OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
177
PATENTES FARMACÊUTICAS E DIREITO À SAÚDE PORTUGAL E BRASIL
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
rbahamonde@autonoma.pt
Professor Associado do Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal).
Coordenador e Investigador Integrado do Ratio Legis Centro de Investigação e
Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa
[Projeto: Autotutela e realização do Direito Privado].
.
Resumo
A defesa da legitimidade do sistema de patentes, nomeadamente no domínio farmacêutico
está consolidada, pese embora não isenta de críticas. Historicamente, quando confrontado o
direito da patente, um direito de monopólio legal, com o direito de acesso à saúde, onde se
inclui o direito aos medicamentos necessários ao seu cuidado, são escassos e fracos os
mecanismos que se conseguiram estatuir, não obstante se lhe deva reconhecer o devido
mérito, na procura de equilíbrio entre o direito exclusivo do titular do monopólio legal e o
direito da coletividade ao acesso generalizado a medicamentos necessários para concretizar
o direito à saúde. No contexto atual da doença covid-19, em que está em causa o acesso à
saúde de todos os países, ricos e pobres, parece que existe maior vontade em fazer prevalecer
o direito à saúde do que o direito de propriedade do titular de uma patente farmacêutica.
Palavras-chave
Patentes farmacêuticas; direito à saúde; acesso a medicinas essenciais
Como citar este artigo
Delgado, Ruben Bahamonde (2022). Patentes farmacêuticas e direito à saúde Portugal e
Brasil. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, 1, Maio-Outubro 2022.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.13.1.11
Artigo recebido em 29 Setembro 2021 e aceite para publicação em 18 Fevereiro 2022
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PATENTES FARMACÊUTICAS E DIREITO À SAÚDE
PORTUGAL E BRASIL
RUBEN BAHAMONDE DELGADO
Introdução
A problemática resultante do confronto entre o direito à saúde e o direito de propriedade
industrial não é nova, nem exclusiva da realidade luso-brasileira, mas os novos desafios,
nomeadamente os resultantes da covid-19, impõem uma maior e melhor clarificação
desse confronto
1
. Com efeito, o tradicional paradigma da interação entre o direito à saúde
e a propriedade industrial que tem por objeto medicamentos, tem-se focado no confronto
de interesses entre países ricos ou desenvolvidos, onde existem diversas empresas
detentoras de patentes farmacêuticas, e países pobres ou menos desenvolvidos, nos
quais existem poucos meios económicos e financeiros para garantir o acesso a tais
medicamentos e onde se verificam problemas de saúde graves e de ampla magnitude.
No atual contexto, podemos afirmar que a covid-19 veio nivelar as economias estaduais,
na medida em que se verifica que muitos países tradicionalmente considerados ricos ou
desenvolvidos não dispõem da propriedade industrial necessária para produzir um
medicamento/vacina para tratamento da covid-19, ficando assim dependentes das
soluções que venham a surgir no mercado, obviamente protegidas pela propriedade
industrial, para poder providenciar atempada e adequadamente aos seus cidadãos o
acesso à saúde. Nestes casos, apesar de os países em causa terem meios para adquirir
os medicamentos protegidos por patentes, os mesmos poderão não estar disponíveis nas
quantidades, preços e datas desejadas. Esta situação permite constatar um cenário de
elevados preços de venda das soluções encontradas, protegidas por patentes
farmacêuticas, assumindo que o normal e livre funcionamento do mercado permitirá ter
acesso a tais soluções, em primeiro lugar, àqueles países que estejam em melhores
condições de pagar um maior preço, relegando assim para um segundo plano aqueles
outros países que disponham de menores recursos económicos. A covid-19 não é o
VIH/SIDA, nem a bronquite, nem a tuberculose, esta afeta a todas as camadas da
sociedade em todas as sociedades de todos os países do mundo em quantidades muito
preocupantes e sem que exista um padrão de prevenção/proteção muito claro em termos
de eficácia.
1
A covid-19 é o nome oficial da doença provocada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2
(SARS-CoV-2), identificada pela primeira vez em 2019, e que neste trabalho referiremos apenas como
covid-19. https://www.volp-acl.pt/index.php/item/covid-19.
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O problema não é novo, mas o facto de que no atual contexto seja afetado um
significativo maior número de seres humanos pertencentes também a países ricos ou
mais desenvolvidos, deve gerar uma maior pressão/disponibilidade para afrontar esta
situação com outra perspetiva.
As patentes no contexto internacional
As patentes têm por objeto invenções e consistem num direito de exclusivo ou
monopólios legais conferidos pelas entidades correspondentes a quem os requerer,
sempre e quando se verifiquem os requisitos legais habilitadores para o efeito
(Bahamonde, 2016: 163-167). Nomeadamente, para que possa ser conferida esta
proteção a uma invenção será necessário que se cumpram cumulativamente os requisitos
da novidade, da capacidade inventiva e da aplicação industrial
2
. As invenções para as
quais se pode solicitar a proteção de uma patente podem recair sobre objetos, uma
determinada subsncia ou um dispositivo, ou podem recair sobre procedimentos, onde
o que se protege não é o resultado, mas sim a sequência de passos realizados para
alcançar esse determinado resultado.
Neste contexto, as invenções que tenham por objeto medicamentos ou procedimentos
específicos para obter substâncias úteis para o tratamento de doenças também são
passíveis de beneficiar da proteção conferida pelo sistema de patentes.
O sistema de patentes carateriza-se por ser de base nacional, i.e., a patente é concedida
pela autoridade competente de um estado e tem validade para esse estado. No entanto,
devido ao importante papel que as patentes desempenham no tráfego jurídico
económico, e em concreto para o desenvolvimento dos mercados tendencialmente
caracterizados pela necessidade de promover o seu crescimento mediante a
internacionalização e globalização, surgiu a necessidade de homogeneização desta
matéria. Assim, pode-se afirmar que a primeira positivação do interesse de criar um
sistema que permitisse homogeneizar o tratamento do sistema de patentes foi através
da Convenção da União de Paris de 1883 (CUP)
3
. Sem pretender fazer um tratamento
exaustivo do normativo referido, cumpre salientar as suas principais caraterísticas
relacionadas com o nosso tema. Neste sentido, foi consagrada a prioridade unionista
(artigo 4º/C-1), a possibilidade de concessão de licenças obrigatórias perante o exercício
abusivo do direto exclusivo conferido pela patente (5ºA-2) e a possível introdução da
caducidade da patente como medida subsidiária ao sistema de licenças obrigatórias (5ºA-
3).
4
Muito mais recentemente no Ato Final de Marraquexe de 1994, que consignou os
resultados das negociações do Uruguay Round, no âmbito da Organização Mundial do
2
Em Portugal vid. Artigo do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro que aprovou o novo Código
da Propriedade Industrial. No Brasil vid. Artigo da Lei n.º 9.297, de 14 de Maio de 1996, diploma que
regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
3
Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial de 20 de março de 1883, modificada por
última vez em 2 de outubro de 1979 disponível em
https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/pt/wipo_pub_201.pdf.
