguesa e as redes de profissionais, investigadores e estudantes pós-
graduados portugueses no estrangeiro: da fuga à circulação de cérebros - João Mourato Pinto pp
101-121
A dessecuritização do narcotráfico no xico sob a administração AMLO - Luis Miguel Morales
Gámez pp 122-139
Direitos da natureza como um enquadramento potencial para a transformação das comunidades
políticas modernas - Carlota Houart pp 140-157
Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro - Christopher Kurt Kiessling e Agustina
Pacheco Alonso pp 158-176
Patentes farmacêuticas e direito à saúde Portugal e Brasil - Ruben Bahamonde Delgado pp
177-195
O equilíbrio entre privacidade V. o argumento da vigilância: a perspectiva do Reino Unido - Vaibhav
Chadha pp 196-209
A relação entre os dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas na
Bolsa de Valores de Teerão - Massoud Kheirandish e Mohsen Mohammadi Khyareh pp 210-225
NOTAS
A preservação do património cultural europeu: experiência e tendências modernas - Alexandra
Borisovna Egoreichenko pp 226-236
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social - Carolina
Encarnação Correia pp 237-246
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade? - Otabek Primatov -pp 247-252
RECENSÕES CRÍTICAS
Akyüz, Emrah (2021). Nuclear power and human rights in Japan: the fallout of Fukushima. London:
Lexington Books. ISBN: 9781793637819, 270 pp por Emrah Atar pp 253-256
Innerarity, Daniel (2019). Política para perplexos. Lisboa: Porto Editora, ISBN 978-972-0-45-
03232-4, 214 pp por João Carlos de Sousa pp 257-261
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O DILEMA DE SEGURANÇA NA NOVA ESTRATÉGIA NACIONAL DE SEGURANÇA
RUSSA: ENTRE MILITARISMO E PIVOT GEOGRÁFICO
SANDRA FERNANDES
sfernandes@eeg.uminho.pt
Professora Auxiliar no Departamento de Ciência Política e Diretora do Mestrado em Relações
Internacionais, Universidade do Minho (Portugal). Doutorada em Ciência Política e Relações
Internacionais pela Sciences Po. Prémio Jacques Delors 2005 pela investigação sobre a União
Europeia e a ssia. Colaborou com a Embaixada de Portugal na Rússia em formão a
diplomatas. Foi nomeada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros para o júri de acesso à carreira
diplomática; responsável pela criação e coordenação do Curso de Acesso à Carreira Diplomática,
UminhoExec; e membro da Direção da Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP). Docente
convidada no âmbito de pós-graduações em diversas Universidades estrangeiras. Investigadora
convidada do Centre for European Policy Studies.
MARCO CRUZ
cruz.maf@ium.pt
Tenente-Coronel da Guarda Nacional Republicana (GNR), Professor na Área de Ensino do Estudo
das Crises e Conflitos Armados do Instituto Universitário Militar (Portugal), lecionando
Geopolítica, Relações Internacionais e Estudos de Segurança. Participou nas missão da GNR no
Iraque, Timor-Leste e Bósnia e Herzegovina. Coordenador do Núcleo de Estudos Militares
Europeus do Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar,
especialista em segurança interna e fenómenos criminais. Mestre em Direito e Segurança,
Licenciado e Mestre em Ciências Militares. Pós-graduado em Ciência Política e Relações
Internacionais, doutorando em Relações Internacionais, especialidade de estudos políticos de
área, Universidade Nova de Lisboa. Investigador do Centro de Investigação e Desenvolvimento
do IUM. Autor e coautor de diversas publicações nas áreas da Geopolítica e dos Estudos de
Segurança.
Resumo
O artigo analisa a nova Estratégia de Segurança russa enquanto formulação do “dilema de
segurança” da Rússia, tanto em termos de interpretação como de resposta (Booth e Wheeler,
2007). Muito vocacionada para a transformação da ordem mundial, decorrente das alterações
do Sistema Internacional, no âmbito do qual as potências procuram reforçar as suas posições
na estrutura global, a Estratégia prevê, cada vez mais, o recurso ao instrumento militar como
forma de garantir e impor os interesses nacionais, e que se refletem em diferentes domínios
e espaços regionais. Explorando as relações estratégicas com a China, em termos económicos
e políticos, a Rússia procura igualmente reforçar o seu estatuto de potência global, através
do alargamento do espaço geográfico e das áreas de intervenção. Na interpretação que faz
do designado “mundo moderno”, muito marcado pela rivalidade entre os EUA e a China,
procura assumir-se como pivot geográfico dessa mesma relação. A Estratégia de Segurança
Nacional constitui, por isso, um roteiro para as ambições da Rússia, avaliando os motivos, as
intenções e as capacidades dos “outros” e identificando as formas “racionais” e “legítimasde
responder ao seu “dilema de segurança”. Se é possível verificar que a invasão da Ucrânia a
24 de fevereiro de 2022 materializou os elementos presentes na Estratégia, os efeitos não
parecem coincidir com os objetivos procurados por Moscovo.
Palavras-chave
Rússia; Estratégia de Segurança; dilema de segurança; pivot geográfico; militarismo
Como citar este artigo
Fernandes, Sandra; Cruz, Marco (2022). O dilema de segurança na nova Estratégia Nacional
de Segurança russa: entre militarismo e pivot geográfico. In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.1
Artigo recebido em 11 Janeiro 2022 e aceite para publicação em 1 Abril 2022
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entre militarismo e pivot geográfico
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O DILEMA DE SEGURANÇA NA NOVA ESTRATÉGIA NACIONAL DE
SEGURANÇA RUSSA: ENTRE MILITARISMO E PIVOT GEOGRÁFICO
SANDRA FERNANDES
MARCO CRUZ
Introdução
No século XXI, em contraste com a década de 1990, a Rússia encetou um percurso de
(re)ascensão internacional, sob a liderança de Vladimir Putin. A guerra russo-georgiana,
de 2008, e a anexação da Crimeia, em 2014, assinalam uma viragem no modus operandi
de Moscovo na afirmação dos seus interesses. Estes incluem não apenas os espaços de
interesse estratégico direto no seu estrangeiro próximo”,
1
mas também em regiões mais
afastadas, como é o caso do continente africano e da América do Sul e Central (Gurganus,
2018).
Desde a implosão da União Soviética, em 1991, a política externa e de segurança da
Rússia tem evoluído em função da sua relação com o ocidente e com as principais
potências ocidentais. Durante a Guerra Fria, essas relações foram de rivalidade
estratégica, através da procura e disputa de espaço de influência, quer em termos
políticos, quer militares (Gaddis, 2007). A intenção de aproximação de Moscovo aos
Estados e organizações ocidentais chegou a incluir a perspetiva da sua integração na
própria Aliança Atlântica (Thorun, 2009). O apoio inicial à guerra contra o terror após os
ataques de 11 de setembro também ilustra essa aproximação (Cardier, 2015: 160).
Depois da fase de convergência relativa, a liderança do presidente Putin rompeu com
esse curso cooperativo, fazendo ressurgir a perceção segundo a qual é necessário
reverter a posição de fraqueza da nação russa, “tendo perdido a Europa de Leste, a URSS
perdeu a sua mais importante zona de defesa e recebeu um colossal golpe geopolítico”
(Dugin, 2016: 70). Putin explicitou esta perceção em discursos-chave, em 2005 e 2007,
identificando a implosão da União Soviética como a maior catástrofe geopolítica do
século, a agressividade das políticas de alargamento da OTAN (Organização do Tratado
1
O termo estrangeiro próximosurgiu pela primeira vez em 1992, sendo considerado um rótulo” geopolítico
entre os políticos russos no âmbito da dissolução da União Soviética, referindo-se ao estrangeiro próximo,
ou seja, às ex-repúblicas soviéticas, que desde essa altura passaram a ser países soberanos independentes.
O termo reconhece o seu novo estatuto independente, mas, apesar disso, mantém os países sob a influência
russa, tendo em conta que estes espaços continuam a pertencer à antiga família soviética (Toal, 2017: 3).
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do Atlântico Norte) e da União Europeia (UE) aos Estados pós-soviéticos, e a crítica à
hegemonia dos Estados Unidos da América (EUA) numa ordem internacional que é
multilateral (Putin, 2005; 2007).
O papel das lideranças russas tem sido crucial para as relações com as potências
ocidentais, existindo duas visões-tipo distintas: uma que coloca a Rússia como potência
europeia, ou seja, mais próxima dos quadros normativos ocidentais; e outra que defende
a centralidade russa na Ásia Central, ocupando o “coração” do Heartland (Mackinder
1943: 595-605) e, desse modo, procurando uma autonomia russa em relação aos atores
ocidentais, reforçando inclusivamente as parcerias com os atores asiáticos (Krickovic &
Pellicciari, 2021: 89-90).
A alteração do curso russo baseou-se na prosperidade económica e materializou-se
sobretudo na guerra russo-georgiana de 2008, e nas designadas revoluções coloridas
que levaram à deposição de governantes na Geórgia e na Ucrânia, mais próximos do
Kremlin (Nygren, 2008: 30) (Sakwa, 2015: 65). As anteriores lideranças dos governos
ucranianos e georgianos foram substituídas por políticos que tinham como ambição a
aproximação e eventual integração nas instituições euroatlânticas, procurando usufruir
dos apoios económicos e dos desenvolvimentos da UE e do “chapéu” securitário da OTAN.
Este quadro geopolítico fez mudar as relações entre a Rússia, a UE e a OTAN (Casier,
2016: 18-19; Mendras, 2015: 85). Na ótica de Moscovo, tal como durante o período da
Guerra Fria, os países do ocidente procuravam subjugar a Rússia, retirando-lhe espaços
vitais de influência, fazendo não o seu cerco (Crowley, 2018), mas retirando a zona
tampão entre a Rússia e o ocidente (Haas, 2010: 3).
O presente artigo tem por objetivo analisar a nova Estratégia Nacional de Segurança da
Rússia (ENSR), de julho de 2021 (RF, 2021). Este documento é o principal documento
estratégico do Estado, ao qual ficam subordinados a doutrina militar e o conceito da sua
política externa. Decorrente das alterações que anuncia no âmbito do sistema
internacional, a nova estratégia contrasta com a versão anterior publicada em 2015 (RF,
2015) e identifica as principais tendências e oportunidades da Rússia no “mundo
moderno”. Partindo do conceito de security dilema sensibilityformulado por Booth e
Wheeler (2007)
2
, argumentamos que o documento em alise informa sobre o papel do
medo nas atitudes e comportamentos russos. Assim, o nosso objetivo principal é
identificar como Moscovo respondeu ao seu “dilema de interpretação” ao definir quais
são os motivos, intenções e capacidades dos outros. Ainda que em termos retóricos, a
nova ENSR também aponta para a forma como a Rússia resolveu o seu “dilema de
resposta” ao elencar as formas racionais de responder ao seu dilema de segurança. A
“operação especial” que o Kremlin lançou sobre a Ucrânia a 24 de fevereiro 2022,
condenada como uma guerra de agressão pelo ocidente, materializa a resposta russa à
sua interpretação do dilema de segurança.
Partindo das mudanças recentes que o Kremlin foi operando nas suas relações externas,
o artigo identifica, assim, até que ponto estas dimensões são vertidas na nova ESNR.
2
Os autores definem o conceito da seguinte forma: an actor's intention and capacity to perceive the motives
behind, and to show responsiveness towards, the potential complexity of the military intentions of others.
In particular, it refers to the ability to understand the role that fear might play in their attitudes and
behaviour, including, crucially, the role that one's own actions may play in provoking that fear.” (Booth e
Wheeler: 7).
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Pese embora o documento expresse, inequivocamente, a degradação das relações entre
a Rússia e os “países ocidentais”, a nossa análise procura compreender em que medida
e de que forma as mudanças estabelecidas na ENSR incluem elementos do pensamento
geopolítico russo (Fernandes e Ageeva, 2021) e ruturas confirmadas pela atual guerra
na Ucrânia. Esses elementos incluem um afastamento das opções europeias de
cooperação; uma contestação da liderança ocidental na ordem global no sentido de
existirem vários centros de poder (multipolaridade); a procura de parcerias na Ásia e
uma nova identidade russa de política externa numa escala eurasiática.
Recorrendo a uma metodologia qualitativa, com base na análise de conteúdo da ENSR,
analisamos, em primeiro lugar, a forma como o “ocidente” é abordado nesse mesmo
documento, em termos de atores e problemáticas, de modo a evidenciar as dinâmicas
de cooperação e de conflito que Moscovo releva. Em segundo lugar, com o intuito de
questionar a ambição da Rússia de ser um ator eurasiático, identificamos os elementos
de ambição global comparativamente aos elementos de pendor regional. Finalmente,
ainda para aferir a articulação do eurasianismo russo na ESNR, avaliamos o objetivo de
Moscovo em ser um “pivot geográfico” num mundo que a Rússia já perceciona como não
sendo centrado no ocidente, mas composto por vários centros de poder.
1. O Ocidente como “outro”: em defesa dos interesses e cultura russos
A ESNR identifica os EUA e os seus principais aliados ocidentais como a principal ameaça
aos interesses da Rússia, sublinhando as políticas de alargamento da OTAN (e da UE)
como principal elemento de interferência no seu “estrangeiro próximo”. Também é no
ocidente que têm origem as principais ameaças “à unidade e à estabilidade política
interna” e aos seus valores e princípios (RF, 2021: 4). Para além do destaque dado às
questões climáticas, à economia e à tecnologia, a nova estratégia procura contestar a
ordem hegemónica dominada pelos países ocidentais, reclamando um papel mais
relevante para a Rússia, que seja consentâneo com o seu peso internacional em termos
militares, geográficos, tecnológicos e legais, nomeadamente do seu estatuto como
membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).
No que concerne à OTAN, a organização e os aliados continuam a ser uma ameaça militar
à Federação Russa e aos seus principais parceiros, em particular aqueles que fazem parte
da Comunidade dos Estados Independentes (CEI). Neste âmbito, são destacadas,
enquanto ameaças à soberania russa, a construção de bases militares próximas, fazendo-
se referência à realização de exercícios militares e à instalação de armas nucleares
“contra a Federação Russa” (RF, 2021: 12).
Além de apontar ao ocidente, ainda que de forma indireta, os ataques informáticos de
que a Rússia tem sido alvo, na visão da nova estratégia alguns atores ameaçam os
valores - espirituais, morais, históricos e culturais - russos. Aos Estados, juntam-se
empresas transnacionais, atores o governamentais, entidades religiosas e
organizações extremistas e terroristas. Tal como noutros momentos da sua história, a
designada ocidentalização da cultura russa é vista como uma ameaça à sua soberania,
uma vez que procura “falsificar a Rússia e a sua história mundial, distorcer a verdade
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histórica e a memória”,
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incitando assim aos conflitos interétnicos e inter-religiosos que
enfraquecem o próprio Estado.
No sentido de “proteger” os valores e o espírito russo das interferências externas, são
identificadas catorze ações, merecendo destaque o domínio informacional e da
investigação, onde se defende a promoção de programas de informação estatais e a
promoção de centros de investigação que façam a divulgação científica de documentos
relacionados com a Rússia e com a sua história, no espaço educacional” (físico e virtual)
(RF, 2021: 36-38). Em termos religiosos e culturais, é defendida a promoção de projetos
em parceria com diferentes entidades, em particular com a igreja (ortodoxa), dentro e
fora do território russo. O aspeto mais relevante das atividades advém, contudo, do ponto
7, que sublinha o “reforço da soberania cultural da federação russa e a preservação da
unidade do seu espaço cultural” (RF, 2021: 36).
Esta “defesa” da cultura russa permite alargar o espaço de intervenção russo, muito para
além das suas fronteiras físicas. As comunidades russófonas e as entidades russas que
desenvolvem atividades no estrangeiro o uma das bases de poder. Para além dos
países do seu “estrangeiro próximo”, assumem ainda destaque os Balcãs Ocidentais, em
particular a Sérvia e a Bósnia e Herzegovina, países nos quais o Kremlin mantém uma
forte influência política, fruto da sua proximidade histórica e cultural (Cruz, 2021). No
início deste ano de 2022, a Sérvia, através do seu Presidente, anunciou a aquisição de
armamento militar à Rússia, armas anticarro, carros de combate e drones (Stojanovic,
2022). A Sérvia tem sido um dos principais centros do investimento russos, em termos
económicos, informacionais, militares e políticos (Blank, 2021). Do lado da Bósnia, o
apoio político dado por Moscovo para a secessão da Republica Servia (Republika Srpska),
declarada, rios anos, pelo Presidente desta região, Milorad Dodik, pretende, em
primeiro lugar, afastar a Bósnia da aproximação e integração na OTAN (Gotev, 2019) e
na UE. Além disso, com a proximidade que procura ter junto dos líderes políticos bósnios,
em particular do lado sérvio e croata da Presidência tripartida (que inclui ainda um
representante bosníacos muçulmanos) a ssia pretende manter a sua influência
(Jagiello, 2021), explorando as divisões étnicas para criar instabilidade (Mujanovic,
2017), numa região considerada de grande importância geoestratégica para UE (RFE,
2021) (Kamath, 2021).
Com esta nova estratégia, as relações com o ocidente em geral e, em particular, com os
EUA, o são articuladas com projetos cooperativos sobretudo devido às ameaças
ocidentais em áreas de interesse russo. O combate aos riscos associados à
ocidentalização do país em termos políticos, económicos e culturais, assumem-se como
um dos pilares fundamentais para a identidade russa. Para além de permitir priorizar as
dimensões exclusivas nacionais, a manutenção da referência ocidental enquanto o
“outro”
4
(Zevelev, 2016: 8) - matriz considerada essencial da perspetiva teórica da
3
Ao longo dos anos, o tema relacionado com as questões históricas tem sido crucial para os diferentes
governantes russos, não sendo por isso uma questão nas atuais lideranças russas. Ainda recentemente,
Vladimir Putin acusou os historiadores ocidentais de pretenderem menosprezar o papel da Rússia na II
Guerra Mundial, referindo que os soviéticos foram os principais responsáveis pela derrota nazi. Radchen
(2020) afirma que o Presidente russo quer reescrever a História.
4
A relação entre o “eu” e o outroevidencia a ideia de que as identidades podem ser baseadas na diferença,
sendo, desse modo, criadas através de um contexto relacional (Delanty, 2005). Em politica externa, a
distinção entre o in e o out group constitui a base da formulação das identidades políticas, definindo-se
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construção das identidades (Wendt, 1994: 385) (Shelling, 1960: 19) promove ainda a
coesão interna e legitima a governação política instituída. Nesse ponto em particular, a
ESNR mantém a linha de orientação da estratégia de 2015 (RF, 2015), aprofundando as
divergências em relação ao ocidente.
Em termos militares, as relações com a OTAN assumem uma prioridades e preocupação
central para a Rússia, decorrentes o apenas da instalação de sistemas antimísseis e
de armas nucleares junto às suas fronteiras, mas também das sucessivas políticas de
alargamento da Aliança para Leste. Em resposta às recentes tensões criadas na região
de Donbass (Ucrânia), Putin propõem, de forma unilateral, um “novo acordo de
segurança” com os EUA e com a OTAN, que garantias da não inclusão no futuro da
Ucrânia na OTAN (Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa, 2021)
A ENSR identifica um conjunto alargado de ameaças à segurança nacional da Rússia,
interna e externamente. A definição que o documento faz em relação ao que considera
ser uma “ameaça à segurança nacional” é muito abrangente, ao englobar “o conjunto de
condições e fatores que criem direta e indiretamente uma oportunidade para limitar os
interesses da Federação Russa” (RF, 2021). A abrangência da noção de Segurança
Nacional, além de estabelecer a ligação entre os domínios interno e externo, ou seja, de
indivisibilidade entre os dois domínios, identifica a relação entre as diferentes tipologias
de ameaças. No atinente ao terrorismo e às questões de segurança em termos gerais,
incluindo as ameaças com origem em campanhas de desinformação e de propaganda,
existe uma preocupação do Kremlin em proteger o seu poder em termos internos, dando
legitimidade a medidas e a restrições impostas pelo poder político. A narrativa que é
usada em relação ao Ocidente e à ameaça que os valores ocidentais comportam, e que
são colocadas a par de outras como o terrorismo e os extremismos, materializam essa
mesma intenção de legitimação.
O aspeto mais relevante no âmbito das ameaças diz respeito à forma como é dado
entendimento às ameaças com origem no ocidente, em termos físicos, mas sobretudo
em termos virtuais. A ENSR encontra no plano cibernético um pilar central das ameaças,
reforçando, assim, o carácter subjetivo da sua avaliação. O alargamento das fronteiras
russas, no identificado espaço de soberania cultural (RF, 2021: 36), de modo a incluir
Estados considerados estratégicos do seu estrangeiro próximo, procura ter nas questões
da proteção das comunidades russófonas, que são, segundo Moscovo, “descriminados e
acusadas judicialmente (RF, 2021: 6), uma legitimação em termos internos e
internacionais. Na anexação da Crimeia, além das questões históricas, o argumento
usado por Putin para intervir foi o de garantir a segurança dos russos, que representam
a população maioritária nesse território (Putin, 2014).
2. Uma ambição global, com forte pendor regional
À semelhança das estratégias das grandes potências, a ENSR confere uma projeção
global à Rússia, usando todos os instrumentos de que dispõe, do político, do militar, do
técnico-militar, do diplomático, do económico e do informacional. Nesta seção,
quem são o "nós", em contraste com os grupos externos, ou seja o “outro”, que podem ser implícita ou
explicitamente excluídos da comunidade nacional (Bruter, 2003: 1150).
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identificamos a intervenção ativa da Rússia em termos regionais e o reforço do seu
protagonismo em termos globais por essa via, reforçando os elementos que lhe o
efetivamente essa capacidade de projeção. O reforço da civilização russa, em
contraposição com o ocidente, e a ambição global do país mitigam as fragilidades russas
em diferentes áreas, em particular em termos económicos, ocupando a 11.ª posição em
termos mundiais, com a economia russa a representar apenas 1,95 % da economia global
(World Barometer, 2021a), e populacionais, assumindo a nona posição no contexto
mundial (World Barometer, 2021b).
Em termos políticos, a geografia russa potencia ligações a todos os continentes através
de diferentes fóruns (políticos e económicos), em particular dos BRICS (Brasil, Rússia,
India, China e África do Sul), e de Estados com forte ligação histórica à Rússia e à antiga
União Soviética (América Central e do Sul e África). Em resultado desta ligação, são
favorecidas as relações económicas e militares, através da venda de armamento e de
apoio militar, ao nível da cooperação e da instalação de bases e do desenvolvimento de
capacidades militares. Para além das empresas estatais, esta proximidade favorece ainda
a intervenção de empresas russas nos diversos mercados.
5
A ENSR atribui ainda a dimensão global da ssia através da ONU, em particular no
assento permanente no CSNU. A apologia aos princípios da Carta das NU, enquanto
modelo de regulação da ordem mundial, pretende “chamar” a Rússia à participação nos
principais temas globais, reforçando assim o seu peso junto das principais potências. O
apelo que é feito ao multilateralismo, enquanto forma de reduzir tensões, pretende
reclamar uma nova ordem global, onde a Rússia, em conjunto com outras potências
(China), procura assumir um papel de destaque e um peso institucional global. Para além
do lugar que assume no CSNU, a ambição russa inclui um reforço da participação nacional
em Operações de Manutenção de Paz das NU (RF, 2021: 40).
Em termos militares, a afirmação global russa é sobretudo feita pela sua capacidade e
dissuasão estratégica. A ENSR sublinha a necessidade de a Rússia manter a sua posição
liderante em termos de tecnologia, de armas e de todo o seu complexo industrial ligado
a esta capacidade. Apesar de defender a manutenção dos níveis da dissuasão nuclear, a
Estratégia continua a dar primazia ao entendimento internacional como forma de reduzir
os riscos associados ao seu uso (RF, 2021: 5, 11-12, 39). Sendo considerada,
atualmente, a primeira potência com maior capacidade em termos numéricos, com 6257
ogivas (FAS, 2021), quer em termos tecnológicos, seguida dos EUA, a capacidade nuclear
russa atribui-lhe esse peso no concerto das grandes potências.
6
No vetor técnico-militar,
a Rússia assume-se como líder à escala global. Grande parte dos investimentos russos
tem como destino a venda para terceiros, sacrificando por vezes o reforço das
capacidades militares das suas Forças Armadas. Atualmente, existe armamento e
tecnologia vendida pelas empresas estatais russas que o está disponível para os
5
Para além das empresas estatais, ligadas sobretudo ao setor da energia e do armamento (Luzin, 2021),
destaca-se o papel que a empresa militar de segurança privada russa Wagner presta à política externa do
Estado russo, reforçando, cada vez mais, em diversos países, designadamente na Líbia (Stronski, 2020),
na Ucrânia, no Iraque, no Afeganistão, no Iémen, no Chade, no Sudão e no Sudão do Sul e em Moçambique
(Katz, B., et al., 2020).
6
Segundo dados da Federation of American Scientists (FAS) (2021), Rússia e EUA detêm cerca de 91% das
armas nucleares em termos mundiais. No que concerne às armas nucleares estratégicas, os dois países
estão em paridade (os EUA com mais 100 dessas armas, num total de 1700.
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militares russos (Connolly & Sendstad, 2017). Esta venda expande a influência de
Moscovo à escala global, particularmente em mercados de países politicamente mais
próximos. É desta forma que se entende a ambição do Kremlin em garantir não apenas
a liderança tecnológica, mas também, como é referido na ENSR, a autonomia estratégica
(RF, 2021: 13).
Apesar dos elementos de projeção global acima referidos, a ENSR é sobretudo dedicada
à ambição russa em termos regionais, o “estrangeiro próximo” russo, que engloba os
Estados que fazem parte da CEI, reflete as principais preocupações de segurança, onde
Vladimir Putin já demonstrou equacionar o uso de todos os meios, incluindo os militares.
Para esta região são propostas diversas atividades e medidas, incluindo o uso de meios
cinéticos reforçando a cooperação com os Estados da CEI, a Ossétia do Sul e a Abecásia,
e no âmbito do quadro das instituições internacionais, designadamente da União
Económica Euroasiática (UEA), da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC)
e da União da Rússia e da Bielorrússia (RF, 2021: 39-42).
A centralidade estratégica do espaço pós-soviético é revelada nas tarefas identificadas
no parágrafo 101, dedicado à política externa russa (RF, 2021: 39). Das 25 ações
propostas, oito dizem respeito explicitamente a Estados dessa área, além de outras
poderem ser igualmente aplicadas a esta região. Para além da ligação política,
informacional e cultural, também aqui os aspetos militares, venda de armamento e de
tecnologia e cooperação técnico-militar multilateral, assumem especial destaque.
Por sua vez, em termos regionais, a ligação à China, a par da Índia, é apresentada como
fundamental, explorando os aspetos económicos e tecnológicos dessa relação, quer no
quadro bilateral, quer no quadro multilateral oferecido pela Organização para a
Cooperação de Xangai
7
. Além das questões relacionadas com a ordem internacional, as
relações políticas entre Moscovo e Pequim têm nas questões económicas um pilar central.
Desde 2002, altura em que o volume de negócios entre ambos era de 8 mil milhões de
dólares, que se registou um aumento nas trocas comerciais, ao ponto de em 2018 o
volume de negócios rondar os 110 mil milhões de dólares (Larin, 2020). Do lado russo,
as exportações estão sobretudo relacionadas com o setor da energia, da tecnologia e da
agricultura, enquanto a China se constitui como parceiro relevante no fornecimento de
produtos manufaturados, bem como no setor dos investimentos (Hill, 2021). Em termos
políticos, o alinhamento de Moscovo e Pequim reforça as suas posições em relação à
alteração da ordem internacional, procurando substituir a hegemonia e o unilateralismo
norte-americanos. Militarmente, a Rússia constitui-se como um dos principais parceiros
chineses, dando apoio na formação e na venda de material e tecnologia militar. Em
conjunto com a Índia, os dois Estados recebem cerca de 56% de todas as exportações
do armamento russo (Connolly & Sendstad, 2017: 11). A realização de exercícios
conjuntos entre as Forças Armadas chinesas e russas, como por exemplo nos exercícios
militares da série Vostok (2018), reforçam a proximidade estratégica e operacional.
7
Uma organização política, económica e militar da Eurásia, que foi fundada em 2001, cuja sede se encontra
em Pequim e da qual fazem parte oito Estados (Cazaquistão, China, Índia, Paquistão, Quirguistão, Rússia,
Tajiquistão e Uzbequistão), quatro observadores (Afeganistão, Bielorrússia, Irão e Mongólia), seis parceiros
de diálogo (Arménia, Azerbaijão, Camboja, Nepal, Sri Lanka e Turquia) e três convidados, duas
organizações (ASEAN e CEI) e um Estado (Turquemenistão).
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Para além dos aspetos bilaterais, as relações entre Moscovo e Pequim são também
concretizadas no plano multilateral. Ao nível das NU, existe um alinhamento entre ambos
relativamente ao papel de liderança dos EUA na organização. Em março de 2021, os
ministros dos negócios estrangeiros apelaram a uma reunião entre os membros
permanentes do CSNU, no sentido de discutir os principais focos de turbulência, com o
ministro russo a referir-se à forma destrutiva como os EUA têm atuado em termos
internacionais (Reuters, 2021). No âmbito diplomático, a solidariedade entre Moscovo e
Pequim ficou expressa no silêncio chinês em relação à invasão da Crimeia pela Rússia
(Ismail, 2019). Esta postura tem sido igualmente visível na atual guerra da Ucrânia, pois
para além de Pequim ter recusado o uso do termo «invasão», tem igualmente
enquadrado este conflito enquanto resposta da Rússia às políticas de alargamento da
OTAN para o leste europeu (Liu, 2022). A China absteve-se no Conselho de Segurança
no dia seguinte ao início do conflito da Ucrânia, na resolução que condenava a invasão
(UN, 2022).
No palco ocidental do continente euroasiático, a intervenção russa é sobretudo focada
em espaços de influência tradicionais e cuja proximidade geográfica e desafios
securitários são vistos, em continuidade, por Moscovo com uma grande preocupação.
Para além do apoio político e económico aos Estados parceiros, como forma de limitar a
capacidade de intervenção de outras potências exteriores (RF, 2021: 5, 26), o documento
estratégico russo aponta para as ameaças do alargamento da OTAN e para a construção
de bases militares nas proximidades da Rússia, dos seus aliados e parceiros (RF, 2021:
11). No campo da cooperação ao nível das informações, é com os Estados parceiros que
a ssia se propõe trabalhar, incluindo aqui o uso de tecnologias de informação e de
comunicação (RF, 2021: 23). Ainda em relação a esta prioridade regional, a Rússia
disponibiliza-se para “apoiar os aliados e parceiros (...) nas matérias relacionadas com a
segurança e a defesa, e na neutralização de tentativas de interferência (de atores
externos) nos seus assuntos internos” (RF, 2021: 40).
O espaço pós-soviético (RF, 2021: 42) é, por isso, a região onde são identificados grande
parte dos objetivos vitais russos, em particular no domínio da segurança. Assim,
assumem especial destaque a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia, enquanto zona
tampão (buffer zone) (Toucas, 2017) (Tabachnik, 2019), ou seja, como uma espécie de
“cordão sanitário” em relação ao Ocidente, e, em menor escala, os Estados Bálticos
(Estónia, Letónia e Lituânia), a Polónia, a República Checa, Roménia e a Bulgária. Além
do instrumento militar, a intervenção russa tem ainda como instrumentos o domínio
informacional, através de campanhas de desinformação e de propaganda, usando
inclusivamente os media locais. Esta articulação de instrumentos, civis e militares,
materiais e virtuais, reforçam as capacidades de intervenção híbridas da Rússia em
diversas regiões, em particular no seu “estrangeiro próximo”.
Em termos regionais, a Rússia tem também aproveitado grande parte das oportunidades
geradas pela falta de capacidade e de entendimento das potências ocidentais em atuar
em determinados espaços geográficos, procurando em diversos Estados apoiar fações
opostas às que são suportadas pelas potências ocidentais. Retratando o aumento das
tensões e dos conflitos no espaço pós-soviético, no Médio Oriente, no Norte de África, no
Afeganistão e na península coreana, a ENSR associa esta instabilidade regional alargada
como fonte para o desenvolvimento do terrorismo internacional e das atividades
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extremistas (RF, 2021: 12). A centralidade que estas tipologias de ameaças assumem
na estratégia russa, em termos internos (RF, 2021: 35) e internacionais (RF, 2021: 41),
incluindo os riscos associados ao recurso de armas nucleares, químicas e biológicas por
parte destes atores (RF, 2021:17), procuram dar legitimidade à influência e à intervenção
russa nos espaços onde são identificados esses maiores riscos e ameaças.
A Síria e o Afeganistão constituem dois exemplos da forma como o Kremlin tem orientado
a sua política externa, quer no sentido de “limitar” o terrorismo e as atividades
extremistas, mas igualmente as influências ocidentais. O apoio político, diplomático e
militar ao regime do Presidente Assad tem mantido o líder sírio no poder. O mesmo
acontece em relação ao Afeganistão, em que a retirada do contingente militar americano
e da OTAN tem permitido à Rússia assumir um protagonismo ainda maior na governação
do Estado afegão. A visita dos Taliban a Moscovo, para referir que a sua ascensão ao
poder no Afeganistão não constitui qualquer ameaça à Rússia, é demonstrativa desse
mesmo protagonismo (AP, 2021).
A afirmação da Rússia em espaços onde as potências ocidentais têm procurado alterar o
status quo, maioritariamente através de processos de democratização-europeização,
procura reforçar a identidade russa, em termos internos e internacionais. O ocidente tem
sido, por isso, designado como o “outro” (Maalouf, 2003: 14) (Fukuyama, 2018: 45), ou
seja, o inimigo, para a identificação e reforço do referencial civilizacional. Apesar de não
ser um elemento novo, Vladimir Putin tem, nos últimos anos, usado este fator para
reforçar não só o poder do país, mas igualmente a legitimidade do seu próprio poder. A
sua declaração, três dias antes da invasão da Ucrânia, em relação à inexistência do
Estado e do povo ucraniano, serve esse mesmo objetivo, não de hostilização em
relação ao ocidente, mas em particular de afirmação da identidade russa (Putin, 2022).
3. O pivot geopolítico russo numa ordem mundial policêntrica
Identificamos, acima, que a ESNR considera todas as ações que ponham em causa os
interesses russos. Esta abranncia do conceito alarga, em termos geográficos, o espaço
de atuação da Rússia, procurando obter legitimidade (interna e externamente) para atuar
fora das suas fronteiras físicas. Para além da reconhecida capacidade de Moscovo, em
termos militares (terrestres, aéreas, navais, aeroespaciais e ciber) (IISS, 2021; GFP,
2021) e tecnogicos (Jankowski, 2021), as intervenções russas mais recentes têm sido
suportadas pela perceção russa do seu papel ativo no atual contexto geopolítico global e
nas principais crises e conflitos mundiais, assim como pelas grandes potências, sobretudo
da China e dos EUA. Refira-se, a este propósito, a ação e ascendência russa em África
(Siegl, 2021) e no Médio Oriente (Rumer & Weiss, 2019; Borshchevskaya, et. al, 2021).
Este protagonismo russo no designado “mundo moderno”, que é marcado pelo aumento
das tensões geopolíticas (RF, 2021: 3), é refletido na ENSR através do seu proposto e
ambicionado contributo para a estabilidade e para a segurança do sistema internacional.
Além de se autoidentificar como fundamental para aumentar a previsibilidade nas
relações entre Estados, o documento destaca o papel russo no reforço da confiança e da
segurança mundial (RF, 2021: 38).
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É neste sentido da identificação da Rússia como ator fundamental para a manutenção e
reconfiguração da própria ordem internacional que a ENSR mais se distingue,
reconhecendo não que as potências ocidentais procurarão manter o seu predomínio
internacional, mas também que existe um aumento do número de centros de poder
económico e político. Em razão destas circunstâncias, existem Estados que reforçam o
seu papel em termos reginais e mundiais, procurando inclusivamente alterar a própria
ordem mundial, na sua arquitetura, princípios e valores (RF, 2021: 3). Embora não o
refira de forma explicita, o documento estratégico da Rússia refere a China como a
potência revisionista da nova ordem global, com quem se pretende desenvolver uma
parceria abrangente e uma interação estratégica (RF, 2021: 40).
A posição geográfica favorável russa, enquanto potência eurasiática, permite-lhe obter
vantagens no âmbito da rivalidade estratégica entre os EUA e a China, assumindo-se
como um “pivot” geopolítico dessa mesma relação. Para além dos benefícios económicos,
a ssia procura igualmente, nessa posição de charneira, alcançar os seus próprios
objetivos estratégicos, designadamente o de voltar a ser reconhecida como potência
global. À semelhança do governo chinês (Romana, 2005: 301-309) (Gaspar, 2020: 43)
(Economy, 2022), também a Rússia procura pôr termo à hegemonia americana
contestando dessa forma, tanto em termos normativos como materiais, uma ordem
mundial que já não é dominada de facto pelos EUA.
Apesar da proximidade (política, económica e militar) entre Pequim e Moscovo, existem
áreas de competição estratégica entre os dois regimes. Importa referir que, atualmente,
a China compete em mercados e junto dos parceiros da própria Rússia, e o Kremlin está
ciente desta problemática. O comércio de armamento e as disputas pelos mercados
asiáticos e africanos são apenas um dos reflexos dessa rivalidade, uma vez que ambos
têm ascendência nos mesmos, no caso chinês em franca expansão. Para além das
questões militares, existem ainda outras áreas em que as relações o assombradas,
existindo disputas de fronteiras entre os dois atores, que remontam ao período soviético
8
(Gerson, 2010; Sidorov, 2014). Em termos internacionais, a (re)ascensão da China foi
feita, em boa parte, durante o período de enfraquecimento da Rússia (União Soviética e
década de 90), pelo que existem também, em termos geopolíticos globais, zonas e áreas
disputadas, a exemplo do que acontece nos países da América Central, politicamente
mais próximos de Moscovo (Nicarágua, Venezuela e Cuba), dos países do Norte de África
e no Sul do Cáucaso. Existem discrepâncias entre as duas potências ao nível económico
e de recursos humanos, com a China em plena expansão em termos económicos e com
o um elevado índice de desenvolvimento humano, representando 20% da população em
termos mundiais (WPR, 2022).
Pequim procura, por isso, ultrapassar as restantes potências, incluindo a Rússia, noutros
vetores, em particular nos militares, tecnológicos e nucleares. No âmbito nuclear, a
construção chinesa de mais um campo com 120 silos nucleares, na província de Gansu,
localizado a certa de 350 quilómetros de um outro no Leste de Xinjiang constituem tanto
8
Para além das questões económicas, um dos motivos principais que levou a Federação Russa a procurar a
sua integração nas instituições ocidentais, logo após a implosão da União Soviética foi, tal como nos refere
Trenin (2001: 93), o receio de uma eventual expansão chinesa para o interior das suas fronteiras.
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uma ameaça para o território americano, como para todo o território russo (Korda &
Kristensen, 2021).
Consciente dos “perigos” chineses, além de procurar a integração da China em diferentes
fóruns multilaterais, por exemplo na CEI, Putin procura igualmente contrabalançar o
poder regional da China através da aproximação (discreta) ao ocidente. Desse modo, ao
mesmo tempo que percebe a importância que a Rússia tem para a China, na alteração
da ordem internacional e hegemonia norte-americana, a diplomacia russa tem entendido
igualmente o seu valor para as potências ocidentais em relação à ameaça chinesa, em
termos globais. Moscovo procura assim assumir-se como Pivot geopolíticos entres estes
dois atores, valorizar tanto a parceria alargada e a interação estratégica com Pequim
(RF, 2021: 40), como também a manutenção das relações com as potências ocidentais,
em particular com os EUA.
É neste sentido de maior consciencialização do fator China, que se entende o reforço do
diálogo entre russos e norte-americanos. Em maio 2021, a nova administração norte-
americana, liderada por Joe Biden, levantou as sanções impostas à empresa “The
Executive”, que é a principal responvel pela construção do gasoduto Nord Stream 2. O
projeto tem criado muitas tensões entre a UE e os EUA, pelo facto de aumentar, ainda
mais, as depenncias energéticas (e políticas) da UE em relação à Rússia.
Apesar de publicamente os líderes russo e norte americano manterem alguns pontos de
discórdia (BBC News, 2021), ambos deram nota de alguns progressos nas relações, de
modo a garantir “a estabilidade estratégica”, e estabelecer um “diálogo bilateral de
estabilidade estratégico” (Biden, 2021), procurando reforçar os canais diplomáticos e
militares entre os dois Estados. Foram, ainda, dados passos de entendimento sobre as
questões da cibersegurança e dos conflitos da Síria, do Afeganistão e da Ucrânia.
O entendimento que a Rússia faz relativamente à sua relevância geopolítica e
geoestratégia para as aspirações ocidentais de conter a China, reforça o seu estatuto de
potência mundial, reconhecida publicamente pelo Presidente Biden
9
numa conferência de
imprensa após um encontro com Putin (Biden, 2021). Esta consciência ocidental, permite
ao Kremlin obter uma maior tolerância em relação às ões promovidas maioritariamente
no seu estrangeiro próximo, e aumentar a sua margem de negociação em relação aos
seus interesses vitais, de que é exemplo mais recente a procura de Moscovo em “fechar”
a questão ucraniana, através da garantia, por tratado, de que a Ucrânia não integrará a
OTAN.
O papel de pivot geopolítico mundial, pretende, por um lado, obter benefícios económicos
e políticos, relativamente a espaços de interesse russo que envolvem os dois principais
atores internacionais (EUA e China), e, por outro, mitigar as ameaças que ambos os lados
podem representar para a Rússia, explorando as suas fragilidades em diversos níveis:
económico, social, político e securitárias. O atual conflito da Ucrânia veio expor as
dinâmicas das relações entre a Rússia, a China e os países ocidentais liderados pelos
EUA. Nos conflitos com o ocidente, por parte de Pequim ou de Moscovo, em relação a
9
Ao contrário do anterior presidente norte americano, Barack Obama, que se referiu à Rússia, em 2014,
como uma potência regional (The Guardian, 2014). Este aspeto é de grande importância para a análise da
evolução da relação entre os EUA e a Rússia, na medida em que Biden era, na altura, Vice-Presidente.
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espaços ou áreas de influência, existe uma “neutralidade colaborante” (Costa, 2022) do
ator não diretamente envolvido, expandindo, dessa forma, o seu próprio protagonismo
internacional. Embora de forma cautelosa, tendo em conta as relações comerciais que
tem com as potências ocidentais, na crise da Ucrânia, a China tem procurando não deixar
totalmente isolada a Rússia. Esta consciência partilhada entre russos e chineses de
manterem uma proximidade estratégica, para confrontar as potências ocidentais, é válida
sobretudo nos respetivos espaços de interesse e quando americanos e europeus
procuram ganhar maior protagonismo e limitar a sua própria influência em termos
regionais e internacionais.
Conclusão
A nova ENSR é, em termos substanciais, a formulação do dilema russo de segurança
tanto em termos de interpretação como de resposta (Booth e Wheeler, 2007). Muito
vocacionada para a transformação da ordem mundial, decorrente das alterações do
Sistema Internacional, no âmbito do qual as potências procuram reforçar as suas
posições na estrutura global, prevê cada vez mais o recurso ao instrumento militar como
forma de garantir e impor os interesses nacionais, e que se refletem em diferentes
domínios e espaços regionais.
Moscovo procura assumir-se como pivot geopolítico global, tirando partido da
proximidade diplomática e geográfica com a China, e obtendo com isso dividendos
económicos, relacionados, em grande medida, com o fornecimento de energia
(hidrocarbonetos), os quais apoiam a sua economia e consequentemente o seu
desenvolvimento tecnogico, um dos vetores mais relevantes do poder russo. Em
contexto de crescente isolamento da Rússia desde fevereiro 2022 e na perspetiva da UE
conseguir redirecionar o seu mercado energético, a relevância da China ficou ampliada.
Apesar da preponderância do antiocidentalismo, o Kremlin está consciente do seu papel
nas relações entre Pequim e as potências ocidentais, em particular com os EUA,
identificando-se nessa mesma relação como um ator chave em termos geopolíticos. O
papel assumido pela Rússia nesse âmbito aumentou a sua capacidade de negociação”
em relação ao espaço geográfico considerado por ela de interesse vital, em particular do
seu “estrangeiro próximo”. A postura diplomática das potências ocidentais face à
“belicosidade” russa nas semanas de crise que antecederam a guerra na Ucrânia
confirmava essa margem.
Esta centralidade russa reforça os seus instrumentos de poder enquanto potência global,
e que são materializados em termos políticos através do seu peso no CSNU, e, em termos
militares, através das questões nucleares e do desenvolvimento nuclear. Podemos, por
isso, argumentar que a ENSR parte do centro para o exterior - não apenas porque
interliga os aspetos de política externa com os assuntos de política interna e da
legitimidade do governo aos olhos da população russa - mas sobretudo porque a projeção
de poder em termos regionais, em particular junto às suas fronteiras, reforça as
intenções russas de se constituir como potência global, na “nova” ordem que a Rússia (a
par da China) procuram forjar. No entanto, os efeitos globais da ofensiva militar contra
a Ucrânia questionam a afirmação desejada pelo Kremlin, ao ponto de se tornar num
eventual Estado paria.
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A ENSR constituiu-se como um roteiro para a anunciada “nova” ordem internacional, no
seio da qual a Rússia procura salvaguardar os seus diversos interesses, ajustando as
suas capacidades ao seu peso no contexto geopolítico internacional, enquanto potência
à escala global. A decisão de invadir a Ucrânia está, assim, em consonância com as
perceções de ameaça e a centralidade do recurso ao braço militar. A resposta ocidental
à invasão do país, centrada no isolamento de Moscovo, assim como a adesão dos atores
privados a esta postura, trazem sérias dúvidas sobre a materialização dos objetivos
russos de ser um novo centro de poder numa relação de conivência com atores como a
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e-ISSN: 1647-7251
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PROTEÇÃO DOS PROCESSOS DEMOCRÁTICOS E DOS ATOS ELEITORAIS
CONTRA MEDIDAS ATIVAS DIGITAIS RUSSAS: 2016 COMO ANO DE
REFERÊNCIA
RICARDO SILVESTRE
ricsilvestre@hotmail.com
Doutor em Filosofia pela Universidade de Connecticut, com major em fisiologia humana, e um
mestrado em Relações Internacionais pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia
de Lisboa, com enfoque no futuro do debate político online. International Officer do think tank
Movimento Liberal Social (Portugal). Coordenador de projetos de comunicação política com o
European Liberal Forum, o think tank do Partido Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa
no Parlamento Europeu. Os seus principais interesses na área da investigação política são: o
futuro da democracia, soluções digitais para problemas societais, e a transição e independência
energética da União Europeia com a respetiva diminuição do dilema segurança para com países
autoritários e iliberais.
Resumo
A Rússia tem sido acusada de forma credível de tentar enfraquecer as democracias liberais
ocidentais com o uso de meios digitais. Peritos em cibersegurança, agências de informação e
segurança, jornalistas de investigação e serviços governamentais, detalharam as ações do
Kremlin no acesso ilegal a infraestruturas digitais, divulgando conteúdos roubados online, e
influenciando o debate político sobre plataformas digitais para criar discórdia e polarização.
Estas iniciativas estão incluídas numa estratégia mais ampla de alteração do equilíbrio de
poder na ordem internacional através das chamadas "medidas ativas". Duas das mais
consequentes aplicações recentes deste tipo de medidas tiveram lugar em 2016, nas Eleições
Presidenciais dos Estados Unidos e no Referendo Brexit. Relatórios tornados públicos com as
avaliações dos erros cometidos pelos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido mostram
que houve uma proteção insuficiente desses dois processos cruciais de consulta pública. Os
erros cometidos por estes países na proteção da democracia contra agentes hostis com um
elevado nível de proficiência digital, devem ser um ponto de interesse, e de urgência, para a
União Europeia. É de esperar que este tipo de operação de influência continue, e se torne
mais sofisticada, uma vez que podem visar eleições nos Estados-Membros da União, mas
também para o Parlamento Europeu. A deteção precoce, a aplicação de contramedidas e a
partilha de informação com os eleitores deste tipo de ataques por agências estrangeiras é um
importante mecanismo de defesa que precisa de ser reforçado e expandido.
Palavras-chave
Democracia; agências de informação e segurança; plataformas digitais; Federação Russa;
União Europeia
Como citar este artigo
Silvestre, Ricardo (2022). Proteção dos processos democráticos e dos atos eleitorais contra
medidas ativas digitais russas: 2016 como ano de referência. In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.2
Artigo recebido em 11 Maio 2021 e aceite para publicação em 3 Março 2022
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 20-36
Proteção dos processos democráticos e dos atos eleitorais contra medidas ativas digitais russas:
2016 como ano de referência
Ricardo Silvestre
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PROTEÇÃO DOS PROCESSOS DEMOCRÁTICOS E DOS ATOS
ELEITORAIS CONTRA MEDIDAS ATIVAS DIGITAIS RUSSAS:
2016 COMO ANO DE REFERÊNCIA
1
RICARDO SILVESTRE
Introdução
O Kremlin tem tentado enfraquecer as democracias liberais ocidentais consideradas pelo
regime, e pelo Presidente Putin, como ameaças à Federação Russa
2
. Peritos em
cibersegurança, agências de informação e segurança, órgãos legislativos e jornalistas de
investigação, detalharam algumas das iniciativas de Moscovo para se imiscuírem nos
processos democráticos. Exemplos incluem a Geórgia, Estónia, Lituânia, Ucrânia,
Holanda, França, Alemanha (Ténis, 2020). O comportamento russo, visto através da
teoria dos "quatro mundos" de Robert Jervis, tem uma lógica interna: a preferência por
ações ofensivas para inclinar o equilíbrio de poder na ordem internacional (Jervis, 1978).
Além disso, a decisão de não assumir posturas defensivas pode ser vista como uma
resposta às perceções políticas e sociais das ameaças vindas das fronteiras para o
Ocidente (Rato, 2018). Tais preocupações conduzem a uma maximização do poder, em
vez de cooperação (Baylis, Smith & Owens, 2019). Num sistema internacional anárquico,
os Estados procuram a sua sobrevivência através do enfraquecimento dos adversários.
Um exemplo é a criação de ações disruptoras nesses países (Mearsheimer, 2001). Uma
destas disrupções é atingir os sistemas democráticos, eleições e organizações, com
ferramentas digitais. Uma análise dos incidentes cibernéticos entre 2014 e 2018 (Galante
& Ee, 2018) mostra que estes podem ser: exploração de infraestruturas através do
acesso a redes informáticas com recolha ou alteração de dados; manipulação do
recenseamento eleitoral, alteração da contagem dos votos ou dos votos expressos a fim
de causar desconfiança nos resultados eleitorais; divulgação de informação obtida
ilegalmente com materiais comprometedores para políticos ou partidos políticos; "frentes
falsas" com perfis falsos de indivíduos e grupos, principalmente em redes sociais, com a
intenção de provocar polarização; amplificação da dissensão com operações abertas ou
encobertas; produção e difusão de informações falsas e desinformação.
Duas das ações mais consequentes, e mesmo impressionantes, da Rússia no interferir
nos processos democráticos tiveram lugar durante 2016, nas eleições presidenciais dos
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
2
Para melhor compreender as motivações do Presidente Putin sugere-se a leitura de "The Man Without a
Face: The unlikely rise of Vladimir Putin", de Masha Gessen.
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2016 como ano de referência
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Estados Unidos e no Referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia.
Voltando às teorias de Jervis e Mearsheimer, estas ações podem ser vistas como
resultantes de um cálculo do Kremlin dos riscos e benefícios das referidas ações. Os
riscos era um maior antagonismo pela comunidade internacional, com a possibilidade de
sanções e respostas proporcionais. Quanto aos benefícios, contribuir para o colapso de
um bloco económico e político vizinho, e ajudar a derrotar um candidato a Presidente dos
Estados Unidos que se opunha manifestamente ao regime de Moscovo em favor de outro
claramente mais amistoso, se o ansioso por aceitar as intenções do Presidente russo.
Os resultados foram obviamente positivos para o Kremlin. O Reino Unido deixou a União
Europeia, com divisões internas que podem levar à desagregação do Reino. Nos Estados
Unidos, a administração Trump alienou aliados, tentou diminuir a importância da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ameaçando mesmo a saída da
América da organização, privilegiou os interesses russos no Médio Oriente e colocou os
Estados Unidos em "guerras" económicas e diplomáticas, que diminuíram o estatuto do
país na comunidade internacional. A União Europeia foi também um alvo destas ões
em alguns dos seus Estados-Membros, que levaram à implementação de medidas para
combater a desinformação, as notícias falsas, os ciberataques, as operações de disrupção
e polarização. O Vice-Presidente da Comissão Europeia para o Mercado Único Digital
afirmou em 2019 que "temos de proteger as nossas eleições livres e justas. Esta é a
pedra angular da nossa democracia. Para assegurar os nossos processos democráticos
contra manipulações ou atividades cibernéticas maliciosas por parte de interesses
privados ou de países terceiros” (ENISA, 2019).
Objetivos e métodos de investigação
O objetivo deste documento é produzir um corpo sistematizado de conhecimento,
descrevendo como as medidas ativas digitais estão a ser implantados nas democracias
liberais ocidentais com a intenção de causar discórdia, e disrupção. Do mesmo modo,
serão propostas soluções sobre como melhor combater estas ameaças. A metodologia
utilizada é uma estratégia de investigação qualitativa, com a recolha de informação com
o objetivo de desenvolver um significado associado às referidas atividades e respostas
(Unikaitė-Jakuntavičienė & Rakutienė, 2013). Esta estratégia permite a criação de uma
narrativa construtivista, que visa desenvolver uma teoria de forma dedutiva, começando
com factos específicos, observação empírica, e avançando para uma generalização
teórica dos factos relacionados com a teoria. Do mesmo modo, será aplicada uma
investigação científica qualitativa, com a análise do comportamento dos diferentes
agentes envolvidos na construção da teoria, bem como dos valores, crenças e emoções.
Isto será feito através da observação, análise de discursos, documentos e opiniões de
organizações governamentais e da sociedade civil e artigos noticiosos. A lógica da
investigação é assim indutiva, com um ponto de partida de conhecimento da realidade,
conceitos flexíveis e generalizações analíticas com a ajuda de exemplos (Unikai-
Jakuntavičienė & Rakutienė, 2013).
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Revisão da literatura
A Federação Russa e as "medidas ativas”
O termo medidas ativas foi desenvolvido na União Soviética, a partir dos anos 50, para
caracterizar operações secretas e subversivas de influência política que são facilmente
refutáveis. Podem variar desde a criação de organizações de fachada, apoio a grupos
políticos pró-russos e a disseminação da desinformação (Galeotti, 2019). Em 1982, o
então líder do Comité de Segurança do Estado (KGB), Yuri Andropov, fez das medidas
ativas uma das principais formas de intervenção do Kremlin durante a Guerra Fria
(Andrew & Mitrokhin, 2006: 316). A utilização destas medidas abrandou quando a União
Soviética mudou a sua abordagem à comunidade internacional, primeiro liderada por
Gorbachev, e depois por Ieltsin, com tentativas de ter uma relação mais estreita com o
Ocidente. Com a perda de influência da Rússia e com a ascensão de Vladimir Putin ao
poder, Moscovo regressou às hostilidades com países, e blocos de países, que promovem
os valores liberais e democráticos. Estes valores podem então chegar à Rússia e aos
países situados nas suas fronteiras. Este foi o caso dos protestos de 2012 na Rússia por
eleições livres, que Putin explicou como uma operação de influência americana (Crowley
& Ioffe, 2016), ou no caso das "revoluções coloridas" nas suas fronteiras (Stewart, 2009).
A esta preocupação juntam-se as debilitantes sanções económicas para os setores
primários da economia russa, o bloqueio à venda de armas e materiais relacionados, o
congelamento de ativos económicos e a aquisição de equipamento para a indústria
petrolífera (Krausse, 2018). E depois há a OTAN, e em particular o Artigo 5º da carta da
organização, onde um ataque a um dos membros é um ataque a todos (OTAN, 1949).
Isto provoca uma perspetiva atraente para os países que a Rússia pensa como parte da
sua esfera de influência. Todos estes fatores aumentam a perceção por Putin de um cerco
à sua volta (Rato, 2018).
Com a diminuição das expetativas de compreensão Leste-Oeste, Moscovo voltou ao
conjunto de ações conhecidas, juntando-se às recentes levadas a cabo nos países
"estrangeiro próximo" (Galeotti, 2019). Recentemente, em 2013, o General Valery
Gerasimov, Chefe do Estado-Maior do Exército russo, defendeu a utilização de "métodos
indiretos e assimétricos" para criar influência política (Bartles, 2016: 33). Isto inclui
alterar o equilíbrio de poder nos países adversários (Bartles, 2016: 34), e o apoio dos
partidos políticos que defendem uma relação amigável com Moscovo, como observado
em Itália e na Alemanha (Apuzzo & Satarino, 2019), e em França (Turchi, 2017). É
também atribuída a Gerasimov a proposta de que as táticas desenvolvidas durante o
tempo da União Soviética deveriam ser atualizadas e incluídas no pensamento militar
estratégico, para uma "nova teoria da guerra moderna - uma teoria que se assemelha
mais a invadir a sociedade de um inimigo do que a atacá-la de frente" (McKew, 2017).
As medidas estratégicas defendidas pelo General incluem combinações de ões
tecnológicas, informativas, diplomáticas e militares (Galeotti, 2013). Em setembro de
2014, o General Philip Breedlove, durante uma reunião da OTAN, advertiu que a Rússia
estava envolvida na "mais espantosa guerra de informação que alguma vez vimos na
história da guerra de informação" (Vandiver, 2014).
Entre as principais organizações russas, em termos de criação e aplicação de medidas
ativas de intrusão nos processos democráticos dos países estrangeiros, destacam-se as
agências de informação e segurança. Os exemplos mais conhecidos são: a Direção
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Proteção dos processos democráticos e dos atos eleitorais contra medidas ativas digitais russas:
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Central do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa, ou GRU;
Serviço Federal de Segurança da Federação Russa, ou FSB
3
; e o Serviço de Informações
Externas da Federação Russa, ou SVR
4
. O aparelho administrativo do Kremlin caracteriza-
se por ser um sistema "o institucionalizado" com um elevado nível de coordenação
entre agências para a aplicação de medidas ativas (Galeotti, 2017). Em seguida,
reportam diretamente ao Kremlin e/ou ao Presidente Putin (DNI, 2017). A partir daí, são
identificadas três formas conhecidas de interferência nas eleições: dirigidas pelo Estado
com ações realizadas por operativos na sua qualidade de representantes do regime;
encorajados pelo Estado, onde os operacionais não o diretamente responsáveis por
iniciar medidas ativas, mas quem quer que seja responsável fá-lo com o conhecimento
de que será bem recebido pela liderança; e aqueles alinhados com o Estado, onde
indivíduos e/ou organizações atuam para a promoção das políticas do regime (Galante &
Ee, 2018). Como extensão das agências de informação e segurança existem também
instituições privadas, sob o controlo de oligarcas na órbita de Putin, que atuam para fazer
avançar narrativas pró-russas, criando polarização na opinião pública dos países visados.
É o caso da Internet Research Agency (IRA), com sede em São Petersburgo, que será
apresentada detalhadamente mais à frente. Estas diferentes "frentes de ataque" criam
um "tecido conjuntivo" de organizações que trabalham para o mesmo objetivo (Watts,
2018), no modelo de guerra moderna o convencional sugerido por Gerasimov. Este
tipo de ações, as suas origens e aplicações, têm sido descritas extensivamente em
relatórios tornados públicos por agências ocidentais de informação e segurança. Alguns
destes exemplos serão agora apresentados.
O referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia
Antes do referendo de 2014 sobre o futuro das relações entre o Reino Unido e a União
Europeia (Brexit), realizou-se outro referendo sobre a possível independência da Escócia
em relação ao Reino Unido. Nesse processo democrático, foram detetados agentes
sediados na Rússia a intrometer-se na consulta pública (Carrell, 2017). Através do
Twitter, Facebook e YouTube, contas falsas espalham alegações de interferência no
referendo para reforçar a manutenção da Escócia na União. Apesar da ausência de uma
ligação direta a Moscovo, "relatos p-Kremlin reforçaram comprovadamente essas
acusações. A raiva e desilusão sentida por muitos eleitores "sim" [foi] alimentada por
trolls pró-Kremlin, de uma forma característica das operações de influência russa"
(Carrell, 2017). A perspetiva de uma dessegregação do Reino Unido corresponde aos
objetivos do Kremlin de desestabilização do bloco ocidental de países, e um
enfraquecimento dos adversários tanto na arena militar como política. A saída da Escócia
do Reino Unido representa um desafio à segurança nacional e a capacidade económica
para todos os países envolvidos. Uma diminuição da posição da Grã-Bretanha no mundo
leva a negócios comerciais menos vantajosos, uma vez que a Escócia representa um
terço da massa terrestre e cerca de 8% dos consumidores. Do mesmo modo, uma
desagregação do Reino levaria a questões militares. Uma saída da Escócia da União
poderia "desarmar unilateralmente o Reino Unido da sua dissuasão nuclear", uma vez
que essas defesas estão " atualmente localizadas em Faslane e Coulport, mas um
3
Federal'naya sluzhba bezopasnosti, no original.
4
Sluzhba Vneshney Razvedki, no original.
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governo SNP independente exigiria a sua remoção da Escócia” (Daisley, 2020). Deve
acrescentar-se que Nicola Sturgeon, que assumiu a posição de Primeiro-ministro após o
referendo, negou que tais influências tivessem existido na consulta pública, e a Comissão
Eleitoral, que como autoridade para a realização de eleições e referendos, garantiu que
não tinha encontrado provas de fraude. O mesmo foi assegurado, após o referendo do
Brexit, pelo Gabinete da Primeira-ministra Theresa May, assegurando que não havia
provas para apoiar a conclusão de que o referendo no Reino Unido e a relação com a
União Europeia tinha sido alvo de interferência de governos estrangeiros (Syal, 2017).
No entanto, provas de que o Governo de Sua Majestade poderia ter subestimado, ou
pior, minimizado possíveis medidas ativas durante o referendo de Brexit, suscitaram o
pedido de uma avaliação das ões empreendidas pelas instituições responsáveis pela
proteção da democracia no Reino. Após o que foi considerado um atraso excessivo para
a publicação da avaliação, e acusações de tentativas de minimizar a importância do seu
conteúdo pelo Gabinete do Primeiro-ministro Boris Johnson (Murphy, 2020), a Comissão
de Informação e Segurança do Parlamento publicou o relatório intitulado "Rússia" (ISCP,
2020). Esta Comissão supervisiona a atividade das agências de informação e segurança;
os Serviços de Segurança (MI5), o Serviço Secreto de Informação e Segurança (MI6) e
a Sede de Comunicações do Governo, ou GCHQ. Uma das justificações para a produção
do relatório afirma que "tem sido credível a informação pública sugerindo que a Rússia
empreendeu campanhas de influência em relação ao referendo sobre a independência da
Escócia em 2014" (ISCP, 2020: 13). Relativamente ao referendo na relação entre o Reino
Unido e a União Europeia, "as provas escritas que nos foram fornecidas pareciam sugerir
que HMG [o Governo de Sua Majestade] não tinha visto ou procurado provas de
interferência bem-sucedida nos processos democráticos do Reino Unido ou de qualquer
atividade que tivesse tido um impacto material sobre uma eleição, por exemplo,
influenciando os resultados" (ISCP, 2020: 13). Indo mais longe, a Comissão afirma que
"não nos foi fornecida qualquer avaliação pós-referendo das tentativas de interferência
russas. Esta situação contrasta fortemente com o tratamento dado pelos EUA às
alegações de interferências russas nas eleições presidenciais de 2016" (ISCP, 2020: 14).
A Comissão determinou que o Governo de Sua Majestade subestimou seriamente a
ameaça russa e negligenciou as contramedidas, não protegendo, portanto, o processo
referendário (ISCP, 2020a).
No relatório é descrito que a Federação Russa tende a ver a política externa como uma
"soma zero", onde cada ação prejudicial para o Ocidente é favorável a Moscovo. Isto
resulta de uma apreciação "alimentada pela paranoia, acreditando que instituições
ocidentais como a OTAN e a UE têm uma postura muito mais agressiva em relação
Rússia] do que na realidade têm" (ISCP, 2020: 1). O centro de decisão "está concentrado
em Putin e num pequeno grupo de consultores de confiança (muitos dos quais partilham
o passado de Putin nos RIS [serviços de informação russos])" (ISCP, 2020: 29) fazendo
com que essas decisões tenham uma aplicabilidade e flexibilidade que as organizações
ocidentais não podem igualar. Principalmente, e tal como avaliado pelo GCHQ, a ssia
tem uma elevada capacidade na área digital e é capaz de realizar operações cibernéticas
com uma vasta gama de impactos em vários setores da sociedade.
Desde 2014, a Federação Russa tem "levado a cabo atividades cibernéticas maliciosas a
fim de se afirmar agressivamente em várias esferas, incluindo a tentativa de influenciar
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as eleições democráticas de outros países (…) A GCHQ também aconselhou que os
agentes do GRU russo orquestraram tentativas de phishing
5
contra departamentos
governamentais” (ISCP, 2020: 5), algo que foi observado no Reino Unido, na Alemanha
e nos Países Baixos (Silvestre, 2019). De facto, no dia 3 de outubro de 2018, o Ministro
dos Negócios Estrangeiros, na altura liderado por Jeremy Hunt do Partido Conservador,
anunciou publicamente que o Reino Unido e os seus aliados tinham identificado uma
campanha do GRU que é "imprudente e indiscriminada: eles tentam minar e interferir
nas eleições noutros países” (NCSC, 2018).
Relativamente às propostas para combater as ameaças observadas durante o referendo,
a Comissão Parlamentar expressou que o "extremo cuidado" das agências de informação
para se envolverem em processos democráticos é "ilógico”. A interferência em atos
eleitorais por países hostis deve ser vista como uma prioridade em relação à proteção do
Estado e que esta deve ser da responsabilidade das agências de informação e segurança
(em particular, o MI5) (ISCP, 2020: 11). Outra recomendação importante no relatório é
que o Governo deve estabelecer protocolos com plataformas de meios de comunicação
social para assegurar que detetam medidas ativas por parte de atores hostis, com um
tempo claramente definido para a remoção de tais conteúdos. Como recomendações
legislativas, a Comissão Digital, Cultura, Meios de Comunicação Social e Desporto pediu
ao Governo para avaliar se a legislação atual para proteger os processos eleitorais da
influência maligna é suficiente, e que "a legislação deve estar em conformidade com os
últimos desenvolvimentos tecnogicos" (DCMS, 2019: 71). Propõem também que a
Comissão Eleitoral tenha o poder de "intervir ou impedir alguém que aja ilegalmente
numa campanha se viver fora do Reino Unido” (DCMS, 2019).
As eleições para a Presidência Americana
Em fevereiro de 2018, o então Conselheiro Especial Robert Mueller entregou provas de
facto a um grande júri federal no Distrito de Columbia, o que resultou na acusação de
treze indivíduos russos e três organizações russas por interferirem nas eleições
presidenciais americanas de 2016 (USDJ, 2018). A acusação mostra o alcance e a
natureza sistemática dos ataques que começaram em 2014. Particularmente ativa foi a
empresa Internet Research Agency (IRA), com as suas explorações de troll
6
. Ao roubar
identidades americanas, criar relatos falsos em plataformas de meios de comunicação
social, e disseminar conteúdos inflamatórios, tanto raciais como sociais, o IRA tentou
causar disrupção e polarização política. As operações desta empresa não se limitaram a
ações remotas a partir de São Petersburgo, mas também em cooperação com os
membros da campanha Trump "no terreno (USDJ, 2018: 4). Utilizando perfis falsos no
Facebook e Twitter, os membros do IRA organizaram comícios e reuniões nos Estados
Unidos, através da sedes locais da campanha, e compraram anúncios online para
promove-los (USDJ, 2018: 21-28).
5
O ato de phishing é o envio de e-mails fraudulentos para induzir os utilizadores a partilhar dados pessoais,
tais como palavras-passe.
6
Uma exploração troll é um grupo de utilizadores da Internet que pretende interferir na discussão política
online com propósitos (na sua maioria) nefastos.
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Tal como o Conselheiro Especial Mueller, a Comissão Especial do Senado dos EUA sobre
Informação e Segurança e Segurança também foi clara nas suas conclusões: Os agentes
russos, através do IRA, utilizaram plataformas de meios de comunicação social digitais
para conduzir campanhas de guerra informativas, difundindo a desinformação e criando
divisões nos Estados Unidos (SSCI, 2019: 3). Estas campanhas foram realizadas sob a
direção do Kremlin, e com o objetivo de reduzir as chances de sucesso da candidata
Hillary Clinton em favor do candidato Trump (SSCI, 2019: 4), uma vez que a primeira
foi vista como mais hostil aos interesses russos (SSCI, 2019: 6). Embora Moscovo rejeite
as conclusões do Senado americano, o proprietário do IRA, Yevgeniy Prigozhin, tem
ligações diretas com o Presidente Putin, o que aponta para uma " direção, apoio e
autorização significativa do Kremlin nas operações e objetivos do IRA" (SSCI, 2019: 5).
Tal como o IRA, o GRU também foi acusado de explorar plataformas de comunicação
social para difundir informações obtidas ilegalmente. Isto foi feito através da divulgação
de e-mails da campanha Clinton, informação que foi obtida pelas Unidades 26165 e
74455 dentro do GRU (USDJ, 2018a). De facto, o Conselheiro Especial Mueller acusou o
Coronel Aleksandr Osadchuk, comandante da Unidade 74455, por ajudar "na divulgação
de documentos roubados através do DCLeaks e do Guccifer 2.0 personas, na promoção
dessas divulgações e na publicação de conteúdo anti-Clinton em contas de meios de
comunicação social operadas pelo GRU" (USDJ, 2018a: 5). Numa declaração conjunta do
Department of Homeland Security e Director of National Intelligence (DHS, 2016) foi
anunciado que a comunidade de informação e segurança americana estava confiante de
que o governo russo tinha interferido nas eleições, através do uso indevido de e-mails
obtidos ilegalmente de organizações políticas americanas. Para o efeito, recorreram à
ajuda de organizações externas, principalmente o WikiLeaks e o Guccifer 2.0, sendo a
segunda uma outra frente dos serviços secretos militares russos (Sanger & Schmitt,
2016). As agências de informação e segurança americanas que contribuíram para esta
investigação incluíram o Federal Bureau of Investigation (FBI), a Central Intelligence
Agency (CIA) e a National Security Agency (NSA). Naturalmente, o grau de confiança
entre as agências nos resultados dos processos analíticos não foi uniforme. Contudo, a
maioria das conclusões são apresentadas com um "elevado grau de confiança" (DNI,
2017).
Relativamente à utilização de plataformas de comunicação social por agentes russos, o
Facebook confirmou à Comissão Especial que a atividade atribuível ao grupo Fancy Bear
(Unidade 26165 do GRU) foi observada (Graff, 2018). Tal como o IRA, Fancy Bear
também criou perfis falsos na plataforma e através da organização DCLeaks para
distribuir a informação obtida ilegalmente a jornalistas (Stretch, 2018). No relatório
minoritário de 2017 da Comissão de Seleção Permanente de Informação e Segurança da
Casa dos Representantes dos EUA (elaborado por membros do Partido Democrata), com
os resultados de uma investigação no Facebook sobre a disrupção e polarização nas
eleições de 2016, as ações do IRA incluíram a compra de 3.393 anúncios políticos, e a
criação de 470 páginas no Facebook que atingiram 126 milhões de utilizadores (HSCI,
2017). Na outra plataforma "gigante" de comunicação social ondeum debate político
dinâmico, Twitter, entre 1 de setembro e 15 de novembro de 2016, mais de 36.000
tweets sobre as eleições presidenciais foram gerados por bots
7
ligados às contas russas.
7
Um bot é um programa autónomo que interage com sistemas e utilizadores digitais.
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Estes tweets geraram cerca de 228 milhões de interações
8
. Além disso, mais de 130.000
tweets eram de contas diretamente ligadas ao IRA (HSCI, 2017).
As medidas ativas implementadas pela Rússia não são um fenómeno recente. O KGB foi
responsável pela autoria e divulgação de histórias falsas, bem como de cartas
fraudulentas, visando os presidentes John Kennedy e Ronald Reagan, e o ativista Martin
Luther King, Jr. (SSCI, 2019: 11). Contudo, nas eleições de 2016, este tipo de ação foi
aperfeiçoado através da utilização de plataformas de comunicação social, com especial
incidência na supressão do voto, especialmente da comunidade negra (SSCI, 2019: 39),
promovendo narrativas políticas, nomeadamente, para atrair os seguidores do senador
Bernie Sanders (Timberg & Harris, 2018); e visando a coligação que apoiava o Secretário
de Estado Clinton (Kim, 2018).
Proteger a democracia na União Europeia contra ciberataques digitais
Nos relatórios apresentados acima, existe a preocupação de como proteger os processos
democráticos e atos eleitorais de medidas ativas por parte de agências de informação de
países hostis. Na era digital, e de acordo com a máxima de Thomas Jefferson que "a
vigilância eterna é o preço da liberdade" (TJM, 2020), compete à União Europeia não
subestimar o que aconteceu nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os Estados-Membros
da União Europeia, juntamente com o Parlamento Europeu e a Agência Europeia para a
Segurança Cibernética (ENISA), organizaram um exercício em 2019 para "testar a
resposta da UE e os planos de crise para potenciais incidentes de cibersegurança que
afetem as eleições da UE" (ENISA, 2019). Este exercício visava aumentar a cooperação
entre as autoridades nacionais nas áreas da cibersegurança, proteção de dados e
cibercriminalidade. Além de trabalhar "no terreno", a ENISA também produz documentos
práticos para garantir a segurança nos processos eleitorais. Para a Comissão Europeia,
os objetivos são a proteção dos sistemas democráticos nos Estados-Membros, mas
também a salvaguarda dos valores europeus (Comissão Europeia, 2020). um conjunto
de instrumentos que existem com objetivos semelhantes, incluindo o Plano de Ação
Contra a Desinformação
9
, o Plano de Ação para a Democracia Europeia
10
, a rede europeia
de cooperação em matéria eleitoral
11
, o Compêndio sobre Segurança Cibernética da
Tecnologia Eleitoral
12
, a Lei de Cibersegurança da UE
13
, a Diretiva revista sobre a
segurança das redes e dos sistemas de informação (NIS2)
14
, assim como instrumentos
para combater as ameaças híbridas e aumentar a cibersegurança
15
.
8
As interações incluem ações de utilizadores como retoques, respostas, seguimentos, inclusão de hashtags
e expansão de tweets.
9
https://ec.europa.eu/info/publications/action-plan-disinformation-commission-contribution-european-
council-13-14-december-2018_en.
10
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_2250.
11
https://ec.europa.eu/info/policies/justice-and-fundamental-rights/eu-citizenship/electoral-
rights/european-cooperation-network-elections_en.
12
https://www.ria.ee/sites/default/files/content-
editors/kuberturve/cyber_security_of_election_technology.pdf.
13
https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/cybersecurity-act.
14
https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/revised-directive-security-network-and-information-
systems-nis2.
15
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_17_3193.
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Contudo, existe uma ausência visível nos sistemas de proteção na União Europeia, seja
por inação, seja por falta de comunicação com os cidadãos da União: qual é a capacidade
de recolher informações e analisar ameaças aos processos democráticos por parte de
agências de informação hostis? Isto aplica-se tanto nas eleições em que os Estados-
Membros (se acordado), como nas eleições para o Parlamento Europeu. Atualmente,
existe o Centro de Informação e Situação da UE (INTCEN)
16
que tem a missão de criar
alertas atempados para ameaças, e avaliar ameaças nas áreas da segurança, defesa e
contraterrorismo. Este trabalho é realizado através da recolha de informações em
colaboração com as agências dos Estados-membros, autoridades militares e diplomatas
(Estevens, 2020). Recomenda-se a inclusão da INTCEN numa estratégia de defesa mais
ampla e integrada, servindo como um sistema avançado de deteção de sinais, quer a
partir de fonte aberta, meios digitais ou através de recursos humanos. A atribuição desta
missão seria da responsabilidade da Comissão Europeia: através de uma resolução com
definições claras sobre o tratamento e partilha de informação entre agências nos Estados-
Membros: tipos de desenvolvimento e aplicação de respostas rápidas; relação com os
legisladores tanto no Parlamento Europeu como nos governos locais; e com os eleitores,
quando possível ou aconselhável. Naturalmente, as ações das agências de informação e
segurança na deteção de ameaças e na aplicação de contramedidas para defender
processos eleitorais, que por vezes não podem ser do domínio público. Há necessidade
de encontrar um equilíbrio entre a proteção de fontes e processos, e que ameaças podem
ser partilhadas com os eleitores, para que estes sejam informados e possam tomar
decisões políticas sem influências externas maliciosas.
Outra exigência crescente, por parte de organizações como a Comissão Europeia, a
Comissão Especial do Senado dos EUA e a Comissão de Informação e Segurança e
Segurança do Parlamento do Reino Unido, é que as plataformas dos meios de
comunicação social mudem as suas políticas para um maior trabalho conjunto com as
autoridades, incluindo as agências de informação e segurança e os órgãos legislativos.
Este trabalho conjunto deve incluir uma partilha atempada e abrangente de informação,
principalmente de atividades maliciosas que exploram a arquitetura digital das
plataformas, manipulação de algoritmos e disseminação de conteúdos para subversão de
processos eleitorais. A Lei dos Serviços Digitais (DSA), proposta pela Comissão Europeia
e aceite pelo Parlamento Europeu, aborda algumas destas necessidades. Na DSA, os
fornecedores de serviços intermediários da Internet precisam de produzir relatórios de
transparência com informações sobre interação com as autoridades, descrição de
conteúdos ilegais, tempo necessário para a remoção de conteúdos, ações tomadas e
justificações legais (Comissão Europeia, 2020a). Se forem detetados maus agentes ou
medidas ativas, as agências de informação e segurança devem poder agir de forma
precisa e oportuna em colaboração com plataformas digitais para a aplicação de medidas
apropriadas. Este processo deve ser coordenado através da supervisão das estruturas
governamentais, e, se necessário, dos órgãos legislativos sempre que houver
necessidade de alterações nas leis para resolver problemas estruturais. Da mesma forma,
deve haver um trabalho conjunto com os partidos políticos e/ou candidatos a posições
governamentais. Exemplos bem sucedidos de tal colaboração têm tido lugar em França
e no Reino Unido. Em França, a Agence Nationale de la Sécurité des Systèmes
16
https://eeas.europa.eu/sites/default/files/2021_-_01_-_02_-_eeas_2.0_orgchart.pdf.
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d'Information, a agência responsável pela proteção das infraestruturas governamentais
contra ciberataques, organizou sessões de informação sobre cibersegurança para todos
os partidos políticos (embora nem todos tenham demonstrado interesse em participar)
(Daniels, 2017). No Reino Unido, foi a vez de o Centro Nacional de Cibersegurança
Britânico, parte do GCHQ, oferecer ajuda no reforço das redes de comunicação dos
partidos políticos (Reuters, 2017).
Conclusões
Uma questão provocadora levantada por Persily é "Poderá a Democracia Sobreviver à
Internet? (Persily, 2017). Alguns autores alertam para a ingenuidade de pensar que a
Internet é um caminho para uma utopia de debate, compreensão e consenso, numa
perspetiva Madisoniana de governação
17
. Ao mesmo tempo, ferramentas digitais ainda
mais poderosas, como a recuperação de dados pessoais, grandes dados, aprendizagem
de máquinas, função algorítmica, podem abrir o espaço para as empresas, que o de
aluguer, para gerar publicidade política dirigida ao nível individual, criando "bolhas
digitais", "câmaras de eco" que levam à polarização política e à ação política
contraproducente.
A Comissão Especial do Senado dos EUA para Informação e Segurança adverte que
medidas ativas, tendo o Kremlin como epicentro, e com uma alegada ligação direta a
Vladimir Putin, "representam a mais recente expressão do desejo de longa data de
Moscovo de minar a ordem democrática liberal liderada pelos EUA" (SSCI, 2019: 11). É
preocupante que países com democracias estabelecidas, agências de informação e
segurança sofisticadas, uma imprensa livre e uma sociedade civil vibrante, como o Reino
Unido e os Estados Unidos, não se tenham apercebido, ou ignorado, as ameaças da
Federação Russa de perturbar os processos eleitorais de 2016. No relatório da Comissão
de Informação e Segurança do Parlamento, há um aviso perturbador de que o governo
do Reino Unido se encontrava num "estado de negação" da influência russa, de modo a
não questionar a legitimidade do executivo associado ao resultado de Brexit (Ellehuus &
Ruy, 2020). Issoo foi exclusivo de Whitehall. Nos Estados Unidos, o Presidente Trump
passou parte do seu mandato a negar, ou a minimizar, as ões da Rússia nas eleições
de 2016, entrando mesmo em conflito com as agências americanas de informação e
segurança sobre se Putin tinha autorizado alguma delas. De facto, Trump iria despedir,
em 2017, o Diretor do FBI James Comey por causa, nas palavras do Presidente, da
"questão da Rússia". Isto resultaria na nomeação do Advogado Especial Robert Mueller
e no processo de impeachment do Presidente (Balsamo, 2019). Ainda no relatório do
Parlamento, outra observação importante foi a falta de definição dentro do governo do
Reino Unido sobre quais os mecanismos de defesa a utilizar contra medidas estrangeiras
ativas nos processos democráticos. Isto fez com que a assunção de responsabilidades
parecesse uma "batata quente" (ISCP, 2020: 5).
