OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
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A RESILIÊNCIA DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA
LUÍS CUNHA
luisfmcunha@gmail.com
Doutorado em Relações Internacionais, é investigador integrado no Instituto do Oriente
(ISCSP/Universidade de Lisboa, Portugal). Autor de vários livros sobre geopolítica da China,
incluindo: China: Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan (2010), A Hora do Dragão
Política Externa da China (2012), China na Grande Guerra A Conquista
da Nova Identidade Internacional (2014) e China`s Techno-Nationalism in the Global Era
Strategic Implications for Europe (2016). Tem vários artigos publicados em revistas, nacionais e
estrangeiras, na área da geopolítica da Ásia-Pacífico.
Resumo
Ao perfazer 100 anos de actividade, o Partido Comunista da China (PCC) evidencia e projeta
um modelo singular de desenvolvimento político e social. Tomando por inspiração
metodológica a proposta de Samuel P. Huntington para o estudo do fenómeno político,
designadamente quanto à adaptabilidade da sede do poder, procuraremos focar algumas das
variáveis que justificarão a perenidade do PCC.
A cultura e a ideologia dinamizam um processo evolutivo sem paralelo nos quadros sistémicos
convencionais, legitimado por um figurino com intrínsecas características chinesas. O
aparente excecionalismo chinês, baseado numa forte visão nacionalista, é veiculado através
de uma “nova era” transformacional. As correntes académicas ocidentais denotam dificuldade
em enquadrarem este fenómeno com implicações globais.
Palavras-chave
Partido Comunista da China; Xi Jinping; sonho chinês; nacionalismo; centenário
Como citar este artigo
Cunha, Luís (2022). A resiliência do Partido Comunista da China. In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 13, Nº 1, Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.3
Artigo recebido em 10 Maio 2021 e aceite para publicação em 9 Outubro 2021
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A resiliência do Partido Comunista da China
Luís Cunha
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A RESILIÊNCIA DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA
LUÍS CUNHA
Introdução
O cientista político Samuel P. Huntington considerava que a institucionalização de um
sistema político podia medir-se pela adaptabilidade, autonomia e coerência das suas
organizações e procedimentos.
A definição moldar-se-á com perfeição ao centenário Partido Comunista da China (PCC),
que não soube superar as inúmeras adversidades da sua longa trajecria, como surge
agora, no primeiro quartel do século XXI, aparentemente fortalecido no domínio do seu
desígnio ideológico de desenvolvimento para a China.
Assumindo abertamente um projeto autónomo, diferenciado dos modelos enraizados nas
propostas das democracias liberais do Ocidente, o PCC e a sua liderança evidenciam os
predicados de uma cultura civilizacional e política singulares, transportadora de
presumíveis mais-valias na versão oficialmente veiculada face aos sistemas políticos
alienígenas, que consideram falíveis. Dito de outro modo, ao longo do seu longo historial,
o não-alinhado PCC tentou iludir sistematicamente a “lógica da dependência”
oportunamente caracterizada por Bertrand Badie, na ocidentalização da ordem política
em “Estados importados” (2000).
São alguns destes traços dominantes no percurso do PCC, e no discurso dos seus
dirigentes, que nos merecem uma reflexão neste artigo, que abordará alguns dos
aspectos que justificarão a sobrevivência do maior Partido Comunista do mundo, a sua
institucionalização organizacional, mas também as suas vulnerabilidades intrínsecas. Na
fase conclusiva do texto, colocaremos em confronto as principais visões dissonantes
americana e chinesa em presença do case study que o PCC corporiza.
A via chinesa
Um documento oficial divulgado pela agência noticiosa Xinhua, em junho de 2021,
recordava que as teorias académicas ocidentais têm denotado grande dificuldade em
enquadrarem e justificarem, não somente a sobrevivência do PCC, como a asceno
meteórica da China nas diferentes dimensões do poder.
O texto serviria de antecâmara às conclusões da sessão plenária do 19º Comité
Central do PCC e aos “livros brancos” sobre o funcionamento da democracia na China e
à posição do PCC sobre a administração de Hong Kong.
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Comum a todos os documentos é a referência à originalidade do caminho escolhido pelo
PCC para o desenvolvimento da China, enfatizando o acervo civilizacional do país, a
recusa em alinhar no modelo de democracia liberal do Ocidente e, não menos importante,
o papel do Secretário-geral na qualidade de “núcleo central” do Comité Central do PCC e
de todo o Partido, que tem agora como “ideologia-guia” o pensamento de Xi Jinping sobre
o “socialismo com características chinesas na nova era”.
Na realidade, estaremos perante um tipo de revisionismo com caractesticas chinesas.
Sendo certo, como sublinhou Aron, que “a oposição entre Estado revisionista e o
conservador é muitas vezes enganosa” (2002: 142), não é menos certo que a via
escolhida pelo PCC, o Partido-Estado, reivindica a originalidade do seu projecto
ascensional.