4
A ação de caducidade apenas pode ser intentada decorridos dois anos após a concessão da primeira licença
obrigatória. No que respeita às licenças obrigatórias, com fundamento na fala ou insuficiência de exploração,
estas não podem ser solicitadas antes de expirar o prazo de quatro anos a contar da apresentação do pedido
de patente, ou de três anos a contar da concessão da patente, devendo aplicar-se o prazo mais longo (5ºA-
4).
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Comércio (OMC), e teve os seus precedentes no Acordo Geral sobre Taxas Alfandegárias
e Comércio (GATT)
5
, foi adotado o Acordo sobre Direitos de Propriedade Industrial
relacionados com o Comércio (ADPIC), nas suas siglas inglesas (TRIPS). Sendo o escopo
principal do mencionado acordo a adoção de medidas e procedimentos que permitam a
redução das distorções ao comércio internacional relacionadas com a eficaz tutela dos
direitos de propriedade intelectual, não deixa porém, de reconhecer-se expressamente
as necessidades especiais dos países signatários menos adiantados, exigindo-se nestes
casos, uma aplicação mais flexível das normas em causa para que assim possa ser criada
uma base tecnológica viável. Neste contexto, o acordo estabelece a possibilidade de que
os países signatários possam excluir a patenteabilidade das invenções cuja exploração
comercial no seu território deva ser impedida para proteger a saúde ou a vida das
pessoas e dos animais, e ainda se prevê a possibilidade de utilização da patente
concedida sem o consentimento do titular em situações de emergência nacional
6
.
Apesar dos mecanismos referidos, as relações entre a indústria farmacêutica e os Estados
signatários, nomeadamente aqueles menos evoluídos em termos de titularidade de
direitos de propriedade industrial no âmbito farmacêutico, foram incrementando a tensão
entre a tutela da propriedade e o direito à saúde que os Estados devem acautelar aos
seus cidadãos. Neste contexto, surgiu em 14 de novembro de 2001 a Declaração de
DOHA relativa ao acordo ADPIC e à saúde pública
7
. Na base desta declaração encontrava-
se a gravidade dos problemas de saúde blica que afetavam muitos países em
desenvolvimento, com especial relevância para o VIH/SIDA, a tuberculose, o paludismo
e outras epidemias, nomeadamente no Brasil, na Árica do Sul e na Índia (Orsi, 2007:
1997-2003; Polônio, 2006: 68; Cullet, 2003: 147-154). Não obstante ser reconhecida a
relevância fundamental da proteção da propriedade intelectual para o desenvolvimento
de novos medicamentos, também se sublinha a legitimidade de os Estados Membros
adotarem medidas dirigidas à proteção da saúde pública, impondo a obrigação de que o
acordo ADPIC seja interpretado no sentido de apoiar o direito dos Membros da OMC de
proteger a saúde. O documento reitera a possibilidade para os Estados de conceder
licenças obrigatórias e o direito destes a determinar o que constitui, em cada caso, uma
emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência. Para evitar maiores
confusões, reconhece-se especificamente que as crises de saúde pública, aqui incluídas
as relacionadas com VIH/SIDA, a tuberculose, o paludismo e outras epidemias, podem
representar uma emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência
8
. Por
último, e como elemento mais relevante deste documento, destaca-se ainda o
reconhecimento da ineficiência do sistema de licenças obrigatórias quando estão em
causa países cujas capacidades de fabrico no sector farmacêutico são insuficientes ou
inexistentes, o que necessariamente conduzirá a soluções mais criativas neste tipo de
5
General Agreement on Tariffs and trade estabelecido em 1947, que através da ronda de Uruguay deu origem
em 1994 à Organização Mundial do Comércio (Declaração de Marraquexe de 15 de abril de 1994) Para mais
informação consultar https://www.wto.org.
6
O n.º 2 do artigo 27º do ADPIC exige que este desvio à regra além de ser amparado pela correspondente
legislação, tem de ser fundamentado nos motivos previstos para tutela entre outros, da referida saúde.
Complementarmente, e sem prejuízo da proteção da invenção através de patente, o artigo 31º estabelece
diversas situações em que o direito em causa pode ser utilizado por terceiros sem a autorização do titular,
nomeadamente, a alínea b) refere as situações de emergência nacional ou em situações de extrema
urgência ou nos casos de utilização pública não comercial.
7
Conferência Ministerial da OMC (DOHA,2001): OS ADPIC, WT/MIN/(01)DEC/2, de 20 de novembro de 2001,
disponível em https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min01_s/mindecl_trips_s.htm
8
Vid. alínea c) do ponto 5 da Declaração relativa ao acordo ADPIC e a saúde pública.
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situações (Pontes, 2017: 49). Para tentar colmatar esta dificuldade, após a Declaração
de DOHA foram adotadas diversas decisões no sentido de permitir importar
medicamentos genéricos mais baratos fabricados ao amparo de licenças obrigatórias no
caso dos países importadores não serem capazes de os fabricar eles próprios. Assim,
eximiram-se aos países exportadores as obrigações decorrentes da alínea f) do artigo
31º do ADPIC, permitindo a qualquer país Membro exportar produtos farmacêuticos
genéricos fabricados sob licenças obrigatórias para satisfazer as necessidades dos países
importadores, sempre que sejam cumpridas determinadas condições
9
. Em 2017 foi
decidido aditar o artigo 31 Bis ao Acordo, permitindo por esta via que os países
importadores pudessem distribuir o medicamento importado sob licença em países
pertencentes a um mesmo espaço económico e que estivessem perante a mesma
situação de emergência sanitária
10
. Seguindo este caminho, também a União Europeia
tem procurado clarificar a problemática do fornecimento de medicamentos genéricos
fabricados com recurso a licenças obrigatórias quando os seus Membros são Estados com
problemas de saúde pública (Fernández-Nóvoa, 2017: 201-206)
11
.
É importante referir ainda que os problemas resultantes do exercício dos direitos
decorrentes das patentes farmacêuticas não se circunscrevem exclusivamente aos países
menos adiantados. Com efeito, no que diz respeito aos países mais avançados, e com
meios para produzir os medicamentos em causa, a questão coloca-se em termos de aferir
a partir de que momento podem ser utilizados os conhecimentos protegidos através de
uma patente farmacêutica, para dar início aos procedimentos de legalização necessários,
tendentes à produção e posterior comercialização de um medicamento genérico. Esta
temática deu lugar à conhecida “cláusula Bolar”, que se prende com a interpretação do
artigo 30º ADPIC e com a possibilidade amplamente contemplada nos ordenamentos
jurídicos, de permitir a utilização dos conhecimentos protegidos por patente para fins
experimentais ou de investigação
12
. A cláusula Bolar ultrapassa esta situação,
estabelecendo uma exceção que permite a utilização experimental de um produto
protegido por patente para realizar os trâmites administrativos necessários tendentes à
autorização de comercialização do produto genérico em causa tendo por base,
essencialmente, a exigência de resposta a necessidades sociais, nomeadamente a rápida
introdução de medicamentos acessíveis (Tudor, 2018: 300-308)
13
.