Os agentes russos continuarão a testar estas medidas ativas nos países ocidentais. Em
2018, na spera das eleições intercalares para o Senado e Casa dos Representantes dos
Estados Unidos, outra queixa criminal contra o IRA, na pessoa de Elena Khusyaynova,
17
Alguns destes avisos podem ser encontrados em livros escritos por Timothy Garth Ash, Rebecca MacKinnon,
Cass Sustein, Clay Shirky e Evgeny Morozov.
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foi apresentada no Distrito Oriental da Virgínia por um Procurador Federal, por conspirar
para interferir com o processo político e eleitoral americano nas eleições de 2018 (USDC,
2018). No mesmo ano, a CIA avaliou que Vladimir Putin era "provavelmente" responsável
por outra campanha para desacreditar o Vice-Presidente Joe Biden, então candidato a
Presidente (e eventual vencedor) (Rogin, 2020). Ações semelhantes foram observadas
na Europa, onde, no período entre 2017 e 2018, campanhas de desinformação utilizando
meios de comunicação estatais e meios de comunicação social patrocinados pela Rússia
ocorreram em Itália, Países Baixos, Espanha (o referendo sobre a independência da
Catalunha), República Checa e Suécia (Tennis, 2020).
Se as motivações para Presidente Putin e o Kremlin parecem óbvias à luz das teorias de
Jervis e Mearsheimer, de tentar maximizar uma postura ofensiva, interferindo nos
processos democráticos e eleições no Ocidente, o "preço" a pagar não parece ser
dissuasor. A Federação Russa é um (quase) Estado pária no que diz respeito às relações
com o Ocidente (exacerbadas por interveões militares no "estrangeiro próximo"), pelo
que a ameaça de isolamento não é operacional. Da mesma forma, as sanções devidas a
interferências eleitorais e ciberataques continuam a concentrar-se em indivíduos e
organizações que se crê estarem relacionados com o centro do poder em Moscovo (Turak
& Macias, 2021). No entanto, o governo russo continuará a negar qualquer
responsabilidade, enquanto abrigo a pessoas e grupos indiciados, tornando-os imunes
à perseguição no Ocidente. Desta forma, será difícil infligir golpes graves a estas
estruturas que promovem medidas ativas.
O Vice-Presidente do Parlamento Europeu, Rainer Wieland, afirmou em 2019 que "os
ciberataques são uma ameaça recente, mas muito real para a estabilidade da União
Europeia e dos seus Estados-Membros. Um ataque cibernético às eleições poderia minar
dramaticamente a legitimidade das nossas instituições. A legitimidade das eleições
baseia-se no entendimento de que podemos confiar nos seus resultados. Esta mesma
confiança tem estado sob pressão de ciberataques e outros novos tipos de fraude eleitoral
na era digital, e nós temos de responder!" (ENISA, 2019). Uma das necessidades mais
importantes é detetar, o mais rapidamente possível, quem está por detrás destes
ataques, como começaram, como o dirigidos e os efeitos destas medidas ativas nos
processos democráticos, devido às influências na forma como as sociedades funcionam.
Especialmente, as agências de informação e segurança adversária são conhecidas por
serem um "perigo claro e presente", como atestado pela informação de domínio público.
Agências como o GRU, FSB e SRV continuarão a testar os sistemas e contramedidas
ocidentais. É aconselhável que um bloco de países, com um poder centralizado no
Parlamento Europeu, como a União Europeia, utilize todos os instrumentos disponíveis
nesta linha de defesa, incluindo a exploração do potencial de alguns dos instrumentos já
existentes.
Este trabalho visava sistematizar algumas das informações de domínio público sobre
medidas ativas digitais, o seu modus operandi, e dar algumas contramedidas para
combater estas ameaças. No entanto, o campo de batalha está a alargar-se e a tornar-
se progressivamente perigoso. As respostas setoriais, como as observadas na União
Europeia, nos Estados Unidos, no Reino Unido, poderiam ser os pontos de entrada para
uma estratégia coordenada, multifacetada e proporcional para reforçar as democracias
liberais ocidentais, e as inspiradoras em todo o mundo, contra estas ameaças.
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A RESILIÊNCIA DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA
LUÍS CUNHA
luisfmcunha@gmail.com
Doutorado em Relações Internacionais, é investigador integrado no Instituto do Oriente
(ISCSP/Universidade de Lisboa, Portugal). Autor de vários livros sobre geopolítica da China,
incluindo: China: Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan (2010), A Hora do Dragão
Política Externa da China (2012), China na Grande Guerra A Conquista
da Nova Identidade Internacional (2014) e China`s Techno-Nationalism in the Global Era
Strategic Implications for Europe (2016). Tem vários artigos publicados em revistas, nacionais e
estrangeiras, na área da geopolítica da Ásia-Pacífico.
Resumo
Ao perfazer 100 anos de actividade, o Partido Comunista da China (PCC) evidencia e projeta
um modelo singular de desenvolvimento político e social. Tomando por inspiração
metodológica a proposta de Samuel P. Huntington para o estudo do fenómeno político,
designadamente quanto à adaptabilidade da sede do poder, procuraremos focar algumas das
variáveis que justificarão a perenidade do PCC.
A cultura e a ideologia dinamizam um processo evolutivo sem paralelo nos quadros sistémicos
convencionais, legitimado por um figurino com intrínsecas características chinesas. O
aparente excecionalismo chinês, baseado numa forte visão nacionalista, é veiculado através
de uma “nova era” transformacional. As correntes académicas ocidentais denotam dificuldade
em enquadrarem este fenómeno com implicações globais.
Palavras-chave
Partido Comunista da China; Xi Jinping; sonho chinês; nacionalismo; centenário
Como citar este artigo
Cunha, Luís (2022). A resiliência do Partido Comunista da China. In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.3
Artigo recebido em 10 Maio 2021 e aceite para publicação em 9 Outubro 2021
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A resiliência do Partido Comunista da China
Luís Cunha
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A RESILIÊNCIA DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA
LUÍS CUNHA
Introdução
O cientista político Samuel P. Huntington considerava que a institucionalização de um
sistema político podia medir-se pela adaptabilidade, autonomia e coerência das suas
organizações e procedimentos.
A definição moldar-se com perfeição ao centenário Partido Comunista da China (PCC),
que não soube superar as inúmeras adversidades da sua longa trajectória, como surge
agora, no primeiro quartel do século XXI, aparentemente fortalecido no domínio do seu
desígnio ideológico de desenvolvimento para a China.
Assumindo abertamente um projeto autónomo, diferenciado dos modelos enraizados nas
propostas das democracias liberais do Ocidente, o PCC e a sua liderança evidenciam os
predicados de uma cultura civilizacional e política singulares, transportadora de
presumíveis mais-valias na versão oficialmente veiculada face aos sistemas políticos
alienígenas, que consideram falíveis. Dito de outro modo, ao longo do seu longo historial,
o não-alinhado PCC tentou iludir sistematicamente a “lógica da dependência”
oportunamente caracterizada por Bertrand Badie, na ocidentalização da ordem política
em “Estados importados” (2000).
São alguns destes traços dominantes no percurso do PCC, e no discurso dos seus
dirigentes, que nos merecem uma reflexão neste artigo, que aborda alguns dos
aspectos que justificarão a sobrevivência do maior Partido Comunista do mundo, a sua
institucionalização organizacional, mas também as suas vulnerabilidades intrínsecas. Na
fase conclusiva do texto, colocaremos em confronto as principais visões dissonantes
americana e chinesa em presença do case study que o PCC corporiza.
A via chinesa
Um documento oficial divulgado pela agência noticiosa Xinhua, em junho de 2021,
recordava que as teorias académicas ocidentais têm denotado grande dificuldade em
enquadrarem e justificarem, não somente a sobrevivência do PCC, como a ascensão
meteórica da China nas diferentes dimensões do poder.
O texto serviria de antecâmara às conclusões da sessão plenária do 19º Comi
Central do PCC e aos “livros brancos” sobre o funcionamento da democracia na China e
à posição do PCC sobre a administração de Hong Kong.
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Comum a todos os documentos é a referência à originalidade do caminho escolhido pelo
PCC para o desenvolvimento da China, enfatizando o acervo civilizacional do país, a
recusa em alinhar no modelo de democracia liberal do Ocidente e, não menos importante,
o papel do Secretário-geral na qualidade de núcleo central” do Comité Central do PCC e
de todo o Partido, que tem agora como “ideologia-guia” o pensamento de Xi Jinping sobre
o “socialismo com características chinesas na nova era”.
Na realidade, estaremos perante um tipo de revisionismo com características chinesas.
Sendo certo, como sublinhou Aron, que “a oposição entre Estado revisionista e o
conservador é muitas vezes enganosa” (2002: 142), não é menos certo que a via
escolhida pelo PCC, o Partido-Estado, reivindica a originalidade do seu projecto
ascensional.
Assumindo-se como um partido genuíno e pragmático, intimamente ligado às aspirações
populares, o PCC repudia reiteradamente aquilo que considera ser o “caos da democracia
ao estilo ocidental”, oferecendo em contrapartida uma “democracia que funciona”
baseada em inovações teóricas, de que se destacam a adaptação do marxismo à
realidade chinesa, para além do pensamento de Deng Xiaoping, a teoria da tripla
representatividade de Jiang Zemin ou a teoria científica do desenvolvimento de Hu Jintao.
No plano académico, estas teorias políticas encontram respaldo nas tentativas de
construção de um modelo de relações internacionais apropriado à projeção
contemporânea da China, de que são exemplos as correntes tradicionalista, do realismo
moral ou relacional construtivista.
Um dos grandes desafios no estudo da política externa da China prende-se, de resto,
com a teorização dos padrões e comportamentos aferidos e respectivo enquadramento
no plano das relações internacionais. Dito de outro modo, autores como Zhao Tingyang,
Yan Xuetong ou Qin Yaking, tentam colmatar essa lacuna através das suas obras, ao
procurarem integrar a China na ordem mundial.
É neste contexto que podemos enquadrar o “sonho chinês” de Xi Jinping, que propõe um
processo inclusivo e harmonioso para o desenvolvimento e afirmação da China, mas
também uma ordem multipolar. Trata-se de um processo de renovação ideológica e
política, com recurso ao reabilitado confucionismo e ao tradicionalismo cultural, mesclado
com o incontornável marxismo em versão sínica.
Mas é a lógica leninista, atribuindo ao Partido a indisputável autoridade legitimada pelo
centralismo democrático, que consolida e une a trindade constituída por PCC-Estado-
Exército Popular de Libertação (EPL). Por outro lado, e pese embora o figurino leninista,
o PCC esforça-se por realçar a democratização dos seus processos dentro dos limites
impostos pela lealdade ao Partido. O “livro branco” com o sugestivo título “A Democracia
que Funciona” (Conselho de Estado da RPC: 2021), recorda que existem outros oito
Partidos no sistema político chinês, mas que todos eles devem obediência ao PCC.
Na realidade, a abertura parcial do PCC a processos de cariz democrático não deve ser
lido como uma liberalização ideológica, mas antes como uma tentativa de refinar e
melhorar os seus métodos funcionais e orgânicos. Para Zheng Yongnian, esse processo,
que apelida de “pluralismo interno”, integra a meritocracia herdada da época imperial
com elementos da democracia moderna (2020:16). Por outras palavras, a construção do
“socialismo com características chinesas na nova era”, tem como objectivo principal
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fortalecer o próprio Partido. É ainda de notar que o PCC colocou especial ênfase no
delicado processo de seleção e recrutamento para os seus quadros, transformando-se
desse modo numa organização política elitista.
Entretanto, na tentativa de ultrapassar o esgotamento do modelo económico adotado
desde a abertura da China ao mundo em 1978, o PCC reviu o seu posicionamento, que
passa agora pela defesa de um modelo alternativo para a globalização, a proposta de
novas organizações internacionais complementares e/ou alternativas ao sistema de
Bretton Woods, e um destino partilhado para a humanidade. E embora o PCC o admita
abertamente que o modelo chinês” é exportável, considera que “a experiência e prática
do PCC podem oferecer boas referências a outros” (People First: 2021). De acordo com
o discurso de Xi Jinping assinalando o 95º aniversário do PCC, o que está em causa não
é tanto o “modelo chinês”, mas antes asolução chinesa”. Pouco depois, no discurso que
proferiu ao 19º Congresso do PCC, Xi ficou muito perto de promover um modelo chinês
de relações internacionais, ao referir que o caminho trilhado pela China “oferece uma
nova opção para os outros países e nações que querem acelerar o seu desenvolvimento,
ao mesmo tempo que preservam a sua independência” (2017).
Enquanto as Administrações norte-americanas de Trump e Biden acusam a China de ser
uma potência “revisionista”, apostada em desmembrar o statu quo internacional (vide
Estratégia de Segurança Nacional: 2017; Estratégia de Defesa Nacional dos
Estados Unidos: 2018), a China contradita ao sublinhar que pretende apenas
promover mais democracia nas relações internacionais”. Por outro lado, a postura dos
EUA durante a Administração Trump, hostilizando aliados e retirando-se do projeto da
Parceria Transpacífica, uma medida que beneficiou a China, foi encarada por alguns
observadores como uma outra estirpe de revisionismo, não menos perniciosa que a
chinesa.
Reconheça-se, em todo o caso, que o conceito de “revisionismo” presta-se a diferentes
interpretações, consoante as ordens” a que se refere. Para Alaistair Ian Johnston, que
identifica oito “ordens” internacionais, a China é marcadamente uma potência
“constitutiva”, isto é, alicerçada na concepção de soberania e territorialidade e, não
menos importante, na preservação do PCC (2019: 9-60). O mesmo autor considera que
a China interage com as diferentes “ordens” de modo diverso. Apoia algumas, não apoia
outras e apoia outras apenas parcialmente.
Laboratório político ímpar
No seu livro The Party, Richard MacGregor considerou a sobrevivência do Partido
Comunista da China um “milagre político” (2012: 33). Se tivermos em conta que a sua
inspiração fundacional, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), foi extinto há
três décadas, a asserção mostra-se válida. Há, no entanto, outras importantes variáveis
em jogo. No monolítico sistema político chinês nada se perde e tudo se transforma, por
obra e engenho de um Partido capaz de notável capacidade adaptativa.
Na realidade, ao longo de um século o PCC foi capaz de superar, com maior ou menor
grau de sucesso, todas as suas crises e contradições internas, transformando-se no maior
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e mais poderoso Partido Comunista do mundo
1
. É ao PCC que se deve a inigualável
projeção de poder na história da China, graças a uma gestão competente da agenda
geoestratégica e geoeconómica. A China, governada por um omnipresente Partido-
Estado, é um laboratório político sem paralelo.
Contudo, um dos muitos paradoxos do PCC, quiçá o principal, radica no facto de o ter
conseguido alcançar o comunismo quando completou o seu centenário. Esta aparente
contradição é abertamente admitida na Constituição do Partido, quando refere que “o
objetivo máximo do PCC é a realização do comunismo” e que o ideal mais importante
do comunismo perseguido pelos comunistas chineses poderá ser realizado quando a
sociedade socialista estiver totalmente desenvolvida e altamente avançada”
2
.
Um objetivo que poderá ser parcialmente alcançado em 2049, aquando da celebração
dos 100 anos da implantação da República Popular da China. No léxico do PCC, esse
marco do duplo centenário, assinalará o “rejuvenescimento da nação chinesa”
3
.
Na verdade, a quimera comunista não será facilmente alcançável, como a história da
segunda metade do século XX revelou de modo dramático, com a implosão da União
Soviética e do seu Partido Comunista. Alguns académicos sustentam mesmo que os
soviéticos nunca chegaram a implantar o comunismo, uma vez que os dirigentes
partidários da URSS teriam optado pelo capitalismo de Estado (Resnick e Wolff , 2002:
324). Outros, como David Shambaugh, vão mais longe ao vaticinarem o colapso do PCC
a médio prazo. Para aquele sinólogo americano, o PCC estará fatalmente contaminado
com debilidades sistémicas que poderão conduzir a um fim violento do regime (2015).
Caberá agora ao PCC e aos seus 91 milhões de militantes provarem, definitivamente,
que o ideário comunista, recalibrado com “características chinesas”, consegue
transformar a utopia em realidade. O pesadelo soviético seria desagravado pelo “sonho
chinês” de Xi Jinping.
Embora o PCC não esconda o trauma causado pelo desaparecimento do seu homólogo
soviético, tudo fazendo para que a história o se repita de forma trágica, o figurino
leninista e o capitalismo de Estado subsistem como alguns dos principais pilares do
Partido. O PCC, “o trunfo mais duradouro da Rússia Soviética em Política Externa” (Chang
e Halliday, 2005: 39) ou o “Partido leninista com mais sucesso na História” (Zheng, 2020:
1) chama a si a tarefa de triunfar no confronto tecnonacionalista com o Ocidente.
Um Partido de geometria variável
O PCC divide o seu percurso centenário em três períodos: desde a sua fundação em
Xangai (1921), até à proclamação da República Popular da China (1949); desde esse ano
1
Para além da RPC, Cuba, Coreia do Norte e Laos são os outros Estados oficialmente comunistas. Só o Partido
Comunista da Coreia do Norte ultrapassa o PCC em longevidade.
2
Constitution of the Communist Party of China, Revised and adopted at the 19th National Congress of the
Communist Party of China on October 24, 2017, p. 1. De acordo com o discurso oficial chinês, a China
“continuará durante longo tempo na fase primária do socialismo”. No 16º Congresso do PCC, em 2002, esse
período fora estabelecido em “mais de 100 anos”. Ver: Documents of the 16th National Congress of the
Communist Party of China, Foreign Languages Press, 2002, pp. 78-79.
3
Os dois centenários estabelecidos pelo PCC têm como meta a construção de uma sociedade moderadamente
próspera no centenário do Partido (2021) e uma sociedade socialista moderna quando a RPC celebrar o seu
centenário (2049).
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até à abertura ao mundo e início das reformas (1978); e desde a chegada ao poder do
atual líder, Xi Jinping (2012).
Na versão oficial, o PCC
4
foi fundado em julho de 1921 por uma dúzia de ativistas, na
sequência do desaire sofrido pela China na conferência de Paz em Versalhes, após a
Primeira Guerra Mundial, que viu as grandes potências sancionarem a ocupação nipónica
da província chinesa de Shandong, e das manifestações estudantis de inspiração
nacionalista que se lhe seguiram, corporizadas naquele que ficou conhecido como o
“Movimento 4 de Maio” (1919).
Os comunistas chineses, que não estavam familiarizados com o marxismo, cuja teoria
económica não colava com a realidade chinesa, viram, ainda assim, naquela doutrina
importada da revolução bolchevique, uma cartilha ideológica pronta a usar na luta contra
o imperialismo ocidental (Dreyer, 1996: 64-65).
Ao adaptarem o marxismo à situação que se vivia na China, os fundadores do PCC
optaram por uma flexibilidade ideogica com características chinesas que se manteria
até à atualidade. Seria Mao Tsé-Tung a alertar para a necessidade de os comunistas
chineses procederem à “sinificação do marxismo”. Nessa medida, o “socialismo com
características chinesas para uma nova era”, a teoria de Xi Jinping consagrada pelo PCC
no seu 19º Congresso, é vista como o mais recente progresso na adaptação do marxismo
ao contexto chinês.
Durante os primeiros 28 anos de existência, o PCC viu-se obrigado a obedecer aos
ditames de Estaline e a combater o Partido Kuomintang, o seu arquirrival político,
liderado por Chiang Kai-Chek. Revelando a notável agilidade política que o caracterizaria
nas décadas seguintes, Mao chegaria mesmo a filiar-se episodicamente no Kuomintang,
por indicação de Estaline.
A expedição ao norte, com o PCC ainda aliado ao Kuomintang (1924-27), a guerra
revolucionária agrária (1927-37), a guerra de resistência contra o Japão (1927-37) e a
guerra civil, ou “guerra de libertação” (1946-49), foram os principais marcos históricos
desse período. Mao seguiu os passos de Lenine, saltando da teoria marxista para a acção,
apenas invertendo a sequência.
Com a proclamação da República Popular da China, a 1 de outubro de 1949, o PCC
assumiria as rédeas do poder em regime de monopólio político-institucional. Na
realidade, a vitória de Mao surpreenderia Truman e Estaline (Gaddis, 2021: 47). Nascia
a dinastia comunista chinesa e o Partido-Estado, numa interdependência orgânica e
funcional de inspiração leninista. Pela primeira vez em séculos, a China caminhava para
a união sob uma mesma bandeira.
Terminava um conturbado período, marcado por mais de quarenta mudanças do Governo
central desde a implantação da república, em 1912. Todavia, a pacificação interna não
estava assegurada. Externamente, Mao arriscaria a própria existência do Estado que
4
Atente-se na diferenciação semântica: em dezembro de 1920 foi fundado o Partido Comunista Francês e
em março de 1921 o Partido Comunista Português; o PCC, fundado em julho de 1921, adotou a
designação de Partido Comunista da China (itálico nosso). De acordo com os autores de uma biografia de
Mao Tsé-Tung, o PCC terá sido fundado em 1920 e Mao não estaria entre os fundadores do Partido. Ver
Chang, J., Halliday, J. (2005). Mao, A História Desconhecida. Lisboa: Bertrand Editora.
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acabava de criar. De facto, pouco mais de um ano após a proclamação da RPC, o exército
chinês combatia os americanos na Coreia.
Em síntese, o primeiro grande passo na direção da emancipação identitária da China
ocorreria com o envio de 140.000 trabalhadores para os palcos da Primeira Guerra
Mundial na Europa. No rescaldo do conflito, o “Movimento 4 de Maio”, serviria de embrião
à fundação do PCC.
Por outro lado, sem o combate aos japoneses, na Segunda Guerra Mundial, o PCC não
teria conseguido alcançar o poder, como o próprio Mao admitiria. Na realidade, a
ascensão e consolidação do poder do PCC fundam-se em factos históricos associados às
duas guerras mundiais. É, desde então, que os chineses cultivam um arreigado
nacionalismo de cariz anti-ocidental.
O Partido-Estado
O PCC começou por adaptar o figurino soviético de inspiração leninista à realidade
chinesa. O centralismo democrático, isto é, a subordinação do indivíduo à organização e
seus líderes, passou a reger o funcionamento da máquina partidária. À semelhança do
PCUS, o congénere chinês instituiu na sua cúpula os órgãos com poder decisório,
designadamente o Comité Central (eleito a cada cinco anos pelo Congresso do Partido),
responsável por selecionar o Politburo (25 membros).
Por sua vez, o Politburo elege o seu Comité Permanente, o núcleo duro de decisores
políticos, os atuais sete homens (não inclui mulheres e 70% dos membros do Partido são
homens) que têm nas suas os o rumo a dar à China. A poderosa nomenklatura, na
terminologia soviética. O primus inter pares é o Secretário-geral, que, em regra, assume
também o cargo de Presidente da República e presidente da Comissão Militar Central. O
Secretariado tem a importante missão de implementar as decisões do Politburo e do seu
Comité Permanente.
No entanto, algumas características do PCC diferenciam-se do sistema soviético. Desde
logo, a capacidade de penetração do Partido no tecido social, económico e militar. O PCC
está presente em todos os cantos da sociedade, obrigando a uma lealdade incondicional.
Os militares devem obediência constitucional ao Partido, bem como o sistema judicial. O
mesmo se aplica ao setor público da economia, que inclui algumas das empresas mais
conhecidas internacionalmente, os chamados “campeões da indústria”. É assim que o
“pensamento de Xi Jinping (…) reflete a vontade comum de todo o Partido, todas as
Forças Armadas e o povo de todos os grupos étnicos” (Comunicado da Sessão Plenária
do 19º Comité Central do PCC).
Constitucionalmente, o governo soviético e o PCUS eram órgãos separados, embora a
realidade desmentisse esse artificialismo. Na China, o PCC deixou sempre bem claro que
seria o único responsável pelo controlo de toda a sociedade. Consequentemente, a
estreita interligação entre Partido e Estado é indistinguível. Na linguagem oficial “é
necessário assegurar que a liderança do Partido e do Estado permanece nas mãos
daqueles que são leais ao marxismo, ao Partido e ao povo” (China: Democracy That
Works: 8).
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É de sublinhar que, quando os líderes mundiais reúnem com o Presidente Xi Jinping,
nessa qualidade a exercer um cargo eminentemente cerimonial de acordo com a
Constituição da RPC, têm antes pela frente o poderoso Secretário-Geral do PCC.
Dispensando as formalidades legais, uma vez que não está registado como organização,
o Partido legitima a sua ubíqua influência na conquista do poder na sequência da guerra
civil, no desenvolvimento económico e social desde a abertura da China ao mundo, na
sua visão nacionalista e, acima de tudo, na pureza espiritual derivada dos dogmáticos
princípios partidários, coadjuvados por uma visão culturalista enraizada na filosofia
confucionista uma espécie de código social que regula a sociedade chinesa milhares
de anos. Um contrato social que os chineses subscrevem descomplexadamente, desde
que as oportunidades de prosperidade e riqueza não sejam colocadas em causa.
A implantação
Mao Tsé-Tung, o líder supremo do PCC até à sua morte em 1976, não teve urgência em
reorganizar o Partido após a fundação da RPC. O primeiro plano quinquenal foi
aprovado em 1953 e o primeiro congresso do PCC apenas teve lugar em 1956 (até 1977
nenhum completou o mandato de cinco anos). Por sua vez, o Congresso Nacional Popular
(CNP), fundado em 1954, não reuniu entre 1966 e 1974 (Dreyer, 1996: 90-91). Ainda
em 1954 era aprovada a primeira Constituição da RPC.
Mao viria a revelar-se, paradoxalmente, o mais problemático líder do PCC. No Grande
Salto em Frente (1958-1962), terá sido o responsável máximo por 36 a 45 milhões de
mortes (Yang, 2008: 2; Dikötter, 2011: 1). Ao promover a transição forçada de uma
economia subdesenvolvida, para uma utópica sociedade comunista moderna, Mao levou
o sistema social e económico da China à beira do colapso.
Ainda mal refeito da catástrofe do experimentalismo maoísta, o povo chinês viu-se
obrigado a mergulhar na Revolução Cultural (1962-1976), que viria a revelar-se mais
uma página negra do PCC e do seu líder, apostado em agitar as massas através da
constante inquietação revolucionária. Vendo-se como o legítimo herdeiro do marxismo-
leninismo, Mao quis, mais uma vez, acelerar a transição do socialismo para o comunismo,
garantindo desse modo o seu legado histórico. As purgas e perseguições políticas no seio
do PCC, bem como a tortura física e psicológica e o desterro, passariam a ser comuns. O
Partido ficou virtualmente paralisado. Cinco milhões de militantes seriam alvo de
punições (Dikotter, 2017: 10). Os estudantes, mobilizados para o combate
revolucionário, acabariam por ser das principais vítimas da revolução cultural. Xi Jinping
seria um deles. O ensino na China atrasaria uma década.
A adoção da liderança coletiva e a abolição do culto da personalidade e do “pensamento
de Mao” como guia ideológico, tinham ficado consagradas no 8º Congresso do PCC, mas
nos 12 anos seguintes Mao conseguiu reverter esses princípios. No Congresso do PCC
(1969), liderado por um Mao politicamente ressuscitado, a revolução cultural foi
oficialmente declarada “um grande sucesso” (Li, 1994: 508). Foi nesse ano que Mao
passou a considerar a União Soviética, e não os EUA, a maior ameaça à segurança da
China.
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A aproximação aos EUA constituiria o maior êxito da fase final da carreira política de Mao.
Uma manobra primorosamente executada pelo mestre da tática que era Chu Enlai, o
Primeiro-ministro.
A retificação histórica
A morte de Mao Tsé-Tung e a consequente assunção do poder por parte do anteriormente
ostracizado Deng Xiaoping, abriu um capítulo de primordial importância na evolução do
PCC, que procedeu a um inédito exercício de autocrítica, numa tentativa de retificar o
delicado legado maoísta.
A importante Resolução sobre a História do PCC, adotada na sessão plenária do 11º
Comité Central do Partido (1981), passou em revista a atuação “arbitrária” de Mao Tsé-
Tung e os seus “erros teóricos e práticos”. Particular atenção mereceu o período da
revolução cultural, que “não se conformou nem com o marxismo-leninismo, nem com a
realidade chinesa”. Embora o PCC tenha considerado Mao o principal responsável pela
catástrofe social desencadeada pela revolução cultural, ao “confundir o povo com o
inimigo”, a resolução deixou claro que o valor científico do “pensamento de Mao
continuavalido como farol ideológico do Partido.
Ao expor abertamente as feridas abertas por um líder “divorciado da realidade e das
massas”, o PCC pretendeu iniciar um processo de regeneração interna, ao mesmo tempo
que validava o projeto reformista de Deng Xiaoping. Mas a abertura da China ao mundo,
iniciada em 1978, e o resultante desenvolvimento económico, comportava riscos
existenciais para o PCC que viriam a revelar-se de forma dramática.
Tiananmen
O PCC o voltaria a produzir um documento semelhante à resolução autocrítica de 1981
sobre os desaires da revolução cultural. As causas e efeitos dos acontecimentos de
Tiananmen, em 1989, seriam obliterados da historiografia oficial. A documentação oficial
do PCC é omissa sobre o agitado período, que poderia ter derrubado o Partido do poder,
embora esse não fosse o objetivo dos estudantes contestatários (Zhao, 2009: 79).
Todos os regimes autoritários dependem em maior ou menor grau da repressão e Deng
Xiaoping, mais leninista que maoísta, não hesitou em valer-se do “poder disciplinar” na
aceção de Foucault. Contudo, ao recorrer ao uso da força para estancar a hemorragia
interna do PCC, provocada pelas manifestações estudantis, o legado de Deng Xiaoping,
o grande estadista responsável pela modernização da China, ficaria irremediavelmente
manchado. Inversamente, Gorbatchev, o polémico líder responsável pela implosão da
União Soviética, seria galardoado com o prémio Nobel da Paz.
Uma década antes, Deng chegara a ventilar a possibilidade de uma separação entre
Partido e Estado, uma reforma nunca concretizada, desde que se mantivesse como regra
inquebrável a impossibilidade de liberalização política à luz do modelo tripartido de
separação de poderes adotado no Ocidente. Essa linha vermelha seria mantida e
reforçada pelas lideranças subsequentes do PCC.
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O Partido Civilizacional da China
Um Partido Comunista centenário, no poder em regime de monopólio e governando
tanto tempo quanto o PCUS governou a antiga União Soviética, é obrigado a cuidar em
permanência da sua legitimação.
Uma das chaves para a compreensão da perenidade do PCC estará na observação
judiciosa de Bertrand Russel, quando concluiu que “a China o é tanto uma entidade
política, mas antes uma civilização” (1993: 208). Dito de outro modo, o princípio da
unidade nacional firma-se na valorização da herança civilizacional. Daqui decorre um
sentimento de superioridade moral face ao Ocidente que o PCC cultiva recorrentemente.
Nessa medida, mais do que um intérprete da história da China, o PCC situa-se como ator
central dessa história. A sua legitimação privilegia a perspectiva historicista em
detrimento da perspectiva ideológica.
É essa tese culturalista, baseada no excecionalismo chinês, que legitima a originalidade
do sistema político, transformando o PCC no exclusivo representante e guardião de uma
determinada verdade histórica. A virtude de inspiração confucionista moldou-se aos
valores socialistas, daí resultando as “características chinesas”.
Para Zhang Wewei, é o “Estado civilizacional”, liderado e interpretado pelo PCC, que
permitiu a “maior revolução económica e social da humanidade” (2012:2). O académico
chinês recorda que a China conseguiu fundir, com sucesso, a civilização mais longeva
com um Estado moderno. Trata-se de uma unidade forjada na História e no hábito,
superior a qualquer forma de governo.
Uma outra leitura encontra justificação na aversão da sociedade chinesa ao caos, tantas
vezes vivido na sua história. Na verdade, o discurso oficial não perde uma oportunidade
para enfatizar o papel aglutinador do PCC, verdadeiro dínamo de um país formado por
56 grupos étnicos. Como recorda o historiador Niall Ferguson, se a China fosse
organizada como a Europa, teria de ser dividida em 90 Estados-nação (2012: 10).
A institucionalização
As sociedades não ocidentais debatem-se entre a lógica da adaptação e a lógica da
inovação (Badie, 2000: 2). A sociedade chinesa não é excepção. Ao longo de um século
o PCC conseguiu, de algum modo, mitigar as forças contraditórias do sistema político que
implantou.
E embora o PCC tenha recuperado a lógica imperial no seu modus operandi e no
posicionamento da China como ator internacional, a institucionalização de processos de
transição na elite dirigente permitiu que a quinta geração a chegar ao poder tenha ao
seu dispor um inédito poder global.
O PCC não está plasmado na máquina do Estado como a controla em todas as
dimensões, transformando-se num “Partido estatal sem complexos” (Rios, 2021: 304).
Essa supervisão tem sido intensificada através das reformas orgânicas implementadas
por Xi Jinping nas esferas judicial, militar e legislativa, a um ritmo inédito, que criam um
novo impulso à trajetória política e económica da China. A liderança encabeçada por Xi
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terá embarcado num processo de transformações institucionais que têm por objectivo
reverter muitas das mudanças consolidadas pela relativa liberalização das últimas
décadas (Economy, 2018: 5; Bowring, 2021:239).
Para Huntington “a probabilidade de uma organização com 100 anos sobreviver mais um
ano é, talvez, 100 vezes maior do que a probabilidade de uma organização com um ano
sobreviver mais um ano” (1968: 13-14). Talvez seja por isso que os documentos oficiais
refiram que o PCC, Partido com cem anos, que luta pela prosperidade duradoura da
nação chinesa, está na flor da idade” [itálico nosso] (Comunicado da 6ª Sessão Plenária
do 19º Comité Central do PCC).
O núcleo do PCC
Xi Jinping é um líder transformacional, comparável a Mao e Deng, deres carismáticos.
Está imbuído de uma infabilidade histórica quanto à missão de transformar a China na
mais poderosa das nações. Mas Xi não será carismático, antes racional no sentido
weberiano. Mantém o Partido afastado da liberalização, rejeitando firmemente a divisão
de poderes e o parlamentarismo e não hesita em recorrer aos instrumentos repressivos
do Estado. É um líder forte, com um projecto político bem definido. Traçou as linhas
vermelhas quando, na primavera de 2013, um memorando interno do PCC (documento
9), elencou as principais ameaças existenciais do Partido, incluindo a democracia
constitucional de matriz ocidental e o neoliberalismo (Bougon, 2018:153-158).
Quando assumiu a liderança da quinta geração a alcançar o poder na China, em 2012, o
Financial Times referia a possibilidade de Xi ser “simpático às reivindicações para um
sistema político mais liberal”
5
. Não essa predição se mostrou errónea, como Xi viria a
revelar um estilo de forte liderança unipessoal, ao mesmo tempo que neutralizava a
governação coletiva que nunca funcionou plenamente e a proibição do culto da
personalidade advogadas pelo PCC desde Deng Xiaoping.
Uma primeira consagração de Xi ocorreu no 19º Congresso do PCC, em 2017. Em apenas
cinco anos, Xi conseguiu consolidar o seu poder e inscrever a sua doutrina na Constituição
do PCC, colocando-se desse modo a par dos sacralizados Mao e Deng no panteão dos
deres imortais.
Tratou-se de uma medida com grande significado político, uma vez que Deng Xiaoping
viu o seu nome inscrito na Constituição do PCC após a sua morte, e Jiang Zemin
apenas conseguiu que a sua “teoria da tripla representatividade” (traduzida na cooptação
do empresariado pelo Partido) fosse reconhecida depois de ter saído do poder. Por sua
vez, a “teoria do desenvolvimento científico” de Hu Jintao foi inscrita na Constituição
após o seu primeiro mandato, mas apenas elevada a “guia para a ação” depois de ter
abandonado o cargo.
Mais recentemente, o Partido passou a marcar uma nítida linha divisória entre o período
das reformas espoletado por Deng e uma “nova era” de 30 anos, iniciada em 2020. Nos
primeiros 15 anos, até 2035, Xi quer ver consolidadas as fundações de uma sociedade
5
Anderlini, Jamil, “The leadership: focus on the next generation as transition gets under way”, Financial
Times, October 26, 2011. [Em linha] Consultado em 23.11.2021. Disponível em:
https://www.ft.com/content/ec0d167e-f8c3-11e0-ad8f-00144feab49a
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“moderadamente próspera” e na segunda etapa de 15 anos, até 2045, concretizada a
modernização da “sociedade socialista”.
Grande parte da meteórica ascensão de Xi foi justificada pela campanha de purificação
interna no combate à corrupção, que atingiu milhares de membros do Partido e Forças
Armadas, incluindo destacados dirigentes. Em causa estará uma verdadeira “revolução
ética” destinada a sustentar a legitimação do Partido (Zhang e McGhee, 2017). É
inegável, no entanto, a notável capacidade de mobilização partidária e nacional de Xi,
que vai muito para além das purgas internas no seio do Partido. Ao apelar a sentimentos
nacionalistas, Xi invoca e consagra a sua legitimidade emocional.
Em síntese, desde o início do presente século que a China vem explorando as
oportunidades estratégicas evidenciadas no 16º Congresso do PCC, mas é no consulado
de Xi Jinping que a China mostra todo o seu poder e assertividade. A narrativa oficial
veiculada por Xi eliminou definitivamente a estratégia discreta para a afirmação externa
da China recomendada por Deng Xiaoping.
A China, que poderá ascender à condição de maior potência económica mundial num
futuro não muito distante, está agora a “aproximar-se do centro do palco”, sendo “uma
der em termos de força nacional e influência internacional” (Xi, 2019: 9-25). Também
quer construir umas forças armadas poderosas, “capazes de ganhar guerras”, possuindo
a maior marinha de guerra do mundo, para além de ter colocado em curso um
ambicioso plano de rearmamento nuclear e dispor de avançadas tecnologias disruptivas,
designadamente mísseis hipersónicos, armas de pulso eletromagnético e ciberarmas. Na
realidade, como salientou Aron, os Estados podem ser proféticos, mas são sempre
armados” (2002: 131).
Conclusões
O PCC não venceu a utopia, mas ultrapassou-a. Ao longo da sua história, o PCC aprendeu
a (sobre) viver com inúmeros paradoxos e contradições. Transformou-se numa máquina
centrifugadora híbrida, capaz de absorver, regenerar e devolver à sociedade as diferentes
abordagens políticas e económicas. Combina autoritarismo com pragmatismo. É uma
organização resiliente, dirigida atualmente por um líder resiliente.
A China não inventou o marxismo-leninismo, o nacionalismo ou o capitalismo. No
entanto, o PCC tem vindo a revelar-se um exímio cultor destas correntes aparentemente
antagónicas. Mas é principalmente ao nacionalismo, e à “comunidade política imaginada”,
que o PCC vai resgatar a sua legitimidade.
Uma legitimidade que a China quer ver transposta para o cenário internacional, onde,
mais do que assumir um papel central, pretende ver validada a sua proposta para uma
nova ordem centrada no desenvolvimento, de que a proposta Uma Faixa, Uma Rota
Belt and Road Initiative (BRI) é exemplo, daí decorrendo claras implicações geopolíticas
e geoeconómicas. Trata-se de uma visão global sem precedentes. É nesse contexto que
o académico Zhang Weiwei, autor de The China Wave: Rise of a Civilizational State,
integra uma corrente intelectual chinesa que, para além de rejeitar qualquer emulação
com modelos políticos ocidentais, considera ter chegado a hora de a China influenciar o
mundo.
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Por outro lado, a estabilidade e a qualidade da governação são créditos que alguns
círculos ocidentais denotam dificuldade em reconhecer aos dirigentes chineses. Os
indicadores externos de desenvolvimento económico são extraordinários e a conjugação
estratégica de poder brando com o poder duro (na aceção de “poder inteligente” de Nye)
também, mas é o facto de o PCC ter conseguido retirar 800 milhões de chineses da
pobreza, 10 anos antes do previsto para o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentado (ODS) estabelecidos pela ONU, que impressiona pela escala e implicações
socioeconómicas.
Nas constituições da República Popular e do PCC, encontramos o obrigatório léxico
comunista referindo uma ditadura democrática popular, o centralismo democrático e a
luta pela classe trabalhadora. Na verdade, o “proletariado” deu lugar aos empresários
cooptados pelo Partido ao tempo de Jiang Zemin, e a “luta de classes” é agora reduzida
à contradição evidenciada na desigualdade social provocada pelo desenvolvimento
económico desenfreado. Uma fragilidade estrutural que o PCC admite abertamente nos
seus documentos oficiais.
Tudo somado e volvido um século, é inegável que o PCC conseguiu alcançar um dos
principais objectivos que presidiu à sua fundação: a transformação da China num país
forte e independente. O PCC conduziu a China a um patamar nunca alcançado na sua
longa história, desfrutando finalmente de poder e prestígio na aceção que Morgenthau
lhe atribuiu (1985: 714).
E se alguns profundos conhecedores da realidade chinesa, como Susan Shirk (2007) ou
David Shambaugh (2008; 2015) sustentam a tese do irreversível declínio do PCC a médio
prazo, elencando conhecidas fragilidades sistémicas, ressalve-se que as reformas
institucionais implementadas por Xi Jinping, abrangendo o funcionamento do PCC e das
Forças Armadas, têm vindo a modernizar e fortalecer a relação PCC-Estado-EPL. De facto,
Xi tem operado no sentido de racionalizar a arquitetura institucional do PCC; ponto
fundamental é a necessária e exigida acomodação e lealdade de todos os actores
sociais à dinâmica hegemónica do PCC. Também não é crível que a relativa neutralização
da liderança coletiva que como frisámos nunca funcionou plenamente tenha
consequências contraproducentes na nova orgânica institucional implementada na
governação de Xi.
Os indicadores disponíveis indicam que o PCC desfruta de um elevado grau de
popularidade, ao mesmo tempo que a elite partidária mantém a necessária coesão.
Fatores cruciais para a perpetuação da necessária legitimidade e que nos levam a concluir
que a sede do poder estratégico no sistema político chinês o PCC não estará
ameaçada num futuro próximo. O grande desafio do líder máximo do PCC será antes
operar a transição entre o autoritarismo e a inovação tecnológica.
A China, com um regime autocrático liderado pelo resiliente PCC, não pretende
exportar a sua ideologia marxista-leninista-maoísta e agora xiísta. Antes reclama a
legitimidade de um modelo alheio ao conceito de universalismo impregne na ordem
política do Ocidente. De resto, também Huntington chamaria oportunamente a atenção
para o facto de o Ocidente ser único, mas não universal (1996).
A nova postura assertiva e auto-confiante da China, anulando a teoria da “ascensão
pacífica”, teve como consequência uma política reativa por parte de Washington, as
principais capitais europeias e ada OTAN, que considera a China “um rival sistémico
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de espectro total,” (NATO, 2020:27). Para a União Europeia (UE), por exemplo, a China
é agora “um adversário sistémico que promove modelos alternativos de governação”
(2019), sendo também uma parceira, uma competidora e uma rival” (Borell, 2021). Por
outro lado, a crise pandémica serviu de catalisadora a uma clarificação geopolítica no
relacionamento entre as principais potências do Ocidente e a China. Na realidade, o PCC
conseguiu granjear um poder sem precedentes na história da China, mas como alertou
Kissinger, “a questão é saber se é possível criar um sistema internacional tendo a China
como participante sem que ela domine o sistema (2011: 43).
Em suma, há mais de um século que o mundo vive dividido entre as visões de Lenine e
Woodrow Wilson, numa clivagem ideológica perene. Será a qualidade da governação e a
batalha pela liderança tecnológica a decidir se haverá vencedores ou apenas vencidos na
titânica disputa entre grandes potências. Dito de outro modo, se verá se a China ficará
mais parecida com o mundo, ou o mundo com a China.
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LIBERDADE, IGUALDADE E LAICIDADE: O USO DO HIJAB NAS ESCOLAS
PÚBLICAS COMO UMA AMEAÇA À ONTOLOGIA REPUBLICANA FRANCESA
(1989-2004)
BRUNO PEDROSA
bruno.cspedrosa@gmail.com
Mestre em Segurança Internacional e Defesa pela Escola Superior de Guerra (Brasil), com
especialização na formação de identidade comum do BRICS, e licenciado em Relações
Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com foco nas dinâmicas geopolíticas
euro-americanas. Escreve para o laboratório de ideias independente Quo Vademus, e é
colaborador externo do Núcleo de Estudos sobre BRICS (NEBRICS), bem como investigador do
Grupo de Estudos sobre BRICS (GEBRICS).
Resumo
Este trabalho analisa a perceção do uso do hijab nas escolas públicas como uma ameaça
ontológica à França. Considerando a laicidade um dos pilares da sociedade e identidade
francesas, bem como da escola como base da constrão desta narrativa, o uso do hijab é
considerado uma ameaça à neutralidade religiosa na esfera pública, ferindo os princípios
básicos da República. Isto conduziu à aprovação de uma lei que proíbe o uso de vestuário
religioso aparente nas escolas primárias de França, apesar de a liberdade religiosa ser um
direito fundamental no país. Como metodologia do estudo, analisam-se as declarações e
opiniões de dirigentes dos poderes executivo e judicial relativamente ao uso do vestuário e
ao princípio da laicidade, e da liberdade de culto em França entre 1989 e 2004.
Palavras-chave
Segurança Ontológica; Laicidade; Islão; Liberdade Religiosa; França
Como citar este artigo
Pedrosa, Bruno (2022). Liberdade, igualdade e laicidade: o uso do hijab nas escolas públicas
como uma ameaça à ontologia republicana francesa (1989-2004). In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.4
Artigo recebido em 23 Outubro 2021 e aceite para publicação em 16 Março 2022
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Liberdade, igualdade e laicidade: o uso do hijab nas escolas públicas como uma ameaça à ontologia
republicana francesa (1989-2004)
Bruno Pedrosa
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LIBERDADE, IGUALDADE E LAICIDADE: O USO DO HIJAB NAS
ESCOLAS PÚBLICAS COMO UMA AMEAÇA À ONTOLOGIA
REPUBLICANA FRANCESA (1989-2004)
1
BRUNO PEDROSA
Introdução
Os ataques terroristas têm sido tratados como uma questão de segurança em França
desde a cada de 1980. No entanto, desde o ataque aos Estados Unidos da América
(EUA) a 11 de setembro de 2001, tais ameaças têm sido correlacionadas ao extremismo
islâmico, tanto pela comunicação social, como pelo governo francês (França, 2006). Estas
preocupações com a segurança do Estado e os seus cidadãos relativamente à
comunidade muçulmana no país permearam camadas sociais e trouxeram ao debate
público, questões sobre identidade e vida privada.
Estes discursos dirigidos pelo Estado e pelos media aumentaram o estigma em relação
aos muçulmanos em França. Stéphane Bauzon (2017: 190) afirma que "os ataques
terroristas levados a cabo por islamistas em território francês nos últimos anos
reforçaram esta suspeita à religião muçulmana". Além disso, houve um desenvolvimento
de um tipo de desconfiança não à religião, como também a representações e símbolos
dela, sendo a utilização do hijab o maior exemplo desse fenómeno.
Não obstante, apesar de ser um dos países que exportou ideais como a tolerância e a
liberdade religiosa a nível mundial, o governo aprovou em 2004 uma lei que proíbe o uso
do hijab nas escolas públicas primárias. Esta medida foi aprovada com a justificação de
"reafirmar o símbolo republicano da laicidade
2
, promovendo a igualdade e emancipação
das mulheres muçulmanas" (Bauzon, 2017: 186). De resto, o sistema educativo francês
procura aumentar a coesão interna do país, marginalizando as "fidelidades regionais e
religiosas" (Windle, 2004: 97). Ademais, segundo Windle (2004: 97), o sistema escolar
público francês é "'livre, secular e obrigatório' e um dos principais garantes dos valores
republicanos [...]". Assim, usar o hijab poderia "simbolizar [...] uma ameaça às próprias
condições da existência da República" (Windle, 2004: 97).
1
Artigo traduzido por Hugo Alves.
2
Embora o termo possa ser traduzido por "secularidade" ou "secularismo", aqui é usado o estrangeirismo,
que transporta uma carga simbólica e cultural que se perde na tradução. O mesmo se aplica a outros termos
estrangeiros neste trabalho. De acordo com o governo francês, laicidade é um valor que garante a "liberdade
de consciência". Por isso, permite "a liberdade de manifestar as suas crenças ou convicções dentro dos
limites do respeito pela ordem pública". Conclui-se que “laicidade implica a neutralidade do Estado e impõe
a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de religião ou convicção" (F)rance, [s.d.]).
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Apesar das declarações de Windle (2004), as explicações sobre o uso do aparelho de
Estado para lidar com a questão islâmica nas escolas têm sido insuficientes. Isto é
observável pela concentração de estudos em segurança interna, tendo o Estado como
principal objeto de estudo (Gregory, 2003), e negligência da questão ontológica da
segurança vista pela lente da sociedade francesa. Outros pensadores tentam entender o
efeito destes símbolos religiosos usando outras interpretações: seja pela comunicação
social, por estudos de género ou questões sociais como a integração e a imigração (Carle,
2004). Porém, estes trabalhos não explicam plenamente as motivações das políticas
francesas para evitar a utilização do hijab nas escolas públicas, embora por vezes sejam
interpretadas como inconsistentes com os valores franceses de liberdade e igualdade.
Segundo Resende (2017: 90), os ataques de 11 de setembro de 2001 aos EUA
traumatizaram o imaginário coletivo do país, provocando "questões de discursos
dominantes sobre a América e os americanos". Face a esta crise de identidade, o autor
afirma que para superar o trauma e restaurar a ordem social, "a articulação de um novo
discurso dominante capaz de recomeçar é o quadro da inteligibilidade da realidade
quebrada em 2001" (Resende, 2017: 90). De igual modo, a utilização do hijab nas
escolas públicas francesas gerou uma crise nas narrativas dominantes sobre a identidade
nacional, o papel da escola e os princípios fundadores da França, como a liberdade e o
secularismo.
Dada a insuficiência explicativa da literatura dominante, este trabalho tenta facultar uma
perspetiva do problema pela ótica da segurança ontológica. Com base na expansão das
perspetivas de segurança e nos estudos sobre identidades como objetos a serem
titularizados pelo Estado (Mitzen, 2006; Steele, 2008; Subotić, 2016; Resende, 2017),
procura-se responder à seguinte pergunta: como pode o uso do hijab nas escolas
primárias ser considerado uma ameaça à França? Através desta abordagem, o principal
argumento encontra-se no seguinte pensamento: as manifestações religiosas
muçulmanas podem ser construídas como supostas ameaças à segurança francesa,
mesmo que este processo seja contra os valores fundadores do país.
Com o objetivo de analisar o impacto desta peça de vestuário no imaginário da identidade
francesa, a análise do discurso permite compreender as práticas discursivas e narrativas
que moldam as perceções da realidade (Hansen, 2013). Outra possibilidade oferecida
por este método é "não só explicar o conteúdo das narrativas biográficas de um Estado,
mas também revelar como os efeitos de um discurso constituem certos tipos de ação"
(Steele, 2008: 10-11). Além disso, a análise dos discursos das autoridades é,
simultaneamente, uma fonte e uma prática metodológica do estudo.
A escolha do âmbito temporal é justificada pelo seguinte: em 1989 ocorreu uma polémica
em França que ficou conhecida como affaire des foulards islamiques
3
, que reacendeu o
debate público sobre os limites do secularismo na sociedade do país, notado nas escolas.
Em 2004, regressou a discussão quando houve uma proibição legal do uso, o do
hijab, como também de outras vestes religiosas nas escolas públicas. O trabalho está
dividido em quatro partes: a primeira passa pela compreensão da segurança ontogica
como uma abordagem teórica para compreender a titularização da identidade como
3
Traduzido como o "caso dos véus islâmicos", este caso ocorreu quando três meninas em idade escolar e de
origem magrebina foram expulsas da escola por insistirem no uso do hijab nas salas de aula.
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prática política; a segunda é dedicada ao entendimento do espaço da laicidade no
imaginário francês como parte da sua identidade; a terceira analisa o desenvolvimento
do fenómeno através da aprovação da proibição da utilização do hijab nas escolas; a
última descreve as conclusões sobre esta questão.
Segurança ontológica: o que é e por que é importante?
Benedict Anderson (2006: 6) afirma que "as comunidades distinguem-se, não pela sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo da sua representação". As representações
baseiam-se em símbolos e narrativas, que imprimem "uma sensação de espaço e um
sentido de lugar" (Subotić, 2016: 612) para indivíduos dessas comunidades. Pode dizer-
se, então, que as narrativas "desempenham um papel fundamental na construção de
comportamentos políticos [...]. Criamos e usamos narrativas para interpretar e
compreender as realidades políticas que nos rodeiam" (Patterson e Monroe, 1998: 321).
Subotic (2016: 612) diz que estas narrativas servem de autobiografias. Usadas por
indivíduos e grupos maiores, funcionam como uma referência ontológica daqueles que a
reproduzem. Ao produzir uma história sobre "de onde é que 'nós' viemos, como é que
viemos a ser quem somos, o que nos une como grupo, que propósito e aspirações tem o
nosso grupo", as comunidades podem criar uma âncora ontológica que lhes "uma
sensação de estabilidade e permite seguir em frente". De acordo com Steele (2007: 904),
"os agentes do Estadoo sentido às suas ações sobre os outros através desta narrativa
[...]". Subotic (2016: 612) conclui que não se pode entender os comportamentos dos
atores políticos sem "compreender a narrativa normativa subjacente às escolhas políticas
que os atores fazem [...]". Por isso,o as narrativas que permitem ordenar um sentido
de "quem eu sou", o que permite a construção de cálculos racionais como uma "condição
prévia para saber o que fazer" (Somers, 1994: 618).
Todavia, quando esta narrativa e a sua identidade sofrem uma crise, o Estado tende a
adotar medidas para retomar o equilíbrio. Voltando a Steele (2008b: 2), neste cenário
"os Estados procuram ações sociais para servir as suas necessidades de autoidentidade,
mesmo quando as mesmas comprometem a sua existência física". O autor afirma que a
segurança ontológica é mais importante do que a sica; isto deve-se à vontade do Estado
em manter "os auto-conceitos consistentes, e o Eu dos Estados é constituído e mantido
por esta narrativa [...]" (Steele, 2008: 3).
Mas o que é a segurança ontológica? Segundo Mitzen (2006: 342), trata-se "da
necessidade de se experimentar como um todo, uma pessoa contínua no tempo como
sendo, e não em constante mudança para perceber um sentido de agência". Sentir-se
ontologicamente seguro significa estar seguro sobre as suas próprias identidades.
Além disso, continuando com Mitzen (2006: 345), a segurança ontológica torna-se
importante porque, nesta perspetiva, a identidade é a base da agência de atores, pois
quando o indivíduo se encontra numa situação ontológica de insegurança, "não pode
relacionar-se sistematicamente com os meios no presente, muito menos com o plano
que se avizinha". A estes momentos de "profundas crises ontológicas" (Subotić, 2016:
614), chama-se trauma. O trauma, por sua vez, ocorre quando "os eventos externos não
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se encaixam perfeitamente na narrativa de segurança ontológica porque representam
um desafio à identidade interna ou externa do Estado" (Subotić, 2016: 614).
Face a estas crises ontológicas, as narrativas presentes nos imaginários das comunidades
são ativadas de forma a dar uma base estratégica para as ações políticas (Subotić, 2016).
Conforme Subotić, estes discursos dos deres políticos servem para criar pontes
cognitivas entre a ação política e a restauração da autobiografia para manter a sua
continuidade". As narrativas dão um significado intersubjetivo à mudança de política.
Tornam a mudança política compreensível e aceitável" (Subotić, 2016: 616).
A laicidade como pilar ontológico da França
Como parte da narrativa da identidade francesa, a laicidade é um dos aspetos mais
importantes da ontologia da República. Faz parte dos mitos e símbolos nacionais, que
"são recipientes nos quais as pessoas projetam imagens idealizadas dos seus valores,
culturas, histórias, comunidades e territórios. Em França, um entendimento particular da
laicidade está ligado a um sentido de identidade" (Gunn, 2004: 429). Contudo, para
melhor compreender a importância dada a este conceito no imaginário francês, importa
fazer uma recapitulação histórica da sua construção.
Gunn (2004) informa que houve dois períodos históricos em França essenciais para o
desenvolvimento deste conceito como parte da narrativa autobiográfica do país: a
Revolução de 1789, e o Período da Terceira República (TR), de 1870 a 1940. O ponto
mais importante discutido pelo autor é o facto de que a construção da laicidade "não
incorporou os elevados princípios da tolerância, neutralidade e igualdade; pelo contrário,
emergiu de períodos de conflito e hostilidade, a maioria dos quais visava a Igreja Católica
Romana" (Gunn, 2004: 433).
Durante a Revolução Francesa, um dos principais pontos críticos dos revolucionários foi
a influência que a Igreja Católica tinha nos assuntos públicos. Os objetivos dos mais
radicais (os jacobinos) eram uma separação total entre o Estado e a Igreja, bem como a
própria descristianização da sociedade. "[...] o espírito revolucionário francês de
cidadania é entendido como liberdade de religião" (Carle, 2004: 66). Apesar de mais
tarde se ter voltado contra protestantes e judeus, a Igreja Católica foi o principal alvo
atingido da revolução, sendo os seus bens confiscado e os seus deres acusados e
perseguidos. Gunn (2004: 438) defende que havia uma "exigência de que os cidadãos
escolhessem entre as suas religiões e o Estado"; por seu lado, Carle (2004: 66) lembra
que "um dos legados mais valorizados da Revolução é o Estado secular e a estrutura
institucional pública, e a educação secular implementada por Jules Ferry sob a Terceira
República [...]".
Na TR, depois de várias mudanças políticas, o extremismo da Revolução desaparecera.
Gunn (2004) narra que foi durante este período que o termo laicidade começou a ser
mais comum nos discursos políticos. Um dos grandes marcos da TR neste sentido foi a
total divisão jurídica entre a Igreja e o Estado em 1905, que tinha como princípio,
presente desde os tempos da Revolução, "a separação da sociedade civil da sociedade
religiosa, não exercendo o Estado qualquer poder religioso, nem as Igrejas qualquer
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poder político" (Capitant, 1930: 305). Portanto, "em França, laicidade identifica-se com
a República" (Bauzon, 2017: 177).
Durante a TR, o governo iniciou o estabelecimento de um sistema público de ensino
primário e começou a "formar professores como defensores da ciência para
contrabalançar o padre da aldeia" (Windle, 2004: 98). "A nova estrutura do poder secular
substituiu a comunidade religiosa por uma comunidade política, excluiu a religião da vida
política, e deu origem a um discurso ainda presente antirreligioso e anticlerical, que fez
da laicidade uma experiência particular". Este pensamento estava na perceção do Estado
francês de que devia "garantir a liberdade de consciência para todos e a igualdade de
todas as convicções" (Nugier et al. , 2016: 16), relegando a religião para a esfera
privada.
Ou seja, o Estado foi responsável pela neutralidade religiosa dos cidadãos em toda a
esfera pública (Nugier et al. , 2016: 16). Mais, o secularismo francês é visto como uma
garantia da neutralidade por parte do Estado com todas as religiões e uma coesão que
permite a unidade nacional (Berg e Lundahl, 2016). Como resultado, o uso de roupa
religiosa nas escolas francesas é considerado um ato religioso proselitista e como "uma
expressão inaceitável de uma formação religiosa que viola a neutralidade e o caráter
laico da escola pública" (Shadid e van Koningsveld, 2005: 48). Tudo isto é demonstrado
num discurso do antigo primeiro-ministro francês Laurent Fabius, em 2003: "A escola
não é apenas uma em muitos lugares; é onde moldamos os nossos pequenos cidadãos.
E o tríptico laicidade, República, escola é o tripé em que nos apoiamos" (Fabius, 2003).
Pode também afirmar-se que o modelo do Estado francês de ver a sociedade e as suas
inter-relações reforça a neutralidade da representação religiosa. Baseado no modelo
centralizador e unitário jacobino, o sistema insiste hoje numa relação individualista entre
o Estado e o povo (Doyle, 2011: 487). Para Doyle (2011: 478), isto é explicado por um
legado do período revolucionário em que, para "combater a hierarquia dos Estados
hereditários", o ideal da reconstrução da nacionalidade francesa se basearia na
emancipação de indivíduos de "grupos de afiliação". Por outras palavras, "o
republicanismo francês encorajou um forte soro do poder público democrático, mas
relegou filiações e identidades culturais, incluindo a religião, para a esfera privada"
(Doyle, 2011: 478).
O caso dos Hijabs nas escolas primárias
Em 1989, três crianças muçulmanas foram suspensas das suas escolas por não
abdicarem de usar o hijab na sala de aula. Isto gerou acalorados debates na sociedade
francesa sobre se o direito de usar o véu, "reavivou as controvérsias existentes, explorou
os medos nacionais do fundamentalismo islâmico e dramatizou novamente as
preocupações contínuas sobre o futuro das comunidades muçulmanas imigrantes em
França" (Feldblum 1993: 61). A controvérsia chegou ao mais alto tribunal de justiça da
França (o Conseil d'État), de onde surgiu o parecer de que o uso do hijab ou qualquer
outra forma de expressão religiosa não afeta os princípios da laicidade (Gunn, 2004). No
entanto, o mesmo tribunal declarou que os alunos podiam ser passivos de punição se
tentassem fazer qualquer tipo de propaganda religiosa ou perturbar as atividades
escolares.
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Como não estava claramente resolvida, a questão da utilização do hijab nas escolas
primárias continuava a ser combustível de debate no país. Ainda, o aumento da imigração
desde as antigas colónias francesas de maioria muçulmana, a partir da década de 1980,
começou a produzir tensão social em relação ao uso de roupa por parte das muçulmanas
no espaço público. A utilização do hijab e de outros adornos pelos muçulmanos em França
em locais públicos faz com que o estatuto da laicidade e os seus limites sejam
questionados. Isto até gera suspeita entre os franceses se os muçulmanos preferem a
sua identidade islâmica do que a francesa (Gunn, 2004). Como muitas destas mulheres
são imigrantes ou suas filhas, são vistas como estrangeiras, e os seus símbolos também,
não totalmente integrados nos valores-padrão e genuinamente franceses, de acordo com
as narrativas identitárias prevalecentes. "Os franceses, ao verem o véu, não se orgulham
de que o seu país seja tolerante e acolhedor de povos com outros credos, e sentem que
algo estrangeiro se infiltrou na sua sociedade (Gunn, 2004: 418-419).
Desde o episódio de 1989, vários casos semelhantes têm sido contestados em França,
entre aqueles que querem uma laicidade mais pura e os que não encontram conflitos
entre o uso de dispositivos religiosos e o conceito legal. Ademais, para Gunn (2004),
todavia, na maioria dos casos, o Conseil d'État é a favor do uso do véu, mas sempre
alertando para a questão da proselitismo e perturbação da ordem. Contudo, em 2004, a
legislação foi aprovada quase por unanimidade a favor da proibição do uso do hijab
(Windle, 2004).
Este movimento para fortalecer a laicidade (alguns autores até lhe chamam nouvelle
laicidade)
4
começou em 2003, quando o antigo primeiro-ministro Raffarin disse numa
entrevista televisiva que o véu deveria ser absolutamente punido nas escolas públicas
(Ockrent e Leclerc, 2003). Logo depois, o Ministro do Interior (posteriormente, Presidente
da República) Nicholas Sarkozy, afirmou perante a União das Organizações Islâmicas de
França que nenhuma mulher podia usar o véu em fotos de documentos oficiais (Gunn,
2004). Não obstante, embora a questão da laicidade tenha sido construída em relação à
Igreja Católica e exportada para outras religiões, "a ameaça do Catolicismo nunca foi
retratada como a ameaça contemporânea do Islão o é pela comunicação social. A velha
desconfiança do poder religioso é agora combinada com o medo da formação das
comunidades separatistas" (Windle, 2004: 98).
A preocupação do Primeiro-Ministro Raffarin sobre a alegada ameaça de que o uso do
hijab constituiria à República baseava-se numa questão chamada communautarisme.
Baseado numa "vida fundada na pertença à religião muçulmana", o communautarisme"
é visto como a recusa em adotar o estilo de vida tradicional francês e acomo a vontade
de reproduzir no território de acolhimento enclaves dos seus países de origem" (Bauzon,
2017: 189). Isto é reforçado pelas próprias palavras do ministro, dizendo que deveria
haver um "debate que envolvesse as escolas e o seu futuro", uma vez que "estamos
todos convencidos de que a escola é o espaço pririo da República" (Raffarin, 2003).
Além disso, o ministro (2003) afirmava ser preciso garantir que é na escola que o "valor
supremo chamado República não se debate com símbolos ostensivos de
communautarisme que venham a desequilibrar o nosso equilíbrio escolar". Raffarin
concluiu expondo que a escola deve permanecer como "o espaço por excelência da
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Para mais informação, ver Rio Nugier et al (2016).
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República, e depois da laicidade". Por conseguinte, as autoridades francesas têm a
perceção de que a identidade francesa é ameaçada por alegadas infrações à laicidade
por grupos religiosos.
Tendo em conta o aumento da intensidade do debate em todo o país, o Presidente
Jacques Chirac propôs a criação de uma comissão para avaliar a situação, que deveria
dar um parecer aao final de 2003. Esta comissão pretendia gerar "reflexão sobre a
aplicação do princípio da laicidade na República" (Stasi, 2003: 2). Denominado Relatório
Stasi (último nome do líder da comissão), o documento apresentou várias propostas de
inclusão social e melhoria da vida de comunidades marginalizadas, como os muçulmanos.
Não obstante, o ponto que recebeu mais atenção do público foi o seguinte:
"Adotar as seguintes disposições para as escolas: no que respeita à liberdade
de consciência e ao carácter adequado dos estabelecimentos sob contrato,
são proibidas nas escolas, faculdades e escolas secundárias" (Stasi, 2003:
68).
Em dezembro do mesmo ano, o Presidente Chirac pronunciou-se sobre o relatório e
abordou a questão da utilização de ornamentos religiosos nas escolas públicas. Na
televisão nacional, o presidente agradeceu os esforços da Comissão e fez observações
que explicariam a aprovação da proibição da utilização de símbolos religiosos pelo
parlamento francês em 2004. No início do seu discurso, Chirac declarou que
"o debate sobre o princípio da laicidade ressoa nas profundezas das nossas
consciências. Recorda-nos a nossa coesão nacional, a nossa capacidade de
conviver, a nossa capacidade de nos reunirmos sobre o essencial. A laicidade
está inscrita nos nossos corações. Está no centro da nossa identidade" (Eliseu,
2003: 1).
Ao reafirmar que a França é conhecida "como a pátria dos direitos humanos", continua a
elogiar o princípio. E conta como a laicidade é responsável pela realidade em que a França
vive. "É em fidelidade ao princípio da laicidade, a pedra angular da República, o eixo dos
nossos valores comuns de respeito, tolerância, diálogo, que apelo a todos os franceses
para se unirem". Continuando, "estes valores sustentam a singularidade da nossa nação.
[...]. São estes valores que fazem a França". Faz também referências diretas ao
communautarisme, afirmando que "não pode ser uma escolha da França. Tal seria
contrário à nossa história, às nossas tradições, à nossa cultura" (Élysée, 2003: 1-3).
Recordando o princípio de que "a escola é um santuário republicano que devemos
defender" (Eliseu, 2003: 5), Chirac deu a sua opinião final sobre o assunto. Estas foram
as suas palavras:
"Com isso em mente, estimo que o porte de roupas ou símbolos
ostensivamente religiosos deve ser proibido nas escolas e faculdades
públicas. Os sinais discretos, por exemplo, uma cruz cristã, uma estrela de
David, ou uma o de Fátima, continuarão a ser permitidos. Pelo contrário,
os símbolos ostensivos, ou seja, aqueles cujo tamanho gera reconhecimento
imediato a uma pertença religiosa, não são admitidos. O véu islâmico, o kippa
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ou uma cruz cristã grande, não terão espaço nas escolas públicas. A escola
pública permanecerá secular" (Eliseu, 2003: 5).
Em março de 2004, Chirac assinou uma lei aprovada pela Assembleia Nacional e pelo
Senado que proibia qualquer tipo de roupa religiosa nas escolas, incluindo o hijab.
Perante tudo isto, pode ver-se que a questão da laicidade e, consequentemente, da
identidade francesa, viu no Islão e no seu vestuário, a sua maior ameaça naquele
período. Embora as declarações da Comissão Stasi e de Chirac fossem sobre religiões em
geral, no texto foi possível constatar que tanto o início, como o desenvolvimento do
debate sobre os limites da laicidade e do communautarisme e do vestuário religioso em
espaços públicos, a partir de 1989, o Islão tinha sido o principal ponto de partida.
Porém, embora teoricamente se trate de uma contradição na lógica dos valores franceses
da tolerância e da liberdade religiosa, sendo uma questão das opiniões do Conseil d'État,
a decio de 2004 foi apoiada pelo enviesamento da segurança ontológica. Retomando
os pensamentos de Steele (2008) e Subotić (2016), os Estados criam autonarrativas para
que as suas ações passadas, presentes e futuras sejam justificadas em termos de
identidade "[...] os atores devem criar significados para que as suas ações sejam
logicamente consistentes com as suas identidades" (Steele, 2008: 11). Nesse sentido,
compreende-se a razão das políticas e o ressurgimento de debates sobre a laicidade na
sociedade francesa após o caso des foulards islamiques. As ansiedades sobre o futuro da
identidade coletiva e a perceção das ameaças entendidas como islâmicas "justificam uma
política, fundamentando que a mesma significa ou significaria sobre o respetivo sentido
de autoidentidade do Estado" (Steele, 2008: 12).
Em retrospetiva, nos discursos de Chirac, Laurent Fabius e Jean-Pierre Raffarin, -se
que as expressões religiosas dos muçulmanos franceses estavam a ser consideradas
como ameaças à continuidade da autobiografia hegemónica francesa. Os receios e
ansiedades da sociedade em relação à sua identidade e, consequentemente, à sua
existência, levaram o governo a tomar certas decisões.
Conclusões
Como demonstram as novas abordagens de estudos de segurança, as questões sociais e
identitárias m sido vistas como importantes chaves interpretativas de aparentes
realidades. Como conclusões, sugere-se que as manifestações e mobilizações políticas
em França em relação à utilização do hijab nas escolas públicas, entre 1989 e 2004,
foram reações à defesa do princípio da laicidade, como uma das bases ontológicas da
nação.
Mas é de salientar que outras questões necessárias à compreensão desta questão estão
fora do âmbito deste trabalho. As reflexões sobre se estas reações vieram da sociedade
francesa em geral ou apenas daqueles que procuram manter o status quo racial e
religioso ficam para futuras abordagens. Além disso, questões como a comunitaridade
e a perceção sobre a relação à integridade nacional foram levantadas ao longo do texto,
mas o desenvolvidas de forma abrangente. Outro ponto a abordar é se a ameaça vista
no Islão é um preconceito para com os muçulmanos, ou para qualquer outra religião que
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não a cristã, de confissão católica, uma vez que a França tem uma memória de
intolerância com protestantes (Dia de São Bartolomeu) e judeus (Caso Dreyfuss). Em
todo o caso, o objetivo deste trabalho o é esgotar a discussão, mas destacar uma
perspetiva negligenciada sobre a identidade na sociedade francesa.
Foram analisados discursos de altos cargos políticos (nomeadamente do executivo), que
foram recebidos por uma sociedade temente e ansiosa pela sua identidade, devido ao
grande fluxo de imigrantes muçulmanos de antigas colónias francesas, que agitariam
narrativas coletivas. Ao fazê-lo, foram criadas ligações cognitivas com a autobiografia
francesa, o que tornou aceitável a decisão de proibir o uso de vestuário religioso
ostensivo nas escolas públicas, para proteger as bases ontológicas da identidade
nacional. Porém, face aos movimentos de imigração e ao vestuário religioso típico, o
Islão tornou-se o principal alvo destas políticas.
Por conseguinte, o debate sobre a utilização do hijab nas escolas públicas pôde estar no
debate da segurança ontológica. Em conclusão, a utilização do aparelho de Estado foi
uma ferramenta para defender a identidade francesa, protegendo o princípio da laicidade,
antes do Islão, dentro das escolas públicas.
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A PARADIPLOMACIA COMO RESULTADO DA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO
NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO: O CASO DA INDONÉSIA
ARIO BIMO UTOMO
ariobimo.hi@upnjatim.ac.id
Doutorando em Ciências Sociais na Universitas Airlangga (Indonésia). Professor Auxiliar no
Departamento de Relações Internacionais na Universitas Pembangunan Nasional "Veteran" Jawa
Timur. Investigador no Centro de Identidade e Estudos Urbanos. Assessor do governo da cidade
de Surabaya em programas de cidades gémeas. A sua investigação centra-se em questões que
envolvem a paradiplomacia, exercida especialmente pelas cidades.
Resumo
O estudo dos assuntos internacionais tem-se vindo a associar cada vez mais aos contextos
locais. Este facto tem conduzido a uma abordagem mais descentralizada das relações
internacionais, onde se tem prestado mais atenção ao papel das unidades subnacionais, como
cidade e província. Inúmeros estudos com análises sistémicas têm examinado a globalização
como estrutura e o seu impacto na emergência de governos subnacionais em atividades
externas, o que também pode ser entendido como paradiplomacia. No entanto, a análise a
nível estatal de como a paradiplomacia se relaciona com o papel do Estado em evolução na
era contemporânea tem sido limitada. Este artigo tem por objetivo preencher a lacuna ao
analisar a experiência da Indonésia, um estado unitário e uma democracia emergente, na
reformulação das suas estruturas institucionais para abrir caminhos aos seus governos locais
na condução da paradiplomacia. Este estudo exploratório recorreu aos documentos oficiais
sobre a autonomia regional da Indonésia, principalmente relacionados com cooperação
internacional, disponíveis em bibliotecas. Este artigo afirma que a ascensão da paradiplomacia
na Indonésia é impulsionada pela estatização de questões globais, descentralização do poder
e fragmentação da antiga e poderosa agência central.
Palavras-chave
Paradiplomacia; transformação do Estado; Indonésia
Como citar este artigo
Utomo, Ario Bimo (2022). A paradiplomacia como resultado datransformação do Estado na
era da globalização: o caso da Indonésia. In Janus.net, e-journal of international relations.
Vol. 13, 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.5
Artigo recebido em 21 Agosto 2021 e aceite para publicação em 16 Fevereiro 2022
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A paradiplomacia como resultado da transformação do Estado na era da globalização:
o caso da Indonésia
Ario Bimo Utomo
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A PARADIPLOMACIA COMO RESULTADO DA TRANSFORMAÇÃO DO
ESTADO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO: O CASO DA INDONÉSIA
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ARIO BIMO UTOMO
Introdução
O estudo das Relações Internacionais geralmente ainda gira em torno do comportamento
dos países além-fronteiras. A posição central do estado, de acordo com Lake (2007: 1),
é a de "representar o futuro previsível". Essa ideia é, a certo ponto, inegável.
Enraizadas no estudo da Ciência Política, as Relações Internacionais tendem a explicar
por que um determinado país realiza ações específicas ou não realiza determinadas
ações. Embora os atores não estatais comecem a ser incluídos na equação, geralmente
ainda lutam com a forma como o Estado responderá às suas ações.
Um bom exemplo o os estudos de caso sobre terrorismo, um dos tópicos atuais mais
salientes nas bolsas de estudos de política internacional. Embora muitos estudos se
tenham dedicado à análise dos terroristas como atores não estatais, tendem a enfatizar
a forma como o Estado irá agir contra esses atores. Por exemplo, Lai (2017) examina os
impactos do terrorismo na política externa dos estados. Valeriano e Maness (2018)
também destacam as relações entre terrorismo e segurança cibernética. Por último, mas
não menos importante, Okafor e Piesse (2018) e outros autores correlacionam as causas
do aparecimento do terrorismo e a sua relação com situações em países frágeis. Sem
desmerecer outros estudos que se concentram em encontrar a ligação entre fenómenos
internacionais e comportamento a nível estatal, isto demonstra que as Relações
Internacionais é uma área que ainda coloca os atores estatais como figura central no
seu estudo.
No entanto, o movimento cada vez mais vigoroso das questões internacionais,
impulsionado pelo fluxo crescente da globalização, levou os investigadores das Relações
Internacionais a encontrar explicações alternativas para as interações entre os atores
internacionais. As queses internacionais espalham-se apesar das fronteiras políticas
existentes. Não podemos realmente distinguir os domínios nacional e internacional, pois
a linha entre os dois esbateu-se, levando-nos ao conceito de interméstico, uma junção
dos termos "internacional" e "doméstico". Este termo aparece amplamente em inúmeros
estudos que tentam desviar a nossa atenção para uma versão política global mais local.
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Artigo traduzido por Carolina Peralta.
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A paradiplomacia como resultado da transformação do Estado na era da globalização:
o caso da Indonésia
Ario Bimo Utomo
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Esses estudos recordam-nos que os autores contemporâneos precisam de prestar mais
atenção aos aspetos nacionais quando analisam questões globais (ver Friedrich, 2018;
Huijgh, 2017; Huang e Wang, 2021).
Os estudos sobre o cruzamento entre o contexto global e o local na era da globalização
foram iniciados por Robertson (1995), que alertou os investigadores das Ciências Sociais
para serem cautelosos ao assumir a globalização como um fenómeno que se sobrepõe
aos assuntos locais. De acordo com Robertson, o debate dicotómico sobre
homogeneização ou particularização não consegue ver completamente o problema
porque o que está a acontecer atualmente é a transcendência entre os dois, dando
origem a um conceito que ele cunha como "glocal" ou uma combinação de globalização
e local.
Por outras palavras, a glocalização também pode incluir o processo de hibridização.
Pieterse (2019) formula essa ideia de globalização que não elimina automaticamente os
aspetos particulares. Uma boa analogia é a criação do McAlooTikki pelo McDonald's da
Índia para atender os clientes locais, embora a disseminação do mencionado fast food
em si seja um fenómeno global (Reyaz, 2013: 244). Essa situação deu origem a termos
como “pensar globalmente, agir localmente”, que pode ser interpretado como cada região
tem sua particularidade mesmo diante do fenómeno da globalização, o que parece ser
uma ocorrência universal.
Pieterse (2019) afirma que a globalização é um processo extenso que permeia todos os
aspetos da vida. Outra ideia essencial deste autor é que a glocalização também pode
fortalecer o regionalismo supranacional e subnacional. Neste contexto, significa que a
globalização pode criar novos blocos supranacionais que respondam a questões globais,
e também fazer com que atores governamentais subnacionais ajustem as suas posições
sobre essas questões. Assim, a globalização em termos estruturais deve ser entendida
também como "o aumento dos modos de organização disponíveis: transnacional,
internacional, nacional, microrregional, municipal e local" (Pieterse, 2019: 72-73).
À luz dessa explicação, este artigo procura apresentar uma faceta da globalização
relacionada com a forma como as unidades subnacionais estão a ganhar mais poder nos
assuntos internacionais. No campo das Relações Internacionais, esses assuntos
internacionais conduzidos por governos locais chamam-se diplomacia paralela ou
paradiplomacia. Este artigo procura demonstrar como a globalização permeia o nível
nacional e transforma o papel dos Estados ao tornar os governos subnacionais novos
atores internacionais. O autor examina o caso da paradiplomacia da Indonésia através
do qual podemos ver como a globalização conduz à ascensão de atores subnacionais.
Este artigo está estruturado da seguinte forma. Em primeiro lugar, o autor descreve a
lógica por trás da globalização e o seu impacto na disfunção estatal na realização de
atividades para resolver os seus problemas. Em segundo lugar, examina a forma como
a disfunção do Estado faz emergir os atores subnacionais. Em terceiro lugar, expõe a
forma como o Estado se fragmenta e delega o seu poder aos atores subnacionais para
realizar a paradiplomacia, com recurso a estudos de caso na Indonésia que podem ser
relacionados com o fenómeno da globalização mencionado nos dois subcapítulos
anteriores.
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A paradiplomacia como resultado da transformação do Estado na era da globalização:
o caso da Indonésia
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Ao fazê-lo, este artigo utiliza a perspetiva de Transformação do Estado desenvolvida por
Hameiri et al. (2019), um quadro de análise que enfatiza o desenvolvimento dos papéis
dos Estados na era da globalização, onde o global permeia o local. O núcleo dessa
perspetiva consiste em três aspetos: (1) fragmentação, (2) descentralização e (3)
internacionalização. A fragmentação consiste na delegação do processo de formulação
de políticas em diferentes atores. Então, descentralização significa atribuir poder a
entidades subestatais, por exemplo, governos provinciais e municipais. A
internacionalização entende que uma encruzilhada entre questões domésticas e
internacionais, pelo que as agências estatais começaram a interagir além-fronteiras
(Hameiri et al., 2019: 4-5). Essas três dimensões serão os pontos de partida para ver
como a paradiplomacia ocorre devido ao desenvolvimento dos estados sob a
globalização.
O principal argumento deste artigo é que a paradiplomacia é um produto da
transformação do Estado impulsionada pela forma como a globalização lentamente
incapacita os Estados centralizados e força-os a delegar parte do seu poder em atores
subnacionais. Por outro lado, a globalização não cria uniformidade, mas estimula a
glocalização, absorvendo as questões internacionais nas realidades nacionais. Como
resultado, os governos subnacionais acolhem a globalização como uma oportunidade de
se internacionalizarem através de atividades de paradiplomacia.