Assumindo-se como um partido genuíno e pragmático, intimamente ligado às aspirações
populares, o PCC repudia reiteradamente aquilo que considera ser o “caos da democracia
ao estilo ocidental”, oferecendo em contrapartida uma “democracia que funciona”
baseada em inovações teóricas, de que se destacam a adaptação do marxismo à
realidade chinesa, para além do pensamento de Deng Xiaoping, a teoria da tripla
representatividade de Jiang Zemin ou a teoria científica do desenvolvimento de Hu Jintao.
No plano académico, estas teorias políticas encontram respaldo nas tentativas de
construção de um modelo de relações internacionais apropriado à projeção
contemporânea da China, de que o exemplos as correntes tradicionalista, do realismo
moral ou relacional construtivista.
Um dos grandes desafios no estudo da política externa da China prende-se, de resto,
com a teorização dos padrões e comportamentos aferidos e respectivo enquadramento
no plano das relações internacionais. Dito de outro modo, autores como Zhao Tingyang,
Yan Xuetong ou Qin Yaking, tentam colmatar essa lacuna atras das suas obras, ao
procurarem integrar a China na ordem mundial.
É neste contexto que podemos enquadrar o “sonho chinês” de Xi Jinping, que propõe um
processo inclusivo e harmonioso para o desenvolvimento e afirmação da China, mas
também uma ordem multipolar. Trata-se de um processo de renovação ideológica e
política, com recurso ao reabilitado confucionismo e ao tradicionalismo cultural, mesclado
com o incontornável marxismo em versão sínica.
Mas é a lógica leninista, atribuindo ao Partido a indisputável autoridade legitimada pelo
centralismo democrático, que consolida e une a trindade constituída por PCC-Estado-
Exército Popular de Libertação (EPL). Por outro lado, e pese embora o figurino leninista,
o PCC esforça-se por realçar a democratização dos seus processos dentro dos limites
impostos pela lealdade ao Partido. Olivro branco” com o sugestivo título “A Democracia
que Funciona” (Conselho de Estado da RPC: 2021), recorda que existem outros oito
Partidos no sistema político chinês, mas que todos eles devem obediência ao PCC.
Na realidade, a abertura parcial do PCC a processos de cariz democrático não deve ser
lido como uma liberalização ideológica, mas antes como uma tentativa de refinar e
melhorar os seus métodos funcionais e orgânicos. Para Zheng Yongnian, esse processo,
que apelida de “pluralismo interno”, integra a meritocracia herdada da época imperial
com elementos da democracia moderna (2020:16). Por outras palavras, a construção do
“socialismo com características chinesas na nova era”, tem como objectivo principal
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fortalecer o próprio Partido. É ainda de notar que o PCC colocou especial ênfase no
delicado processo de seleção e recrutamento para os seus quadros, transformando-se
desse modo numa organização política elitista.
Entretanto, na tentativa de ultrapassar o esgotamento do modelo económico adotado
desde a abertura da China ao mundo em 1978, o PCC reviu o seu posicionamento, que
passa agora pela defesa de um modelo alternativo para a globalização, a proposta de
novas organizações internacionais complementares e/ou alternativas ao sistema de
Bretton Woods, e um destino partilhado para a humanidade. E embora o PCC não admita
abertamente que o “modelo chinês” é exportável, considera que “a experiência e prática
do PCC podem oferecer boas referências a outros” (People First: 2021). De acordo com
o discurso de Xi Jinping assinalando o 95º aniversário do PCC, o que está em causa não
é tanto o “modelo chinês”, mas antes a “solução chinesa”. Pouco depois, no discurso que
proferiu ao 19º Congresso do PCC, Xi ficou muito perto de promover um modelo chinês
de relações internacionais, ao referir que o caminho trilhado pela China “oferece uma
nova opção para os outros países e nações que querem acelerar o seu desenvolvimento,
ao mesmo tempo que preservam a sua independência” (2017).
Enquanto as Administrações norte-americanas de Trump e Biden acusam a China de ser
uma potência “revisionista”, apostada em desmembrar o statu quo internacional (vide
Estratégia de Segurança Nacional: 2017; Estratégia de Defesa Nacional dos
Estados Unidos: 2018), a China contradita ao sublinhar que pretende apenas
promover mais democracia nas relações internacionais”. Por outro lado, a postura dos
EUA durante a Administração Trump, hostilizando aliados e retirando-se do projeto da
Parceria Transpacífica, uma medida que beneficiou a China, foi encarada por alguns
observadores como uma outra estirpe de revisionismo, não menos perniciosa que a
chinesa.
Reconheça-se, em todo o caso, que o conceito de “revisionismo” presta-se a diferentes
interpretações, consoante as “ordens” a que se refere. Para Alaistair Ian Johnston, que
identifica oito “ordens” internacionais, a China é marcadamente uma potência
“constitutiva”, isto é, alicerçada na concepção de soberania e territorialidade e, não
menos importante, na preservação do PCC (2019: 9-60). O mesmo autor considera que
a China interage com as diferentes “ordens” de modo diverso. Apoia algumas,o apoia
outras e apoia outras apenas parcialmente.