A par destes instrumentos, e colaborando na procura de soluções para os problemas
expostos, existem outras importantes organizações internacionais como a Organização
9
Decisão de 6 de dezembro de 2005 Alteração do Acordo TRIPS; Decisão de prorrogação do prazo para a
aceitação da alteração do Acordo TRIPS, 2015; Decisão sobre o pedido apresentado pelos países membros
menos desenvolvidos Obrigações ao abrigo do artigo 70.o, n.os 8 e 9, do Acordo TRIPS referentes a
produtos farmacêuticos, 2015 e Decisão sobre a prorrogação do período de transição, ao abrigo do
artigo 66.o, n.o 1, do Acordo TRIPS, para os países membros menos desenvolvidos em relação a
determinadas obrigações referentes a produtos farmacêuticos, 2015.
10
Vid. o artigo 31º Bis na integra, atualizado em março de 2020
https://www.wto.org/english/res_e/publications_e/ai17_e/trips_art31_bis_oth.pdf.
11
Regulamento (CE) n o 816/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, sobre a
concessão de licenças obrigatórias sobre patentes relativas ao fabrico de produtos farmacêuticos destinados
à exportação a países com problemas de saúde pública.
12
Vid. alínea c) do n.º 1 do artigo 103º do Código da Propriedade Industrial português e o inciso II artigo 43º,
da Lei n.º 9.297, de 14 de maio de 1996 que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial
no Brasil.
13
Em todo o caso, a mencionada cláusula não obsta a que seja preciso que a patente de base ou o certificado
complementário de proteção estejam caducados para poder iniciar a comercialização do produto genérico.
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Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)
14
ou a Organização Mundial da Saúde (OMS),
nomeadamente através da Comissão de Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e
Saúde Pública
15
, que com os seus estudos e recomendações, muitom contribuído para
a evolução do tratamento conferido às patentes farmacêuticas quando relacionadas com
o acesso ao direito à saúde em países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos.
A propriedade industrial, como um direito de propriedade ou como tutela da autoria de
criações, encontra fundamentação legal na Declaração Universal dos Direitos do Homem
de 1948, nomeadamente no artigo 17º relativo ao direito de propriedade e no n.º 2 do
artigo 2 relativo aos interesses morais e materiais dos autores
16
, e no Pacto
Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, (1966/1976) onde se
reconhece, no parágrafo c) do n.º 1 do artigo 15º, a proteção dos interesses dos
autores
17
. Neste último caso, deve referir-se que o Comité de Direitos Económicos,
Sociais e Culturais, na observação geral do artigo n.º 17, especifica na sua introdução a
necessidade de diferenciar os direitos humanos enquanto tal e os regimes de propriedade
intelectual, ficando claro que não devem ser equiparados os direitos de propriedade
intelectual com o direito humano reconhecido no parágrafo c) do n.º 1 do artigo 15º do
Pacto
18
. Para justificar tal posicionamento, entre outros argumentos, o Comité especifica
que os direitos humanoso fundamentais porque são inerentes à pessoa humana como
tal, entanto que os direitos de propriedade intelectual o, principalmente, meios
utilizados pelos Estados para estimular a criatividade e a inventividade, protegendo-se
através dos regimes de propriedade intelectual, nomeadamente, os investimentos
comerciais e empresariais. Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, de 2000, (Artigo 17º), tutela o direito de propriedade nos termos em que
era previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950
19
.
Cumpre ainda frisar que o tratamento das patentes a nível internacional tem merecido
amplo destaque, nomeadamente através do Tratado de Cooperação de Patentes, (PCT),
cujo objetivo consiste na simplificação dos procedimentos para obtenção da proteção das
invenções através de patente nos diversos Estados signatários. No atual contexto da
covid-19, a Secretaria Internacional da OMPI veio flexibilizar algumas normas,
nomeadamente interpretando como estando abrangida a atual situação de pandemia pela
tolerância de atrasos no cumprimento dos prazos do PCT
20
. A nível supranacional, temos
no contexto europeu a Convenção de Munique sobre a Organização Europeia de Patentes
(OEP) de 1973, cujo objetivo consiste também na simplificação dos procedimentos para
14
Vid. https://www.wipo.int/patent-law/en/developments/publichealth.html
15
Vid. https://www.who.int/intellectualproperty/en/
16
Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica,
literária ou artística da sua autoria.
17
Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa a (…) Beneficiar da
proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondem em virtude de produções científicas,
literárias ou artísticas de que seja autora.
18
UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 17: The Right of
Everyone to Benefit from the Protection of the Moral and Material Interests Resulting from any Scientific,
Literary or Artistic Production of Which He or She is the Author (Art. 15, Para. 1 (c) of the Covenant), 12
January 2006, E/C.12/GC/17. https://www.refworld.org/docid/441543594.html
19
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 04.11.1950)
introduziu através do seu protocolo adicional em 1952 o artigo relativo à proteção da propriedade
estabelece Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas
condições previstas na lei”.
20
Tratado de Cooperação de Patentes feito em Washington em 19.06.1970, modificado pela última vez em
30.10.2001. Vid. Regra 82 quater do PCT.
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obtenção da proteção das invenções nos Estados signatários e o muito mais ambicioso
projecto da Patente Europeia com efeito Unitário, onde o objetivo último seria criar um
único procedimento para a proteção em diversos Estados Membros de uma invenção
através de patente
21
.
Com esta contextualização resulta evidente que a tutela das invenções através de
patentes tem alcançado uma significativa homogeneização a nível internacional
promovida, principalmente, por interesses comerciais (Bahamonde, 2016: 167-171). No
entanto, como contraponto aos interesses comerciais, as normas analisadas também
estatuem uma clara preocupação com a tutela de interesses sociais, nomeadamente no
domínio da saúde, estando previstos diversos mecanismos para alcançar o desejado
equilíbrio entre todos os interesses em jogo.
As patentes no contexto nacional luso-brasileiro
Conforme se viu supra, sem ânimo exaustivo, existe um vasto tratamento internacional
da tutela das invenções, enquanto uma das tipologias de propriedade
industrial/intelectual
22
, pelo que os ordenamentos jurídicos nacionais, na sua maioria,
tendem a ser bastante homogéneos, nomeadamente no caso luso-brasileiro. Sem
prejuízo do exposto, resultará interessante para o nosso trabalho analisar os mecanismos
especificamente previstos em cada um dos ordenamentos jurídicos em causa, para
garantir certo equilíbrio no que diz respeito às patentes e outros interesses.