Estudos anteriores sobre o tema
O estudo da paradiplomacia ainda está em ascensão, tendo-se tornado popular nos
últimos anos na Indonésia. Entre os primeiros trabalhos que exploram o conceito de
paradiplomacia na perspetiva da Indonésia, incluem-se os de Damayanti (2012), que
argumentou que a prática da paradiplomacia pode ser utilizada pela Indonésia para
aumentar a sua posição dentro da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).
O estudo propõe que a paradiplomacia tem o potencial de aumentar o nível de
cooperação entre os membros das organizações regionais.
Outros artigos, como os de Effendi (2012), Alam et al. (2020), assim como Moenardy e
Sinaga (2021) somam-se ao corpo da literatura ao usar a perspetiva económica para
apresentar os benefícios da paradiplomacia. Esses artigos defendem que a
paradiplomacia é uma oportunidade para os governos locais da Indonésia promoverem
a sua competitividade internacional, ao aumentar o espírito empreendedor do governo.
Mukti (2013), por outro lado, faz um estudo mais hostico, explorando a questão da
paradiplomacia a partir de quatro ângulos: Relações Internacionais, diplomacia, jurídico-
formal e prático. O autor destaca a proeminência da Autonomia Regional da Indonésia
ao permitir que o governo subnacional atue em assuntos internacionais antes de indicar
estudos de caso da província de Java Ocidental, Java Oriental e da Região Especial de
Yogyakarta.
Em relação ao uso da Transformação do Estado no estudo da paradiplomacia da
Indonésia, o trabalho de Karim (2019) forneceu uma base essencial ao destacar as
atividades de áreas fronteiriças da Indonésia, como Batam e Kalimantan Ocidental, que
participam em atividades de paradiplomacia com territórios estrangeiros fronteiriços
(Singapura e Malásia, respetivamente). No entanto, o ponto de vista utilizado por Karim,
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neste caso, é a dimensão dos estudos de fronteira, enfatizando a forma como as regiões
respondem aos desafios de gestão de fronteiras que geralmente ocorrem em áreas que
as partilham. Outra dimensão da paradiplomacia que não foi explorada é a dimensão da
globalização, ou como a intensificação da disseminação de questões globais acaba por
encorajar a redistribuição do poder do Estado para as regiões (Kuznetsov, 2014).
Portanto, este artigo oferece uma nova contribuição a partir desse aspeto, ilustrando a
forma como a globalização encorajou a Indonésia a delegar nas regiões o poder de fazer
diplomacia.
O autor refere que enquanto muitos estudos sobre a paradiplomacia da Indonésia
avaliam diretamente estudos de caso de práticas ou analisam-nos do ponto de vista
jurídico, partir da globalização i adicionar à literatura existente a visão da
paradiplomacia como uma necessidade. Nos países em desenvolvimento, a
paradiplomacia não é a melhor porque as regiões que a implementam não o fazem
adequadamente (Nganje, 2013). Entretanto, também a possibilidade de que o
conhecimento mínimo de paradiplomacia transforme a atividade numa mera cerimónia
(Tavares, 2016). Assim, esse tipo de estudo é necessário como forma de preparar os
países em desenvolvimento para acolher a globalização de forma mais responsiva às
questões essenciais.
Glocalização e a ascensão de atores subnacionais
Embora o sistema de estado-nação vestefaliano pareça ser o status quo predominante,
não está imune a objeções passado todo esse tempo. Assim, apresentamos uma noção
de "ordem pós-vestefaliana" para realçar o sistema global em evolução. Linklater (1996:
78) define o chamado sistema global pós-vestefaliano como um sistema no qual a
natureza excludente da soberania tradicional se apresenta como "o propósito central do
Estado é mediar diferentes lealdades nas esferas subnacional, nacional e internacional".
Com base no estudo de caso europeu, o autor sustem esse argumento dizendo que o
vínculo que mantém as comunidades unidas dentro de um estado está a ser desafiado
pela globalização e novas lealdades para com as comunidades subnacionais.
Noutro artigo, Osiander (2001: 251) chegou a descrever a ordem vestefaliana como um
"mito", uma construção que dificulta o desenvolvimento de diferentes teorias das
Relações Internacionais ao fixá-la num conceito amplamente imaginário de soberania
que encontra as suas raízes num evento do século XVII. O debate tem continuado até
agora e desenrola-se através de diferentes aspetos da política global, como segurança
(Sperling, 2017; Doyle e Dunning, 2018; Mircea, 2020), cultura (Mancini, 2017; Beyer,
2020), bem como economia política (Langan e Price, 2020; Hester e William, 2020).
Consequentemente, os estados-nação são cada vez mais disfuncionais na gestão de
assuntos num mundo cada vez mais interligado (Bell 1987; Ohmae, 1992). No entanto,
a partir de uma gama tão vasta de discussões, conclui-se que a globalização criou a
desterritorialização e a descentralização como novas normas na gestão das questões
globais.
No entanto, a globalização em si não é um monólito, e nem todos os países a vivenciam
uniformemente. Seguindo a ideia de Swyngedouw (2004), a globalização é um processo
nos dois sentidos. Primeiro, infunde questões e tendências globais na vida humana diária.
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Por outro lado, a globalização também permite que atores subnacionais expressem os
seus interesses em fóruns internacionais. De acordo com Robertson (1995), esse
processo nos dois sentidos chama-se glocalização. Robertson argumenta que a
globalização cria não apenas uniformidade, mas também enclaves culturais, cada um dos
quais pode ter as suas características próprias na globalização, tornando-se assim uma
versão “localizada” das questões globais. Robertson crê que a globalização pode conduzir
a diferenças na política local que diferenciam a prática da globalização num lugar versus
outro. Essa condição faz com que as abordagens possam diferir entre os países para
atender às tendências globais.
Relativamente à ascensão dos atores locais, Keohane e Nye (1971) são os nomes de
destaque que trazem o estudo para a mesa através do seu trabalho intitulado
Transnational Relations and World Politics: An Introduction. Os autores desenvolvem um
quadro teórico que parte da sabedoria tradicional, que coloca os Estados como unidade
básica de ação na política global. Este trabalho assenta principalmente no realismo, que
os Estados como os principais atores nos assuntos internacionais. Keohane e Nye
argumentam que as relações cada vez mais interdependentes trarão uma nova tendência
denominada "relações transnacionais", ao invés das convencionais "relações
internacionais". Por definição, as relações transnacionais referem-se a "interações além
das fronteiras do Estado que não o controladas pelos órgãos centrais de política externa
dos governos" (Ibidem: 331). Nesse caso, a noção de transnacionalismo parte do
reconhecimento de que a dinâmica entre os Estados como a conhecemos, se torna a
base do pensamento realista e não ocorre no cuo. Esse argumento significa que vários
outros fatores contribuem, incluindo geografia, política nacional e o avanço da tecnologia.
Portanto, a interdependência global também cria uma janela de oportunidade para os
novos atores internacionais construírem interesses mútuos.
A necessidade de ver a ascensão desses novos atores internacionais também pode ser
percebida no discurso de Javier Solana (1998) no Simpósio sobre a Relevância Política
da Paz de Vestefália em 1648. Em relação ao conceito de soberania vestefaliana, ele
insinua que o ponto de vista predominante centrado no estado é menos capaz de albergar
a crescente interdependência dos atores neste mundo globalizado. Com base nas lições
da União Europeia, Inanc e Ozler (2007: 127) concordam com este argumento ao afirmar
que a noção de relações internacionais tradicionais é insuficiente para explicar o
crescente nível de interação e transação no contexto da globalização.
A partir daqui, podemos concluir que estamos perante uma condição em que (1) os
autores precisam de redirecionar a sua atenção para a versão cada vez mais glocalizada
das questões internacionais e (2) os Estados precisam de se reestruturar no âmbito da
globalização. Caso contrário, serão altamente disfuncionais, pois as questões estão a
mover-se rapidamente, apesar das fronteiras existentes, e essas questões permeiam o
âmbito nacional dentro das suas fronteiras. Por outro lado, isso significa uma condição
em que as relações internacionais tradicionaiso reformuladas para incluir mais atores.
Se relacionarmos os assuntos acima descritos com o conceito de glocalização mencionado
anteriormente, então a unificação do mundo num sistema mais integrado fez com que
os governos locais comecem a comprometer-se enquanto atores subnacionais (Mukti,
2014: 176). Teoricamente, esse fenómeno é conhecido como paradiplomacia, uma união
entre "paralelo" e "diplomacia", que se traduz na capacidade dos atores subnacionais de
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se envolverem na diplomacia estrangeira para satisfazer os seus interesses específicos
(Wolff, 2009). Chama-se "paralelo" porque ocorre ao lado da diplomacia tradicional que
o Estado realiza. Esta definição infere um significado onde os estados anfitriões partilham
o seu poder relativamente a atividades estrangeiras com os governos subnacionais.
Atualmente, a noção de paradiplomacia é normalizada como prática padrão nas relações
internacionais. Neste caso de normalização, o autor defende que a paradiplomacia é
demasiado importante para ser descartada no atual contexto internacional. A
normalização da paradiplomacia mede-se pelos resultados pretendidos, mas também
pode ser estudada como uma afirmação de “autonomia institucional num contexto cada
vez mais complexo” (Cornago, 2010: 35). De seguida, é fundamental desvendar a lógica
por trás da existência da paradiplomacia devido ao papel transformador do Estado no
contexto atual.
Transformação do Estado e paradiplomacia
Anteriormente, vimos que a globalização traz consigo a interconexão de questões e
atores, o que acaba por tornar obsoleta a natureza absoluta do Estado. Aqui, o autor
argumenta que uma das lentes que podemos usar para ver o fenómeno da
paradiplomacia é relacioná-la com a forma como o papel do Estado evoluiu na
globalização.
O conceito de transformação do Estado foi desenvolvido por Hameiri e Jones (2016). A a
ideia principal desse conceito partiu do pressuposto de que a governança global enfrenta
uma crise. Enquanto isso, a crise em questão é a dificuldade em equilibrar a relevância
das instituições multilaterais com os interesses internos de um país. Assim, os autores
argumentam que nesta era de globalização, o que é mais crítico para o Estado é
transformar as suas funções institucionais para melhor responder aos desafios globais.
A consequência de viver na era pós-vestefaliana é que os países não podem continuar a
minimizar o impacto de um problema nos seus territórios. Um estudo de caso sobre este
tópico é a mitigação da pandemia Síndrome Respiratória Aguda Grave, mais conhecida
por SARS, na China. O confronto entre a lógica vestefaliana e pós-Vestefália está aqui
em jogo, porque a China, como o primeiro país afetado, decidiu adiar as informações
oficiais sobre a SARS para salvar a economia doméstica. Por outro lado, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) anunciou vigorosamente os resultados da pesquisa sobre a
SARS, que a China não pôde continuar a esconder do público. Nesse caso, a
metagovernança da OMS coloca-a como uma agência de supervisão internacional que
define as instituições, capacidades e relacionamentos que a China teve que desenvolver
internamente para lidar com os problemas globais de saúde (Hameiri e Jones 2016: 392).
A teoria da transformação do Estado afirma uma “pluralização da agência estatal
transfronteiriça por meio de processos contestados e desiguais” (Hameiri et al., 2019:
1). Essa ideia surge como uma análise mais aprofundada sobre a ordem pós-vestefaliana,
que não pode continuar a considerar que apenas uma autoridade central sólida pode
"resolver todas as questões e contestações numa única política externa" (Ibidem: 3).
três pontos que Hameiri et al. apresentaram para explicar essa transformação. Em
primeiro lugar, há um processo de fragmentação, no qual a agência central inicialmente
poderosa foi agora pressionada a distribuir os seus recursos por diferentes atores e
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subagências, incluindo agências públicas e privadas. Em segundo lugar, há também o
processo de descentralização, através do qual a agência central partilha o seu poder
com entidades subnacionais, como regiões, províncias e cidades. Por fim, a
transformação do Estado também ocorre à medida que as agências nacionais se
envolvem internacionalmente. Nesse sentido, a globalização não será experienciada
igualmente por todos os estados do mundo. Além disso, esse conceito reafirma a noção
pós-vestefaliana de que os Estados não devem continuar a ser vistos como atores
unitários na política internacional.
De acordo com essa explicação, a paradiplomacia equivale ao estádio de
internacionalização da transformação do Estado. O autor encara-o como um esforço de
transformação do Estado para responder a questões globais cuja influência se estendeu
ao nível nacional. Repetindo o que Bell (1987) e Ohmae (1992) argumentaram sobre o
conceito disfuncional do estado-nação unitário no sistema pós-vestefaliano, a
paradiplomacia é necessária para que os países se mantenham relevantes no âmbito do
advento de novos atores internacionais. Nesse caso, a prática do Estado é permitir que
os governos locais participem na formulação de atividades estrangeiras com base nos
seus interesses específicos. Para dar um exemplo de como a transformação do Estado
está ligada à paradiplomacia, a próxima seção analisa a forma como a transformação das
funções do Estado na Indonésia fez com que mais regiões pratiquem a paradiplomacia.
O caso da Indonésia
A Indonésia constitui um estudo de caso interessante. É um país que recentemente tem
vindo a passar por uma transição de um governo autoritário para um democrático.
Anteriormente, a Indonésia estava sob o regime da Nova Ordem de Suharto, onde a sua
Constituição era "sacralizada" na medida em que criticar Suharto era igual a criticar a
Constituição. Isso resultou na legitimação do regime autoritário de Suharto durante 32
anos (Hutagalung, 2017). Nessa época, a Indonésia era um país centralizado onde o
poder estava concentrado nas mãos do Presidente e o desenvolvimento baseado na
autonomia regional não tinha lugar na realidade política da Indonésia.
No entanto, em 1998, o governo de Suharto colapsou na sequência da crise na Ásia.
Delin (2000) defende que a queda do regime de Suharto pode ser categorizada como um
dos fenómenos da terceira onda de democratização vivida nos países do mundo. Nesse
contexto, Delin propõe que a globalização contribuiu para a queda de regimes autoritários
porque foi impulsionada por vários fatores, como o aparecimento de democratas
indonésios educados no ocidente e a perda de legitimidade de governos autoritários
perante a crise económica global. Este argumento, por exemplo, é consistente com
outros artigos que analisam a relação entre globalização e democratização, como o de
Acemoglu e Robinson (2006), que afirmam que manter o autoritarismo será cada vez
mais caro num mundo cada vez mais integrado, e o de Xie et al. (2021), que escreve
que a globalização está positivamente correlacionada com a democratização com base
no seu estudo de 129 países no período 1974-2018.
Segundo a teoria da Transformação do Estado, a primeira dimensão que altera a função
do Estado é a emergência da fragmentação do corpo inicialmente centralizado. Essa
condição deve-se à incapacidade do Estado em gerir problemas cada vez mais
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complexos. A fragmentação é marcada pela disseminação de agências de tomada de
poder que antes se encontravam centralizadas numa agência, muitas vezes com
responsabilidades sobrepostas (Hameiri et al., 2019: 5).
A Constituição de 1945 estipula que a Indonésia é um estado unitário. A Constituição,
portanto, implica que o poder de decisão final recai sobre o governo central. Este
contexto é diferente do caso dos estados federados, onde os estados constituintes têm
mais autonomia no processo legislativo. Antes da reforma de 1998, a Constituição de
1945 reconhecia o modelo trias politica de fragmentação do poder, que divide o governo
em legislativo (fazer as leis), executivo (execução das leis) e judiciário (supervisão da
implementação das leis). No entanto, esta divisão de poderes manteve-se ineficaz
porque, na prática, o legislador também podia emitir decretos que apoiassem a vontade
dos governantes (Hutagalung, 2017: 339). Após a emenda da Constituição de 1945 em
1999 após a queda de Suharto, os poderes estão agora ainda mais fragmentados em
seis poderes, e esses poderes o: constitutivo, executivo, legislativo, judicial,
fiscalizador e económico (Marlina, 2018: 176). Nesse caso, a fragmentação ocorreu na
era pós-Suharto para minimizar o abuso de poder nas mãos do executivo.
Em primeiro lugar, o poder constitutivo é o poder de alterar e estabelecer a Constituição
e é exercido pela Assembleia Consultiva do Povo (Majelis Permusyawaratan Rakyat). O
poder executivo, que é o poder de implementar as leis e a administração do governo
estatal, é exercido pelo Presidente. O poder legislativo, que é o poder de fazer leis, é
detido pela Câmara dos Representantes (Dewan Perwakilan Rakyat). O poder judicial,
que é o poder de manter tribunais para defender a lei e a justiça, é exercido pelo Supremo
Tribunal e pelo Tribunal Constitucional.
O penúltimo poder é o poder fiscalizador relacionado com a realização de fiscalizações
sobre a gestão e responsabilidade pelas finanças do Estado. A Agência de Auditoria
Financeira exerce esse poder. O sexto e último poder, o poder económico de definir e
implementar a política monetária, regular e manter o valor da moeda, é exercido pelo
Banco da Indonésia enquanto banco central da Indonésia.
Embora esta dimensão não se relacione diretamente com a discussão da prática da
paradiplomacia na Indonésia, fornece alguns antecedentes sobre o atual estado de
fragmentação do poder no seu governo. Afinal, essa fragmentação do poder marca o
contexto da democratização pós-reforma da Indonésia. Esta condição implica preparação
para a cooperação internacional devido à sua crescente preocupação com uma
governança mais responsável. Uma explicação mais detalhada da transferência de poder
do centro para as regiões será facilitada pela implementação da descentralização.
A partir do aspeto da descentralização, a Indonésia introduziu a autonomia regional, que
mais tarde se tornaria a próxima etapa após a fragmentação ocorrida após a queda do
regime da Nova Ordem. A autonomia regional na era da reforma foi a resposta aos
pedidos da sociedade que frequentemente apareciam no regime da Nova Ordem, como
o problema do desenvolvimento desigual, o governo muito centralizado e a ineficácia da
burocracia. A primeira regulamentação sobre a descentralização foi estipulada através
da Lei n.º 32 de 2004 sobre a Autonomia Regional. Esta regulamentação foi
posteriormente alterada pela Lei nº 23 de 2014 para acompanhar os desenvolvimentos
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no estado, administração estatal e questões relacionadas com a administração do
governo regional (Indonésia, 2004).
O aspeto da descentralização é fundamental para o estudo, pois a paradiplomacia está
relacionada com a forma como os poderes são disseminados a partir das agências
centrais para as regiões que a implementam. Embora a paradiplomacia coloque os
governos subnacionais na condição de atores de destaque, os estados com maior
soberania são os que precisam de conferir o poder aos atores regionais. Portanto, embora
os governos regionais da Indonésia possam agora administrar os seus assuntos, a sua
autoridade ainda é limitada (Mukti et al., 2020: 140). Há seis poderes reservados apenas
para o governo central. Esses poderes são a política externa, defesa, segurança,
judiciário, económico e religião (Indonésia, 2014).
Do ponto de vista da internacionalização, precisamos de entender que o contexto
subjacente às atividades de paradiplomacia da Indonésia é a consciência de que as
atividades estrangeiras o são apenas domínio do governo central. No âmbito da Lei
37 de 1999 sobre Relações Externas, Artigo 1 parágrafo (1), Artigo 5 parágrafo (1) e
parágrafo (2), esimplícito que as relações externas incluem qualquer atividade que
envolva aspetos internacionais realizada pelo governo a nível nacional e subnacional. O
nível subnacional referido por este regulamento são as cidades (Kota), regências
(Kabupaten) e as províncias (Provinsi).
Na sua implementação, a paradiplomacia dos governos subnacionais indonésios é
supervisionada pelo Ministro do Interior e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros. Os
dois ministros coordenam a implementação das relações externas. Na Lei n.º 24 de 2000,
artigo 5.º, n.º 1, estabelece-se que as instituições estatais e agências governamentais
que tenham planos para celebrar acordos internacionais, devem primeiro realizar
consultas e coordenação sobre os planos com os ministros correspondentes.
A Lei n 32 de 2004 também refere que as regiões autónomas podem realizar a
cooperação externa prevista no n.º 1 do artigo 42.º. O artigo refere que a mara
Regional de Representantes (Dewan Perwakilan Rakyat Daerah) tem a função de aprovar
a cooperação internacional realizada pelos governos regionais. O artigo também enfatiza
que, além das atividades das cidades ou províncias gémeas, os governos locais também
podem fazer "acordos de cooperação técnica, incluindo assistência humanitária,
cooperação de encaminhamento de empréstimos e doações, cooperação de participação
de capital e outras cooperações de acordo com as leis e regulamentos" (Mukti, 2014:
182).
A essência da transformação do Estado como resposta à glocalização das questões está
a ser lentamente capturada por meio de oportunidades de paradiplomacia para as
cidades, regências e províncias da Indonésia. Atualmente, as regiões da Indonésia estão
a começar a estabelecer relações de cooperação com base nos interesses que mais
desejam perseguir. Segundo Lecours (2008), os interesses na paradiplomacia são
divididos em três níveis. O primeiro é o interesse económico, envolvendo atividades de
cooperação que atraem investimentos estrangeiros ou promovem produtos locais. O
segundo é o interesse pelo conhecimento, um nível de paradiplomacia que visa aumentar
o conhecimento por meio de intercâmbios e programas de capacitação. O terceiro é o
interesse de identidade política, uma paradiplomacia que tenta apresentar uma imagem
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internacional distinta da do Estado-mãe. Em conexão com a Constituição indonésia, que
reserva a implementação da política central ao poder estatal, os governos subnacionais
indonésios só podem exercer a paradiplomacia no primeiro e segundo veis.
A paradiplomacia no primeiro nível, ou seja, os interesses económicos, pode ser
encontrada em questões como o turismo e a economia criativa. Por exemplo, o turismo
é uma questão glocalizada predominante na qual muitos governos regionais da Indonésia
se concentram. Tornou-se foco atenção por causa de sua posição promissora como
extensão da estratégia de economia criativa na era atual. Arionesei et al. (2014)
constatam que o turismo tornou-se atualmente uma questão global devido ao aumento
do tempo de lazer, acompanhado de um melhor nível de vida, além do aumento da
procura turística por parte da comunidade internacional. O desenvolvimento da
tecnologia da informação possibilitou que as pessoas encontrassem novos destinos
turísticos. Em resposta a esse turismo globalizante, a cidade de Bandung em Java
Ocidental abordou a questão ao desenvolver o seu próprio conceito de "turismo halal" ao
conduzir a paradiplomacia por meio de feiras de turismo, convidando representantes de
países muçulmanos, bem como jornalistas estrangeiros a vir a Bandung (Dermawan et
al., 2020). Por outro lado, regiões altamente turísticas, como Bali e a Região Especial de
Yogyakarta, também o conhecidas por promover os seus potenciais turísticos através
de compromissos estrangeiros (Adil, 2017; Rahmawati, 2019; Sabarno, 2021).
No segundo vel da paradiplomacia, a paradiplomacia interessada em aumentar o
conhecimento, podemos tomar como exemplo as questões ambientais. Para responder
às questões ambientais que começam a ser sentidas a nível local, cidades como Surabaya
(Java Oriental) estabeleceram uma paradiplomacia temática com a cidade de Kitakyushu,
com foco na cooperação verde. Essa parceria com Kitakyushu também conduziu ao
desenvolvimento do Programa Cidade Gémea Verde para gerir resíduos e evitar que esse
problema ambiental se torne para um problema de saúde mais sério (Wardhani & Dugis,
2020). Analisando o contexto internacional que levou à cooperação, podemos constatar
que a escolha do tema da cooperação verde partiu de uma necessidade de responder ao
décimo primeiro ponto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), referentes
a cidades e povoações sustentáveis. Este ponto em relação aos ODS é então traduzido
no plano nacional da Indonésia de seguir os ODS como uma prioridade de
desenvolvimento nacional que requer a sincronização das políticas de planeamento a
nível do governo subnacional.
Com base nos ODS, Surabaya então traduziu-a numa visão de "Surabaya, uma cidade
próspera com um caráter forte e uma competitividade global baseada na ecologia"
(Governo da Cidade de Surabaya, 2016). Surabaya também implementou planos de
desenvolvimento regional, que o governo da cidade de Surabaya facilitou através de
acordos de cooperação externa, um dos quais com Kitakyushu relativamente à
cooperação verde. A implementação da cidade gémea verde entre Surabaya e Kitakyushu
é um exemplo de como a nacionalização das questões globais se traduz na
paradiplomacia entre os governos subnacionais.
É certo que as atividades de paradiplomacia realizadas pelas regiões da Indonésia ainda
estão longe de ser perfeitas. Uma questão persistente é que alguns planos de
paradiplomacia pararam após a criação do Memorando de Entendimento. Portanto, não
são feitas implementações práticas (ver Erika & Nurika, 2020; Putri & Adnan, 2017; Rani,
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2014). No entanto, isso não significa que não tenha havido uma pré-condição que tenha
conduzido a essas atividades regionais no cenário internacional. Neste caso, a
transformação do Estado indonésio pode explicar tal fenómeno. Como resultado, as
regiões têm agora uma janela de oportunidade para interpretar a realidade da
globalização com base nos seus interesses específicos e agir de acordo com a cooperação.
A descentralização e internacionalização da transformação do Estado estão intimamente
relacionadas. O papel dos governos subnacionais na globalização pode ser explicado pela
necessidade de olhar para os aspetos locais da economia, seguido pela necessidade de
olhar para os aspetos locais do sistema estatal. A lógica da glocalização é que cria uma
particularidade obtida pela tradução do contexto global em aspetos locais. Quanto mais
próxima a tradução estiver dos constituintes, mais singular é um governo subnacional na
globalização (van der Heiden & Terhorst, 2007). Nesse contexto, o governo subnacional
é um ator político cuja função é captar as necessidades e o contexto local da sua
comunidade. Por outro lado, a descentralização permite que os governos subnacionais
tenham capacidade política e estrutural para interagir com atores internacionais e valores
globais em consonância com a transformação do poder no nível estatal.
Conclusão
O presente artigo tentou responder à pergunta: como é que as unidades subnacionais
estão a ganhar mais poder nas relações internacionais. Mais especificamente, tenta
clarificar uma questão sobre o que os torna mais envolvidos nos assuntos internacionais
através da paradiplomacia. Ao longo da discussão, o autor mostrou que a explicação
pode estar relacionada com o modo como a globalização foi assimilada ao nível local,
criando a abordagem "interméstica" para diversos problemas da vida. Essa condição faz
com que nem todos os países enfrentem esse fenómeno de maneira uniforme. Além
disso, na resposta à globalização, os países também sentem cada vez mais disfunções
devido a questões crescentes e cada vez mais sentidas a nível local. Essa condição é
conhecida como hibridização, porque cada localidade sentirá problemas globais de
diferentes formas.
A paradiplomacia é um produto da globalização. Afirma o crescente papel de atores não
estatais estudado até agora por estudiosos de Relações Internacionais. A emergência das
regiões como atores da globalização pode ser traçada na perspetiva da transformação do
Estado, que tem três dimensões: fragmentação, descentralização e internacionalização.
Em primeiro lugar, as agências do governo central são separadas de um órgão único para
outros mais específicos. Então, os países da globalização exigem cada vez mais delegar
o seu poder a um nível mais baixo porque as questões globais têm permeado o nível
regional. Os estados estão cada vez mais sobrecarregados com a gestão dessas
questões. A delegação de poder fez com que a região percebesse as suas necessidades
e realizasse atividades externas com recurso à paradiplomacia.
O autor apresentou o caso da Indonésia como um exemplo de como a transformação do
Estado pode levar à participação ativa das regiões na condução de paradiplomacia. Essa
atividade pode ser vista de duas maneiras: em primeiro lugar como uma forma de os
países se comprometerem com as crescentes exigências globais, que os pressionam cada
vez mais a delegar o seu poder. Além disso, a segunda é uma forma de as regiões
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afirmarem a sua regionalidade na era da globalização através de colaborações específicas
com parceiros estrangeiros.
No entanto, o autor crê que novos caminhos de investigação podem melhorar este artigo
no futuro. Por exemplo, estudos subsequentes podem concentrar-se em diferentes
estudos de caso, especialmente em estados que ainda se associam ao autoritarismo. A
transformação do Estado implica uma condição de democracia e requer uma delegação
de poderes. Além disso, a análise de como as características dos líderes afetam as regiões
da Indonésia na sua internacionalização, especialmente a sua escolha de parceiros e
questões globais que se traduzam em cooperação, merece maior atenção.
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ASSUMIR A ULTRAPERIFERIA: O PAPEL DA CRPM NA ESTRATÉGIA DE
MOBILIZAÇÃO TERRITORIAL DO GOVERNO DOS AÇORES JUNTO DA UNIÃO
EUROPEIA
ANDRÉ PIMENTEL GARCIA
andre.pimentel_garcia@coleurope.eu
Mestrando em Estudos Europeus no Colégio da Europa Natolin (Polónia). Mestre em Ciência
Política, Universidade do Minho. Licenciado em Ciências da Comunicação. Universidade do Porto.
SANDRINA ANTUNES
santunes@eeg.uminho.pt
Professora Auxiliar, Universidade do Minho (Portugal). Licenciada em Relações Internacionais,
Mestre em Antropologia Política e Doutorada em Ciência Política. É Diretora da Licenciatura em
Ciência Política, Universidade do Minho. Membro integrado do Centro de Investigação em Ciência
Política, Universidade do Minho, e scientific fellow do Centro de Investigação para a Vida Política,
Universidade Libre de Bruxelas. Foi visiting researcher, London School of Economics e
Universidade de Edimburgo e é visiting fellow no Instituto de Estudos Internacionais, Barcelona.
Foi bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Colaborou com o Comité das Regiões e
com a Assembleia das Regiões da Europa. Foi consultora política do Governo da Catalunha e é
Membro do Conselho Científico da Fundação Coppieters, Bruxelas. A sua investigação incide
sobre a acomodação dos movimentos nacionalistas no seio da União Europeia e sobre as
estratégias de representação das entidades regionais e locais junto da União Europeia. Tem-se
debruçado sobre os processos de Europeinização dos Estados pequenos centralizados, como
Portugal, tendo resultado na edição do livro publicado pela Routledge, 'Europeanization and
Territorial Politics in Small European Unitary States: A Comparative Analysis'.
Resumo
A estratégia de mobilização territorial do Governo Regional dos Açores (GRAA) junto da União
Europeia (UE) assenta na utilização de todos os canais de representação de base regional
disponibilizados pela UE, incluindo as Associações Europeias Transregionais (AET). Entre estas
destacamos a Conferência das Regiões Periféricas Marítimas (CRPM) a que o GRAA presidiu
durante o XI e XII Governos, na pessoa do presidente do GRAA Vasco Cordeiro. Partindo desta
constatação e dado que a literatura ainda não oferece qualquer informação sobre a finalidade
de utilização da AETs, este artigo visa preencher esta lacuna ao identificar o propósito de
utilização da CRPM por parte do GRAA. Assim, recorrendo ao quadro conceptual oferecido por
Callanan e Tatham (2014) e mediante a realização de oito entrevistas semiestruturadas a
personalidades políticas e técnicos do GRAA e da CRPM, foi-nos possível concluir que o GRAA
utiliza a CRPM sobretudo para efeitos de mobilização regulatória (4,9 em 5) e residualmente
para efeitos de mobilização financeira (3,3 em 5). Mais concretamente, ao vel da
mobilização regulatória, a questão essencial para o GRAA é a manutenção de uma política de
coesão forte, embora sejam sondadas oportunidades esporádicas em várias áreas políticas
que possam resultar em enquadramentos mais vantajosos para o GRAA. Ao vel da
mobilização financeira, a utilização da CRPM está sobretudo relacionada com a formação de
consórcios que podem ser um fim em si mesmo ou podem constituir-se numa oportunidade
para provar certos pontos políticos.
Palavras-chave
Mobilização territorial; Governo Regional dos Açores; União Europeia; Conferência das
Regiões Periféricas Marítimas
Como citar este artigo
Garcia, André Pimentel; Antunes, Sandrina (2022). Assumir a ultraperiferia: o papel da CRPM
na Estratégia de Mobilização Territorial do Governo dos Açores junto da União Europeia. In
Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado
[em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.6
Artigo recebido em 4 Janeiro 2022 e aceite para publicação em 13 Abril 2022
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Assumir a ultraperiferia: o papel da CRPM na estratégia de mobilização territorial do Governo dos
Açores junto da União Europeia
André Pimentel Garcia e Sandrina Antunes
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ASSUMIR A ULTRAPERIFERIA: O PAPEL DA CRPM NA ESTRATÉGIA
DE MOBILIZAÇÃO TERRITORIAL DO GOVERNO DOS AÇORES
JUNTO DA UNIÃO EUROPEIA
ANDRÉ PIMENTEL GARCIA
SANDRINA ANTUNES
Introdução
A estratégia de mobilização territorial do Governo Regional dos Açores (GRAA) junto da
União Europeia (UE) assenta na utilização de todos os canais de representação de base
regional disponibilizados pela UE, incluindo as Associações Europeias Transregionais
(AET). Entre estas destacamos a Conferência das Regiões Periféricas Marítimas (CRPM)
a que o GRAA presidiu durante o XI e XII Governos, na pessoa do presidente do GRAA
Vasco Cordeiro entre 2014 e 2020. A vocação europeísta do GRAA (Valente, 2017) e dos
sucessivos executivos manifesta-se numa estratégia de força em todos os canais de
mobilização regional (Antunes e Magone, 2020). A Região Autónoma dos Açores (RAA)
não se limita a tentar remediar uma condição de aparente desfavorecimento, como é o
caso da ultraperiferia. Na verdade, este potencial é utilizado como uma força e uma
oportunidade pela região, como atesta Vasco Cordeiro, o Presidente do Governo Regional
do XI e XII Governos dos Açores (de 2012 a 2020) (entrevista 2021h). Nesta mesma
linha de pensamento, para a adjunta do subsecretário Regional da Presidência para as
Relações Externas entre 2012 e 2016 e diretora Regional dos Assuntos Europeus entre
2016 e 2020: “a insularidade não se combate, assume-se” (entrevista 2021b).
É, pois, neste contexto particular que o sistema político europeu emerge como uma
estrutura de oportunidade política que permite que entidades regionais possam
compensar a sua posição periférica (Beyers e Kerremans, 2012). A participação no
processo de decisão europeu, mediante a institucionalização de canais formais e
informais, dentro e fora das instituições europeias, têm permitido que atores sub-
nacionais possam influenciar as atores institucionais-chave a nível europeu (Tatham,
2008). O objetivo é influenciar o processo de decisão em matérias que possam afetar os
interesses da Região, por um lado, e monitorizar oportunidades de financiamento que
possam potenciar o desenvolvimento regional, por outro. A ideia é antecipar-se e, por
vezes, sobrepor-se à ação dos governos centrais, numa atitude proactiva que mereceu
a designação de national bypassing (Keating et al, 2015).
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Assumir a ultraperiferia: o papel da CRPM na estratégia de mobilização territorial do Governo dos
Açores junto da União Europeia
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A estratégia de representação da RAA junto da UE enquanto Rego Ultraperirica (RUP)
não difere das estratégias desenvolvidas pelas restantes regiões políticas congéneres. À
semelhança daquilo que acontece com os Landers Alemães ou com as Comunidades
Autonómicas Espanholas, o GRAA participa da dinâmica de representação que surge no
quadro de uma governação multinível (GMN), procurando promover os interesses do
Arquipélago dos Açores mediante a utilização dos diferentes canais - ou rotas de acesso
- disponibilizados pela própria UE. A este propósito, Gary Marks (e.g. 1992 e 1993) foi
pioneiro na operacionalização desta nova dinâmica de governação europeia multinível.
Em virtude de um contexto de dispersão de poder que se opera para cima, para as
instituições Europeias, e para baixo, para as entidades subestatais, as autoridades
regionais (e por vezes locais) sentem-se legitimadas para participar nas tomadas de
decisões a nível europeu. Este acesso é feito por duas ‘rotas’ (routes), a rota nacional
assegurada pela REPER, e a rota de Bruxelas (Brussels route), embora esta última seja
a mais acarinhada dada a liberdade e autonomia de ação que esta oferece. É nesta última
categoria que se insere, a par dos Gabinetes Regionais (Rowe, 2011; Tatham, 2010) em
Bruxelas, a participação em AET, como é o caso da CRPM (Greenwood, 1997).
Assim, ao integrar a CRPM, a RAA concretiza o imperativo sinalizado por Bomberg e
Peterson (1998: 229): qualquer autoridade subnacional que queira influenciar os
processos de decisão na UE deve posicionar-se em coligações dentro e entre AET. Assim,
pode influenciar as instituições, elencando, como moeda de troca pelo acesso aos
decisores políticos, a tríade informação, experiência e legitimidade (Beyers et al. 2008).
Se por um lado, a UE é entendida como uma estrutura de oportunidade política por parte
das autoridades territoriais subnacionais (regional e local), por outro lado, as instituições
europeias necessitam de informação do nível doméstico (incluindo subnacional), desde
conselhos técnicos a potenciais problemas de conformidade (Beyers e Karremans, 2007).
Acresce que as entidades subnacionais, que participam ativamente no download das
diretrizes europeias, também devem estar no processo de upload (Bursens, 2010: 163-
164). Assim, o território consolida-se não como um componente neutro, mas como um
sistema interativo em que coexistem condições específicas, recursos, laços e
capacidades.
Contudo, a literatura sobre a mobilização da RAA na UE é bastante escassa. A literatura
existente foca essencialmente a sua atenção na mobilização das Regiões Autónomas
portuguesas em prol da definição e consolidação de Região Ultraperiférica (RUP)
(Valente, 2013, 2016a, 2016b e 2017). Mais recentemente, Callanan e Tatham (2014)
assim como Antunes e Magone (2020) contribuíram para a identificação dos racionais de
mobilização subjacentes à atividade dos gabinetes de representação de base regional e
local. Porém, as dinâmicas de mobilização territorial de base regional via AET continuam
a ser pouco estudadas. Ainda assim, a saliência das AET, designadamente da CRPM, é
comprovada pelos autores supramencionados, bem como pela menção sistemática
noutros estudos de estratégias de mobilização territorial (Bomberg e Peterson, 1998;
Hooghe, 2007; Tatham, 2008; Rowe, 2011).
Este artigo visa preencher esta lacuna ao identificar o objetivo de utilização da CRPM por
parte do GRAA recorrendo aos conceitos de mobilização regulatória e de mobilização
financeira (Callanan e Tatham, 2014). Com este propósito em mente, este artigo
organizar-seem cinco momentos. Num primeiro momento, identificará os canais de
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Açores junto da União Europeia
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representação de base regional disponibilizados pela UE, entre os quais se destaca a
CRPM. De seguida, apresentará o quadro conceptual de análise e explicitará as suas
escolhas metodológicas antes de proceder à apresentação e discussão dos dados
recolhidos. Por fim, na conclusão, tecerá algumas considerações gerais e identificará
novos caminhos de investigação.
1. Os canais de representação de base regional na União Europeia: o caso
da CRPM
A UE oferece múltiplas oportunidades de mobilização territorial de base regional. A este
processo, através do qual os grupos de interesse se movem entre pontos de acesso,
chamamos venue shopping’, um termo cunhado por Baumgartner e Jones (1993), que
pode ser aplicado às dinâmicas europeias. Este conceito refere-se à procura do ponto de
acesso à UE que ofereça as melhores oportunidades para alcançar os objetivos
específicos do ator. No caso na UE, a literatura distingue entre a rota nacional e as rotas
europeias (Loughlin, 1997; Hooghe, 1995; Greenwood, 1997). Dentro destas últimas,
identificamos os canais formais e os canais informais (Beyers e Bursens, 2006: 1075).
Segundo Greenwood (1997), a rota nacional refere-se à mediação assegurada pelos
próprios governos nacionais através da Representação Permanente de Portugal junto da
UE (REPER). A utilização da rota nacional depende do papel do governo central em
diferentes estados do processo político europeu, incluindo a tomada de decisões no
Conselho e a sua implementação, i.e. depende de até que ponto o estado central
providencia uma rota familiar e conveniente de acesso aos interesses regionais.
Greenwood (ibidem) descreve a centralização como favorável a uma utilização bem-
sucedida da rota nacional. Tal deve-se à centralização propiciar uma melhor coordenação
governamental ao nível dos assuntos europeus, por oposição, para os estados mais
descentralizados a coordenação é mais difícil.
A rota de Bruxelas, também conhecida como rota europeia, consiste na utilização de
canais formais e informais que envolvem uma representação direta nas instituições
europeias (Antunes e Magone, 2020). Na verdade, é sobretudo na rota de Bruxelas que
podemos falar em canais formais e informais. Para que sejam caraterizados como
formais, os canais devem cumprir simultaneamente duas condições (Kovzridze, 2002:
129): primeiro, as relações devem ser reguladas pela constituição ou qualquer outro
documento com estatuto legal, como leis ou acordos intergovernamentais entre níveis
de governação; segundo, a relação entre as estruturas (autoridades subestatais,
nacionais e supranacionais) deve ser assegurada por mecanismos de coordenação
interinstitucionais, exercidos com regularidade. As relações informais definem-se por
oposição às primeiras, pelo que acontecem sem que se verifiquem configurações
institucionais legalmente previstas.
No âmbito da rota de Bruxelas, o principal canal formal de representação especificamente
regional é o Comité das Regiões (CdR). Existem outros canais formais, nomeadamente a
Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu, que, embora sejam
canais formais de representação, têm base nacional e não regional. Os canais informais
de mobilização regional baseiam-se em práticas que não são exigidas por lei, mas que
são capazes de eclipsar as regras formais (Kovziridze, 2002; Beyers e Bursens, 2006;
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Assumir a ultraperiferia: o papel da CRPM na estratégia de mobilização territorial do Governo dos
Açores junto da União Europeia
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Hogenauer, 2014) e tornar-se altamente institucionalizados, utilizados em base regular
e relevantes nas estratégias de mobilização regional. Os principais canais informais são
essencialmente dois: os Gabinetes de Representação Regional, amplamente abordados
pela literatura sobre mobilização territorial na UE (Hooghe, 1995; Marks et.al, 2002;
Tatham, 2008; Rowe, 2011) e as AET, o ‘parente pobre’ dos gabinetes regionais dada a
diminuta atenção que tem merecido por parte da literatura.
Apesar deste deficit de atenção, as AET são importantes graças a caraterísticas do
processo de tomada de decisão europeu, designadamente, a tendência de recompensar
interesses agregados, por razões de legitimidade e eficiência, dada a competição por
tempo de antena, naturalmente limitado, entre interesses (Bomberg e Peterson, 1998:
229). Destacam-se ainda o reconhecimento mais explícito da necessidade de envolver
associações governamentais regionais e locais no processo político da UE a nível europeu
e nacional com iniciativas como o Livro Branco sobre Governação Europeia, o «diálogo
estruturadcom associações de autoridades regionais e locais e as disposições relativas
ao poder local e regional do Tratado de Lisboa (Callanan, 2012: 756).
A CRPM é uma AET que se insere no âmbito dos canais informais da rota de Bruxelas, à
semelhança dos Gabinetes de Representação Regional. Criada em 1973 (CRPM, 1973)
na Bretanha, em França, por 23 regiões provenientes de oito estados-membros, a CRPM
é uma ATE que visa a promoção do desenvolvimento do território europeu, com especial
destaque para o desenvolvimento das regiões marítimas e periféricas. A CRPM funciona
como um gabinete estratégico (think tank) e um lóbi regional, e é constituída por cerca
de 114 regiões. Os seus membros provêm de regiões de 24 estados-membros e não
membros da União Europeia, que representam aproximadamente 200 milhões de
pessoas. Estas regiões encontram-se subdivididas na estrutura institucional em
Comissões Geográficas
1
(CG) que, desde 1980 com o surgimento da primeira CG, a das
Ilhas, correspondem às bacias marítimas do continente europeu. A título de exemplo do
seu dinamismo, poderemos referir que a CPMR foi muito útil a coorganizar conferências
com a CE em assuntos em que a segunda sentiu que era necessária mais consulta
(Tatham, 2010), sobretudo pela sua capacidade de mobilização das regiões marítimas.
Aliás, a CRPM tem uma saliência comprovada pela menção em vários trabalhos (Bomberg
e Peterson, 1998; Tatham, 2008; Rowe, 2011; Callanan e Tatham, 2014; Antunes e
Magone, 2020), com autores a nomeá-la entre congêneres capazes de exercer uma
presença significativa ao nível de mobilização da UE.
No que toca à participação da RAA na CRPM, a RAA integra a organização e participa das
suas atividades desde 1979, mesmo antes de Portugal ter aderido à então CEE. Não
existem registos de os Açores terem servido como presidentes ou vice-presidentes da
Conferência antes de 2014, ano em que Vasco Cordeiro foi eleito como presidente da
CRPM, na Assembleia Geral em Umeå (Suécia). A eleição de Vasco Cordeiro repetir-se-
ia em 2016 em Ponta Delgada e em 2018 no Funchal, tendo em conta que os mandatos
são de dois anos. Ainda assim, destaca-se um esforço por parte dos governos de Carlos
César, presidente do Governo dos Açores entre 1996 e 2012, que também presidiu a CG
das Ilhas pelos menos durante um mandato (entrevista 2021b; RTP-Açores, 2010). As
AET, como a CRPM, têm um papel na promoção de interesses regionais específicos
1
Para mais informações, consultar o site da CPRM aqui: https://cpmr.org/who-we-are/geographical-
commissions/ acesso a 10 de dezembro 2021.
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quando se sobrepõem com os de outras regiões e podem ser instrumentalizadas por
algumas regiões para promover a sua agenda (Tatham, 2008: 508). Ainda assim, tem
sido dada atenção limitada na literatura sobre mobilização regional às AET (Beyers e
Donas, 2012). Por oposição, a importância do trabalho em rede para ganhar influência
nos processos de formulação de políticas da UE tem sido destacada repetidamente
(Bomberg e Peterson, 1998; Tatham, 2008; Beyers e Donas, 2014).
Assim sendo, a estratégia de mobilização da RAA através da CRPM revela-se um estudo
de caso capaz de preencher a lacuna na literatura ao nível do estudo das AET. Se a
Saliência da CRPM no âmbito da mobilização regional é comprovada pela menção da
associação em diversos trabalhos (Bomberg e Peterson, 1998; Tatham, 2008; Rowe,
2011; Callanan e Tatham, 2014; Antunes e Magone, 2020), a importância que a RAA lhe
atribuiu é confirmada pelas sucessivas presidências de Vasco Cordeiro. Tendo em conta
a conceptualização dos canais informais da rota de Bruxelas, esta investigação procura
averiguar se os conceitos amplamente utilizados no estudo dos Gabinetes de
Representação Regional poderão ser igualmente aplicados ao estudo de uma AET.
2. Os objetivos da mobilização territorial: mobilização regulatória e
financeira
Conforme foi referido anteriormente, esta investigação tem por base uma reflexão
conceptual desenvolvida (Callanan e Tatham, 2014) sobre os tipos de mobilização que
constituem os principais racionais dos atores regionais em Bruxelas: a mobilização
financeira, que surge com a centralidade da problemática da política de coesão no estudo
da mobilização subnacional; e a mobilização regulatória, menos explorada e encarada
como advinda do viés regulatório da UE (Majone, 1994).
Por mobilização financeira, referimo-nos ao acompanhamento e à coleta de informação
com vista a aceder aos fundos europeus para regiões específicas, localidades ou áreas.
Esta mobilização carateriza-se como um processo mais reativo, com ênfase na obtenção
de recompensas ou conceção de apoios para territórios individuais com base em
esquemas de financiamento europeus (Callanan e Tatham, 2014: 191-192). Por
mobilização regulatória, referimo-nos a um processo p-ativo e dinâmico, no qual os
governos regionais e locais procuram influenciar as políticas da UE e os resultados
legislativos. A ênfase é colocada nas atividades projetadas para influenciar o processo
legislativo da UE, no qual a legislação tem um impacto administrativo ou financeiro nos
governos subnacionais (ibidem: 194).
Embora Callanan e Tatham tenham utilizado estas noções para explicar as finalidades de
mobilização associadas aos gabinetes de representação regionais, acreditamos que este
quadro conceptual poderá ser igualmente útil para entendermos as lógicas de
mobilização subjacentes à utilização das AET, tomando a CPRM como um caso particular.
Ao procedermos desta forma, pretendemos identificar com que finalidade(s) o GRAA
recorre à CRPM para efeitos de representação dos seus interesses junto da UE.
Por último, e à semelhança daquilo que Callanan e Tatham argumentam, acreditamos
que o GRAA, enquanto Região Autónoma com competências políticas substanciais, irá
privilegiar a mobilização territorial para efeitos de lobby, ou seja, para efeitos de
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mobilização regulatória pelo que colocamos a nossa hipótese de trabalho do seguinte
modo: o GRAA utiliza a CRPM sobretudo para efeitos de mobilização regulatória e
residualmente para efeitos de mobilização financeira. Esta hipótese, ao esperar uma
maior saliência da mobilização regulatória, não exclui, no entanto, a mobilização
financeira.
3. todo e desenho de investigação
Este artigo consiste num estudo de caso (Yin, 2018: 49) que poderá ser entendido como
um método empírico que investiga um fenómeno contemporâneo (o caso) em
profundidade e dentro do seu contexto no mundo real, especialmente quando os limites
entre o fenómeno e o contexto não são claramente evidentes. Um estudo de caso aborda
uma situação na qual existem muitas variáveis de interesse e, por isso, beneficia do
desenvolvimento posterior de proposições para guiar o projeto, a coleta de informação e
análise.
Ainda segundo Yin (ibidem: 50), poderemos destacar três aplicações distintas deste
método de estudo. Os estudos de caso podem ambicionar a mera descrição, a explicação
ou a exploração. Assim, falamos em estudos de caso de tipo descritivo quando o
propósito é descrever e identificar a natureza de um fenómeno. Alternativamente,
falamos em estudos de caso de tipo explicativo, quando o propósito é sobretudo explicar
a ocorrência de um determinado fenómeno. Por fim, falamos em estudos de caso de tipo
exploratório quando o propósito é sobretudo explorar fenómenos nunca antes estudados,
trilhando, por conseguinte, novos caminhos de intelecção. O estudo de caso em apreço
poderá ser qualificado de descritivo na medida em que pretende identificar os motivos
de mobilização territorial que orientam a ação do GRAA junto da UE, na utilização da
CRPM enquanto canal de mediação informal.
Para efeitos de recolha de dados, privilegiámos a utilização de fontes primárias através
da realização de entrevistas a oito políticos e técnicos relevantes na relação entre o GRAA
e da CRPM. Esta amostra é constituída por quase todos os políticos do mais alto nível dos
XI e XII Governos dos Açores que trabalharam diariamente em assuntos europeus e que
aceitaram ser entrevistados. A inicial dos entrevistados resultou de uma pesquisa nas
fontes oficias do GRAA, mas também do contributo dos entrevistados, nomeadamente
ao nível dos contatos mais relevantes na CRPM.
No que toca à execução das entrevistas propriamente dita, elaborámos um guião
semiestruturado (Creswell, 2009), com perguntas abertas e fechadas (Anexo I). Segundo
Mathews e Ross (2010), a entrevista semiestruturada, com questões abertas e fechadas,
segue um conjunto comum de tópicos ou questões para cada entrevista, introduz os
tópicos ou questões em formas diferentes ou ordens apropriadas para cada situação e
permite que os participantes respondam às questões ou discutam o tópico com as suas
palavras. As entrevistas semiestruturadas podem ser utilizadas para fins de exploração,
explicação e avaliação. Neste caso, utilizamos os dois primeiros: a investigação
exploratória para entender o que os participantes acham que é importante sobre o tópico
de investigação e entender como falam dele; e a investigação explanatória para reunir
informação que ajudará a explicar a experiência das pessoas e o fenómeno social de uma
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forma particular e profunda. Para fins de triangulação, foram também utilizadas fontes
secundárias, tais como documentos oficiais, sobretudo da CRPM.
A recolha de dados reporta-se ao recorte temporal que vai de 2012 a 2020. Este período
é balizado em 2012 com a eleição do presidente do GRAA, Vasco Cordeiro, e termina em
2020 com o fim do seu mandato. Em 2014 dá-se a primeira eleição de Vasco Cordeiro
como presidente da CRPM. Em 2016 e 2018, Vasco Cordeiro é reeleito pela segunda e
terceira vez, respetivamente. O ano de 2020 põe deste modo fim à continuidade do
mandato de Vasco Cordeiro como presidente do GRAA e da CRPM.
4. Apresentação e discussão dos dados
Nas entrevistas às oito personalidades, foi pedido que atribuíssem um valor de 1 a 5 a
cada um dos objetivos de mobilização da CRPM, sendo 1 nada importante e 5 muito
importante. Os resultados globais são apresentados no gráfico 1, discriminando a média
das respostas de cada uma das mobilizações.
Assim, a mobilização regulatória é a mais preponderante, atingido uma média de 4,9 em
5 enquanto a mobilização financeira atinge um valor médio de 3,3 em 5. o obstante,
a adjunta do subsecretário Regional da Presidência para as Relações Externas entre 2012
e 2016 e diretora Regional dos Assuntos Europeus entre 2016 e 2020 (entrevista 2021b)
admite a forte ligação que existe entre ambos os objetivos, como veremos mais à frente.
Gráfico 1 Importância de cada mobilização para a CRPM. A escala utilizada é de 1 (nada
importante) a 5 (muito importante)
Fonte: Elaboração própria
Olhando com mais detalhe para os resultados obtidos no gráfico 2 que se segue, no que
concerne à mobilização regulatória, e à semelhança daquilo que é referido na literatura
(Callanan e Tatham, 2014) é óbvia a prepondencia da política de coesão (7,5/8), dos
assuntos marítimos (7,2/8), depois do contínuo energia (6,5/8), ambiente (6,3/8),
alterações climáticas (5,2/8). As acessibilidades também assumem um papel de relevo
ao nível de oportunidades de mobilização (4,8/8). Das áreas ‘oficiais’ da CRPM, a que
parece menos importante para o GRAA é, de facto, a agenda global, sobretudo
relacionada com as migrações. Na opinião da adjunta do subsecretário Regional da
Presidência para as Relações Externas entre 2012 e 2016 e diretora Regional dos
Assuntos Europeus entre 2016 e 2020 (entrevista 2021b) e do subsecretário Regional da
Presidência para as Relações Externas entre 2012 e 2016 (entrevista 2021g), ainda que
muitas RUP e outros membros da CRPM recebam um fluxo significativo de migrantes,
essa não é uma questão que se coloque como problemática para os Açores, que se
4,9
3,3
12345
mobilização regulatória
mobilização financeira
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Açores junto da União Europeia
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posicionam numa ótica de experiências de acolhimentos (c.f. As Regiões para os
Migrantes e Refugiados REGIN, Conferência das Regiões Periféricas Marítimas, 2021).
Neste contexto, a política de coesão é a componente chave da CRPM, especialmente para
os Açores, uma RUP considerada como região menos desenvolvida, com um PIB per
capita inferior a 75% da média da UE (Antunes e Magone, 2020: 8). Parte do trabalho
da CRPM inclui a defesa de uma política de coesão forte que fortaleça a coesão territorial
na Europa. Neste âmbito, é especialmente importante o reconhecimento regulatório das
caraterísticas específicas das regiões ultraperiféricas, salvaguardadas pelo artigo 355º
do Tratado da União Europeia (TUE), e de outros territórios que enfrentam défices
permanentes, como as ilhas, as regiões de montanha e as regiões de baixa densidade
populacional (CRPM, 2013).
Segundo a adjunta da adjunta do subsecretário Regional da Presidência para as Relações
Externas entre 2012 e 2016 e diretora Regional dos Assuntos Europeus entre 2016 e
2020 (entrevista 2021b), aqui também está presente a questão de equilíbrio de
interesses, porque, se as regiões ultraperiféricas defendem uma disposição particular
para si próprias, os outros territórios também estão no direito de o fazer. Esta opinião é
corroborada pelo presidente dos XI e XII Governos dos Açores (entrevista 2021h) ao
afirmar que a CRPM não está orientada e nem foi pensada para defender apenas
interesses de regiões específicas ou sequer de tipologias de regiões como as RUP, mas
sim da totalidade dos seus membros.
Gráfico 2 dias das áreas de mobilização regulatória ordenadas pelos entrevistados
do GRAA. A escala utilizada é de 8 (mais importante) a 1 (menos importante)
Legenda: A azul estão as áreas convencionais de atuação da CRPM. A verde estão as áreas
adicionais sugeridas pelos entrevistados.
Fonte: Elaboração própria
No âmbito da política de coesão, a CRPM lamentou a diminuição proposta do orçamento
da CE, bem como a redução do cofinanciamento das regiões com défices estruturais,
nomeadamente as RUP (Comissão Europeia, 2018a: 106-107), e a manutenção dos
estatutos em causa, na Declaração Final da 46ª Assembleia Geral da CRPM (CRPM, 2018:
3-4). A CRPM teve um papel importante na cristalização da política de coesão. “Em 2017
1,0
1,8
2,0
2,0
3,5
4,8
5,2
6,3
6,5
7,2
7,5
0,0 1,0 2,0 3,0 4,0 5,0 6,0 7,0 8,0
Educação
Turismo
Agenda global
Ciência e tecnologia
Agricultura
Acessibilidades
Alterações climáticas
Ambiente
Energia
Assuntos marítimos
Política de Coesão
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Açores junto da União Europeia
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a Comissão Europeia lançou uma consulta pública sobre o que é esperado da coesão. É
curioso que estava quase ausente dessa consulta qualquer referência a ‘política de
coesão’, falava-se em coesão, mas ‘política de coesão’ era algo que estava a cair em
desuso” (entrevista ao Presidente do Governo Regional entre 2012 e 2020, 2021h).
Esta tendência é também demonstrada pelo relatório da CPRM, ‘The Impact of the CPMR
2015-2020’ (CRPM, 2021), cuja ação contou com pelo menos dois momentos
importantes. No primeiro, a CRPM pôde sublinhar, ao mais alto nível, a importância da
Política de Coesão no período pós-2020. No segundo, depois de vários indícios a nível
formal (Comissão Europeia, 2018a, pp. 106-107) e informal (entrevista 2021e) de cortes
drásticos na Política de Coesão, o Presidente Juncker manifestou o se apoio a esta política
(Comissão Europeia, 2018b). Ao nível dos Açores, o exemplo recente mais emblemático
será exatamente o processo negocial do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027.
No cômputo geral, todos os entrevistados apontam para postura dinâmica da organização
que contribuiu para que a UE mantivesse para as RUP a taxa de cofinanciamento de 85%
(Jornal Oficial da União Europeia, 2013: 396). Ainda que a CRPM o tenha sido o único
canal em que os Açores atuaram, é descrita como fundamental para os resultados obtidos
pelos entrevistados do GRAA. Segundo a adjunta do subsecretário Regional da
Presidência para as Relações Externas entre 2012 e 2016 e diretora Regional dos
Assuntos Europeus entre 2016 e 2020 e o assessor para as Relações Externas do
presidente do Governo Regional dos Açores entre 2012 e 2020 (entrevistas 2021a e
2021c), a proposta inicial da CE contemplava uma redução dos fundos para os Açores,
70% do financiamento seria assegurado por fundos europeus, os restantes 30% seriam
assegurados pela região, o que representava um decréscimo de 15 pontos percentuais
em relação ao financiamento europeu do Quadro Plurianual 2021-2027 (Jornal Oficial da
União Europeia, 2020: 468). Este foi efetivamente um sucesso que se somou à
manutenção do envelope RUP no Quadro Plurianual precedente.
A pandemia também terá tido um papel importante, mas houve um trabalho de dois anos
de contatos e de conversa com a CE e com o PE, que resultou numa alteração
fundamental da postura da UE para esse que é o fundo substancial que mais financia as
RUP, descreveu o assessor para as Relações Externas do presidente do Governo Regional
dos Açores entre 2012 e 2020 (entrevista 2021c). o obstante, conforme refere o
subsecretário Regional da Presidência para as Relações Externas entre 2012 e 2016
(entrevista 2021g), existe um aproveitamento de oportunidades esporádicas em várias
áreas políticas ao nível da influência regulatória, sobretudo no acautelar a menção e o
respeito pelo estatuto de ultraperiferia, bem como em outras medidas que permitam
atenuar os custos acrescidos da insularidade, pelo que também são importantes a
energia, o transporte e a política marítima.
Passando agora para a mobilização financeira, as áreas mais importantes têm que ver
com o ambiente de uma forma alargada (gráfico 3): alterações climáticas (6,8/8),
energia (6,5/8) assuntos marítimos (6,5/8), ambiente (propriamente dito, 6,3/8). A
política de coesão aparece numa posição de menor importância em comparação com o
destaque que tem na mobilização regulatória. Como faz notar a adjunta do subsecretário
Regional do XII Governo dos Açores (entrevista 2021b), quando falamos em prospeção
de fundos, referimo-nos a “identificar outras fontes de financiamento que não aquelas a
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Açores junto da União Europeia
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que teríamos direito à partida, por exemplo as respostas aos calls, o Horizonte Europa,
em que entramos de uma forma competitiva com outras regiões”.
Gráfico 3 Médias das áreas de mobilização financeira ordenadas pelos entrevistados
do GRAA. A escala utilizada é de 8 (mais importante) a 1 (nada importante)
Legenda: A lilás estão as áreas convencionais de atuação da CRPM. A verde estão as áreas
adicionais sugeridas pelos entrevistados.
Fonte: Elaboração própria
A este respeito, destacam-se os projetos que as regiões-membro integram atendendo à
natureza dos seus interesses, somado aos projetos potenciados pelos consórcios que
nascem dentro da própria organização. Como explica o assessor para as Relações
Externas do presidente do Governo Regional dos Açores entre 2012 e 2020 (entrevista
2021c), esses consórcios não o propriamente da CRPM, são de algumas das regiões
que integram a CRPM (..). A organização [CRPM] monta um consórcio, tipicamente 3 a
5 parceiros, concorre como CRPM e, se ganhar, a verba é repartida pelo conjunto das
regiões.
Esta informação é aliás confirmada pela adjunta do subsecretário Regional da Presidência
para as Relações Externas entre 2012 e 2016 e diretora Regional dos Assuntos Europeus
entre 2016 e 2020 (entrevista 2021b) que refere que “essas regiões podem determinar
que a CRPM irá ficar com uma parte do envelope financeiro para seu próprio
financiamento, para acompanhar o projeto, mas não é o core business da CRPM, a CRPM
atua normalmente até ao momento em que o consórcio se forma”.
Como podemos verificar no gráfico 4 que se segue, alguns dos colaboradores da CRPM
estão afetos apenas a projetos, como o Interreg, porque o que fazem na totalidade do
seu tempo é desenvolver esses projetos, são os chamados funcionários de projetos.
Diferentes dos anteriores são os funcionários de política e de projetos, que passam entre
20% a 30% do seu tempo em projetos e o resto em questões políticas, com um pendor
mais regulatório. Cumulativamente, o mero de funcionários que se dedicam aos
projetos atinge aproximadamente 26% dos funcionários totais, ainda que apenas cerca
de 10% o faça em exclusividade.
1,7
1,7
1,8
2,2
2,8
4,6
5,3
6,3
6,5
6,5
6,8
0,0 1,0 2,0 3,0 4,0 5,0 6,0 7,0 8,0
Educação
Agenda global
Turismo
Ciência e tecnologia
Agricultura
Acessibilidades
Política de Coesão
Ambiente
Assuntos marítimos
Energia
Alterações climáticas
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Gráfico 4 Percentagem de empregados da CRPM por função
Fonte: Elaboração própria
2
Na CRPM, salienta-se ainda a participação em programas Interreg, uma vez que a
estrutura da organização é baseada em Comissões Geográficas. De acordo com o
secretário executivo da CG das Ilhas (entrevista 2020e), a CRPM alcançou “massa crítica
em termos de participação nalguns projetos a nível europeu” e era parceira em cerca de
quatro dezenas de projetos aquando da entrevista, pelo que é relativamente fácil para a
CRPM montar um consórcio e executar um projeto. Nesse sentido, a adjunta do
subsecretário Regional da Presidência para as Relações Externas entre 2012 e 2016 e
diretora Regional dos Assuntos Europeus entre 2016 e 2020 (entrevista 2021b) confirma
a primazia da prática da mobilização regulatória sobre a mobilização financeira ao afirmar
que: “(..) ainda que a participação de projetos seja importante, o GRAA procurou
sobretudo fazer uma mobilização regulatória ao nível da CRPM’. E acrescenta que “(..)
em regra as regiões que fazem essa procura nos outros fundos [não p-alocados] onde
tem de entrar de uma forma competitiva, é porque não recebem os fundos estruturais
que nós recebemos (...)”.
Porém, em jeito de nota final, há que referir que a prática do dia-a-dia apresenta ‘zonas
cinzentas’, isto é, por vezes, os consórcios podem ter uma dupla finalidade: podem ser
um fim em si mesmo ou podem constituir-se também numa oportunidade para provar
certos pontos políticos (entrevista ao assessor para as Relações Externas do XII Governo
Regional dos Açores, 2021c), pelo que é impossível separar as duas finalidades de
mobilização territorial, como nos mostra a Figura 1.
2
Sobre a CRPM, consultar o site: https://cpmr.org/who-we-are/ acesso a 10 de dezembro 2021.
10,26%
15,38%
74,36%
Funcionários de projetos Funcionários de política e projetos Outros
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Figura 1 Relação da mobilização regulatória e da mobilização financeira ao nível dos
projetos
Fonte: Elaboração própria
Conclusão
A CRPM é importante para a RAA porque possibilita o trabalho em rede, cuja importância
tem sido destacada para ganhar influência na mobilização regional na UE (Bomberg e
Peterson, 1998; Hooghe e Marks, 1996, Tatham, 2008; Beyers e Donas, 2014). Por outro
lado, essa interação horizontal entre regiões por meio de AET tem recebido atenção
limitada na literatura (Beyers e Donas, 2014).
Este artigo teve como propósito identificar os objetivos por detrás da utilização das AET,
designadamente a CRPM ao complementar pesquisas anteriores e ao incidir apenas e
profundamente sobre a estratégia de mobilização do GRAA na UE através da CRPM. A
saliência da CRPM é comprovada pela menção em vários trabalhos (Bomberg e Peterson,
1998; Tatham, 2008; Rowe, 2011; Callanan e Tatham, 2014), com autores a nomear a
organização entre congêneres capazes de exercer uma presença significativa ao nível de
mobilização da UE. Destes autores, destaca-se o contributo de Antunes e Magone (2020)
que utilizaram o quadro conceptual de Callanam e Tatham (2014) para estudar a
estratégia de mobilização geral das autoridades regionais em Portugal Continental (i.e.
as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) e das Regiões Autónomas
portuguesas em Bruxelas.
Ao utilizarmos esse mesmo quadro conceptual, pretendemos entender com que
finalidade(s) o GRAA utiliza a CRPM para efeitos da sua estratégia de mobilização
regional. Desde o início, em linha com Callanan e Tatham (2014), supusemos que,
enquanto região autónoma, o GRAA privilegiaria a mobilização regulatória face à
mobilização financeira, sem a exclusão da última. A análise de dados corroborou esta
Horizonte 2020/Horizonte Europa,
Fundo Europeu para Investimentos
Projetos para provar
pontos políticos
Mobilização
Financeira
Mobilização
Regulatória
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hipótese: a mobilização regulatória é a mais preponderante, atingido uma média de 4,9
em 5, enquanto a mobilização financeira atinge um valor de 3,3 em 5, embora a
generalidade dos entrevistados admita a forte ligação que existe entre ambos os
objetivos.
A mobilização regulatória é, também, para a associação a área central de atuação. A
questão essencial para o GRAA é a manutenção de uma política de coesão forte. Enquanto
RUP e região menos desenvolvida, este fator é crucial para o desenvolvimento do GRAA.
O foco principal é na política de coesão (7,5/8). Mas também são sondadas oportunidades
esporádicas em várias áreas políticas que possam resultar em enquadramentos mais
vantajosos para o GRAA, nomeadamente assuntos marítimos (7,2/8), energia (6,5/8),
ambiente (6,3/8).
Ao nível da mobilização financeira, o GRAA está interessado, sobretudo, em áreas que
têm que ver com o contínuo das alterações climáticas (6,8/8), energia (6,5/8), assuntos
marítimos (6,5/8) e ambiente (6,3/8). Neste âmbito, a atuação da CRPM, em
consonância com o GRAA, está relacionada com a formação de consórcios para projetos
no âmbito do Interreg, do Horizonte 2020/Horizonte Europa ou de projetos financiados
pelo BEI. Estes projetos podem ser um fim em si mesmo ou uma oportunidade para
provar certos pontos políticos.
A principal conclusão que retiramos deste estudo é a de que a mobilização regulatória é
mais preponderante na representação do GRAA através da CRPM na UE do que a
mobilização financeira. Esta estratégia de mobilização está sobretudo relacionada com a
política de coesão e com a manutenção de uma discriminação positiva para as RUP,
particularmente em áreas relacionadas com a energia, o mar e o ambiente e
acessibilidades. Deste modo, este artigo permitiu estudar individualmente uma Região
Autónoma portuguesa através do quadro conceptual utilizado por Callanam e Tatham
(2014), Tatham (2017) ao nível dos gabinetes regionais e das associações de governos
de base local e por Antunes e Magone (2020) para explicar a estratégia de mobilização
das Regiões Autónomas portuguesas na UE.
Por fim, ao considerar a atuação em e através de uma AET com interesses comuns de
base regional, este trabalho pode delinear algumas avenidas de investigação. Por um
lado, os objetivos de mobilização conceptualizados por Callanan e Tatham (2014) podem
ser utilizados para entender a dinâmica das AET. Por outro lado, a literatura carece de
um aprofundamento do racional de utilização da mobilização financeira ao serviço da
mobilização regulatória.
Referências
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ANEXO - GUIÃO DAS ENTREVISTAS
PARTE I: A Mobilização Territorial do XI e XII Governos dos Açores na UE
1. Quais são os maiores desafios do GRAA aovel da mobilização na UE?
2. Porque motivos uma presença na UE é estrategicamente relevante para o GRAA?
3. Identifique os canais de mobilização de base regional por ordem de importância para a estratégia
do GRAA, sendo 1 maior importância e 3 menor importância.
· Rotas nacionais
o REPER
· Rotas Europeias
o Comissão Europeia
o Parlamento Europeu
o Comité das Regiões
o CPRM
o Gabinete de Representação em Bruxelas
4. Pode justificar a sua ordenação, por favor?
5. Partindo de duas finalidades de mobilização possível para efeitos de influência ou lobby e
prospeção de fundos , com que finalidade o GRAA utiliza 3 principais canais de representação,
a saber:
a) no Comité das Regiões;
b) na CPRM;
c) a representação direta via o gabinete de representação em Bruxelas
6. Qual a importância da REPER para a representação dos interesses dos Açores na UE?
PARTE II: A participação do Governo dos Açores na CRPM
1. Quando e como é que o XI e XII GRAA tomou primeiro consciência das oportunidades de
mobilização ao nível da CPRM?
2. De 0 a 5, qual é a importância da CPRM para a prossecução da estratégia do GRAA? (sendo 0
nada importante e 5 muito importante)
3. Em que instituições se mobilizam através CPRM? Ordene por ordem de importância, sendo 1
menos importante e 4 mais importante.
a. Parlamento Europeu
b. Comissão Europeia
c. Comité das Regiões
d. COREPER
Adicionaria alguma? Qual?
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4. Com que finalidade utiliza a CPRM?
a) para influenciar a legislação europeia
b) para sondar disponibilidade de transferências financeiras para a região
c) as duas
Atribua um valor de 0 a 5 (sendo 0 nada importante e 5 muito importante) a cada uma.
Influenciar a legislação europeia
Sondar a disponibilidade de transferências financeiras
5. Quando utiliza a CPRM para influenciar a legislação, em que áreas procura atuar? Classifique de
1 a 5 as diferentes áreas de atuação, sendo 1 a menos importante e a 8 a mais importante:
Coesão
Política regional
Energia
Marítima
Agricultura
Mobilidade
Educação
Agenda global
6. Pode dar exemplos de influência de legislação europeia?
7. Pode dar exemplos de prospeção de fundos?
PARTE III: Avaliação da Presidência da CPRM e balanço
1. O que representa a CPRM para o Governo dos Açores?
2. Que vantagens trouxe para os Açores a Presidência da CPRM?
3. Acha que o facto de pertencer e ter exercido a presidência da CRPM ajudou os Açores a combater
a insularidade? Se sim de que modo?
4. Quais foram os principais objetivos da presidência da CRPM para o GRAA?
5. Tendo em mente esses objetivos traçados, o que conseguiram fazer e o que ficou por fazer?
6. Quão satisfeito está de 1 (nada satisfeito) a 5 (muito satisfeito) com o potencial de mobilização
da CPRM no que respeita:
À mobilização regulatória
À prospeção de fundos europeus
7. Quais das seguintes áreas políticas continuaram a merecer a sua atenção ao nível da
mobilização com o objetivo de influenciar a legislação europeia?
Coesão
Política regional
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Energia
Marítima
Agricultura
Mobilidade
Educação
8. Quais das seguintes áreas políticas continuaram a merecer a sua atenção ao nível da prospeção
de fundos?
Coesão
Política regional
Energia
Marítima
Agricultura
Mobilidade
Educação
9. Como tem evoluído o seu nível de satisfação ao longo do tempo? Tem sido uma experiência
sempre em crescendo ou com altos e baixos?
10. E agora que o Governo dos Açores já não está na Presidência da CRPM, o que mudou?
11. Que outras regiões são particularmente ativas na CPRM?
12. Acha que tem aprendido com essas experiências? Ou seja, acha que a CPRM tem sido uma
fonte de aprendizagem para o Governo dos Açores?
13. Acha que a CRPM tem favorecido o trabalho em rede com outras regiões? Se sim, com que
regiões tem e em que áreas de atuação?
Que benefícios os Açores têm retirado dessa colaboração? Pode dar exemplos?
OBSERVARE
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A DIPLOMACIA CIENTÍFICA PORTUGUESA E AS REDES DE PROFISSIONAIS,
INVESTIGADORES E ESTUDANTES PÓS-GRADUADOS PORTUGUESES NO
ESTRANGEIRO: DA FUGA À CIRCULAÇÃO DE CÉREBROS
JOÃO MOURATO PINTO
jmouratopinto@gmail.com
Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e mestre em Relações
Internacionais Estudos Europeus por esta Universidade e por Sciences Po Bordeaux. É
professor de diplomacia e doutorando na Universidade do Minho (Portugal), dedicando-se ao
estudo da ação global da União Europeia, particularmente em relação ao Brasil e à América do
Sul. É membro colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do
Minho e trabalhou no Conselho Europeu de Investigação/European Research Council (Comissão
Europeia). Foi Presidente da Erasmus Student Network (2017-2019), organização onde trabalhou
para melhorar a acessibilidade e a qualidade dos intermbios académicos no ensino superior a
nível global. Os seus principais interesses de investigação são a Ação Externa da União Europeia,
política externa brasileira, regionalismo sul-americano e diplomacia.
Resumo
A diplomacia científica é um campo que nasce da interação entre a ciência e a diplomacia.
Surge num contexto de alargamento do multilateralismo a novos atores onde se incluem os
cientistas, as Instituições de Ensino Superior, laboratórios, empresas e cidades. A Resolução
do Conselhos de Ministros n.º 78/2016 é a matriz legal da diplomacia científica portuguesa,
apresentando-a como um de vários pilares para a internacionalização da ciência e tecnologia
do país. De entre os vários atores identificados por esta resolução, as “Redes constituídas por
Profissionais, Investigadores e Estudantes Pós-Graduados Portugueses a trabalhar no
estrangeiro” têm um potencial elevado, sobretudo tendo em conta as sinergias que poderão
criar com embaixadas, pela via de conselheiros científicos, e com as Instituições de Ensino
Superior e cidades portuguesas. Após uma contextualização da diplomacia científica enquanto
disciplina e prática europeia e nacional, este artigo contribui para esse debate através de uma
reflexão exploratória sobre a papel das redes de profissionais e investigadores portugueses
no estrangeiro na operacionalização da diplomacia científica portuguesa.
Palavras-chave
Diplomacia científica; União Europeia; Portugal; emigração; ensino superior
Como citar este artigo
Pinto, João Mourato (2022). A diplomacia científica portuguesa e as redes de profissionais,
investigadores e estudantes pós-graduados portugueses no estrangeiro: da fuga à circulação
de cérebros. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro
2022. Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.13.1.7
Artigo recebido em 3 Maio 2021 e aceite para publicação em 3 Março 2022
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A diplomacia científica portuguesa e as redes de profissionais, investigadores e estudantes pós-
graduados portugueses no estrangeiro: da fuga à circulação de cérebros
João Mourato Pinto
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A DIPLOMACIA CIENTÍFICA PORTUGUESA E AS REDES DE
PROFISSIONAIS, INVESTIGADORES E ESTUDANTES PÓS-
GRADUADOS PORTUGUESES NO ESTRANGEIRO:
DA FUGA À CIRCULAÇÃO DE CÉREBROS
JOÃO MOURATO PINTO
Introdução
O termo “diplomacia científica” refere-se a um conjunto de práticas que cruzam os
setores da investigação, ensino superior, ciência, tecnologia e inovação com a área das
relações internacionais, identificando pontos de interesse comum e instigando à sua
colaboração em desafios partilhados. O seu carater abrangente tem-se traduzido, por um
lado, em alguma confusão conceptual e, por outro, numa constante inovação na sua
aplicação.
Esta expansão conceptual e pragmática tem conduzido algumas organizações a refletir
sobre o seu contributo para a diplomacia científica. Entre estas encontram-se as “redes
constituídas por profissionais, investigadores e estudantes pós-graduados portugueses
no estrangeiro”, as quais começaram a surgir há pouco mais de uma década por
organização espontânea dos portugueses emigrados. A Resolução do Conselho de
Ministros n.º 78/2016, a qual serve de enquadramento legal da diplomacia científica em
Portugal, atribui-lhes um papel de “interlocutor” entre o Governo e as embaixadas
portuguesas e os investigadores portugueses emigrados. Este papel de interlocução
constitui uma inovação que outros países também têm procurado explorar e que, com a
estratégia acertada, pode tornar-se numa pedra angular do exercício futuro da
diplomacia científica.
Neste artigo exploratório, o qual parte de um briefing paper escrito para o Ministério dos
Negócios Estrangeiros e para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
discute-se o papel que estas redes podem desempenhar no contexto alargado da
diplomacia científica portuguesa. Em particular olha-se para o seu potencial agregador
de emigrantes graduados portugueses, sobretudo os que trabalham no meio científico,
como forma de contribuir para a substituição do termo “fuga de cérebros” por “circulação
de cérebros”. Este artigo argumenta que o trabalho em rede e no estrangeiro, seja de
forma temporária ou permanente, é uma condição intrínseca à profissão científica,
afetando especialmente os países mais periféricos e com menores recursos. Partindo
dessa premissa, é argumentado que as redes de profissionais e investigadores
portugueses no estrangeiro podem servir de pontos de contacto entre essa comunidade
e Portugal, ajudando à sua integração no novo meio enquanto a mantém informada sobre
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graduados portugueses no estrangeiro: da fuga à circulação de cérebros
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e promove o seu envolvimento na ciência feita por portugueses, em Portugal e no resto
do mundo. Este contacto horizontal (entre pares) e vertical (com o país) permite tanto à
diplomacia como à ciência portuguesa incluir na sua ação o contributo dos cientistas
portugueses no estrangeiro, seja pela via do conhecimento obtido ou pela via das redes
em que estes se inserem.
Para atingir este fim, a análise começa por salientar os principais aspetos do debate em
torno da definição da diplomacia científica, incluindo a sua relação com a chamada fuga
de cérebros, partindo depois para uma visita à sua aplicação pela União Europeia (UE).
Este enquadramento é seguido de uma análise mais detalhada do caso português,
atentando sobretudo às dinâmicas mais relevantes para as redes em causa. Nesse
sentido, o seu papel presente e potencial é articulado com o dos conselheiros
científicos, Instituições de Ensino Superior (IES) e cidades, procurando assim seguir
múltiplos ângulos na vida de um investigador. Por fim, o apresentadas ideias para o
futuro com o intuito de contribuir para o debate académico e prático em torno do papel
da diplomacia científica na diplomacia e na ciência portuguesa. Ao longo do documento
são introduzidos exemplos estrangeiros como ilustração dos argumentos apresentados.
1. A ciência como ramo da diplomacia (e vice-versa)
A diplomacia científica é um tema relativamente recente, mas em rápida evolução. Esta
insere-se num quadro de mudança do multilateralismo, hoje caracterizado também por
um progressivo alargamento das práticas diplomáticas a outros setores da sociedade.
Estas novas práticas não substituem a diplomacia tradicional, a qual permanece um dos
mais importantes instrumentos de política externa de cada país, particularmente nas
relações formais entre Estados. Não obstante, inserem-se num quadro de paulatina
evolução da diplomacia onde temas nacionais e internacionais se confundem na era da
globalização e onde o seu uso não é exclusivo dos Governos.
De entre as novas expressões da diplomacia, a diplomacia científica é particularmente
abrangente. De grosso modo, esta define-se como um “nexo de práticas” (Mendonça,
2016) ou uma “interação difusa” (Aranda, 2019) entre os negócios estrangeiros de um
Estado, os quais são geralmente coordenados pelos Ministérios dos Negócios
Estrangeiros, e a sua política científica e tecnológica, a qual é gerida pelos Ministérios de
Ciência. Trata-se de “desenvolver o ambiente nacional de investigação e
empreendedorismo ao mesmo tempo que [se] projetam na arena internacional os
interesses estratégicos da comunidade de atores de referência” (Mendonça, 2016). A
interseção de dois campos tão abrangentes gera, inevitavelmente, uma miríade de
abordagens e ângulos diferentes assumidos pela diplomacia científica em cada Estado.
Por este motivo, ainda não existe uma definição completa do termo nem um modelo
único que possa ser facilmente replicado (Aranda, 2019).