Laboratório político ímpar
No seu livro The Party, Richard MacGregor considerou a sobrevivência do Partido
Comunista da China um “milagre político” (2012: 33). Se tivermos em conta que a sua
inspiração fundacional, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), foi extinto há
três décadas, a asserção mostra-se válida. Há, no entanto, outras importantes variáveis
em jogo. No monolítico sistema político chinês nada se perde e tudo se transforma, por
obra e engenho de um Partido capaz de notável capacidade adaptativa.
Na realidade, ao longo de um século o PCC foi capaz de superar, com maior ou menor
grau de sucesso, todas as suas crises e contradições internas, transformando-se no maior
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e mais poderoso Partido Comunista do mundo
1
. É ao PCC que se deve a inigualável
projeção de poder na história da China, graças a uma gestão competente da agenda
geoestratégica e geoeconómica. A China, governada por um omnipresente Partido-
Estado, é um laboratório político sem paralelo.
Contudo, um dos muitos paradoxos do PCC, quiçá o principal, radica no facto de não ter
conseguido alcançar o comunismo quando completou o seu centenário. Esta aparente
contradição é abertamente admitida na Constituição do Partido, quando refere que o
objetivo máximo do PCC é a realização do comunismo” e que o ideal mais importante
do comunismo perseguido pelos comunistas chineses poderá ser realizado quando a
sociedade socialista estiver totalmente desenvolvida e altamente avançada”
2
.
Um objetivo que poderá ser parcialmente alcançado em 2049, aquando da celebração
dos 100 anos da implantação da República Popular da China. No léxico do PCC, esse
marco do duplo centenário, assinalará o “rejuvenescimento da nação chinesa”
3
.
Na verdade, a quimera comunista não sefacilmente alcançável, como a história da
segunda metade do século XX revelou de modo dramático, com a implosão da União
Soviética e do seu Partido Comunista. Alguns académicos sustentam mesmo que os
soviéticos nunca chegaram a implantar o comunismo, uma vez que os dirigentes
partidários da URSS teriam optado pelo capitalismo de Estado (Resnick e Wolff , 2002:
324). Outros, como David Shambaugh, vão mais longe ao vaticinarem o colapso do PCC
a médio prazo. Para aquele sinólogo americano, o PCC estará fatalmente contaminado
com debilidades sistémicas que poderão conduzir a um fim violento do regime (2015).
Caberá agora ao PCC e aos seus 91 milhões de militantes provarem, definitivamente,
que o ideário comunista, recalibrado com “características chinesas”, consegue
transformar a utopia em realidade. O pesadelo soviético seria desagravado pelo “sonho
chinês” de Xi Jinping.
Embora o PCC não esconda o trauma causado pelo desaparecimento do seu homólogo
soviético, tudo fazendo para que a história não se repita de forma trágica, o figurino
leninista e o capitalismo de Estado subsistem como alguns dos principais pilares do
Partido. O PCC, “o trunfo mais duradouro da Rússia Soviética em Política Externa” (Chang
e Halliday, 2005: 39) ou o “Partido leninista com mais sucesso na História” (Zheng, 2020:
1) chama a si a tarefa de triunfar no confronto tecnonacionalista com o Ocidente.
Um Partido de geometria variável
O PCC divide o seu percurso centenário em três períodos: desde a sua fundação em
Xangai (1921), aà proclamação da República Popular da China (1949); desde esse ano
1
Para além da RPC, Cuba, Coreia do Norte e Laos são os outros Estados oficialmente comunistas. Só o Partido
Comunista da Coreia do Norte ultrapassa o PCC em longevidade.
2
Constitution of the Communist Party of China, Revised and adopted at the 19th National Congress of the
Communist Party of China on October 24, 2017, p. 1. De acordo com o discurso oficial chinês, a China
“continuará durante longo tempo na fase primária do socialismo”. No 16º Congresso do PCC, em 2002, esse
período fora estabelecido em “mais de 100 anos”. Ver: Documents of the 16th National Congress of the
Communist Party of China, Foreign Languages Press, 2002, pp. 78-79.
3
Os dois centenários estabelecidos pelo PCC têm como meta a construção de uma sociedade moderadamente
próspera no centenário do Partido (2021) e uma sociedade socialista moderna quando a RPC celebrar o seu
centenário (2049).
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até à abertura ao mundo e início das reformas (1978); e desde a chegada ao poder do
atual líder, Xi Jinping (2012).
Na versão oficial, o PCC
4
foi fundado em julho de 1921 por uma dúzia de ativistas, na
sequência do desaire sofrido pela China na conferência de Paz em Versalhes, após a
Primeira Guerra Mundial, que viu as grandes potências sancionarem a ocupação nipónica
da província chinesa de Shandong, e das manifestações estudantis de inspiração
nacionalista que se lhe seguiram, corporizadas naquele que ficou conhecido como o
“Movimento 4 de Maio” (1919).
Os comunistas chineses, que não estavam familiarizados com o marxismo, cuja teoria
económica não colava com a realidade chinesa, viram, ainda assim, naquela doutrina
importada da revolução bolchevique, uma cartilha ideológica pronta a usar na luta contra
o imperialismo ocidental (Dreyer, 1996: 64-65).