O Código da Propriedade Industrial (CPI) português estabelece, em linha com outras
codificações sobre a matéria, que podem obter-se patentes para quaisquer invenções,
quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que
sejam invenções novas, impliquem atividade inventiva e sejam suscetíveis de aplicação
industrial
23
. O n.º 5 do artigo 5do CPI prevê também a possibilidade de proteger uma
mesma invenção quer através de um pedido de patente, quer através de um pedido de
modelo de utilidade. No entanto, no que concerne ao específico campo da proteção dos
produtos ou procedimentos farmacêuticos, estabelece-se não poderem ser objecto de
modelo de utilidade as invenções que incidam sobre substâncias ou composições
farmacêuticas e sobre os processos farmacêuticos
24
. Assim, as invenções que recaiam
sobre produtos ou procedimentos farmacêuticos apenas poderão ser protegidos através
de patente, garantindo assim um mais rigoroso sistema para tutela destas invenções
(Sousa e Silva, 2011: 87-90).
25
21
Decisão 2011/167/UE do Conselho Europeu, de 10 de março de 2011, que autoriza uma cooperação
reforçada no domínio da criação da proteção de patente unitária. Regulamento (EU) n.º 1257/2012 do
Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada
no domínio da criação da proteção unitária de patentes e o Regulamento (EU) n.º 1260/2012 do Conselho
de 17 de dezembro de 2012, que regulamenta a cooperação reforçada no domínio da criação da proteção
unitária de patentes no que diz respeito ao regime de tradução aplicável e o Acordo Relativo ao Tribunal
Unificado de Patentes de 19 de fevereiro de 2013.
22
A propriedade intelectual refere de forma genérica os direitos de autor e a propriedade industrial
propiamente dita, pelo que ao tratar a matéria das patentes julgamos mais acertado utilizar o termo
propriedade industrial.
23
Vid. Artigo 1º do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro que aprovou o novo Código da Propriedade
Industrial.
24
Alínea d) do n.º 1 do artigo 121 do CPI.
25
Com efeito, as invenções tuteladas através do modelo de utilidade têm uma menor exigência de atividade
inventiva, o que se traduz numa proteção mais célere, mas ao mesmo tempo mais ténue e precária.
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O direito de monopólio legal conferido ao titular da patente não é absoluto e nessa linha
o legislador português estabeleceu diversos mecanismos para o limitar em situações de
justificado interesse. Conforme se viu supra, o direito conferido pela patente não permite
ao seu titular proibir os atos para fins de ensaio ou experimentais (103º/1/c), permitindo
assim que os conhecimentos protegidos e publicados possam imediatamente contribuir
para o desenvolvimento científico da respetiva área de aplicação. A alínea b) do mesmo
preceito também exclui dos poderes do titular da patente a possibilidade de impedir a
preparação de medicamentos feita no momento e para casos individuais ou os
procedimentos preparatórios. O artigo 108º do CPI prevê também a possibilidade de
concessão de licenças obrigatórias no caso de falta ou insuficiência de exploração da
invenção patenteada (109º), verificando-se dependência entre patentes (110º) e por
motivos de interesse público (111º). Neste último caso, a licença se conferida por
despacho do membro do Governo competente em razão da matéria, considerando-se
existir motivo de interesse público quando o aumento ou generalização da exploração da
invenção, ou a melhoria das condições em que tal exploração se realizar, sejam de
primordial importância para a saúde pública. Também se prevê a possibilidade de perda
ou expropriação da patente no caso de ter que responder por obrigações contraídas para
com outrem ou por utilidade pública, situação em que se aplicao preceituado no Código
das Expropriações
26
.
Todas estas limitações resultam da ponderação entre a natureza do direito em causa e
aquela das outras áreas do direito onde se podem verificar fricções. É certo que a
qualificação do direito de propriedade industrial como direito de propriedade, i.e., no
âmbito do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa (CRP), não é pacífica na
doutrina, por consistir, no limite, um direito de propriedade sui generis. No entanto,
mesmo com especificidades, o certo é que o nosso ordenamento lhe reconhece esta
natureza, daí, que possa ser expropriado, o que corresponde a uma das limitações
possíveis do direito de propriedade. Por outro lado, este direito também poderia
encontrar tutela no âmbito do n.º 2 do artigo 42º CRP (Liberdade de criação cultural)
27
.
Neste sentido, sobre a ponderação da natureza do direito de propriedade industrial em
Portugal, máxime, quando confrontado com o direito à saúde pronunciou-se o Tribunal
Constitucional no acórdão n.º 216/2015, no sentido de que não obstante ser evidente a
tutela constitucional das patentes e dos direitos delas decorrentes, é inequívoco que as
mesmas cedem perante o direito fundamental da protecção da saúde
28
.
26
Vid. Artigo 107º CPI
27
Por um lado o n.º 2 do artigo 42º CRP é um direito fundamental que goza da proteção reforçada do artigo
18º, sendo que o direito de propriedade estabelecido no artigo 62º CRP é um direito fundamental de
natureza análoga. Neste sentido, Vid. o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de
06.05.2010 no âmbito do processo n.º 06154/10, onde foi Relatora a Dra. Teresa de Sousa, a estabelecer
que O direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP, que abrange os direitos de propriedade
industrial, onde se incluem os direitos fundados em patentes de medicamentos, tem sido considerado um
direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias para efeitos de aplicação do
regime dos arts. 17º 18º da CRP”. Esta decisão resulta muito relevante porquanto foi proferida com o voto
de vencido do Dr. Benjamin Barbosa, cuja fundamentação veio a ser posteriormente confirmada pelo
acórdão do Tribunal Constitucional que infra se segue.
28
Acórdão n.º 216/2015 do Tribunal Constitucional, 2ª secção, proferido no âmbito do processo 207/2013. A
decisão em causa apreciou a constitucionalidade da Lei n.º 62/2011 de 12 de dezembro, no que dizia
respeito ao procedimento para a Autorização de Introdução no Mercado (AIM) e o Preço de Venda ao Público
(PVP) de medicamentos genéricos que pudessem violar uma patente. Neste procedimento, o INFARMED
não poderia avaliar a violação de uma patente anterior, pelo que poderia ser aprovada a comercialização
de um medicamento genérico apesar de se poder vir a demonstrar posteriormente que este violava um
direito anterior. Citando o Professor Paulo Otero, faz eco o aresto de que "a proximidade e a essencialidade
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Por sua vez, a Lei brasileira relativa à propriedade industrial também estabelece diversas
limitações ao direito do titular da patente nos mesmos moldes do ordenamento jurídico
português. Com efeito, o titular da patente não poderá impedir os atos praticados por
terceiroso autorizados, com finalidade experimental, relativos a estudos ou pesquisas
científicas ou tecnológicas (43º/II), nem impedir a preparação de medicamentos de
acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional
habilitado, bem como ao medicamento assim preparado (43º/II). Ocupa um papel central
neste conjunto de limitações a licença compulsória que poderá ser imposta quando se
verifique a não exploração do objecto da patente no território brasileiro, por falta de
fabricação ou fabricação incompleta do produto (68º §1/I) e quando a comercialização
do objecto ou processo protegido não satisfizer as necessidades do mercado nacional
(68º §1/I) e, bem assim, no caso de se verificar dependência entre patentes (70º). Por
último, em situações de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do
poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a
essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício uma licença compulsória
29
.