Uma das definições mais consensuais é a cunhada pela Royal Society (Reino Unido) e
pela American Association for the Advancement of Science (AAAS, Estados Unidos da
América) em 2010 na sua publicação “New Frontiers in Science Diplomacy”. Essa
definição assenta em três pilares: diplomacia para a ciência, quando a diplomacia facilita
a criação de parcerias científicas; ciência para a diplomacia, quando a ciência facilita o
desenvolvimento de relações diplomáticas; e ciência na diplomacia, quando os objetivos
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da política externa o informados pelo aconselhamento científico. Desde então, estes
termos têm sido usados por diversas instituições como um entendimento partilhado de
uma atividade ainda em construção. Mais recentemente, o projeto EL-CSID
1
, financiado
pelo programa Horizonte 2020, propôs a adição de um quarto pilar denominado
diplomacia na ciência, a fim de alertar para a necessidade de incorporar práticas
diplomáticas na ciência. Segundo este projeto, dessa forma poderá ser mais fácil
combater o ceticismo em relação à ciência, reparar a fragmentação da sociedade,
aumentar o impacto da ciência nos debates sociais e profissionalizar o diálogo entre
cientistas e decisores políticos (Van Langenhove, 2021).
Para atingir estes objetivos, a diplomacia científica faz uso de várias ferramentas
estratégicas e operacionais. No nível estratégico emitem-se declarações conjuntas entre
Estados, regiões ou instituições e usa-se do assento em organizações internacionais para
salientar a importância de uma determinada agenda científica. O nível operacional
assenta em acordos de colaboração internacional dos quais se destacam, por exemplo,
o CERN
2
ou o SESAME
3
. Este último reúne cientistas de diversos Estados do Médio
Oriente, incluindo alguns sem relações diplomáticas entre si, criando um ambiente
propício ao sucesso da “ciência para a diplomacia”. O Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC) é outro exemplo de relevo (Van Langenhove, 2016) pois
reúne um grupo pluridisciplinar de cientistas e diplomatas responsáveis pelo
acompanhamento do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, sendo assim um
exemplo de “ciência na diplomacia”. Outras ferramentas operacionais incluem conselhos
consultivos em ciência e tecnologia, alocação de conselheiros científicos a embaixadas,
inclusão de cientistas estrangeiros em esquemas nacionais de financiamento de ciência
e tecnologia, programas de intercâmbio académico, programas internacionais de
colaboração científica, entre outros.
A implementação da diplomacia científica deve também incluir campanhas de promoção
dos seus resultados e programas de treino dedicados, sendo estes porventura os campos
menos trabalhados (Van Langenhove, 2016). A inexistência de uma carreira de
diplomacia científica dificulta a criação de oferta formativa, já que o tema tende a residir
sobretudo no discurso oral como referência às práticas que combinam ciência e
diplomacia. A esta dificuldade acresce ainda o facto de alguns cientistas o
considerarem que parte do seu trabalho possa ser etiquetado como um tipo de
diplomacia. Consequentemente, nem todos os profissionais de ciência são treinados para
a aquisição das competências necessárias à prática diplomática e nem todos os
diplomatas conhecem a ciência (enquanto campo abstrato) com a profundidade
necessária. Questões como estas têm aumentado o criticismo em torno da falta de
mecanismos de avaliação da eficácia da diplomacia científica (Flink, 2021).
A aplicação destas ferramentas requer o trabalho conjunto de recursos humanos
altamente qualificados em vários setores. O projeto S4D4C
4
identificou cinco grupos de
atores relevantes para a diplomacia científica: setor governamental (incluindo governos
subnacionais e agências públicas), setor intergovernamental e organizações
1
European Leadership in Cultural, Science and Innovation Diplomacy el-csid.eu.
2
Organização Europeia para a Investigação Nuclear.
3
Synchrotron-Light for Experimental Science and Applications in the Middle East.
4
Using Science for/in Diplomacy for addressing global Challenges s4d4c.eu.
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A diplomacia científica portuguesa e as redes de profissionais, investigadores e estudantes pós-
graduados portugueses no estrangeiro: da fuga à circulação de cérebros
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supranacionais, setor privado (desde start-ups a multinacionais), setor universitário e de
investigação científica (incluindo academias nacionais, conselhos de investigação ou
indivíduos proeminentes) e o setor da sociedade civil (Elorza et al., 2021). Posto isto,
uma das principais dificuldades da diplomacia científica prende-se com a complexa
coordenação de tantos atores. Segundo as conclusões do mesmo projeto, há uma relação
direta entre o nível de eficácia dessa coordenação e o alcance da diplomacia científica de
um Estado.
A obrigatoriedade da inclusão de atores políticos e diplomáticos é uma das principais
características que distingue a diplomacia científica da colaboração científica
internacional em geral. A diplomacia cienfica é um resultado ponderado entre ciência e
prioridades políticas, uma convivência nem sempre harmoniosa que «ciência
representa “objetividade” e “verdade” [e] diplomacia representa “interesse” e
“compromisso”» (Mendonça, 2016). Neste contexto, há entre alguns cientistas o receio
de que a ciência possa ser instrumentalizada pela realpolitik, especialmente porque a
diplomacia científica é sobretudo um ramo da diplomacia e, portanto, pode estar sujeita
a lógicas potencialmente adversas à ciência (Muller, 2021). Países como o Reino Unido e
a China, e amesmo a UE através de projetos financiados pelo Horizonte 2020, têm
aumentado o seu investimento na ciência tendo em vista o alargamento do seu soft
power, ou seja, a sua capacidade de atração e de influência nas relações internacionais.
Assim, apesar de a narrativa em torno da diplomacia científica ser maioritariamente
positiva, sublinhando-se palavras como cooperação” e “universalidade”, a prática
demonstra que este não será sempre o caso e que a moeda tem de facto outro lado.
Hoje, a diplomacia científica também reflete lógicas de interesses nacionais e dinâmicas
de poder, uma tendência acelerada pela pandemia COVID-19 (Fägersten, 2021).
Uma diplomacia científica eficaz pode ter ainda outro efeito perverso. Ao atrair para um
dado país os melhores talentos globais, tanto pode contribuir para o enriquecimento
desse Estado como para o empobrecimento dos Estados de onde esses talentos provêm.
Estes movimentos tendem a aglutinar-se em grandes centros científicos e tecnológicos
mundiais, alimentando um círculo vicioso de perpetuação dos desequilíbrios que estão
na origem dessa mesma emigração. Ou seja, a diplomacia científica pode contribuir para
a perpetuação de dinâmicas migratórias entre centros e periferias.
Por outro lado, através da implementação de redes de profissionais e investigadores no
estrangeiro, a diplomacia científica também oferece aos Estados a possibilidade de se
manterem ligados aos seus cérebros “em fuga”, criando a estrutura para que estes
contribuam para o desenvolvimento do seu país a partir do estrangeiro. Devido à
natureza híbrida de cooperação e competição da ciência, a emigração permanente ou
temporária é intrínseca à profissão científica. Através das suas ferramentas, a diplomacia
científica oferece soluções para a quebra do rculo vicioso, contribuindo para que o termo
“fuga de cérebros” possa ser substituído por “circulação de cérebros”, ou seja, a noção
de que os investigadores nacionais e estrangeiros têm fases da sua carreira dentro e
fora do país e que ambas as situações podem acrescentar valor à ciência nacional. Esta
circulação contribui para que a diplomacia científica de um país ganhe e distribua
influência em, por exemplo, processos de decisão em organizações internacionais. Neste
contexto, ao promoverem a ligação ao país de origem, as redes de profissionais e
investigadores no estrangeiro podem desempenhar um papel importante na correção dos
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desequibrios, contribuindo para que a diplomacia científica não seja um jogo de soma
nula.
Para acelerar o avanço da implementação de estratégias de diplomacia científica no
mundo, no seu relatório final o projeto EL-CSID propõe um conjunto de recomendações
(EL-CSID, 2019). Em primeiro lugar aponta para a necessidade de uma maior teorização
sobre o tema, sobretudo em ligação com as teorias das Relações Internacionais e assente
em estudos de caso sobre sucessos e falhanços da diplomacia científica. Segundo, deve
ser fomentada a troca de boas-práticas, sobretudo entre cientistas e outros profissionais,
assim como a comunicação entre estes e os decisores políticos. Terceiro, o estudo afirma
que os cientistas deverão estar mais atentos às consequências do seu trabalho nas
relações internacionais, empenhando-se em redes com impacto na diplomacia científica.
Por fim, é recomendado aos decisores políticos que monitorizem este tipo de atividade,
incorporando-a no seu trabalho e rejeitando bloqueios políticos ao avanço da ciência.
2. Diplomacia Científica da União Europeia
Em junho de 2015, Carlos Moedas, então Comissário Europeu para a Investigação,
Ciência e Inovação, num discurso endereçado ao European Institute em Washington DC,
referiu que “a diplomacia científica apresenta uma oportunidade sem igual para enfrentar
os atuais desafios políticos, demográficos e ambientais através da língua e expressão
universal do esforço científico” (Moedas, 2015). No ano seguinte, a Estratégia Global da
UE, o documento orientador da ação externa europeia, indicou a diplomacia científica
como uma forma de resolver conflitos. Desde então, a UE traçou seis objetivos gerais
para a sua diplomacia científica: estabelecer um ambiente livre para os cientistas da
união; acordar sobre os princípios da cooperação científica; promover a capacidade da
diplomacia cultural e científica no contexto da sua ação externa; conectar outras
estratégias de política externa à diplomacia científica; aumentar a coesão entre os
Estados-membros; e perceber qual o papel de cada ator na diplomacia científica, sendo
que alguns poderão ser mais estratégicos se deixados independentes (Fägersten, 2021).
Nesse sentido, a UE tem vindo a incluir a diplomacia científica em alguns dos seus
programas e instrumentos. Tal é visível no trabalho de instituições como o Conselho
Europeu de Investigação (ERC) ou o Centro Comum de Investigação (JRC) e em
programas como o Horizonte 2020, as Ações Marie Sklodowska-Curie ou o Erasmus+.
Este último, incluindo as suas ações Jean Monnet, recebe financiamento direto do Serviço
Europeu de Ação Externa (SEAE) com o propósito de alargar o papel do setor educativo
na ação externa europeia. Mais recentemente a UE tem integrado os alumni destes e
outros programas na sua estratégia diplomática com vista à criação de redes de alumni
“embaixadores” da causa europeia (Ferreira-Pereira e Mourato Pinto, 2021). A rede
Euraxess, a qual é composta por mais de 600 pontos de informação em 42 países
europeus e com várias ligações a outros pontos do mundo, é outra ferramenta central
na estratégia europeia para a área.
O Horizonte 2020 proporcionou a criação do cluster de diplomacia científica da UE
(science-diplomacy.eu), o qual é constituído por três projetos irmãos: EL-CSID
(terminado em 2019), S4D4C (terminado em 2021), o qual criou um curso virtual
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gratuito e aberto ao público em geral, e InsSciDE
5
(termina em 2022). Em 2019, as
comunidades dinamizadas por estes projetos lançaram a “Declaração de Madrid sobre
Diplomacia Científica” com o objetivo de fomentar a condução de políticas externas
informadas pela ciência, o aumento da produtividade das relações internacionais e o
alargamento da capacidade para enfrentar desafios globais. Para o atingir a Declaração
de Madrid defende que a diplomacia científica deve ter os cidadãos no centro da sua ação
e deve ser capaz de mostrar resultados com frequência. Esta comunidade tem sido muito
ativa na criação de propostas para a diplomacia científica da UE, apelando a que esta
estimule o treino dos seus Estados-membros, fomente a criação de uma comunidade
europeia de profissionais neste campo e faça uma maior ligação entre a ciência e o
combate aos desafios globais (Melchor, Elorza, Lacunza, 2021). Em 2021 este cluster foi
transformado na EU Science Diplomacy Alliance, a qual oferece mais oportunidades de
treino e aconselhamento aos diversos atores, a fim de formar uma comunidade europeia
de diplomacia científica. A tarefa poderá revelar-se mais desafiante tendo em conta que
o campo se estará a fraturar em áreas temáticas como energia, água, saúde, entre
outros. Posto isto, argumenta-se que a aposta deverá residir na criação de espaços para
a troca de ideias e na disponibilização de oportunidades de formação (Hartl, 2021).
A ação da UE também se alicerça numa rede de treze conselheiros científicos distribuídos
pelo mundo e coordenada a partir de Bruxelas pelo rum Estratégico para a Cooperação
Internacional em Ciência e Tecnologia (SFIC), uma colaboração entre o SEAE e a Direção-
Geral para a Investigação e Inovação da Comissão Europeia (Conselho da EU, 2016).
Estes eso alocados a países de interesse estratégico da UE
6
, sendo que o mais recente
foi criado em 2020 no Reino Unido na sequência do Brexit
7
. Estes conselheiros promovem
os programas de investigação da UE para aumentar o seu perfil internacional e fomentam
a colaboração entre os conselheiros ou attachés dos Estados-membros através da
organização de reuniões mensais (Ruffini, 2021a). Quanto ao SFIC, este está dotado de
uma equipa especializada em diplomacia científica, a qual lançou em setembro de 2020
o working paper “Anchoring Science Diplomacy In Horizon Europe - Developing Specific
Subjects And Activities”. Este documento sublinha a necessidade de maior conexão entre
o Programa Horizonte Europa e a estratégia europeia para a diplomacia científica, indo
ao encontro do desejo de criação de maiores sinergias entre diferentes políticas,
plasmado desde logo na Estratégia Global da UE de 2016. Com efeito, o Plano Estratégico
do Horizonte Europa 2021-24 dedica um capítulo à cooperação internacional, salientando
o papel da diplomacia científica.
Estas iniciativas são também um contributo da UE para a reforma do multilateralismo.
Os objetivos o torná-lo mais inclusivo através da participação de atores não-estatais e
desenquadrados de lógicas nacionais (Muller, 2021) e ainda reforçar os mecanismos de
resolução de desafios transnacionais, nomeadamente os relacionados com os bens
comuns globais (“global commons”), tais como as questões ligadas às alterações
climáticas (Van Langenhove, 2016). Numa perspetiva mais realista, a UE pretende que
a diplomacia científica aumente o seu soft power e, consequentemente a sua capacidade
5
Inventing a shared Science Diplomacy for Europe - insscide.eu.
6
Canadá (aberto em 1977), Estados Unidos da América (1980), Austrália (1988), China (1991), Rússia
(2000), Índia (2001), Arábia Saudita (2002), Japão (2002), Brasil (2008), Etiópia (2013), Coreia do Sul
(2014) e Egito (n.d.).
7
Sem informação acerca da nacionalidade do/a conselheiro/a.
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de ação enquanto ator internacional. No global, a diplomacia científica serve a renovação
da imagem da UE, adicionando ao projeto de paz que a originou a ideia de um continente
ambientalmente sustentável e baseado num modelo de desenvolvimento assente na
ciência e na tecnologia (Muller, 2021).
3. A diplomacia científica portuguesa
A diplomacia científica portuguesa foi definida pela Resolução do Conselho de Ministros
n.º 78/2016. Nesta lê-se que “deve entender-se por diplomacia científica o uso coerente
e sistemático de recursos e iniciativas da área da ciência e tecnologia, no quadro da
política europeia e externa de Portugal, para prosseguir as finalidades desta política e,
designadamente, a promoção da imagem e dos interesses nacionais, das oportunidades
de conhecimento, comunicação e colaboração recíproca entre Portugal e outros Estados,
dos contactos povo a povo e da diplomacia pública”. Apesar de esta definição ter um
entendimento unidirecional do termo, olhando sobretudo para o contributo que a ciência
pode trazer para a diplomacia portuguesa, o todo da resolução apresenta diversas ações
com o objetivo de internacionalizar a ciência portuguesa, parcialmente por via de uma
maior interação com a política externa do país. A fim de criar uma “política de
internacionalização do ensino superior e da ciência e tecnologia”, além do papel da ciência
na ação do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), de forma mais alargada
pretende-se que esta internacionalização valorize a investigação científica e tecnológica
em Portugal, contribua para a cooperação com países terceiros e seja um veículo de
“apoio a consórcios e parcerias de âmbito estratégico que afirmem Portugal e os
portugueses na Europa e no Mundo e que reforcem a capacidade de atração de recursos
humanos qualificados para o nosso país”. Por fim, pretende-se ainda um maior
relacionamento com as comunidades académicas e científicas portuguesas residentes no
estrangeiro.
Este conjunto de objetivos aporta à diplomacia científica uma multidisciplinaridade de
difícil implementação. Nesse sentido, tem sido criada uma estreita colaboração entre o
MNE e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), sendo que algumas
competências estão delegadas nas Secretarias de Estado das Comunidades Portuguesas,
da Internacionalização e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. A coordenação da
implementação no terreno está em grande parte a cargo da Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT), da Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica (Ciência
Viva), da Agência Nacional de Inovação (ANI) e da Agência para o Investimento e
Comércio Externo de Portugal (AICEP). O corpo diplomático português acompanha o
desenvolvimento do tema nos respetivos países, organizando eventos de divulgação
científica e de dinamização da comunidade local de cientistas portugueses. A estes atores
acresce o papel desempenhado pelas “Redes constituídas por Profissionais,
Investigadores e Estudantes Pós-Graduados Portugueses a trabalhar no estrangeiro”, o
qual iremos explorar nos próximos segmentos.
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3.1. Redes constituídas por profissionais, investigadores e estudantes pós-
graduados portugueses a trabalhar no estrangeiro
De acordo com o Eurostat (2019), enquanto 10.8% dos portugueses vivem noutro
Estado-membro da UE, apenas 1.1% dos espanhóis se encontram na mesma situação.
Não obstante as razões socioeconómicas que frequentemente motivam a emigração, a
diáspora portuguesa, incluindo os lusodescendentes, é um dos principais ativos de
Portugal no estrangeiro. Para incentivar a sua (re-)aproximação ao país, a resolução
pretende fomentar a criação de "Redes constituídas por Profissionais, Investigadores e
Estudantes Pós-Graduados Portugueses a trabalhar no estrangeiro”, atuando como
“interlocutores prioritários dos serviços centrais do MNE e do MCTES, bem como da rede
diplomática e consular, tendo em vista a representação e promoção dos interesses e
imagem de Portugal nesses países.” (Presidência do Conselho de Ministros, 2016). A
dinamização deste “associativismo académico e científico” é responsabilidade da
Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, sendo que cumpre à FCT estimular
a relação com a diáspora científica portuguesa, eventualmente atraindo-a para o
emprego científico em Portugal. Atualmente existem sete associações: AGRAFr (França),
AGRAPS (Suíça), APEI Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), ASPPA
(Alemanha), PAPS (Estados Unidos da América e Canadá), PARSUK (Reino Unido), SPOT
Nordic (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia). Estas surgem da capacidade
de auto-organização da comunidade portuguesa, sendo que algumas precedem em
vários anos a publicação da Resolução n.º 78/2016. Embora sem homogeneidade, o seu
trabalho é feito em coordenação parcial com as embaixadas de Portugal nos respetivos
países. também um ainda parco envolvimento com os respetivos conselheiros das
comunidades portuguesas. A FCT tem protocolos de cooperação formal estabelecidos
com algumas, sendo o objetivo alargá-los a todas. O protocolo com a PARSUK resultou
na criação de um conselho científico formado pela diáspora científica portuguesa no Reino
Unido.
Os eventos organizados por estas associações, os quais não se esgotam na diplomacia
científica, incluem a promoção das IES portuguesas junto das suas comunidades,
organização de debates científicos em contexto formal e informal, online e offline,
divulgação das atividades da comunidade portuguesa além do mundo científico, entre
outros. Por exemplo, a PARSUK e a FCT colaboram na organização de um concurso anual
de apoio à mobilidade científica entre Portugal e o Reino Unido, denominado Bilateral
Research Fund, o qual obtém centenas de candidaturas para um financiamento global de
15000€. a APEI Benelux desenvolve uma atividade anual de divulgação das IES
portuguesas junto dos alunos portugueses finalistas do ensino secundário na Escola
Europeia em Bruxelas, atraindo-os para o ensino superior português. Uma vez por ano
todas as organizações colaboram na organização do GraPE Fórum de Graduados
Portugueses no Estrangeiro com o objetivo de promover a discussão entre profissionais
portugueses residentes em Portugal e no estrangeiro. Na sua nona edição o evento atraiu
diversas instituições públicas e privadas, incluindo dois ministros e um ex-comissário
europeu, tendo o potencial para crescer e tornar-se numa montra da investigação
realizada por portugueses em todo o mundo.
Nascendo do associativismo, estas redes têm o potencial de dar aos investigadores
portugueses no estrangeiro uma maior propriedade sobre a diplomacia científica
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portuguesa no seu país de acolhimento, contribuindo assim para que o termo “fuga de
cérebros” seja substitdo por “circulação de rebros”. Porém, para que tal aconteça, as
instituições portuguesas deverão estar cientes tanto do potencial como das limitações do
associativismo, integrando-o de forma adequada na diplomacia científica portuguesa.
Nesse sentido, o trabalho voluntário não poderá substituir o profissional e deverá ser
objeto do reconhecimento e valorização apropriados por parte das entidades
responsáveis. Adicionalmente, a aquisição de escala global está dependente de
coordenação centralizada a qual deve identificar sinergias entre estas redes e
embaixadas, pela via de conselheiros científicos, IES e cidades portuguesas.
3.2. O Conselheiro Científico
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2016 introduz a figura do “Conselheiro
Científico” com o objetivo de centralizar a informação num único profissional responsável
pela “promoção do emprego científico” (Presidência do Conselho de Ministros, 2016).
Após indicação da FCT e sob alçada das principais embaixadas portuguesas, os
conselheiros científicos poderão ser uma adição aos existentes conselheiros
económicos, formando uma equipa com um grande potencial de atração de investimento
e conhecimento para Portugal. Enquanto que as associações de pós-graduados podem
ter o papel de dinamização dos seus pares, o seu trabalho está inevitavelmente limitado
pela sua condição de voluntariado, não lhes podendo ser imputada a execução de
estratégias governamentais. Pelo conjunto de competências que encerram, os
conselheiros científicos poderão desempenhar este papel, apoiando a FCT, as embaixadas
e as redes de profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro na
implementação local da diplomacia científica. Apesar do seu potencial, e apesar de haver
profissionais destacados para realizar algumas destas tarefas, Portugal não nomeou
nenhum conselheiro científico.
Exemplos internacionais: as várias formas do conselheiro científico
A Alemanha organiza anos internacionais da ciência para dar visibilidade a relações
científicas bilaterais com um país-tema durante um ano. A Suíça tem casas de
divulgação suíça no estrangeiro, as quais são institutos próprios sedeados junto dos
grandes hubs científicos e tecnológicos globais como Silicon Valley, Nova Iorque, ou
Xangai. A Dinamarca nomeou um representante para a tecnologia acreditado em
Silicon Valley e a Áustria criou o Office of Science and Technology em Washington DC.
Espanha montou em Madrid uma rede de diplomacia científica que assenta na
dinamização do contacto entre os funcionários das várias embaixadas acreditadas
nessa cidade. Através dessa rede dissemina a sua informação e obtém informação de
outros países. França tem a Agence Nationale de la Recherche, a qual compila e
dissemina informação através da sua rede de conselheiros científicos colocados nas
suas embaixadas. Esta informação é de interesse para as entidades blicas
francesas, empresas privadas, laboratórios de investigação, e todos os que estejam
ligados ao investimento na ciência. O Reino Unido criou a Science and Innovation
Network, mobilizando cerca de cem profissionais para trabalhar em onze programas
temáticos localizados em quarenta países.
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3.3. Instituições de Ensino Superior
As IES o um dos eixos fundamentais da diplomacia científica, seja pelo seu papel
central na formação superior, na investigação, na inovação, na ligação às empresas ou
na dinamização das cidades que as acolhem. As IES têm a capacidade única de fazer a
ponte entre ciência e tecnologia e a educação e juventude. Estas características tornam
as universidades em atores ativos e passivos da ação diplomática, falando-se por vezes
em “diplomacia do ensino superior” (Ferreira-Pereira e Mourato Pinto, 2021; Ruffini,
2021b).
Porém, analisando artigos sobre o papel das IES na diplomacia científica tem-se concluído
que muitas destas têm optado por se manter à margem, possivelmente por questões de
independência política e universalidade do conhecimento, deixando a tónica recair sobre
os investigadores e sobre os fluxos de estudantes. Neste sentido, os debates mais
recentes têm-se centrado em modelos de envolvimento independente das IES na
diplomacia científica. De uma perspetiva nacional, estes incluem políticas de atração de
estudantes estrangeiros, formação de profissionais na diplomacia científica, gestão de
redes de alumni, e uso de fundos europeus para aumentar a sua influência e, assim,
inerentemente contribuir para o soft power nacional. Já de uma perspetiva mais global,
argumenta-se que as IES podem contribuir para um maior conhecimento académico
sobre a diplomacia científica, formar quadros para as organizações internacionais,
promover a adoção de abordagens multidisciplinares nas questões diplomáticas, ser
veículos de cooperação internacional através das redes de universidades onde se
inserem, entre outros (Ruffini, 2021b).
Esta discussão enquadra-se na temática de internacionalização das IES, assunto que
ganhou particular velocidade em Portugal na última cada e resultou num saldo positivo
no fluxo internacional de estudantes de ensino superior, ou seja, mais estudantes
estrangeiros em Portugal do que o inverso. Quase metade é oriunda da lusofonia, o que
se poderá explicar em parte pelos laços culturais, mas também pelos vários acordos de
cooperação académica assinados entre IES e Governos destes países. O Centro UNESCO
Ciência LP (Língua Portuguesa) tem sido um importante ator neste contexto através da
oferta de formações e bolsas de doutoramento a alunos dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa (PALOP). Em sentido inverso, quase metade dos estudantes
portugueses no estrangeiro distribuem-se pelo Reino Unido, França e Espanha (UNESCO,
2019), tornando este um movimento que largamente se faz de sul para norte.
A FCT presta um papel central nesta área através da capacitação e financiamento das
IES nacionais e criação de parcerias com entidades estrangeiras. De entre vários
exemplos destaca-se a iniciativa GoPortugal Global Science and Technology
Partnerships
8
, a qual pretende promover a colaboração entre Portugal e IES estrangeiras
de renome internacional. Parcerias como estas têm contribuído para que o fluxo de
investigadores seja diferente do que se verifica nos estudantes. Em 2017 havia quase
55000 investigadores em Portugal, sendo que 4647 (8.4%) eram de origem estrangeira.
Porém, enquanto o Brasil continua a surgir como principal país de origem (27,1%), os
8
fct.pt/apoios/cooptrans/goportugal.phtml.en.
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PALOP têm menor representatividade neste setor, não chegando a totalizar 6% dos
investigadores estrangeiros em Portugal. Os países europeus são a principal origem
destes investigadores, destacando-se Espanha (14,8%), Itália (9%) e Alemanha (4.1%)
(DGEEC, 2019).
O potencial de crescimento do público europeu é particularmente importante, sobretudo
tendo em vista os planos da UE para o setor através da alocação de 95.5 mil milhões de
euros para o programa Horizonte Europa no período 2021-2027. Portugal tem aumentado
paulatinamente a sua capacidade de captação e execução destes fundos, tendo sido um
beneficiário líquido do Horizon 2020 (PERIN, 2022: 10). A rede Portugal in Europe
Research and Innovation Network (PERIN), lançado no início de 2021, traça o ambicioso
objetivo de “atrair cerca de dois mil milhões de euros de financiamento da UE nas áreas
da Investigação e Inovação” (PERIN, 2022: 2) no período de vigência do Horizonte
Europa. Para que tal seja possível, será necessário mobilizar a comunidade científica do
país, olhando também para as oportunidades criadas pelos Espaços Europeus da
Investigação e da Educação e pelas “Universidades Europeias”. Neste contexto importam
também as iniciativas mais regionalizadas, tais como o Programa IACOBUS, o qual foi
assinado em 2014 entre as IES do Norte de Portugal e da Galiza para desenvolver um
sistema de intercâmbio entre todos os seus funcionários, incluindo cientistas. Em sete
edições o programa financiou mais de mil projetos de investigação na Euro-região
Galiza-Norte de Portugal (CCDR-N, 2021).
O investimento e atenção dada à internacionalização da ciência portuguesa poderá
resultar num número crescente de investigadores no país, sejam nacionais ou
estrangeiros. Tal como é inerente à sua profissão, é expectável que estes profissionais
emigrem para outros países, de forma temporária ou permanente, para integrar outras
equipas e projetos. Atualmente as IES desenvolvem isoladamente as suas estratégias de
envolvimento dos seus alumni, disponibilizando-lhes informação e ofertas dedicadas.
Porém, este modelo conhece dificuldades relacionadas com o facto de a investigação se
alicerçar em várias IES, laboratórios, empresas, entre outros, sendo a alma mater apenas
um capítulo na carreira de um investigador e graduado. Tanto o efeito circulação de
cérebros” como o impacto dos investimentos podem ser multiplicados mediante a
implementação de uma estratégia de acompanhamento internacional dos alumni
nacionais, enquadrada pela estratégia mais geral para a diplomacia científica, e onde se
incluam portugueses e estrangeiros graduados nas universidades portuguesas. Devido à
sua inserção no associativismo científico e à sua estrutura horizontalizada, as redes de
profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro podem ser as pedras angulares
dessa estratégia.
No futuro próximo as IES portuguesas serão também desafiadas a olhar para a sua oferta
letiva e formativa no âmbito da diplomacia científica. Um estudo do projeto S4D4C
(Melchor, Elorza, Lacunza, 2021) recomenda a criação de programas de treino mistos
para cientistas e diplomatas, equipando-os com as competências necessárias a este novo
campo. O currículo destes programas deverá seguir prioridades nacionais, mas a sua
implementação deverá incluir tantos sessões presenciais como sessões à distância para
incluir mais facilmente os cientistas portugueses emigrados.
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Exemplos internacionais: programas de treino em diplomacia científica
A Universidade de Varsóvia tem uma academia para a diplomacia científica e o SciTech
DiploHub de Barcelona oferece formações sobre o tema. A ETH de Zurique trabalha
em proximidade com os conselheiros científicos da Suíça, criando uma ligação direta
entre a diplomacia científica nacional e o seu corpo estudantil. a Academia
Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) e a The World Academy of Sciences
(TWAS) oferecem em Trieste um programa de formação de formadores em diplomacia
científica. O Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
organiza anualmente a Escola São Paulo de Cncia Avançada em Diplomacia Científica
e Diplomacia da Inovação, a qual consiste em cinco dias de formação intensiva e em
inglês.
3.4. Cidades
As cidades o elementos fundamentais da diplomacia científica na medida em que
centralizam o triângulo formado pela ciência, empresas e indústria. No seu conjunto,
estes formam polos de atração tanto de profissionais altamente qualificados, incluindo
estrangeiros e os cientistas portugueses emigrados. Portugal já conta com vários destes
polos, sendo exemplos o TagusPark (Oeiras), o Atlantic International Research Centre
(Angra do Heroísmo), ou o eixo Braga-Guimarães onde se inclui o Laboratório Ibérico
Internacional de Nanotecnologia. Cidades como Covilhã, Coimbra ou Évora, onde o peso
dos estudantes é desproporcional, mas também Porto, Lisboa, ou Aveiro, são muito
importantes para a diplomacia científica nacional. Em todos estes exemplos se destaca a
parceria entre municípios, IES e empresas locais, criando um ambiente propício à fixação
de recursos humanos de qualificação elevada. A diplomacia científica pode servir para
reforçar esta relação, contribuindo para a fixação de talentos e atraindo investimento
direto estrangeiro, incluindo nas regiões menos conhecidas internacionalmente. Por este
motivo, a Secretaria de Estado da Valorização do Interior está envolvida nesta dinâmica.
Exemplos internacionais: o Barcelona SciTech DiploHub
O caso de Barcelona é paradigmático, desde logo porque constitui um exemplo de
“paradiplomacia”, ou seja, relações internacionais conduzidas por um governo que
não o nacional (Cornago, 2018). Sob coordenação do município foi constituído o
consórcio “SciTech DiploHub”, o qual inclui várias IES locais, empresas, laboratórios
e outras entidades relevantes para a “primeira cidade a implementar uma estratégia
de diplomacia científica e tecnológica”. Este pretende ainda mapear e dinamizar uma
comunidade de “Barcelona alumni”, a qual constitui uma “rede global de cientistas,
especialistas em tecnologia, e líderes em inovação formados (…) no ecossistema de
conhecimento da cidade e atualmente residentes no estrangeiro”. Os membros desta
rede são considerados embaixadores de Barcelona e estão conectados através de uma
plataforma virtual. Uma newsletter mensal mantém-nos informados sobre ofertas
profissionais na cidade e é-lhes oferecido um programa de aconselhamento
profissional. Por fim, os “Barcelona Alumni” são instigados a partilhar as suas histórias
com o grupo, sendo que as afinidades pessoais são fomentadas em eventos exclusivos
como o “Barcelona Alumni Glo bal Summit” e os “Barcelona Innovation Days”. Estes
últimos são descentralizados para outras cidades do mundo, tais como Boston ou
Londres (SciTech DiploHub, 2021). No caso de Barcelona, o envolvimento do
município é um dos fatores-chave para o sucesso da sua plataforma de alumni.
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Posto isto, num contexto de circulação permanente dos profissionais qualificados, tanto
as cidades como as IES o simultaneamente pontos de origem e de chegada. Esta dupla
condição torna o seguimento das carreiras destes profissionais uma tarefa difícil onde
Portugal já deu passos de relevo. Um dos principais exemplos é o da Global Portuguese
Network (GPS), a qual foi criada em 2016 como resultado de uma parceria entre
Universidade de Aveiro, a Agência Ciência Viva, a Fundação Francisco Manuel dos Santos,
a empresa Altice e as várias redes de profissionais e investigadores portugueses no
estrangeiro. Num curto espaço de tempo registaram-se na plataforma mais de 4300
pessoas em 126 países diferentes, as quais beneficiam de uma newsletter dedicada, de
um motor de busca que lhes permite encontrar colegas portugueses por todo o mundo e
da possibilidade de participação num evento anual exclusivo. Os utilizadores podem
adicionar ao seu perfil informação sobre as suas conquistas profissionais e partilhar
oportunidades e opiniões com todos os utilizadores ou apenas dentro de grupos restritos.
As associações de pós-graduados têm espaços reservados dentro da plataforma, a partir
dos quais podem divulgar informação de relevo apenas para os portugueses residentes
nos seus países. A plataforma GPS tem atualmente parcerias com canais de televisão,
jornais e podcasts, sendo os seus membros convidados a intervir publicamente sobre os
mais variados temas. Porém, não obstante o seu sucesso, o crescimento da plataforma
tem sido mais lento nos últimos anos. Enquanto que do ponto de vista do utilizador a
plataforma está ao nível do estado da arte, após os primeiros anos de mapeamento da
diáspora científica portuguesa, surge a necessidade de traçar um plano igualmente
ambicioso para a potencialização dessa informação, particularmente no contexto da
diplomacia científica.
Exemplos internacionais: os EU Alumni
Para atingir objetivos semelhantes aos da Plataforma GPS, a UE está a conduzir o
projeto piloto “EU Alumni Engagement Initiative”. Este é financiado pelo Serviço
Europeu de Ação Externa e tem como objetivo criar uma comunidade de alumni
alicerçada em relações interpares. A comunidade é dinamizada localmente tanto pelas
já existentes redes de alumni do programa Erasmus e ações Marie Curie como pelas
delegações da UE. O objetivo é criar canais através dos quais a UE possa partilhar
informação com maior facilidade e obter contributos para as suas estratégias locais.
A comunicação faz-se através de uma newsletter dedicada e de eventos online e
offline. Adicionalmente, a UE convida alumni dos seus programas de intercâmbio
académico para a representarem tanto nos seus eventos “Study in Europe” como nas
grandes feiras internacionais de ensino superior (NAFSA, EAIE, etc.). Enquanto que
os profissionais da UE se dedicam à criação de parcerias com outras organizações e
países terceiros, os alumni partilham a sua história pessoal com os participantes
destes eventos, a fim de os atrair para os programas europeus.
4. Ideias para o futuro
A diplomacia científica portuguesa ainda está a dar os primeiros passos e como não
nem uma definição completa nem um modelo único para a sua implementação, as opções
para o futuro são muitas. Nesta lista apresentam-se algumas ideias com o objetivo de
contribuir para o debate em torno da operacionalização da diplomacia científica
portuguesa.
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I Estratégia nacional para a diplomacia científica: o potencial de maior
coordenação e mais sinergia
Após a publicação da legislação em 2016 e volvidos os primeiros anos de
experimentação, o momento atual poderá ser o ideal para a criação de uma estratégia
para a diplomacia científica portuguesa. Tendo em conta o crescente número de atores
envolvidos, a carência de uma estratégia de articulação global obsta a que o seu potencial
seja totalmente aproveitado. Tal estratégia poderia aumentar a eficácia da diplomacia
científica através da identificação de sinergias guiadas por uma estrutura coordenadora
dos atores mais relevantes. Essa estrutura não tem de ser uma entidade nova uma vez
que a lei já prevê a divisão de responsabilidades entre os diversos atores. A Declaração
de Madrid introduz alguns dos princípios mais importantes nos quais esta estratégia se
poderá alicerçar.
As redes de profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro estão entre as
entidades que mais valor podem acrescentar à diplomacia científica portuguesa mediante
maior coordenação e estabelecimento de objetivos nacionais mensuráveis e situados no
tempo. Hoje, estas sete organizações, às quais é expectável que se adicionem outras nos
próximos anos, centram-se em atividades realizadas nos seus territórios funcionando
como rede global quase exclusivamente apenas durante o Fórum GraPE. Algumas das
suas atividades atuais são de interesse à diplomacia científica portuguesa e algumas o
mesmo resultado de protocolos com a FCT, como é o exemplo do Bilateral Research Fund
da PARSUK, assegurando maiores sinergias com as prioridades nacionais. Porém, o efeito
de rede global necessita de uma estratégia coordenada centralmente e operacionalizada
em articulação com outros atores locais, tais como os conselheiros científicos. Desta
forma poderiam ser organizadas atividades de âmbito internacional com maior facilidade,
tais como campanhas promocionais, ciclos de eventos de tema comum descentralizados
nos vários países, entre outros. O desenho de tal estratégia central deve incluir um total
respeito pela independência destas associações e contribuir para o reforço do seu
associativismo. Posto isto, além de ter em mente os graduados e cientistas portugueses
emigrados deverá também dedicar particular atenção à motivação dos membros ativos
nas associações, incluindo-os na criação da estratégia, na estrutura coordenadora e em
eventos e programas que valorizem o seu tempo voluntário. Esta aposta garantirá aos
emigrantes graduados portugueses uma melhor representação dos seus interesses
perante o Estado português e vice-versa.
Uma estratégia nacional poderia ainda contribuir para repensar a disparidade na
identidade gráfica e nas nomenclaturas das diferentes organizações. O seu alinhamento,
o qual não deverá descurar a independência associativa, pode instantaneamente
fortalecer o efeito de rede global de portugueses graduados emigrados, aumentando a
visibilidade da ciência portuguesa no estrangeiro e dando a impressão visual de que os
portugueses fazem ciência por todo o mundo. Desta forma, um português em movimento
teria mais facilidade em encontrar a associação local e seria mais fácil captar a atenção
de potenciais parceiros globais. Este é, por exemplo, o caso de Espanha cuja maioria das
associações se chama “Asociación de Científicos Españoles en [país]” e todas usam a
representação de uma maçã como logo, mantendo uma maior unidade gráfica e
aumentando assim a exposição mútua. O trabalho de associações globais de alumni de
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programas da UE, tais como a Erasmus Student Network, a Marie Curie Alumni
Association ou a EIT Alumni, pode servir de inspiração para esta abordagem.
Conforme a rede se for alargando, maior será a necessidade de uma coordenação geral
do seu trabalho, seja pela via da auto-organização das associações ou pela criação de
uma posição institucional dedicada a este propósito. Nesse contexto, as atividades
organizadas pelas redes de profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro
poderiam conversar melhor com outras da diplomacia e da ciência portuguesas.
Ademais, tal estratégia poderia também explorar uma melhor articulação entre os
eventos GraPE, Encontro de Ciência e o evento anual da rede GPS. Visto haver uma
sobreposição parcial dos públicos-alvo, a discussão de uma estratégia nacional para a
diplomacia científica poderá identificar redundâncias a ser eliminadas e sinergias a ser
criadas, resultando em maior visibilidade e menor orçamentação. Ao trazer os vários
atores ao mesmo local, tal evento poderia incluir um segmento dedicado à discussão de
estratégias de diplomacia científica. Esta ocasião poderia servir para organizar painéis de
discussão sobre, por exemplo, a expansão e consolidação das redes de profissionais e
investigadores portugueses no estrangeiro, a discussão de estratégias de envolvimento
dos lusodescendentes, ou o aprofundamento da plataforma GPS. Por fim, este trabalho
conjunto poderia resultar numa maior capacidade de captação de financiamento para
atividades da diplomacia científica portuguesa, nomeadamente através do programa
Horizonte Europa ou da rede COST
9
, alimentando assim a concretização dos objetivos da
rede PERIN.
Tal estratégia deveria ainda contemplar uma melhor inclusão de Portugal nos fóruns de
diplomacia científica, tais como a nova EU Science Diplomacy Alliance. Deve ser
instigada a parceria com os conselheiros científicos da UE e dos seus Estados-membros
destacados em países estratégicos para o interesse nacional. As cidades portuguesas
também poderão prestar um papel importante através das suas parcerias internacionais
e das suas iniciativas de atração de talento. Por fim, as entidades financiadoras de ciência
poderão instigar os seus investigadores principais a incluir ações de diplomacia científica
nos seus projetos. Para tal o MNE poderá especificar os objetivos que pretende atingir
neste campo e, em colaboração com o MCTES, acordar nas prioridades que poderão ser
atingidas pelos projetos de ciência em Portugal.
Tal estratégia deverá atentar tanto à comunicação dos seus resultados com o público em
geral como à necessidade de avaliação cíclica sobre o seu sucesso, aspeto que seria até
inovador no contexto global e posicionaria Portugal no centro do debate académico sobre
a diplomacia científica.
II Recursos humanos no centro da estratégia
A diplomacia científica portuguesa deverá estar assente no princípio da circulação de
cérebros, preocupando-se não apenas em atrair mais talento para Portugal, mas também
em seguir o talento formado em Portugal (seja português ou estrangeiro) ao longo da
sua carreira fora do país. As redes de profissionais e investigadores portugueses no
estrangeiro adquirem um papel central para a concretização destes objetivos. Através da
9
European Cooperation in Science and Technology cost.eu.
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sua atividade estas promovem a socialização entre portugueses emigrados e
lusodescendentes e proporcionam oportunidades para a criação de redes. Algumas
disponibilizam newsletters dedicadas e até mesmo guias de sobrevivência para
portugueses recém-chegados. A existência destes serviços em vários países facilita a
manutenção do vínculo entre Portugal e os investigadores portugueses emigrados. Este
tipo de acompanhamento poderá crescer se conversar com outras iniciativas tais como a
rede GPS ou os programas de alumni das IES, os quais também disponibilizam
newsletters e eventos dedicados. Deverá ser criado um modelo onde todas estas
abordagens se alimentem mutuamente.
No contexto dos recursos humanos, deverá ser pensada a criação de uma comunicação
especializada para os lusodescendentes nos quais se incluem exemplos ilustres como
Craig Mello, um dos vencedores do prémio Nobel da Medicina em 2006, e milhares de
cidadãos anónimos. A criação de um contingente especial no acesso ao ensino superior,
o qual reserva 7% das vagas para emigrantes e seus familiares, foi um importante
contributo para o aumento da atratividade de Portugal junto desta população. As 600
vagas preenchidas no ano letivo 2020-2021, de um total de 3500, demonstram que a
iniciativa teve interesse e que há espaço para crescer. Porém, a atração de graduados
emigrantes e lusodescendentes depende de outros fatores, tais como a agilização
equivalências de habilitações académicas e qualificações profissionais obtidas no
estrangeiro, um objetivo entretanto integrado no Programa Nacional de Apoio ao
Investimento da Diáspora (PNAID). Medidas de longo prazo deverão ainda prestar
atenção ao ensino de português no estrangeiro, o qual deve estar alicerçado numa
distinção clara entre português como língua materna e como língua estrangeira. Hoje, os
lusodescendentes o integrados em turmas mistas onde a imersão linguística e
sociocultural poderá não ter a profundidade necessária para o seu maior relacionamento
futuro com o país (CCP Europa, 2018). No médio e longo prazo, este e outros desafios
relacionados com a inclusão dos lusodescendentes podem fragilizar os objetivos de
programas como o PNAID ou da rede PERIN. Pela sua proximidade sica e pelo seu
modelo assente na interação entre pares, também aqui as associações de pós-graduados
podem ter um papel relevante, sobretudo se receberem do Estado treino para o efeito.
III Formação na área da diplomacia científica
As IES e centros de investigação portugueses serão crescentemente desafiados a
proporcionar formações em diplomacia científica vocacionadas tanto para jovens que
decidam seguir essa carreira como para profissionais que decidam especializar-se no
tema. Enquanto os centros internacionais podem oferecer programas abertos aos
portugueses, equipando-os com o conhecimento teórico e exemplos de outros países,
apenas uma oferta formativa acompanhada por instituições portuguesas pode responder
às necessidades específicas do país. Conforme o tema da formação em diplomacia
científica ganha interesse internacional, particularmente por parte dos académicos, a
construção desta oferta podetambém ter em mente o resto da lusofonia assim como
investigadores estrangeiros interessados na diplomacia e na ciência portuguesa,
apoiando assim a sua internacionalização.
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O país poderá mesmo equacionar a criação de uma carreira associada à diplomacia
científica mediante o seguimento de uma formação pós-graduada específica para o efeito.
Esta poderia ser feita através da oferta formativa nas IES e/ou através do
desenvolvimento de programas de treino para diplomatas e cientistas interessados.
Neste modelo poderá estar incluída a formação tanto das associações de pós-graduados
portugueses no estrangeiro como dos investigadores e gestores dos projetos científicos
mais relevantes. A criação de uma estragia central permitirá criar programas
modulares em articulação com a oferta e outros programas já existentes.
Além disso, as IES deverão continuar a apostar na aquisição de competências relevantes
para este tipo de carreira, nomeadamente através de mais oportunidades de
internacionalização dos seus alunos e investigadores. A rede PERIN poderá contribuir
para este objetivo ao pretender “triplicar o número de estudantes em mobilidades no
ensino superior”, sobretudo pela via do Programa Erasmus+ (PERIN, 2022: 2). As
competências adquiridas após uma experiência internacional poderão ser exponenciadas
mediante um programa de reflexão, tal como sugerido pelo projeto Erasmus Skills
10
,
financiado pelo programa Erasmus+. Quanto aos estudantes incoming, as IES deverão
promover o seu envolvimento na criação e execução ativa das suas estratégias de
internacionalização (Mourato Pinto e Benke-Åberg, 2019), à semelhança do que é feito
no exemplo de Barcelona. Estes tipos de envolvimento dos estudantes
“internacionalizados” contribui para a aquisição de competências importantes para a
diplomacia científica. Por fim, os gabinetes de apoio à formação profissional das IES
deverão também receber instruções sobre as oportunidades na área a fim de melhor
aconselhar os alunos interessados.
IV Rumo à Equipa Portugal
Por fim, e porque a diplomacia científica é apenas uma das expressões da diplomacia e
da ciência portuguesa, a criação de uma estratégia para este campo deverá ter como
objetivo principal a melhor integração do tema naquilo que Portugal já faz. O objetivo é
criar uma única “Equipa Portugal”, a qual deverá reunir-se periodicamente e agregar os
principais atores, tais como os diferentes conselheiros nas embaixadas, os Conselheiros
das Comunidades Portuguesas, empresários portugueses emigrados, as redes de
profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro, entre outros. Desta forma,
estes últimos poderiam disseminar com maior propriedade as mensagens mais
relevantes da ciência e da política externa portuguesa entre os seus membros,
efetivamente envolvendo os cientistas portugueses na diplomacia portuguesa e
expandindo assim o alcance do soft power nacional. Para um país com recursos limitados,
geograficamente pequeno e periférico no contexto europeu, a extensão do soft power
através da emigração tem um potencial de ganhos de poder relativo que Portugal pode
explorar melhor. Assim, a criação de uma Equipa Portugal poderia facilitar a criação de
uma mensagem única e partilhada por todos os atores nos diversos campos, aumentando
a eficácia das novas expressões da diplomacia portuguesa. No fundo, trata-se de
construir a governança da diplomacia científica portuguesa, esbatendo fronteiras
10
erasmusskills.eu.
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institucionais e promovendo a interdisciplinaridade e espírito colaborativo que lhe são
essenciais.
Conclusão
A produção científica em Portugal está a atingir um novo patamar com um número
recorde de publicações, patentes registadas e circulação de cérebros dentro e fora do
país. Este clima de inovação, associado ao crescente número de estudantes no ensino
superior, ao potencial tanto da diáspora como da lusofonia e às possibilidades abertas
pelos fundos europeus, fazem deste o momento indicado para uma forte aposta na
diplomacia científica. Este artigo procurou identificar algumas dinâmicas decorrentes da
implementação Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2016, sobretudo as mais
relevantes para as redes de profissionais e investigadores portugueses no estrangeiro,
com vista a contribuir para o debate sobre o tema. As ideias para o futuro sugerem a
criação de uma estratégia nacional para a diplomacia científica que promova o
associativismo académico e científico da diáspora portuguesa como forma de apoio a
uma carreira científica sem barreiras nacionais tal como o exige a ciência mas com
oportunidades de permanecer ligado ao país e de contribuir para o seu progresso, mesmo
que a partir do estrangeiro.
Parte do sucesso futuro da diplomacia científica portuguesa prender-se com a sua
capacidade de captação dos seus graduados, seja pela via das IES, das cidades, das
embaixadas ou outra. Em todas elas as redes de profissionais e investigadores
portugueses no estrangeiro podem desempenhar um papel fulcral ao combinarem uma
dimensão formal e informal da experiência internacional, sendo promotoras de uma boa
integração dos portugueses no estrangeiro e da captação de estrangeiros para investigar
em Portugal. Elas são fundamentais nesta “circulação de cérebros” que a ciência moderna
promove e na qual Portugal se vem integrando. Ao manter os seus graduados ligados ao
país, Portugal poderá conseguir captar mais investimento direto estrangeiro e aumentar
o seu perfil em organizações internacionais. Através desta estratégia o país poderá
contribuir mais ativamente para a definição da diplomacia científica, dando prioridade à
clarificação de práticas e discursos, à criação de estratégias de comunicação e ao
estabelecimento de carreiras dedicadas.
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Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
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A DESSECURITIZÃO DO NARCOTRÁFICO NO MÉXICO SOB A
ADMINISTRAÇÃO AMLO
LUIS MIGUEL MORALES MEZ
lmoralesgamez@gmail.com
Doutorado especializado em segurança e política de combate ao narcotráfico no México.
Especialista em estratégias para a prevenção do crime e da violência no México. Investigador
principal com inúmeras publicações focadas na segurança dos cidadãos e reformas policiais
politicamente sensíveis (México). Conhecimento aprofundado das relações bilaterais das políticas
de segurança dos cidadãos EUA-México, tendo conduzido diversos projetos de investigação em
colaboração com universidades norte-americanas como investigador convidado. Tem experiência
de trabalho como consultor político e auditor, gestão de projetos de investigação académica e
projetos estratégicos de políticas públicas.
Resumo
O presente artigo analisa, a partir da perspetiva da teoria da dessecuritização, a maneira
como Andrés Manuel López Obrador (AMLO) mudou a política do governo mexicano para
enfrentar o narcotráfico no país de uma abordagem militar para uma abordagem social. O
objetivo é estabelecer se esta estratégia foi bem sucedida em comparação com a guerra
aberta travada contra os cartéis de drogas nos doze anos anteriores à administrão AMLO.
Dado que essa estratégia de dessecuritização resultou de uma decisão política e não da
pressão social, a análise aqui apresentada concentra-se na posição do presidente e nas
medidas que tomou.
Palavras-chave
Securitização; dessecuritização; narcotráfico; México; violência; militares.
Como citar este artigo
Gámez, Luis Miguel Morales (2022). A dessecuritização do narcotráfico no México sob a
administração AMLO. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-
Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.8
Artigo recebido em 6 Outubro 2021 e aceite para publicação em 14 Março 2022
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 122-139
A dessecuritização do narcotráfico no México sob a administração AMLO
Luis Miguel Morales Gámez
123
A DESSECURITIZAÇÃO DO NARCOTRÁFICO NO MÉXICO SOB A
ADMINISTRAÇÃO AMLO
1
LUIS MIGUEL MORALES MEZ
Introdução
Ao assumir o cargo, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) mudou a política nacional em
relação às organizações do narcotráfico, decidindo excluir a Secretaría de la Defensa
Nacional (SEDENA ou Secretaria de Defesa Nacional) e a Secretaría de la Marina (SEMAR
ou Secretaria da Marinha). As duas últimas administrações presidenciais encarregaram
esses dois ministérios de gerir a ameaça colocada pelas organizações de narcotráfico,
uma ameaça que continua a ser uma das principais prioridades do país.
Desde a eleição como presidente de Felipe Calderón, em 2006, até ao fim do governo de
Enrique Peña Nieto, em 2018, um dos principais problemas de segurança enfrentados
pelo México foi a luta contra as organizações de narcotráfico (DTOs). Essas
administrações anteriores dedicaram recursos nacionais significativos a esse esforço,
com Calderón a solicitar até o apoio dos Estados Unidos da América na forma da Iniciativa
Mérida (MI).
Na sua proposta teórica sobre o processo de securitização, Buzan, Waever e De Wilde
(1998) consideram que a resposta, quando um estadista ou parte interessada de elite
declara algo ou alguém como uma ameaça à segurança nacional, exige que uma
variedade de recursos seja usada para responder à referida ameaça. Tanto os estadistas
como as elites devem considerar as ações e os recursos que serão exigidos para
possibilitar essa resposta. Em alguns casos, a sociedade está ciente da ameaça quando
esse processo de securitização está a decorrer, apoiando as decisões tomadas tanto pelos
estadistas como pelas elites, enquanto noutros, a sociedade está alheia ou não está
suficientemente informada sobre a ameaça devido ao facto de esses estadistas e elites
manterem essas informações fora do domínio público (Buzan, Waever e De Wilde, 1998).
O presente artigo analisa a mudança, relativamente à responsabilidade pela segurança,
da SEDENA e SEMAR para a recém-criada Guarda Nacional Mexicana e os dados
decorrentes da implementação de programas sociais para jovens com o objetivo de
reduzir a violência e a insegurança. É de referir também que outro objetivo da política
de dessecuritização de AMLO é erradicar a corrupção nas instituições de segurança
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
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pública, juntamente com a implantação de programas de bolsas e a formação profissional
para impedir o recrutamento de jovens por parte de organizações criminosas.
Analisaremos também como AMLO definiu a sua estratégia de dessecuritização ao
declarar “o fim da guerra às drogas”, argumentando que a declaração de guerra das
administrações anteriores às DTOs não conseguiu resolver a ameaça e que a violência
envolvida nessa guerra simplesmente incentivou mais violência. A sua posição é que as
DTOs não são um problema de segurança em si, mas sim um sintoma da injustiça
económica e social no México. Diante do exposto, o presente trabalho procura analisar
como essa política de dessecuritização reduz a criminalidade, a violência e a ameaça ao
Estado, comparando-a com a política de securitização aplicada por governos anteriores,
que envolvia o confronto armado direto com narcotraficantes.
Quadro trico para a securitização e o processo de dessecuritização
A segurança, sob uma perspetiva construtivista, descreve o processo de securitização e
o seu funcionamento, assim como o papel desempenhado por estadistas e elites ao
identificar publicamente ameaças e canalizar recursos e ações para priorizar a sua
agenda política. Um processo de securitização envolve identificar o que os estadistas e
as elites consideram uma ameaça à segurança nacional e as ões que estão dispostos
a tomar para enfrentá-la (Buzan, Waever e De Wilde, 1998).
Wolfers refere que a segurança pode ser objetiva (quando a ameaça é reconhecida como
real) ou subjetiva (a ameaça é meramente percebida). Esta distinção é crucial para
estabelecer a segurança nacional para o Estado, pois requer tanto a compreensão da
perceção de uma ameaça e uma avaliação das evidências que sustentam essa perceção
(Wolfers, 1962).
A securitização bem-sucedida compreende três fatores: a ameaça existente; a ação de
emergência tomada para enfrentá-la; e os efeitos das violações das regras. Waever
descreve a segurança como um “ato da fala”, em que um problema é apresentado como
uma questão prioritária que deve ser resolvida por meio de ações, permitindo assim que
um agente reivindique a necessidade e o direito de usar medidas significativas e os
recursos que necessita. O principal interesse desse discurso é entender como uma
ameaça é apresentada publicamente e identificada como um problema de segurança
(Waever, 1996).
O público deve discutir a existência de uma ameaça para poder legitimar as medidas e
ações tomadas contra a mesma, que, uma vez legitimadas, podem ser tratadas pelo
Estado. A ausência de aceitação pública implicaria apenas um movimento de
securitização e não um objeto securitizado. Os estudos de securitização procuram
entender como securitizar, quais os objetos (ameaças) a securitizar, quem (sujeitos)
securitizar, razões para (motivos) securitizar, em que circunstâncias securitizar e os
fatores que determinam quando a securitização foi bem-sucedida.
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A dessecuritização é “a mudança de questões do modo de emergência para o processo
normal de negociação da esfera política”. O processo de dessecuritização envolve a opção
de não fazer depender a ameaça do escrutínio público (nomeadamente se é subjetiva ou
objetiva) e é visto pelos referidos autores como a “opção ótima de longo prazo, pois
significa não ter questões formuladas como ameaças contra as quais temos
contramedidas, mas tirá-las da sequência ameaça-defesa e para a esfera pública comum”
(Buzan, Waever, and De Wilde, 1998: 4-8).
Waever indica que o círculo interno, “a elite”, questiona as ões dos estadistas, que
tentam restabelecer a ordem, afirmando que a ameaça está presente ou fingindo que
nada de errado aconteceu. Porém, na realidade, as circunstâncias são alteradas pela
presença da ameaça e a nova prioridade deve ser estabelecer a verdade sobre a situação
enfrentada pelo Estado (Waever, 1995).
O presente estudo centra-se no “ato da fala” realizado por AMLO, no qual anunciou o fim
da guerra contra as DTOs, argumentando que existem soluções alternativas. No entanto,
a insegurança continua a ser um problema que se manifesta na violência criminosa, na
constante expansão da capacidade operacional das DTOs no México e no aparecimento
de novas organizações criminosas (Cattan, 2019).
Imagem 1 Análise da discussão teórica
Fonte: do autor
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No seu artigo Reconstructing desecuritization: the normative-political in the Copenhagen
School and directions for how to apply it (Reconstruir a dessecuritização: o normativo-
político na Escola de Copenhague e direções de como aplicá-lo), Lene Hansen indica como
uma questão pode ser dessecuritizada, primeiro através da sua relação com a política,
uma vez que a securitização de uma questão é um fenómeno político. Em segundo lugar,
uma questão pode ser dessecuritizada na esfera pública, o que seria uma decisão muito
mais política do que simplesmente politizar a questão, enquanto, em terceiro lugar, por
meio de uma decisão coletiva, a sociedade decide dessecuritizar uma questão, pois isso
seria mais eficaz do que securitizá-la. Finalmente, Hansen invoca a reflexão de Waever
sobre “détente” e como este conceito forma a base para a dessecuritização (Lene, 2012).
Com base na investigação acima referida, o presente artigo postula que a esfera pública
é um conceito útil para explicar como Andrés Manuel López Obrador (AMLO)
dessecuritizou a resposta governamental às DTOs, o que pode ser enquadrado como um
processo de negociação através do qual o seu governo decidiu reduzir uma emergência
securitizada a um nível de assunto dessecuritizado.
Hansen descreve como uma mudança de foco de uma emergência ou ameaça para um
processo de negociação conduzido na esfera pública sugere uma mudança do assunto
securitizado (a questão está relacionada com uma esfera de política pública que requer
a alocação de recursos ou alguma outra forma de governança comunitária) para os
politizados (o Estado não trata da questão, que deixa de ser objeto de debate e decisão
pública).
Boswell sugere um fluxo de ideias que ligam o discurso público e a prática política,
enquanto a Escola de Copenhague vê a esfera política como um espaço dinâmico no qual
os atores procuram justificar as suas políticas e desestabilizar as dos seus oponentes
(Boswell, 2007).
A campanha presidencial e as promessas de AMLO
Tal como referido acima, desde o início do governo de Felipe Calderón, em 2006, aao
final do governo de Peña Nieto, em 2018, a principal política de segurança implementada
no México foi a de confronto às DTOs. O objetivo inicial era reduzir a violência a nível
nacional e impedir que as DTOs trouxessem os seus produtos para a América do Norte,
para o qual o governo dos EUA forneceu equipamentos militares ao México e treinou os
seus militares (Astorga, 2015). Embora esse apoio financeiro dos EUA fosse conhecido
no xico como Iniciativa Mérida (MI), era amplamente entendido no Congresso dos EUA
como simplesmente uma parcela de ajuda internacional a ser aprovada ano após ano no
orçamento.
No México, essa política de segurança resultou em violência e mortes contínuas, tanto às
mãos das DTOs como do Estado (que respondia militarmente), o que foi exacerbado pela
corrupção endémica e um sistema de justiça falhado que não conseguiu processar os
criminosos. Portanto, os objetivos do MI mudaram de forma a promover reformas
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governamentais e institucionais no xico, incluindo o sistema judicial, e fortalecer o
estado de direito (Cook, Rush, Ribando, 2008: 1-6).
Embora essa assistência financeira tenha começado no último ano do governo de George
W. Bush, foi continuada por seu sucessor, Barack Obama, que estipulou que o México
precisava de tomar mais medidas para combater a violência, conter o crescimento das
DTOs e também a corrupção nas instituições governamentais. No entanto, esses critérios
não foram atendidos, com a violência a aumentar ano após ano e as DTOs competindo
por quota de mercado (Camhaji e García, 2019 e Infobae, 2019).
Durante o período discutido acima, AMLO foi uma figura política de destaque, tendo
disputado duas vezes a presidência mexicana e perdido duas vezes devido ao que ele
descreveu como corrupção dentro do sistema eleitoral, e caracterizada pela comunicação
social como uma ameaça à segurança nacional. Na sua terceira corrida presidencial,
AMLO fez campanha contra um grande opositor - a política de segurança falhada das
duas últimas administrações, representando dois partidos políticos diferentes, o Partido
Acción Nacional (PAN ou Partido da Ação Nacional) e o Partido Revolucionario
Institucional (PRI ou Partido Institucional Revolucionário).
Imagem 2 - Gráfico de homicídios por ano no México
Fonte: Instituto Nacional de Geografia e Estatística (INEGI) (2020).
https://www.inegi.org.mx/sistemas/olap/proyectos/bd/continuas/mortalidad/defuncioneshom.as
p?s=est
Durante a sua campanha, AMLO definiu como iria lidar com a violência e o narcotráfico
a partir de uma perspetiva alternativa, ou seja, lidando com o assunto como um problema
social, resolvendo as causas que atraem as pessoas para o narcotráfico e identificando
8867
14 006
19 803
25 757
27,213
25 967
23 063
20 010
20 762
24 559
32 079
36,685 36 661
36 773
16972
0
5 000
10 000
15 000
20 000
25 000
30 000
35 000
40 000
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
Homicídios por ano no México 2007- 2020
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alternativas económicas e sociais para as mesmas. Propôs a retirada dos militares das
ruas, não apenas porque nunca deveriam ter sido usados em atividades de segurança
pública, mas também porque as suas constantes violações dos direitos humanos
aumentaram os níveis de violência. Por fim, propôs uma amnistia para os envolvidos no
negócio do narcotráfico, particularmente os pobres (López, 2018: 105; Oré & Díaz,
2018).
Ao relacionar o narcotráfico e a violência no México com problemas sociais e económicos,
em vez de encarar o assunto como uma ameaça à estabilidade do Estado e do governo,
AMLO dava sinais de uma mudança de perspetiva em relação à dos dois últimos
governos. Argumentou que a violência usada pelo Estado para recuperar o controlo das
rotas de contrabando de drogas no território norte-americano era inaceitável, e propôs
uma abordagem com “abrazos, no balazos” (abraços, não ferimentos de bala).
Uma vez eleito, a posição política de AMLO foi promulgada no Plano Nacional de Paz e
Segurança 2018-2024, que afirma que “…a violência e a insegurança envolvem a
confluência de um grande número de fatores, a começar pelos de natureza económica e
social, como a falta de emprego de qualidade, as insuficiências do sistema educativo e o
colapso institucional...” (Gobierno de México, S/F: 2). O plano associava os objetivos de
alcançar a paz e a segurança a dois fatores principais: a corrupção institucional que
incentivava o narcotráfico; e a necessidade de que tanto o bem-estar da população como
a justiça social sejam reforçados pela lei.
As bolsas de AMLO e violência
Andrés Manuel López Obrador venceu as eleições presidenciais em 2018 com 53,19% do
total de votos, tornando-se o primeiro candidato presidencial a receber esse nível de
apoio em muitos círculos eleitorais, o que lhe conferiu um mandato claro para si e para
a sua plataforma política. Apesar desse mandato, os críticos apontaram que as
expectativas populares que esse fato tinha suscitado não corresponderiam aos resultados
alcançados durante o seu mandato (Rojas, 2018: 1-4).
A seção sobre segurança do Plano Nacional de Desenvolvimento 2018-2024 afirma que
a nova visão para a segurança no país, dadas as deficiências em termos de emprego e
educação entre os jovens, iria “... remover a base social da criminalidade através da
incorporação massiva de jovens na educação e no trabalho…” (Presidencia de la
República, 2019 (a): 11). O objetivo dessa visão era acabar com a guerra às drogas no
país.
Como parte das promessas feitas durante a campanha, AMLO começou por anunciar os
programas sociais para estudantes e jovens com o argumento que essa política seria a
melhor para obter o apoio popular inicial. Em fevereiro de 2019, meses depois de
empossado, anunciou, numa cerimónia na Plaza de las Tres Culturas (Praça das Três
Culturas), em Tlatelolco, Cidade do México, o primeiro programa de bolsas, Jovens a
Escrever o Futuro, destacando que:
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“…no nosso país existem 16 milhões de jovens que vivem na pobreza,
imaginem se um criminoso se oferecer para empregá-los como “falcões”,
como são conhecidos coloquialmente, que informam [os seus empregadores]
quem está a entrar e a sair das comunidades... (Presidencia de la República,
2019 (b): 27).
Conforme referido acima, a nova estratégia era combater o narcotráfico socialmente e
não militarmente, que tinha sido a abordagem seguida na década anterior. Do ponto de
vista de AMLO, como a raiz do problema era a possibilidade de os adolescentes serem
recrutados pelas DTOs e arrastados para atividades criminosas, se tivessem emprego e
educação, rejeitariam os avanços das DTOs, pois teriam outra maneira de ganhar a vida.
Sem estudos prévios ou análises que indicassem quantos adolescentes beneficiariam
desses s programas sociais, como seriam implementados, o orçamento que lhes seria
destinado ou, ainda, quais seriam seus resultados, foi uma decisão política tomada pelo
o presidente sem considerar se o orçamento federal poderia cobrir o programa.
Foram criadas quatro bolsas para jovens: Benito Juárez; Jovens a Escrever o Futuro;
Jovens a Construir o Futuro; e Assistência Social às Famílias no Ensino Básico. Os
pagamentos das bolsas variam de $800 a $ 3.748 pesos (US$ 40 a US$ 187) por mês, o
que equivale a um orçamento federal combinado de mais de vinte mil milhões de pesos,
o que os críticos apontaram ser insuficiente, dada a ausência de qualquer estudo prévio
sobre esta política (Becas y Convocatorias, 2020).
Foi nesse momento que a medida passou a ser questionada: vai acabar com o
narcotráfico e a violência no país? Por que motivo o presidente associou a violência ao
apoio financeiro aos jovens no país? Essas bolsas vão resolver o problema principal, ou
seja, a existência das DTOs no país? Essas questões foram suscitadas pela constatação
que, como o narcotráfico no xico é sustentado pelo mercado ilegal de drogas dos EUA,
não depende de os jovens mexicanos estarem empregados ou do seu nível de
rendimentos.
O objetivo das DTOs no México era obter o controlo do mercado de drogas ilegais dos
EUA e das rotas de tráfico, bem como outras atividades criminosas, como o sequestro e
tráfico de pessoas. Muitos referiram que a falta de oportunidades de trabalho e educação
entre os jovens não foi a causa da atividade das DTOs, seja contemporânea ou
historicamente.
O narcotráfico no México começou como parte da relação bilateral entre o xico e os
Estados Unidos, com o primeiro representando a oferta e o segundo a procura. Muito
influenciadas pelas colombianas, as DTOs mexicanas foram criadas com o objetivo de
lucrar com o narcotráfico e a atividade criminosa organizada e não porque os que nelas
trabalhavam não tinham instrução ou estavam desempregados. De fato, existem muitos
relatos anedóticos de como políticos, polícias ou outros profissionais instruídos estiveram
envolvidos na atividade das DTOs.
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As medidas de AMLO, portanto, representam a primeira vez que um político mexicano
viu que a sua melhor hipótese de assumir o poder era oferecer apoio financeiro aos
jovens sem restrição quanto ao que poderiam gastar, que esses programas sociais não
requerem comprovativo das despesas.
Imagem 3 - Homicídios intencionais durante a administração de AMLO
*Total de homicídios intencionais: 2018 - 36.685; 2019 - 36.661; e, até agosto de 2020 - 23.471.
Fonte: A. López, 18 de setembro de 2020, em “Robos y secuestros tienen histórica tendencia a la
baja. Conferencia presidente AMLO”. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=1gZjtxV0LqY
Essa posição também corresponde à dessecuritização da luta contra o narcotráfico, como
descreve Helsen, dada a forma como a política de AMLO representou uma mudança de
uma emergência para uma questão politizada, uma decisão política tomada por ele e não
pelo público ou a elite política envolvida num debate público em torno das questões
relevantes.
As bolsas implementadas pela administração AMLO não se correlacionam diretamente
com a diminuição da violência no México. Como podemos ver nas imagens 2 e 3, desde
que assumiu a presidência, a violência no México começou a diminuir em 2020 no
contexto da pandemia de SARS-COV2. O nível sustentado de violência observado de
dezembro de 2018 a agosto de 2020 não suporta a relação direta proposta por AMLO
entre violência e pobreza, educação e bolsas de estudo.
A administração AMLO tem sido, até agora, mais violenta do que as duas anteriores,
apesar dos protestos em contrário do seu secretário de Segurança. O pico mais alto nos
níveis de violência durante os governos de Calderón e Peña Nieto foram os 27.213 mil
homicídios intencionais registados em 2011. Os homicídios intencionais registados foram
36.685 em 2018, quando AMLO tomou posse, e não diminuíram aà redução observada
em 2020 relacionada com a pandemia de SARS-COV2. No ano e meio desde a introdução
2892
2865
2817
2866
2745
3004
2907
2972
2845
2953
2883
2931
2885
2991
2772
3035
2933
2924
2856
2987
2973
2 600
2 650
2 700
2 750
2 800
2 850
2 900
2 950
3 000
3 050
3 100
dez/18
jan/19
fev/19
mar/19
abr/19
mai/19
jun/19
jul/19
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set/19
out/19
nov/19
dez/19
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Homicídios intencionais durante a administração de AMLO
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das bolsas, os homicídios intencionais não diminuíram e o narcotráfico continua
inabalável (Imagem 3).
A criação da Guarda Nacional
Durante a sua candidatura, AMLO insistiu na falta de coordenação entre as instituições
de segurança pública, num ambiente institucional congestionado que interferiu no
combate ao crime organizado e nos esforços para reduzir a violência. Para resolver essa
falta de estratégia interinstitucional, propôs o seguinte:
“…integrar as corporações da Polícia, Marinha e Exército, numa Guarda
Nacional. Neste momento, é um desastre porque cada corporação faz o que
considera adequado, de um lado a Marinha, do outro o Exército, de outro a
Polícia; não vai continuar a ser assim…” (Hernández & Romero, 2019: 87-
106)
A sua solução foi unificar as ações de segurança e fiscalização contra organizações
criminosas, criando uma única força militar sob o comando e direção únicos do
presidente, que se tornaria a Guarda Nacional (DOF, 2019). Assim, AMLO propôs, no
capítulo Sociedade Segura e Estado de Direito do seu manifesto eleitoral Proyecto Nación
2018-2024 (Projeto para a Nação 2018-2024), uma série de medidas para acabar com a
violência que assolou o país nos doze anos anteriores. Os pontos mais importantes foram:
a criação da Guarda Nacional para substituir os militares, que gradualmente se retirariam
de certas regiões de alto risco sob a justificação de que não deveriam exercer funções
de segurança pública; a alocação de mais recursos para formação da polícia; a criação
do Colégio Nacional de Segurança Pública com o objetivo de formar corpos de segurança
especializados, que constituíssem uma opção de carreira atrativa para os adolescentes
que não trabalham nem estudam. Para combater a violência e a insegurança, AMLO
estabeleceu uma abordagem diferente da dos governos anteriores, tanto em termos
operacionais quanto institucionais, propondo três mudanças importantes: desobrigar o
Secretário do Interior das suas funções de segurança; a criação da Secretaria de
Segurança e Proteção ao Cidadão; e a criação da Guarda Nacional (Secretaría de
Seguridad y Protección Ciudadana, 2019).
No lançamento dessa proposta, o futuro secretário de Segurança Pública, Alfonso Durazo,
delineou as prioridades para um possível governo de Obrador: A primeira é fechar o
ciclo da guerra. A segunda, conseguir uma diminuição significativa da violência criminal
em 180 dias. Número três: recuperar a confiança da sociedade nas forças de segurança.
Quatro: fortalecer a estratégia em três anos e, finalmente, entregar um país em paz e
com tranquilidade em 2024”. (Expansión Política, 2018: 4). Os prazos estabelecidos por
Durazo não pareciam realistas e foi criticado porque a violência não diminuiu como
resultado da 'guerra' de Felipe Calderón às DTOs e, embora tenha havido uma ligeira
diminuição da criminalidade quando Enrique Peña Nieto assumiu o poder, a violência
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atingiu o pico no final de seu governo, superando até os níveis do governo Calderón
(Figura 2/García, 2019: 4).
Logo após a vitória de AMLO, Alfonso Durazo, que estava a concorrer ao cargo de
Secretário de Segurança blica, anunciou que a Guarda Nacional o seria afinal criada.
Essa mudança de prioridades significou que o combate ao crime organizado se
concentraria na lavagem de dinheiro. Para Durazo, essa seria a melhor abordagem para
enfrentar as organizações criminosas no país e poderia ser conduzida com um custo
menor (Ramírez, 2018: 3-4).
A posição de Durazo foi ao encontro da promessa de “abraços, não ferimentos de bala”
feita durante a campanha (Otro País, 2019: 3-8). Note-se também que, durante a
campanha eleitoral, a relação entre AMLO e os militares havia sido tensa perante as suas
declarações sobre uma possível amnistia para os envolvidos em atividades criminosas
organizadas e a retirada dos militares das ruas, e as suas declarações destacando as
violações de direitos humanos cometidas pelos militares em território mexicano (Zavala,
2019).
A Guarda Nacional foi proposta como um dos instrumentos indispensáveis que
permitiriam ao governo federal garantir a segurança, investigar e prender qualquer
pessoa que colocasse em risco a segurança dos cidadãos mexicanos. Previa-se que a
Guarda Nacional não estaria totalmente operacional até 2021, com reformas na
Constituição sendo também necessárias, uma vez que nenhuma das forças armadas do
México poderia ser responsável pela segurança pública. A medida também a exigia a
dissolução da Polícia Federal (Gobierno de México, 2019: 1, 4).
Uma vez aprovadas as reformas constitucionais exigidas nos congressos dos estados
regionais do país, a Guarda Nacional foi oficialmente instituída por meio de anúncio, em
março de 2019, no Diário Oficial da Federação. Os artigos 10º, 16º, 21º, 31º, 35º, 36º,
73º, 76º, 78º e 89º da Constituição foram modificados para este efeito, ao mesmo tempo
que foi promulgada a Lei da Guarda Nacional (Cámara de Diputados del H. Congreso de
la Unión, 2019: 6). Essas reformas foram criticadas por representarem a legalização da
intervenção das forças armadas em questões de segurança pública, embora, de fato,
fosse uma continuação das medidas implementadas por Calderón e Peña Nieto
A captura fracassada de Ovidio Guzman
Uma das principais estratégias de comunicação social utilizada durante as administrações
de Calderón e Peña Nieto foi gerar publicidade por meio da prisão de criminosos e do
assassinato de chefes das DTOs. Numa tentativa de fomentar o apoio do público em
geral, o objetivo era mostrar que as instituições de segurança pública estavam a
trabalhar arduamente para combater as DTOs em todo o país. O propósito desses eventos
mediáticos era o mesmo, independentemente da DTO envolvida, levando as pessoas a
pensar que eram puramente performativos e conduzidos para fins publicitários.
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Os criminosos perceberam que a política do recém-eleito presidente AMLO era diferente
da das administrações anteriores, o que causou um grande constrangimento para o
governo durante a tentativa de capturar Ovidio Guzmán, filho de Chapo Guzmán (ex-
der do cartel de Sinaloa no México), em 17 de outubro de 2019. As claras contradições
entre todas as instituições de segurança envolvidas, evidenciadas nas suas declarações
públicas, evidenciaram uma gritante ausência de coordenação para uma operação de
suma importância para a nova administração AMLO.
Embora o secretário de Segurança Pública devesse pelo menos ter conhecimento dessa
operação ultrassecreta, que seria realizada conjuntamente pela Guarda Nacional e pela
SEDENA, os seus comentários públicos revelaram o contrário. Afirmou que a operação
“fora circunstancial” (Camarillo, 2019: 3) e que “Ovidio nunca foi preso”, dizendo que
nenhum acordo fora feito com a organização de Sinaloa para garantir a libertação de
Ovidio Guzmán e, finalmente, admitiu que houve falhas na execução da captura, sem
indicar o motivo (Guerrero, 2019: 2).
Em 21 de outubro, AMLO anunciou que a SEDENA e a Guarda Nacional iriam recapturar
Ovídio, mas desta vez não recorrendo a meios militares, porque isso colocaria em risco
o público em geral, algo que o seu governo não faria. Declarou quefui informado sobre
esta ação porque há uma recomendação geral. Acho que a SEDENA sabia disso”
(Alvarado, 2019: 13-18).
As declarações de todas as Secretarias envolvidas sublinharam essa falta de
coordenação, contrariando o repetido objetivo político de maior coordenação de AMLO.
Além das suas declarações, descritas acima, Durazo disse mais tarde que os militares
realizaram a operação com base numa ordem de extradição dos EUA. Dado que a
descrição de AMLO parecia mudar a cada nova declaração e que não conseguia explicar
o que era claramente uma operação de segurança liderada pela SEDENA, a conclusão foi
que o presidente não tinha sido informado sobre a operação nem tinha nenhuma ideia
real do motivo pelo qual os militares estavam envolvidos (Alvarado, 2019).
Numa indicação do que pode ser descrito como a dessecuritização da luta contra as DTOs,
dado o ter-se evitado o confronto violento direto com uma organização específica neste
caso, AMLO dava sinais que dava prioridade à da vida civil em detrimento da “guerra”
contra as DTOs. A verdadeira questão relacionada com essa política de dessecuritização
é que, embora AMLO, como seus antecessores, pareça não querer que a violência
criminosa seja perpetrada na sociedade pelas DTOs, claramente prefere que esse tipo de
operação falhe se puder resultar em baixas civis.
Ao libertar um chefe de uma DTO, como Ovidio Guzmán, em plena vista da sociedade,
AMLO mostrou o seu compromisso para com a sua promessa de não provocar essas
organizações, apesar de serem alvos de alto valor para a extradição dos EUA, e reiterou
a sua preferência pela paz sobre a violência. Esse episódio evidenciou a política de AMLO
de dessecuritizar o combate às DTOs. Embora tenha sido criticado por essa decisão
política, foi coerente com a sua promessa de não usar a violência no combate às DTOs,
como tinha sido usada no passado. Considerando que a política de dessecuritização de
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AMLO está a tornar o confronto entre as DTOs e o Estado menos evidente do que no
passado, podemos dizer que foi um sucesso; no entanto, podemos dizer que as
estatísticas de violência no país mostram o contrário (Imagens 1 e 2).
A abordagem seguida pela administração AMLO para dessecuritizar a luta contra as DTOs,
que envolveu aa libertação pública de um grande narcotraficante após a sua captura
pelas próprias forças armadas de AMLO, não alcançará os resultados que ele espera.
A pandemia SARS-COV2 e o exército mexicano
A SARS-COV2a começou a espalhar-se no México em março de 2020, com 2.000 mortes
e 20.000 casos reportados a21 de abril (Hernández, 2020). A Guarda Nacional foi
acionada para auxiliar na implementação de medidas de segurança pública, como
incentivar o distanciamento social e o uso de máscaras e supervisionar a segurança das
instituições de saúde pública (Rodríguez, 2020). O exército e a marinha mexicanos foram
envolvidos porque eram muito mais organizados e experientes devido ao Plan de Auxilio
a la Población Civil en Casos de Desastre (Plano DN-III-E ou Plano de Ajuda Civil e Alívio
a Desastres) das forças armadas. No entanto, este plano foi estabelecido em 1965 para
prestar socorro durante desastres naturais, tais como enchentes, terramotos e incêndios,
e não incluiu a Guarda Nacional, que só foi criada em 2019 (Nájar, 2020).