Ao adaptarem o marxismo à situação que se vivia na China, os fundadores do PCC
optaram por uma flexibilidade ideológica com características chinesas que se manteria
até à atualidade. Seria Mao Tsé-Tung a alertar para a necessidade de os comunistas
chineses procederem à “sinificação do marxismo”. Nessa medida, o “socialismo com
características chinesas para uma nova era”, a teoria de Xi Jinping consagrada pelo PCC
no seu 1Congresso, é vista como o mais recente progresso na adaptação do marxismo
ao contexto chinês.
Durante os primeiros 28 anos de existência, o PCC viu-se obrigado a obedecer aos
ditames de Estaline e a combater o Partido Kuomintang, o seu arquirrival político,
liderado por Chiang Kai-Chek. Revelando a notável agilidade política que o caracterizaria
nas décadas seguintes, Mao chegaria mesmo a filiar-se episodicamente no Kuomintang,
por indicação de Estaline.
A expedição ao norte, com o PCC ainda aliado ao Kuomintang (1924-27), a guerra
revolucionária agrária (1927-37), a guerra de resistência contra o Japão (1927-37) e a
guerra civil, ou “guerra de libertação” (1946-49), foram os principais marcos históricos
desse período. Mao seguiu os passos de Lenine, saltando da teoria marxista para a acção,
apenas invertendo a sequência.
Com a proclamação da República Popular da China, a 1 de outubro de 1949, o PCC
assumiria as rédeas do poder em regime de monopólio político-institucional. Na
realidade, a vitória de Mao surpreenderia Truman e Estaline (Gaddis, 2021: 47). Nascia
a dinastia comunista chinesa e o Partido-Estado, numa interdependência orgânica e
funcional de inspiração leninista. Pela primeira vez em séculos, a China caminhava para
a união sob uma mesma bandeira.
Terminava um conturbado período, marcado por mais de quarenta mudanças do Governo
central desde a implantação da república, em 1912. Todavia, a pacificação interna não
estava assegurada. Externamente, Mao arriscaria a própria existência do Estado que
4
Atente-se na diferenciação semântica: em dezembro de 1920 foi fundado o Partido Comunista Francês e
em março de 1921 o Partido Comunista Português; o PCC, fundado em julho de 1921, adotou a
designação de Partido Comunista da China (itálico nosso). De acordo com os autores de uma biografia de
Mao Tsé-Tung, o PCC terá sido fundado em 1920 e Mao não estaria entre os fundadores do Partido. Ver
Chang, J., Halliday, J. (2005). Mao, A História Desconhecida. Lisboa: Bertrand Editora.
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acabava de criar. De facto, pouco mais de um ano após a proclamação da RPC, o exército
chinês combatia os americanos na Coreia.
Em síntese, o primeiro grande passo na direção da emancipação identitária da China
ocorreria com o envio de 140.000 trabalhadores para os palcos da Primeira Guerra
Mundial na Europa. No rescaldo do conflito, o “Movimento 4 de Maio”, serviria de embrião
à fundação do PCC.
Por outro lado, sem o combate aos japoneses, na Segunda Guerra Mundial, o PCC não
teria conseguido alcançar o poder, como o próprio Mao admitiria. Na realidade, a
ascensão e consolidação do poder do PCC fundam-se em factos históricos associados às
duas guerras mundiais. É, desde então, que os chineses cultivam um arreigado
nacionalismo de cariz anti-ocidental.
O Partido-Estado
O PCC começou por adaptar o figurino soviético de inspiração leninista à realidade
chinesa. O centralismo democrático, isto é, a subordinação do indivíduo à organização e
seus líderes, passou a reger o funcionamento da máquina partidária. À semelhança do
PCUS, o congénere chinês instituiu na sua cúpula os órgãos com poder decisório,
designadamente o Comité Central (eleito a cada cinco anos pelo Congresso do Partido),
responsável por selecionar o Politburo (25 membros).
Por sua vez, o Politburo elege o seu Comité Permanente, o núcleo duro de decisores
políticos, os atuais sete homens (não inclui mulheres e 70% dos membros do Partido são
homens) que têm nas suas mãos o rumo a dar à China. A poderosa nomenklatura, na
terminologia soviética. O primus inter pares é o Secretário-geral, que, em regra, assume
também o cargo de Presidente da República e presidente da Comissão Militar Central. O
Secretariado tem a importante missão de implementar as decisões do Politburo e do seu
Comité Permanente.
No entanto, algumas características do PCC diferenciam-se do sistema soviético. Desde
logo, a capacidade de penetração do Partido no tecido social, económico e militar. O PCC
está presente em todos os cantos da sociedade, obrigando a uma lealdade incondicional.
Os militares devem obediência constitucional ao Partido, bem como o sistema judicial. O
mesmo se aplica ao setor público da economia, que inclui algumas das empresas mais
conhecidas internacionalmente, os chamados campeões da indústria”. É assim que o
“pensamento de Xi Jinping (…) reflete a vontade comum de todo o Partido, todas as
Forças Armadas e o povo de todos os grupos étnicos” (Comunicado da Sessão Plenária
do 19º Comité Central do PCC).