No que diz respeito à tutela constitucional das patentes no Brasil, cumpre assinalar a
maior clareza com que se exprimiu o constituinte brasileiro ao consagrar especificamente
no Título II da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), sobre os direitos e
garantias fundamentais, a garantia de que a lei asseguraaos autores de inventos
industriais privilégio temporio para sua utilização, bem como proteção às criações
industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos
distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnogico e
econômico do País”.
30
Ou seja, a carta magna brasileira encara diretamente a patente,
não como um direito de propriedade, mas como um privilégio temporário, supeditando a
atribuição e exercício do mesmo ao interesse social tecnológico e económico.
À primeira vista, podemos assinalar as seguintes diferenças relevantes entre o
ordenamento jurídico luso-brasileiro. No ordenamento jurídico português foi prevista
expressamente a possibilidade de expropriação do direito de patente quando
fundamentada por razões de utilidade pública, figura que não está prevista na Lei n.
9.279 de 14 de maio de 1999 (LPI) brasileira. Esta previsão avalia-se positivamente, por
lhe reconhecer uma função preventiva, permitindo aos titulares de patentes estarem
conscientes das graves consequências que podem advir de uma deficiente exploração do
seu direito, mas também por permitir mais facilmente justificar decisões drásticas em
situações limite, como as da atual pandemia, dentro do seu correspondente quadro
normativo
31
.
da garantia da saúde com a dignidade da pessoa humana, num modelo de Estado em que as pessoas valem
mais do que as coisas ou a propriedade, e o entendimento de que a limitação ou restrição dos direitos
exclusivos decorrentes de patentes traduzam ampliação da liberdade, num modelo de Estado que privilegia
a liberdade à propriedade, conduzem a uma solução constitucional abstrata que confere preferência à
posição que defende a introdução no mercado de medicamentos genéricos, isto face à posição de conteúdo
patrimonial defendida pelos titulares de patentes sobre medicamentos de referência.".
29
Matéria que foi desenvolvida pelo Decreto n.º 3.201, de 6 de outubro de 1999, que dispõe sobre a
concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de
que trata o art. 71 da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996.
30
Vid. inciso XXIX do artigo 5º da CRFB.
31
Apesar da bondade do preceito, no presente, desconhece-se qualquer situação em que o Estado Português
o tenha aplicado na prática.
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No Brasil, o legislador previu especificamente a possibilidade de concessão de licenças
compulsórias se o titular da patente exercer os direitos dela decorrentes de forma
abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder económico, comprovado nos termos
da lei, por decisão administrativa ou judicial (68º). Neste caso, não encontramos no CPI
português um preceito de natureza homóloga, talvez, porque a se verificar este
comportamento, encontrar-nos-íamos perante uma eventual situação de abuso de
posição dominante no âmbito do artigo 11º da Lei da Concorrência ou do artigo 102º do
Tratado de Funcionamento da União Europeia
32
. No entanto, sendo conhecida uma ampla
interação e/ou complementaridade (Pérez, 2018: 372-393; Bahamonde, 2016: 166-167)
entre o direito da propriedade industrial e o direito da concorrência, esta previsão no
ordenamento jurídico brasileiro parece-nos sistematicamente bem arrumada e
pertinente, porquanto reforça a segurança jurídica na aplicação deste mecanismo, ao
invés do que sucede em Portugal
33
.
Ambos os ordenamentos jurídicos centram o seu mecanismo de reação perante a falta
de utilização ou utilização insuficiente por parte do titular da patente, no domínio das
licenças obrigatórias ou compulsórias (Palmela, 2016). A respeito das mesmas, é
necessário não se ser muito animador com as perspetivas de futuro, pois na verdade, o
instituto nunca foi utilizado em Portugal, e no Brasil (EFAVIRENZ) foi apenas utilizado
uma vez
34
. No entanto, somos do entendimento de que a mera positivação da
possibilidade de proceder ao licenciamento obrigatório, permitirá que eventuais
negociações entre as partes envolvidas sejam mais transigentes.
O papel central das licenças obrigatórias
Do até aqui exposto resulta que as licenças obrigatórias/compulsórias constituem o
mecanismo mais comum para contrabalançar os eventuais desequilíbrios decorrentes do
direito de exclusividade conferido por uma patente farmacêutica
35
.
O regime das licenças compulsórias no Brasil e em Portugal, prevê fundamentalmente
duas modalidades no que diz respeito a patentes relacionadas com medicamentos. Em
primeiro lugar, uma licença obrigatória, que exige a verificação de utilização insuficiente
da invenção para abastecer o mercado nacional. Nestas circunstâncias, a norma
portuguesa exige previamente para a sua concessão que o solicitante tenha desenvolvido
esforços no sentido de obter do titular da patente uma licença contratual em condições
comerciais aceitáveis, e que tais esforços não tenham êxito dentro de um prazo razoável
(108º/3). Por sua vez, a norma brasileira exige que o solicitante tenha legítimo interesse
e capacidade técnica e económica para realizar a exploração eficiente do objeto da
patente (68º/§ 2º). Na verdade, estas duas redações coincidem na necessidade de
verificar que o solicitante é um candidato sério e que tem condições e empenho em
32
Lei n.º 19/2012, de 08 de maio, que estabeleceu o novo regime jurídico da concorrência.
33
Esta foi também a opção do legislador espanhol prevista no artigo 94º da Ley 24/2015, de 24 de julio, de
Patentes.
34
Através da publicação no Diário Oficial da União do Decreto n.º 6.108, de 04 de maio de 2007, que concedeu
o licenciamento compulsório, por interesse público, das patentes referentes ao EFAVIRENZ, para fins de
uso público não comercial.
35
Vid. artigos 30 e 31º do acordo ADPIC, artigo 109º do CPI e artigo 68º e ss. da Lei no 9.279, de 14 de maio
de 1996. No entanto, conforme se referiu supra, a sua utilização é muito escassa, pelo que é comum
afirmar-se que a sua previsão ficou muito aquém das expectativas que nela foram depositadas (Fernández-
Nóvoa, 2017: 197-206).
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utilizar a licença para abastecer o mercado. Em ambos os regimes se preque esta
licença seja o exclusiva, impassível de sublicenciamento, revogável, e remunerada.
36
Em segundo lugar temos as licenças compulsórias justificadas por situações de
emergência nacional ou interesse público em cujo caso são dispensados requisitos
prévios para a sua concessão. Nestas situações, o legislador brasileiro permite a
concessão de uma licença compulsória quando se verifique que, perante uma emergência
nacional ou por interesse público, o titular da patente não atenda essa necessidade
(Remédio, 2011: 399-400; Couto, 2005: 116-119). Por seu turno, o legislador português
exige também para a utilização desta medida um motivo de interesse público, no entanto,
diferencia-se do seu homólogo brasileiro por não se exigir que o proprietário explore
deficientemente a invenção, i.e., o titular da invenção pode estar a realizar todos os
esforços tendentes a explorar satisfatoriamente a invenção, e até estar a consegui-lo,
mas mesmo assim, por motivos de saúde pública, pode ser obrigado a conceder uma
licença obrigatória. Aparentemente, a norma portuguesa é um pouco mais restritiva do
que a norma brasileira, pese embora se conceda que uma interpretação extensiva desta
norma permita chegar ao mesmo entendimento no Brasil.