A decisão de envolver os militares foi anunciada por decreto presidencial, em 26 de março
de 2020, no qual AMLO definiu as atividades que seriam realizadas pelas Forças Armadas
de apoio ao trabalho da Guarda Nacional para impedir a propagação do rus. A 4 de
maio de 2020, afirmou que, como o Exército e a Marinha tinham experiência e pessoal
adequados para essa tarefa, iriam administrar tanto o Plano DN-III-E como o próprio
plano de contingência da Marinha.
A Guarda Nacional foi responsável pelo repatriamento de cidadãos mexicanos no
estrangeiro, com os voos privados coordenados pela Secretaria de Relações Exteriores,
e também foi incumbida do seguinte: adaptação das instalações militares para o
tratamento de civis; produção de material médico; contratação de pessoal especializado
em saúde; aquisição de ventiladores no estrangeiro; encerramento de praias, lojas e
locais públicos; monitorização e prevenção de possíveis focos de saques; aplicação de
pontos de controlo sanitário em locais públicos; monitorização e encerramento do
transporte público; encerramento de festas; imposição de toques de recolher (embora
esta última atividade sido censurada pelo Secretário do Interior). Agindo em apoio a
essas iniciativas, as Forças Armadas foram criticadas por ações que tomaram ao manter
as pessoas fora das ruas, incentivar o uso de máscaras, fechar negócios e, até mesmo,
fechar locais públicos, como ocorreu no estado de Guerrero, quando as praias foram
encerradas com recurso à força pública (Rodríguez, 2020).
Durazo, secretário de Segurança Pública e Proteção ao Cidadão, afirmou que, na
execução das atividades de segurança pública, as Forças Armadas estavam subordinadas
à Guarda Nacional, ressaltando que essa ação não representava uma militarização da
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segurança pública no país, como alegado. Além disso, divulgou o número de militares
envolvidos nessas ações: SEDENA 27.364; SEMAR 12.508; Guarda Nacional
10.470; e Serviço de Proteção Federal 637. As suas funções, segundo Durazo, eram
vigiar armazéns, proteger empresas e hospitais, ajudar no transporte de produtos
médicos e distribuir alimentos em pontos inacessíveis do país (García, 2020).
Durazo queria assegurar ao público que as forças armadas não estavam a tomar o país
ou representavam uma ameaça e que suas responsabilidades e deveres eram claros e
seriam evidenciados pelas suas ações. Ele deixou claro que, tanto pela lei quanto pelas
ações adotadas, as Forças Armadas não estavam a prejudicar ou mesmo a ameaçar a
presidência. Citou igualmente o artigo provisório sobre a utilização das Forças
Armadas em apoio à Guarda Nacional: “... enquanto se desenvolve a estrutura, as
capacidades e a competência territorial da Guarda Nacional, o Presidente da República
pode utilizar as Forças Armadas permanentes em matéria de segurança pública de forma
extraordinária, regulamentada, fiscalizada, subordinada e complementar” (DOF (b),
2019).
No final de 2020, em 23 de dezembro, as vacinas SARS-COV2a começaram a chegar ao
México e as forças armadas receberam a tarefa de garantir a sua segurança, distribuição,
armazenamento, transporte e administração à população. A vacinação era considerada
vital para o interesse nacional, uma vez que era vista como a única medida prática eficaz
para impedir a propagação da doença. Nos seus discursos, AMLO rejeitou as críticas de
que as forças armadas estavam a ser mobilizadas nesse contexto como parte de um
esforço para militarizar o México, porque considera que o seu governo estava a usar os
militares para garantir a segurança pública (Storr, 2020).
A política de dessecuritização da administração AMLO representa uma tentativa de seguir
uma trajetória política diferente, na qual as forças armadas foram retiradas das
operações de segurança contra as DTOs. No entanto, ao mesmo tempo, a Guarda
Nacional ainda não está preparada para assumir a responsabilidade de conduzir essas
operações.
Conclusões
O presente artigo procurou examinar o processo de dessecuritização no México, realizado
pela administração AMLO com o objetivo de acabar com a “‘guerra’ contra o narcotráfico”.
A política de dessecuritização resulta da visão de AMLO de que a violência das DTOs é
um problema social e não uma ameaça ao Estado e à sociedade, sendo a pobreza e os
problemas sociais decorrentes da desigualdade económica as principais causas da
violência no México.
Nessa perspetiva, AMLO propôs os programas de bolsas para adolescentes como primeiro
passo no processo de dessecuritização. No entanto, não foi encontrada relação direta
entre violência e injustiça social e, além disso, como programa social, as bolsas não têm
um objetivo declarado, não são sujeitas a rastreio demográfico, e os seus resultados o
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são publicados. o como medir a relação entre essas bolsas e o nível de violência ou
como o governo AMLO alcançará os resultados que prometeu. Como a concessão das
bolsas não depende do compromisso do beneficiário em gastar o dinheiro para uma
finalidade específica, como estudos adicionais, não evidência de que os bolseiros
adolescentes não estejam a ser recrutados para as DTOs.
O segundo passo no processo de dessecuritização seguido por AMLO na sua política
pública foi a criação da Guarda Nacional para conduzir a função de segurança pública
anteriormente desempenhada pelas forças armadas mexicanas (SEDENA e SEMAR) em
administrações anteriores e que resultou em grandes violações de direitos humanos. No
entanto, a maioria do pessoal da Guarda Nacional foi recrutado tanto na SEDENA como
na SEMAR, o que significa que, na prática, não é uma força civil, mas uma força
militarizada, apesar da intenção original de criar uma força civil.
O verdadeiro teste para o processo de dessecuritização foi a libertação de Ovidio Guzmán.
O Cartel de Sinaloa é um das principais DTOs do México - uma ameaça transnacional e
internacional. A decisão tomada por AMLO durante a crise desencadeada pela prisão de
Ovídio foi para mostrar que ele não iria arriscar a segurança da população em geral. A
sua política de dessecuritização levou-o a optar por libertar Ovidio em vez de iniciar uma
guerra aberta contra o Cartel de Sinaloa, uma decisão que será interpretada pelas DTOs
como um sinal de que o Estado representa uma ameaça menor para as mesmas.
O presente documento procurou estabelecer se a política de dessecuritização de AMLO
reduzirá o crime, a violência e a ameaça ao Estado em contraste com a política de
securitização das administrações anteriores. Concluímos que, em vez de reduzir a
violência no México, as políticas públicas não reduziram significativamente a violência no
país, com os dados de homicídio indicando o oposto, o apenas quando comparamos
os dois anos do governo AMLO com seus objetivos declarados, mas também em
comparação com os duas administrações anteriores, durante as quais as taxas de
homicídio foram altas e aumentaram.
O ex-presidente Calderón foi criticado por declarar uma “guerra contra o narcotráfico”,
enquanto Peña Nieto viu um aumento dos níveis de violência em todo o México durante
a sua presidência. O atual presidente está inclinado a tomar a direção oposta, tendo
declarado o “fim da guerra”, embora os resultados alcançados não evidenciem uma
redução da violência no México. Ao mesmo tempo que promete que a violência diminuirá
como resultado da sua política de dessecuritização, as estatísticas mostram o contrário.
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DIREITOS DA NATUREZA COMO UM ENQUADRAMENTO POTENCIAL PARA A
TRANSFORMAÇÃO DAS COMUNIDADES POLÍTICAS MODERNAS
CARLOTA HOUART
carlotahouart@gmail.com
Licenciada em Relações Internacionais e mestre em Relações Internacionais Estudos da Paz,
Segurança e Desenvolvimento pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi
investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra entre 2018 e 2021
e, atualmente, está a fazer o seu doutoramento como investigadora na Universidade de
Wageningen (nos Países Baixos) no âmbito do projetoRIVERHOOD – Living Rivers and New
Water Justice Movements”, financiado pelo European Research Council (ERC grants). Os seus
interesses de investigação atuais incluem Ecologia Política Crítica; Direitos da Natureza e Justiça
Multiespécies; Teoria Crítica das Relações Internacionais e Pós-Antropocentrismo; e Sistemas de
Conhecimento e Ontologias Indígenas.
Resumo
Este artigo centra-se no contexto atual das crises climática e ambiental e na forma como estas
desafiam fundamentalmente as normas, conceções e práticas inerentemente antropocêntricas
da política internacional e das RI. Defendo que, para enfrentar o modo hegemónico e
antropocêntrico de relação com a natureza não-humana que conduziu a estas crises, é
necessário desenvolver quadros alternativos que possam levar a uma transformação gradual
das comunidades políticas modernas. Partindo da Teoria Crítica das RI, sugiro que as críticas
de Andrew Linklater e Robyn Eckersley a Vestefália e propostas para a sua transformão
possam ser úteis para compreender como o movimento emergente dos Direitos da Natureza
pode promover tal transformação. Analiso dois casos paradigmáticos do movimento dos
Direitos da Natureza - o caso do Rio Whanganui em Aotearoa Nova Zelândia, a nível local; e
a Constituição do Equador de 2008, a nível nacional - para refletir brevemente sobre os
entendimentos alternativos de conceitos como comunidade, subjetividade, agência, voz,
direitos, participação e representação que eles encorajam. Ao expandir estes conceitos de
modo a incluir o mundo mais-do-que-humano, estes quadros de RoN convidam a uma
transformação dos sistemas modernos de pensamento e prática, e - em certa medida -
constituem um potencial para a transformação das comunidades políticas modernas de modo
a permitir uma melhor resposta às crises climática e ambiental globais.
Palavras-chave
Relações Internacionais; Comunidade Política; Direitos da Natureza; Seres Não-Humanos;
Crise Climática
Como citar este artigo
Houart, Carlota (2022). Direitos da natureza como um enquadramento potencial para a
transformação das comunidades políticas. In Janus.net, e-journal of international relations.
Vol. 13, 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.9
Artigo recebido em 15 Junho 2021 e aceite para publicação em 5 Março 2022
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Direitos da Natureza como um enquadramento potencial para a transformação
das comunidades políticas modernas
Carlota Houart
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DIREITOS DA NATUREZA COMO UM ENQUADRAMENTO
POTENCIAL PARA A TRANSFORMAÇÃO DAS COMUNIDADES
POLÍTICAS MODERNAS
1
CARLOTA HOUART
Introdução
As crises climática e ambiental colocam desafios significativos à política internacional e
às Relações Internacionais (RI). O aquecimento global, a subida do nível do mar, os
fenómenos climáticos extremos, a destruição de ecossistemas e o sexto fenómeno de
extinção em massa tornam inegavelmente clara a inseparabilidade e interdependência
das sociedades humanas e da vida não-humana. Estes processos de mudança global
rápida desafiam diretamente o dualismo cartesiano que surgiu na Europa durante o
Século das Luzes (Merchant, 1980) e que a humanidade como separada e em controlo
da natureza - uma crença que tem sido central para as RI e o seu estudo da política
mundial desde o desenvolvimento do sistema de Estados moderno e da economia
mundial capitalista (Kavalski & Zolkos, 2016; Tickner, 1993). A falta de respostas
atempadas, concertadas e robustas a estas crises entrelaçadas e a todos os seus
impactos ecológicos, sociais, económicos e políticos é indissociável do antropocentrismo
omnipresente que o ser humano como ponto central de referência nos processos
mundiais; e do sistema económico dominante a ele associado, que concebe a natureza
não-humana como um objeto passivo para a exploração e consumo humanos sem fim
(Pereira & Saramago, 2020). O contexto atual exige, portanto, propostas pós-
antropocêntricas para a transformação deste modo hegemónico de relação com a
natureza não-humana que surgiu principalmente nas nações industrializadas do Norte
Global.
É importante notar que a transformação deste modo de relacionamento pode
inevitavelmente promover uma transformação gradual das comunidades políticas
modernas - ou do sistema vestefaliano de Estados-nação - que foram, desde o início,
fundamentalmente informadas por conceções antropocêntricas do mundo e dos seus
seres agênticos. De facto, as normas que definem Vestefália - por exemplo, soberania,
territorialidade, cidadania, nacionalidade - são todas intrinsecamente antropocêntricas,
dado que estabelecem as fronteiras ontológicas, morais, legais e políticas da comunidade
quase exclusivamente em torno dos seres humanos (Pereira, 2017). Apelos a alguma
forma de relações interespécies (Youatt, 2014); a uma nova compreensão de política
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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Direitos da Natureza como um enquadramento potencial para a transformação
das comunidades políticas modernas
Carlota Houart
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planetária em vez de política internacional (Burke et al., 2016); a quadros inclusivos,
interseccionais e cosmopolíticos para a justiça multiespécies (Celermajer et al., 2021); a
novos tipos de comunidade política (por exemplo, zoópolis) que incluam animais não-
humanos como co-cidadãos, habitantes ou soberanos (Donaldson & Kymlicka, 2014)
entre outros - têm surgido nas últimas duas cadas em resposta ao caráter exclusivo
da política mundial e das RI, e à sua incapacidade de responder adequadamente às
emergências climática e ambiental. De facto, como Joana Castro Pereira argumenta, "as
RI devem abandonar os fundamentos tradicionais em que se baseiam porque a atual
noção de 'internacional' exige não uma conceção holística, mas também novas
ontologias, epistemologias e metodologias" (Pereira, 2017: 5). Parte deste processo
incluiria necessariamente o reconhecimento dos múltiplos seres agênticos do mundo, o
que - acrescento - envolveria também a recuperação e/ou aprendizagem de antigas
ontologias, epistemologias e metodologias, tais como as que possuem e partilham os
povos indígenas.
Outra proposta com potencial para afetar e talvez reformular as comunidades políticas
modernas é a do movimento emergente dos Direitos da Natureza (RoN)
2
, geralmente
entendido como tendo sido avançado pela primeira vez nos anos 70 através do artigo de
Christopher Stone, "Será que as Árvores Devem Ter Estatuto? - Rumo aos Direitos Legais
dos Objetos Naturais" (Stone, 1972). Desde então, e principalmente durante os últimos
vinte anos, o movimento RoN tem vindo a evoluir dentro de diferentes quadros, culturas
e geografias, defendendo o reconhecimento dos direitos inerentes da natureza não-
humana, quer à natureza como um todo, quer a ecossistemas e espécies específicos.
Embora muitas pequenas transformações jurídicas e políticas localizadas tenham
começado a ser implementadas sob a égide do RoN nos últimos anos, algumas das suas
realizações mais paradigmáticas incluem a Constituição do Equador de 2008 (a primeira
no mundo a reconhecer o RoN); o projeto para uma Declaração Universal dos Direitos da
Mãe Terra escrito durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e
os Direitos da Mãe Terra em 2010 em Cochabamba, Bolívia; ou a Lei Te Awa Tupua em
Aotearoa Nova Zelândia de 2017 (a primeira no mundo a atribuir o estatuto de pessoa
jurídica a um rio).
Apesar de pertencer mais diretamente ao universo da lei, o movimento RoN tem
implicações profundas e potencialmente radicais para as sociedades humanas a múltiplos
níveis, incluindo o político. Como afirma Cormac Cullinan: "Embora a função reguladora
do direito seja fácil de ver, ignoramos frequentemente o facto de que o direito
desempenha um papel igualmente importante na constituição e formação da própria
sociedade" (Cullinan, 2011: 55). De facto, a lei molda e informa a sociedade definindo o
que devem ser as múltiplas relações entre indivíduos, grupos e a sociedade como um
todo, bem como entre diferentes sociedades (Cullinan, 2011). Estas relações legalmente
definidas determinam, por exemplo, a forma como uma sociedade é ordenada e como o
poder é exercido dentro dela (Cullinan, 2011). Como tal, "a lei é utilizada por uma
sociedade como um meio de se criar e definir de acordo com a sua visão do mundo"
(Cullinan, 2011: 57). Ao avançar a ideia de que a natureza não-humana tem direitos
inerentes a viver e prosperar, o movimento RoN rejeita o paradigma eurocêntrico
fundacional criado pelo dualismo cartesiano: a humanidade como profundamente
2
RoN = Rights of Nature.
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enraizada e interdependente com o mundo mais-do-que-humano; e desafia as conceções
dominantes de comunidade política, subjetividade, agência, voz, direitos, participação e
representação. Deve também ser entendido como uma tentativa de reunir alguns dos
instrumentos do sistema internacional contemporâneo (por exemplo, o direito moderno
ou internacional) com mundivisões ecocêntricas ou centradas na natureza que estejam
mais próximas das culturas e sistemas de conhecimento indígenas (Stewart-Harawira,
2012). De facto, pode argumentar-se que a ideia dos Direitos da Natureza o é de todo
nova, tendo sido partilhada entre culturas nativas durante milhares de anos através das
suas próprias relações com a terra e os seres não-humanos (Lake, 2017); razão pela
qual defendi que a evolução da compreensão das RI do mundo e dos seus seres agênticos
requer ontologias, epistemologias e metodologias novas e antigas. Para esclarecer,
então, quando me refiro ao movimento emergente RoN, refiro-me a estas novas
iniciativas, campanhas e evoluções na lei que procuram reconhecer direitos e/ou estatuto
de personalidade jurídica a seres não-humanos e ecossistemas.
A Teoria Crítica das RI é útil para compreender o potencial do movimento RoN para
empurrar gradualmente as comunidades políticas modernas numa direção pós-
antropocêntrica. Por conseguinte, na segunda secção deste artigo, vou analisar
brevemente as críticas de Andrew Linklater e Robyn Eckersley a Vestefália e as suas
propostas para a sua transformação. Na terceira secção, refletirei sobre como estas
podem ser aplicadas a dois casos do movimento RoN acima mencionados: o caso do rio
Whanganui em Aotearoa Nova Zelândia (representando RoN ao nível local); e a
Constituição do Equador de 2008 (representando RoN ao nível nacional). Recorrendo à
análise crítica de discursos, analisarei os documentos oficiais de cada caso (a Lei Te Awa
Tupua de 2017; e a Constituição do Equador) e verei como a sua linguagem e potencial
narrativo encorajam uma leitura alternativa de conceitos como comunidade;
subjetividade; agência; voz; direitos; participação; e representação. Na última secção
apresento algumas observações finais, nomeadamente que - ao alargar
significativamente estes conceitos de modo a incluir o mundo mais-do-que-humano - o
movimento emergente RoN encoraja de facto quadros diferentes para a potencial
transformação das comunidades políticas modernas para além da antropocêntrica
Vestefália.
Para além de Vestefália
O apelo de Linklater à transformação das comunidades políticas modernas está associado
à sua crítica ao sistema de Estados Vestefalianos enquanto sistema cuja premissa é a
inclusão dos considerados "insiders" ou "cidadãos" e a exclusão dos considerados
"outsiders" ou "alienígenas" - uma premissa derivada do processo de formação do Estado
e que faz parte do "projeto de totalização" do Estado-nação (Linklater, 1998: 6). O
sucesso dos Estados modernos sobre outras formas de organização política promoveu o
desenvolvimento de um discurso poderoso que combina os conceitos de soberania,
territorialidade, cidadania e nacionalidade, baseado na crença de que "idealmente, todos
os cidadãos devem subscrever uma identidade nacional transmitida por uma língua e
cultura comuns" (Linklater, 1998: 29). Desde o início, então, o sistema de Estados de
Vestefália foi um sistema que tentou apagar a diferença dentro e fora das suas fronteiras
nacionais; e para Linklater, o problema essencial das comunidades políticas modernas é
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precisamente a sua exclusão da diferença e da alteridade - tanto entre "cidadãos" e
"estrangeiros", como entre "cidadãos" e grupos subalternos dentro do Estado (Linklater,
1998).
No entanto, o Estado de Vestefália e o seu projeto de totalização não estão livres de
desafios. De acordo com Linklater, as comunidades políticas soberanas são desafiadas
em duas frentes por, por um lado, "reivindicações moralmente universalistas que exigem
a ampliação do papel das autoridades acima do Estado-nação"; e, por outro lado, pela
"política de reconhecimento" dos grupos indígenas e das nações minoritárias, que apelam
a "reduzir a influência que os Estados soberanos exercem sobre as comunidades locais e
as culturas subordinadas" (Linklater, 1998: 26-27). As tendências da globalização e da
fragmentação que evoluíram em oposição e em resposta uma à outra nas últimas
décadas, juntamente com as mudanças sociais e económicas que produziram, têm tido
sérios impactos na capacidade do Estado moderno para perpetuar o seu projeto de
totalização (Linklater, 1998). Com efeito, ao promover a homogeneização da sociedade
internacional, a globalização alimenta efetivamente as políticas de identidade e de
comunidade: onde não existe convergência entre fronteiras culturais e políticas (por
exemplo, no caso dos povos indígenas que vivem em Estados coloniais), tem havido
pressões crescentes para transformar "conceções tradicionais de comunidade e cidadania
que são hostis à criação de direitos específicos de um grupo" (Kymlicka, 1989 apud
Linklater, 1998: 32). As nações minoritárias, as comunidades migrantes e os povos
indígenas promovem assim a "política de reconhecimento", apoiando-se também na
"atividade política transnacional" tornada possível pela globalização, e procurando assim
"apoio global para o seu projeto de reconstrução das comunidades nacionais" (Linklater,
1998: 32). O crescente protagonismo da política de reconhecimento é, na opinião de
Linklater, um indicador central do movimento para além da era Vestefaliana (Linklater,
1998).
A proposta de Linklater para superar os défices sociais provocados pelo projeto de
totalização do Estado-nação Vestefaliano envolve o alargamento das fronteiras morais
da comunidade política, a fim de incluir "outros" anteriormente excluídos. Esta expansão
de fronteiras faz parte da tripla transformação da comunidade política prevista por
Linklater, que procura "assegurar um maior respeito pelas diferenças culturais,
compromissos mais fortes para a redução das desigualdades materiais, e avanços
significativos na universalidade" (Linklater, 1998: 3). Segundo ele, tal transformação
pode ser alcançada através do estabelecimento de relações dialógicas, ou da construção
de alguma forma de comunidade de comunicação universal, que envolva tanto "cidadãos"
(todos os cidadãos) como "estrangeiros" no diálogo sobre assuntos de interesse vital
para todos. De facto, o ideal diagico "prevê comunidades pós-nacionalistas sensíveis
às necessidades dos sistematicamente excluídos dentro e fora das fronteiras
tradicionais", tornando-o "um dos principais fundamentos éticos da era pós-Vestefaliana"
(Linklater, 1998: 51). Na opinião de Linklater, tornar o diálogo central para a vida social
significaria essencialmente ser "perturbado pelas formas como a sociedade discrimina
injustamente os forasteiros, prejudicando os seus interesses e negando-lhes
representação e voz" (Linklater, 1998: 7). Nestas comunidades, podem então
desenvolver-se novos laços sociais que podem "unir os cidadãos em torno do objetivo
comum de erradicar a exclusão injustificável e promover uma diversidade profunda"
(Linklater, 1998: 83).
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Ainda assim, por muito apelativa que seja a inclusão dos sujeitos cujas vozes,
necessidades e preocupações são tradicionalmente excluídas da tomada de decisões
políticas, a proposta de Linklater parece incapaz de se estender à natureza não-humana.
Isto deve-se em parte ao facto de a sua compreensão da validade normativa, que se
inspira na conceção que Habermas tem da ética do discurso, assentar na noção de
competência comunicativa; ou ao facto de as normas deverem ser consideradas lidas
na medida em que todos aqueles potencialmente afetados por elas participam no discurso
racional e podem (ou não) dar o seu consentimento a essas normas (Linklater, 1998;
Eckersley, 2004). Tal disposição, que aparentemente exclui instantaneamente os seres
não-humanos, é o resultado de um sistema antropocêntrico de teoria e prática que não
considera sequer a natureza não-humana como parte do quadro. Afinal, "forasteiros",
"alienígenas" e grupos subordinados/subalternos dentro do sistema de Estados de
Vestefália refere-se a grupos humanos tais como os pobres globais, refugiados, nões
minoritárias ou povos indígenas (Linklater, 1998). Na medida em que a natureza não-
humana se torna invisível na imagem do mundo dominante (Burke et al., 2016),
nenhuma transformação significativa das comunidades políticas modernas para abraçar
o mundo mais-do-que-humano pode ser alcançada dentro de Vestefália, ou desde que
adiram às suas normas e conceções hegemónicas.
Neste contexto, poder-se perguntar: quais são as implicações de pensar nestes
"alienígenas" ou "outros" para além da fronteira da espécie humana? Num planeta que
vive atualmente uma emergência clitica global, com níveis sem precedentes de
destruição de ecossistemas, extinção de espécies, e catástrofes que afetam tanto seres
humanos como não-humanos, não estaremos de facto a prejudicar os interesses de todos
ao negarmos a estes últimos representação e voz no decurso da tomada de decisões? O
que aconteceria se as pessoas ficassem perturbadas com a forma como as sociedades
humanas modernas tendem a rejeitar continuamente as necessidades e interesses da
natureza não-humana - algo que se pode dizer estar no centro das crises climática e
ambiental? Ver a natureza não-humana como parte do grupo dos sistematicamente
excluídos e conceber quadros para o diálogo com os seus múltiplos seres pode ser um
primeiro passo crucial para inverter a situação atual.
Eckersley faz isto através da sua proposta para uma democracia ecológica, ou alguma
forma de Estado verde pós-vestefaliano que se baseia no trabalho de Linklater, mas vai
mais além. A sua proposta politicamente desafiante para a transformação dos Estados
modernos estabelece que: "Todos aqueles potencialmente afetados por um risco devem
ter alguma oportunidade significativa de participar ou ser de outra forma representados
na elaboração das políticas ou decisões que geram o risco" (Eckersley, 2004: 111). Esta
formulação esestreitamente alinhada com a afirmação de Linklater de que o diálogo
promove o progresso moral, especialmente quando o entendemos como uma expansão
do círculo de sujeitos que têm direitos a participar no diálogo, e o compromisso de que
apenas as normas que têm (ou poderiam ter) o consentimento de todos aqueles
potencialmente afetados podem ser consideradas universalmente válidas (Linklater,
1998). Contudo, a formulação de Eckersley coloca-se fora da gaiola antropocêntrica,
sugerindo que a oportunidade de participação ou representação deve ser alargada a
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todos os potencialmente afetados, incluindo toda a natureza, os seres não-humanos e as
gerações futuras (Eckersley, 2004).
Para incluir seres não-humanos nas relações dialógicas que podem permitir o
desenvolvimento de sociedades mais inclusivas, justas e ecológicas, Eckersley
transforma a conceção de Habermas de validade normativa - a que afirma que as normas
devem ser consideradas válidas na medida em que todos os potencialmente afetados
participam no discurso racional (Eckersley, 2004). Ao substituir as palavras "na medida
em que" por "como se", Eckersley sugere que, embora muitos seres o-humanos
possam não poder dar o seu consentimento a normas propostas, agir como se fossem
pode ajudar a assegurar que as suas necessidades, interesses e bem-estar sejam
respeitados, independentemente da sua utilidade para os seres humanos (Eckersley,
2004). Esta perspetiva alternativa muito mais importância ao papel da representação
no processo democrático. De facto, Eckersley afirma que "a reivindicação representativa
em nome da natureza" é "em última análise um exercício de persuasão, preocupado em
expor práticas de exclusão e defender práticas de inclusão"; e pode, portanto, ser visto
"como um esforço para alargar ou radicalizar a democracia em vez de a restringir"
(Eckersley, 2011: 241).
Na formulação de Eckersley de uma democracia ecológica, o demos "já não é fixo em
termos de pessoas e território", proporcionando "um desafio às conceções tradicionais
de democracia que pressupuseram alguma forma de limite fixo, em termos de território
e/ou pessoas" (Eckersley, 2004: 113). Aqui podemos ver como a sua proposta pode
desafiar diretamente as normas centrais (antropocêntricas) de Vestefália de
territorialidade, soberania, cidadania ou nacionalidade, uma vez que a "comunidade
moral relevante" que deve ser considerada ao tomar decisões geradoras de risco não
está limitada nem ontológica, nem geográfica, nem temporalmente (Eckersley, 2004:
113). Em vez disso, deve ser entendida como aquela que está "ligada não por
passaportes comuns, nacionalidade, linha de sangue, etnia ou religião, mas pelo
potencial de se ser prejudicado pela proposta específica" (Eckersley, 2004: 113). As
fronteiras da comunidade política seriam assim "raramente determinadas ou fixas, mas
em vez disso têm mais o caráter de zonas espácio-temporais com bordos nebulosos e/ou
desbotados" (Eckersley, 2004: 113). Esta proposta poderia ser mais adequada para
responder a fenómenos planetários sem fronteiras, tais como as alterações climáticas,
em vez de uma imagem mundial dominante de Estados separados e autónomos que
podem responder à crise cada um ao seu próprio ritmo e vontade.
É claro que tal proposta acarreta muitos desafios significativos e complexos (em teoria e
na prática). Embora este não seja o lugar para refletir sobre eles, basta notar como a
formulação de Eckersley é desafiadora para as principais normas e princípios do sistema
de Estados de Vestefália, nomeadamente porque "não considera as fronteiras do Estado-
nação como necessariamente coincidentes com a comunidade de seres moralmente
consideráveis" (Eckersley, 2004: 114). Relativamente à questão de como incluir seres
não-humanos (e gerações futuras) nos processos dialógicos de tomada de decisão,
Eckersley propõe o conceito de tutelagem política, em que pessoas e grupos são
escolhidos para representar as necessidades e os interesses daqueles que podem não
ser capazes de falar por si. Isto assemelha-se muito à sugestão de Christopher Stone
para a designação de tutores (ou um sistema de tutela) que possam falar em nome dos
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ecossistemas a fim de defenderem os seus direitos legais (Stone, 1972). Os
representantes que assumam esta função de fiduciários devem incluir aqueles com
conhecimentos ou experiência em primeira mão da natureza não-humana, incluindo
povos indígenas, organizações ambientais, peritos científicos, etc. (Eckersley, 2004).
Naturalmente, podem surgir casos de incerteza, complexidade ou conflito que podem
tornar o processo de tomada de decisão mais difícil. Nestes casos, Eckersley afirma que
o Estado democrático verde não deve ser neutro. A justiça ambiental numa democracia
ecológica exige necessariamente "direitos e regras de decisão que favoreçam
positivamente os desfavorecidos (...) em detrimento de atores económicos com bons
recursos e estrategicamente orientados" (Eckersley, 2004: 135). Uma forma de o
conseguir seria através da criação de constituições democráticas verdes que pudessem
reconhecer, proteger e recompensar "interações sociais, económicas e políticas
ecologicamente responsáveis entre indivíduos, empresas e comunidades" (Eckersley
2004: 140). Com efeito, tal democracia encorajaria os Estados a assumir uma forma de
"Estado ecologicamente responsável" (Eckersley, 2004: 2). O desenvolvimento de uma
esfera pública verde diversificada e abrangente que possa inspirar práticas de democracia
transfronteiriça, trabalhando para objetivos comuns de justiça ecológica, climática e
social a nível global, é outro aspeto importante (Eckersley, 2004).
As propostas de Linklater e Eckersley para a transformação das comunidades políticas
modernas para além dos seus modos tradicionais de exclusão podem assim abrir o
caminho para a inclusão, representação e participação da natureza não-humana,
nomeadamente através do desenvolvimento de alguma forma de Estados verdes pós-
vestefalianos. Passarei agora ao movimento RoN e analisarei como este pode sugerir
uma potencial transformação de certas comunidades nesta direção.
O movimento dos Direitos da Natureza
O movimento RoN nasceu de uma perceção comum de que os sistemas de governação
existentes são por si incapazes de responder às atuais tendências de destruição dos
ecossistemas, perda de biodiversidade e alterações cliticas, dados os interesses
concorrentes de diferentes atores (por exemplo, indústrias; empresas; Estados) e as
regras fundamentais do sistema económico e político contemporâneo (Barcan, 2019).
Como tal, "o direito ambiental tornou-se um local fértil para experiências criativas", uma
das quais inclui o reconhecimento da subjetividade, agência e voz, e direitos
fundamentais da natureza o-humana (Barcan, 2019: 5). Como afirma Youatt, a
característica particular dos Direitos da Natureza parece ser que "eles nomeiam novos
sujeitos coletivos, legais e políticos que o na sua maioria não-humanos" (Youatt, 2017:
2). Isto pode constituir "a última ronda de uma expansão externa de direitos aos
anteriormente marginalizados, com base no reconhecimento de direitos ao longo dos
eixos de raça, classe, género e espécie" - recordando-nos a proposta de Linklater (Youatt,
2017: 2). Em tal cenário, através de iniciativas e movimentos como RoN, a natureza não-
humana pode adquirir cada vez mais subjetividade interventiva ou política na vida global.
Além disso, o movimento RoN tem sido frequentemente (embora não exclusivamente)
liderado por povos e comunidades indígenas, o que é corroborado pelo facto de alguns
dos seus sucessos mais conhecidos (por exemplo, a Constituição do Equador de 2008;
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as leis Te Urewera e Te Awa Tupua de Aotearoa Nova Zelândia) terem tido lugar em
países com populações indígenas e mobilização popular ativa para o reconhecimento das
vozes, reivindicações e direitos indígenas. Isto está ligado ao facto de que os modos de
relação não-ocidentais, indígenas, com a natureza não-humana têm sido, de um ponto
de vista histórico, radicalmente diferentes do modo de relação capitalista,
antropocêntrico, prevalecente no mundo ocidental. Na verdade, apesar da sua
diversidade de culturas, ontologias e epistemologias, os povos indígenas de todo o mundo
tendem a partilhar um conjunto central de princípios de relacionalidade,
interdependência, intercomunicação, respeito e harmonia com a Terra e todos os seres
(e.g. Heinämäki, 2009; Stewart-Harawira, 2012; Inoue, 2018). Uma diferença
significativa entre os entendimentos ocidental, hegemónico e indígena, contra-
hegemónico da natureza é aquela entre olhar para os ecossistemas (por exemplo,
florestas, montanhas, rios) como paisagens, recursos naturais ou sumidouros de carbono
- ou como "mundos em e de si mesmos" (Inoue, 2018: 28). Este último entendimento
está subjacente às ontologias indígenas que veem os seres humanos como cuidadores
da Terra, explicando porque - apesar de constituírem menos de 5% da população humana
mundial - os povos indígenas protegem e preservam cerca de 80% da biodiversidade
restante no planeta (IUCN, 2019). As culturas e sistemas de conhecimento indígenas
tenderam, portanto, a rejeitar noções antropocêntricas de comunidade, subjetividade,
agência, voz e direitos muito antes do nascimento do movimento RoN moderno. Veremos
agora como estes entendimentos alternativos de tais conceitos têm sido avançados
através deste movimento em duas escalas diferentes.
1. O caso do Rio Whanganui
Em 2017, a Lei Te Awa Tupua tornou-se o primeiro ato legislativo mundial a declarar um
rio como pessoa legal (Collins e Esterling, 2019). Resultou de um longo esforço do povo
Maori, desde 1873, para que o seu direito à propriedade do rio Whanganui fosse
restaurado um direito que foi retirado às tribos do Whanganui pelo Tratado de Waitangi,
através do qual a Coroa Britânica anexou o território de Aotearoa (Nova Zelândia) em
1840 (Rodgers, 2017; Collins & Esterling, 2019). A atribuição de personalidade jurídica
ao Whanganui representa o mais recente instrumento jurídico utilizado para a proteção
e gestão de rios; mas representa também um acordo político que reconhece tikanga
Maori (direito consuetudinário) e que o rio e os seus afluentes numa perspetiva ampla
e holística (O’Donnell & Macpherson, 2019).
Como demonstrado nas páginas 14 e 15 da Lei
3
, Te Awa Tupua é definido como "um todo
indivisível e vivo, compreendendo o rio Whanganui desde as montanhas a ao mar,
incorporando todos os seus elementos físicos e metafísicos” (Te Awa Tupua Act, 2017:
14). Tupua Te Kawa refere-se a todos os valores intrínsecos que representam a essência
de Te Awa Tupua, incluindo "Ko au te Awa, ko te Awa ko au": Eu sou o rio e o rio sou
eu", o que por sua vez significa que "os Iwi e os hapü do rio Whanganui têm uma ligação
e responsabilidade inalienáveis com Te Awa Tupua e com a sua saúde e bem-estar" (Te
Awa Tupua Act, 2017: 14-15). A Lei reflete uma ontologia Maori ao identificar Te Awa
3
A Lei Te Awa Tupua (Whanganui River Claims Settlements Act 2017) pode ser consultada aqui:
https://www.legislation.govt.nz/act/public/2017/0007/latest/whole.html.
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Tupua (todo o rio) como incluindo tanto o rio como as pessoas, as tribos Whanganui,
"como uma única unidade, não só como uma questão de reconhecimento, mas também
como uma questão de governação" (Youatt, 2017: 11). Esta conceção de comunidade
consequentemente os seres humanos como inseparáveis e interligados com o mundo
mais-do-que-humano (o rio e todos os outros seres que o habitam). Representa também
uma tentativa de desmantelar os sistemas de governação construídos pelas potências
coloniais ocidentais que utilizam a linguagem, o discurso e o direito para governar a
natureza humana e não-humana de acordo com os seus objetivos e visões do mundo
(Youatt, 2017).
Esta visão indígena do rio Whanganui como uma comunidade ampla está de acordo com
a proposta de Eckersley para uma democracia ecológica em que os limites do demoso
redesenhados para incluir um círculo moral maior; uma que desafia a norma tradicional
de soberania territorial do Estado-nação Vestefaliano como fundamentalmente
nacionalista e antropocêntrica (Eckersley, 2004). Neste caso, o rio Whanganui - embora
geograficamente localizado dentro das fronteiras do Estado de Aotearoa Nova Zendia -
pertence não ao Estado, mas a si próprio, o que inclui as tribos Maori e os seres não-
humanos que vivem em interdependência com o rio. Neste caso, propriedade seria
melhor entendida como tutela. Tal como foi observado por Rodgers, "os conceitos
tradicionais Maori de tutela refletem uma relação diferente (...) da que existe na maioria
dos sistemas jurídicos ocidentais" (Rodgers, 2017: 270). A diferença reside no conceito
Maori de kaitiakitanga, cuja principal premissa é "o entendimento de que as pessoas
vivem numa relação simbiótica com a terra e todos os organismos vivos e têm a
responsabilidade de melhorar e proteger os seus ecossistemas" (Rodgers, 2017: 270).
Um exemplo disto é claramente ilustrado pela frase "Eu sou o rio e o rio sou eu" (Te Awa
Tupua Act, 2017: 15).
As páginas seguintes da Lei mostram o que estabelece em termos do reconhecimento da
personalidade jurídica a Te Awa Tupua e o sistema definido de tutela. O rio Whanganui
é assim declarado como uma "pessoa legal e tem todos os direitos, poderes, deveres e
responsabilidades de uma pessoa legal" (Te Awa Tupua Act, 2017: 15). Te Pou Tupua
são os seus tutores nomeados, de acordo com o conceito de gestão fiduciária de
Eckersley, para assegurar que os interesses e necessidades da natureza não-humana
sejam representados e defendidos. Os tutores nomeados devem ser o "rosto humano de
Te Awa Tupua e agir em nome de Te Awa Tupua" (Te Awa Tupua Act, 2017: 17). Este
sistema de tutela consiste em nomear um membro das tribos do Whanganui e um
membro da Coroa para agir como administradores ou porta-vozes, e para defender os
valores intrínsecos (Tupua te Kawa) que representam a essência de todo o rio. Ao eleger
tanto um neozelandês indígena como um neozelandês não-indígena enquanto
representantes, a Lei pode ser entendida como uma tentativa de promover uma
convergência de fronteiras culturais e políticas, encorajando assim o que Linklater
defende como uma transformação da comunidade política que procura assegurar um
maior respeito pelas diferenças culturais e uma maior universalidade (Linklater, 1998).
Também alarga efetivamente o âmbito de representação na comunidade política que é o
Estado de Aotearoa Nova Zelândia, relativamente a este ecossistema local, ao incluir
ambos: 1) as comunidades humanas tradicionalmente marginalizadas (os Maoris); e 2)
a natureza não-humana (Te Awa Tupua). Em última análise, a conceção da relação da
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humanidade com a natureza não-humana que está subjacente a esta lei é radicalmente
diferente da que permeia as narrativas dominantes no sistema de Estados moderno. Ela:
a) reconhece a subjetividade jurídica e política a um rio; b) afirma que a comunidade
física e espiritual formada por Te Awa Tupua é constituída por seres humanos e não-
humanos, atravessando assim os limites territoriais e ontológicos do rio; c) estabelece
que Te Awa Tupua é o seu próprio soberano; d) e tenta assegurar que a voz do rio seja
ouvida, mesmo que através dos seus guardiães humanos nomeados. Assim,
independentemente dos potenciais desafios à sua implementação prática (que
provavelmente existirão, uma vez que marca um terreno tão novo na legislação e política
ocidental), promove claramente conceções contra-hegemónicas de comunidade,
subjetividade, agência, voz, direitos, participação e representação que o não
antropocêntricas e mais adequadas para responder ao atual contexto de destruição
ambiental que exacerba a crise climática. O potencial transformador da Lei é também
que, mesmo que a nível local, a inscrição deste ato legislativo nas instituições do Estado
cria de facto um precedente para um novo sistema de governação e empurra-o para uma
forma de Estado ecologicamente responsável (Eckersley, 2004).
2. Constituição do Equador de 2008
Passamos agora àquele que é talvez o exemplo mais famoso do movimento RoN a nível
nacional. Em 2008, o Equador tornou-se o primeiro país do mundo a consagrar
oficialmente Direitos da Natureza na sua Constituição, reconhecendo a natureza no seu
todo como uma entidade detentora de direitos. De facto, pode argumentar-se que esta
é a "constituição mais radical do mundo até agora " no que diz respeito a RoN (Lalander,
2016: 624). O capítulo 7, através dos artigos 71 a 74, descreve o conceito e as suas
implicações legais e políticas para o Estado
4
.
A Constituição afirma que "a Natureza, ou Pacha Mama, onde a vida é reproduzida e
ocorre, tem o direito ao respeito integral pela sua existência e pela manutenção e
regeneração dos seus ciclos de vida, estrutura, funções e processos evolutivos"
(Constituição do Equador, 2008). Aqui, então, a natureza é definida como um todo, não
reconhecendo qualquer separação entre os mundos humano e não-humano e salientando
a interdependência entre seres humanos e não-humanos. Através destas palavras, pode-
se ver o reconhecimento da subjetividade legal e política da natureza como uma entidade
viva universal com direitos e agência inerentes. A Constituição de 2008 pode assim ser
vista como um exemplo das "constituições democráticas verdes" de Eckersley (Eckersley,
2004: 140).
A inscrição de Direitos da Natureza na Constituição também pode ser vista como um
exemplo da afirmação de Linklater de que a transição para um sistema onde surgem
novas formas de comunidade política não implica necessariamente o desaparecimento
das estruturas estatais convencionais, mas sim o facto de que "os Estados devem assumir
uma série de responsabilidades que normalmente têm sido evitadas no passado"
(Linklater, 1998: 4). Uma delas, estabelecida no Artigo 72, é que o Estado deve
assegurar o direito da natureza à restauração (de danos ambientais graves ou
4
A Constituição do Equador de 2008 pode ser consultada aqui:
https://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Ecuador/english08.html
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permanentes) e estabelecer mecanismos adequados para "eliminar ou mitigar
consequências ambientais nocivas" (Constituição do Equador, 2008). Além disso, o Artigo
73 responsabiliza explicitamente o Estado pela aplicação de "medidas preventivas e
restritivas sobre atividades que possam levar à extinção de espécies, à destruição de
ecossistemas e à alteração permanente dos ciclos naturais" (Constituição do Equador
2008). Ao deixar claro que o Estado é responsável pela aplicação de RoN, a Constituição
procura inseri-la no novo papel de "cuidador ecológico" (Eckersley, 2004: 2).
Obviamente, se o Estado age ou não em conformidade é outra questão, mas a linguagem
e o potencial narrativo subjacentes ao Capítulo 7 descrevem este novo quadro para a
prática do Estado de uma forma que convida a uma reflexão crítica sobre os conceitos
de comunidade, subjetividade, agência, voz e direitos, numa perspetiva não
antropocêntrica. A Constituição define de facto um alargamento das fronteiras morais,
jurídicas e políticas do Equador para incluir atores o-humanos que se tornaram
repositórios de direitos que devem ser assegurados pelo Estado - e representa assim
uma potencial transformação pós-Vestefaliana (pós-antropocêntrica) desta comunidade
política específica.
Relativamente ao sistema selecionado de gestão fiduciária, o Artigo 71 estabelece que
"todas as pessoas, comunidades, povos e nões podem recorrer às autoridades públicas
para fazer valer os direitos da natureza" (Constituição do Equador, 2008). Isto significa
que, de certa forma, qualquer pessoa pode agir como guardiã ou fiduciária e falar em
nome da natureza não-humana para fazer ouvir as suas necessidades e interesses. Tal
disposição alarga também o potencial âmbito de representação da natureza não-humana,
nomeando não os atores individuais, mas também os coletivos (comunidades e
nações) que fazem parte de uma comunidade global bastante indeterminada. Além disso,
a Constituição não só tem esta dimensão mais representativa relativamente à natureza
não-humana, mas também relativamente aos povos indígenas, que fazem parte dos
grupos subalternos tradicionalmente excluídos ou "aliegenas" referidos por Linklater.
Isto é evidente no preâmbulo e corroborado pela observação de Youatt de que "a
ascensão de forças políticas indígenas no Equador (...) moldou claramente a linguagem
específica destes artigos, especialmente o uso de Pachamama e sumak kawsay(Youatt,
2017: 10). O preâmbulo refere-se a Pacha Mama, a palavra Kichwa geralmente traduzida
como Mãe Terra, e ao compromisso do povo soberano do Equador de "construir uma
nova forma de convivência pública, na diversidade e em harmonia com a natureza, para
alcançar o bem viver, o sumak kawsay" (Constituição do Equador, 2008). A inclusão de
um paradigma indígena como sumak kawsay ou buen vivir - que representa uma
alternativa ao conceito ocidental de desenvolvimento (económico) - pode assim
representar uma tentativa de convergência das fronteiras políticas e culturais, em
conformidade com a proposta de Linklater. A utilização de conceitos como Pacha Mama
e sumak kawsay (que mereceriam um artigo muito mais longo centrado apenas nos seus
significados e implicações) na Constituição infunde-a consequentemente numa visão do
mundo indígena baseada em noções de interdependência, inter-relação, harmonia e
respeito entre seres humanos e não-humanos. Segundo Eduardo Gudynas, a
Constituição de 2008 promove uma postura biocêntrica, em que tanto as vidas humanas
como não-humanas têm valor em si mesmas (Gudynas, 2011); e, portanto, rejeita uma
visão mecânica, reducionista e instrumentalista da natureza, que tem sido central nos
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processos de desenvolvimento do Estado e do mercado e, portanto, inerente às
comunidades políticas modernas (Tickner, 1993).
No entanto, é importante notar que a Constituição emergiu de um contexto político e
social muito particular. Foi aprovada "no rescaldo de um período de profunda agitação
política", numa altura em que o presidente esquerdista Rafael Correa tinha acabado de
ser eleito com promessas de mudanças fundamentais para o país, incluindo uma maior
representatividade dos direitos indígenas e atenção às preocupações ambientais
(Espinosa 2019: 608). Uma análise da implementação de RoN no país mostra que, apesar
de ser um passo radicalmente novo dado por um Estado, a defesa dos Direitos da
Natureza no Equador não se tornou uma prática comum desde 2008 (Lalander, 2016;
Laastad, 2019). Existem contradições na própria Constituição, nomeadamente no que
diz respeito à responsabilidade do Estado pela economia do país (altamente dependente
do extrativismo e da exploração de recursos não renováveis); e ao seu dever de manter
RoN (Lalander, 2016). Estas encontram um paralelo na prática do Estado, que continua
a depender fortemente da extração de recursos apesar dos apelos à proteção da natureza
(Lalander, 2016). Considerando que o Equador é um dos países mais pobres da América
do Sul, o Estado parece estar encurralado entre a necessidade de contar com indústrias
extrativistas para o bem-estar social; e a necessidade de proteger os seus ecossistemas
e seres. Este aparente dilema significa que "na prática, interesses económicos e políticos
estratégicos do Estado colidem com os direitos indígenas e ambientais" (Lalander, 2016:
625).
Pode ser tentador argumentar que esta dificuldade em implementar os Direitos da
Natureza no Equador lança dúvidas sobre o potencial sucesso de todo o movimento.
Contudo, o que é particularmente interessante aqui é como a linguagem utilizada - e os
seus entendimentos subjacentes de comunidade política, da subjetividade e dos Direitos
da Natureza - apontam pelo menos para a possibilidade de transformar as fronteiras e o
sistema de governação do Equador numa direção pós-antropocêntrica. Afinal de contas,
sinais de que a inclusão de RoN na Constituição nacional promoveu de facto uma
consciência ecológica crescente no seio da sociedade civil (Laastad, 2019). Talvez
também esteja ligada a algumas conquistas recentes nos movimentos de direitos
indígenas e ambientais, tais como a decisão do Tribunal Constitucional do Equador no
final de 2021 de recusar concessões mineiras na floresta protegida de Los Cedros uma
decisão baseada no entendimento de que tal atividade violaria os direitos da natureza
deste ecossistema específico (Aliança Global para os Direitos da Natureza, 2021). Como
se afirma no documentário Os Direitos da Natureza: um Movimento Global, "os direitos
da natureza são assim representados menos como um instrumento legislativo do que
como um instrumento para mudar a forma como as pessoas pensam e agem"
(Goeckeritz, Crimmell, & Berros, 2020). Uma mudança na consciência pode assim
representar o primeiro passo para a transformação da prática do Estado.
Em segundo lugar, o facto de parecer impossível estabelecer Direitos da Natureza no
atual sistema económico e político sublinha como este sistema não é constrdo de uma
forma que permita verdadeiramente a proteção da natureza não-humana, uma vez que
se baseia necessariamente na exploração contínua dos ecossistemas, dos povos e dos
seres. Enquanto as comunidades políticas modernas forem construídas sobre conceções
hegemónicas do mundo e dos seus seres agênticos, e dependerem de um sistema
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económico que exija a exploração e destruição de uma natureza vista como objeto
passivo, pode o ser possível que estas comunidades se tornem ecologicamente
equilibradas e respondam eficazmente às crises climática e ambiental. Dado que estas
crises eso a agravar-se rapidamente e que possuem um potencial o devastador para
transformar a sociedade global, olhar para os dilemas que países como o Equador
parecem enfrentar enquanto tentam implementar Direitos da Natureza e ainda jogar
segundo as regras do sistema atual pode impulsionar um apelo à ação para a
transformação da comunidade política para além das suas estruturas capitalistas e
antropocêntricas.
Observações Finais
Tendo analisado estes dois casos paradigmáticos de RoN, argumentaria que o movimento
está alinhado com as propostas de Linklater e (especialmente) de Eckersley para a
transformação das comunidades políticas modernas para além do seu tradicional caráter
exclusivista. Tanto a Lei Te Awa Tupua de 2017 como a Constituição do Equador de 2008
parecem ser bons exemplos de políticas de reconhecimento que procuram alcançar uma
maior convergência entre fronteiras culturais e políticas; que encorajam os membros das
duas comunidades políticas a serem sensíveis às necessidades e interesses dos
sistematicamente excluídos (neste caso, com particular incidência sobre os seres não-
humanos e os ecossistemas); e que promovem uma diversidade profunda, alargando os
limites morais da comunidade a "outros" muito diferentes - tudo em conformidade com
a proposta de Linklater (Linklater, 1998). Possuem também importantes dimensões
representativas que tentam criar espaços (quer através de um novo ato legislativo, quer
através da Constituição nacional) para que a voz da natureza não-humana seja ouvida,
mesmo que através de guardiães humanos nomeados ou fiduciários; e encorajam
práticas de statehood ecologicamente responsáveis, quer localmente quer através do
desenvolvimento do que pode ser considerado uma Constituição verde - em
conformidade com a proposta de Eckersley (Eckersley, 2004).
Ainda assim, devem ser feitas duas observações importantes. Embora estes dois casos
se concentrem a nível local e nacional, creio que pensar no movimento RoN a uma escala
potencialmente global indica que a discussão em torno dos Direitos da Natureza
provavelmente se torna mais abstrata, complexa e difícil de implementar na prática à
medida que se passa de um nível local para um nacional para um global. Basta pensar
no desafio que seria certamente tentar transformar a Declaração Universal dos Direitos
da Mãe Terra, escrita em 2010 em Cochabamba, Bolívia, num "quadro normativo
internacional" semelhante à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 como
era intenção dos seus proponentes quando a apresentaram à Assembleia-Geral da ONU
(Espinosa, 2014: 393). O facto de a Declaração ainda não ter sido aceite como um quadro
oficial fala por si. A tentativa de estabelecer RoN à escala global coloca desafios muito
maiores, pois teriam de ser aceites por um conjunto muito maior e mais diversificado de
atores (com diferentes circunstâncias económicas, regimes políticos, culturas,
necessidades e interesses); e desafiariam diretamente algumas das estruturas, normas
e regras fundacionais do sistema internacional contemporâneo, incluindo a economia
mundial capitalista. Por outro lado, embora existam questões, desafios e tensões tanto
no caso do rio Whanganui como em relação à Constituição equatoriana, e talvez mais
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evidentemente neste último, estruturas de RoN foram oficialmente adotadas em ambos
os casos e estão, em certa medida, a ter impacto. O que isto sugere é que o movimento
pelos Direitos da Natureza pode potencialmente alcançar maior sucesso concentrando-
se primeiro em mudanças mais pequenas e localizadas e, gradualmente, encorajando
potencialmente uma rede crescente de estruturas RoN. Trabalhar na mudança
paradigmática ou no aumento da consciência em níveis mais pequenos pode contribuir
para difundir conceções e sistemas de prática contra-hegemónicos através de uma
abordagem de base, de baixo para cima.
Em segundo lugar, é importante notar como os contextos em que o movimento RoN tem
tido mais sucesso até agora estão no Sul Global, e especificamente em regiões com povos
indígenas e mobilização (ou luta) indígena ativa para o reconhecimento dos seus direitos
culturais, políticos e legais. Alguns dos casos em que os quadros de RoN parecem ter
sido introduzidos com mais ousadia até agora, no Equador e em Aotearoa Nova Zelândia,
envolveram circunstâncias muito particulares através das quais os povos indígenas
fizeram ouvir a sua voz e as suas reivindicações (e, portanto, as suas culturas, ontologias
e língua) e foram incorporados na legislação oficial. O que isto parece sugerir é que, nos
espaços onde os limites morais da comunidade política são alargados ao ponto de
permitirem uma maior inclusão, participação e representação de comunidades humanas
tradicionalmente marginalizadas (particularmente os povos indígenas), pode-se esperar,
quiçá, mais facilmente ver uma expansão correspondente desses limites para incluir a
natureza não-humana sistematicamente excluída. Isto faz sentido, de facto, se
pensarmos nas relações tradicionais dos povos indígenas com o mundo mais-do-que-
humano; e também sugere que o desenvolvimento de comunidades políticas mais
inclusivas pode ser um bom cenário tanto para os seres humanos como para os não-
humanos. Se permitir uma resposta mais atempada, concertada e robusta às crises
climática e ambiental, certamente que o fará.
Finalmente, independentemente dos potenciais desafios à sua implementação prática,
diria que o movimento RoN detém de facto o potencial para (pelo menos) uma
transformação gradual da comunidade política numa direção pós-antropocêntrica, pós-
Vestefaliana. Através da sua linguagem e potencial narrativo, as estruturas RoN
convidam a uma reflexão crítica sobre conceitos de comunidade, subjetividade, agência,
voz, direitos, participação e representação que se têm centrado quase exclusivamente
em torno dos seres humanos; e, consequentemente, impulsionam um alargamento das
fronteiras morais, jurídicas e políticas da comunidade de modo a incluir o mundo mais-
do-que-humano. Ao convidar a uma transformação de um modo de relação prevalecente,
explorador e antropocêntrico com a natureza não-humana, o movimento RoN também
permite uma resposta potencialmente robusta, mais representativa, inclusiva, justa e
ecológica às crises climática e ambiental.
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RESPONSABILIDADES COMUNS, MAS DIFERENCIADAS RELATIVAMENTE ÀS
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS. DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DENTRO DO
CONTEXTO NACIONAL BRASILEIRO
CHRISTOPHER KURT KIESSLING
ckiessling@conicet.gov.ar
Doutoramento em Ciências Sociais pela FLACSO, Argentina. Pós-doutoramento no Conselho
Nacional de Investigação Científica e Técnica (CONICET) co-financiado pela Universidade Católica
de Córdoba (Argentina). Professor e investigador nesta instituição e na Universidade Blas Pascal.
Membro do Observatório da Política Climática Argentina, ARG1.5º.
AGUSTINA PACHECO ALONSO
apacheco234@gmail.com
Mestranda em Direito e Economia das Alterações Climáticas (FLACSO, Argentina). Licenciatura
em Relações Internacionais (Universidade Católica de Córdoba) e Licenciatura em Ciências
Políticas (Universidade Católica de Córdoba). Docente na Universidade Siglo XXI. Coordenadora
da área de Alterações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável na Asociación Sustentar,
membro da equipa de investigação da FLACSO sobre cidades e alterões climáticas e do
Observatório da Política Climática Argentina, ARG1.5º.
Por sua vez, é membro de diferentes redes climáticas nacionais e regionais, tais como o
Observatório Latino-americano de Ação Climática (OLAC), a Plataforma Latino-americana da
Juventude e Alterações Climáticas (Clic!) e a Aliança para a Ação Climática Argentina (AACA).
Resumo
Este artigo pretende reconstruir a evolução desta dinâmica, traçando as interpretações e
reinterpretações da norma feitas pelos atores estatais brasileiros através do processo de
localização da norma no discurso doméstico sobre as alterações climáticas no Brasil de 2005
a 2010. A perspetiva teórica baseia-se na literatura sobre internalização de normas que tenta
especificar as condições sob as quais as normas internacionais encontram relevo em contextos
domésticos particulares.
Duas interpretações principais coexistem na arena política brasileira no período compreendido
entre a entrada em vigor do Protocolo de Quioto e a assinatura do Acordo de Paris que
influenciou a política climática no Brasil nesse período. A primeira posição em torno da norma
foi uma interpretação tradicional do princípio de defesa de uma posição de responsabilidades
históricas que implicava que o Brasil não tinha de tomar medidas de redução de gases com
efeito de estufa. A segunda posição é uma interpretação mais progressiva da norma, que
defende que o Brasil, como país emergente, pode e deve adotar reduções de emissões. A
ligação entre ambas as posições permite-nos compreender os alegados altos e baixos na
política climática no horizonte temporal estudado.
Palavras-chave
Alterações Climáticas; Brasil; Responsabilidades Comuns, mas Diferenciadas; Localização
Como citar este artigo
Kiessling, Christopher Kurt; Alonso, Agustina Pacheco (2022). Responsabilidades comuns,
mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes interpretações dentro do
contexto nacional brasileiro. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, 1,
Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.10
Artigo recebido em 11 Setembro 2021 e aceite para publicação em 20 Fevereiro 2022
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
Christopher Kurt Kiessling, Agustina Pacheco Alonso
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RESPONSABILIDADES COMUNS, MAS DIFERENCIADAS
RELATIVAMENTE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS.
DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DENTRO DO CONTEXTO
NACIONAL BRASILEIRO
1
CHRISTOPHER KURT KIESSLING
AGUSTINA PACHECO ALONSO
Introdução
O princípio das Responsabilidades Comuns, mas Diferenciadas e Respetivas Capacidades
(CBDR-RC a partir de agora) emerge como norma fundamental da governação ambiental
global a nível interestatal, como resultado das negociações internacionais que
conduziram à adoção da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações
Climáticas (UNFCCC a partir de agora) em 1992. A interpretação tradicional da norma
sustentava que deveriam ser esperados diferentes níveis de proteção ambiental entre
países desenvolvidos e países emergentes ou em desenvolvimento, ou, no mínimo,
deveria ser concedido um período de carência aos países em desenvolvimento para
abordar reformas que conduzam à redução do seu impacto ambiental a médio prazo. Em
contrapartida, devem ser abordadas, o mais rapidamente possível, medidas de mitigação
para os países desenvolvidos.
A lógica do princípio é que os Estados do Norte são os principais responsáveis pela
degradação ambiental passada, continuam a consumir uma proporção esmagadora dos
recursos do planeta e possuem capacidades tecnológicas e financeiras superiores para
proteger o ambiente. No entanto, muitos Estados do Norte recusaram-se a aceitar a
responsabilidade pela sua contribuição histórica para a degradação ambiental global.
Interpretam o princípio como impondo apenas responsabilidades futuras e não passadas
(Rafiqul Islam, 2015). Deste modo, o princípio CBDR-RC deriva da divisão histórica entre
o Norte Global e o Sul Global sobre política ambiental e consolida-se como um
compromisso entre as necessidades dos países do Norte e do Sul, reconhecendo o apelo
à adoção de normas diferenciais em determinadas circunstâncias, dada a
heterogeneidade da sociedade internacional (Atapattu, 2015). Contudo, os debates em
torno da adoção deste princípio revelaram-se inacabados, já que alguns países do Norte,
como os Estados Unidos em particular, procuraram lançar este princípio como um reflexo
da capacidade técnica e financeira "superior" do Norte, em vez do seu dever de
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
Christopher Kurt Kiessling, Agustina Pacheco Alonso
160
proporcionar reparação de danos passados (Atapattu & Gonzalez, 2015). Apesar deste
debate, o princípio da CBDR-RC continua a ser uma norma de justiça global na sociedade
internacional (Kiessling & Pacheco Alonso, 2019).
Relativamente às alterações climáticas, esta norma permitiu estabelecer uma divisão de
responsabilidades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, definindo os
primeiros como os principais responsáveis pela regulação das alterações climáticas no
âmbito da governação ambiental. Com a assinatura do Protocolo de Quioto em 1997,
esta norma foi institucionalizada ao estabelecer que os Estados desenvolvidos do Norte
Global, referidos como Anexo I, eram os responsáveis pela adoção de medidas para
mitigar as alterações climáticas. Enquanto os países do Sul Global (não o Anexo I) apenas
se comprometeram a cooperar no âmbito das negociações sobre as alterações climáticas
e a apresentar relatórios periódicos para contribuir para os objetivos da UNFCCC
(Bodansky, Brunée, Rajamani, 2017).
A ambiguidade com que a norma foi institucionalizada na arena internacional,
precisamente a intenção de alargar a participação de todos os países, levou a discussões
sobre a diferenciação entre as Partes e a forma como ela deveria ser aplicada. Assim,
discutiu-se se a base da implementação da norma deveria ser as capacidades evolutivas
e dinâmicas dos países ou as contribuições históricas relativas às emissões de GEE, um
debate que ainda não foi resolvido (Bodansky, Brunée, Rajamani, 2017). Não sendo claro
se o CBDR-RC regula as responsabilidades históricas por danos passados na arena
ambiental, riqueza e capacidades técnicas para diminuir o impacto ambiental, ou
representar uma adaptação do princípio do património comum da humanidade, todos
estes significados podem coexistir nos discursos globais sobre o ambiente.
Desde a origem do princípio no início dos anos 90, esta norma internacional teve um
caráter exclusivamente interestatal na consolidação do ambientalismo liberal como um
complexo normativo da governação global das alterações climáticas (Bernstein, 2001).
O Brasil foi um protagonista neste processo ao cerrar fileiras nas negociações com a
China e a Índia para garantir que o adotariam compromissos de mitigação
juridicamente vinculativos no emergente regime de governação climática. Esta aliança
lançou as bases para o trabalho futuro do G77+China, no âmbito das negociações
climáticas, com base numa divisão de trabalho interna onde o Brasil detinha a liderança
em questões científicas.
O desempenho do G77+China neste cenário foi fundamental para levar a uma
interpretação generalizada da norma que privilegiou a ideia de responsabilidades
históricas e uma forte separação entre países do Anexo I e países não pertencentes ao
Anexo I; e para manter, entre o Sul Global, a posição de não aceitar compromissos
juridicamente vinculativos, com base numa definição rígida de identidade como países
em desenvolvimento. No entanto, no início dos anos 2000, a governação clitica global
ganhou complexidade com o aparecimento e envolvimento de novos intervenientes que
conduziram a dinâmicas inovadoras dentro do regime. Um caso paradigmático foi o
processo de internalização da CBDR-RC no Sul Global, onde o envolvimento de atores
não estatais, quer aceitando ou contestando o conteúdo e as interpretações da norma
internacional, moldou a forma como o princípio apareceu no discurso doméstico.
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
Christopher Kurt Kiessling, Agustina Pacheco Alonso
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O documento seguinte pretende reconstruir a evolução desta dinâmica, traçando as
interpretações e reinterpretações da norma feitas pelos atores estatais brasileiros através
do processo de localização (Acharya, 2004) da norma no discurso doméstico sobre as
alterações climáticas no Brasil de 2005 a 2010. A delimitação temporal responde à
entrada em vigor do Protocolo de Quioto em 2005 e aos anos subsequentes, através dos
quais a governação climática nacional foi consolidada até à sanção da Lei das Alterações
Climáticas em 2009 e da Política Nacional sobre Mudança do Clima em 2010. Tal como
identificado em pesquisas anteriores, a delimitação temporal proposta responde à
emergência de uma arena nacional de governação das alterações climáticas no Brasil
(Kiessling, 2018; 2019; 2021). Contudo, é de notar que o cenário da governação
climática no Brasil sofreu mudanças drásticas prejudiciais, tanto na sua estrutura como
na ambição e robustez do seu organismo regulador, especialmente desde a chegada de
Bolsonaro ao governo em 2018. Como antes deste momento, o Brasil liderou a ação
climática na região - particularmente entre 2005 e 2010 -, e os processos desenvolvidos
neste período continuam a representar um exemplo a seguir na América Latina; este
documento centra-se na análise e reflexão sobre este momento particular na construção
da governação climática brasileira.
O artigo está estruturado em sete secções, além desta introdução; a primeira enquadra
a abordagem teórico-metodológica; a segunda e terceira descrevem o contexto das
negociações internacionais sobre as alterações climáticas e a discussão do CBDR-RC no
contexto doméstico brasileiro, respetivamente. A quarta e quinta secções ilustram as
duas interpretações diferentes da norma abordadas pelos decisores políticos brasileiros.
A sexta secção apresenta a discussão empírica que expõe o argumento principal do
artigo. Finalmente, são apresentadas as reflexões finais que recuperam as principais
conclusões do artigo.
Abordagem teórico-metodológica
A perspetiva teórica que orienta este artigo baseia-se na literatura sobre internalização
de normas que tenta especificar as condições sob as quais as normas internacionais
encontram relevo em contextos domésticos particulares. Kratochwil define normas como
atos de fala através dos quais a comunicação é estabelecida (Koslowski & Kratochwil,
1994). Em qualquer caso, as definições mais operacionais são geralmente referidas pela
literatura, tais como normas de comportamento adequado para atores com uma
determinada identidade (Katzenstein, 1996), prescrições de atuação em situações de
escolha (Cortell & Davis 2000), ou mais específicas; ideias com diferentes graus de
abstração e especificação relativas a valores fundamentais, princípios organizacionais ou
procedimentos padronizados que ganharam o apoio dos estados e atores globais, e que
têm lugar de forma proeminente em múltiplos fóruns, incluindo políticas estatais, leis,
tratados ou acordos internacionais (Krook & True, 2010).
Um aspeto essencial da difusão de normas internacionais é a sua internalização em
contextos nacionais particulares. No processo de internalização, as internacionais (ideias)
estão ligadas às nacionais(identidades). A Sociologia e a Psicologia Social definem a
internalização das normas como um processo que transforma as motivações e os
interesses de um agente para cumprir as normas sociais, transformando a adesão à
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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162
norma como uma forma de evitar castigos ou obter recompensas em cumprimento como
um fim em si (Andrighetto et al., 2010). Tradicionalmente, na literatura de Relações
Internacionais, é indicado que os Estados são os principais agentes "geradores de
normas" ou "aceitadores de normas" (Legisladores vs. Legislados). Contudo, com novos
estudos sobre os processos de emergência, consolidação e internalização das normas
internacionais (e.g., Argomaniz, 2009, Xiaoyu, 2012), a complexidade destas dinâmicas
começou a ser compreendida.
A partir de uma abordagem epistemológica interpretativa, ideias, normas e discursos
adquirem centralidade como objetos de análise. O papel das ideias tem sido reconhecido
nas Relações Internacionais por autores de várias correntes teóricas. Duas grandes
abordagens metateóricas informam os estudos sobre a internalização das normas:
racionalismo e construtivismo (Cortell & Davis, 2000; Boekle, Rittberger, Wagner, 1999;
e.g.). Do racionalismo, argumenta-se que as normas internacionais modificam os
incentivos dos intervenientes, fornecendo soluções para os problemas de coordenação e
reduzindo os custos de transação. Neste contexto, isso implica que a adesão às normas
internacionais dependerá de um cálculo custo-benefício e das possibilidades que as
regras oferecem para maximizar os lucros destes intervenientes.
Por outro lado, num sentido construtivista, afirma-se que as normas internacionais
fornecem uma linguagem e uma gramática da política internacional, constituindo os
próprios atores sociais através da formação das suas identidades e interesses. Para o
construtivismo, os atores sociais o guiados pela lógica do apropriado, opondo-se ao
pressuposto enraizado na tradição racionalista onde se supõe que a ação social é guiada
apenas pela gica da consequência. Os racionalistas interpretam o cálculo do custo-
benefício como o principal guia para a ação social. Ao mesmo tempo, para os
construtivistas, a lógica do que é apropriado implica reconhecer que, para os atores, é
mais crítico que as suas práticas sejam reconhecidas, por outros agentes e por eles
próprios, como legítimas e apropriadas a um dado contexto social (March & Olsen, 2008).
Se prevalecerem considerações de "adequação" para orientar a agência social, as
modalidades sob as quais as alterações cliticas são inicialmente enquadradas como
um problema que define as ações "adequadas" para a sua abordagem irão gerar
trajetórias dependentes (David, 2007) destas interpretações, com impacto sobre os
discursos e a própria política futura.
Esta última implica considerar as normas internacionais como processos discursivos
(Krook & True, 2010). O reconhecimento da dimensão discursiva das normas permite-
nos questionar o pressuposto de que as normas internacionais mantêm a sua essência e
significado inalterados durante a internalização. Precisamente, a integridade de uma
norma internacional pode ser questionada após a sua aceitação retórica (Stevenson,
2013). Assim, os processos de internalização implicam necessariamente processos de
reinterpretação da norma com base no seu dinamismo. Duas fontes do dinamismo da
norma podem ser reconhecidas: as externas e as internas. O dinamismo externo de uma
norma é gerado pelo universo mais vasto de normas existentes e pelos conflitos ou
alinhamentos entre elas, ou seja, a concorrência que é gerada em torno da adoção de
uma determinada norma ou de outro concorrente potencial alternativo, seja na mesma
área temática ou não (Krook & True, 2010).
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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O dinamismo interno é observado no seu potencial para estabelecer concorrência entre
os diferentes significados que a adoção da norma implica em si mesma. Por outro lado,
o dinamismo interno de uma norma é definido pela ligação feita entre a norma
internacional e a sua receção interna ou com a correspondência entre a referida norma
e as normas internas existentes. Por outras palavras, os atores domésticos são agentes
ativos na reinterpretação do conteúdo da norma na sua adoção e não meros recetores
passivos de um sistema internacional que os modifica.
Para fazer referência ao dinamismo interno das normas internacionais, é necessário
trazer à tona o conceito complementar de congruência normativa. Este conceito refere-
se à internalização das normas internacionais em contextos nacionais como um processo
dinâmico e imprevisível que oscila entre as perceções de congruência e incongruência
entre as normas globais e as condições domésticas (Stevenson, 2013: 11). Após
Stevenson (2013), a construção da congruência normativa pode potencialmente assumir
diferentes formas e incorporar uma vasta gama de atores domésticos estatais e não
estatais. Estes atores podem (consciente ou inconscientemente) promover processos de
mudança baseados no seu desacordo com a perceção da incongruência (ou congruência)
sobre as normas internacionais.
Por outro lado, o conceito de localização procura descrever como a internalização de
normas internacionais ocorre no Sul Global quando o conteúdo dessa norma tem (ou é
viável de construir) alguma ligação com normas nacionais pré-existentes, quer estejam
direta ou indiretamente relacionadas com o tema. Um elemento-chave é que a localização
ocorre se houver um processo de alojamento para que as normas possam convergir umas
com as outras. Assim, a localização de normas parte do paradoxo que implica tanto a
aceitação como a contestação da norma, permitindo a construção e (re)construção da
convergência normativa. Face a esta situação, a localização, e não a aceitação completa
ou rejeição total, resulta, na maioria dos casos, de resposta normativa nos contextos
domésticos do Sul Global (Acharya, 2004). A hipótese que orienta este estudo é que ao
longo do processo de localização do princípio de responsabilidades comuns, mas
diferenciadas no contexto doméstico brasileiro, os atores governamentais brasileiros
estavam a redefinir as suas interpretações sobre o assunto de acordo com as linhas dos
diferentes ministérios que têm competência sobre a questão das alterações climáticas
2
.
Em termos metodológicos, o artigo seguinte reconhece a importância da análise do
discurso para compreender o processo de enquadramento das normas internacionais.
Este conceito pode ser definido como um processo tendente a selecionar aspetos de uma
realidade percebida e torná-los mais salientes no discurso para promover de alguma
forma uma definição específica de um problema, a sua interpretação causal, avaliação
moral e recomendação para o seu tratamento (Stevenson, 2013). As principais fontes
desta investigação são entrevistas semiestruturadas com atores estatais e não estatais
no Brasil, tais como diplomatas, membros dos Ministros do Meio Ambiente, ciência e
Tecnologia, ativistas de ONG, empresários, entre outros; complementadas por uma
revisão de fontes secundárias, tais como documentos oficiais e artigos académicos. A
2
Este artigo visa estudar o processo de localização da CBDR-RC no contexto doméstico brasileiro. Neste
sentido, o papel do ramo executivo no Brasil é principalmente explorado e as suas ligações com outros
atores estatais e não estatais. Para mais detalhes sobre os processos de internalização da CRDB-RC no
Brasil por atores não-estatais, ver Kiessling (2019; 2021).
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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leitura das entrevistas e dos documentos oficiais sob uma lente construtivista permite-
nos compreender como é constituída a agência de atores sociais do governo e
funcionários estatais brasileiros com base em ideias e discursos que constroem
interpretações sobre o alcance e significado das normas internacionais que regulam a
arena global de governação climática. Neste sentido, as palavras dos entrevistados são
apresentadas como ilustrações ou instantâneos das principais estruturas de significado
relacionadas com as modalidades sob as quais os atores sociais encaram a BDR-RC como
uma norma válida, as interpretações prevalecentes sobre a mesma e as suas mudanças
no tempo.
O Brasil, a CBDR-RC e o contexto internacional na fase pós-Quioto
A CBDR-RC, proposta pelos países do G77+China, foi um pilar da posição do governo
brasileiro nas negociações climáticas, mesmo antes da assinatura da UNFCCC. A
formulação desta norma respondeu a uma conceção de justiça na sociedade
internacional; isto significava que os países que tinham causado o problema deveriam
ser os principais responsáveis pela sua resolução e ajudar os países menos desenvolvidos
a adaptarem-se aos seus impactos inevitáveis. A posição convencional do Brasil nas
negociações internacionais sobre alterações climáticas baseou-se numa interpretação
desta norma que negava a possibilidade de o Brasil adotar quaisquer compromissos de
mitigação na governação climática. Contudo, as mudanças na relação entre países
desenvolvidos e emergentes do Sul Global nas negociações internacionais minaram as
bases sobre as quais esta interpretação se baseava. A partir de 2005, com a entrada em
vigor do Protocolo de Quioto, e especialmente após 2007 na COP13 em Bali, Indonésia,
os países desenvolvidos começaram a questionar seriamente uma agenda de
negociações de cima para baixo, que apenas estabelecia compromissos vinculativos para
os países do Anexo I. Nesta Conferência das Partes, os países apresentaram uma nova
forma de negociação que refletiu as mudanças no sistema internacional. Com o Plano de
Ação de Bali, os países reconheceram que as responsabilidades em matéria de alterações
climáticas são dinâmicas a longo prazo. Este plano estabeleceu também uma segunda
via de negociação, separada do Protocolo de Quioto, onde um grupo de trabalho de países
desenvolvidos (incluindo os Estados Unidos) i negociar futuros compromissos
quantificados de redução de emissões (Lessels, 2013; Albuquerque, 2019).
Como resultado desta rutura e do subsequente fracasso da COP15 em Copenhaga em
2009 para assinar um novo tratado vinculativo ao estilo de Quioto, a dinâmica da agenda
de negociação internacional é transformada pela adoção de uma abordagem ascendente
que permite (e exige) que todos os Estados submetam contribuições nacionais de
mitigação à UNFCCC.
Neste contexto de uma mudança de governação global entre 2005 e 2009, a CBDR-RC é
reinterpretada a nível internacional para abandonar interpretações que apenas associam
este conceito à ideia de responsabilidades históricas que conduzem a uma separação
clara entre os países do Anexo I e os países não incluídos no Anexo I. Este processo
internacional desencadeou processos locais de reinterpretação desta norma na medida
em que os Estados podiam legitimamente apoiar interpretações tradicionais no contexto
da nova configuração do regime climático (Albuquerque, 2019).
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas no contexto político
brasileiro pós-Quioto
Desde a assinatura do Protocolo de Quioto em 1997, o Brasil consolidou uma posição nas
negociações internacionais que pode ser caracterizada como a tradicional posição
brasileira sobre as alterações climáticas (Johnson, 2001, Viola, Franchini, & Lemos
Ribeiro, 2012). Em termos gerais, Viola, Franchini e Lemos Ribeiro (2012) argumentam
que durante a negociação do Protocolo de Quioto, o Brasil teve cinco visões que foram
fundamentais na definição desta posição:
Compromisso inabalável com o direito ao desenvolvimento como quadro em que se
insere a política relativa às alterações climáticas.
Defesa da noção de desenvolvimento sustentável para integrar processos económicos
com a defesa ambiental.
A liderança global do Brasil em matéria de alterações climáticas.
Evitar ligar as alterações climáticas à regulação e preservação das florestas e selvas.
A interpretação radical do princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
Durante a primeira década dos anos 2000, houve uma mudança política no que respeita
ao poder e atribuições dos ministérios ligados à agenda ambiental
3
. Embora no início de
2000 o Ministério da Ciência e Tecnologia pudesse ser reconhecido como o ator principal,
houve uma transição na segunda metade da década que colocou o Ministério do Meio
Ambiente no centro da agenda. Esta transição esteve ligada à internalização do CBDR-
RC e a disputas sobre o significado e interpretações que esta norma deveria ter. Até
2010, quatro ministérios lideraram a agenda climática no Brasil; Meio Ambiente,
Finanças, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia. Estes quatro ministérios podem ser
brevemente classificados em dois grupos:
Por um lado, esses ministérios procuraram manter o status quo em termos de
preservação das instituições e práticas estabelecidas para regular as alterações
climáticas no Brasil. Aqui podemos localizar o Ministério Das Relações Exteriores
(MNE) e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O primeiro procurava
tradicionalmente limitar a interferência de outros ministérios na definição da política
climática no Brasil. Defendiam a identificação do Brasil como um país em
desenvolvimento emergente, membro do G77+China, que não deveria abandonar
completamente a CBDR-RC mesmo que fossem assumidos compromissos voluntários,
uma vez que eram apenas demonstrações de predisposição de um país em
desenvolvimento para agir. O MCT, responsável pela administração do Mecanismo de
3
Embora vários ministérios no Brasil concorram no quadro da agenda das alterações climáticas, quando a
UNFCCC foi assinada, foi estabelecida uma aliança tácita entre o Itamaraty e o Ministério da Ciência e
Tecnologia. Esta aliança teria exclusividade na definição da política climática brasileira (Kiessling, 2018).
Nesse sentido, apenas o Itamaraty participou na formulação da posição tradicional brasileira; uma vez que
era considerado não o agente que representava mais consistentemente o interesse nacional brasileiro,
mas também o que tinha as capacidades mais significativas para o fazer (Viola, Franchini, Lemos Ribeiro,
2012).
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Desenvolvimento Limpo (MDL) desde meados dos anos 2000, também acompanhou
esta posição. Do seu âmbito de ação, o ministério foi favorável à preservação da
integridade ambiental do mecanismo, como um dos pilares da política externa
brasileira sobre o assunto (Kiessling, 2018).
Por outro lado, a2012, os Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e das Finanças (MF)
estavam a liderar o caminho para reinterpretar o princípio. O MMA promoveu uma
reinterpretação radical da norma, orientada para assegurar maiores níveis de
compromisso, que foi apoiada e acompanhada por outros atores sociais, tais como o
setor privado e o terceiro setor. A modalidade preferida para enfrentar estas novas
obrigações, que o ministério interpretou ser crescente, era a adoção de instrumentos
económicos muito mais generalizados do que apenas baseados nos mecanismos de
flexibilização previstos pelo Protocolo de Quioto (o MDL). Assim, o MMA ornou-se
favorável e promoveu mecanismos como o REDD+, entre outras iniciativas. O MF
desempenhou aqui um papel importante, acompanhando e gerando as ferramentas
práticas que a lógica subjacente aos discursos do MMA exigia, em conformidade com
uma simbiose que seria visível, a partir do ano 2010, na figura da ministra Izabella
Teixeira.