Constitucionalmente, o governo soviético e o PCUS eram órgãos separados, embora a
realidade desmentisse esse artificialismo. Na China, o PCC deixou sempre bem claro que
seria o único responsável pelo controlo de toda a sociedade. Consequentemente, a
estreita interligação entre Partido e Estado é indistinguível. Na linguagem oficial “é
necessário assegurar que a liderança do Partido e do Estado permanece nas mãos
daqueles que são leais ao marxismo, ao Partido e ao povo” (China: Democracy That
Works: 8).
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É de sublinhar que, quando os líderes mundiais reúnem com o Presidente Xi Jinping,
nessa qualidade a exercer um cargo eminentemente cerimonial de acordo com a
Constituição da RPC, têm antes pela frente o poderoso Secretário-Geral do PCC.
Dispensando as formalidades legais, uma vez que não está registado como organização,
o Partido legitima a sua ubíqua influência na conquista do poder na sequência da guerra
civil, no desenvolvimento económico e social desde a abertura da China ao mundo, na
sua visão nacionalista e, acima de tudo, na pureza espiritual derivada dos dogmáticos
princípios partidários, coadjuvados por uma visão culturalista enraizada na filosofia
confucionista uma espécie de código social que regula a sociedade chinesa há milhares
de anos. Um contrato social que os chineses subscrevem descomplexadamente, desde
que as oportunidades de prosperidade e riqueza não sejam colocadas em causa.
A implantação
Mao Tsé-Tung, o líder supremo do PCC até à sua morte em 1976, não teve urgência em
reorganizar o Partido após a fundação da RPC. O primeiro plano quinquenal foi
aprovado em 1953 e o primeiro congresso do PCC apenas teve lugar em 1956 (até 1977
nenhum completou o mandato de cinco anos). Por sua vez, o Congresso Nacional Popular
(CNP), fundado em 1954, não reuniu entre 1966 e 1974 (Dreyer, 1996: 90-91). Ainda
em 1954 era aprovada a primeira Constituição da RPC.
Mao viria a revelar-se, paradoxalmente, o mais problemático líder do PCC. No Grande
Salto em Frente (1958-1962), terá sido o responsável máximo por 36 a 45 milhões de
mortes (Yang, 2008: 2; Dikötter, 2011: 1). Ao promover a transição forçada de uma
economia subdesenvolvida, para uma utópica sociedade comunista moderna, Mao levou
o sistema social e económico da China à beira do colapso.
Ainda mal refeito da catástrofe do experimentalismo maoísta, o povo chinês viu-se
obrigado a mergulhar na Revolução Cultural (1962-1976), que viria a revelar-se mais
uma página negra do PCC e do seu líder, apostado em agitar as massas através da
constante inquietação revolucionária. Vendo-se como o legítimo herdeiro do marxismo-
leninismo, Mao quis, mais uma vez, acelerar a transição do socialismo para o comunismo,
garantindo desse modo o seu legado histórico. As purgas e perseguições políticas no seio
do PCC, bem como a tortura física e psicológica e o desterro, passariam a ser comuns. O
Partido ficou virtualmente paralisado. Cinco milhões de militantes seriam alvo de
punições (Dikotter, 2017: 10). Os estudantes, mobilizados para o combate
revolucionário, acabariam por ser das principais vítimas da revolução cultural. Xi Jinping
seria um deles. O ensino na China atrasaria uma década.
A adoção da liderança coletiva e a abolição do culto da personalidade e do “pensamento
de Mao” como guia ideológico, tinham ficado consagradas no 8º Congresso do PCC, mas
nos 12 anos seguintes Mao conseguiu reverter esses princípios. No 9º Congresso do PCC
(1969), liderado por um Mao politicamente ressuscitado, a revolução cultural foi
oficialmente declarada “um grande sucesso (Li, 1994: 508). Foi nesse ano que Mao
passou a considerar a União Soviética, e não os EUA, a maior ameaça à segurança da
China.
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A aproximação aos EUA constituiria o maior êxito da fase final da carreira política de Mao.
Uma manobra primorosamente executada pelo mestre da tática que era Chu Enlai, o
Primeiro-ministro.
A retificação histórica
A morte de Mao Tsé-Tung e a consequente assunção do poder por parte do anteriormente
ostracizado Deng Xiaoping, abriu um capítulo de primordial importância na evolução do
PCC, que procedeu a um inédito exercício de autocrítica, numa tentativa de retificar o
delicado legado maoísta.
A importante Resolução sobre a História do PCC, adotada na 6ª seso plenária do 11º
Comité Central do Partido (1981), passou em revista a atuação “arbitrária” de Mao Tsé-
Tung e os seus “erros teóricos e práticos”. Particular atenção mereceu o período da
revolução cultural, que não se conformou nem com o marxismo-leninismo, nem com a
realidade chinesa”. Embora o PCC tenha considerado Mao o principal responsável pela
catástrofe social desencadeada pela revolução cultural, ao “confundir o povo com o
inimigo”, a resolução deixou claro que o valor científico do “pensamento de Mao”
continuava válido como farol ideológico do Partido.
Ao expor abertamente as feridas abertas por um der “divorciado da realidade e das
massas”, o PCC pretendeu iniciar um processo de regeneração interna, ao mesmo tempo
que validava o projeto reformista de Deng Xiaoping. Mas a abertura da China ao mundo,
iniciada em 1978, e o resultante desenvolvimento económico, comportava riscos
existenciais para o PCC que viriam a revelar-se de forma dramática.