O sistema de licenças compulsórias luso-brasileiro resulta claramente de uma
“transposição” do artigo 31º ADPIC, decorrente da pertença, de ambos países à
Organização Mundial do Comércio. Na realidade prática em Portugal as licenças
obrigatórias não passaram do papel, na medida em que apenas o alvo de estudo
académico, pois até à presente data nunca foi aplicada nenhuma. Por sua vez, no Brasil
apenas se conta com uma situação concreta em que foi concedida uma licença obrigatória
(EFAVIRENZ). No entanto, no contexto global a realidade é mais animadora, pois
verifica-se que as licenças obrigatórias são mais utilizadas do que aquilo que geralmente
se pensa ou conhece. Com efeito, num estudo realizado na matéria, identificaram-se 81
licenças obrigatórias concedidas entre o período de 2001 a 2016, onde também se
incluem países desenvolvidos, e cujo fundamento resulta do elevado preço de
determinados medicamentos (Hoen, 2016: 186-187). Podemos assim concluir que as
licenças obrigatórias têm sido utilizadas de uma forma muito tímida, tendo potencialidade
para constituírem uma resposta adequada para ultrapassar as barreiras que as patentes
farmacêuticas podem supor para a concretização do direito ao acesso a medicamentos
e, por sua vez, ao direito à saúde. Adicionalmente, sempre se poderá defender que a sua
previsão legal atribui a este instituto uma utilidade preventiva e dissuasora de
comportamentos desviantes por parte do titular de uma patente, o que sem dúvida, tem
fomentado a concessão de licenças voluntárias.
A “recente” possibilidade de proteção dos medicamentos através de
patente
É importante salientar que quer o Brasil quer Portugal aderiram à OMC a 01.01.1995, e
que, até essa data, no Brasil não era permitida a proteção de medicamentos através de
36
Esta semelhança dos preceitos em análise resulta da imposição que decorre para os Estados do acordo
ADPIC, concretamente do seu artigo 30º.
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patentes (Nunes, 2009: 13-18). Com efeito, decorrente da sua adesão à OMC, a LPI, no
parágrafo único do artigo 229 do Titulo VIII, das disposições transitórias e finais dispõe
37
:
Aos pedidos relativos a produtos farmacêuticos e produtos químicos para a
agricultura, que tenham sido depositados entre 1o de janeiro de 1995 e 14 de
maio de 1997, aplicam-se os critérios de patenteabilidade desta Lei, na data
efetiva do depósito do pedido no Brasil ou da prioridade, se houver,
assegurando-se a proteção a partir da data da concessão da patente, pelo
prazo remanescente a contar do dia do depósito no Brasil, limitado ao prazo
previsto no caput do art. 40”.
Em Portugal o Decreto 30679, de 24 de agosto, que aprovou o Código da Propriedade
Industrial de 1940, prescrevia não poderem ser objeto de patentes (artigo 5.º n.º 3):
“os alimentos, bem como os produtos e preparados farmacêuticos, destinados
ao homem ou aos animais, podendo contudo, ser patenteados os aparelhos
ou sistemas do seu fabrico”.
No entanto, com a adesão à Convenção da Patente Europeia (CPE) desde 01/01/1992,
Portugal passou a ser, desde essa data, país destinatário de um pedido de patente de
produto farmacêutico. Com efeito, resulta dos artigos 52º e 53º da Convenção a
permissão da proteção através de patente de uma invenção farmacêutica, não existindo
nenhuma exclusão específica que o impedisse.
Paradoxal neste período, resulta o facto de, em território português, ser possível solicitar
por via da Patente Europeia a proteção de um medicamento não sendo, no entanto,
permitida a sua proteção por patente pela via nacional.
Apesar de Portugal ter a obrigatoriedade de implementação do Acordo TRIPS apenas a
partir do dia 01/01/1996, conforme dispõe o artigo 65º, nº 1 do referido Acordo, o seu
cumprimento foi antecipado com a aprovação do Código da Propriedade Industrial,
através do Decreto-Lei 16/95, de 24 de janeiro, que entrou em vigor a 01/06/1995
(art.º 9º) e que adequava a sua legislação nacional ao Acordo TRIPS, permitindo o
patenteamento de produtos farmacêuticos (artigos 47º a 49º).
Importa lembrar, neste panorama de análise que, previamente ao Acordo TRIPS e apesar
de existirem regras relativas à proteção concedida pela patente, a CUP dava abertura
aos países signatários para estatuírem as suas próprias regras internas, nomeadamente,
estabelecendo o que poderia ou não ser objeto de patente. Ou seja, os países signatários
podiam optar por proteger no território nacional mediante patentes as invenções que
recaíssem sobre medicamentos ou, pelo contrário, podiam proibir a proteção através de
patentes de invenções que recaíssem sobre medicamentos. Na prática, este contexto
implicava que, o facto de um inventor poder proteger por patente um medicamento num
determinado território nacional, não impedia que terceiros pudessem utilizar os
conhecimentos subjacentes a essa patente num outro território onde a invenção não
fosse patenteável.
37
Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, cujo teor foi inserido pela Lei nº 10.196, de 2001.
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Do até aqui exposto, resulta clara a existência de um quadro normativo nacional e
internacional que tutela a proteção das invenções sobre medicamentos através de
patentes. No entanto, não se deve olvidar que a inclusão das invenções sobre
medicamentos na tutela das patentes é muito recente, e que a mencionada tutela foi
alcançada, não tanto pela virtude do sistema de patentes para promover o direito à saúde
e a inovação, mas sim como condição para beneficiar das prerrogativas económicas
decorrentes da adesão à OMC.
O Direito à saúde
A saúde no contexto internacional
A Carta das Nações Unidas assinada em São Francisco a 26 de junho de 1945, no final
da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, entrou em vigor a
24 de outubro de 1945, e estabeleceu, como meio de manter e preservar a paz entre os
povos a necessidade de promover a solução dos problemas internacionais económicos,
sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de carácter cultura
e educacional (55º/a). Consagrou-se também o Conselho Económico e Social, cuja
função consiste, entre outras, em elaborar estudos e relatórios a respeito de assuntos
internacionais de carácter económico, social, cultural, educacional, de saúde e conexos,
podendo fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembleia Geral
38
, aos
membros das Nações Unidas e às organizações especiais interessadas.
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no seu artigo 25º/1
estabelece que toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar
a si e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais
necessários
39
.
Como organismo especializado, nos termos do artigo 57º da Carta das Nações Unidas,
surge a Organização Mundial da Saúde. A saúde é encarada como um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, não consistindo apenas na ausência de doença ou de
enfermidade. Afirma-se também que gozar do melhor estado de saúde que é possível
atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de
raça, de religião, de credo político ou de condição económica ou social
40
. Também se
sublinha que a saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança
e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados
conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos.