Em ambos os casos, as interpretações progressivas da norma são compatíveis com as
reinterpretações que, nos primeiros anos de 2010, foram privilegiadas à escala global,
como descrito na secção anterior. As diferentes visões o então apresentadas no quadro
seguinte:
Quadro Nº1 - Interpretações do princípio de responsabilidades comuns, mas
diferenciadas pelos Ministérios no Brasil
Princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas
Interpretação tradicional do princípio
Ministério das Relações Exteriores - Ministério da Ciência e
Tecnologia
Interpretação progressiva do princípio
Ministério do Meio Ambiente - Ministério das Finanças
Elaboração própria
As secções seguintes explorarão ambas as interpretações em maior detalhe a partir deste
esboço.
A interpretação tradicional do princípio: a bandeira do Itamaraty
Como acima mencionado, entre 2007 e 2009, a diferenciação categórica baseada em
anexos foi abandonada, não sem resistência e contestações, na busca da
autodiferenciação (Bodansky, Brunée, Rajamani, 2017); baseada numa reinterpretação
do CBDR-RC, que passa do enfoque na responsabilidade histórica para um enfoque nas
capacidades dos países. Com o reconhecimento desta mudança ao longo das rondas de
negociações de Bali, o Itamaraty identifica que não pode continuar a adotar uma posição
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defensiva como tinha feito com o G77+China na primeira ronda de negociações de
Quioto. A consequência direta deste reconhecimento é uma flexibilização da posição
convencional no sentido do reconhecimento da importância dos grandes países em
desenvolvimento na solução das alterações climáticas e do novo papel do Brasil como
grande ator na economia global:
"Países em desenvolvimento como o Brasil também devem tomar medidas no
âmbito da Convenção."
4
" Todos nós devemos tomar medidas maiores e mais arrojadas para reduzir
as emissões"... "As responsabilidades são e devem ser diferenciadas, mas não
podemos esquecer que são também comuns."
5
" As nossas emissões, embora sejam mais recentes e mais pequenas, também
ajudam a sufocar e submergir a única terra que temos para habitar."
6
O Itamaraty, tal como os restantes países que mais tarde dariam forma ao bloco BASIC,
era a favor da abordagem de negociação em duas vias que foi consolidada na COP13 em
Bali (2007), uma vez que reconheciam que dentro da segunda via do Plano de Ação de
Bali, as suas ações seriam sempre autodeterminadas. Esta abordagem permitiria ao
Brasil, Índia, China e África do Sul aumentar voluntariamente as suas contribuições,
respondendo a pressões internas, sem que essas contribuições fossem consideradas
metas vinculativas derivadas da convenção (Lessels, 2013).
Estas conversações entre os três grandes países em desenvolvimento ocorreram desde
o início das negociações no seio do G77+China. Durante este período (2005-2009),
embora reconhecendo as transformações no âmbito das negociações, o Itamaraty cerrou
fileiras com a Índia e a China para apoiar o caráter voluntário de qualquer ação que o
Brasil pudesse tomar. Neste contexto, foram realizadas reuniões regulares com a China
e a Índia para coordenar até aspetos programados, tais como as datas de entrega das
Comunicações Nacionais ao Secretariado da Convenção
7
.
Uma vez estabelecido o BASIC, a ideia de contribuições voluntárias constitdas na
segunda via tornou-se extremamente importante para manter a coesão no seio da
coligação. Isto significava que um país parceiro podia fazer reduções voluntárias de GEE
sem comprometer os outros (Lessels, 2013). Desta forma, os parceiros poderiam manter
a coligação unida e manter uma identidade internacional baseada no seu estatuto
emergente, permitindo simultaneamente margens de ação para definir políticas internas
4
Luis Rebelo Fernandes, Secretário Executivo do MCT. Excerto do discurso proferido na COP 12, 2006.
5
Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores. Excerto de um discurso proferido na COP 12, Bali, 2007.
6
Carlos Minc, Ministro do Meio Ambiente, excerto de um discurso proferido na COP 14, Poznan, 2008.
7
em 2004, o Brasil, a Índia e a China concordaram em apresentar as suas primeiras Comunicações
Nacionais da UNFCCC durante a COP 10 em Buenos Aires, embora a Comunicação Nacional do Brasil
tivesse sido preparada anteriormente. Embora a Índia o cumprisse o estipulado e apresentasse a sua
comunicação alguns meses antes dos outros países, a ideia era que os três adiassem a entrega das
comunicações para evitar a atenção às suas situações nacionais e políticas internas. A sua entrega procurou
conjuntamente reforçar a sua posição contra uma potencial reivindicação por parte dos países do Anexo I
(Lessels, 2013).
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com uma certa autonomia. Assim, com a conformação do BASIC, estes países foram
capazes de abrandar, ou pelo menos reduzir, a velocidade das transformações dentro da
estrutura da governação climática global. Através desta ação conjunta, os membros
BASIC conseguiram manter o CBDR-RC, mesmo na transformação dos compromissos de
um modelo de cima para baixo para uma abordagem de baixo para cima (Albuquerque,
2019).
Como um inquirido salienta, o CBDR-RC continuou a ser um princípio defensivo, apesar
das transformações:
"Assim, no início dessas discussões, havia ... o governo brasileiro usou muito
disso para dizer que o ia fazer nada, que ia esperar por vários
momentos. Por exemplo, o governo brasileiro disse por vezes ... quantos
países desenvolvidos não publicaram os seus inventários de emissões, nós
também não vamos publicar, quantos países não enviam as suas
contribuições, aqueles países desenvolvidos com obrigações de Quioto, nós
também não vamos fazer, e com o tempo o governo brasileiro tornou-se
menos ... tornou-se um pouco mais flexível, lembra-se sempre desse
princípio, mas de certa forma relaxou um pouco…”
8
De 2005 a 2010, o Brasil continuou a reforçar a sua posição no seio do G77+China; onde
ainda era a referência em relação aos temas científicos das negociações, mas também
procurou aumentar a sua influência construindo a ideia de que o Brasil, embora um país
em desenvolvimento, poderia ajudar na transferência de tecnologia e conhecimento para
os países menos desenvolvidos no quadro dos programas de cooperação Sul-Sul e
regional (Lessels, 2013):
"(...) (Brasil) foi pioneiro no desenvolvimento tecnológico mundial de
alternativas energéticas limpas, tais como o etanol, combustível à base de
álcool. Estamos dispostos a partilhar esta experiência com outros países,
especialmente com os nossos países-irmãos em desenvolvimento"
9
.
"(...) e estamos dispostos a partilhar esta tecnologia com outros países em
desenvolvimento em África, Ásia, América Latina e Caraíbas"
10
.
" Também temos sido capazes de criar programas de cooperação Sul-Sul para
a transferência de tecnologia"
11
.
8
Excerto da entrevista com André Rocha Ferretti (Observatório do Clima), por videoconferência, a 15 de
agosto de 2016.
9
Luis Rebelo Fernandes, Secretário-Geral do MCT, excerto do discurso proferido na COP 12, Nairobi, 2006.
Citação extraída de Lessels (2013).
10
Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores, excerto do discurso proferido na COP 13, Bali 2007. Citação
extraída de Lessels (2013).
11
Izabella Mônica Teixeira, Ministra do Meio Ambiente, excerto do discurso proferido na COP 16, Cancun 2010.
Citação extraída de Lessels (2013).
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
Christopher Kurt Kiessling, Agustina Pacheco Alonso
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"Não a vamos excluir (a ideia de transferir financiamento para países menos
desenvolvidos). o é um problema para o Brasil contribuir para outros
países. No entanto, é evidente que o principal fardo não pode ser para os
países emergentes"
12
.
Na COP 15 em Copenhaga, em 2009, o Brasil demonstrou uma vontade de ajudar a
financiar os programas de adaptação e mitigação para os países menos desenvolvidos.
Nas palavras de Luís Inácio Lula da Silva:
"Se houver outro sacrifício a ser feito, o Brasil está disposto a colocar dinheiro
também para ajudar outros países. Estamos dispostos a participar no
financiamento se, nesta reunião, chegarmos a acordo sobre uma proposta
final"
13
.
Ao mesmo tempo, o governo brasileiro, como um todo, tanto o MMA como o Itamaraty,
começaram a ser muito mais recetivos às instâncias e espaços facilitadores da
participação da sociedade civil organizada.
Em 2009, o Brasil anunciou na COP15 que iria tomar medidas de mitigação voluntárias
para reduzir os GEE. Com base nesta decisão brasileira, foram desencadeadas algumas
preocupações no seio da coligação BASIC e de alguns países do G77+China, pois poderia
levar a uma procura crescente de esforços mais significativos por parte dos países em
desenvolvimento e a uma pressão substancial sobre a ideia de objetivos obrigatórios para
os países BASIC. Contudo, o Itamaraty sustentou que a redução voluntária de emissões
fazia parte de uma decisão nacional que não estava legalmente associada a qualquer
acordo da UNFCCC e, portanto, não implicava que os outros membros da coligação BASIC
fizessem o mesmo; uma vez que a segunda via aberta depois de Bali podia permitir esta
alternativa (Lessels, 2013).
No entanto, esta definição não foi necessariamente partilhada por todo o governo
brasileiro. Assim, a interpretação do MMA sobre o processo de adoção de objetivos
voluntários pode ser entendida a partir das palavras de um entrevistado:
“Só aqui, mesmo essa posição (a tradicional posição brasileira sobre as
alterações climáticas) em 2005, 2006, teve um peso hegemónico no governo,
foi sustentada várias vezes por Lula. Com o lançamento do relatório do IPCC,
o documentário de Al Gore, os movimentos internos, a informação de que as
emissões do mundo em desenvolvimento, Índia, China, Brasil passaram a ser
equivalentes às emissões dos países do Norte, que o Brasil foi para
Copenhaga com uma mudança bastante expressiva, e chegou com propósitos
voluntários. Isto tem a ver com o movimento político geral de Lula, com base
no alinhamento da China com os EUA. Quando a China se alinha com os
Estados Unidos, Lula fez uma inflexão em relação a Sarkozy e à UE e relaxou
12
Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores, entrevista com O Globo a 14 de outubro de 2009. Citação
extraída de Lessels (2013).
13
Luís Inácio Lula da Silva, Presidente da República do Brasil, 2009, COP 15, Copenhaga. Citação extraída de
Lessels (2013).
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
Christopher Kurt Kiessling, Agustina Pacheco Alonso
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em dois pontos em que o Brasil era absolutamente inflexível: a aceitação dos
objetivos e a aderência à proposta da Organização Mundial do Ambiente a
que o Brasil sempre resistiu até 2006, embora com Marina Silva tenhamos
defendido que o governo deveria mudar a sua posição. Lula muda e torna-se
o principal Chefe de Estado em Copenhaga... foi um processo evolutivo de
2003 a 2007..."
14
.
Desta forma, observa-se que no governo brasileiro começou a emergir e a coexistir com
a interpretação clássica do CBDR-RC, uma abordagem mais próxima da posição ocupada
pela sociedade civil na altura (Kiessling, 2019); isso acabaria por questionar a visão
tradicional do Itamaraty sobre a responsabilidade do Brasil na mitigação das alterações
climáticas. Este processo será desenvolvido em maior detalhe na próxima secção.
Interpretação progressiva do princípio: as responsabilidades que
podemos assumir
A partir de 2003, com a chegada de Marina Silva ao MMA, a hegemonia do MRE e do MCT
sobre o assunto foi quebrada. Novas vozes o permitidas na esfera de discussão que
privilegiaram os aspetos ambientais das alterações climáticas em relação à interpretação
tradicional do Itamaraty sobre a questão como um problema de desenvolvimento e
utilização de energia (Kiessling, 2018). A participação de outras vozes no governo
brasileiro continuou a crescer, fazendo um grande discurso com o Comité Interministerial
para as Alterações Climáticas (ICCC) através do Decreto nº 6263/07. O ICCC é
coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e é composto por dezassete
agências federais estruturadas sob um Grupo Executivo (EG) coordenado pelo Ministério
Meio Ambiente e composto por oito ministérios e pelo Fórum Brasileiro de Mudanças
Climáticas. O CIM, através do EG, elaborou em 2008 e 2009, respetivamente, o Plano
Nacional sobre Mudança do Clima e a Política Nacional sobre Mudança do Clima Assim, a
caracterização da CBDR-RC começa a ser reinterpretada dentro do próprio governo de
uma forma que centra a sua atenção no caráter comum das responsabilidades e não no
seu caráter diferenciado. Esta norma começa então a ser abordada mais proativamente
(as responsabilidades que podemos assumir) do que de uma forma defensiva
(responsabilidade histórica) (Kiessling, 2018).
A transição de responsabilidade do MCT para o MMA, no que diz respeito à liderança na
questão, ocorreu gradualmente e continuou de 2005 a 2009-2010. Os negociadores
brasileiros nas COP continuaram a ser funcionários do MCT, o obstante pretenderem
manter a tradicional posição brasileira sobre as alterações climáticas, apesar de sofrerem
pressões tanto das mudanças internas que estavam a ter impacto na posição oficial do
país como das transformações que estavam a ocorrer no âmbito das próprias negociações
internacionais. Por outro lado, como indicado por Lessels (2013), a equipa técnica do
MCT, pouco a pouco, começou a perder poder e influência dentro da delegação. A partir
de 2010, o MCT quase não participa nos processos de tomada de decisão sobre as
14
Excerto da entrevista conduzida por Asher Lessels em 14 de outubro de 2011 com um alto funcionário do
Ministério do Meio Ambiente brasileiro responsável por liderar a delegação brasileira na COP 9.
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Responsabilidades comuns, mas diferenciadas relativamente às alterações climáticas. Diferentes
interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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alterações climáticas, tendo encerrado quase todas as operações relacionadas com a
agenda climática. No entanto, o MCT manteve, dentro das suas competências,
responsabilidade em relação às Comunicações Nacionais do Brasil à UNFCCC e à gestão
dos projetos MDL, a autoridade reguladora e de supervisão desta matéria.
Relativamente ao MMA, como Lessels (2013) indica, provavelmente a preocupação mais
significativa para Marina Silva não era tanto a questão da mudança climática em si,
mesmo sendo Marina uma ambientalista, mas que as negociações da UNFCCC foram
apresentadas como uma oportunidade para forçar mudanças no desempenho do país no
que respeita à gestão florestal. Marina Silva estava convencida de que era necessário
que o Brasil estabelecesse abertamente uma forte ligação entre clima e floresta e
promovesse a ideia de que responsabilidades comuns, mas diferenciadas não
significavam que o Brasil não tivesse responsabilidades (Lessels, 2013). Assim, no início
de 2005, o MMA tinha quebrado a associação e identificado as alterações climáticas
exclusivamente como uma questão de utilização de energia. Sob a direção de Marina, o
MMA abriu também o primeiro departamento ministerial dedicado às alterações
climáticas, dando ao ministério capacidades para abordar políticas sobre o assunto.
Esta mudança teve uma enorme importância nos anos seguintes, uma vez que, embora
as interpretações da norma no seio do governo brasileiro permanecessem abertas, uma
interpretação proativa da CBDR-RC, associada às responsabilidades que o Brasil pode
assumir com base nas suas capacidades, foi o protagonista nos debates governamentais.
Para se adotar tal interpretação, anteriormente, era necessário que as alterações
climáticas fossem enquadradas como uma responsabilidade conjunta da Humanidade,
em que as capacidades atuais dos Estados o o padrão necessário para estabelecer
objetivos de mitigação e não o seu status institucionalizado como um país desenvolvido
ou em desenvolvimento.
Esta posição foi acompanhada pela sociedade civil organizada e pelo setor académico
que trabalharam neste problema, que foram favoráveis, ao longo deste processo de
reinterpretação da norma, a que o Brasil mudasse a sua política interna e externa em
matéria de alterações climáticas para assumir compromissos de redução dos GEE
(Kiessling, 2019). Neste sentido, vale a pena mencionar a existência de um
microprocesso de socialização intracaso, que não envolveu atores internacionais, mas
teve um impacto significativo na socialização dos atores estatais. Com a chegada de Lula
da Silva à Presidência do Brasil, especialmente o Ministério do Meio Ambiente iniciou um
processo de contratação de pessoal especializado, o qual, em certa medida, teve impacto
nas agendas, políticas, visão e capacidades do ministério. Como indica um entrevistado:
"... fui lá em 2004, mais até 2003 (o MMA) tinha um corpo técnico minúsculo.
(...), com a chegada de Marina Silva, trouxe muitos profissionais que atuavam
no terceiro setor para compor a equipa do Ministério e lá fez o primeiro
concurso, para análise ambiental, fez o concurso para (...), que foi o que eu
fiz, trabalhei lá, e a partir daí começou a construir aquele corpo técnico do
Ministério que não existia antes. E as pessoas que estavam livres no mercado
para trabalhar nessa questão são as pessoas que vieram do terceiro setor,
que estavam no terceiro setor e que foram ao Ministério para fazer essa
transição, para construir, para ajudar a construir esse próprio corpo técnico.
Então, não (o MMA) tinha muitas alianças com o setor privado e com o
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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172
terceiro setor, mas tinha muitas pessoas que eram do terceiro setor e que
tinham ido ao Ministério para ajudar nessa construção..."
15
Discussão e resultados
Como o discurso interno sobre as alterações climáticas estava a ressignificar e a
questionar a centralidade da CBDR-RC na interpretação do Itamaraty, este movimento
foi acompanhado pelo aparecimento de um número crescente de agências
governamentais que formulavam opções consistentes com a CBDR-RC. Como
argumentado na literatura, este sinal mostra a importância crescente de uma norma
internacional num contexto doméstico (Cortell & Davis, 2000; Kiessling, 2021).
O objetivo geral do programa era identificar, planear e coordenar as ações e medidas
que poderiam ser empreendidas sobre a mitigação e adaptação às alterações climáticas.
Assim, em primeiro lugar, deve ser destacada a formulação do Plano Nacional sobre
Mudança do Clima em 2007. Este plano foi apresentado como um quadro relevante para
a integração e harmonização das políticas públicas relativas ao tema. A importância do
plano reside no pressuposto de que este plano representa uma transição no
posicionamento do governo do Brasil: de uma identificação do país como país em
desenvolvimento, e não do Anexo I, para uma posição definida pelo objetivo de começar
a planear ações voluntárias de mitigação e adaptação através da identificação de
oportunidades de mitigação económica
16
.
Contudo, os "postulados da norma" e os seus significados também foram contestados no
seio do próprio governo do Brasil, entre uma visão das alterações climáticas como um
problema da Humanidade como um todo, como um problema económico de
externalidades e como um problema nacional de desenvolvimento e utilização da energia.
A nível federal, foi apresentado ao Congresso do Brasil em 2008 um projeto de lei que
abriu um debate no Congresso, que começou a acelerar em meados de 2009, quando o
governo brasileiro começou a sinalizar que iria adotar metas de redução de emissões em
Copenhaga
17
. Esta proposta foi baseada num projeto feito pelo Observatório do Clima.
Foi apoiado pelo Executivo tornando-se a base da lei que foi finalmente sancionada e
mesmo mantendo extratos do projeto original do Observatório do Clima.
Isto representa a institucionalização de mecanismos de cooperação entre atores estatais
e não estatais para consolidar a norma no contexto doméstico. Esta cooperação pré-
existiu à sanção da lei climática. Contudo, aumentou significativamente entre 2007 e
2009 através da convergência dos atores blicos, privados e do terceiro setor para a
definição da exigência de uma abordagem de regulação nacional das alterações
climáticas que transcenderia a interpretação da CBDR-RC como responsabilidades
históricas.
15
Excerto da entrevista com Beatriz Martins em São Paulo no dia 26 de setembro de 2016.
16
Os setores identificados como oportunidades de atenuação serão a base dos futuros planos setoriais
definidos pela Política Nacional em 2009.
17
O Itamaraty confirma que o Brasil terá um objetivo contra o aquecimento global. Folha de São Paulo
08/12/2009 (https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2009/08/608523-itamaraty-confirma-que-brasil-
tera-meta-contra-aquecimento.shtml). Última consulta online: 09/09/2021.
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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Após um processo de negociação no seio do Governo, o Senado brasileiro aprovou a
Política Nacional sobre Mudança do Clima a 25 de novembro de 2009. No final de 2009,
Carlos Minc conseguiu organizar uma série de pequenas reuniões onde os atores mais
importantes do Governo se reuniram para discutir as possíveis reduções voluntárias de
emissões de GEE do Brasil. Nestas quatro reuniões privadas no Palácio do Planalto em
Brasília estiveram presentes, entre outros, Lula, Presidente da República; Dilma
Rousseff, Chefe da Casa Civil da Presidência; Carlos Minc, Ministro do Meio Ambiente;
Sergio Rezende, Ministro da Ciência e Tecnologia; e Celso Amorim, Ministro das Relações
Exteriores (Lessels, 2013). No final da terceira reunião, os atores políticos convergem a
favor da adoção de objetivos voluntários anunciados. Depois, formalmente, a Política
Nacional sobre Mudança do Clima foi aprovada e sancionada como lei pelo Presidente da
República em 20 de dezembro de 2009
18
. Esta política anuncia reduções entre 36,1% e
38,9% relativamente aos níveis de emissões previstos para 2020 num cenário de BAU.
“Assumimos um compromisso, e aprovámo-lo no Congresso Nacional,
transformando em lei o facto de o Brasil, até 2020, reduzir as emissões de
gases com efeito de estufa de 36,1% para 38,9% com base no que
consideramos importante: mudança no sistema agrícola brasileiro; mudança
no sistema siderúrgico brasileiro, mudança e melhoria da nossa matriz
energética, que é uma das mais limpas do mundo; e assumimos o
compromisso de reduzir o desmatamento da Amazónia em 80% até 2020"
19
.
Assim, com a promulgação da lei em dezembro de 2009, pode observar-se que os dois
indicadores que Cortell e Davis (2000) reconhecem para analisar empiricamente esta
institucionalização foram cumpridos; nomeadamente, as mudanças no discurso nacional,
bem como as modificações nas instituições e nas políticas estatais (Cortell & Davis,
2000).
Reflexões finais
Este artigo descreveu as modalidades segundo as quais o princípio das Responsabilidades
Comuns, mas Diferenciadas foi internalizado e localizado na política nacional brasileira.
Ficou demonstrado que esta norma foi rapidamente adotada pela diplomacia brasileira
para evitar que o Brasil adotasse metas vinculativas de redução de gases com efeito de
estufa. Em termos gerais, por volta do ano 2003, com a chegada de Marina Silva ao
Ministério do Meio Ambiente, esta norma começa a ser reinterpretada dentro do próprio
governo de uma forma que centra a sua atenção na natureza partilhada de
responsabilidades e o no seu caráter diferenciado. Neste sentido, abordagens mais
proativas do princípio (as responsabilidades que podemos adotar) começaram a ganhar
tração versus abordagens defensivas (responsabilidades históricas). Esta reinterpretação
da norma atingiu um ponto alto em 2009 com a promulgação da lei das alterações
18
O Presidente Lula vetou três artigos da lei original numa ação que alguns observadores interpretaram como
uma defesa do setor petrolífero (Por exemplo https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2009/12/672320 -
lula-must-sanction-lei-do-clima-mas-protects-setor-do-petroleo.shtml).
19
Luis Inácio Lula da Silva, Presidente da República do Brasil, 2009, Excerto do discurso proferido na COP 15,
Copenhaga. Citação extraída de Lessels (2013).
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interpretações dentro do contexto nacional brasileiro
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climáticas e a adoção de compromissos voluntários por parte do governo brasileiro. No
entanto, esta reinterpretação não foi consolidada como hegemónica dentro do país,
principalmente devido ao Itamaraty ter uma interpretação mais rígida da norma
20
.
Desde então, a política climática e de governação do Brasil sofreu grandes mudanças,
principalmente devido a dois marcos significativos, a assinatura e entrada em vigor do
Acordo de Paris e a ascensão ao poder de Jair Bolsonaro.
Com a assinatura do Acordo de Paris em 2015 e a sua subsequente entrada em vigor em
2016, o CBDR-RC sofreu transformações que reduziram a sua centralidade como princípio
orientador da governação climática global. No entanto, na arena nacional, os debates em
torno das diferentes interpretações do princípio tornaram-se mais uma vez relevantes na
elaboração da Contribuição Nacionalmente Determinada.
Alguns anos mais tarde, a subida ao poder de Jair Bolsonaro significou retrocessos na
ambição e robustez da política climática brasileira. Tanto em termos discursivos como
nas medidas que foram tomadas, a posição do novo governo sobre a crise climática
significou o desmantelamento das regulamentações ambientais, o desaparecimento da
questão da agenda governamental e o espaço para a liderança na ação climática por
atores não estatais - a nível interno - e de outros países - a nível regional -.
Assim, a investigação futura poderia abordar as seguintes questões decorrentes deste
artigo: 1) Como é que a assinatura do Acordo de Paris influenciou as discussões e debates
internos brasileiros sobre o CBDR-RC? 2) Como é que esta interpretação do CBDR-RC
pelo Ministério das Relações Exteriores influenciou as possibilidades de exercer a
liderança regional brasileira sobre as alterações climáticas? Além disso, 3) Como é que a
localização influenciou a chegada ao governo de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 e o
processo de contestação dos regulamentos de proteção ambiental?
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De 2009 a 2012, ambas as interpretações coexistiram e permaneceram em disputa na implementação dos
objetivos da Política Nacional sobre Mudança do Clima e na elaboração dos planos setoriais, funcionando
como base discursiva da futura proposta brasileira dos "círculos concêntricos" no ano de 2014.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
177
PATENTES FARMACÊUTICAS E DIREITO À SAÚDE PORTUGAL E BRASIL
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
rbahamonde@autonoma.pt
Professor Associado do Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal).
Coordenador e Investigador Integrado do Ratio Legis Centro de Investigação e
Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa
[Projeto: Autotutela e realização do Direito Privado].
.
Resumo
A defesa da legitimidade do sistema de patentes, nomeadamente no domínio farmacêutico
está consolidada, pese embora não isenta de críticas. Historicamente, quando confrontado o
direito da patente, um direito de monopólio legal, com o direito de acesso à saúde, onde se
inclui o direito aos medicamentos necessários ao seu cuidado, são escassos e fracos os
mecanismos que se conseguiram estatuir, não obstante se lhe deva reconhecer o devido
mérito, na procura de equilíbrio entre o direito exclusivo do titular do monopólio legal e o
direito da coletividade ao acesso generalizado a medicamentos necessários para concretizar
o direito à saúde. No contexto atual da doença covid-19, em que está em causa o acesso à
saúde de todos os países, ricos e pobres, parece que existe maior vontade em fazer prevalecer
o direito à saúde do que o direito de propriedade do titular de uma patente farmacêutica.
Palavras-chave
Patentes farmacêuticas; direito à saúde; acesso a medicinas essenciais
Como citar este artigo
Delgado, Ruben Bahamonde (2022). Patentes farmacêuticas e direito à saúde Portugal e
Brasil. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, 1, Maio-Outubro 2022.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.13.1.11
Artigo recebido em 29 Setembro 2021 e aceite para publicação em 18 Fevereiro 2022
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 177-195
Patentes farmacêuticas e direito à saúde Portugal e Brasil
Ruben Bahamonde Delgado
178
PATENTES FARMACÊUTICAS E DIREITO À SAÚDE
PORTUGAL E BRASIL
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
Introdução
A problemática resultante do confronto entre o direito à saúde e o direito de propriedade
industrial não é nova, nem exclusiva da realidade luso-brasileira, mas os novos desafios,
nomeadamente os resultantes da covid-19, impõem uma maior e melhor clarificação
desse confronto
1
. Com efeito, o tradicional paradigma da interação entre o direito à saúde
e a propriedade industrial que tem por objeto medicamentos, tem-se focado no confronto
de interesses entre países ricos ou desenvolvidos, onde existem diversas empresas
detentoras de patentes farmacêuticas, e países pobres ou menos desenvolvidos, nos
quais existem poucos meios económicos e financeiros para garantir o acesso a tais
medicamentos e onde se verificam problemas de saúde graves e de ampla magnitude.
No atual contexto, podemos afirmar que a covid-19 veio nivelar as economias estaduais,
na medida em que se verifica que muitos países tradicionalmente considerados ricos ou
desenvolvidos não dispõem da propriedade industrial necessária para produzir um
medicamento/vacina para tratamento da covid-19, ficando assim dependentes das
soluções que venham a surgir no mercado, obviamente protegidas pela propriedade
industrial, para poder providenciar atempada e adequadamente aos seus cidadãos o
acesso à saúde. Nestes casos, apesar de os países em causa terem meios para adquirir
os medicamentos protegidos por patentes, os mesmos poderão não estar disponíveis nas
quantidades, preços e datas desejadas. Esta situação permite constatar um cenário de
elevados preços de venda das soluções encontradas, protegidas por patentes
farmacêuticas, assumindo que o normal e livre funcionamento do mercado permitirá ter
acesso a tais soluções, em primeiro lugar, àqueles países que estejam em melhores
condições de pagar um maior preço, relegando assim para um segundo plano aqueles
outros países que disponham de menores recursos económicos. A covid-19 não é o
VIH/SIDA, nem a bronquite, nem a tuberculose, esta afeta a todas as camadas da
sociedade em todas as sociedades de todos os países do mundo em quantidades muito
preocupantes e sem que exista um padrão de prevenção/proteção muito claro em termos
de eficácia.
1
A covid-19 é o nome oficial da doença provocada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2
(SARS-CoV-2), identificada pela primeira vez em 2019, e que neste trabalho referiremos apenas como
covid-19. https://www.volp-acl.pt/index.php/item/covid-19.
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O problema não é novo, mas o facto de que no atual contexto seja afetado um
significativo maior número de seres humanos pertencentes também a países ricos ou
mais desenvolvidos, deve gerar uma maior pressão/disponibilidade para afrontar esta
situação com outra perspetiva.
As patentes no contexto internacional
As patentes têm por objeto invenções e consistem num direito de exclusivo ou
monopólios legais conferidos pelas entidades correspondentes a quem os requerer,
sempre e quando se verifiquem os requisitos legais habilitadores para o efeito
(Bahamonde, 2016: 163-167). Nomeadamente, para que possa ser conferida esta
proteção a uma invenção será necessário que se cumpram cumulativamente os requisitos
da novidade, da capacidade inventiva e da aplicação industrial
2
. As invenções para as
quais se pode solicitar a proteção de uma patente podem recair sobre objetos, uma
determinada substância ou um dispositivo, ou podem recair sobre procedimentos, onde
o que se protege não é o resultado, mas sim a sequência de passos realizados para
alcançar esse determinado resultado.
Neste contexto, as invenções que tenham por objeto medicamentos ou procedimentos
específicos para obter substâncias úteis para o tratamento de doenças também são
passíveis de beneficiar da proteção conferida pelo sistema de patentes.
O sistema de patentes carateriza-se por ser de base nacional, i.e., a patente é concedida
pela autoridade competente de um estado e tem validade para esse estado. No entanto,
devido ao importante papel que as patentes desempenham no tráfego jurídico
económico, e em concreto para o desenvolvimento dos mercados tendencialmente
caracterizados pela necessidade de promover o seu crescimento mediante a
internacionalização e globalização, surgiu a necessidade de homogeneização desta
matéria. Assim, pode-se afirmar que a primeira positivação do interesse de criar um
sistema que permitisse homogeneizar o tratamento do sistema de patentes foi através
da Convenção da União de Paris de 1883 (CUP)
3
. Sem pretender fazer um tratamento
exaustivo do normativo referido, cumpre salientar as suas principais caraterísticas
relacionadas com o nosso tema. Neste sentido, foi consagrada a prioridade unionista
(artigo 4º/C-1), a possibilidade de concessão de licenças obrigatórias perante o exercício
abusivo do direto exclusivo conferido pela patente (5ºA-2) e a possível introdução da
caducidade da patente como medida subsidiária ao sistema de licenças obrigatórias (5ºA-
3).
4
Muito mais recentemente no Ato Final de Marraquexe de 1994, que consignou os
resultados das negociações do Uruguay Round, no âmbito da Organização Mundial do
2
Em Portugal vid. Artigo do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro que aprovou o novo Código
da Propriedade Industrial. No Brasil vid. Artigo da Lei n.º 9.297, de 14 de Maio de 1996, diploma que
regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
3
Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 20 de março de 1883, modificada por
última vez em 2 de outubro de 1979 disponível em
https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_201.pdf.
4
A ação de caducidade apenas pode ser intentada decorridos dois anos após a concessão da primeira licença
obrigatória. No que respeita às licenças obrigatórias, com fundamento na fala ou insuficiência de exploração,
estas não podem ser solicitadas antes de expirar o prazo de quatro anos a contar da apresentação do pedido
de patente, ou de três anos a contar da concessão da patente, devendo aplicar-se o prazo mais longo (5ºA-
4).
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Comércio (OMC), e teve os seus precedentes no Acordo Geral sobre Taxas Alfandegárias
e Comércio (GATT)
5
, foi adotado o Acordo sobre Direitos de Propriedade Industrial
relacionados com o Comércio (ADPIC), nas suas siglas inglesas (TRIPS). Sendo o escopo
principal do mencionado acordo a adoção de medidas e procedimentos que permitam a
redução das distorções ao comércio internacional relacionadas com a eficaz tutela dos
direitos de propriedade intelectual, não deixa porém, de reconhecer-se expressamente
as necessidades especiais dos países signatários menos adiantados, exigindo-se nestes
casos, uma aplicação mais flexível das normas em causa para que assim possa ser criada
uma base tecnológica viável. Neste contexto, o acordo estabelece a possibilidade de que
os países signatários possam excluir a patenteabilidade das invenções cuja exploração
comercial no seu território deva ser impedida para proteger a saúde ou a vida das
pessoas e dos animais, e ainda se prevê a possibilidade de utilização da patente
concedida sem o consentimento do titular em situações de emergência nacional
6
.
Apesar dos mecanismos referidos, as relações entre a indústria farmacêutica e os Estados
signatários, nomeadamente aqueles menos evoluídos em termos de titularidade de
direitos de propriedade industrial no âmbito farmacêutico, foram incrementando a tensão
entre a tutela da propriedade e o direito à saúde que os Estados devem acautelar aos
seus cidadãos. Neste contexto, surgiu em 14 de novembro de 2001 a Declaração de
DOHA relativa ao acordo ADPIC e à saúde pública
7
. Na base desta declaração encontrava-
se a gravidade dos problemas de saúde pública que afetavam muitos países em
desenvolvimento, com especial relevância para o VIH/SIDA, a tuberculose, o paludismo
e outras epidemias, nomeadamente no Brasil, na Árica do Sul e na Índia (Orsi, 2007:
1997-2003; Polônio, 2006: 68; Cullet, 2003: 147-154). Não obstante ser reconhecida a
relevância fundamental da proteção da propriedade intelectual para o desenvolvimento
de novos medicamentos, também se sublinha a legitimidade de os Estados Membros
adotarem medidas dirigidas à proteção da saúde pública, impondo a obrigação de que o
acordo ADPIC seja interpretado no sentido de apoiar o direito dos Membros da OMC de
proteger a saúde. O documento reitera a possibilidade para os Estados de conceder
licenças obrigatórias e o direito destes a determinar o que constitui, em cada caso, uma
emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência. Para evitar maiores
confusões, reconhece-se especificamente que as crises de saúde pública, aqui incluídas
as relacionadas com VIH/SIDA, a tuberculose, o paludismo e outras epidemias, podem
representar uma emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência
8
. Por
último, e como elemento mais relevante deste documento, destaca-se ainda o
reconhecimento da ineficiência do sistema de licenças obrigatórias quando estão em
causa países cujas capacidades de fabrico no sector farmacêutico são insuficientes ou
inexistentes, o que necessariamente conduzirá a soluções mais criativas neste tipo de
5
General Agreement on Tariffs and trade estabelecido em 1947, que através da ronda de Uruguay deu origem
em 1994 à Organização Mundial do Comércio (Declaração de Marraquexe de 15 de abril de 1994) Para mais
informação consultar https://www.wto.org.
6
O n.º 2 do artigo 27º do ADPIC exige que este desvio à regra além de ser amparado pela correspondente
legislação, tem de ser fundamentado nos motivos previstos para tutela entre outros, da referida saúde.
Complementarmente, e sem prejuízo da proteção da invenção através de patente, o artigo 31º estabelece
diversas situações em que o direito em causa pode ser utilizado por terceiros sem a autorização do titular,
nomeadamente, a alínea b) refere as situações de emergência nacional ou em situações de extrema
urgência ou nos casos de utilização pública não comercial.
7
Conferência Ministerial da OMC (DOHA,2001): OS ADPIC, WT/MIN/(01)DEC/2, de 20 de novembro de 2001,
disponível em https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min01_s/mindecl_trips_s.htm
8
Vid. alínea c) do ponto 5 da Declaração relativa ao acordo ADPIC e a saúde pública.
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situações (Pontes, 2017: 49). Para tentar colmatar esta dificuldade, após a Declaração
de DOHA foram adotadas diversas decisões no sentido de permitir importar
medicamentos genéricos mais baratos fabricados ao amparo de licenças obrigatórias no
caso dos países importadores o serem capazes de os fabricar eles próprios. Assim,
eximiram-se aos países exportadores as obrigações decorrentes da alínea f) do artigo
31º do ADPIC, permitindo a qualquer país Membro exportar produtos farmacêuticos
genéricos fabricados sob licenças obrigatórias para satisfazer as necessidades dos países
importadores, sempre que sejam cumpridas determinadas condições
9
. Em 2017 foi
decidido aditar o artigo 31 Bis ao Acordo, permitindo por esta via que os países
importadores pudessem distribuir o medicamento importado sob licença em países
pertencentes a um mesmo espaço económico e que estivessem perante a mesma
situação de emergência sanitária
10
. Seguindo este caminho, também a União Europeia
tem procurado clarificar a problemática do fornecimento de medicamentos genéricos
fabricados com recurso a licenças obrigatórias quando os seus Membros são Estados com
problemas de saúde pública (Fernández-Nóvoa, 2017: 201-206)
11
.
É importante referir ainda que os problemas resultantes do exercício dos direitos
decorrentes das patentes farmacêuticas não se circunscrevem exclusivamente aos países
menos adiantados. Com efeito, no que diz respeito aos países mais avançados, e com
meios para produzir os medicamentos em causa, a questão coloca-se em termos de aferir
a partir de que momento podem ser utilizados os conhecimentos protegidos através de
uma patente farmacêutica, para dar início aos procedimentos de legalização necessários,
tendentes à produção e posterior comercialização de um medicamento genérico. Esta
temática deu lugar à conhecida “cláusula Bolar”, que se prende com a interpretação do
artigo 30º ADPIC e com a possibilidade amplamente contemplada nos ordenamentos
jurídicos, de permitir a utilização dos conhecimentos protegidos por patente para fins
experimentais ou de investigação
12
. A cláusula Bolar ultrapassa esta situação,
estabelecendo uma exceção que permite a utilização experimental de um produto
protegido por patente para realizar os trâmites administrativos necessários tendentes à
autorização de comercialização do produto genérico em causa tendo por base,
essencialmente, a exigência de resposta a necessidades sociais, nomeadamente a rápida
introdução de medicamentos acessíveis (Tudor, 2018: 300-308)
13
.
A par destes instrumentos, e colaborando na procura de soluções para os problemas
expostos, existem outras importantes organizações internacionais como a Organização
9
Decisão de 6 de dezembro de 2005 Alteração do Acordo TRIPS; Decisão de prorrogação do prazo para a
aceitação da alteração do Acordo TRIPS, 2015; Decisão sobre o pedido apresentado pelos países membros
menos desenvolvidos Obrigações ao abrigo do artigo 70.o, n.os 8 e 9, do Acordo TRIPS referentes a
produtos farmacêuticos, 2015 e Decisão sobre a prorrogação do período de transição, ao abrigo do
artigo 66.o, n.o 1, do Acordo TRIPS, para os países membros menos desenvolvidos em relação a
determinadas obrigações referentes a produtos farmacêuticos, 2015.
10
Vid. o artigo 31º Bis na integra, atualizado em março de 2020
https://www.wto.org/english/res_e/publications_e/ai17_e/trips_art31_bis_oth.pdf.
11
Regulamento (CE) n o 816/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, sobre a
concessão de licenças obrigatórias sobre patentes relativas ao fabrico de produtos farmacêuticos destinados
à exportação a países com problemas de saúde pública.
12
Vid. alínea c) do n.º 1 do artigo 103º do Código da Propriedade Industrial português e o inciso II artigo 43º,
da Lei n.º 9.297, de 14 de maio de 1996 que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial
no Brasil.
13
Em todo o caso, a mencionada cláusula não obsta a que seja preciso que a patente de base ou o certificado
complementário de proteção estejam caducados para poder iniciar a comercialização do produto genérico.
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Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)
14
ou a Organização Mundial da Saúde (OMS),
nomeadamente através da Comissão de Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e
Saúde Pública
15
, que com os seus estudos e recomendações, muitom contribuído para
a evolução do tratamento conferido às patentes farmacêuticas quando relacionadas com
o acesso ao direito à saúde em países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos.
A propriedade industrial, como um direito de propriedade ou como tutela da autoria de
criações, encontra fundamentação legal na Declaração Universal dos Direitos do Homem
de 1948, nomeadamente no artigo 17º relativo ao direito de propriedade e no n.º 2 do
artigo 2 relativo aos interesses morais e materiais dos autores
16
, e no Pacto
Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, (1966/1976) onde se
reconhece, no parágrafo c) do n.º 1 do artigo 15º, a proteção dos interesses dos
autores
17
. Neste último caso, deve referir-se que o Comité de Direitos Económicos,
Sociais e Culturais, na observação geral do artigo n.º 17, especifica na sua introdução a
necessidade de diferenciar os direitos humanos enquanto tal e os regimes de propriedade
intelectual, ficando claro que não devem ser equiparados os direitos de propriedade
intelectual com o direito humano reconhecido no parágrafo c) do n.º 1 do artigo 15º do
Pacto
18
. Para justificar tal posicionamento, entre outros argumentos, o Comité especifica
que os direitos humanoso fundamentais porque são inerentes à pessoa humana como
tal, entanto que os direitos de propriedade intelectual o, principalmente, meios
utilizados pelos Estados para estimular a criatividade e a inventividade, protegendo-se
através dos regimes de propriedade intelectual, nomeadamente, os investimentos
comerciais e empresariais. Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, de 2000, (Artigo 17º), tutela o direito de propriedade nos termos em que
era previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950
19
.
Cumpre ainda frisar que o tratamento das patentes a nível internacional tem merecido
amplo destaque, nomeadamente através do Tratado de Cooperação de Patentes, (PCT),
cujo objetivo consiste na simplificação dos procedimentos para obtenção da proteção das
invenções através de patente nos diversos Estados signatários. No atual contexto da
covid-19, a Secretaria Internacional da OMPI veio flexibilizar algumas normas,
nomeadamente interpretando como estando abrangida a atual situação de pandemia pela
tolerância de atrasos no cumprimento dos prazos do PCT
20
. A nível supranacional, temos
no contexto europeu a Convenção de Munique sobre a Organização Europeia de Patentes
(OEP) de 1973, cujo objetivo consiste também na simplificação dos procedimentos para
14
Vid. https://www.wipo.int/patent-law/en/developments/publichealth.html
15
Vid. https://www.who.int/intellectualproperty/en/
16
Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica,
literária ou artística da sua autoria.
17
Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa a (…) Beneficiar da
proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondem em virtude de produções científicas,
literárias ou artísticas de que seja autora.
18
UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 17: The Right of
Everyone to Benefit from the Protection of the Moral and Material Interests Resulting from any Scientific,
Literary or Artistic Production of Which He or She is the Author (Art. 15, Para. 1 (c) of the Covenant), 12
January 2006, E/C.12/GC/17. https://www.refworld.org/docid/441543594.html
19
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 04.11.1950)
introduziu através do seu protocolo adicional em 1952 o artigo relativo à proteção da propriedade
estabelece Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas
condições previstas na lei”.
20
Tratado de Cooperação de Patentes feito em Washington em 19.06.1970, modificado pela última vez em
30.10.2001. Vid. Regra 82 quater do PCT.
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obtenção da proteção das invenções nos Estados signatários e o muito mais ambicioso
projecto da Patente Europeia com efeito Unitário, onde o objetivo último seria criar um
único procedimento para a proteção em diversos Estados Membros de uma invenção
através de patente
21
.
Com esta contextualização resulta evidente que a tutela das invenções através de
patentes tem alcançado uma significativa homogeneização a nível internacional
promovida, principalmente, por interesses comerciais (Bahamonde, 2016: 167-171). No
entanto, como contraponto aos interesses comerciais, as normas analisadas também
estatuem uma clara preocupação com a tutela de interesses sociais, nomeadamente no
domínio da saúde, estando previstos diversos mecanismos para alcançar o desejado
equilíbrio entre todos os interesses em jogo.
As patentes no contexto nacional luso-brasileiro
Conforme se viu supra, sem ânimo exaustivo, existe um vasto tratamento internacional
da tutela das invenções, enquanto uma das tipologias de propriedade
industrial/intelectual
22
, pelo que os ordenamentos jurídicos nacionais, na sua maioria,
tendem a ser bastante homogéneos, nomeadamente no caso luso-brasileiro. Sem
prejuízo do exposto, resultará interessante para o nosso trabalho analisar os mecanismos
especificamente previstos em cada um dos ordenamentos jurídicos em causa, para
garantir certo equilíbrio no que diz respeito às patentes e outros interesses.
O Código da Propriedade Industrial (CPI) português estabelece, em linha com outras
codificações sobre a matéria, que podem obter-se patentes para quaisquer invenções,
quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que
sejam invenções novas, impliquem atividade inventiva e sejam susceveis de aplicação
industrial
23
. O n.º 5 do artigo 5do CPI pretambém a possibilidade de proteger uma
mesma invenção quer através de um pedido de patente, quer através de um pedido de
modelo de utilidade. No entanto, no que concerne ao específico campo da proteção dos
produtos ou procedimentos farmacêuticos, estabelece-se não poderem ser objecto de
modelo de utilidade as invenções que incidam sobre substâncias ou composições
farmacêuticas e sobre os processos farmacêuticos
24
. Assim, as invenções que recaiam
sobre produtos ou procedimentos farmacêuticos apenas poderão ser protegidos através
de patente, garantindo assim um mais rigoroso sistema para tutela destas invenções
(Sousa e Silva, 2011: 87-90).
25
21
Decisão 2011/167/UE do Conselho Europeu, de 10 de março de 2011, que autoriza uma cooperação
reforçada no domínio da criação da proteção de patente unitária. Regulamento (EU) n.º 1257/2012 do
Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada
no domínio da criação da proteção unitária de patentes e o Regulamento (EU) n.º 1260/2012 do Conselho
de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da proteção
unitária de patentes no que diz respeito ao regime de tradução aplicável e o Acordo Relativo ao Tribunal
Unificado de Patentes de 19 de fevereiro de 2013.
22
A propriedade intelectual refere de forma genérica os direitos de autor e a propriedade industrial
propiamente dita, pelo que ao tratar a matéria das patentes julgamos mais acertado utilizar o termo
propriedade industrial.
23
Vid. Artigo 1º do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro que aprovou o novo Código da Propriedade
Industrial.
24
Alínea d) do n.º 1 do artigo 121 do CPI.
25
Com efeito, as invenções tuteladas através do modelo de utilidade têm uma menor exigência de atividade
inventiva, o que se traduz numa proteção mais célere, mas ao mesmo tempo mais ténue e precária.
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O direito de monopólio legal conferido ao titular da patente não é absoluto e nessa linha
o legislador português estabeleceu diversos mecanismos para o limitar em situações de
justificado interesse. Conforme se viu supra, o direito conferido pela patente não permite
ao seu titular proibir os atos para fins de ensaio ou experimentais (103º/1/c), permitindo
assim que os conhecimentos protegidos e publicados possam imediatamente contribuir
para o desenvolvimento científico da respetiva área de aplicação. A alínea b) do mesmo
preceito também exclui dos poderes do titular da patente a possibilidade de impedir a
preparação de medicamentos feita no momento e para casos individuais ou os
procedimentos preparatórios. O artigo 108º do CPI prevê também a possibilidade de
concessão de licenças obrigatórias no caso de falta ou insuficiência de exploração da
invenção patenteada (109º), verificando-se dependência entre patentes (110º) e por
motivos de interesse público (111º). Neste último caso, a licença será conferida por
despacho do membro do Governo competente em razão da matéria, considerando-se
existir motivo de interesse público quando o aumento ou generalização da exploração da
invenção, ou a melhoria das condições em que tal exploração se realizar, sejam de
primordial importância para a saúde pública. Também se prevê a possibilidade de perda
ou expropriação da patente no caso de ter que responder por obrigações contraídas para
com outrem ou por utilidade pública, situação em que se aplicará o preceituado no Código
das Expropriações
26
.
Todas estas limitações resultam da ponderação entre a natureza do direito em causa e
aquela das outras áreas do direito onde se podem verificar fricções. É certo que a
qualificação do direito de propriedade industrial como direito de propriedade, i.e., no
âmbito do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o é pacífica na
doutrina, por consistir, no limite, um direito de propriedade sui generis. No entanto,
mesmo com especificidades, o certo é que o nosso ordenamento lhe reconhece esta
natureza, daí, que possa ser expropriado, o que corresponde a uma das limitações
possíveis do direito de propriedade. Por outro lado, este direito também poderia
encontrar tutela no âmbito do n.º 2 do artigo 42º CRP (Liberdade de criação cultural)
27
.
Neste sentido, sobre a ponderação da natureza do direito de propriedade industrial em
Portugal, máxime, quando confrontado com o direito à saúde pronunciou-se o Tribunal
Constitucional no acórdão n.º 216/2015, no sentido de que não obstante ser evidente a
tutela constitucional das patentes e dos direitos delas decorrentes, é inequívoco que as
mesmas cedem perante o direito fundamental da protecção da saúde
28
.
26
Vid. Artigo 107º CPI
27
Por um lado o n.º 2 do artigo 42º CRP é um direito fundamental que goza da proteção reforçada do artigo
18º, sendo que o direito de propriedade estabelecido no artigo 62º CRP é um direito fundamental de
natureza análoga. Neste sentido, Vid. o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de
06.05.2010 no âmbito do processo n.º 06154/10, onde foi Relatora a Dra. Teresa de Sousa, a estabelecer
que O direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP, que abrange os direitos de propriedade
industrial, onde se incluem os direitos fundados em patentes de medicamentos, tem sido considerado um
direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias para efeitos de aplicação do
regime dos arts. 17º 18º da CRP”. Esta decisão resulta muito relevante porquanto foi proferida com o voto
de vencido do Dr. Benjamin Barbosa, cuja fundamentação veio a ser posteriormente confirmada pelo
acórdão do Tribunal Constitucional que infra se segue.
28
Acórdão n.º 216/2015 do Tribunal Constitucional, 2ª secção, proferido no âmbito do processo 207/2013. A
decisão em causa apreciou a constitucionalidade da Lei n.º 62/2011 de 12 de dezembro, no que dizia
respeito ao procedimento para a Autorização de Introdução no Mercado (AIM) e o Preço de Venda ao Público
(PVP) de medicamentos genéricos que pudessem violar uma patente. Neste procedimento, o INFARMED
não poderia avaliar a violação de uma patente anterior, pelo que poderia ser aprovada a comercialização
de um medicamento genérico apesar de se poder vir a demonstrar posteriormente que este violava um
direito anterior. Citando o Professor Paulo Otero, faz eco o aresto de que "a proximidade e a essencialidade
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Por sua vez, a Lei brasileira relativa à propriedade industrial também estabelece diversas
limitações ao direito do titular da patente nos mesmos moldes do ordenamento jurídico
português. Com efeito, o titular da patente não poderá impedir os atos praticados por
terceiroso autorizados, com finalidade experimental, relativos a estudos ou pesquisas
científicas ou tecnológicas (43º/II), nem impedir a preparação de medicamentos de
acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional
habilitado, bem como ao medicamento assim preparado (43º/II). Ocupa um papel central
neste conjunto de limitações a licença compulsória que poderá ser imposta quando se
verifique a o exploração do objecto da patente no território brasileiro, por falta de
fabricação ou fabricação incompleta do produto (68º §1/I) e quando a comercialização
do objecto ou processo protegido não satisfizer as necessidades do mercado nacional
(68º §1/I) e, bem assim, no caso de se verificar dependência entre patentes (70º). Por
último, em situações de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do
poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a
essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício uma licença compulsória
29
.
No que diz respeito à tutela constitucional das patentes no Brasil, cumpre assinalar a
maior clareza com que se exprimiu o constituinte brasileiro ao consagrar especificamente
no Título II da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), sobre os direitos e
garantias fundamentais, a garantia de que a lei asseguraaos autores de inventos
industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações
industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos
distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e
econômico do País”.
30
Ou seja, a carta magna brasileira encara diretamente a patente,
não como um direito de propriedade, mas como um privilégio temporário, supeditando a
atribuição e exercício do mesmo ao interesse social tecnológico e económico.
À primeira vista, podemos assinalar as seguintes diferenças relevantes entre o
ordenamento jurídico luso-brasileiro. No ordenamento jurídico português foi prevista
expressamente a possibilidade de expropriação do direito de patente quando
fundamentada por razões de utilidade pública, figura que não está prevista na Lei n.
9.279 de 14 de maio de 1999 (LPI) brasileira. Esta previsão avalia-se positivamente, por
lhe reconhecer uma função preventiva, permitindo aos titulares de patentes estarem
conscientes das graves consequências que podem advir de uma deficiente exploração do
seu direito, mas também por permitir mais facilmente justificar decisões drásticas em
situações limite, como as da atual pandemia, dentro do seu correspondente quadro
normativo
31
.
da garantia da saúde com a dignidade da pessoa humana, num modelo de Estado em que as pessoas valem
mais do que as coisas ou a propriedade, e o entendimento de que a limitação ou restrição dos direitos
exclusivos decorrentes de patentes traduzam ampliação da liberdade, num modelo de Estado que privilegia
a liberdade à propriedade, conduzem a uma solução constitucional abstrata que confere preferência à
posição que defende a introdução no mercado de medicamentos genéricos, isto face à posição de conteúdo
patrimonial defendida pelos titulares de patentes sobre medicamentos de referência.".
29
Matéria que foi desenvolvida pelo Decreto n.º 3.201, de 6 de outubro de 1999, que dispõe sobre a
concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de
que trata o art. 71 da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996.
30
Vid. inciso XXIX do artigo 5º da CRFB.
31
Apesar da bondade do preceito, no presente, desconhece-se qualquer situação em que o Estado Português
o tenha aplicado na prática.
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No Brasil, o legislador previu especificamente a possibilidade de concessão de licenças
compulsórias se o titular da patente exercer os direitos dela decorrentes de forma
abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder económico, comprovado nos termos
da lei, por decisão administrativa ou judicial (68º). Neste caso, não encontramos no CPI
português um preceito de natureza homóloga, talvez, porque a se verificar este
comportamento, encontrar-nos-íamos perante uma eventual situação de abuso de
posição dominante no âmbito do artigo 11º da Lei da Concorrência ou do artigo 102º do
Tratado de Funcionamento da União Europeia
32
. No entanto, sendo conhecida uma ampla
interação e/ou complementaridade (Pérez, 2018: 372-393; Bahamonde, 2016: 166-167)
entre o direito da propriedade industrial e o direito da concorrência, esta previsão no
ordenamento jurídico brasileiro parece-nos sistematicamente bem arrumada e
pertinente, porquanto reforça a segurança jurídica na aplicação deste mecanismo, ao
invés do que sucede em Portugal
33
.
Ambos os ordenamentos jurídicos centram o seu mecanismo de reação perante a falta
de utilização ou utilização insuficiente por parte do titular da patente, no domínio das
licenças obrigatórias ou compulsórias (Palmela, 2016). A respeito das mesmas, é
necessário não se ser muito animador com as perspetivas de futuro, pois na verdade, o
instituto nunca foi utilizado em Portugal, e no Brasil (EFAVIRENZ) foi apenas utilizado
uma vez
34
. No entanto, somos do entendimento de que a mera positivação da
possibilidade de proceder ao licenciamento obrigatório, permitirá que eventuais
negociações entre as partes envolvidas sejam mais transigentes.
O papel central das licenças obrigatórias
Do a aqui exposto resulta que as licenças obrigatórias/compulsórias constituem o
mecanismo mais comum para contrabalançar os eventuais desequilíbrios decorrentes do
direito de exclusividade conferido por uma patente farmacêutica
35
.
O regime das licenças compulsórias no Brasil e em Portugal, prevê fundamentalmente
duas modalidades no que diz respeito a patentes relacionadas com medicamentos. Em
primeiro lugar, uma licença obrigatória, que exige a verificação de utilização insuficiente
da invenção para abastecer o mercado nacional. Nestas circunstâncias, a norma
portuguesa exige previamente para a sua concessão que o solicitante tenha desenvolvido
esforços no sentido de obter do titular da patente uma licença contratual em condições
comerciais aceitáveis, e que tais esforços não tenham êxito dentro de um prazo razoável
(108º/3). Por sua vez, a norma brasileira exige que o solicitante tenha legítimo interesse
e capacidade técnica e económica para realizar a exploração eficiente do objeto da
patente (68º/§ 2º). Na verdade, estas duas redações coincidem na necessidade de
verificar que o solicitante é um candidato sério e que tem condições e empenho em
32
Lei n.º 19/2012, de 08 de maio, que estabeleceu o novo regime jurídico da concorrência.
33
Esta foi também a opção do legislador espanhol prevista no artigo 94º da Ley 24/2015, de 24 de julio, de
Patentes.
34
Através da publicação no Diário Oficial da União do Decreto n.º 6.108, de 04 de maio de 2007, que concedeu
o licenciamento compulsório, por interesse público, das patentes referentes ao EFAVIRENZ, para fins de
uso público não comercial.
35
Vid. artigos 30 e 31º do acordo ADPIC, artigo 109º do CPI e artigo 68º e ss. da Lei no 9.279, de 14 de maio
de 1996. No entanto, conforme se referiu supra, a sua utilização é muito escassa, pelo que é comum
afirmar-se que a sua previsão ficou muito aquém das expectativas que nela foram depositadas (Fernández-
Nóvoa, 2017: 197-206).
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utilizar a licença para abastecer o mercado. Em ambos os regimes se prevê que esta
licença seja o exclusiva, impassível de sublicenciamento, revogável, e remunerada.
36
Em segundo lugar temos as licenças compulsórias justificadas por situações de
emergência nacional ou interesse público em cujo caso são dispensados requisitos
prévios para a sua concessão. Nestas situações, o legislador brasileiro permite a
concessão de uma licença compulsória quando se verifique que, perante uma emergência
nacional ou por interesse público, o titular da patente não atenda essa necessidade
(Remédio, 2011: 399-400; Couto, 2005: 116-119). Por seu turno, o legislador português
exige também para a utilização desta medida um motivo de interesse público, no entanto,
diferencia-se do seu homólogo brasileiro por não se exigir que o proprietário explore
deficientemente a invenção, i.e., o titular da invenção pode estar a realizar todos os
esforços tendentes a explorar satisfatoriamente a invenção, e aestar a consegui-lo,
mas mesmo assim, por motivos de saúde pública, pode ser obrigado a conceder uma
licença obrigatória. Aparentemente, a norma portuguesa é um pouco mais restritiva do
que a norma brasileira, pese embora se conceda que uma interpretação extensiva desta
norma permita chegar ao mesmo entendimento no Brasil.
O sistema de licenças compulsórias luso-brasileiro resulta claramente de uma
“transposição” do artigo 31º ADPIC, decorrente da pertença, de ambos países à
Organização Mundial do Comércio. Na realidade prática em Portugal as licenças
obrigatórias não passaram do papel, na medida em que apenas são alvo de estudo
académico, pois até à presente data nunca foi aplicada nenhuma. Por sua vez, no Brasil
apenas se conta com uma situação concreta em que foi concedida uma licença obrigatória
(EFAVIRENZ). No entanto, no contexto global a realidade é mais animadora, pois
verifica-se que as licenças obrigatórias são mais utilizadas do que aquilo que geralmente
se pensa ou conhece. Com efeito, num estudo realizado na matéria, identificaram-se 81
licenças obrigatórias concedidas entre o período de 2001 a 2016, onde também se
incluem países desenvolvidos, e cujo fundamento resulta do elevado preço de
determinados medicamentos (Hoen, 2016: 186-187). Podemos assim concluir que as
licenças obrigatórias têm sido utilizadas de uma forma muito tímida, tendo potencialidade
para constituírem uma resposta adequada para ultrapassar as barreiras que as patentes
farmacêuticas podem supor para a concretização do direito ao acesso a medicamentos
e, por sua vez, ao direito à saúde. Adicionalmente, sempre se poderá defender que a sua
previsão legal atribui a este instituto uma utilidade preventiva e dissuasora de
comportamentos desviantes por parte do titular de uma patente, o que sem dúvida, tem
fomentado a concessão de licenças voluntárias.
A “recente” possibilidade de proteção dos medicamentos através de
patente
É importante salientar que quer o Brasil quer Portugal aderiram à OMC a 01.01.1995, e
que, até essa data, no Brasil não era permitida a proteção de medicamentos através de
36
Esta semelhança dos preceitos em análise resulta da imposição que decorre para os Estados do acordo
ADPIC, concretamente do seu artigo 30º.
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patentes (Nunes, 2009: 13-18). Com efeito, decorrente da sua adesão à OMC, a LPI, no
parágrafo único do artigo 229 do Titulo VIII, das disposições transitórias e finais dispõe
37
:
Aos pedidos relativos a produtos farmacêuticos e produtos químicos para a
agricultura, que tenham sido depositados entre 1o de janeiro de 1995 e 14 de
maio de 1997, aplicam-se os critérios de patenteabilidade desta Lei, na data
efetiva do depósito do pedido no Brasil ou da prioridade, se houver,
assegurando-se a proteção a partir da data da concessão da patente, pelo
prazo remanescente a contar do dia do depósito no Brasil, limitado ao prazo
previsto no caput do art. 40”.
Em Portugal o Decreto 30679, de 24 de agosto, que aprovou o Código da Propriedade
Industrial de 1940, prescrevia não poderem ser objeto de patentes (artigo 5.º n.º 3):
“os alimentos, bem como os produtos e preparados farmacêuticos, destinados
ao homem ou aos animais, podendo contudo, ser patenteados os aparelhos
ou sistemas do seu fabrico”.
No entanto, com a adesão à Convenção da Patente Europeia (CPE) desde 01/01/1992,
Portugal passou a ser, desde essa data, país destinatário de um pedido de patente de
produto farmacêutico. Com efeito, resulta dos artigos 52º e 53º da Convenção a
permissão da proteção através de patente de uma invenção farmacêutica, o existindo
nenhuma exclusão específica que o impedisse.
Paradoxal neste período, resulta o facto de, em território português, ser possível solicitar
por via da Patente Europeia a proteção de um medicamento não sendo, no entanto,
permitida a sua proteção por patente pela via nacional.
Apesar de Portugal ter a obrigatoriedade de implementação do Acordo TRIPS apenas a
partir do dia 01/01/1996, conforme dispõe o artigo 65º, nº 1 do referido Acordo, o seu
cumprimento foi antecipado com a aprovação do Código da Propriedade Industrial,
através do Decreto-Lei 16/95, de 24 de janeiro, que entrou em vigor a 01/06/1995
(art.º 9º) e que adequava a sua legislação nacional ao Acordo TRIPS, permitindo o
patenteamento de produtos farmacêuticos (artigos 47º a 49º).
Importa lembrar, neste panorama de análise que, previamente ao Acordo TRIPS e apesar
de existirem regras relativas à proteção concedida pela patente, a CUP dava abertura
aos países signatários para estatuírem as suas próprias regras internas, nomeadamente,
estabelecendo o que poderia ou o ser objeto de patente. Ou seja, os países signatários
podiam optar por proteger no território nacional mediante patentes as invenções que
recaíssem sobre medicamentos ou, pelo contrário, podiam proibir a proteção através de
patentes de invenções que recaíssem sobre medicamentos. Na prática, este contexto
implicava que, o facto de um inventor poder proteger por patente um medicamento num
determinado território nacional, não impedia que terceiros pudessem utilizar os
conhecimentos subjacentes a essa patente num outro território onde a invenção não
fosse patenteável.
37
Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, cujo teor foi inserido pela Lei nº 10.196, de 2001.
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Do até aqui exposto, resulta clara a existência de um quadro normativo nacional e
internacional que tutela a proteção das invenções sobre medicamentos através de
patentes. No entanto, não se deve olvidar que a inclusão das invenções sobre
medicamentos na tutela das patentes é muito recente, e que a mencionada tutela foi
alcançada, não tanto pela virtude do sistema de patentes para promover o direito à saúde
e a inovação, mas sim como condição para beneficiar das prerrogativas económicas
decorrentes da adesão à OMC.
O Direito à saúde
A saúde no contexto internacional
A Carta das Nações Unidas assinada em São Francisco a 26 de junho de 1945, no final
da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, entrou em vigor a
24 de outubro de 1945, e estabeleceu, como meio de manter e preservar a paz entre os
povos a necessidade de promover a solução dos problemas internacionais económicos,
sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de carácter cultura
e educacional (55º/a). Consagrou-se também o Conselho Económico e Social, cuja
função consiste, entre outras, em elaborar estudos e relatórios a respeito de assuntos
internacionais de carácter económico, social, cultural, educacional, de saúde e conexos,
podendo fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembleia Geral
38
, aos
membros das Nações Unidas e às organizações especiais interessadas.
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no seu artigo 25º/1
estabelece que toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar
a si e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais
necessários
39
.
Como organismo especializado, nos termos do artigo 57º da Carta das Nações Unidas,
surge a Organização Mundial da Saúde. A saúde é encarada como um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, não consistindo apenas na ausência de doença ou de
enfermidade. Afirma-se também que gozar do melhor estado de saúde que é possível
atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de
raça, de religião, de credo político ou de condição económica ou social
40
. Também se
sublinha que a saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança
e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados
conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos.
O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde
e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum
41
.
Ainda no âmbito das Nações Unidas, salienta-se o Pacto Internacional de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais no seu artigo 12º, de onde resulta evidente o
compromisso entre os signatários no sentido de tutelar amplamente o direito à saúde,
38
Constituída por todos os membros das Nações Unidas (9º/1).
39
Adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
40
Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde.
41
Nessa sequência, o objetivo primordial da Organização Mundial da Saúde consiste na aquisição, por todos
os povos, do nível de saúde mais elevado possível. (artigo 1º).
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reconhecendo-se o direito de todas as pessoas a desfrutar do mais alto nível de saúde
ísica e mental e impondo medidas concretas para a sua tutela (Helfer, 2015: 317-318;
Sellin, 2015: 445-473).
Por sua vez, o Tratado de Funcionamento da União Europeia no seu artigo 9º estabelece
como objetivo a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma proteção
social adequada, a luta contra a exclusão social e um nível elevado de educação,
formação e proteção da saúde humana. No mesmo normativo, o artigo 168º prevê que
na definição e execução de todas as políticas e ações da União será assegurado um
elevado nível de proteção da saúde. A ação da União, que será complementar das
políticas nacionais, incidirá na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças e
afeções humanas e na redução das causas de perigo para a saúde física e mental. Esta
ação abrangerá a luta contra os grandes flagelos, fomentando a investigação sobre as
respetivas causas, formas de transmissão e prevenção, bem como a informação e a
educação sanitária e a vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão
transfronteiriça, o alerta em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
42
, no artigo 3relativo à proteção
da saúde, estabelece que todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em
matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos, de acordo com as legislações e
práticas nacionais. Na definição e execução de todas as políticas e ações da União é
assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana.
Ou seja, não há dúvidas que a tutela do direito à saúde ocupa uma posição preeminente
nos diversos instrumentos internacionais, não apenas como um fim, mas igualmente
como um meio de assegurar a paz entre os povos e a dignidade da pessoa humana,
devendo sobrepor-se este direito a outros de natureza mais materialista.
A saúde no contexto luso-brasileiro
No âmbito português, o direito à saúde vem consagrado no artigo 64º CRP, o qual
estabelece que todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e
promover
43
. O número 2 do mesmo preceito, nas suas alíneas, prescreve que a proteção
do direito à saúde concretizar-se através de um serviço nacional de saúde universal e
geral, tendencialmente gratuito; e pela concretização de condições económicas, sociais,
culturais e ambientais que garantam a proteção da infância, da juventude e da velhice.
Especial interesse na matéria que nos ocupa merecem as alíneas c) e e) do n3 do
artigo 64º CRP, que impõe ao Estado a incumbência prioritária de orientar a ação para a
socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos e ainda disciplinar e
controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos,
biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.
Na senda do referido anteriormente no contexto internacional, resulta claro no domínio
nacional lusitano que o direito à saúde permite a concretização de outros direitos
42
Jornal Oficial da União Europeia, C 202/389, 7.6.2016.
43
Conforme é referido pela doutrina O direito à proteção da saúde comporta duas vertentes: uma, de
natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer
ato que prejudique a saúde, outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações
estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas. … no segundo caso, trata-se de um direito
social propriamente dito, revestindo a correspondente configuração constitucional”. (Canotilho, 2014: 825).
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fundamentais constitucionalmente consagrados, como o direito à vida e o direito à
integridade moral e física, assim como a concretização do princípio da dignidade da
pessoa humana (Monge, 2019: 78; Miranda, 2010: 1309).
No âmbito brasileiro, a saúde está consagrada no artigo 196º CRFB, como um direito de
todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e económicas que visem
a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Dentro das competências
atribuídas ao sistema único de saúde, salienta-se a de controlar e fiscalizar
procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da
produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros
insumos
44
. Este direito enquadra-se dentro dos direitos sociais previstos no artigo 6º da
Constituição brasileira, que se caracterizam por possuir um status de garantia da
autonomia do individuo, possibilitando que possa exercer outros direitos com plenitude
e liberdade, através do acesso à formação educacional, ao trabalho, à moradia, e no que
nos ocupa no presente trabalho, à assistência à saúde (Carvalho, 2019: 25-28).
Sem termos ensejo de aprofundar mais o tratamento legal conferido a este direito e a
consequente obrigação imposta ao Estado, serve o até aqui exposto para evidenciar que
estamos perante um direito que ultrapassa as suas próprias fronteiras enquanto fim,
sendo essencial também para a concretização de muitos outros direitos, pelo que, quando
comparado com o direito de propriedade, afigura-se evidente que este deve ceder
perante aquele, verificando-se que esta superioridade não implique a eliminação ou
anulação do direito de propriedade.
Considerações finais
Após a análise realizada no presente trabalho, seria lógico concluir sobre o relevante
papel das licenças obrigatórias, como meio para permitir um maior e mais amplo acesso
à saúde quando aplicadas em situação de existirem patentes farmacêuticas. No entanto,
se esta figura demonstrou não ser muito eficaz quando visava o acesso a
medicamentos por parte dos países menos desenvolvidos, no atual contexto, em que o
problema de acesso a um medicamento ou tratamento protegido por patente que possa
tratar a covid-19, se estende à generalidade dos países avançados, o papel a
desempenhar pelas licenças obrigatórias é manifestamente nulo (Hoen, 2016: 185-
193)
45
.
Com efeito, o recente contexto da covid-19 tem evidenciado que a principal ferramenta
para promover a célere e efetiva obtenção de uma solução farmacêutica para a luta
contra a pandemia se tem baseado na colaboração voluntária entre agentes económicos,
num incremento da permissividade por parte dos titulares de patentes farmacêuticas
para que o objeto da sua proteção possa ser livremente utilizado na produção de
medicamentos ou vacinas mais eficazes e iniciativas solidárias para financiamento da
adquisição e doação de vacinas (Bartels, 2020: 11-12). Existem diversas estratégias para
democratizar o acesso a medicamentos protegidos por patentes no contexto de condições
44
Vid. Título I do artigo 200º CRFB.
45
Estos autores preconizam que uma mais ampla utilização das licenças obrigatórias seria essencial para
garantir um melhor e mais amplo acesso à saúde, quer nos países pobres, quer nos países ricos.
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“normais”, i.e., que não sejam pandémicas. Com efeito, no âmbito dos mecanismos para
dinamizar esse acesso, e conforme se referiu anteriormente, o TRIPS pre a
possibilidade de licenças obrigatórias baseadas na falta de exploração suficiente por parte
do seu titular e ainda licenças obrigatórias baseadas numa situação de urgência nacional
ou interesse público e sem fins comerciais. Existe também a previsão da flexibilização
das exportações de países produtores, ainda que com licenças obrigatórias, para países
menos desenvolvidos sem capacidade de produção e ainda a possibilidade de exportação
desses medicamentos entre um país recetor dessa ajuda e outro país da mesma área
económica. Na maioria dos países existem regimes de expropriação que podem ser
acionados contra o titular do direito de patente quando defrontados com situações de
utilidade pública e interesse. As licenças voluntárias assumem também um papel
importante, assim como a capacidade, hoje muito reduzida, de os países não membros
da OMC excluírem a patenteabilidade das vacinas. Contamos também com iniciativas
altruístas, como o programa COVAX, cujo objetivo consiste angariar fundos para adquirir
vacinas e equipamentos e distrib-los pelos países com maiores dificuldades em lidar
com a situação pandémica
46
.
Apesar de todos estes mecanismos, tem-se constatado que a solução da situação de
pandemia baseada na boa vontade dos titulares das patentes não é suficiente para
construir uma resposta eficaz, célere e global, tendo-se verificado situações muito
“embaraçosas” no que respeita aos níveis de vacinação da população
47
. Fruto desta
situação, foram apresentadas à OMC diversas propostas para a suspensão do acordo
ADPIC da OMC em matéria de vacinas, tratamento e equipamentos relacionados com a
covid-19 e aumento da capacidade de produção e fabrico nos países em
desenvolvimento
48
.
Estas propostas foram objeto de avaliação pela Proposta de Resolução apresentada pelo
Parlamento Europeu de 02 de junho de 2021 sobre como enfrentar o desafio mundial da
covid-19
49
. Grosso modo, neste documento opõe-se a uma possível suspensão das
patentes relacionadas com o tratamento da covid-19, afirmando-se que o sistema de
patentes é essencial para a fomentar a inovação e a segurança no ecossistema de
inovação e que esta segurança é imprescindível para se poder investir em procurar
soluções para novas variantes da covid-19.
50
Em alternativa, preconiza o referido
documento que o ênfase deve consistir em incentivar a doação de vacinas e na permissão
46
https://www.gavi.org/covax-facility
47
Com efeito, a taxa de vacinação é muito elevada nos países ricos, sendo inexistente ou diminuta nos países
menos desenvolvidos. Os países ricos “monopolizam” as vacinas para satisfazer primeiro as suas
necessidades nacionais, havendo uma corrida entre países ricos para esse efeito. Muitas doses
desnecessárias foram retidas pelos países ricos. No mercado livre, as soluções puderam ser vendidas ao
melhor pagador com prioridade, conforme se verificou no caso de Israel que pagou pela vacina quase o
dobro do que a União Europeia https://www.elindependiente.com/vida-sana/salud/2021/01/21/el-precio-
del-milagro-israeli-con-la-vacuna-pagar-mas-y-dar-datos-a-pfizer/. A OMS tem solicitado aos países ricos
para atrasar a ministração de uma terceira dose da vacina e permitir o incremento da vacinação em países
onde ainda não foram administradas as primeiras doses https://elpais.com/sociedad/2021-08-04/la-oms-
pide-una-moratoria-mundial-para-la-tercera-dosis-de-las-vacunas-contra-la-covid-19.html. Acresce ainda
que as farmacêuticas não tiveram inconveniente em incrementar os preços das vacinas nos contratos
celebrados com a União Europeia, o que certamente não se justifica senão pelo oportunismo comercial
https://www.lavozdegalicia.es/noticia/sociedad/2021/08/01/pfizer-moderna-suben-precio-vacunas-
contra-covid/00031627826051265125579.htm
48
Vid. https://www.wto.org/english/news_e/news21_e/trip_23feb21_e.htm
49
Vid. https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/B-9-2021-0311_PT.pdf.
50
Vid., Considerando L.
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de exportação de vacinas dos países produtores para os países carenciados de vacinas,
entre outras medidas.
É de lamentar este posicionamento, pois como foi amplamente constatado, existem
diversas razões que imporiam uma decisão em sentido contrário
51
. Todos os mecanismos
existentes contribuem, na sua medida, para poder superar a situação de pandemia a
nível global, mas todos eles se têm mostrado insuficientes e muito longe das
necessidades reais. Situações extraordinárias, requerem abordagens extraordinárias que
conduzam a soluções extraordinárias.
A proteção dos medicamentos através de patentes é relativamente recente e a aceitação
desta proteção por diversos Estados foi baseada não tanto pela convicção nas suas
vantagens, mas por ser requisito necessário para beneficiar de outras vantagens
decorrentes da pertença à OMC. Acresce que a capacidade do sistema de patentes no
âmbito farmacêutico para estimular a inovação está longe de ser pacífica, havendo
estudos que constatam precisamente o efeito contrário (Gold, 2010). Outro fator a ter
em consideração resulta do facto de muitos medicamentos protegidos através de
patentes serem o resultado, também, de investimento público, nas suas diversas formas,
o que questiona a democratização do investimento e a monopolização de eventuais lucros
(Cross et al., 2021)
52
.
No meu modesto entender, a suspensão provisional das patentes que protegem vacinas
é a medida extraordinária que requer esta situação extraordinária para construir uma
sólida e célere resposta à emergência mundial vivenciada. Discorda-se do entendimento
preconizado pelo Presidente do Conselho da GAVI Aliança Global para as vacinas, José
Manuel Durão Barroso, ao sustentar que esta medida teria um impacto negativo na
investigação e inovação, assim como também não se compreende que outro dos
argumentos aduzidos consista na falta de conhecimentos ou know-how secreto para pôr
em prática a exploração das patentes suspensa (Barroso, 2021: 66). Em primeiro lugar,
como se viu, existem situações em que uma grande fatia do financiamento necessário
para obter as vacinas foi público, pelo que uma eventual suspensão das patentes obtidas
com esse financiamento permitiria efetuar uma compensação económica adequada que
recompensasse o esforço público realizado. Em segundo lugar, um pilar essencial do
sistema de patentes consiste na publicidade da invenção a proteger de forma tal que o
titular do direito de patente terá de revelar todos os procedimentos necessários para que
um qualquer perito na matéria possa reproduzir a invenção protegida. Neste contexto,
não se percebe como se pode argumentar que haverá um know-how importante” que
impediria verificar a qualidade das vacinas produzidas com os conhecimentos das
patentes suspensas. Com efeito, se a vacina es protegida por patente, qualquer perito
na matéria poderá reproduzir a vacina seguindo as instruções feitas públicas com o
pedido de patente. Se pelo contrário, a reprodução do procedimento protegido pela
patente não resulta exatamente na mesma vacina cuja proteção foi solicitada, por faltar
know-how importante, então a vacina não poderia ser protegida por patente, e seria
livremente utilizada.
51
Ver o artigo da Human Rights Watch de 03.06.2021 intitulado Seven Reasons the EU is Wrong to Oppose
the TRIPS Waiver. https://www.hrw.org/news/2021/06/03/seven-reasons-eu-wrong-oppose-trips-waiver.
52
Neste sentido, consultar também o artigo da Human Rights Watch intitulado “Seven Reasons the EU is
Wrong to Oppose the TRIPS Waiver”. https://www.hrw.org/news/2021/06/03/seven-reasons-eu-wrong-
oppose-trips-waiver.
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O EQUILÍBRIO ENTRE PRIVACIDADE V. O ARGUMENTO DA VIGILÂNCIA:
A PERSPECTIVA DO REINO UNIDO
VAIBHAV CHADHA
vchadha@jgu.edu.in
Professor Assistente de Direito na Jindal Global Law School, O.P. Jindal Global University (Índia).
É mestre em Direito pela Queen Mary University of London e tem uma licenciatura em comércio,
bem como em direito pela Universidade de Delhi. Autor de artigos internacionais sobre lei de
fiança antecipada na Índia, lei de direitos de autor e liberdade de expressão. Antes de se tornar
professor universitário, Vaibhav trabalhou nos Escritórios do Advogado Geral do Estado de
Nagaland, Índia, e do Procurador Geral Adjunto da Índia. Os seus interesses incluem liberdade de
expressão, direito da comunicação social e direito penal.
Resumo
Após as revelações feitas pelo ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward
Snowden sobre a violação da privacidade de indivíduos pelos estados em nome da vigilância,
o direito à privacidade tornou-se um dos direitos mais debatidos. Não dúvida que o Estado
deve garantir a privacidade dos seus cidadãos, mas também tem a responsabilidade pela
segurança dos mesmos. Existem diferentes visões relacionadas com privacidade e vigilância.
Uma visão é que o Estado não tem o direito de examinar os assuntos privados de um indivíduo,
enquanto a outra visão é que não há mal em colocar alguém suspeito sob vigilância, pois é
dever do Estado impedir qualquer ato indevido na sociedade. Considerando as visões
contrastantes sobre privacidade e vigilância, este artigo explora a posição existente no Reino
Unido e visa responder a várias questões relativas ao debate Privacidade vs. Vigilância.