Tiananmen
O PCC não voltaria a produzir um documento semelhante à resolução autocrítica de 1981
sobre os desaires da revolução cultural. As causas e efeitos dos acontecimentos de
Tiananmen, em 1989, seriam obliterados da historiografia oficial. A documentação oficial
do PCC é omissa sobre o agitado período, que poderia ter derrubado o Partido do poder,
embora esse não fosse o objetivo dos estudantes contestatários (Zhao, 2009: 79).
Todos os regimes autoritários dependem em maior ou menor grau da repressão e Deng
Xiaoping, mais leninista que maoísta, não hesitou em valer-se do “poder disciplinar” na
aceção de Foucault. Contudo, ao recorrer ao uso da força para estancar a hemorragia
interna do PCC, provocada pelas manifestações estudantis, o legado de Deng Xiaoping,
o grande estadista responsável pela modernização da China, ficaria irremediavelmente
manchado. Inversamente, Gorbatchev, o polémico líder responsável pela implosão da
União Soviética, seria galardoado com o prémio Nobel da Paz.
Uma década antes, Deng chegara a ventilar a possibilidade de uma separação entre
Partido e Estado, uma reforma nunca concretizada, desde que se mantivesse como regra
inquebrável a impossibilidade de liberalização política à luz do modelo tripartido de
separação de poderes adotado no Ocidente. Essa linha vermelha seria mantida e
reforçada pelas lideranças subsequentes do PCC.
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O Partido Civilizacional da China
Um Partido Comunista centenário, no poder em regime de monopólio e governando
tanto tempo quanto o PCUS governou a antiga União Soviética, é obrigado a cuidar em
permanência da sua legitimação.
Uma das chaves para a compreensão da perenidade do PCC estará na observação
judiciosa de Bertrand Russel, quando concluiu que “a China não é tanto uma entidade
política, mas antes uma civilização” (1993: 208). Dito de outro modo, o princípio da
unidade nacional firma-se na valorização da herança civilizacional. Daqui decorre um
sentimento de superioridade moral face ao Ocidente que o PCC cultiva recorrentemente.
Nessa medida, mais do que um intérprete da história da China, o PCC situa-se como ator
central dessa história. A sua legitimação privilegia a perspectiva historicista em
detrimento da perspectiva ideológica.
É essa tese culturalista, baseada no excecionalismo chinês, que legitima a originalidade
do sistema político, transformando o PCC no exclusivo representante e guardião de uma
determinada verdade histórica. A virtude de inspiração confucionista moldou-se aos
valores socialistas, daí resultando as “características chinesas”.
Para Zhang Wewei, é o “Estado civilizacional”, liderado e interpretado pelo PCC, que
permitiu a “maior revolução económica e social da humanidade” (2012:2). O académico
chinês recorda que a China conseguiu fundir, com sucesso, a civilização mais longeva
com um Estado moderno. Trata-se de uma unidade forjada na História e no hábito,
superior a qualquer forma de governo.
Uma outra leitura encontra justificação na aversão da sociedade chinesa ao caos, tantas
vezes vivido na sua história. Na verdade, o discurso oficial não perde uma oportunidade
para enfatizar o papel aglutinador do PCC, verdadeiro namo de um país formado por
56 grupos étnicos. Como recorda o historiador Niall Ferguson, se a China fosse
organizada como a Europa, teria de ser dividida em 90 Estados-nação (2012: 10).
A institucionalização
As sociedades não ocidentais debatem-se entre a lógica da adaptação e a lógica da
inovação (Badie, 2000: 2). A sociedade chinesa não é excepção. Ao longo de um século
o PCC conseguiu, de algum modo, mitigar as forças contraditórias do sistema político que
implantou.
E embora o PCC tenha recuperado a lógica imperial no seu modus operandi e no
posicionamento da China como ator internacional, a institucionalização de processos de
transição na elite dirigente permitiu que a quinta geração a chegar ao poder tenha ao
seu dispor um inédito poder global.
O PCC não está plasmado na máquina do Estado como a controla em todas as
dimensões, transformando-se num “Partido estatal sem complexos” (Rios, 2021: 304).
Essa supervio tem sido intensificada através das reformas orgânicas implementadas
por Xi Jinping nas esferas judicial, militar e legislativa, a um ritmo inédito, que criam um
novo impulso à trajetória política e económica da China. A liderança encabeçada por Xi
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terá embarcado num processo de transformações institucionais que têm por objectivo
reverter muitas das mudanças consolidadas pela relativa liberalização das últimas
décadas (Economy, 2018: 5; Bowring, 2021:239).
Para Huntington “a probabilidade de uma organização com 100 anos sobreviver mais um
ano é, talvez, 100 vezes maior do que a probabilidade de uma organização com um ano
sobreviver mais um ano(1968: 13-14). Talvez seja por isso que os documentos oficiais
refiram que o PCC, Partido com cem anos, que luta pela prosperidade duradoura da
nação chinesa, está na flor da idade” [itálico nosso] (Comunicado da 6ª Sessão Plenária
do 19º Comité Central do PCC).