O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde
e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum
41
.
Ainda no âmbito das Nações Unidas, salienta-se o Pacto Internacional de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais no seu artigo 12º, de onde resulta evidente o
compromisso entre os signatários no sentido de tutelar amplamente o direito à saúde,
38
Constituída por todos os membros das Nações Unidas (9º/1).
39
Adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
40
Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde.
41
Nessa sequência, o objetivo primordial da Organização Mundial da Saúde consiste na aquisição, por todos
os povos, do nível de saúde mais elevado possível. (artigo 1º).
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reconhecendo-se o direito de todas as pessoas a desfrutar do mais alto nível de saúde
ísica e mental e impondo medidas concretas para a sua tutela (Helfer, 2015: 317-318;
Sellin, 2015: 445-473).
Por sua vez, o Tratado de Funcionamento da União Europeia no seu artigo 9º estabelece
como objetivo a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma proteção
social adequada, a luta contra a exclusão social e um nível elevado de educação,
formação e proteção da saúde humana. No mesmo normativo, o artigo 168º prevê que
na definição e execução de todas as políticas e ações da União será assegurado um
elevado nível de proteção da saúde. A ação da União, que será complementar das
políticas nacionais, incidirá na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças e
afeções humanas e na redução das causas de perigo para a saúde física e mental. Esta
ação abrangerá a luta contra os grandes flagelos, fomentando a investigação sobre as
respetivas causas, formas de transmissão e prevenção, bem como a informação e a
educação sanitária e a vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão
transfronteiriça, o alerta em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
42
, no artigo 35º relativo à proteção
da saúde, estabelece que todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em
matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos, de acordo com as legislações e
práticas nacionais. Na definição e execução de todas as políticas e ações da União é
assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana.
Ou seja, não há dúvidas que a tutela do direito à saúde ocupa uma posição preeminente
nos diversos instrumentos internacionais, não apenas como um fim, mas igualmente
como um meio de assegurar a paz entre os povos e a dignidade da pessoa humana,
devendo sobrepor-se este direito a outros de natureza mais materialista.
A saúde no contexto luso-brasileiro
No âmbito português, o direito à saúde vem consagrado no artigo 64º CRP, o qual
estabelece que todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e
promover
43
. O número 2 do mesmo preceito, nas suas alíneas, prescreve que a proteção
do direito à saúde concretizar-se através de um serviço nacional de saúde universal e
geral, tendencialmente gratuito; e pela concretização de condições económicas, sociais,
culturais e ambientais que garantam a proteção da infância, da juventude e da velhice.
Especial interesse na matéria que nos ocupa merecem as alíneas c) e e) do n.º 3 do
artigo 64º CRP, que impõe ao Estado a incumbência prioritária de orientar a ação para a
socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos e ainda disciplinar e
controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos,
biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.
Na senda do referido anteriormente no contexto internacional, resulta claro no domínio
nacional lusitano que o direito à saúde permite a concretização de outros direitos
42
Jornal Oficial da União Europeia, C 202/389, 7.6.2016.
43
Conforme é referido pela doutrina O direito à proteção da saúde comporta duas vertentes: uma, de
natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer
ato que prejudique a saúde, outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações
estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas. no segundo caso, trata-se de um direito
social propriamente dito, revestindo a correspondente configuração constitucional”. (Canotilho, 2014: 825).
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fundamentais constitucionalmente consagrados, como o direito à vida e o direito à
integridade moral e física, assim como a concretização do princípio da dignidade da
pessoa humana (Monge, 2019: 78; Miranda, 2010: 1309).
No âmbito brasileiro, a saúde está consagrada no artigo 196º CRFB, como um direito de
todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e económicas que visem
a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Dentro das competências
atribuídas ao sistema único de saúde, salienta-se a de controlar e fiscalizar
procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da
produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros
insumos
44
. Este direito enquadra-se dentro dos direitos sociais previstos no artigo 6º da
Constituição brasileira, que se caracterizam por possuir um status de garantia da
autonomia do individuo, possibilitando que possa exercer outros direitos com plenitude
e liberdade, através do acesso à formação educacional, ao trabalho, à moradia, e no que
nos ocupa no presente trabalho, à assistência à saúde (Carvalho, 2019: 25-28).
Sem termos ensejo de aprofundar mais o tratamento legal conferido a este direito e a
consequente obrigação imposta ao Estado, serve o até aqui exposto para evidenciar que
estamos perante um direito que ultrapassa as suas próprias fronteiras enquanto fim,
sendo essencial também para a concretização de muitos outros direitos, pelo que, quando
comparado com o direito de propriedade, afigura-se evidente que este deve ceder
perante aquele, verificando-se que esta superioridade não implique a eliminação ou
anulação do direito de propriedade.
Considerações finais
Após a análise realizada no presente trabalho, seria lógico concluir sobre o relevante
papel das licenças obrigatórias, como meio para permitir um maior e mais amplo acesso
à saúde quando aplicadas em situação de existirem patentes farmacêuticas. No entanto,
se esta figura demonstrou não ser muito eficaz quando visava o acesso a
medicamentos por parte dos países menos desenvolvidos, no atual contexto, em que o
problema de acesso a um medicamento ou tratamento protegido por patente que possa
tratar a covid-19, se estende à generalidade dos países avançados, o papel a
desempenhar pelas licenças obrigatórias é manifestamente nulo (Hoen, 2016: 185-
193)
45
.
Com efeito, o recente contexto da covid-19 tem evidenciado que a principal ferramenta
para promover a célere e efetiva obtenção de uma solução farmacêutica para a luta
contra a pandemia se tem baseado na colaboração voluntária entre agentes económicos,
num incremento da permissividade por parte dos titulares de patentes farmacêuticas
para que o objeto da sua proteção possa ser livremente utilizado na produção de
medicamentos ou vacinas mais eficazes e iniciativas solidárias para financiamento da
adquisição e doação de vacinas (Bartels, 2020: 11-12). Existem diversas estratégias para
democratizar o acesso a medicamentos protegidos por patentes no contexto de condições
44
Vid. Título I do artigo 200º CRFB.
45
Estos autores preconizam que uma mais ampla utilização das licenças obrigatórias seria essencial para
garantir um melhor e mais amplo acesso à saúde, quer nos países pobres, quer nos países ricos.
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“normais”, i.e., que o sejam pandémicas. Com efeito, no âmbito dos mecanismos para
dinamizar esse acesso, e conforme se referiu anteriormente, o TRIPS prevê a
possibilidade de licenças obrigatórias baseadas na falta de exploração suficiente por parte
do seu titular e ainda licenças obrigatórias baseadas numa situação de urgência nacional
ou interesse público e sem fins comerciais. Existe também a previsão da flexibilização
das exportações de países produtores, ainda que com licenças obrigatórias, para países
menos desenvolvidos sem capacidade de produção e ainda a possibilidade de exportação
desses medicamentos entre um país recetor dessa ajuda e outro país da mesma área
económica. Na maioria dos países existem regimes de expropriação que podem ser
acionados contra o titular do direito de patente quando defrontados com situações de
utilidade pública e interesse. As licenças voluntárias assumem também um papel
importante, assim como a capacidade, hoje muito reduzida, de os países o membros
da OMC excluírem a patenteabilidade das vacinas. Contamos também com iniciativas
altruístas, como o programa COVAX, cujo objetivo consiste angariar fundos para adquirir
vacinas e equipamentos e distrib-los pelos países com maiores dificuldades em lidar
com a situação pandémica
46
.