Palavras-chave
Privacidade; Vigilância; Lei de Poderes de Investigação; Regulamento Geral de Proteção de
Dados e Proteção de Dados
Como citar este artigo
Chadha, Vaibhav (2022). O equillíbrio entre privacidade V. o argumento da vigilância: a
perspectiva do Reino Unido. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, 1,
Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.12
Artigo recebido em 15 Agosto 2021 e aceite para publicação em 27 Janeiro 2022
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O equilíbrio entre privacidade V. o argumento da vigilância: a perspectiva do Reino Unido
Vaibhav Chadha
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O EQUILÍBRIO ENTRE PRIVACIDADE V. O ARGUMENTO DA
VIGILÂNCIA: A PERSPECTIVA DO REINO UNIDO
1
VAIBHAV CHADHA
1. Introdução
O direito à privacidade continua a ser um dos bens primordiais dos seres humanos. Desde
a sua criação, o direito à privacidade progrediu e tornou-se um direito estabelecido na
maioria das democracias modernas
2
. O direito à privacidade é garantido pelo artigo 12
da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que afirma que ninguém sofrerá
“intromissões arbitrárias” na sua “vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na
sua correspondência” nem ataques à sua “honra e reputação”. O artigo 17 da Convenção
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 estabelece que a “privacidade, família,
domicílio ou correspondência” não será sujeita a intrusão “arbitrária ou ilegal”. A base
legal da privacidade como um direito na Europa evolui a partir do artigo 8.º, n 1, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que prevê o direito ao respeito pela
vida privada e familiar e do artigo 8.º, n2, que estabelece que o haverá interferência
neste direito por parte de autoridade pública, exceto em conformidade com a lei.
O direito à privacidade na Europa foi ainda mais reforçado com a aplicação do
Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) em maio de 2018. O RGPD é uma das
leis de privacidade e segurança mais rigorosas do mundo. Apesar de ter sido promulgada
pela União Europeia (UE), a lei impõe um dever a todas as organizações situadas em
qualquer lugar do mundo, na medida em que encaminham ou compilam dados de
pessoas na região da UE. O RGPD também impõe multas pesadas contra aqueles que
violam os padrões de privacidade e segurança por ele estabelecidos
3
.
Existe uma relação intrínseca entre privacidade e segurança nacional porque
restrições relativamente ao quanto as pessoas estão dispostas a negociar a sua
privacidade na procura da segurança nacional
4
.
O artigo 23 do RGPD estabelece que o Direito da União ou dos Estados-Membros a que
estejam sujeitos os responsáveis pelo tratamento ou o seu contratante pode limitar por
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
2
Eric Caprioli, Ygal Saadoun e Isabelle Cantero, The Right to Digital Privacy: A European Survey’ (2006) 3
Rutgers Journal of Law & Urban Policy 211.
3
‘What is GDPR, the EU’s new data protection law?’ GDPR.EU disponível em https://gdpr.eu/what-is-gdpr/
acedido em 12 de maio de 2020
4
Fred H Cate, ‘Government Data Mining: The Need for a Legal Framework’ (2008) 43 Harvard Civil Rights-
Civil Liberties Law Review 435, 484.
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medida legislativa o alcance das obrigações e dos direitos previstos nos artigos 12 a 22
por motivo de segurança nacional, defesa, segurança pública e prevenção, investigação,
deteção ou repressão de crimes.
No Reino Unido, o Data Protection Act 2018 (DPA, 2018) foi promulgado para
implementar o RGPD. Antes da promulgação do DPA 2018, o Data Protection Act 1998
regulava o processamento nacional de dados pessoais pelas agências de intelincia. O
DPA 2018 criou uma nova estrutura, que fornece um mecanismo distinto para
supervisionar o processamento de dados pessoais pelas agências de inteligência. Este
mecanismo baseia-se nas normas internacionais estabelecidas na “Convenção para a
Proteção de Indivíduos em relação ao Processamento Automático de Dados Pessoais” do
Conselho da Europa revista (a “Convenção 108 modernizada”; o Protocolo alterado foi
adotado pelo Conselho da Europa em 18 de maio de 2018).
É pertinente notar que a segurança nacional não está no âmbito do direito da União
Europeia. Como resultado, nem o RGPD nem a Diretiva de Aplicação da Lei (LED)
abrangem o processamento de dados pessoais para fins de segurança nacional.
Consequentemente, os termos do RGPD e do LED não se destinam a ser aplicáveis ao
processamento de dados pessoais pelas agências de inteligência.
5
A Diretiva LED LED diz
respeito ao tratamento de dados pessoais para efeitos de “prevenção, investigação,
deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais” pelas
autoridades competentes
6
.
A Parte 4 do DPA 2018 (processamento de serviços de inteligência) fornece um
mecanismo específico às agências de inteligência. Garante que o tratamento de dados
pessoais pelas agências de inteligência está sujeito a padrões adequados e
correspondentes que reconheçam o papel sério das agências de inteligência ao lidar com
ameaças atuais e potenciais à segurança nacional.
7
Além disso, a seção 110 do DPA 2018
isenta as agências de inteligência de certas disposições da Lei onde é essencial proteger
a segurança nacional.
2. Antecedentes
A privacidade diz respeito a todos os indivíduos relativamente aos seus assuntos pessoais
e privados. É um direito humano fundamental que permanece sob ameaça contínua
devido aos avanços tecnológicos modernos
8
.
A privacidade não deve ser considerada um direito individual em oposição ao bem social
maior. As questões de privacidade exigem equilíbrio em ambos os extremos da escala,
pois a privacidade implica proteção contra uma série de vários perigos ou problemas. O
5
Home Office, Government of United Kingdom, Data Protection Act 2018, Factsheet Intelligence Services
Processing, p. 1, disponível em <
https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/7112
33/2018-05-23_Factsheet_4_-_intelligence_services_processing.pdf > acedido em 19 de junho de 2020.
6
Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho (27 de abril de 2016), p. 1.
7
Home Office, Government of United Kingdom, Data Protection Act 2018, Factsheet Intelligence Services
Processing, p. 2, disponível em <
https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/7112
33/2018-05-23_Factsheet_4_-_intelligence_services_processing.pdf > acedido em 19 de junho de 2020.
8
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Compatibility with Article 17 ICCPR and Article 8 ECHR’ (2015) 31 Utrecht Journal of International and
European Law 104.
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valor da privacidade varia de acordo com o problema ou perigo específico que está a ser
protegido. Os assuntos de privacidade não são todos iguais e alguns são mais perigosos
que outros; assim, não é possível atribuir à privacidade um valor abstrato.
9
O conflito
entre vigilância e privacidade é uma consequência dos nossos grandes problemas em
ajustarmo-nos aos avanços da tecnologia
10
.
A importância do direito à privacidade foi destacada quando o ex-funcionário da Agência
de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden revelou que, por ordem secreta de um
tribunal, registos de milhões de cidadãos norte-americanos estavam a ser reunidos pela
NSA indiscriminadamente, independentemente do fato de esses indivíduos terem estado
envolvidos em qualquer ato ilegal ou não
11
. Estas revelações provocaram um grande
protesto entre a população e fortes objeções contra a tal vigilância do Estado. O público
sentiu que representava uma intromissão nas suas vidas pessoais por parte do Estado e
tornou-se mais consciente e cauteloso em questões relacionadas com a sua privacidade.
Na nossa sociedade, a tecnologia de vigilância é predominante e isso muitas vezes resulta
num forte debate entre os defensores e opositores da tecnologia de vigilância.
Especificamente, a vigilância do governo tem sido cada vez mais submetida ao escrutínio
do público, com defensores afirmando que aumenta a segurança, enquanto os opositores
a denunciam por infringir a privacidade
12
. Do ponto de vista de uma sociedade, é
importante preservar o equilíbrio necessário entre as preocupações de segurança e
privacidade e os direitos civis intrínsecos dos cidadãos
13
.
3. Vigilância exercida por Entidades Estatais
A vigilância não é apenas para os governos. Uma grande parte é feita por empresas
privadas que compilam, utilizam e vendem dados pessoais de pessoas
14
. Vigilância, em
termos simples, significa vigiar”. Refere-se a “monitorização, rastreio, observação,
análise, regulação, controlo, compilação de dados e invasão de privacidade”. A palavra
vigilância tem origem na palavra francesa “veiller” e na palavra latina “vigilare”
15
.
O professor David Lyon define vigilância como “a atenção focada, sistemática e rotineira
a detalhes pessoais para fins de influência, gestão, proteção ou direção”. De acordo com
este autor, a vigilância é focada”, pois presta atenção aos indivíduos.
A palavra “sistemática” indica que o escrutínio de detalhes pessoais é intencional e
depende de alguns “protocolos e cnicas”. Ao usar a palavra “rotina”, o professor Lyon
quer dizer que isso acontece em todas as sociedades modernas como uma parte 'normal'
9
Daniel J. Solove, ‘‘I’ve Got Nothing to Hide” and Other Misunderstandings of Privacy’ (2007) 44 San Diego
Law Review 745, 763.
10
H. Akin Ünver, ‘Politics of Digital Surveillance, National Security and Privacy’ (Centre for Economics and
Foreign Policy Studies, 2018) 7.
11
Glenn Greenwald, ‘NSA collecting phone records of millions of Verizon customers dailyThe Guardian (United
Kingdom 6 de junho de 2013).
12
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are saying’ (2018) The Information Society 34(2), 88 DOI: 10.1080/01972243.2017.1414721.
13
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technological policy options: Improving security of private communications’ (2017) 50 Computer Standards
& Interfaces 76, 77.
14
Neil M Richards, ‘The Dangers of Surveillance’ (2013) 126 Harvard Law Review 1934, 1938.
15
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200
do dia a dia que depende da estrutura administrativa e de certas tecnologias da
informação
16
. A vigilância, segundo ele, também está invariavelmente ligada a um
determinado objetivo
17
.
A vigilância não é apenas para os estados comunistas e ditatoriais. Após os ataques de
11 de setembro, os atentados de Londres em 2005 e vários outros crimes hediondos, a
mesmo estados democráticos, fizeram grandes investimentos em tecnologias de
vigilância.
18
Atualmente, a vigilância inclui tecnologias, formas, operações e um código
de procedimento criado para replicar e escrutinar imagens, sons, scripts e transações
19
.
A vigilância eletrónica é um instrumento vantajoso nas mãos das agências de aplicação
da lei. Pode aumentar a segurança dos cidadãos, auxiliar nas investigações criminais e
fornecer provas sólidas num processo judicial
20
.
3.1. Lei de Poderes de Investigação 2016
Em 29 de novembro de 2016, a Lei de Poderes de Investigação (Investigatory Powers
Act 2016 -IPA) entrou em vigor. Para regular o uso e a supervisão dos poderes de
investigação pelas autoridades policiais e pelas agências de segurança e inteligência, a
lei estabelece uma nova estrutura
21
. A IPA revoga a primeira parte da Lei de
Regulamentação de Poderes de Investigação de 2000 (RIPA), que tinha 25 seções,
substituindo-a por 272 seções sobre regulamentação de interceção. O objetivo principal
da IPA é renovar o sistema sob o qual as agências de aplicação da lei e de inteligência
do Reino Unido podem ser autorizadas a realizar “interceção, interferência de
equipamentos ou aquisição de dados de comunicações em larga escala.
22
O Secretário de Estado responsável pela “segurança e terrorismo”
23
emite o “mandado
de interferência de equipamentos em larga escalacom base num pedido feito pelo chefe
do serviço de inteligência
24
. No entanto, o Secretário de Estado toma pessoalmente a
decisão de emitir um mandado de interferência de equipamentos em larga escala
25
.
Essas disposições específicas e detalhadas tentam preencher a lacuna e procuram evitar
o uso indevido, fornecendo a necessidade de autorização do Secretário de Estado antes
de permitir qualquer interferência de equipamento em larga escala. Isso indica que a
emissão de tais mandados está bem regulamentada e não pode ser usada
indiscriminadamente por funcionários abaixo do Secretário de Estado sem a sua
autorização para fins diferentes do especificado. A seção 176 até à seção 183 da Lei de
16
David Lyon, Surveillance Studies: An Overview (1ª ed., Polity 2007) 14.
17
David Lyon, Surveillance Studies: An Overview (1ª ed, Polity 2007) 15.
18
Neil M Richards, ‘The Dangers of Surveillance’ (2013) 126 Harvard Law Review 1934, 1938.
19
Kelly Gates, ‘Surveillance’ in Laurie Ouellette and Jonathan Gray (eds), Keywords for Media Studies (NYU
Press, 2017) 187.
20
Edward Balkovich, Don Prosnitz, Anne Boustead e Steven C Isley, ‘The Electronic Surveillance Challenge’ In
Electronic Surveillance of Mobile Devices: Understanding the Mobile Ecosystem and Applicable Surveillance
Law (2015) RAND Corporation 1.
21
Investigatory Powers Act, disponível em https://www.gchq.gov.uk/information/investigatory-powers-act
acedido em 15 de junho de 2020.
22
Thomson Reuters Practical Law, Investigatory Powers Act 2016: Overview by Practical Law Business Crime
and Investigations, p. 1.
23
Secretary of State for the Home Department, Responsibilities
https://www.gov.uk/government/ministers/secretary-of-state-for-the-home-department acedido em 3 de
março de 2020.
24
Investigatory Powers Act 2016, s 178.
25
Investigatory Powers Act 2016, s 182.
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O equilíbrio entre privacidade V. o argumento da vigilância: a perspectiva do Reino Unido
Vaibhav Chadha
201
Poderes de Investigação de 2016 trata de “mandados de interferência de equipamentos
em larga escala”. A “garantia de interferência de equipamentos em larga escalaautoriza
a pessoa a quem se dirige a obter interferências em qualquer tipo de equipamento com
o objetivo de obter “comunicações, dados de equipamentos e quaisquer outras
informações”
26
.
A partir de 27 de junho de 2018, ao abrigo da IPA, as operações de interceção de
comunicações passaram a ser legitimadas. Somente o Secretário de Estado pode emitir
mandados autorizando a interceção, e devem ser ratificados por um Comissário Judicial
independente do Gabinete do Comissário de Poderes de Investigação. Antes da emissão
de um mandado de interceção, o Secretário de Estado deve “acreditar” que um mandado
é “necessário” por alguma razão e que a interceção corresponde ao objetivo que pretende
alcançar. A interceção é considerada necessária” por motivos de “segurança nacional”,
“bem-estar ecomico do Reino Unido” ou “prevenção ou deteção de crimes graves”.
Para restringir o uso de informações intercetadas e dados de comunicação associados, a
IPA requer disposições de salvaguardas
27
.
A IPA 2016 provocou uma mudança notável na forma como alguns poderes de
investigação são aprovados e supervisionados. A introdução do que é informalmente
chamado método de “bloqueio duplo” é a mudança mais notável trazida pela IPA 2016.
O mecanismo “bloqueio duplo” implica que, após autorização do Secretário de Estado,
um mandado IPA não pode ser emitido a menos que um Comissário de Justiça o
autorize
28
. O uso do mecanismo de "bloqueio duplo" deu início a um novo recurso
fundamental para a supervisão judicial das agências de inteligência e segurança do Reino
Unido, dando a tarefa de analisar independentemente as aprovações solicitadas sob a
IPA 2016 aos Comissários de Justiça
29
.
Saudando a aprovação da IPA 2016, a secretária dos Assuntos Internos Amber Rudd
declarou: “Este governo tem a certeza que, num momento de maior ameaça à segurança,
é essencial que nossos serviços de aplicação da lei, segurança e inteligência tenham os
poderes necessários para manter as pessoas seguras”. Ela observou ainda: “A internet
apresenta novas oportunidades para os terroristas e devemos garantir que temos a
capacidade de enfrentar esse desafio. Mas também é certo que esses poderes estão
sujeitos a salvaguardas estritas e supervisão rigorosa.” Apontando para a transparência
e proteção da privacidade estabelecidas na Lei, afirmou que “A Lei dos Poderes de
Investigação é uma legislação líder mundial que fornece transparência sem precedentes
e proteção substancial à privacidade
30
.
26
Investigatory Powers Act 2016, s 176.
27
Investigatory Powers Act, disponível em https://www.gchq.gov.uk/information/investigatory-powers-act
acedido em 15 de junho de 2020.
28
Government of UK, ‘Annual Report of the Investigatory Powers Commissioner’ (2018) p. 10, disponível em:
https://ipco.org.uk/docs/IPCO%20Annual%20Report%202018%20final.pdf acedido em 16 de junho de
2020.
29
Government of UK, ‘Annual Report of the Investigatory Powers Commissioner’ (2018) p. 9 [2.3], disponível
em: https://ipco.org.uk/docs/IPCO%20Annual%20Report%202018%20final.pdf acedido em 26 de junho
de 2020.
30
Home Office (Government of UK), ‘Investigatory Powers Bill receives Royal Assent’ (28 de novembro de
2018) disponível em: https://www.gov.uk/government/news/investigatory-powers-bill-receives-royal-
assent acedido em 15 de junho de 2020.
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202
3.2. Operações das Agências Estatais
A interceção é um todo em que uma pessoa que o seja o remetente ou destinatário
dessa comunicação supervisiona a comunicação durante o curso da sua transmissão com
o objetivo de tornar o seu conteúdo acessível
31
. O uso de tecnologias de mineração de
dados na segurança nacional é um esforço para automatizar algum trabalho sistemático
para permitir um exame mais preciso e oportuno dos conjuntos de dados predominantes.
O objetivo é evitar atividades terroristas, reconhecendo e categorizando vários “threads
e partes de informação”, que podem já existir, mas são negligenciados devido ao uso de
métodos de investigação tradicionais
32
.
A era digital desencadeou uma transformação radical na vigilância conduzida pelo Estado,
tanto em termos de como é realizada como nos tipos de insights que se pretende
promover. A transformação da vigilância exercida pelo estado é representada pelo uso
de “técnicas de dados de comunicação em larga escala que compreendem a vasta
compilação, armazenamento e análise sucessiva de dados de comunicação. Atualmente,
essas técnicas constituem um aspeto integral da vigilância exercida pelo estado
33
. Ao
contrário da recolha de dados direcionada, a vigilância de dados de comunicações em
larga escala denota extensa recolha e “retenção” de dados de comunicações.
Atualmente, é utilizada por agências de inteligência e de aplicação da lei
34
.
A mineração de dados é o método que consiste em explorar novas informações nos dados
existentes
35
. A mineração de dados geralmente determina “padrões ou
relacionamentos” nos itens de dados ou registos, que antes não eram reconhecidos, mas
são divulgados apenas nos dados
36
. A mineração de dados oferece oportunidades
favoráveis para superar a lacuna nos requisitos de informação do governo e os enormes
conjuntos de dados de informações que lhe são disponibilizados. Os dados disponíveis
podem ser convertidos em conhecimento através da mineração de dados
37
. O
procedimento de mineração de dados exige essencialmente a revisão e avaliação
automática de perfis contendo informações pessoais de várias pessoas
38
.
31
Intelligence and Security Committee of Parliament: Privacy and Security: A modern and transparent legal
framework (2015) 17 https://info.publicintelligence.net/UK-ISC-MassSurveillance.pdf acedido em 12 de
junho de 2020.
32
KA Taipale, ‘Data Mining and Domestic Security: Connecting the Dots to Make Sense of Data’, (2003-2004)
5 Columbia Science and Technology Law Review 1, 21.
33
Murray D e Fussey P, “Bulk Surveillance in the Digital Age: Rethinking the Human Rights Law Approach to
Bulk Monitoring of Communications Data” (2019) 52 Israel Law Review 31.
34
Daragh Murray e Pete Fussey, “Bulk Surveillance in the Digital Age: Rethinking the Human Rights Law
Approach to Bulk Monitoring of Communications Data” (2019) 52 Israel Law Review 31, 36.
35
KA Taipale, ‘Data Mining and Domestic Security: Connecting the Dots to Make Sense of Data’, (2003-2004)
5 Columbia Science and Technology Law Review 1, 22.
36
KA Taipale, ‘Data Mining and Domestic Security: Connecting the Dots to Make Sense of Data’, (2003-2004)
5 Columbia Science and Technology Law Review 1, 22-23.
37
Tal Z Zarsky, ‘Governmental Data Mining and its Alternatives’ (2011) 116 Pennsylvania State Law Review
285, 294.
38
Tal Z Zarsky, ‘Governmental Data Mining and its Alternatives’ (2011) 116 Pennsylvania State Law Review
285, 295.
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203
Programas como 'Mineração de Dados' constituem uma séria ameaça à vigilância. A
mineração de dados apresenta instrumentos para analisar automaticamente os dados
39
.
Enormes quantidades de dados são retidas pelos órgãos governamentais, que os
examinam com a intenção de obter conhecimento para criação e armazenamento de
informações importantes
40
. O interessante da mineração de dados é que visa prever as
nossas ações futuras e as pessoas que correspondem a alguns perfis específicos o
considerados envolvidos em “padrão semelhante de comportamento”. Nessas
circunstâncias, as ações que ainda não foram cometidas seriam difíceis de refutar e será
mais oneroso para nós descartar as previsões de atividades futuras obtidas através da
mineração de dados
41
.
Muitos defensores da privacidade alertam que a recolha e retenção de ‘metadados’
ilimitados de atividades de comunicação de pessoas pelo governo é a forma mais
intrusiva de vigilância
42
. Basicamente, metadados são dados sobre dados. Normalmente,
as informações são compostas por tags semânticas aplicáveis aos dados. Os metadados
contêm dados marcados semanticamente, que são utilizados para explicar os dados.
43
Os metadados também são conhecidos como 'dados de comunicação' e o Supremo
Tribunal do Reino Unido em Davis e outros v Secretário de Estado do Departamento do
Interior definiu 'dados de comunicação' da seguinte forma:
A frase "dados de comunicação" não inclui o conteúdo de uma comunicação.
Esses dados podem ser usados para demonstrar quem estava a comunicar;
quando; de onde; e com quem. Os dados podem incluir a hora e a duração
de uma comunicação, o número ou endereço de e-mail do remetente e do
destinatário e, às vezes, a localização do dispositivo a partir do qual a
comunicação foi feita. Os dados não incluem o conteúdo de qualquer
comunicação: por exemplo, o texto de um e-mail ou uma conversa
telefónica
44
.
O tribunal afirmou ainda que, no curso das investigações sobre segurança nacional e
crime organizado e grave, as organizações de inteligência e aplicação da lei usam dados
de comunicação. Os dados ajudam as agências de investigação a identificar os associados
de um nexo criminoso, colocando-os em locais específicos em horários predeterminados
e, em alguns casos, a compreender a atividade criminosa em que estão envolvidos
45
.
Quando combinados” e “agregados” para produzir um registo detalhado da comunicação
39
Stijn Vanderlooy, Joop Verbeek e Jaap van den Herik, ‘Towards Privacy-Preserving Data Mining in Law
Enforcement’ (2007) 2(4) JICLT 202.
40
Stijn Vanderlooy, Joop Verbeek e Jaap van den Herik, ‘Towards Privacy-Preserving Data Mining in Law
Enforcement’ (2007) 2(4) JICLT 202.
41
Daniel J. Solove, ‘‘I’ve Got Nothing to Hide” and Other Misunderstandings of Privacy’ (2007) 44 San Diego
Law Review 745, 764.
42
Glenn Greenwald, ‘NSA collecting phone records of millions of Verizon customers daily’ (The Guardian, 6 de
junho de 2013) https://www.theguardian.com/world/2013/jun/06/nsa-phone-records-verizon-court-order
acedido em 4 de março de 2018.
43
Tony Hey and Anne Trefethen, ‘The Data Deluge: An e-Science Perspective’, disponível em
https://eprints.soton.ac.uk/257648/1/The_Data_Deluge.pdf acedido em 25 de abril de 2020.
44
Davis and Others v Secretary of State for the Home Department [2015] EWHC 2092 [13].
45
Davis and Others v Secretary of State for the Home Department [2015] EWHC 2092 [14].
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e atividade baseada na internet de um indivíduo, os dados de comunicação são
considerados especificamente vantajosos para as agências de intelincia e segurança
46
.
4. Avaliação do argumento Privacidade vs Segurança
Diz-se que a vigilância cria um efeito arrepiante quando as pessoas desistem de participar
em atividades ao aperceber-se que isso terá algumas conseqncias se o fizerem
47
. A
vigilância impede um indivíduo de desfrutar da sua liberdade, e liberdade de expressão.
As pessoas não se podem movimentar ou falar livremente quando sabem que o estado
os segue a cada passo e todos os seus atos. Isso conduz a uma sociedade que é
bastante semelhante à descrita por George Orwell no famoso romance 'Mil novecentos e
oitenta e quatro'. Na sociedade descrita por Orwell, todos viviam com o medo constante
de serem vigiados pelo Estado e tinham que agir ou pensar da maneira que o Estado
esperava e não da maneira que eles gostariam de pensar. Essa sociedade orwelliana
restringe os movimentos, pensamentos, condutas dos cidadãos no seu cotidiano e torna-
os robôs que deveriam seguir as instruções do Estado, o que pode ser muito prejudicial
para a própria existência de uma sociedade livre.
Em 2013, Edward Snowden expôs a operação da Sede de Comunicação do Governo
(GCHQ), designada 'Tempora', que ele denominou como "o maior programa de vigilância
menos suspeita na história da humanidade"
48
.
Sob a operação ‘Tempora’, grandes volumes de dados retirados de cabos de fibra ótica
puderam ser armazenados durante 30 dias para análise pelo GCHQ. Os dados incluíam
registos telefónicos, conteúdo de mensagens de e-mail, entradas no Facebook, histórico
da internet e muitos outros detalhes, não apenas dos alvos suspeitos, mas também de
pessoas inocentes
49
. Finalmente, a 6 de fevereiro de 2015, o Investigatory Powers
Tribunal considerou que os regulamentos que permitiam o GCHQ aceder a e-mails e
registos telefónicos intercetados pela NSA violavam o artigo 8 e o artigo 10 da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)
50
.
As autoridades judiciárias intervieram e protegeram os direitos dos cidadãos ameaçados
pelo Estado em questões relativas à sua privacidade. O Estado pode tentar justificar essa
vigilância em larga escala e indiscriminada em nome da segurança e proteção dos
cidadãos, mas não se deve esquecer que deve ser traçada uma linha para impedir que o
Estado interfira nas atividades pessoais de cidadãos inocentes em nome da segurança e
proteção. Programas como o ‘Tempora’ dão poderes às agências estatais para recolher
46
Daragh Murray e Pete Fussey, “Bulk Surveillance in the Digital Age: Rethinking the Human Rights Law
Approach to Bulk Monitoring of Communications Data” (2019) 52 Israel Law Review 31, 34.
47
Daragh Murray e Pete Fussey, “Bulk Surveillance in the Digital Age: Rethinking the Human Rights Law
Approach to Bulk Monitoring of Communications Data” (2019) 52 Israel Law Review 31, 43.
48
Ewen MacAskill, Julian Borger, Nick Hopkins, Nick Davies e James Ball, ‘GCHQ taps fibre-optic cables for
secret access to world's communications’ (The Guardian, 21 de junho de 2013)
https://www.theguardian.com/uk/2013/jun/21/gchq-cables-secret-world-communications-nsa acedido em
13 de maio de 2020.
49
Ewen MacAskill, Julian Borger, Nick Hopkins, Nick Davies e James Ball, ‘GCHQ taps fibre-optic cables for
secret access to world's communications’ (The Guardian, 21 de junho de 2013)
https://www.theguardian.com/uk/2013/jun/21/gchq-cables-secret-world-communications-nsa acedido em
13 de maio de 2020.
50
Owen Bowcott, ‘UK-US surveillance regime was unlawful ‘for seven years’ The Guardian (6 de fevereiro de
2015) https://www.theguardian.com/uk-news/2015/feb/06/gchq-mass-internet-surveillance-unlawful-
court-nsa acedido em 13 de junho de 2020.
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dados em larga escala e fornecem acesso a detalhes pessoais. como mensagens de e-
mail.
Nunca devemos esquecer que as agências governamentais não são compostas por um
indivíduo, mas por muitos. Pode haver muitos funcionários que trabalham com
integridade e seguem as diretrizes ou salvaguardas previstas nos estatutos quando usam
dados pessoais para fins de vigilância. No entanto, permanece a probabilidade de que
alguns funcionários com acesso a um volume tão alto de dados destinados a fins de
segurança possam acabar com as salvaguardas fornecidas durante o período de
“emergência ou crise” e fazer uso indevido desses dados
51
. O uso indevido de dados
protegidos o constitui apenas uma invasão, mas também um ato ilegal. A parte mais
lamentável da mineração de dados é que o indivíduo ou as pessoas que estão sob
vigilância nem sequer sabem que estão sob vigilância e que seus atos, incluindo
pesquisas no Google, dados bancários e outros detalhes, são observados pelo Estado. Se
tais atos acontecerem em democracias vibrantes como o Reino Unido, então seria difícil
imaginar as piores formas de vigilância que podem ser realizadas pelos regimes
ditatoriais, onde tal intercetação em larga escala pode ser mal utilizada para amordaçar
as vozes que se opõem ao governo.
O artigo da CEDH é fundamental porque define o direito da pessoa de ter a sua
privacidade respeitada por qualquer organização, ao mesmo tempo que indica as
condições em que é permitido ao Estado, e às vezes autorizado, a “exercer certas
prerrogativas”. “A segurança nacional, a segurança blica [e] a prevenção da desordem
ou do crime” estão entre as razões pelas quais um Estado pode intervir no direito à
privacidade. Assim, pode-se sugerir que para aqueles que redigiram a CEDH, a segurança
sobrepõe-se à privacidade
52
.
As agências de inteligência e segurança estão comprometidas com uma missão. Garantir
a segurança dos cidadãos é a principal razão do seu papel e afirmação sobre os recursos
significativos e governamentais do país
53
. Isso sugere que as agências de inteligência
precisam de ter acesso a informações privadas de um indivíduo para proteger a sociedade
e não devem preocupar-se se estão a cometer um ato ilegal.
outro argumento que favorece a vigilância e sustenta que o pode haver invasão de
privacidade através da mera recolha e organização automática de dados. Como os dados
recolhidos o em larga escala, esses dados passam inicialmente pelos computadores
que buscam números de telefone, nomes e outros detalhes de pessoas que constituem
matéria para os serviços de inteligência governamentais. A “peneiração” automática de
dados pelo computador impede a leitura de dados privados por um funcionário dos
serviços e, portanto, não invade a privacidade
54
. Esse argumento fala a favor da vigilância
e garante que certos protocolos sejam seguidos para fins de vigilância se forma a não
invadir a privacidade.
51
Adam D. Moore, ‘Privacy, Security and Government Surveillance: Wikileaks and the new Accountability
(2011) 25(2) Public Affairs Quarterly 141, 145.
52
Eric Caprioli, Ygal Saadoun e Isabelle Cantero, The Right to Digital Privacy: A European Survey’ (2006) 3
Rutgers Journal of Law & Urban Policy 211, 213.
53
Charles D. Raab, ‘Security, Privacy and Oversight’ in Andrew W. Neal (ed) Security in a Small Nation:
Scotland, Democracy, Politics (Open Book Publishers, 2017) 81.
54
Richard A. Posner, ‘Our Domestic Intelligence Crisis’ Washington Post (21 de dezembro de 2005) disponível
em https://www.washingtonpost.com/archive/opinions/2005/12/21/our-domestic-intelligence-
crisis/a2b4234d-ba78-4ba1-a350-90e7fbb4e5bb/ acedido em 14 de maio de 2020.
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A capacidade de interceção em larga escala do GCHQ também tem causado muitas
preocupações, e foi alegado que observa todas as comunicações na Internet. Mas, de
acordo com a Comissão de Inteligência e Segurança do Parlamento, não é verdade
porque a capacidade de interceção em larga escala do GCHQ é usada apenas para
observar as pessoas que constituem ameaça ou com o objetivo de criar novas pistas de
inteligência, como investigar qualquer ataque cibernético ou plano terrorista
55
. Outra
questão que o relatório abordou foi uma acusação feita contra o GCHQ de que faz
interceção indiscriminadamente”. Refutando essa alegação, a Comissão respondeu: o
GCHQ primeiro escolhe os utilizadores aos quais quer ter acesso (uma pequena proporção
daqueles aos quais podem ter acesso teoricamente) e depois usa seletores específicos,
relacionados com alvos individuais, a fim de recolher dados sobre esses utilizadores
56
.
Esclareceu que visava os indivíduos e não fazia vigilância em grande escala que possa
ter incluído várias pessoas inocentes e, portanto, mantinha limites ao não invadir sua
privacidade.
As vantagens da “interceção em larga escala encontram-se no relatório apresentado
pela Comissão de Intelincia e Segurança do Parlamento em 2015, que afirmou:
“Ficamos surpresos ao descobrir que o principal valor para o GCHQ da interceção em
larga escala o estava na leitura do conteúdo real da comunicação, mas nas informações
associadas a essas comunicações”
57
. A vigilância de dados de comunicação permite,
literalmente, ficar de olho em cada ação de todas as pessoas, descobrir e avaliar os seus
relacionamentos com outros indivíduos e obter ter uma informação abrangente sobre a
vida dessas pessoas
58
.
Estas observações da comissão parlamentar tentam incutir uma sensação de segurança
nas mentes dos cidadãos de que não estão sujeitos a interceções absolutas de larga
escala e não controladas por agências de inteligência e que essas interceções o
motivadas por suspeitos que representam uma ameaça para o Reino Unido.
É importante referir que a questão necessariamente não precisa ser sobre 'privacidade'
ou 'segurança', pois um plano bem-sucedido, implementação consistente e supervisão
meticulosa de extensas medidas de salvaguarda pelos legisladores podem aproveitar a
vantagem da tecnologia para alcançar tanto a privacidade como a segurança
59
.
Conclusão
Não seria correto dizer que tanto a privacidade como a vigilância estão uma contra a
outra, ou que uma supera a outra. Nenhum estado pode negar a necessidade absoluta
de uma ou outra. A menos que o estado tenha provas suficientes que alguém está
55
Intelligence and Security Committee of Parliament: Privacy and Security: A modern and transparent legal
framework (2015) 28, para F https://info.publicintelligence.net/UK-ISC-MassSurveillance.pdf acedido em
15 de maio de 2020.
56
Intelligence and Security Committee of Parliament: Privacy and Security: A modern and transparent legal
framework (2015) 28, para G https://info.publicintelligence.net/UK-ISC-MassSurveillance.pdf acedido em
15 de maio de 2020.
57
Intelligence and Security Committee of Parliament, ‘Privacy and Security: A modern and transparent legal
framework’ (2015) p. 32 [80].
58
Murray D e Fussey P, “Bulk Surveillance in the Digital Age: Rethinking the Human Rights Law Approach to
Bulk Monitoring of Communications Data” (2019) 52 Israel Law Review 31, 52.
59
John P. Heekin, ‘Leashing the Internet Watchdog: Legislative Restraints on Electronic Surveillance in the
U.S. and U.K.’ (2010) 28(1) American Intelligence Journal 40.
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envolvido num crime, as agências de aplicação da lei devem abster-se de intercetar as
comunicações desses indivíduos. A frase os que não têm nada a esconder não têm nada
a temer” não direito absoluto às agências de inteligência de intercetar todas as
comunicações dos cidadãos indiscriminadamente, mas apenas com verificações e
contrapesos.
Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que a conspiração terrorista nos dias de hoje
não se limita a locais físicos, tendo-se igualmente expandido às plataformas digitais,
exigindo vigilância. Assim, o governo, antes de elaborar leis de vigilância mais eficientes
e não intrusivas, deve fazer as devidas deliberações e consultas não apenas com as
agências de aplicação da lei, mas também com organizações externas ao governo.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
210
A RELAÇÃO ENTRE OS DIVIDENDOS EM DINHEIRO E O CRESCIMENTO DOS
LUCROS DAS EMPRESAS COTADAS NA BOLSA DE VALORES DE TEERÃO
MASSOUD KHEIRANDISH
ecomkh@gmail.com
Departamento de Economia, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Gonbad Kavous,
Gonbad (Irão).
MOHSEN MOHAMMADI KHYAREH
m.mohamadi@gonbad.ac.ir
Departamento de Economia, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Gonbad Kavous,
Gonbad (Irão).
.
Resumo
A política de dividendos é uma das decisões financeiras mais importantes que os gestores
encontram. Este estudo contribui para estudos empíricos que examinam a relação entre os
dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas na Bolsa de Valores
de Teerão durante o período 2007-2020. Como resultado, 131 empresas foram examinadas
com o modelo de estimativa de regressão múltipla. Os resultados mostram uma relação
significativa entre os dividendos em dinheiro por ão e o crescimento dos lucros futuros.
Além disso, existe uma relação significativa de interação entre o rácio de pagamento de
dividendos e a hipótese de crescimento do investimento. Esta relação é também observada
para o retorno do capital próprio e o rácio de pagamento de dividendos.
Palavras-chave
Eficiência; crescimento dos ganhos futuros; política de dividendos
Como citar este artigo
Kheirandish, Massoud; Khyareh, Mohsen Mohammadi (2022). A relação entre os dividendos
em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão.
In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.13.1.13
Artigo recebido em 6 Novembro 2021 e aceite para publicação em 16 Março 2022
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na Bolsa de Valores de Teerão
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A RELAÇÃO ENTRE OS DIVIDENDOS EM DINHEIRO E O
CRESCIMENTO DOS LUCROS DAS EMPRESAS COTADAS
NA BOLSA DE VALORES DE TEERÃO
1
MASSOUD KHEIRANDISH
MOHSEN MOHAMMADI KHYAREH
1. Introdução
A previsão é um elemento-chave na tomada de decisões económicas. As decisões
económicas dos investidores, credores, gestores e outras partes dependem de
expectativas e previsões. Uma vez que investidores e analistas financeiros utilizam o
lucro como um dos principais critérios para avaliar uma empresa, e tendem a avaliar a
rentabilidade futura para tomar decisões de manter ou vender ações, julgam o
desempenho de uma empresa com base no lucro porque a alocação de recursos às
unidades de negócio e divisões é feita através de previsões de rentabilidade (Shafai et
al., 2019). É também importante para potenciais investidores. Preveem ganhos e fluxos
de caixa futuros com base no investimento e alocação de recursos de capital (Asadi &
Oladi, 2015). A política de dividendos é uma das questões mais importantes na gestão
financeira, porque os dividendos em dinheiro representam o principal pagamento em
dinheiro de uma empresa e são uma das escolhas e decisões mais importantes
enfrentadas pelos gestores. O gestor deve decidir o montante que é considerado como
lucro distribuído e o montante que será reinvestido na empresa sob a forma de lucros
retidos. Os dividendos são pagos diretamente aos acionistas, e afetam a capacidade da
empresa de acumular lucros para aproveitar as oportunidades de crescimento. De acordo
com a sua própria convicção, cada investidor compra ões de empresas com políticas
de dividendos desejáveis. Os dividendos propostos pelo conselho de administração
contêm frequentemente informações importantes sobre as expectativas dos gestores
quanto à rentabilidade futura da empresa (Mehrani et al., 2010). A este respeito, o
presente estudo investiga o impacto das alterações nos pagamentos de dividendos nas
empresas de crescimento de receitas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão. Quando
uma empresa tem investimentos razoáveis a serem desenvolvidos nos anos seguintes
ou quando uma empresa prevê as suas necessidades financeiras para o ano seguinte,
fornece distribuições ou dividendos a uma assembleia geral de acionistas. Se a
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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assembleia geral concordar com o conselho, os benefícios são distribuídos entre os
acionistas, transferidos para resultados retidos ou contas poupança e dados aos
acionistas sob a forma de ões bonificadas após o projeto ter sido executado. Caso
contrário, os lucros o distribuídos entre os acionistas e depois o capital é aumentado
após o procedimento, se a gerência determinar que a empresa necessita de
financiamento em dinheiro (Jahankhani & Ghorbani, 2005). Vários fatores podem afetar
a política de distribuição de lucros de uma empresa e podem limitar os dividendos. Estes
fatores o determinados para a empresa dentro do quadro obrigatório de leis e
regulamentos, ou a empresa compromete-se a fornecer o desempenho destes fatores.
Geralmente, estes fatores podem ser divididos em três categorias: legal, contratual e
interna. As leis fiscais de alguns países proíbem também os dividendos excessivos sem
fins lucrativos. Embora a definição de dividendos não controlados seja algo ambígua, é
geralmente definida como a manutenção de rendimentos residuais para necessidades de
investimento correntes e futuras. O código fiscal foi concebido para proibir a evasão fiscal
por parte de empresas sem dividendos. Serão impostas sanções às empresas se as
autoridades fiscais detetarem um montante significativo de imposto relevante sem
dividendos. Por conseguinte, quando uma empresa atinge uma posição de grande
liquidez, deve fornecer às autoridades fiscais uma boa razão para manter estes fundos;
caso contrário, deve distribuir fundos adicionais aos acionistas sob a forma de dividendos.
A lei pode também impor restrições adicionais ao pagamento de dividendos. Estes limites
podem refletir-se em dividendos mínimos, ou podem ser propostos como limites aos
empréstimos recebidos, que são determinados com base nos dividendos. São impostas
restrições legais adicionais às ações preferenciais; os acionistas preferenciais recebem
os lucros primeiro, e a empresa não pode distribuir lucros aque os lucros diferidos dos
acionistas preferenciais não tenham sido pagos. Com estas pistas, a principal questão
deste estudo é a relação entre os dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das
empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão. A questão é se a alteração dos
benefícios irá afetar as receitas da empresa.
2. Fundamentos Teóricos
2.1. O Conceito de Dividendo
O conceito de lucro tem sido alvo de críticas no desenvolvimento e gestão das instituições
nos últimos anos, e os teóricos económicos substituíram-no por outros conceitos como
utilidade. Por esta razão, o lucro é frequentemente rejeitado nas críticas e afirma que o
lucro não é a única razão para a formação de uma empresa, mas sim para introduzir
outras razões de bem-estar, sociais, políticas e económicas como o principal objetivo da
formação de empresas (Flint et al., 2010). Os economistas também sabem que a
formação de capital é eficaz para o crescimento e desenvolvimento económico. A
formação de capital provém quer do governo quer do setor privado. Os governos
consideram fatores nos seus investimentos, tais como projetos de infraestruturas,
políticas de orientação económica, fornecimento de instalações para participar na
regulação da oferta e procura de bens e serviços... e lucro no apoio aos objetivos políticos
e militares.
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A relação entre dividendos e retornos: À medida que os lucros são distribuídos, as
empresas devem pagar taxas mais elevadas pela emissão de ações para financiar novos
investimentos. A teoria do retorno dos dividendos explica este aspeto da ambiguidade
da política de dividendos. Uma vez que os gestores sabem mais sobre a rentabilidade
futura de uma empresa do que os investidores externos, podem ter melhores perspetivas
comerciais de retorno de dividendos à medida que os dividendos aumentam, e podem
muitas vezes experimentar preços de ações mais elevados no mercado. Além disso, os
gestores financeiros podem utilizar políticas de dividendos para determinar a qualidade
dos ganhos devido ao seu conteúdo informativo. A este respeito, uma vez que os
investidores externos têm menos informação sobre a rentabilidade futura de uma
empresa, o desempenho dos dividendos é visto como informação derivada dos fluxos de
caixa futuros esperados, uma vez que os preços das ações no mercado respondem
rapidamente às decisões sobre os dividendos. Ross (1987) estudou as características dos
pagamentos de dividendos em modelos de sinais. Na teoria da sinalização, os dividendos
em dinheiro fornecem a perspetiva dos lucros futuros de uma empresa. A empresa está
a receber dividendos em dinheiro, pagando para fornecer mais informações sobre a
rentabilidade futura da empresa no mercado. Lucros mais elevados permitem à empresa
deixar mais dinheiro para ts através dos dividendos; por conseguinte, os dividendos
refletem a rentabilidade estável da empresa.
2.2. Crescimento do rendimento
O crescimento do rendimento é a mudança no rendimento durante um período específico.
A assimetria de informação relacionada com oportunidades de crescimento é maior do
que a relacionada com ativos (Penrose & Penrose, 2009). Assim, quando todos os lucros
retidos tiverem sido feitos, a teoria da hierarquia (Fama & French, 2001; Myers & Majluf,
1982) prevê a prioridade da dívida das empresas com elevadas oportunidades de
crescimento. De acordo com Roth (1977), os credores estão conscientes das elevadas
oportunidades de crescimento das empresas, e oferecem-lhes condições de crédito
ideais. Portanto, de acordo com a teoria da sinalização, a relação esperada entre as
oportunidades de crescimento de uma empresa e as suas responsabilidades é positiva.
De acordo com a teoria da agência, a relação entre as oportunidades de crescimento e
as responsabilidades pode ser positiva ou negativa.
2.3. Revisão da Literatura
Parker (2005) mostrou que ao nível dos índices de mercado nos Estados Unidos, Canadá
e Austrália, os rácios de pagamento de dividendos estão negativamente correlacionados
com o crescimento dos lucros futuros, uma vez que os lucros das ações e os dividendos
são característicos das grandes empresas. Rácios de pagamento de dividendos mais
elevados levam a um maior crescimento dos lucros futuros, que foi a relação mais fraca
na Austrália durante o período 1956-2005.
Sava (2006) estudou a teoria da sinalização de dividendos na Deutsche Börse, e
encontrou algumas provas sobre a relação entre uma redução dos dividendos em dinheiro
e o desempenho futuro de uma empresa, mas as suas descobertas não verificaram que
um aumento dos dividendos em dinheiro tenha um impacto no desempenho futuro das
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empresas. Ambos os estudos (Mayers, 1984; Gul, 1999; Gordon, 1962) confirmam que
os elevados rácios de pagamento de dividendos podem ser prejudiciais ao crescimento
futuro dos rendimentos.
ap Gwilym et al. (2006) estudaram a relação entre o crescimento dos ganhos futuros e
os rácios de pagamento de dividendos e concluíram que o rácio de pagamento de
dividendos é um tópico amplo para os investigadores na modelização teórica. Embora os
investigadores tenham ignorado os rácios de pagamento de dividendos, houve uma
correlação positiva entre os rácios de pagamento de dividendos e o crescimento futuro
dos dividendos. Foi encontrada uma relação negativa atrasada ou um coeficiente
negativo no crescimento do lucro variável. De acordo com a teoria do fluxo de caixa livre,
os pagamentos de dividendos estão inversamente relacionados com o nível de
investimento do PIB e o PIB.
Izadinia (2009) estudou 11 fatores para avaliar a política de dividendos. Estas variáveis
são alavancagem da empresa, dimensão da empresa, dividendos do ano passado,
oportunidades de investimento, dinheiro ganho pelas atividades operacionais da
empresa, lucros esperados para o ano seguinte, juros médios pagos pelas empresas
concorrentes, taxa de inflação, percentagem de free float e crescimento médio dos lucros
ao longo dos cinco anos anteriores taxa e lucros por ação da empresa. Foram
identificadas relações significativas para fatores como a dimensão da empresa, os
dividendos do ano anterior, as oportunidades de investimento, os lucros esperados do
ano seguinte e a inflação, mas não para outras variáveis.
Freshteh Eftekhar Nejad (2009) estudou o efeito dos lucros retidos e distribuídos na
rentabilidade futura e no retorno do capital próprio. Este documento divide os lucros em
duas partes: lucros retidos e dividendos distribuídos; depois, analisa os efeitos dos lucros
retidos e dos lucros distribuídos sobre a rentabilidade futura e o retorno do capital próprio
das empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão. Os lucros retidos incluem os
acréscimos operacionais correntes, acréscimos operacionais não correntes, fluxo de caixa
acumulado e rendimentos de distribuição, incluindo fluxo de caixa para os acionistas e
fluxo de caixa da dívida. 50 empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão, as
empresas no período 2007-2012 foram analisadas por análise de regressão múltipla e
análise de painel (Eftekhar Nejad, 2009).
Dewasiri et al. (2019) identificaram os determinantes da política de dividendos em
mercados emergentes e em desenvolvimento. Os seus resultados mostraram que as
anteriores decisões sobre dividendos, lucros, oportunidades de investimento,
rentabilidade, free cash flow (FCF), governação empresarial, propriedade do país,
dimensão da empresa e influência da indústria como determinantes-chave da propensão
para pagar dividendos. Além disso, os dividendos passados, oportunidades de
investimento, rentabilidade e prémios de dividendos o identificados como
determinantes dos pagamentos de dividendos.
Fakhari e Yousef Ali Tabar (2010) realizaram um estudo intitulado "A relação entre a
política de dividendos e a governação empresarial das empresas cotadas na Bolsa de
Valores de Teerão"; estudaram a relação entre os dividendos e a governação empresarial
como um instrumento para a resolução de problemas. De acordo com uma lista de
controlo, dividiram a governação empresarial em oito categorias: divulgação, ética
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empresarial, formação, cumprimento de requisitos legais, auditores, propriedade,
estrutura de administração, gestão, rácios de ativos e liquidez, cálculos e divisões. Os
resultados mostram que as sociedades por ações utilizam dividendos para a reputação e
prestígio. Relativamente à importante relação entre a governação empresarial e os
dividendos, a governação empresarial tem um impacto menor nos dividendos (Fakhari &
Yousef Ali Tabar, 2010).
No seu estudo, Jahankhani e Ghorbani (2005) pesquisaram os determinantes da DP em
empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão. Concluíram que não existia uma
associação significativa entre crescimento e desenvolvimento da empresa, concentração
da propriedade e o montante de dinheiro e decisões sobre dividendos, enquanto o
aumento do risco, oportunidades de investimento, dimensão da empresa e aumento da
dívida na estrutura de capital foram todos significativamente inferiores aos pagamentos
de dividendos da empresa.
Etemadi e Chalaki (2005) investigaram a relação entre os indicadores de desempenho
da Bolsa de Valores de Teerão (fluxo de caixa operacional, rendimento operacional e
ganhos por ação) e os dividendos em dinheiro. Os resultados mostram uma relação
significativa entre o desempenho corrente de uma empresa e os seus pagamentos de
dividendos em dinheiro. Com base nos resultados, os determinantes mais importantes
dos dividendos parecem ser o EPS, o rendimento operacional, e o fluxo de caixa
operacional, respetivamente. Mashayekh e Abdollahi (2011) examinam a relação entre
concentração de propriedade, indicadores de desempenho e pagamentos de dividendos
corporativos. Os resultados mostram que a concentração da propriedade pode melhorar
o desempenho da empresa, e quanto maior for a concentração da propriedade, melhores
serão os indicadores de desempenho, tais como o ROA e o Tobin Q. Com base na segunda
hipótese, existe uma relação positiva entre o desempenho da empresa e a política de
pagamentos. No entanto, os resultados da terceira hitese afirmam que não se observa
qualquer relação significativa entre a concentração da propriedade e as decisões sobre
os dividendos. Isto significa que, no Irão, a maioria dos acionistas não pode influenciar
significativamente as decisões de pagamento de dividendos.
Abbaszadeh, Vadeei e Pakdel (2012) investigaram a associação de propriedade
institucional, fluxo de caixa e política de dividendos. Os resultados mostram uma relação
positiva significativa entre os níveis de propriedade institucional, propriedade
institucional ativa e política de dividendos. No entanto, a relação entre a propriedade
institucional inativa e a política de pagamento é negativa. Além disso, os resultados
mostram uma associação positiva e significativa entre o fluxo de caixa operacional e as
decisões sobre dividendos das empresas.
Asadi e Oladi (2015) estudaram 133 empresas públicas do período de 10 anos de 2001
a 2010 e mostraram que o determinante mais importante dos dividendos é o risco de
mercado, que es negativamente relacionado, seguido pelo valor de mercado e
contabilístico, e a dimensão da empresa, que está positivamente relacionada.
Kheirkhah et al. (2019) estudaram a relação entre a concentração do mercado e o poder
da Bolsa de Valores de Teerão e a política de dividendos da empresa entre 2010 e 2015.
Os seus resultados mostraram que existe uma correlação positiva significativa entre a
concentração do mercado e o poder de decisão dos pagamentos. Por outro lado, a relação
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entre o poder de mercado e a concentração e o rácio de pagamento de dividendos é
também estatisticamente significativa.
2. Metodologia de Investigação e Dados
Em termos de relevância e metodologia de investigação, trata-se de investigação pós-
experimental quase-experimental no campo da contabilidade empírica; é uma forma de
investigação aplicada porque é realizada com dados reais e pode ser utilizada para
manipular dados. Pela sua natureza e finalidade, este estudo é prático. A investigação
baseia-se em dados do mundo real do mercado bolsista, demonstrações financeiras,
notas às demonstrações financeiras e relatórios de reuniões de empresas. Os dados
necessários para testar as hipóteses foram recolhidos retirando os dados necessários
diretamente das demonstrações financeiras, das bases de dados de Tadbir Pardaz e dos
websites da bolsa de valores. Após a triagem e classificação das empresas de amostras
da indústria, alguns cálculos foram efetuados utilizando o software Excel. A classificação
de stocks é considerada quando se agrupam empresas em diferentes indústrias. Foram
utilizados modelos de regressão linear múltipla para análise estatística; EViews e
software Stata foram utilizados para análise de dados.
2.1. Dados
A amostra para este estudo é de 131 empresas de várias indústrias ativas na Bolsa de
Valores de Teerão de 2007 a 2020, com as seguintes características:
1) O ano fiscal termina a 30 de dezembro.
2) A empresa não deve alterar o seu exercício financeiro;
3) A empresa não deve ser uma empresa do setor devido à natureza do setor ser
diferente das outras empresas-membros;
4) Devido à necessidade de retroceder para 12 meses, os títulos (ações ordinárias) são
negociados em intervalos de 4 meses a partir do início do período.
5) A informação deve estar disponível.
2.2. Desenvolver a Hipótese Teórica
Este estudo utiliza o todo relatado por Zhou e Ruland (2006) para investigar a relação
entre o rácio de pagamento de dividendos e o crescimento futuro dos rendimentos. Sob
uma política de dividendos equilibrada, existe uma relação positiva significativa entre o
pagamento de dividendos e o crescimento futuro dos rendimentos. Por conseguinte,
introduzimos o Modelo (1) da seguinte forma:
EPSGRt + 1 = β0 + β1Payoutt + β2Sizet + β3ROAt+1 + β4Betait + β5AGt+1 + β6DivYieldt + β7EPSGRt + et
Onde:
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EPSGRt+1 é o crescimento dos ganhos futuros. É a medida financeira anual do stock
comum do ano t para o ano t+1 como o próximo crescimento das receitas.
Payoutt é o rácio de pagamento de dividendos. Mede-se dividindo o rácio dos lucros em
ganhos em divisas do ano t para o ano t+1.
Sizet é medido utilizando o logaritmo natural do total dos bens no final do ano t;
ROAt é o rendimento previsto no ano t+1; é um indicador quando o rendimento do
primeiro trimestre no ano t+1 é dividido pelo total dos ativos do trimestre seguinte.
Betat é o fator de risco de mercado (por exemplo, o beta de uma empresa individual)
para o ano t;
AGT+1 é o crescimento futuro dos ativos; mede a taxa de crescimento anual dos ativos
totais em t+1;
DivYieldt é o rendimento dos dividendos (dividendo no final do ano t dividido pelo preço
atual das ações). É o crescimento do rendimento corrente, medido como o aumento anual
do rendimento após impostos do stock comum do ano t-1 para o ano t.
Os lucros por ação (EPS), o retorno dos ativos (ROA) e o retorno dos capitais próprios
(ROE) são frequentemente utilizados para medir os rendimentos futuros. Uma vez que o
EPS é familiar à maioria dos investidores, este estudo toma o EPS como prioridade e
seleciona o ROA e ROE para testes fortes (ap Gwilym et al., 2006). De facto, os
investigadores têm sucesso quando existe uma correlação positiva entre os rácios de
pagamento de dividendos e o crescimento dos ganhos futuros. Portanto, o seguinte
modelo (2) é utilizado para medir a interação entre o pagamento de dividendos e o rácio
de dividendo. Os lucros por ação (EPS), o retorno dos ativos (ROA) e o retorno dos
capitais próprios (ROE) o frequentemente utilizados para medir os rendimentos
futuros. Uma vez que o EPS é familiar à maioria dos investidores, esta pesquisa
prioridade ao EPS e seleciona ROA e ROE para verificação da robustez. De facto, o
investigador mostrou que existe uma correlação positiva entre o rácio de pagamento de
dividendos e o crescimento dos ganhos futuros. Por conseguinte, o seguinte Modelo (2)
é utilizado para medir as interações entre o pagamento de dividendos e o rácio de
dividendos:
EPSGRt + 1 = β0 + β1Payoutt + β2Sizet + β3ROAet + β4Betat + β5AGt + 1 + β6DivYieldt 7DivYieldt *Payoutt
+ β8Epsgrt +et
onde; DivYieldt *Payoutt é o termo de interação entre o rendimento de dividendos e o
rácio de pagamento de dividendos. Combinando os resultados do modelo (2), neste
artigo, procuramos razões para o crescimento dos ganhos futuros do modelo (3) a seguir
EPSGRt + 1 = β0 + β1Payoutt + β2Sizet + β3ROAet + β4Betat + β5AGt + 1 + β6DivYieldt 7 Mt/At + β8 Mt/At
*Payoutt + β8EPSGRt +et
onde; Mt/At é o termo de interação entre o rácio de pagamento de dividendos e a
oportunidade de crescimento do investimento. De facto, o modelo acima examina a
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relação entre o pagamento de dividendos e o crescimento do rendimento das ões em
duas direções diferentes.
3. Resultados empíricos
3.1. Estatística descritiva
A normalidade das variáveis foi investigada nas duas últimas linhas da Tabela 1. -se
na linha da estatística Jarque-Bera que o nível de pontuação é mencionado quer as
variáveis sejam normal ou não-normal. Na linha seguinte, ou última linha, é indicada a
probabilidade de erro de cada variável para investigar a hipótese acima. A este respeito,
nenhuma variável é normal ao nível de probabilidade inferior a 1 por cento. Isto significa
que a hipótese nula é verificada para todas as variáveis. O método de regressão de séries
temporais é utilizado para testar as hipóteses de investigação.
Tabela 1. Estatística descritiva
Variáveis
EPSGRt+1
Payoutt
ROAt
Betat
AGT+1
DivYiel
dt
SIZE
ROE
Crescimento
futuro das
receitas
Rácio de
pagamento
de
dividendos
Rendimento
esperado
dos ativos
para o ano
t+1
Índice de
Risco de
Mercado
Cresci-
mento
do patri-
mónio no
futuro
Lucro
do
rendi-
mento
Dimensão
da
empresa
Rentabi-
lidade
dos
capitais
próprios
Média
0.163
522
0.75
-0.0072
0.12
0.042
25125
0.23
Mediana
0.152
433
0.77
0.014
0.14
0.166
88966
0.201
Máxima
0.435
4000
0.87
2.307
0.15
0.29
22419
0.13
Mínima
0.115
0
0.65
-6.24
14
0.0006
-84942
0.11
Desv. St.
0.81
166972
0.07
0.704
0.0042
0.007
41824
0.032
Jarque-Bera
2.56
622
2.25
1.5
1.73
1.2
2.1
0.9
Probabilidade
0.32
433
0.38
0.56
0.47
0.67
0.41
0.8
A normalidade das variáveis é investigada nas duas últimas linhas da Tabela 1. Como se
pode ver, na estatística Jarque-Bera, o nível de pontuação é mencionado quer a variável
seja normal ou não-normal. Na linha seguinte ou na última linha, a probabilidade de erro
para cada variável é indicada para estudar a hipótese acima. A este respeito, nenhuma
das variáveis é normal a níveis de probabilidade inferiores a 1%. Isto significa que a
hipótese nula é verificada para todas as variáveis. Os todos de regressão de séries
cronológicas são utilizados para testar hipóteses de investigação.
3.2. Resultados das Estimativas de Modelo (1)
O primeiro teste visa investigar a medição eficaz do cio de pagamento de dividendos
nas empresas cotadas na bolsa de valores do Irão. A sua hipótese estatística é definida
da seguinte forma:
De acordo com uma política de dividendos equilibrada, existe uma relação positiva entre
o rácio de pagamento de dividendos e o crescimento futuro das receitas.
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A relação entre os dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas
na Bolsa de Valores de Teerão
Massoud Kheirandish e Mohsen Mohammadi Khyareh
219
H0: Existe uma relação positiva entre o rácio de pagamento de dividendos e o crescimento
futuro das receitas a nível da empresa em empresas cotadas na Bolsa de Valores de
Teerão.
H1: o existe uma relação significativa entre o rácio de pagamento de dividendos e o
crescimento futuro das receitas a nível da empresa em empresas cotadas na Bolsa de
Valores de Teerão.
O modelo de regressão (1) é utilizado a nível corporativo e os dados combinados para
testar a primeira hipótese.
O primeiro teste visa investigar uma medida válida do rácio de pagamento de dividendos
das empresas cotadas na bolsa de valores iraniana. Os seus pressupostos estatísticos
são definidos da seguinte forma:
De acordo com a política de dividendos equilibrada, o rácio de pagamento de dividendos
está positivamente relacionado com o crescimento futuro das receitas.
H0: Para empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão, o rácio de pagamentos está
positivamente correlacionado com o crescimento futuro das receitas a nível da empresa.
H1: Entre as empresas cotadas na Bolsa de Teerão, não existe uma relação significativa
entre os rácios de pagamento de dividendos a nível da empresa e o crescimento futuro
das receitas.
O modelo de regressão (1) foi utilizado a nível da empresa e os dados combinados foram
utilizados para testar a primeira hipótese. Os resultados da estimativa apresentados na
Tabela 2.
Tabela 2: Resultado da regressão do modelo (1)
Variável Dependente: EPSGRt+1
Crescimento futuro das receitas
Método: EGLS agrupado (Pesos de período)
Variável
Coeficiente
Erro St.
Estatística-t
C Intercept
-5.62
4.0
-3.51
Payoutt
2.6
0.9
2.88
SIZE
0.0018
2.84E-08
63.38
ROAt
13.97
0.01
17.46
Betat
-0. 49
0.002
-24.5
AGT+1
2.46
0.28
8.78
DivYieldt
-7.01
0.30
-23.36
EPSGRt
0.01
0.003
3.33
Estatísticas ponderadas
R-quadrado
0.92
Var dependente média
724.59
R-quadrado ajustado
0.92
Var dependente de D.S.
1512.47
S.E. de regressão
76.207
Soma quadrada residente
37127396
Estatística-F
13833.87
Estat de Durbin-Watson
1.82
Prob (Estatística-F)
0
Estatísticas não ponderadas
R-quadrado
0.106
Var dependente média
163.91
Soma quadrada residente
37842275
Estat de Durbin-Watson
1.46
Com base nos resultados apresentados, uma vez que a estatística t para cada variável é
0.000, é possível argumentar que todas as variáveiso verificadas a um nível inferior a
1%; a hipótese nula, indicando que cada variável é zero, é rejeitada. Pelo contrário, a
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A relação entre os dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas
na Bolsa de Valores de Teerão
Massoud Kheirandish e Mohsen Mohammadi Khyareh
220
principal variável de investigação tem uma elevada estatística t (2,88) indicando que o
rácio de pagamento de dividendos das empresas afeta o crescimento dos lucros futuros
com uma probabilidade de erro inferior a um por cento; as empresas têm uma relação
positiva. Portanto, a hipótese H1 é verificada, e pode-se afirmar que existe uma relação
significativa entre o pagamento de dividendos nas empresas cotadas na Bolsa de Valores
de Teerão e o crescimento dos lucros futuros da empresa. Como resultado, a primeira
hipótese é verificada ao nível de confiança de 99%. Desta forma, se o pagamento de
dividendos a empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão aumentar um por cento,
os rendimentos futuros da empresa aumentarão com a taxa de 2,6. Existe uma relação
positiva entre a dimensão da empresa, prevendo o retorno dos ativos para o ano
seguinte, e o crescimento futuro dos ativos para o crescimento futuro das receitas das
empresas. Existe uma relação negativa entre o índice de risco de mercado e o
desempenho dos dividendos para o crescimento dos lucros futuros das empresas.
Com base nos resultados apresentados, uma vez que a estatística t para cada variável é
0.000, pode-se dizer que todas as variáveis o validadas a um nível inferior a 1%; a
hipótese nula de que cada variável é zero é rejeitada. Inversamente, a variável principal
do estudo tem uma elevada estatística t (2,88), indicando que o rácio de pagamento de
dividendos da empresa afeta o crescimento dos ganhos futuros com menos de 1% de
probabilidade de erro; eles têm uma relação positiva. Portanto, a hipótese H1 é
verificada, e pode afirmar-se que existe uma relação significativa entre os pagamentos
de dividendos de empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão e o crescimento dos
lucros futuros da empresa. Como resultado, a primeira hipótese foi validada ao nível de
99% de confiança. Assim, se o pagamento de dividendos de uma empresa cotada na
Bolsa de Valores de Teerão aumentar 1 ponto percentual, os lucros futuros da empresa
aumentarão por um fator de 2,6. Existe uma correlação positiva entre a dimensão da
empresa, o rendimento previsto dos ativos para o próximo ano, o crescimento futuro dos
ativos e o crescimento futuro das receitas da empresa. O índice de risco de mercado e o
desempenho dos dividendos têm uma correlação negativa com o crescimento dos lucros
futuros de uma empresa.
3.3. Resultados das Estimativas de Modelo (2)
O segundo teste visa estudar a relação entre os termos de interação entre o rendimento
de dividendos e o rácio de pagamento de dividendos e o crescimento futuro do
rendimento na bolsa de valores. onde DivYieldt *Payoutt é o termo de interação entre
o rendimento de dividendos e o rácio de pagamento de dividendos, e os seus
pressupostos estatísticos são definidos da seguinte forma:
H0: Para as empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão, o termo de interação
entre o rendimento de dividendos e o rácio de pagamento de dividendos tem uma
relação significativa com o crescimento futuro das receitas.
H1: Para as empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão, o termo de interação
entre o rendimento de dividendos e o cio de pagamento de dividendos não está
significativamente relacionado com o crescimento futuro das receitas. O modelo de
regressão (2) foi utilizado a nível da indústria e os dados combinados foram utilizados
para testar a segunda hipótese.
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na Bolsa de Valores de Teerão
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221
Os resultados estimados deste estudo também confirmam o modelo anterior, exceto que
a variável "DivYieldt *Payoutt" é adicionada. A variável "DivYieldt *Payoutt" é negativa.
Com base nos resultados apresentados, uma vez que as estatísticas t para o rendimento
de dividendos e rácio de pagamento de dividendos são de 0,000, pode dizer-se que estas
variáveis são validadas a um nível inferior a 1%; portanto, a hipótese nula é validada.
Pode também afirmar-se que na Bolsa de Valores de Teerão existe uma relação
significativa entre o pagamento de dividendos de uma empresa cotada na Bolsa e o
crescimento dos lucros futuros da empresa.
Tabela 3: Resultados de Regressão do Modelo (2)
Variável Dependente: EPSGRt+1
Crescimento futuro das receitas
Método: EGLS agrupado (Pesos de período)
Variável
Coeficient
e
Erro St.
Estatística-t
C Intercept
-0.527
2.5
-2.1
Payoutt
1.6
0.6
2.66
SIZE
0.0021
0.0011
1.90
ROAt
11.67
0.7
16.67
Betat
-0. 48
0.1
-4.8
AGT+1
2.32
0.4
5.8
DivYieldt
-6.015
0.79
-7.61
Payoutt*DivYieldt
-5.39
0.86
-6.26
EPSGRt
0.012
0.002
6
Estatísticas ponderadas
R-quadrado
0.970788
Var dependente
média
992.9963
R-quadrado ajustado
0.970756
S.D. var
dependente
3220.122
S.E. de regressão
73.55683
Soma quadrada
residente
34584606
Estatística-F
30345.88
Estat Durbin-
Watson
1.820631
Prob (Estatística-F)
0
Estatísticas não ponderadas
R-quadrado
0.123862
Var dependente
média
163.9166
Soma quadrada residente
37094783
Estat Durbin-
Watson
1.53669
Como resultado, a segunda hipótese foi validada ao nível de 99% de confiança. No
entanto, existe uma correlação negativa entre estas duas variáveis. A este respeito, o
coeficiente de determinação do modelo indica que o modelo explica 97% da variação do
retorno anormal. Se a interação entre o rendimento de dividendos e o rácio de
pagamento de dividendos aumentar em uma unidade, a taxa de crescimento do
rendimento futuro diminui em 5,39 unidades. Isto significa relações negativas para eles.
A relação das outras variáveis é a mesma que a do Modelo 1, e as etiquetas permanecem
inalteradas.
3.4. Resultados das Estimativas de Modelo (3)
O terceiro teste investiga o termo de interação entre os rácios de pagamento de
dividendos e as oportunidades de crescimento das empresas de investimento, e o seu
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na Bolsa de Valores de Teerão
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222
impacto no crescimento dos ganhos futuros das empresas cotadas na Bolsa de Valores
de Teerão. Quando At/Mt é o termo de interação entre o rácio de pagamentos e as
oportunidades de crescimento do investimento, os seus pressupostos estatísticos são
definidos da seguinte forma:
H0: Existe uma relação significativa entre o prazo de interação do rácio de pagamento
de dividendos e as oportunidades de crescimento do investimento das empresas cotadas
na Bolsa de Valores de Teerão.
H1: o existe uma relação significativa entre o prazo de interação do cio de
pagamento de dividendos e as oportunidades de crescimento do investimento das
empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão.
O modelo de regressão (3) foi utilizado a nível da indústria e os dados combinados foram
utilizados para testar a terceira hipótese. Para testar a terceira hipótese com base no
modelo acima referido e os resultados estão resumidos no Quadro (4).
Tabela 4: Resultados de Regressão do modelo (3)
Variável Dependente: EPSGRt+1
Método: EGLS agrupado (Ponderação do período)
Variável
Coeficiente
Erro St.
Estatística-t
C
-3.59
0.76
-4.72
t
Payout
2.4
0.98
2.448
SIZE
0.028
0.009
3.11
t
ROA
10.03
2.90E+00
3.45
Betat
-0. 46
0.2
-2.3
T+1
AG
1.99
0.7
2.84
t
DivYield
-6.78
1.5
-4.52
Mt/A
2.19
1.7
1.28
Mt/A *Payoutt
-4.08
2.11
-1.93
EPSGRt
0.021
0.004
5.25
Estatísticas ponderadas
R-quadrado
0.98
Var dependente média
1027.4
R-quadrado ajustado
0.98
Var dependente de D.S.
3717.3
S.E. de regressão
73.13
Soma quadrada residente
34180011
Estatística-F
42778
Estat Durbin-Watson
1.77
Prob(Estatística-F)
0
Estatísticas não ponderadas
R-quadrado
0.124
Var dependente média
163.92
Soma quadrada residente
37071107
Estat Durbin-Watson
1.53
Com base nos resultados apresentados, uma vez que a estatística t para cada variável é
0,000, pode dizer-se que todas as variáveis são validadas; uma vez que a probabilidade
da estastica t da variável combinada entre o rácio de pagamento de dividendos das
empresas cotadas na Bolsa de Valores de Teerão existe a oportunidade de crescimento
do investimento menos de 0,10 na indústria, portanto H0 é validada. Os rácios de
pagamento de dividendos e as oportunidades de crescimento do investimento
empresarial têm um impacto negativo no crescimento futuro dos lucros empresariais. Os
coeficientes resultantes mostram que se o rácio entre "rácio de pagamento de
dividendos" e "oportunidade de crescimento do investimento empresarial" aumentar em
uma unidade, o crescimento futuro das receitas diminuirá de um rácio de 4,08.
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A relação entre os dividendos em dinheiro e o crescimento dos lucros das empresas cotadas
na Bolsa de Valores de Teerão
Massoud Kheirandish e Mohsen Mohammadi Khyareh
223
4. Conclusão
A política de dividendos é uma das mais importantes políticas fiscais empresariais
consideradas pelos investigadores devido ao seu impacto nas políticas de financiamento
e investimento. Foram propostas várias teorias para a descrever na gestão financeira
moderna, estudando assim novos aspetos dos efeitos e implicações dos pagamentos,
juntamente com outros fatores importantes no mercado de ações e empresas públicas.
As empresas devem considerar muitos fatores para decidir quanto dividendo em dinheiro
pagar. Os dividendos em dinheiro são um aspeto interessante, uma vez que muitos
investidores estão dispostos a prever investimentos futuros e decidem deter ou vender
as suas ações no futuro.
Os resultados mostram que o impacto dos dividendos em dinheiro nos lucros e ões das
empresas pode ser muito útil. Este documento pretende investigar a relação entre os
dividendos e o crescimento futuro dos rendimentos das empresas cotadas na Bolsa de
Valores de Teerão. De acordo com a base teórica da investigação, o principal modelo de
investigação é estabelecido para testar a relação entre a taxa de dividendos e o
crescimento futuro dos rendimentos. Para tal, os investigadores utilizaram informações
da Bolsa de Valores de Teerão de 2007 a 2020. Uma vez que o rácio de pagamentos tem
múltiplas dimensões, a relação entre a dimensão do rácio de pagamentos e o crescimento
futuro das receitas é testada sob a forma de três hipóteses. Utilizando estas três
hipóteses, calcula-se a variável combinada do rácio de pagamentos de dividendos e
investiga-se a relação entre a variável e o crescimento futuro dos rendimentos. Este
artigo é útil para a organização da Bolsa de Valores de Teerão, bem como para empresas
de investimento na bolsa de valores. Além disso, os gestores podem utilizar este artigo
para implementar as suas políticas na empresa.
As empresas cotadas aproveitam os lucros retidos para ajudar as empresas cotadas a
financiar, aumentar a utilidade dos acionistas através de dividendos a tempo e aumentar
os lucros das empresas cotadas. Geralmente, podem ser feitas as seguintes sugestões:
Crescimento da empresa.
- Recomenda-se que os gestores, investidores, etc., prestem mais atenção ao
pagamento de dividendos, uma vez que este tem um impacto significativo no
crescimento dos ganhos futuros.
- Aconselhar gestores, investidores e outros a prestar mais atenção ao pagamento de
dividendos, uma vez que o termo de interação do rendimento de dividendos tem uma
relação significativa com o crescimento dos ganhos futuros através do rácio de
pagamento de dividendos.
- Aconselhar os gestores, investidores e outros a prestarem mais atenção ao pagamento
de dividendos, uma vez que tem um impacto significativo no crescimento futuro dos
rendimentos, aumentando o crescimento das oportunidades de investimento.
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na Bolsa de Valores de Teerão
Massoud Kheirandish e Mohsen Mohammadi Khyareh
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
226
NOTAS E REFLEXÕES
A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL EUROPEU:
EXPERIÊNCIA E TENDÊNCIAS MODERNAS
1
ALEXANDRA BORISOVNA EGOREICHENKO
arsvitae133@gmail.com
Cand.Sc. (Ciência Política) e Assistente do Departamento de Relações Humanitárias
Internacionais da Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Estatal de São
Petersburgo (Federação Russa). Os seus interesses científicos incluem temas como o património
cultural internacional, a cultura europeia, a comunicação cultural, o multiculturalismo e os
estudos urbanos.
1. Introdução
O património cultural europeu é um mosaico rico e diversificado de manifestações
culturais e criativas, um legado de gerações passadas. Inclui sítios naturais, construções
e vestígios arqueológicos, museus, monumentos, obras de arte, cidades históricas, obras
literárias, musicais e audiovisuais, bem como os conhecimentos, práticas e tradições.
A política neste domínio depende principalmente dos Estados-Membros da União
Europeia (UE), das autoridades regionais e locais, das instituições supranacionais, bem
como das suas estratégias e programas. A UE procura popularizar os sítios de património
cultural e proporcionar-lhes um amplo acesso, formar especialistas neste domínio,
desenvolver métodos de conservação e restauro, além de coordenar os esforços dos
Estados europeus e dos intervenientes privados.
De acordo com o estudo Eurobarómetro de 2017 sobre património cultural, 73% dos
inquiridos vivem perto de locais de património cultural, 51% visitam-nos regularmente,
68% consideram que a existência de património cultural pode influenciar a escolha do
seu destino de férias, 68% gostariam de conhecer mais desse património, enquanto 84%
consideram-no importante pessoalmente e para a comunidade (Relatório Eurobarómetro
466, 2017).
1
Texto traduzido por Hugo Alves.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 226-236
Notas e Reflexões
A preservação do património cultural europeu: experiência e tendências modernas
Alexandra Borisovna Egoreichenko
227
Existem muitos locais ricos em património cultural mundial na Europa, que compõem
quase metade da lista dessa categoria tangível da UNESCO. Itália, Espanha, França e
Alemanha estão no topo como os países com maior número de sítios. A Itália é der a
nível mundial.
O património cultural pré-histórico é representado na Europa por tios como a Gruta de
Lascaux, em França, os desenhos rochosos de Valcamonica, em Itália, a Gruta de
Altamira, em Espanha, os monumentos megalíticos de Stonehenge e Avebury, em
Inglaterra. O património cultural da Grécia Antiga inclui as ruínas da cidade de Delfos, o
conjunto da Acrópole de Atenas, os sítios arqueológicos de Delos, os mosteiros de
Meteora, ou a cidade de Rodes. O património cultural da Roma Antiga inclui a Villa
Adriana em Tivoli, a Villa Romana del Casale, as áreas arqueológicas de Pompeia e
Herculano, ou a antiga Siracusa.
O património cultural da Europa Medieval inclui a Catedral de Speyer, na Alemanha, ou
a Catedral de Chartres, em França. O património cultural do Renascimento inclui os
centros históricos de Florença, Veneza, Roma, Verona, Siena, Pisa, ou a Igreja de Santa
Maria delle Grazie com A Última Ceia, em Milão, todos em Itália. O património cultural
da era moderna inclui o conjunto do Palácio e parque de Versalhes, os palácios e parques
de Potsdam e Berlim, na Alemanha.
O património cultural da era contemporânea inclui a obra de Antoni Gaudi em Barcelona,
Espanha, Le Havre, França, a obra arquitetónica de Le Corbusier, a Ferrovia Rhaetiana
em Albula, Suiça, bem como o campo de concentração de Auschwitz, Polónia, que foi
acrescentado à Lista do Património Mundial não pela sua beleza arquitetónica, mas pela
memória de violência associada, a fim de sensibilizar as jovens gerações para os flagelos
do racismo e da discriminação (Lista de património, UNESCO).
Os locais culturais europeus também ocupam uma parte significativa (um quarto) da lista
de património cultural imaterial da UNESCO. Estes incluem, por exemplo, a dança do
flamenco (Espanha), a cozinha francesa (França), a cultura da cerveja (Bélgica), a
falcoaria (Áustria), entre outros. A lista de património imaterial visa contrariar a extinção
das culturas locais e reforçar o papel das tradições e costumes, porque, ao contrário de
monumentos tangíveis que podem ser restaurados, os intangíveis podem desaparecer
por natureza (lista de Património Mundial Imaterial, UNESCO).
A atividade humana tem frequentemente um impacto negativo nos sítios de património
cultural mundial. A lista desse património em perigo está a expandir-se devido a ações
humanas, como a atividade económica ou as condições ambientais. No que diz respeito
a este problema na Europa, em 2016 surgiu a questão de retirar a cidade de Viena da
Lista de Património Mundial da UNESCO devido à violação das restrições de altura, que
é hoje um problema comum entre muitas cidades com centros históricos. Foi também
exigido que as autoridades municipais de Praga, República Checa, reconsiderassem os
seus planos para a construção de edifícios altos, o que poderia perturbar o conjunto
arquitetónico do centro da cidade e comprometer a sua inclusão na lista. Em 2009, a
UNESCO excluiu a cidade de Dresden da Lista de Património Cultural Mundial devido ao
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facto de as autoridades municipais terem decidido construir uma ponte de transporte
sobre o rio Elba, perturbando assim a visualidade histórica da cidade
2
.
2. Legislação internacional e europeia no domínio da proteção do
património cultural
A legislação internacional no domínio da proteção dos monumentos do património
cultural desenvolve princípios éticos e legais para as atividades do Estado, invoca a
cooperação entre as suas estruturas e instituições da sociedade civil, além de incentivar
a proteção do património cultural para manter o desenvolvimento sustentável.
A Lista do Património Mundial da UNESCO é um registo de monumentos culturais, cada
um dos quais satisfaz um ou mais critérios. O estatuto de Património Mundial proporciona
as seguintes vantagens: elevação do vel cultural na região, servindo como garantia
adicional de preservação; aumento do prestígio do território; promoção da popularização
de objetos e asseguramento do afluxo de turistas e investimentos; prestação de
financiamento adequado; garantia de controlo sobre as condições dos locais.
A Convenção da UNESCO de 1972 relativa à proteção do Património Cultural e Natural
Mundial é de importância fundamental na proteção do património cultural tangível. A
Convenção define o património cultural como monumentos (obras arquitetónicas, obras
de escultura e pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica,
inscrições, habitações de cavernas e combinações de características, que são de grande
valor universal do ponto de vista da história, da arte ou da ciência), grupos de edifícios
e sítios de grande valor universal histórico, dos pontos de vista estético, etnológico ou
antropológico (Convenção da UNESCO, 1972).
Um documento da UNESCO dedicado ao património cultural imaterial é a Convenção para
a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial de 2003. De acordo com a Convenção, o
"património cultural imaterial" engloba as práticas, representações, expressões,
conhecimentos, competências bem como os instrumentos, objetos, artefactos e
espaços culturais a elas associados que as comunidades, grupos e, nalguns casos, os
indivíduos, reconhecem como parte do seu património cultural. O património cultural
imaterial também inclui tradições e expressões orais, incluindo a linguagem, ou as artes
performativas. Nem todos os países europeus aderiram a esta convenção; o Reino Unido
continua a não a considerar uma prioridade (Convenção da UNESCO, 2003).
O quadro legislativo do Conselho da Europa começou com a Convenção Cultural Europeia
de 1954, que teve por objetivo desenvolver a compreensão mútua entre os povos da
Europa e a apreciação recíproca da sua diversidade cultural, salvaguardar a cultura
europeia e promover os contributos nacionais para o património cultural comum europeu
(Convenção Cultural Europeia, 1954).