O núcleo do PCC
Xi Jinping é um líder transformacional, comparável a Mao e Deng, líderes carismáticos.
Está imbuído de uma infabilidade histórica quanto à missão de transformar a China na
mais poderosa das nações. Mas Xi não será carismático, antes racional no sentido
weberiano. Mantém o Partido afastado da liberalização, rejeitando firmemente a divisão
de poderes e o parlamentarismo e não hesita em recorrer aos instrumentos repressivos
do Estado. É um der forte, com um projecto político bem definido. Traçou as linhas
vermelhas quando, na primavera de 2013, um memorando interno do PCC (documento
9), elencou as principais ameaças existenciais do Partido, incluindo a democracia
constitucional de matriz ocidental e o neoliberalismo (Bougon, 2018:153-158).
Quando assumiu a liderança da quinta geração a alcançar o poder na China, em 2012, o
Financial Times referia a possibilidade de Xi ser “simpático às reivindicações para um
sistema político mais liberal”
5
. Não só essa predição se mostrou errónea, como Xi viria a
revelar um estilo de forte liderança unipessoal, ao mesmo tempo que neutralizava a
governação coletiva que nunca funcionou plenamente e a proibição do culto da
personalidade advogadas pelo PCC desde Deng Xiaoping.
Uma primeira consagração de Xi ocorreu no 19º Congresso do PCC, em 2017. Em apenas
cinco anos, Xi conseguiu consolidar o seu poder e inscrever a sua doutrina na Constituição
do PCC, colocando-se desse modo a par dos sacralizados Mao e Deng no panteão dos
deres imortais.
Tratou-se de uma medida com grande significado político, uma vez que Deng Xiaoping
viu o seu nome inscrito na Constituição do PCC após a sua morte, e Jiang Zemin
apenas conseguiu que a sua “teoria da tripla representatividade” (traduzida na cooptação
do empresariado pelo Partido) fosse reconhecida depois de ter saído do poder. Por sua
vez, a teoria do desenvolvimento científicode Hu Jintao foi inscrita na Constituição
após o seu primeiro mandato, mas apenas elevada a “guia para a ação” depois de ter
abandonado o cargo.
Mais recentemente, o Partido passou a marcar uma nítida linha divisória entre o período
das reformas espoletado por Deng e uma “nova era” de 30 anos, iniciada em 2020. Nos
primeiros 15 anos, até 2035, Xi quer ver consolidadas as fundações de uma sociedade
5
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“moderadamente próspera” e na segunda etapa de 15 anos, até 2045, concretizada a
modernização da “sociedade socialista”.
Grande parte da meteórica asceno de Xi foi justificada pela campanha de purificação
interna no combate à corrupção, que atingiu milhares de membros do Partido e Forças
Armadas, incluindo destacados dirigentes. Em causa estauma verdadeira “revolução
ética” destinada a sustentar a legitimação do Partido (Zhang e McGhee, 2017). É
inegável, no entanto, a notável capacidade de mobilização partidária e nacional de Xi,
que vai muito para além das purgas internas no seio do Partido. Ao apelar a sentimentos
nacionalistas, Xi invoca e consagra a sua legitimidade emocional.
Em síntese, desde o início do presente século que a China vem explorando as
oportunidades estratégicas evidenciadas no 16º Congresso do PCC, mas é no consulado
de Xi Jinping que a China mostra todo o seu poder e assertividade. A narrativa oficial
veiculada por Xi eliminou definitivamente a estratégia discreta para a afirmação externa
da China recomendada por Deng Xiaoping.
A China, que pode ascender à condição de maior potência económica mundial num
futuro o muito distante, está agora a “aproximar-se do centro do palco”, sendo uma
der em termos de força nacional e influência internacional” (Xi, 2019: 9-25). Também
quer construir umas forças armadas poderosas, “capazes de ganhar guerras”, possuindo
a maior marinha de guerra do mundo, para além de ter colocado em curso um
ambicioso plano de rearmamento nuclear e dispor de avançadas tecnologias disruptivas,
designadamente mísseis hipersónicos, armas de pulso eletromagnético e ciberarmas. Na
realidade, como salientou Aron, os Estados podem ser proféticos, mas são sempre
armados” (2002: 131).
Conclusões
O PCC não venceu a utopia, mas ultrapassou-a. Ao longo da sua história, o PCC aprendeu
a (sobre) viver com inúmeros paradoxos e contradições. Transformou-se numa máquina
centrifugadora híbrida, capaz de absorver, regenerar e devolver à sociedade as diferentes
abordagens políticas e económicas. Combina autoritarismo com pragmatismo. É uma
organização resiliente, dirigida atualmente por um líder resiliente.
A China não inventou o marxismo-leninismo, o nacionalismo ou o capitalismo. No
entanto, o PCC tem vindo a revelar-se um exímio cultor destas correntes aparentemente
antagónicas. Mas é principalmente ao nacionalismo, e à “comunidade política imaginada”,
que o PCC vai resgatar a sua legitimidade.