Apesar de todos estes mecanismos, tem-se constatado que a solução da situação de
pandemia baseada na boa vontade dos titulares das patentes o é suficiente para
construir uma resposta eficaz, célere e global, tendo-se verificado situações muito
“embaraçosas” no que respeita aos níveis de vacinação da população
47
. Fruto desta
situação, foram apresentadas à OMC diversas propostas para a suspensão do acordo
ADPIC da OMC em matéria de vacinas, tratamento e equipamentos relacionados com a
covid-19 e aumento da capacidade de produção e fabrico nos países em
desenvolvimento
48
.
Estas propostas foram objeto de avaliação pela Proposta de Resolução apresentada pelo
Parlamento Europeu de 02 de junho de 2021 sobre como enfrentar o desafio mundial da
covid-19
49
. Grosso modo, neste documento opõe-se a uma possível suspensão das
patentes relacionadas com o tratamento da covid-19, afirmando-se que o sistema de
patentes é essencial para a fomentar a inovação e a segurança no ecossistema de
inovação e que esta segurança é imprescindível para se poder investir em procurar
soluções para novas variantes da covid-19.
50
Em alternativa, preconiza o referido
documento que o ênfase deve consistir em incentivar a doação de vacinas e na permissão
46
https://www.gavi.org/covax-facility
47
Com efeito, a taxa de vacinação é muito elevada nos países ricos, sendo inexistente ou diminuta nos países
menos desenvolvidos. Os países ricos “monopolizam” as vacinas para satisfazer primeiro as suas
necessidades nacionais, havendo uma corrida entre países ricos para esse efeito. Muitas doses
desnecessárias foram retidas pelos países ricos. No mercado livre, as soluções puderam ser vendidas ao
melhor pagador com prioridade, conforme se verificou no caso de Israel que pagou pela vacina quase o
dobro do que a União Europeia https://www.elindependiente.com/vida-sana/salud/2021/01/21/el-precio-
del-milagro-israeli-con-la-vacuna-pagar-mas-y-dar-datos-a-pfizer/. A OMS tem solicitado aos países ricos
para atrasar a ministração de uma terceira dose da vacina e permitir o incremento da vacinação em países
onde ainda não foram administradas as primeiras doses https://elpais.com/sociedad/2021-08-04/la-oms-
pide-una-moratoria-mundial-para-la-tercera-dosis-de-las-vacunas-contra-la-covid-19.html. Acresce ainda
que as farmacêuticas não tiveram inconveniente em incrementar os preços das vacinas nos contratos
celebrados com a União Europeia, o que certamente não se justifica senão pelo oportunismo comercial
https://www.lavozdegalicia.es/noticia/sociedad/2021/08/01/pfizer-moderna-suben-precio-vacunas-
contra-covid/00031627826051265125579.htm
48
Vid. https://www.wto.org/english/news_e/news21_e/trip_23feb21_e.htm
49
Vid. https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/B-9-2021-0311_PT.pdf.
50
Vid., Considerando L.
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de exportação de vacinas dos países produtores para os países carenciados de vacinas,
entre outras medidas.
É de lamentar este posicionamento, pois como foi amplamente constatado, existem
diversas razões que imporiam uma decisão em sentido contrário
51
. Todos os mecanismos
existentes contribuem, na sua medida, para poder superar a situação de pandemia a
nível global, mas todos eles se têm mostrado insuficientes e muito longe das
necessidades reais. Situações extraordinárias, requerem abordagens extraordinárias que
conduzam a soluções extraordinárias.
A proteção dos medicamentos através de patentes é relativamente recente e a aceitação
desta proteção por diversos Estados foi baseada não tanto pela convicção nas suas
vantagens, mas por ser requisito necessário para beneficiar de outras vantagens
decorrentes da pertença à OMC. Acresce que a capacidade do sistema de patentes no
âmbito farmacêutico para estimular a inovação está longe de ser pacífica, havendo
estudos que constatam precisamente o efeito contrário (Gold, 2010). Outro fator a ter
em consideração resulta do facto de muitos medicamentos protegidos através de
patentes serem o resultado, também, de investimento público, nas suas diversas formas,
o que questiona a democratização do investimento e a monopolização de eventuais lucros
(Cross et al., 2021)
52
.
No meu modesto entender, a suspensão provisional das patentes que protegem vacinas
é a medida extraordinária que requer esta situação extraordinária para construir uma
sólida e célere resposta à emergência mundial vivenciada. Discorda-se do entendimento
preconizado pelo Presidente do Conselho da GAVI Aliança Global para as vacinas, José
Manuel Durão Barroso, ao sustentar que esta medida teria um impacto negativo na
investigação e inovação, assim como também não se compreende que outro dos
argumentos aduzidos consista na falta de conhecimentos ou know-how secreto para pôr
em prática a exploração das patentes suspensa (Barroso, 2021: 66). Em primeiro lugar,
como se viu, existem situações em que uma grande fatia do financiamento necessário
para obter as vacinas foi público, pelo que uma eventual suspensão das patentes obtidas
com esse financiamento permitiria efetuar uma compensação económica adequada que
recompensasse o esforço público realizado. Em segundo lugar, um pilar essencial do
sistema de patentes consiste na publicidade da invenção a proteger de forma tal que o
titular do direito de patente terá de revelar todos os procedimentos necessários para que
um qualquer perito na matéria possa reproduzir a invenção protegida. Neste contexto,
não se percebe como se pode argumentar que haverá um know-how importante” que
impediria verificar a qualidade das vacinas produzidas com os conhecimentos das
patentes suspensas. Com efeito, se a vacina está protegida por patente, qualquer perito
na matéria poderá reproduzir a vacina seguindo as instruções feitas públicas com o
pedido de patente. Se pelo contrário, a reprodução do procedimento protegido pela
patente não resulta exatamente na mesma vacina cuja proteção foi solicitada, por faltar
know-how importante, então a vacina não poderia ser protegida por patente, e seria
livremente utilizada.
51
Ver o artigo da Human Rights Watch de 03.06.2021 intitulado Seven Reasons the EU is Wrong to Oppose
the TRIPS Waiver. https://www.hrw.org/news/2021/06/03/seven-reasons-eu-wrong-oppose-trips-waiver.
52
Neste sentido, consultar também o artigo da Human Rights Watch intitulado “Seven Reasons the EU is
Wrong to Oppose the TRIPS Waiver”. https://www.hrw.org/news/2021/06/03/seven-reasons-eu-wrong-
oppose-trips-waiver.
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