Mais tarde em 1985 foi adotada em Granada, Espanha, a Convenção Europeia sobre
a Proteção do Património Arqueológico, que teve como principal objetivo reforçar e
promover a política de preservação do património europeu. O documento também
2
Dresden removido da Lista do Património Mundial da UNESCO (2009). Disponível em
https://www.bbc.com/russian/rolling_news/2009/06/090625_rn_dresden_unesco.
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reafirmou a necessidade de solidariedade europeia em matéria de preservação do
património e foi solicitado para facilitar a cooperação prática entre as partes. Em 1992,
o documento foi revisto, e uma nova "Convenção Europeia sobre a Proteção do
Património Arqueológico" foi assinada em La Valetta, Malta. Foi estabelecida uma nova
norma jurídica básica para a Europa, que deveria ser coerente com as políticas nacionais
de proteção dos bens arqueológicos como fontes de evidência cienfica e documental,
de acordo com os princípios da conservação integrada (Convenção Europeia, 1992).
O mais recente documento do Conselho da Europa sobre o património cultural é a
Convenção-Quadro de 2005 sobre o Valor do Património Cultural para a Sociedade,
assinada em Faro, Portugal. O objetivo da Convenção de Faro é chamar a atenção
internacional para o património cultural como um conceito amplo e interdisciplinar que
se centra nas pessoas e nos valores humanos, delinear os princípios básicos da
abordagem do património cultural e destacar "o valor e o potencial do património cultural
sapientemente utilizado como recurso ao desenvolvimento sustentável e à qualidade de
vida numa sociedade em constante evolução". A Convenção exorta-nos a reconhecer que
os sítios e os locais não são o que é importante no património cultural; eles são
importantes devido aos significados e utilizações que as pessoas lhes atribuem
(Convenção de Faro, 2005).
O papel da Comissão Europeia baseia-se no artigo 3.3 do Tratado de Lisboa, Portugal,
que estabelece que a União "respeitará a sua rica diversidade cultural e linguística e
assegurará que o património cultural da Europa seja salvaguardado e reforçado". O
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia atribui à Comissão tarefas específicas
de contribuir para o florescimento das culturas nos Estados-Membros, respeitando
simultaneos a sua diversidade e colocando em primeiro lugar "o património cultural
comum" (artigo 167.º). O papel da UE é apoiar e complementar as ações dos Estados-
Membros na preservação e salvaguarda do património cultural da Europa. A Comissão
desenvolveu várias estratégias e programas relevantes e apoia e encoraja a cooperação
política entre os Estados-Membros e as partes interessadas do património (Tratado de
Lisboa, 2007).
Durante a recente Presidência da UE, alguns países têm discutido ativamente questões
de património cultural. Na conferência sobre o "Património Cultural e a Estratégia UE
2020 rumo a uma abordagem integrada" em 2013, a presidência lituana apresentou o
conceito de participação da sociedade local e civil em questões de património cultural e
a necessidade de incluir a opinião pública em todos os domínios da política cultural. No
primeiro semestre de 2014, a presidência grega organizou uma conferência que ligava o
património cultural ao desenvolvimento económico e social sustentável na UE. No
segundo semestre de 2015, a Presidência luxemburguesa reagiu à destruição de Sítios
de Património Mundial no Iraque e na Síria, incluindo a destruição do património cultural
e o tráfico dos seus artefactos como forma de financiamento de atividades terroristas.
Em março de 2017, a UE aprovou a Declaração de Roma, que definiu a preservação do
património cultural, juntamente com a promoção da diversidade cultural, como elemento
de uma Europa social. No segundo semestre de 2017, a presidência estónia dedicou as
suas atividades ao património cultural na era digital.
Em maio de 2014, os ministros da cultura da UE apelaram à "integração e generalização
do património cultural nas políticas nacionais e europeias" e ao "desenvolvimento de uma
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abordagem estratégica do património cultural". Respondendo a este apelo, em julho de
2014, a Comissão Europeia adotou uma comunicação: "Rumo a uma Abordagem
Integrada do Património Cultural para a Europa" (Comunicação da Comissão, 2014).
3. Iniciativas contemporâneas da UE para a proteção e promoção do
património cultural
Atualmente, existem três programas da UE especificamente dedicados ao património
cultural: as Jornadas Europeias do Património, o Rótulo Europeu do Património e o Prémio
da UE para o Património Cultural.
As Jornadas Europeias do Património são o evento cultural mais celebrado da Europa,
que se realiza todos os anos em setembro. O Conselho da Europa começou a iniciativa
em 1985, que mais tarde se tornou uma ação comum organizada com a UE. Em ambas
as organizações, o programa é reconhecido como uma das principais iniciativas
emblemáticas e um exemplo de cooperação bem-sucedida a vel europeu, nacional,
regional e local (Jornadas Europeias do Património).
O Rótulo Europeu do Património é um protótipo da Lista do Património Mundial, mas a
nível europeu. Este rótulo distingue os locais do património cultural europeu, num
reconhecimento atribuído a edifícios, documentos, museus, arquivos, monumentos ou
eventos que são considerados marcos na criação da Europa moderna. O programa é
gerido pela Comissão Europeia.
O Prémio de Património Cultural da UE foi lançado em 2002 pela Comissão Europeia em
parceria com a organização Europe Nostra (uma federação pan-europeia criada para
promover e salvaguardar o património cultural da Europa). O prémio reconhece e
promove as melhores atividades de preservação do património cultural, gestão,
investigação, educação e comunicações nesta área. Destina-se a atrair a atenção do
público para as questões culturais e visa reconhecer o património cultural como recurso
estratégico da sociedade europeia.
Durante a sua existência, organizações e indivíduos de 39 países submeteram um total
de 2.883 candidaturas ao prémio. Quanto ao número de candidaturas por país, Espanha
ocupa o primeiro lugar, com 516 projetos, seguida da Itália, com 296 candidaturas, e do
Reino Unido, com 289 candidaturas.
A UE declarou oficialmente 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural. O objetivo
desta iniciativa foi sensibilizar para as oportunidades que o património cultural traz às
comunidades europeias, principalmente em termos de diálogo intercultural, coesão social
e crescimento económico. De 18 a 24 de junho de 2018, realizou-se em Berlim a Cimeira
Europeia do Património Cultural, com o lema "Partilhar Património Partilhar Valores";
foi reconhecida pela UE como um dos principais eventos públicos do Ano Europeu do
Património Cultural. As principais iniciativas no âmbito do Ano assentaram em ideias
como o envolvimento, sustentabilidade, proteção e inovação.
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4. A teoria do "bem comum" e a governação participativa do património
cultural europeu
A grande importância da participação da comunidade na preservação do património
cultural é confirmada por um vasto leque de literatura, incluindo investigação científica
e convenções institucionais. No entanto, não existe uma definição abrangente para uma
"comunidade", uma vez que a interpretação desta palavra varia de acordo com diferentes
contextos. A comunidade pode ser definida como "um povo com interesses comuns que
vive numa determinada área" ou "um corpo de pessoas com uma história comum ou
interesses sociais, económicos e políticos comuns" (Governação participativa, 2015).
Na Convenção do Património Mundial, a palavra "comunidade" é usada
intercambiavelmente com "comunidade internacional", "governos locais e regionais",
"gerações presentes e futuras de toda a humanidade", "comunidades locais, organizações
não governamentais e outras partes interessadas", o público, a sociedade civil e a
população local.
A Convenção de Faro do Conselho da Europa sugeriu a noção de "comunidade
patrimonial" para se referir às pessoas "que valorizam aspetos específicos do património
cultural que desejam, no âmbito da ação pública, sustentar e transmitir às gerações
futuras". Os membros de uma sociedade civil podem constituir uma "comunidade
patrimonial" se entenderem mutuamente o património cultural como uma plataforma
emocional e intelectual na qual se constroem valores individuais e comunitários. A
comunidade é essencialmente valiosa, uma vez que a coesão das pessoas gera um
interesse comum.
O património cultural europeu deve ser considerado do ponto de vista da teoria do bem
comum, uma vez que, em última análise, pertence à humanidade, à sociedade europeia,
e é gerido por instituições de património cultural para as gerações futuras.
Num sentido geral, o termo "bem comum" descreve um "bem" específico que é partilhado
e benéfico para todos. O bem comum não pertence a ninguém; é comum, mas benéfico
para todos (Starr, 2013).
Centros históricos de cidades, monumentos, museus locais, parques e paisagens
beneficiam a comunidade, podem ser fundamentais para o desenvolvimento local,
ajudando a melhorar a qualidade de vida desta comunidade e, em última análise,
proporcionar integração, coesão social e desenvolver um sentido de pertença.
O património cultural, que é um bem comum para toda a comunidade europeia, tem de
ser governado e, nesse sentido, é necessário referir-se ao termo "governação
participativa", ou como é habitualmente chamado na tradição russa, "parceria público-
privada", ou seja, o paradigma da participação dos cidadãos e das comunidades em
questões que os afetam.
A governação participativa fortalece as relações entre locais e profissionais do património
cultural, bem como todos os interessados. A governação participativa do património
cultural tangível, imaterial e digital é uma abordagem sustentável inovadora que
contribui de forma real para a governação e valorização do património cultural.
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O Conselho da UE, nas suas "Conclusões sobre a Governação Participativa do Património
Cultural", de novembro de 2014, apelou à participação dos sectores público e privado a
todos os níveis de tomada de decisão. Apelou ainda a uma "cooperação reforçada entre
os Estados-Membros da UE, a fim de identificar e divulgar as melhores práticas sobre
abordagens de baixo para cima para uma gestão conjunta inclusiva do património
cultural".
O documento convida os Estados-Membros a "desenvolverem quadros de governação
multinível e multi-partes interessadas que reconheçam o património cultural como
recurso partilhado, reforçando as ligações entre os níveis local, regional, nacional e
europeus de governação do património cultural, com o devido respeito pelo princípio da
subsidiariedade, de modo a que os benefícios para as pessoas sejam previstos a todos
os níveis; promoverem a participação das partes interessadas relevantes, garantindo que
a sua participação seja possível em todas as fases do processo de tomada de decisão;
diligenciarem quadros de governação que reconheçam a importância da interação entre
o património cultural tangível, imaterial e digital e que abordem, respeitem e reforcem
os seus valores sociais, culturais, simbólicos, económicos e ambientais; forcejarem
quadros de governação que facilitem a implementação de políticas transversais,
permitindo que o património cultural contribua para objetivos em diferentes áreas
políticas, incluindo o crescimento inteligente, sustentável e inclusivo..." (Conclusões
sobre a Participação, 2014).
Os Estados europeus reconhecem a importância de proteger os monumentos históricos
e culturais e prosseguir uma política ativa nesta área, baseada no conceito de governação
participativa.
A Itália, sendo der no número de monumentos do património cultural, confere à sua
proteção uma das prioridades da política cultural. O país criou um sistema de organismos
e institutos estatais para a proteção do património: o Ministério dos Bens Culturais e
Ambiente (transformado em Ministério do Património Cultural e atividades), o Ministério
das Obras Públicas de Restauro de Objetos, o Ministério do Turismo e o Ministério da
Proteção Civil.
A atração de investimento privado para a proteção do património é amplamente utilizada
no país. Cerca de 60% da propriedade da Itália é privada. Os patrocinadores são os
bancos, as empresas e companhias de seguros. A experiência bem sucedida da
cooperação levou as agências governamentais a criarem unidades estruturais de
governação como fundos mistos do Estado privado. Organizações públicas, como a Italia
Nostra, que opera desde 1955 para proteger monumentos culturais, desempenham um
papel importante no sistema governamental do património cultural (Mironova, 2009).
Um exemplo de uma parceria público-privada de sucesso em Itália é a proteção do
Património Mundial As Áreas Arqueogicas de Pompeia, Herculano e Torre Annunziata.
Estas áreas arqueológicas, enterradas pela erupção do Vesúvio, foram durante muito
tempo na propriedade e governação do Estado, reguladas por um sistema estatal
centralizado, e experimentaram subfinanciamento crónico. Durante a reforma, o
gabinete do património local recebeu autonomia financeira e administrativa do ministério,
que proporcionou um aumento do financiamento e redução da burocracia. Em 2001, foi
implementada uma parceria público-privada conhecida como O Projeto de Conservação
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do Herculano 79, que contribuiu para a conservação e governação da área arqueológica.
O sucesso desta iniciativa resultou de rios fatores, e o projeto baseou-se em ões
tomadas pelo gabinete do património local. O Projeto de Conservação do Herculano, que
é coordenado conjuntamente pelo Instituto de Humanidades de Packard, pela Escola
Britânica de Roma e pela Soprintendenza Archeologica di Pompei, está empenhado na
restauração, conservação de materiais orgânicos e documentação (Hammer, 2015).
O Reino Unido oferece uma abordagem original à proteção do património. Aqui, um papel
especial é desempenhado por uma organização de caridade, completamente
independente do Estado, fundada em 1895: The National Trust. Esta sustenta-se em
taxas de adesão, doações e rendimentos de vários eventos; o objetivo da organização é
salvaguardar áreas protegidas, terras agrícolas, restos arqueológicos, reservas naturais,
aldeias, casas históricas, jardins e até bares (Relatório anual do National Trust, 2017).
Na Alemanha, o Museu de Berlim, Património Mundial da UNESCO desde 1999, é um bom
exemplo da governação participativa de um património cultural. O museu é a instituição
mais importante do património cultural, tornando-se mais aberto e democrático, logo,
menos elitista. Berlim é uma cidade muito moderna e em rápido desenvolvimento, e o
Museumsinsel tornou-se um dos centros do seu desenvolvimento cultural e económico
através da captação de investimento. O museu tem colaborado com muitas empresas
internacionais para o seu desenvolvimento: Allianze Group, Bank of America, Merill
Lynch, Deutsche Bank. Os investimentos privados no desenvolvimento da facilidade
atingiram 2,8 milhões de euros em 2012 (Ioannou, 2013).
Quanto às iniciativas de preservação do património cultural europeu "a partir de baixo",
devemos referir o crowdfunding, o chamado "financiamento público", que é uma
associação voluntária de base para a cooperação coletiva e financiamento de quaisquer
projetos. No domínio do financiamento de projetos de património cultural através de
crowdfunding, a Europa tem feito um grande avanço nos últimos anos.
Por ordem da Comissão Europeia, para tornar a ferramenta de crowdfunding mais
acessível a projetos culturais e criativos, foi criada a plataforma pan-europeia na
Internet, Crowdfunding4Culture (www.crowdfunding4culture.eu). Em França, desde
2010, a plataforma Ulule tem vindo a funcionar, com base no qual foram implementados
mais de 4.000 projetos culturais. A Suécia lançou a CrowdCulture
(www.crowdculture.se), Espanha Goteo (www.goteo.org), Itália Derev
(www.derev.com), Suíça Wemakeit (www.wemakeit.com). Na Grécia, a plataforma
Act4Greece foi lançada em 2016 com o apoio do Banco Nacional da Grécia. No âmbito
desta plataforma, os fundos foram totalmente recolhidos para a restauração do Teatro
de Arte Karolos Koun.
Conclusão
Em conclusão, a cultura europeia e os seus valores continuam a ser a conquista mais
importante da humanidade, que deve ser simultaneamente protegida e desenvolvida. A
Europa tem sido e continua a ser der mundial no número de sítios de património cultural,
que é um fator determinante para o desenvolvimento regional e continental.
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O património cultural da Europa é o que torna os seus habitantes europeus, uma vez que
reflete os seus diferentes e comuns valores, cultura e história. Esta é a verdadeira
personificação da "unidade na diversidade" europeia, que alimenta um sentimento de
pertença à comunidade local, bem como um sentimento de unidade e solidariedade. O
património cultural liga entre si gerações ao longo de muitos séculos de história comum,
sendo a base para um diálogo respeitoso de culturas e interação entre comunidades
europeias e outras culturas do mundo. O património cultural é também um factor-chave
no desenvolvimento sustentável e no reforço da coesão social; introduz beleza no
ambiente e, assim, melhora o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas e
comunidades.
É seguro dizer que o tema da salvaguarda do património cultural europeu é
extremamente relevante, uma vez que muitas iniciativas e programas neste domínio
foram implementados nos últimos anos.
O principal novo fenómeno é o conceito de governação participativa e uma mudança do
entendimento de que a proteção do património cultural é apenas uma prerrogativa do
Estado para a compreensão de que a sociedade deve e está interessada em participar na
governação do património cultural. Assim, a base conceptual para o estudo do património
cultural europeu deve ser a "teoria do bem comum" e a "teoria das bases", uma vez que
os documentos jurídicos da UE se referem às categorias de "património comunitário".
À medida que o reconhecimento da ligação entre o património cultural e o bem-estar
social aumenta, o apelo a uma maior participação do público nas práticas de conservação
está a ganhar força e dinamismo. Por conseguinte, a preservação dos objetos culturais
deve hoje estar mais centrada no serviço das pessoas e no papel dominante das
comunidades locais na influência das decisões.
A governação conjunta do património cultural oferece oportunidades para promover a
participação democrática, a sustentabilidade e a coesão social, bem como para resolver
os problemas sociais, políticos e demográficos. De igual modo, apoia a participação ativa
das partes interessadas relevantes (no âmbito das ações públicas), isto é, as agências
governamentais, os intervenientes privados, as organizações da sociedade civil, as
organizações não governamentais e os voluntários, na tomada de decisões,
planeamento, desenvolvimento, acompanhamento e avaliação das políticas e programas
do património cultural. Além disso, reforça a responsabilidade e a transparência do
investimento nos recursos públicos, bem como a confiança do público nas decisões
políticas; também promove a consciencialização dos valores do património cultural como
recurso partilhado.
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Como citar esta nota
Egoreichenko, Alexandra Borisovna (2022). A preservação do parimónio cultural europeu:
experiência e tendências modernas. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13,
1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.01
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Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
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NOTAS E REFLEXÕES
ANARQUIA INTERNACIONAL REVISADA:
OS DESAFIOS ONTOLÓGICOS DE UMA CONCEÇÃO PÓS-SOCIAL
1
CAROLINA ENCARNAÇÃO CORREIA
carolinacorreia53@gmail.com
Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais com especialização em Relações
Internacionais, NOVA-FCSH (Portugal). Licenciada em Ciência
Política e Relações Internacionais. Membro Fundador e Presidente da Direção da Orbis-
International Relations Studies Association. Integrou o Núcleo de Estados de Ciência Política e
Relações Internacionais e a Youth Association of Geopolitical Understanding.
Introdução
O conceito de anarquia internacional é apresentado com grande relevância nas variantes
do realismo e é o ponto que diferentes teorias de Relações Internacionais identificam
como comum. É nas consequências e na interpretação dessa anarquia que as visões
tendem a contrastar. No entanto, o presente excurso, intenta uma reflexão crítica sobre
esses mesmos pressupostos ontológicos de anarquia internacional sobretudo, aqueles
apresentados pela escola realista, especificamente, a vertente neorrealista.
Dentro da própria literatura realista, os pressupostos de anarquia internacional tendem
a variar na sua interpretação, destacando-se a vio realista clássica de inspiração
kantiana de Raymond Aron e a visão estruturalista de inspiração hobbesiana de Kenneth
Waltz. As diferenças entre estes pensadores ressalvam-se no foco de análise: Aron detém
uma veia mais historicista e presta atenção à heterogeneidade interior dos Estados para
conceptualizar ontologicamente a anarquia internacional; Waltz com uma veia inspirada
pela metodologia económica, procura uma construção teórica das Relações
Internacionais através da interconexão entre fatores e conceitos, sendo o de maior
destaque o conceito de anarquia internacional. É este que o desenha como esta ausência
de poder coercivo a vel supranacional, que resulta inevitavelmente em violência (Waltz,
1979). A primeira parte da definição não tende a ser contestada pelas restantes escolas,
o foco de discussão tende a centrar-se nos resultados que a anarquia gera
internacionalmente. Neste sentido, esta excuro procura alargar o foco de discussão
1
Texto traduzido por Hugo Alves.
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aos pressupostos ontológicos, distanciando-se da avaliação das suas consequências
estruturais.
A escola construtivista levanta queses essenciais à discussão dos pressupostos
ontológicos de anarquia internacional e representa um desafio à interpretação
neorrealista de anarquia. Alexander Wendt, em «A anarquia internacional é aquilo que
os Estados fazem dela», destaca a importância do processo social na conceção de
anarquia, permitindo uma fenomenologia pós-social desligada de uma relação com o
estado de natureza dos Estados. Este é o ponto fundamental onde esta excursão
ultrapassa o pensamento de Wendt e se diferencia, naturalmente, da perspetiva
waltziana.
Conceptualização e mobilização dos conceitos de anarquia internacional,
estado de natureza, estrutura e poder estrutural
A publicação de Teoria das Relações Internacionais, por Kenneth Waltz, em 1979, veio
moldar o debate teórico das Relações Internacionais enquanto disciplina e colocar o
neorrealismo como a escola de pensamento dominante à época. Das suas contribuições
destaca-se a base científica que forneceu ao pensamento realista interligada com
fundações filosóficas, que contribuíram para o fortalecimento das teorias das Relações
Internacionais (Buzan, 1993: 1).
Nesta obra, Waltz (1979) inspira-se nos princípios realistas, mas tenta distanciar-se dos
realistas clássicos, identificando-se como neorrealista. O realismo clássico construi-se
através de uma tradição literária baseada na teoria e na prática das relações
internacionais após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo com contributos de Carr,
Morgenthau, Raymond Aron, Niebuhr, entre outros. Estes pensadores caracterizavam-se
como “realistas”, porquanto predisponham-se a analisar os objetos de estudo conforme
aquilo que eram e não aquilo que gostariam que fosse (Buzan, 1993: 1-2).
Assim, segundo Buzan (1993), aquando afirmação de Waltz enquanto neorrealista, a
primeira resposta dos pensadores da disciplina foi a de procurar encontrar os pontos em
comum entre o realismo clássico e neorrealismo, destacando a coerência que existe entre
o pensamento de Waltz com uma tradição realista que poderia remontar a Hobbes e
Tucídides (Buzan, 1993: 2). Destacam-se três premissas comuns entre estas correntes:
a natureza das relações internacionais é essencialmente conflitual; a essência da
realidade social é o grupo, em vez do indivíduo, particularmente o Estado ou grupo
conflitual; a principal motivação humana na vida política é o poder e a segurança (Gilpin
apud Keohane, 1986: 304-305).
A segunda resposta, destacada por Buzan (1993), foi a de procurar as distinções entre
as duas correntes teóricas, destacando-se sobretudo as diferenças entre a tradição
hermenêutica dos realistas clássicos e a base estruturalista do neorrealismo. Walker
(1987) destacou a predisposição clássica para o enfoque na abordagem histórica na
análise da realidade social que permite compreender o desenvolvimento das práticas dos
atores sociais, em contraste com a predisposição neorrealista de analisar a realidade
social de forma estabilizada e estruturada. Por outras palavras, as afirmações de Walker
(1987) implicam que os realistas clássicos se focam mais no agente ao passo que os
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neorrealistas colocam a sua perspetiva sobre a estrutura. Porém, este argumento carece
de desenvolvimento por não aferir as relações agente-estrutura (Buzan, 1993: 2).
Buzan (1993) avança ainda uma terceira resposta: a crítica de que tanto o realismo
clássico como o neorrealismo necessitam de estender e desenvolver as suas fundações
teóricas.
O enfoque principal na literatura da cada de 1980 estava sobretudo relacionado com
a necessidade de encontrar os pontos em comum entre realismo clássico e neorrealismo,
de modo a diferenciar esta escola de pensamento da corrente neoliberal ou novo
institucionalismo. No entanto, também existiam teóricos que procuravam encontrar um
ponto de reconciliação entre a corrente realista e a neoliberal (Niou & Odershook, 1991
apud Buzan, 1993: 2-3), tal como é exemplo o trabalho de Hedley Bull (1995) sobre a
sociedade internacional e a anarquia internacional. Isto conduziu a que alguns teóricos
do campo acusassem a disciplina de perder a sua orientação, recaindo sobre uma falta
de progresso substantivo (Holsti, 1985: 1-2; Fergunson & Mansbach, 1988; Onuf, 1989:
8 apud Buzan, 1993: 3-4). Para a reflexão que se pretende realizar, a crítica mais
relevante sobre a perda de orientação da disciplina recaía sobre o facto de todas as
teorias se desenvolverem sobre premissas erróneas, tal como a anarquia internacional
ser considerada o princípio central e fundamental das Relações Internacionais, quando
se trata, para Onuf (1989), de um conceito vazio (Onuf, 1989: 14).
No seguimento do excurso, surge a necessidade de clarificar que embora Kenneth Waltz
(1979) tenha sido pioneiro na aplicação do estruturalismo nas Relações Internacionais,
concretamente, no seio da escola Realista, o estruturalismo foi um movimento que
dominou as ciências sociais no século XX. Os estruturalistas insistiam que as ciências
sociais devem ir além das self-conceptions e dos motivos, porquanto os indivíduos são
restritos por forças estruturais sobre as quais não dem qualquer controlo e podem nem
saber da sua existência (Buzan, 1993: 5). Buzan (1993: 6) avança que esta abordagem
estruturalista permite romper com os pressupostos de estado de natureza para
fundamentar o comportamento dos agentes, segundo uma lógica realista.
No entanto, para Kenneth Waltz, a estrutura tem três dimensões: os princípios
ordenadores (i.e. anarquia), os princípios diferenciadores e a distribuição de capacidades
(Waltz, 1979: 79-101 apud Wendt, 1995: 134). Estes aspetos, embora realcem a
disposição dos agentes, não permitem compreender o comportamento dos mesmos,
porquanto esse fator depende sobretudo da intersubjetividade (Wendt, 1995: 134),
conceito que é alheio à teoria waltziana.
A crítica que mais adiante será feita a Waltz não se relaciona com o caráter estruturalista
da sua teoria, mas com o facto de esta se caracterizar como anárquica e a abordagem
primar pelos grupos conflituais como objeto de estudo, de modo a alcançar as premissas
realistas supramencionadas e a justificar a lógica de poder do sistema internacional. Pelo
que, a crítica é direcionada especificamente aos pressupostos realistas e não à
generalidade da sua abordagem estruturalista. Essa crítica basear-se no pressuposto
wendtiano de que a estrutura é constituída por condições materiais, interesses e ideias
(Wendt, 1999: 139), que aliados à intersubjetividade implicam que a estrutura seja
socialmente constituída i.e. dependente de um processo de socialização.
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Depreende-se, dos pressupostos apresentados sobre o estruturalismo, que existe uma
relação entre o conceito de estrutura e o conceito de estado de natureza que merece o
seu devido esclarecimento, com vista à compreeno do que é entendido como processo
de socialização e como pós-social.
A ordem de pensamento deve inspirar-se em Waltz (1979) e Aron (1968) e, tal como
estes pensadores, partir de pressupostos antropológicos, inspirados em Rosseau, para
encarar o estado de natureza como um estado não-sistémico onde não existe estrutura
social, porquanto as unidades políticas se encontram isoladas, desconhecendo a
existência de outras. Apenas quando as unidades políticas começam a interagir entre si
ou seja, iniciam o processo de socialização é que o sistema internacional se forma
(Buzan, 1993: 68-70) e as estruturas que o caracterizam emergem. Como para Waltz o
princípio ordenador da estrutura que caracteriza o sistema internacional é a anarquia
internacional, então esta só pode ser constituída após interação entre unidades políticas
ou seja, após início do processo social, sendo, por isso, pós-social. O processo de
socialização, analisado adiante, baseado nos pressupostos construtivistas wendtianos de
anarquia internacional também demonstrará esta mesma conclusão.
Até este ponto, a lente ainda não incidiu diretamente sobre o conceito de anarquia
internacional, aquele que é o objeto em análise, porém, é possível destacar alguns
pontos relevantes: primeiro, a anarquia internacional, seja na abordagem waltziana ou
na abordagem wendtiana, é uma característica da estrutura internacional; segundo,
sendo característica da estrutura internacional, a anarquia internacional não pode existir
no estado de natureza, tendo como condição necessária a interação entre unidades i.e.
o processo de socialização; terceiro, e tendo em consideração o segundo ponto, a
anarquia internacional é pós-social.
pressupostos neorrealistas em que o conceito de estado de natureza surge
erradamente associado ao conceito de anarquia internacional, sendo instrumentalizado
para explicar a origem de uma arena anárquica com base na natureza das unidades
constituintes (Little, 1993: 136-138). Este tipo de análise recorre sobretudo a
comparações com o estado de natureza hobbesiano para explicar a lógica de self-help e
o princípio de salvaguarda da segurança e autossuficiência dos Estados, como se poderá
verificar adiante. Porém, se a lógica por de trás do conceito de anarquia está interligada
com a natureza das unidades políticas, então se existir uma transformação na natureza
das unidades, também é possível uma transformação na lógica da anarquia (Little, 1993:
136-138).
A anarquia internacional é definida por Waltz (2014: 130) como «the absence of a central
Monopoly of legitimate force» acima das unidades políticas, para Wendt (1995) podemos
concluir que a anarquia é socialmente construída. No entanto, a sua definição e
operacionalização é demasiado limitada, revelando-se como um conceito que tudo
sustenta, mas que pouco o explica, como defendia Onuf (1989). O sentido lexical da
palavra anarquia remete para desordem, inexistência de regras ou ainexistência de
uma estrutura normativa (Fernandes, 2012: 88). Paradoxalmente, o sentido que lhe é
empregado em Relações Internacionais implica exatamente o oposto.
Sobre a definição waltziana é de salientar que a ausência de um poder coercivo acima
dos Estados não implica necessariamente que estes se encontrem num estado de
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natureza, como analisamos anteriormente. Ademais, quando se refere o monopólio
legítimo da força, faz-se referência à força coerciva; no entanto, isso não implica que as
unidades políticas (i.e. os Estados) não sejam limitadas por forças estruturais, que
atuam acima delas e condicionam o seu comportamento. Esse tipo de poder, a existir,
apenas se poderá formar a nível estrutural ou seja, acima dos Estados -, como
característica da estrutura internacional. A existir uma força desta natureza, continua a
existir anarquia internacional?
Barnett & Duvall (2005) desenvolveram uma taxonomia sobre o conceito de poder,
baseada na conceptualização da dualidade agente-estrutura, procurando focar na relação
entre o contexto social e a ação humana. Uma das tipologias abordadas é a
conceptualização de Poder Estrutural, que opera de uma forma direta, específica e
mutuamente constitutiva nas relações sociais dos agentes (Barnett & Duvall, 2005: 48-
49). Este conceito de poder estrutural, embora reconheça a capacidade transformadora
que os agentes podem ter, uma ênfase ao papel condicionante da estrutura sobre a
agência (Barnett & Duvall, 2005: 49). É este poder caracterizante da estrutura que define
a natureza e que tipo de agentes sociais as unidades políticas serão, estabelecendo as
normas intersubjetivas que definem os interesses que sustentam as ões (Barnett &
Duvall, 2005: 53).
Portanto, a mesma estrutura que, para Waltz, é caracterizada pela anarquia internacional
como princípio ordenador, poderá deter como característica, também, a aplicação de um
poder estrutural que molda o comportamento das unidades políticas. Sendo, em termos
lexicais, anarquia e poder termos opostos, então a anarquia internacional, sendo
característica da estrutura e, por isso, resultado do processo de socialização (o que faz
dela pós-social) -, recai sobre um paradoxo.
Ademais, entendendo a anarquia internacional como resultado do processo de
socialização, de forma a ser uma característica da estrutura, então esta é
institucionalizada como uma norma que compõe a estrutura. Ou seja, tal como o poder
estrutural é canalizado através do processo de socialização para limitar a ação humana,
também a anarquia internacional é canalizada para (não) limitar a ação dos Estados.
Essa institucionalização de uma ausência de um monopólio de força legítima acima dos
Estados (norma da não norma) é aplicada precisamente através de mecanismos de força
estrutural que condicionam as ações das unidades políticas. Este processo social de
institucionalização de normas será explicado adiante.
Análise dos pressupostos realistas de anarquia internacional
desenvolvidos por Raymond Aron e Kenneth Waltz
A visão realista clássica destaca a anarquia internacional como um elemento único
característico das relações entre os Estados, sendo esta a explicação da ocorrência de
conflitos entre os mesmos (Aron, 1966: 724). Assim, numa coletividade de soberanias
cada uma delas reger-se pela sua própria lei e os soberanos não devem reconhecer
obediência a mais ninguém, sendo o Estado o detentor do monopólio legítimo da
violência, aplicando o seu poder externamente sem constrangimentos (Aron, 1968: 28).
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Para Aron (1968), o Homem é naturalmente um animal social que atinge o máximo da
sua potencialidade através da sociedade, que permite a acumulação de conhecimento e
poder entre gerações. No desenvolvimento deste argumento, inspirado pelas críticas de
Kant a Rosseau, Aron utiliza a metodologia antropológica deste último para
empiricamente fortalecer o seu pensamento com o exemplo de desenvolvimento das
sociedades do Neolítico, que através da formulação de um quadro de valores, um estilo
de vida e uma forma de ver o mundo característica de cada uma delas começaram a
identificar os seus comuns e os “estrangeiros”. Esta estranheza e identificação da
diferença não implica necessariamente um ambiente hostil entre as socialidades, significa
que cada socialidade se desenvolveu consciente da sua originalidade e da sua cultura
própria, celebrando a descoberta de serem diferentes de outros. Perante tal pressuposto,
as relações internacionais são denotadas de cultura e, portanto, não derivam do estado
natural, sendo os conflitos uma parte integral das civilizações e uma forma de relação
entre Estados também não advêm do estado de natureza, mas sim da cultura (Aron,
1968: 30).
A distinção filosófica entre estado de natureza onde cada um pode contar apenas
consigo mesmo” e sociedade civil onde reina a lei, se presta justiça através dos
tribunais e onde a polícia supressa a violência” (Aron, 1968: 31) não implica que as
relações entre Estados continuem a representar um estado primário de guerra de todos
contra todos (Aron, 1968: 31) - ou seja, de uma inimizade primitiva que surge
espontaneamente no contacto com a diferença -, esta distinção é fruto da experiência
histórica. As cidades-estado e os impérios foram construídos através da violência, sem
que existisse uma entidade superior que procedesse à supressão da mesma. Desde esse
momento, a experiência histórica tem demonstrado que todos os sistemas internacionais
têm sido anárquicos, pois não se têm submetido a uma soberania. Uma soberania deste
calibre, ao ser reconhecida, anularia a autonomia, a independência e a soberania dos
Estados. Por este motivo, a ordem das relações entre Estados é anárquica e essa
anarquia tem sido fomentada pela experiência histórica (Aron, 1968: 30-32). Esta visão
de Aron (1968) acompanha a linha de pensamento exposta anteriormente.
A escola neorrealista, que ganha ímpeto na figura de Kenneth Waltz, herda os contributos
dos realistas clássicos, mas inspira-se no pressuposto de que: “Entre Estados, o estado
de natureza é um estado de guerra (Waltz, 2014: 130). Este princípio permite a
comparação com o pressuposto hobbesiano de estado de natureza. Não existindo um
governo coercivo de furor internacional, que detenha o monopólio da violência no sentido
weberiano, desconhece-se quando um conflito pode despoletar. Sendo, a anarquia
internacional esta ausência de regras supranacionais associadas à ocorrência de violência
(Waltz, 2014: 130), os Estados interagem num ambiente de insegurança constante, onde
procuram ganhos próprios, colocando em causa a sobrevivência dos seus pares (Bull,
1981: 721).
Deste modo, na esfera anárquica, as unidades similares(Waltz, 2014: 131) coagem,
tentando manter uma autonomia numa lógica de self-help, onde cada unidade investe
na produção de meios para a sua proteção contra outros, subentendo que cada unidade
servirá aquilo que ditam os seus interesses. Se num lculo racional, um Estado
considerar que atacar outro é o que lhe serve melhor, então é o que fará e não haverá
nada que o impeça (Waltz, 1959: 232). Assim, no sistema internacional apenas relações
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de força podem resultar devido ao seu carácter anárquico. No entanto, nem todas as
relações entre Estados são conflituais e um conflito é uma das tipologias de relação entre
duas unidades.
Análise dos pressupostos construtivistas wendtianos de anarquia
internacional
As ideias construtivistas de Alexander Wendt assumem pressupostos waltzianos partindo
de uma teoria estatocêntrica e holística, onde o Estado, como ator principal na cena
internacional, canaliza os comportamentos de outros atores e define a estrutura
consoante a sua identidade em constante transformação.
O foco na estrutura é necessário para desafiar os poderes causais da anarquia, se o
processo e as instituições não se encontrarem a ela subordinados. Se a anarquia é aquilo
que os Estados fazem dela(Wednt, 1995: 132) e se um sistema de self-help e de poder
político é socialmente construído sob a anarquia” (Wednt, 1995: 132), então esta
anarquia é mutuamente constitutiva numa relação agente-estrutura, partindo
primeiramente do processo social dos agentes.
A estrutura internacional, neste sentido, não advém da anarquia internacional, uma vez
que esta é insuficiente para explicar as relações entre os Estados. O processo de
formação identitária preocupa-se principalmente com a auto preservação, o que explica
a existência de diferentes interesses entre diferentes agentes. O sistema de self-help não
é mais do que uma forma de instituição de um tipo de estrutura que pode ocorrer sob a
anarquia internacional, no entanto, não é único, dependendo das interações entre
Estados e dos seus posicionamentos face ao Outro. A lógica de anarquia e de distribuição
de poder depende desta variável cognitiva de instituição para se caracterizar, pelo que à
caracterização realista deve-se acrescer a intersubjetividade de uma estrutura de
identidades e interesses em constante transformação (Wendt, 1995: 133-138).
As implicações deste pensamento conduzem Wendt (1995) a afirmar que os Estados,
antes de realizarem interações entre si, não têm uma conceção de si ou do Outro, o
tendo interesses de segurança antes de qualquer interação (Wendt, 1995: 139-140).
Tanto as instituições de estruturas transformam os interesses e identidades dos Estados,
como estes transformam aquela primeira, sendo ambos mutáveis (Wendt, 1995: 153).
A relação entre as instituições e o processo de socialização explica-se pela existência de
um entendimento intersubjetivo e de expectativas entre A e B, ou seja, uma estrutura.
O Estado A tem os seus próprios interesses e a sua própria identidade, tal como o Estado
B. Estas componentes de estrutura, Estado A e Estado B, resultam na instituição. O
processo, por sua vez, é constituído por cinco etapas, existindo uma relação de
causalidade entre cada, sendo que a última é causalidade da primeira, incorrendo num
circuito circular. Primeiramente, um estímulo que requer uma ação. De seguida, o
Estado A, consoante aquilo que é ditado pelos seus interesses e pela sua identidade,
definirá a situação na sua perspetiva, definindo-se a si mesmo. Ponto de situação
assente, o Estado A passará à ação, criando expetativas e entendimentos subjetivos que
influenciam tanto A como B. Da ação de A, o Estado B retiraa sua interpretação da
ação de A, tendo em conta os seus interesses próprios e a sua identidade, perspetivando
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uma definição de situação. Consoante a sua interpretação, o Estado B reagirá à ação de
A, contribuindo para a intersubjetividade e permitindo ao Estado A uma definição de B
(Wendt, 1995: 153-155).
Figura 1 Dinâmica do processo de socialização e das instituições
Fonte: Anarchy is what states make of itde Alexander Wendt (1995)
Wendt explica assim como a anarquia se constrói socialmente como parte integral da
estrutura.
Conclusão
Para Aron (1968) e para Wendt (1995), a anarquia internacional não é uma característica
que advém de os Estados se encontrarem num estado de natureza, esta resulta do
estabelecimento de relações entre os mesmos. Este fator de desassociação entre
anarquia internacional e estado de natureza, permite descartar os pressupostos
waltzianos de caracterização da anarquia internacional e destacar o processo de
socialização como fator explicativo da mesma.
Deste modo, entende-se que a estrutura internacional é socialmente construída, que
através dos processos de socialização ao longo da experiência histórica institucionaliza a
anarquia internacional como uma regra da não regra. Ou seja, os conflitos não surgem
naturalmente entre os Estados e estes não tendem para a auto preservação devido ao
estado de natureza. Uma estrutura definida nos termos neorrealistas poderá ocorrer se
um padrão comportamental no processo de socialização conduzir a tal, mas esta não se
verifica necessariamente, pois o agente tem a capacidade de transformar a estrutura.
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Ao não existir estrutura antes do processo de socialização, também o poderá existir
anarquia internacional dentro dessas condições, pois esta é característica daquela. Ao
aceitar-se a anarquia como aquilo que os Estados fazem dela” (Wendt, 1995: 132),
apenas fará sentido interpretar a anarquia como fruto da interação entre Estados. Esta
ideia não pode ser considerada absurda, pois um Estado, antes de receber um estímulo
que conduza à interação com Outro, não tem perceção deste, encontrando-se isolado.
Neste contexto abstrato de apenas um Estado, não existe anarquia, pois não existe
espaço para relações entre atores. É particularmente no instante em que este Estado
recebe o estímulo para iniciar interação com Outro que se apercebe que não existe um
condicionamento à sua ação, portanto, apenas no processo de socialização é possível um
reconhecimento da anarquia internacional. O Outro, que reagirá a esta primeira iniciativa,
terá a mesma realização, originando um reconhecimento mútuo de anarquia
internacional.
Assim, a anarquia internacional é interiorizada pelos atores como uma regra da não
regra, tornando-se uma norma de comportamento partilhada de forma intersubjetiva,
que canalizada pelo processo de socialização, se transforma numa norma comum
partilhada por todos. Um entendimento comum de anarquia é transferido entre os
Estados, resultando numa rede cognitiva de institucionalização. A anarquia, quando
institucionalizada e reconhecida pelos agentes, torna-se um elemento da estrutura. Ora,
um Estado A, com identidade e interesses próprios, é recetor dos entendimentos
intersubjetivos partilhados entre A e B, sendo a anarquia internacional um desses
entendimentos que se vão infiltrar nas identidades e na definição de interesses desses
Estados, condicionando a forma como exercem as suas ações. Pelo que, a anarquia
exerce um poder estrutural i.e. capacidade da estrutura de condicionar a ação do ator
e os seus interesses (Barnett & Duvall, 2005: 52-55) - sobre os Estados, na medida em
que padroniza e condiciona os seus comportamentos. Assim, o conceito de anarquia
internacional é desenhado como um paradoxo da norma de não norma, que não deixa
de ser limitadora.
Em suma, a anarquia internacional só pode ser construída ontologicamente através das
relações mutuamente constitutivas entre os agentes e a estrutura. Esta desconexão da
visão waltziana permite um exercício de abstração, onde a anarquia internacional se
institucionaliza como norma, sendo aplicada como poder estrutural. É precisamente este
incubimento de uma norma de não norma e esta aplicação de poder estrutural que faz
com que o termo anarquia internacional necessite de ser revisado.
Por fim, intenta-se que o debate em torno do conceito de anarquia se descentralize das
diferentes análises das suas consequências e se centralize em torno do núcleo da
problematização: os pressupostos ontológicos de um conceito que tudo explica, mas que
pouco o explica.
Referências
Aron, R. (1968). The Anarchical Order of Power, in: History, Truth, Liberty: Selected
Writings of Raymond Aron. Chicago: University of Chicago Press, 2752.
Aron, R. (1966). Peace and War: A Theory of International Relations. Routledge.
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Barnett, M., Duvall, R. (2005). Power in International Politics. International Organization
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Bull, H. (1995). Society and Anarchy in International Relations, in: International Theory:
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Bull, H. (1981). Hobbes and the International Anarchy. Social Research 48, 717738.
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Como citar esta nota
Correia, Carolina Encarnação (2022). Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos
de uma conceção pós-social. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1,
Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.02
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Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
247
NOTAS E REFLEXÕES
RESOLUÇÃO DIGITAL DE LITÍGIOS - FANTASIA OU REALIDADE?
1
OTABEK PIRMATOV
pirmatov.otabek.89@inbox.ru
Professor Assistente Interino da Universidade Pública de Direito de Tashkent,
(Uzbequistão). Doutor em Filosofia do Direito.
I. Introdução
Este artigo aborda as questões da Resolução Digital de Litígios (RDL), que permite alargar
a utilização de soluções judiciais, substituindo métodos tradicionais de resolução de
litígios, com aplicação tecnológica. A RGL é uma forma de resolver litígios utilizando a
Internet e é usada para resolver situações problemáticas de qualquer complexidade.
Além disso, caracteriza-se pela elevada relação custo-eficácia e por um vasto leque de
funções (transferência de dados, coordenação de horários de reunião, troca de
correspondência, bem como rapidez).
A Internet tem servido como uma ferramenta que revolucionou muitas áreas da vida no
século XXI. Desempenha muitas funções e alicerça muitas indústrias como fontes comuns
de informação, meios de comunicação e plataformas de comércio global.
Tem, igualmente, impacto na legislação. A sua rápida expansão tem conduzido a muitos
desenvolvimentos positivos, como a digitalização de áreas do direito. Os novos métodos
de comunicação melhoraram muitas delas, incluindo a modernização de processos
extrajudiciais de resolução de litígios.
O surgimento da resolução de conflitos digital começou nos Estados Unidos da América
(EUA). As disputas ainda estão a ser consideradas digitalmente no gabinete de disputas
digital do Center for Information Technology and Conflict Resolution da Universidade de
Massachusetts (Wahab, 2012).
A crise da pandemia COVID-19 obrigou os tribunais a tomar em tempo real uma
abordagem inovadora e criativa, incluindo medidas tomadas hoje para introduzir as
modernas tecnologias da informação nos tribunais, ou para colmatar as suas deficiências.
Audiências judiciais virtuais, bem como resolução de litígios são alguns exemplos.
1
Texto traduzido por Hugo Alves.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 247-252
Notas e Reflexões
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?
Otabek Pirmatov
248
A primeira manifestação da RDL foi feita por correio digital. Uma vez o pedido aceite para
resolução, a outra parte respondeu ao mesmo. Se não tivesse sido alcançado um acordo,
as partes teriam sido direcionadas para a fase negocial. O processo decorreu através de
um meio eletrónico de comunicação correio digital. A sua relação foi mediada por um
intermediário ou árbitro.
O número de entidades que prestam serviços de RDL na União Europeia (UE) tem vindo
a aumentar. Exemplos incluem provedores na Áustria e na Alemanha, bem como
sistemas digitais de mediação em Itália e no Reino Unido.
II. Revisão da literatura
De acordo com o acamico e juiz holandês Dori Reiling, a RDL traduz-se na utilização
de tecnologias de informação e comunicação na resolução de litígios. A tecnologia
também pode ser usada em tribunais de mediação e arbitragem. Pode igualmente ser
encarada como uma forma alternativa de resolução de conflitos. A resolução digital
também pode reforçar a melhoria dos métodos tradicionais de resolução de conflitos
através de tecnologias digitais inovadoras. No passado, era usada principalmente para
disputas de comércio eletrónico, mas hoje mais comunicação digital está a ser usada
como uma forma de RDL (Reiling, 2017).
De acordo com a académica americana Amy Schmits, a RDL oferece uma grande
oportunidade para expandir o acesso aos recursos judiciais ou alcançar a justiça. Nos
EUA e não , a RDL desenvolveu-se principalmente em empresas de comércio eletrónico
como a eBay e a Alibaba; a maioria dos tribunais estatais ainda funcionam de modo
tradicional, fornecendo serviços práticos para aumentar a eficiência da utilização das
tecnologias da informação nos tribunais e expandir as suas capacidades (Schmitz).
De acordo com o investigador indiano Chitranjali Negi, a RDL é uma forma de resolução
de conflitos que utiliza tecnologia digital para facilitar a resolução de litígios.
A RDL pode envolver a resolução de litígios em cada um dos tribunais de negociação,
mediação ou arbitragem, ou em três litígios alternativos.
A RDL inclui as seguintes tradições legais:
1) confiança jurídica (a capacidade das partes para escolherem um mediador);
2) utilização da justiça (todos os envolvidos têm o direito de utilizar a RDL).
A RDL também criará um mecanismo que fornece soluções oportunas e meios racionais
de eficiência.
A RDL permite uma resolução civilizada (pacífica) de litígios entre cidadãos.
A RDL possibilita ainda que as partes se candidatem aos tribunais estatais
2
.
2
Chitranjali O Negi. Conceito de resolução de litígios on-line na Índia. Cópia electrónica disponível em:
http://ssrn.com/abstract=2596267.
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Notas e Reflexões
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?
Otabek Pirmatov
249
Segundo Mimoza Sadushi, a RDL está a resolver disputas através da Internet. No Canadá,
nos EUA e na Europa, a RDL é organizada de várias formas, nomeadamente através de
fóruns.
O termo RDL implica processos automatizados. Por vezes, existe automatização total;
noutras, envolvimento humano.
A RDL permite resolver litígios rápida e facilmente.
As negociações automatizadas na RDL incluem também processos como a avaliação
neutra de litígios, a mediação ou a conciliação.
A RDL é uma forma alternativa de mediação ou tribunais arbitrais (Sadushi, 2017).
É evidente, na opinião dos académicos referidos, que a RDL pode ser uma alternativa na
resolução de litígios, como a mediação, os tribunais arbitrais.
No entanto, alguns estudiosos acreditam ser possível introduzir procedimentos de RDL
nos tribunais estatais, especialmente nos civis.
De acordo com a académica norte-americana Lise Embley, os julgamentos virtuais e a
RDL estão a abrir novas oportunidades nos tribunais, que não garantem que os
tribunais funcionem durante uma pandemia, como ajudam a resolver muitos problemas
3
.
De acordo com o Ergul Serpil, uma das questões-chave é evitar um aumento do número
de pedidos que devem ser considerados em tribunal e ver os julgamentos atrasados
assim que a ameaça do vírus COVID-19 se extinguir e as pessoas puderem reunir-se em
público. Estas questões podem ser resolvidas através de RDL e audiências judiciais
virtuais. Juízes e funcionários judiciais podem também realizar audições judiciais e
virtuais do tribunal para continuar o processo de adiamento. Isto permite que as partes
participem no julgamento remotamente (Serpil, 2020).
III. Discussão e análise
De acordo com os académicos e juízes referenciados, os litígios também podem ser
resolvidos digitalmente em tribunais civis.
Assim, a RDL também pode ser aplicada a litígios civis.
A RDL utiliza métodos alternativos de resolução de litígios. Ela envolve litígios que foram
parcialmente ou totalmente resolvidos através da Internet.
A RDL é feita utilizando plataformas digitais. Tal como outras formas alternativas de
resolver litígios, passa por conseguir um acordo entre as partes.
A RDL é uma forma alternativa de resolução de litígios que requer a utilização da Internet.
À semelhança de outros métodos alternativos de RDL, as partes são obrigadas a ter um
mediador na obtenção de um acordo.
O Estado presta muita atenção ao uso da tecnologia digital na gestão e resolução de
litígios complexos em larga escala nos tribunais civis. A tecnologia de informação e
3
Lise Embley. Perspetivas Judiciais sobre RDL e Outros Processos Judiciais Virtuais. Boletim de Resposta
Rápida JTC: 4.
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Notas e Reflexões
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?
Otabek Pirmatov
250
comunicação oferece a oportunidade de conduzir processos judiciais de forma barata e
rápida, bem como a resolução de processos cíveis, incluindo a admissão de partes, a
consideração de reclamações, o pagamento de deveres do Estado, as audiências judiciais
e o anúncio de decisões.
A reforma do sistema de justiça civil é uma forma crucial de melhorar o sistema e de
garantir que o público satisfaz os resultados esperados. Está em curso o aumento da
aplicação das tecnologias digitais em todas as esferas da vida. A digitalização
desempenha um papel importante na obtenção da justiça no contencioso civil, na
melhoria da eficiência e dos resultados e na redução dos custos.
A RDL é feita numa plataforma digital dedicada e abrange o processo desde o início da
reclamação até à resolução do litígio, que pode funcionar com base em dados de entrada
humana ou algoritmos de inteligência artificial.
Da tradicional resolução de litígios à RDL:
1) inexistência de negociações presenciais entre as partes;
2) registo automático das negociações e armazenamento de informações sobre todos os
litígios;
3) a inteligência artificial potencia a eficiência.
A eficácia do poder judicial pode ser potenciada analisando os litígios menos importantes
e menores pela RDL.
Os métodos alternativos de resolução de litígios, incluindo a relação das partes opositoras
na sua forma digital, desempenham um papel fundamental. O carácter voluntário da
resolução de litígios digital também facilita que as partes ou o mediador decidam sobre
as questões contestadas. A RDL é muito importante quando as partes estão separados
por uma distância muito grande.
A RDL incentiva o uso da tecnologia moderna na defesa dos seus direitos na comunidade
e reduz as barreiras legais.
A RDL pode permitir que as partes resolvam os litígios mais cedo, o que liberta o tribunal
de resolver questões complexas como a apresentação de um processo, ou a participação.
A RDL pode simplificar os litígios e expandir as formas de participação.
A RDL pode ser uma forma de os advogados familiarizarem os seus clientes com litígios
civis sem saírem do escritório ou de casa.
Seria aconselhável resolver litígios digitalmente nos nossos tribunais civis.
Em muitos países, os processos judiciais podem ser conduzidos através de
videoconferência em plataformas especiais ou plataformas públicas. Estes procedimentos
são realizados pela Zoom em Hong Kong e no Uganda, na Nova Zelândia pela Microsoft
e na China através de uma plataforma judicial especial. As plataformas utilizadas nestes
países também podem ser utilizadas pelo público confortavelmente.
Seria aconselhável que os tribunais civis usassem plataformas acessíveis a todos quando
os processos são conduzidos por videoconferência.
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Notas e Reflexões
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?
Otabek Pirmatov
251
Isso impediria os cidadãos de gastar dinheiro e tempo indo a tribunal para participar em
audiências judiciais, que podem assumir a forma de videoconferência.
Nos Tribunais Digitais de Pequim, Guangzhou e Huangzhou, na China
4
, na plataforma e-
Estónia na Estónia, no Tribunal Digital da Índia
5
, são realizadas audições judiciais virtuais,
tal como ainda nos Países Baixos.
O preâmbulo da Instrução Especial do Tribunal de Pequim sobre a Condução de
Julgamentos pela Internet na Plataforma de Cadeia de Tianping declara que as audições
do Tribunal da Internet de Pequim serão realizadas nessa plataforma, que se baseia na
tecnologia blockchain.
IV. Conclusão
A declaração de reclamação apresentada e os documentos a ela anexos se a legislação
processual não cumprir os requisitos, será enviada em tempo útil um aviso de correção
da declaração de reclamação e o momento da receção da declaração de reclamação será
recalculado a partir do dia seguinte ao dia seguinte da receção no Uuzbequistão. Muitos
sites operam sob o o domínio Uz e sob este domínio podem ser criados sites de RDL.
Se as partes e outros participantes no litígio utilizarem a plataforma judicial, serão
verificadas por identificação biométrica, como acontece nos tribunais de Pequim,
Guangzhou e Huangzhou.
O número da plataforma da Índia
6
pode ser acedido marcando o número respetivo.
Propõe-se incluir na nossa legislação de processo civil as regras do procedimento para a
receção de reclamações:
O tribunal digital aceita a declaração de reclamação e os documentos que lhe são
anexados pelo queixoso, e no prazo de 10 dias após a receção, tomará as seguintes
medidas: aqueles que preencherem os requisitos da lei processual registarão as
reclamações e enviarão um aviso de receção da declaração de reclamação. Se o queixoso
não proceder a correções à declaração de acordo com os requisitos da legislação no prazo
previsto, o tribunal emiti uma decisão sobre a devolução da declaração.
No sistema judicial digital, as reclamações são preenchidas numa plataforma eletrónica,
pelo que o número de decisões dos tribunais sobre a devolução dos pedidos é reduzido.
A inclusão das propostas referidas na legislação relativa ao processo civil abriria caminho
ao funcionamento estável dos tribunais civis em caso de pandemia e de proteção dos
direitos e interesses dos cidadãos.
4
Tribunal da Internet de Pequim http://tpl.bjinternetcourt.gov.cn.
5
http://vcourts.gov.in.
6
http://vcourts.gov.in.
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Notas e Reflexões
Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?
Otabek Pirmatov
252
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Como citar esta nota
Pirmatov, Otabek (2022). Resolução digital de litígios fantasia ou realidade?. In Janus.net,
e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha]
em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.03
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253
RECENSÃO CRÍTICA
Akyüz, Emrah (2021). Nuclear Power and Human Rights in Japan:
The Fallout of Fukushima. London: Lexington Books. ISBN:
9781793637819, 270 pp
1
EMRAH ATAR
emrah.atar@erdogan.edu.tr
Doutoramento em Política e Gestão do Desenvolvimento no Instituto de Desenvolvimento Global
na Universidade de Manchester, que se concentra no impacto da crise dos refugiados na
prestação de serviços blicos em países de acolhimento como a Turquia. É professor assistente
no Departamento de Ciência Política e Administração Pública, Recep Tayyip Erdogan University
(Turquia). Os temas centrais e interesses de investigação são governão, migração,
desenvolvimento político e gestão de recursos humanos, políticas de urbanização.
É editor de entrevistas da Revista de Reflexão Política e Editor Comissionista da revista E-
International Relations.
Desde a primeira metade do século XX, as inovações tecnológicas transformaram os
métodos de guerra e criaram uma multiplicação de potências nucleares em todo o
mundo. As duas guerras mundiais e o subsequente período da Guerra Fria provocam um
pico nesta corrida. Estes desenvolvimentos, no entanto, causaram muitas tragédias;
entre estas, o acidente na central nuclear de Fukushima em 2011. "Energia Nuclear e
Direitos Humanos no Japão: A Queda de Fukushima", pelo Dr. Emrah Akyüz da Lexington
Books, tentou examinar o evento a partir do eixo dos direitos humanos. Este livro é
constituído por sete secções principais com introdução e conclusão em cada capítulo, o
que ajuda o leitor a formular uma avaliação geral.
A primeira parte do livro mapeia os acidentes nucleares ocorridos em todo o mundo e
oferece informação sobre os efeitos dos acidentes nucleares, com um enfoque específico
em Ontário, Chernobyl e Fukushima, tentando compreender este processo com uma
pirâmide de sete etapas (pp. 2-5). Na continuação desta secção, são apresentados os
detalhes de Fukushima, que é o ponto focal do livro (pp. 5-7). Na continuação de
Fukushima, ele detalha a Abordagem Ambiental dos Direitos Humanos ao Acidente
Nuclear de Fukushima e refere que Fukushima tem riscos substanciais em termos de
ambiente e saúde humana, e declara o seguinte: "Sem dúvida, o ambiente e a saúde
pública são as duas áreas nucleares para as quais Fukushima continuará a representar
um risco, e é uma explicação provável para a razão pela qual a literatura se concentra
1
Texto traduzido por Cláudia Tavares.
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Recensões Críticas
Recensão crítica de Akyüz, Emrah (2021). Nuclear Power and Human Rights in Japan: The
Fallout of Fukushima. London: Lexington Books. ISBN: 9781793637819, 270 pp
Emrah Atar
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nestes dois aspetos ao discutir o acidente" (p. 8). Neste capítulo, o autor também enfatiza
os direitos humanos em termos de ambiente e saúde.
Na segunda parte do livro, o quadro conceptual: são discutidos os direitos humanos
ambientais. É apresentada a inter-relação entre os direitos humanos e os direitos
ecológicos (p. 20). Ao referir os direitos ambientais, apontar as reuniões realizadas em
Estocolmo e no Rio também nos ajuda a construir uma análise conceptual detalhada -
sublinhando que os direitos humanos estão divididos em três categorias inclusivas
internacionalmente aceites: direitos humanos socioeconómicos; civis-políticos; e
solidários (pp. 21-28).
A terceira parte analisa a Política de Energia Nuclear e Direitos Humanos do Japão
relacionada com os direitos humanos ambientais. Considerando as políticas energéticas
do Japão antes e depois de Fukushima, discutindo quão eficazes/ineficazes são as
políticas de direitos humanos do país nesta direção (pp. 71-74). Sublinhando que o
desastre de Fukushima trouxe consigo grandes reformas na política energética do Japão,
o trabalho informa-nos sobre estas reformas (pp. 80-90). Ao explicar as reformas, o
autor chama a atenção para a Segurança como Princípio-chave, A Diminuição da
Dependência da Energia Nuclear, das Energias Renováveis e da Transparência.
Através da análise temática de entrevistas com habitantes de Fukushima, o Capítulo 4
examina os impactos e perigos ligados ao Fukushima Nuclear Accident (FNA) sobre/para
os direitos humanos, particularmente o direito à vida, saúde e propriedade. Neste
sentido, relatórios oficiais e trabalhos anteriores sobre os perigos e o impacto do acidente
nos direitos à vida, à saúde e à propriedade o discutidos neste capítulo (pp. 98-104).
Depois, foi feita uma análise temática das questões de direitos humanos relacionadas
com a poluição radioativa em Fukushima. Nesta secção, as experiências das pessoas o
dadas de acordo com os dados obtidos a partir do trabalho de campo. Resultados básicos
como Viver com Medo, Violação do Direito à Saúde, Problemas de Saúde Mental,
Problemas de Saúde Física, Isolamento Social, Solidão, Riscos para a Saúde Associados
à Contaminação da Água, Riscos para a Saúde Associados à Contaminação do
Abastecimento de Alimentos, Violação do Direito à Propriedade são aqui expostos e
discutidos (pp. 107-121). Esta informação fornece contribuições imperativas à literatura
sobre as dificuldades experimentadas pela população da região durante este processo e
os processos que precisam de ultrapassar para lidar com estas dificuldades.
O estudo "Experiências de direitos processuais dos residentes de Fukushima" relativo à
política energética do Japão analisou como e em que medida os residentes de Fukushima
utilizaram os direitos processuais em resposta ao desastre nuclear de Fukushima e à
política energética nuclear do Japão (pp. 136-174). Como o autor indica, "não nenhum
estudo abrangente até à data que tenha investigado as experiências dos residentes de
Fukushima com PHR (incluindo o direito à informação, o direito à participação e o direito
de acesso à justiça) na matéria de Fukushima" (p. 134). Este estudo é um dos poucos
que examina o reforço deste argumento, dando informações mais detalhadas. O autor
também colocou alguns subtemas para dar uma melhor visão sobre esta questão:
Nenhuma tentativa de acesso à informação antes do acidente; Acesso passivo à
informação relacionada com a energia nuclear após o acidente de 2011; Acesso à
informação; Fiabilidade da informação; Partilha atempada da informação relacionada
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Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 253-256
Recensões Críticas
Recensão crítica de Akyüz, Emrah (2021). Nuclear Power and Human Rights in Japan: The
Fallout of Fukushima. London: Lexington Books. ISBN: 9781793637819, 270 pp
Emrah Atar
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com o acidente; Acesso ativo à informação relacionada com a energia nuclear após o
acidente de 2011; Complexidade da informação; Participação pública no processo de
tomada de decisão; Falta de interesse na energia nuclear e nenhum convite antes do
acidente; Participação Pública no Tokenismo do Processo de Tomada de Decisão; Pedido
de Referendo; Interesse do Povo na Participação Pública após o Acidente de Fukushima;
Acesso ao Tribunal; Reparação Judicial com Respeito ao Impacto das Decisões
Ambientais; Revisão Judicial com Respeito à Tomada de Decisões Ambientais; Barreiras
ao Acesso ao Tribunal e Resultados Socialmente Justos.
O capítulo seis fornece uma discussão detalhada para interpretar as principais
descobertas do livro relativamente à investigação passada sobre o FNA e os EHR. O livro
está dividido em três secções: primeiro, discute em que medida a FNA representa um
problema de direitos humanos em termos do seu impacto ambiental, que é a questão
central de investigação abordada nos capítulos empíricos; segundo, examina a relação
entre os direitos substantivos e processuais em Fukushima, e avalia criticamente os
desafios e oportunidades de uma política energética que reconhece a participação pública
na tomada de decisão; que se propaga nos capítulos empíricos; e terceiro, examina a
relação entre os direitos substantivos e processuais em Fukushima. Finalmente, algumas
das limitações do estudo são discutidas e são sugeridas futuras áreas de investigação.
As principais conclusões do estudo foram discutidas aqui, tendo sido obtida uma análise
detalhada. Neste sentido, são enfatizados os seguintes tópicos: A Relação entre Direitos
Humanos, Ambiente e Energia Nuclear no Japão; Questões Transversais entre os Direitos
Humanos e a Política de Energia Nuclear do Japão; Violões dos Direitos Humanos
Levantadas pelo Acidente Nuclear de Fukushima; Reinterpretação dos Direitos Humanos
versus o Direito ao Ambiente; A ligação entre os direitos substantivos e processuais; A
ligação entre a violação do direito à informação e o gozo do direito à saúde; A falta do
direito à participação pública e o gozo do direito à saúde (174-205).
Este trabalho, que tive a oportunidade de avaliar em detalhe acima, aparece como um
candidato a dar contribuições significativas no seu campo. Em particular, observa-se que
este guia altamente acessível está atualizado e um contributo notável para a literatura
em termos de aproximação das questões ambientais e de direitos humanos. O Dr. Akyüz
revela que existe uma interação positiva entre os problemas ecológicos e os direitos
humanos, especialmente de uma perspetiva japonesa. Ao demonstrar isto, ele não
permaneceu sob o monopólio do Japão, mas também acrescentou uma perspetiva ampla,
abordando problemas semelhantes que já tinham sido experimentados antes. O mundo
académico, que aponta constantemente para acontecimentos e acidentes antigos na
análise das questões ambientais, terá agora a oportunidade de compreender melhor as
questões da população da região face a negatividades muito mais recentes com tais
acidentes. É claro que este trabalho, que só foi revelado com o exemplo de Fukushima,
não será suficiente por si só. No entanto, este trabalho iria certamente encorajar
especialmente os jovens académicos a examinar acontecimentos mais atuais no que diz
respeito a questões ambientais.
O método de apresentação do estudo, a linguagem utilizada e a apresentação detalhada
dos resultados podem ser vistos como uma das vantagens mais importantes. É também
digno de nota que foi utilizado um método empírico no estudo, e que as recomendações
políticas foram dadas como resultado das descobertas. Os resultados obtidos no trabalho
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Recensões Críticas
Recensão crítica de Akyüz, Emrah (2021). Nuclear Power and Human Rights in Japan: The
Fallout of Fukushima. London: Lexington Books. ISBN: 9781793637819, 270 pp
Emrah Atar
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trazem uma perspetiva diferente à atual compreensão da relação entre os direitos
humanos e o ambiente. Além disso, uma discussão sobre a contribuição do Jao para a
política e gestão da energia nuclear e o estudo teórico, metodológico e empírico dos
acidentes nucleares será também valiosa para os cientistas que trabalham neste campo.
Globalmente, o livro está bem escrito, e a maioria dos leitores irá achá-lo interessante e
educativo, no qual o Dr. Akyüz examina e esclarece um caso sobre um desastre nuclear.
Ele também analisa o tema dos desafios e desafiadores de forma excelente. Portanto,
recomendo vivamente que este livro, que oferece uma perspetiva diferente sobre a
análise de risco ambiental da Fukushima, deve ser lido por pessoas de todas as
plataformas.
Como citar esta recensão crítica
Atar, Emrah (2022). Recensão crítica de Akyüz, Emrah (2021). Nuclear Power and
Human Rights in Japan: The Fallout of Fukushima. London: Lexington Books. ISBN:
9781793637819, 270 pp. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13,
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RECENSÃO CRÍTICA
Innerarity, Daniel (2019). Política para Perplexos. Lisboa: Porto
Editora, ISBN 978-972-0-45-03232-4, 214 pp.
JOÃO CARLOS SOUSA
joao.carlos.sousa@iscte-iul.pt
Doutorando em Ciências da Comunicação do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (Portugal) e
bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Mestre em Sociologia: exclusões e políticas
sociais (Universidade da Beira Interior) e Licenciado em Sociologia. Foi bolseiro de Investigação
nos projetos Agenda dos Cidadãos: jornalismo e Participação cívica nos media portugueses e
público e privado em comunicações móveis, desenvolvidos no LabCom da Faculdade de Artes e
Letras da Universidade da Beira Interior. É investigador do OberCom.
Daniel Innerarity em “Política para Perplexos” continuidade à reflexão encetada no
rescaldo da Grande Recessão (Innerarity, 2016) sobre os atuais desafios que se colocam
às democracias contemporâneas, ensaiando as bases éticas e culturais para a
possibilidade de um novo contrato social. Um contrato social alicerçado na confiança
entre cidadãos, mas também entre estes e as diversas instituições que sustentam a
democracia liberal. Para tal, proem-nos a substituição de uma democracia de maioria,
por uma democracia de negociação, dando prossecução a um “velho” ensejo teórico do
autor (Innerarity, 2012). Enquanto desiderato das sociedades contemporâneas, a
democracia de negociação corresponde em primeira linha, a um objetivo e correto
diagnóstico das patologias e disfuncionalidades das democracias ocidentais hodiernas.
Para quem percorre as 214 páginas que compõem a obra, fica com a clara sensação que
o autor basco é dotado de uma ímpar argucia observacional da realidade, o que lhe
permite verter em texto simples e claro, acessível àquele leitor não especialista, mas
ávido de conhecimento da vida em comunidade, toda uma reflexão da condição política
atual. A leitura da obra em análise é relevante tanto para especialistas em comunicação
política ou ciência política, mas também para aqueles curiosos, que indagam as
representações que no dia-a-dia são construídas em contexto de copresença (por
exemplo, interação em contexto de café ou familiar), mas sobretudo aquelas, com as
quais contactamos diariamente, através dos diferentes meios de comunicação
tradicionais e/ou digitais. A obra encontra-se estruturada em seis partes, sendo que cada
uma destas se desdobra em diversos capítulos.
I O Fim das Certezas - A condição perplexa resulta da abertura sem limites dos horizontes
do possível. Perante alterações estruturais, existem aqueles que têm certezas absolutas
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Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 257-261
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Recensão crítica de Innerarity, Daniel (2019). Política para Perplexos. Lisboa: Porto Editora,
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acabando fanatizados. Por outro lado, ganha expressão blica o chamado “politicamente
correto”. A incerteza dissemina-se pelos diversos domínios da atividade social. A política
em tempos de perplexidade expressa-se em: incapacidade preditiva das sondagens que
monitorizam o comportamento político; a primazia da subjetividade na análise do
fenómeno político; e conceitos antiquados face às exigências atuais. Neste contexto,
existem duas formas de reação por parte dos atores políticos: por um lado, o apelo
conservador à autenticidade e não intervenção na realidade (conformados); por outro
lado, a crítica radical que resulta num o-entendimento da realidade, como são
exemplificativas as propostas populistas um pouco por todo o mundo. O autor basco
defende que a esquerda contemporânea deve centrar-se na redistribuição e na mitigação
das iniquidades criadas pelo processo de globalização económica e capitalista. A direita
foca-se na ação do Estado no combate à criminalidade, dando prioridade às questões da
segurança.
Tanto as esquerdas como as direitas tradicionais legam a sua incapacidade e inércia, no
domínio político, no papel desregulado da globalização financeira. Assim, a direita
assume a globalização e a ineficácia da ação do Estado como uma “realidade indiscutível”.
A esquerda, por seu lado, assumindo uma clara postura de resistência ao processo de
globalização económica, insiste, segundo Innerarity, em não compreender os
emergentes marcos norteadores da ação política contemporânea. Na esfera pública as
“velhas” esquerdas e direitas distinguem-se discursivamente. A direita recorrer a factos
e dados com capa de objetividade, tendendo a limitar os horizontes aspiracionais do
próprio debate. Por seu lado, na esquerda sucedem-se a ritmo vertiginoso os apelos à
imaginação e crítica. Num espaço público crescentemente espetacularizado, em que o
estatuto de cidadão foi progressivamente substituído pelo de consumidor, o jornalismo
-se abraços com a concorrência oriunda de um cada vez maior número de especialistas
participantes no debate público.
II A Desregulação Emocional Innerarity inicia a segunda parte do ensaio postulando
que as emoções têm pautado crescentemente a atividade em esferas tão diversas como
a economia, a guerra e mais vincadamente a política. Estruturas sociais onde se
exprimem estados de ansiedade, de ira, de confiança, constituem-se como eixos de
transformação social. Neste quadro circunstancial os media desempenham um papel
charneira. Num primeiro plano, o autor coloca os media tradicionais como definidores do
agendamento que emanam estados emocionais. A jusante, encontram-se os media
sociais que fomentam a existência de bolhas emocionais em torno de casos particulares.
Com efeito, multiplicam-se os atores que se diferenciam e vingam no espaço público pela
sua agressividade discursiva e inconsistente sinceridade: “quem é mais ofensivo ganha
maior atenção na esfera pública” (2019: 66).
Innerarity (2019: 66-67) questiona “(...) e se os meios de comunicação estivessem a
potenciar e a alimentar a impotência democrática, isto é, a inflamar as nossas
expectativas, enfatizando as incapacidades coletivas, amplificando os nossos medos e
oferecendo uma atenção maior aos provocadores?”
III A Política numa Zona de Sinalização Escassa O autor parte para a reflexão relativa
ao populismo a partir da distinção conceptual da autoria de Chantal Mouffe entre
populismo de radicalização democrático e populismo autoritário, associando-os
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respetivamente à esquerda e direita política. Contudo, alega que esta distinção não toma
em linha de conta a pluralidade democrática. Ambos os populismos excluem mais, do
que integram. Afinal de contas, todos os populismos adotam uma retórica assente na
exclusão: povo vs elite; eles vs nós; casta vs povo etc.. Sendo o populismo a mais
marcante expressão política contemporânea, as tradicionais esquerdas e direitas
reiteram o seu anti populismo. Para a esquerda, o populismo é ainda pouco atrativo na
medida em que este é insensível às desigualdades e iniquidades produzidas em processos
sociais e políticos que evoquem a reconstrução das estruturas sociais; por outro lado, as
direitas obstinadas com a estabilidade veem na pulsão reformadora ao nível institucional
dos populistas, uma ameaça à almejada estabilidade. O Brexit, enquanto fenómeno
político, constitui-se como o evento político típico. Para o autor resulta de uma “fuga para
a frente” por parte dos britânicos e em particular das suas elites políticas, dispensando
qualquer método da democracia representativa, assumindo contornos plebiscitários.
Deste modo, este processo deve ser encarado como um duplo paradoxo: o primeiro é de
que ao contrário do alegado pelos apoiantes do Brexit, o Reino Unido não estará
completamente fora da União Europeia, como é o caso da legislação da União Europeia;
o segundo revela-se na crescente tensão entre os impulsos plebiscitários e os tramites
da democracia representativa. A democracia direta traduzida na realização de um
referendo tem o condão de trespassar a sensação de empoderamento do cidadão,
embora no final de contas estejam sempre dependentes da aplicação e execução por
parte das diversas instituições da democracia.
IV A Democracia na Era de Trump As últimas eleições presidências norte americanas
foram sobretudo norteadas pelo eixo republicanismo cívico vs elitismo liberal-
conservador. O primeiro tinha em Trump e Sanders os seus primordiais representantes,
ao passo que o segundo tinha nos partidos Republicano e Democrata as suas forças mais
representativas. No caso de Trump ao centrar-se no capitalismo de proprietário face à
globalização financeira, reafirma o esgotamento do paradigma multicultural, ainda que
sem coerência e objetividade, traduzindo o descontentamento do povo. Alia a esta
estratégia, o simplismo comunicacional e telegénico, tirando proveito da decadência da
própria cultura cívica. Esta nova clivagem é balizada por um lado, pelo capitalismo
clássico e por outro lado, pelo capitalismo financeiro criativo. Neste eixo, confrontam-se
as ideias de um desenvolvimento industrial essencialmente nacional e que tem como
grande interlocutor o Estado-nação. Nos antípodas esa economia financeirizada dos
mercados globais que têm como epicentros Silicon Valley e Wall Street. O alvo do
movimento populista é sobretudo o multiculturalismo impregnado na globalização
económica. O autor propõe uma nova conceção de justiça que deverá passar não só pela
redistribuição, mas também pelo reconhecimento.
V Configurar Sistemas Inteligentes A política, nas últimas décadas, viu de forma radical
ser alterada a sua função. Esta metamorfose é comparável àquela que ocorreu
quatro séculos aquando da emergência dos Estado-nação. As transformações ocorreram
ao nível estrutural, isto é, ao nível das coordenadas globais: globalização da atividade
económica, emergência da sociedade do conhecimento, individualização dos estilos de
vida e ocidentalização das sociedades. As implicações concorrem para três grandes tipo
de disfuncionalidades políticas: primeiro, ineficácia da ação política no âmbito do que
seria expectável; segundo, inoperacionalidade perante problemas inéditos e novos
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formatos; terceiro, incapacidade de identificar novos problemas. Estamos perante um
défice de inteligência política que se confronta quotidianamente com a versatilidade e
dinamismo de outras esferas: euforia tecnológica vs analfabetismo cívico; inovação
tecnológica vs redundância social; cultura científica e económica críticas vs espaço
político anacrónico. No final de linha, o autor defende que se deve melhorar os sistemas
que nos defendem contra as próprias pessoas, contra os erros produzidos de forma
deliberada ou inadvertida, porque no final o próprio medo é um instinto que nos defende
de nós mesmo” (2019: 191).
VI O Que Nos Espera O diagnóstico, enquanto ofício do intelectual público, é uma
responsabilidade deste agente relativamente aos seus concidadãos e demais comunidade
envolvente. Ainda que sem conseguir prever o futuro, o bom diagnóstico é essencial para
enfrentar de forma razoável a incerteza e imprevisibilidade atuais. Três pistas com
potencial prospetivo: primeira, crescente incerteza; segunda, intensa volatilidade dos
padrões sociais e políticos; terceira, necessidade de aperfeiçoamento dos conceitos que
norteiam a reflexão e definição de estratégias. A obra termina em tom de otimismo,
embora não se deva branquear os hercúleos desafios que se põem às sociedades em
geral e às instituições e atores políticos em particular. Com efeito, o otimismo em
detrimento do pessimismo enquanto regra básica de reflexão social é peça basilar na
montagem do complexo puzzle sociopolítico. Existem duas boas razões para preterir o
pessimismo e dar prioridade ao otimismo: a narrativa da história da humanidade pode
não caminhar para pior; a conclusão é sempre inimiga da reflexão e da interpolação
prospetiva do social e do político.
Notas a reter e a desenvolver
Na obra que suporta a presente reflexão o autor basco, assume, ainda de forma implícita,
o papel de intelectual público. Ao abrigo deste ensaia um novo contrato social
cosmopolita, que tem as bases em princípios de tolerância, diálogo entre diferentes
estados e entre diferentes nações dentro dos próprios estados. Embora ao longo da obra
sejam alguns indícios de crítica aos passos dados pelas democracias ocidentais e em
particular às titubeantes repostas destas aos diferentes movimentos populistas,
Innerarity no final esboça um moderado otimismo, em concreto na resposta ao maior
desafio político das primeiras décadas do século XXI o recrudescimento dos populismos
e os nacionalismos que lhe o guarida com uma ambiciosa proposta cosmopolita que
sirva de diálogo intercultural e político.
Tanto as esquerdas como as direitas tradicionais legam a sua incapacidade no campo
político, tendo a globalização como pano de fundo argumentativo. No caso particular da
direita o recurso à “realidade indiscutível” tem como caso mais paradigmático o
“consenso ordoliberal” que se impregnou em algumas instituições da União Europeia e
Estados-membros, para além do domínio patenteado na esfera pública e mediática um
pouco por todo o continente europeu.
A questão levantada na segunda parte por Innerarity, acerca do papel dos media na
atualidade, impele-nos a considerar os seguintes aspetos: primeiro, passa por abordar
todas as transformações dos media tradicionais nas últimas décadas, como por exemplo
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Recensão crítica de Innerarity, Daniel (2019). Política para Perplexos. Lisboa: Porto Editora,
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a mercantilização (Cardoso, 2016); o segundo ponto versa sobre a relação entre estes
media e os media sociais, em particular o Facebook e o Twitter; o terceiro ponto assenta
na forte desintermediação da comunicação de massas (Bruns & Humphreys, 2007); uma
quarta questão e em consequência da desintermediação comunicacional, atores políticos,
mormente populistas, têm tirado intenso proveito do estabelecimento da ligação direta,
com uma vasta audiência e seguidores, descartando a mediação jornalística. Este é aliás,
um possível ponto para o facto de os media tradicionais serem um alvo frequente da ira
discursiva de líderes e movimentos populistas num vasto conjunto de democracias.
É nesta linha de raciocínio, que Innerarity nos fala de “desregulação emocional”. O estado
de ebulição emocional exprime-se na crescente ansiedade e desconfiança, que
transpassam no quotidiano, constituindo-se como vetores de mudança social e política.
O facto de um autor, como Innerarity, sinalizar estas transformações associadas às
emoções na esfera pública e em particular na política, é um indício importante, de que
este será um campo de estudo emergente e que nas próximas décadas promete
consolidar-se, em particular nos domínios do comportamento eleitoral e comunicação
política em rede.
Referências
Bruns, A. & Humphreys, S. (2007). Building collaborative capacities in learners: The
M/cyclopedia project revisited. Proceedings of the Conference on Object-Oriented
Programming Systems, Languages, and Applications, OOPSLA: 110.
Cardoso, G., Santos, S. e Telo, D. (2016). Jornalismo em Tempo de Crise. Lisboa: Mundos
Sociais.
Innerarity, D. (2011). O Futuro e os seus Inimigos. Lisboa: Editorial Teorema.
Innerarity, D. (2016). A Política em Tempos de indignação. Lisboa: Dom Quixote.
Innerarity, D. (2019). Política para Perplexos. Lisboa: Porto Editora.
Como citar esta recensão crítica
Sousa, João Carlos (2022). Recensão crítica de Innerarity, Daniel (2019). Política para
Perplexos. Lisboa: Porto Editora, ISBN 978-972-0-45-03232-4, 214 pp. In Janus.net, e-
journal of international relations. Vol. 13, 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em
linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.01.2