Uma legitimidade que a China quer ver transposta para o cenário internacional, onde,
mais do que assumir um papel central, pretende ver validada a sua proposta para uma
nova ordem centrada no desenvolvimento, de que a proposta Uma Faixa, Uma Rota
Belt and Road Initiative (BRI) é exemplo, daí decorrendo claras implicações geopolíticas
e geoeconómicas. Trata-se de uma visão global sem precedentes. É nesse contexto que
o académico Zhang Weiwei, autor de The China Wave: Rise of a Civilizational State,
integra uma corrente intelectual chinesa que, para além de rejeitar qualquer emulação
com modelos políticos ocidentais, considera ter chegado a hora de a China influenciar o
mundo.
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Por outro lado, a estabilidade e a qualidade da governação o créditos que alguns
círculos ocidentais denotam dificuldade em reconhecer aos dirigentes chineses. Os
indicadores externos de desenvolvimento económico são extraordinários e a conjugação
estratégica de poder brando com o poder duro (na aceção de “poder inteligente” de Nye)
também, mas é o facto de o PCC ter conseguido retirar 800 milhões de chineses da
pobreza, 10 anos antes do previsto para o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentado (ODS) estabelecidos pela ONU, que impressiona pela escala e implicações
socioeconómicas.
Nas constituições da República Popular e do PCC, encontramos o obrigatório léxico
comunista referindo uma ditadura democrática popular, o centralismo democrático e a
luta pela classe trabalhadora. Na verdade, o “proletariadodeu lugar aos empresários
cooptados pelo Partido ao tempo de Jiang Zemin, e a “luta de classes” é agora reduzida
à contradição evidenciada na desigualdade social provocada pelo desenvolvimento
económico desenfreado. Uma fragilidade estrutural que o PCC admite abertamente nos
seus documentos oficiais.
Tudo somado e volvido um século, é inegável que o PCC conseguiu alcançar um dos
principais objectivos que presidiu à sua fundação: a transformação da China num país
forte e independente. O PCC conduziu a China a um patamar nunca alcançado na sua
longa história, desfrutando finalmente de poder e prestígio na aceção que Morgenthau
lhe atribuiu (1985: 714).
E se alguns profundos conhecedores da realidade chinesa, como Susan Shirk (2007) ou
David Shambaugh (2008; 2015) sustentam a tese do irreversível declínio do PCC a dio
prazo, elencando conhecidas fragilidades sistémicas, ressalve-se que as reformas
institucionais implementadas por Xi Jinping, abrangendo o funcionamento do PCC e das
Forças Armadas, têm vindo a modernizar e fortalecer a relação PCC-Estado-EPL. De facto,
Xi tem operado no sentido de racionalizar a arquitetura institucional do PCC; ponto
fundamental é a necessária e exigida acomodação e lealdade de todos os actores
sociais à dinâmica hegemónica do PCC. Também não é crível que a relativa neutralização
da liderança coletiva que como frisámos nunca funcionou plenamente tenha
consequências contraproducentes na nova orgânica institucional implementada na
governação de Xi.
Os indicadores disponíveis indicam que o PCC desfruta de um elevado grau de
popularidade, ao mesmo tempo que a elite partidária mantém a necessária coesão.
Fatores cruciais para a perpetuação da necessária legitimidade e que nos levam a concluir
que a sede do poder estratégico no sistema político chinês o PCC não estará
ameaçada num futuro próximo. O grande desafio do líder máximo do PCC será antes
operar a transição entre o autoritarismo e a inovação tecnológica.
A China, com um regime autocrático liderado pelo resiliente PCC, não pretende
exportar a sua ideologia marxista-leninista-maoísta e agora xiísta. Antes reclama a
legitimidade de um modelo alheio ao conceito de universalismo impregne na ordem
política do Ocidente. De resto, também Huntington chamaria oportunamente a atenção
para o facto de o Ocidente ser único, mas não universal (1996).
A nova postura assertiva e auto-confiante da China, anulando a teoria da “ascensão
pacífica”, teve como consequência uma política reativa por parte de Washington, as
principais capitais europeias e até da OTAN, que considera a China “um rival sistémico
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de espectro total,” (NATO, 2020:27). Para a União Europeia (UE), por exemplo, a China
é agora um adversário sistémico que promove modelos alternativos de governação”
(2019), sendo também “uma parceira, uma competidora e uma rival” (Borell, 2021). Por
outro lado, a crise panmica serviu de catalisadora a uma clarificação geopolítica no
relacionamento entre as principais potências do Ocidente e a China. Na realidade, o PCC
conseguiu granjear um poder sem precedentes na história da China, mas como alertou
Kissinger, “a questão é saber se é possível criar um sistema internacional tendo a China
como participante sem que ela domine o sistema (2011: 43).
Em suma, há mais de um século que o mundo vive dividido entre as visões de Lenine e
Woodrow Wilson, numa clivagem ideológica perene. Será a qualidade da governação e a
batalha pela liderança tecnológica a decidir se haverá vencedores ou apenas vencidos na
titânica disputa entre grandes potências. Dito de outro modo, se verá se a China ficará
mais parecida com o mundo, ou o mundo com a China.
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