OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022)
237
NOTAS E REFLEXÕES
ANARQUIA INTERNACIONAL REVISADA:
OS DESAFIOS ONTOLÓGICOS DE UMA CONCEÇÃO PÓS-SOCIAL
1
CAROLINA ENCARNAÇÃO CORREIA
carolinacorreia53@gmail.com
Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais com especialização em Relações
Internacionais, NOVA-FCSH (Portugal). Licenciada em Ciência
Política e Relações Internacionais. Membro Fundador e Presidente da Direção da Orbis-
International Relations Studies Association. Integrou o Núcleo de Estados de Ciência Política e
Relações Internacionais e a Youth Association of Geopolitical Understanding.
Introdução
O conceito de anarquia internacional é apresentado com grande relevância nas variantes
do realismo e é o ponto que diferentes teorias de Relações Internacionais identificam
como comum. É nas consequências e na interpretação dessa anarquia que as visões
tendem a contrastar. No entanto, o presente excurso, intenta uma reflexão crítica sobre
esses mesmos pressupostos ontológicos de anarquia internacional sobretudo, aqueles
apresentados pela escola realista, especificamente, a vertente neorrealista.
Dentro da própria literatura realista, os pressupostos de anarquia internacional tendem
a variar na sua interpretação, destacando-se a visão realista clássica de inspiração
kantiana de Raymond Aron e a visão estruturalista de inspiração hobbesiana de Kenneth
Waltz. As diferenças entre estes pensadores ressalvam-se no foco de análise: Aron detém
uma veia mais historicista e presta atenção à heterogeneidade interior dos Estados para
conceptualizar ontologicamente a anarquia internacional; Waltz com uma veia inspirada
pela metodologia económica, procura uma construção teórica das Relões
Internacionais através da interconexão entre fatores e conceitos, sendo o de maior
destaque o conceito de anarquia internacional. É este que o desenha como esta ausência
de poder coercivo a vel supranacional, que resulta inevitavelmente em violência (Waltz,
1979). A primeira parte da definição não tende a ser contestada pelas restantes escolas,
o foco de discussão tende a centrar-se nos resultados que a anarquia gera
internacionalmente. Neste sentido, esta excursão procura alargar o foco de discussão
1
Texto traduzido por Hugo Alves.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
238
aos pressupostos ontológicos, distanciando-se da avaliação das suas consequências
estruturais.
A escola construtivista levanta questões essenciais à discussão dos pressupostos
ontológicos de anarquia internacional e representa um desafio à interpretação
neorrealista de anarquia. Alexander Wendt, em «A anarquia internacional é aquilo que
os Estados fazem dela», destaca a importância do processo social na conceção de
anarquia, permitindo uma fenomenologia pós-social desligada de uma relação com o
estado de natureza dos Estados. Este é o ponto fundamental onde esta excursão
ultrapassa o pensamento de Wendt e se diferencia, naturalmente, da perspetiva
waltziana.
Conceptualização e mobilização dos conceitos de anarquia internacional,
estado de natureza, estrutura e poder estrutural
A publicação de Teoria das Relações Internacionais, por Kenneth Waltz, em 1979, veio
moldar o debate teórico das Relações Internacionais enquanto disciplina e colocar o
neorrealismo como a escola de pensamento dominante à época. Das suas contribuições
destaca-se a base científica que forneceu ao pensamento realista interligada com
fundações filosóficas, que contribuíram para o fortalecimento das teorias das Relações
Internacionais (Buzan, 1993: 1).
Nesta obra, Waltz (1979) inspira-se nos princípios realistas, mas tenta distanciar-se dos
realistas clássicos, identificando-se como neorrealista. O realismo clássico construi-se
através de uma tradição literária baseada na teoria e na prática das relações
internacionais após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo com contributos de Carr,
Morgenthau, Raymond Aron, Niebuhr, entre outros. Estes pensadores caracterizavam-se
como “realistas”, porquanto predisponham-se a analisar os objetos de estudo conforme
aquilo que eram e não aquilo que gostariam que fosse (Buzan, 1993: 1-2).
Assim, segundo Buzan (1993), aquando afirmação de Waltz enquanto neorrealista, a
primeira resposta dos pensadores da disciplina foi a de procurar encontrar os pontos em
comum entre o realismo clássico e neorrealismo, destacando a coerência que existe entre
o pensamento de Waltz com uma tradição realista que poderia remontar a Hobbes e
Tucídides (Buzan, 1993: 2). Destacam-se três premissas comuns entre estas correntes:
a natureza das relações internacionais é essencialmente conflitual; a essência da
realidade social é o grupo, em vez do indivíduo, particularmente o Estado ou grupo
conflitual; a principal motivação humana na vida política é o poder e a segurança (Gilpin
apud Keohane, 1986: 304-305).
A segunda resposta, destacada por Buzan (1993), foi a de procurar as distinções entre
as duas correntes teóricas, destacando-se sobretudo as diferenças entre a tradição
hermenêutica dos realistas clássicos e a base estruturalista do neorrealismo. Walker
(1987) destacou a predisposição clássica para o enfoque na abordagem histórica na
análise da realidade social que permite compreender o desenvolvimento das práticas dos
atores sociais, em contraste com a predisposição neorrealista de analisar a realidade
social de forma estabilizada e estruturada. Por outras palavras, as afirmações de Walker
(1987) implicam que os realistas clássicos se focam mais no agente ao passo que os
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
239
neorrealistas colocam a sua perspetiva sobre a estrutura. Porém, este argumento carece
de desenvolvimento por não aferir as relações agente-estrutura (Buzan, 1993: 2).
Buzan (1993) avança ainda uma terceira resposta: a crítica de que tanto o realismo
clássico como o neorrealismo necessitam de estender e desenvolver as suas fundações
teóricas.
O enfoque principal na literatura da cada de 1980 estava sobretudo relacionado com
a necessidade de encontrar os pontos em comum entre realismo clássico e neorrealismo,
de modo a diferenciar esta escola de pensamento da corrente neoliberal ou novo
institucionalismo. No entanto, também existiam teóricos que procuravam encontrar um
ponto de reconciliação entre a corrente realista e a neoliberal (Niou & Odershook, 1991
apud Buzan, 1993: 2-3), tal como é exemplo o trabalho de Hedley Bull (1995) sobre a
sociedade internacional e a anarquia internacional. Isto conduziu a que alguns teóricos
do campo acusassem a disciplina de perder a sua orientação, recaindo sobre uma falta
de progresso substantivo (Holsti, 1985: 1-2; Fergunson & Mansbach, 1988; Onuf, 1989:
8 apud Buzan, 1993: 3-4). Para a reflexão que se pretende realizar, a crítica mais
relevante sobre a perda de orientação da disciplina recaía sobre o facto de todas as
teorias se desenvolverem sobre premissas erróneas, tal como a anarquia internacional
ser considerada o princípio central e fundamental das Relações Internacionais, quando
se trata, para Onuf (1989), de um conceito vazio (Onuf, 1989: 14).
No seguimento do excurso, surge a necessidade de clarificar que embora Kenneth Waltz
(1979) tenha sido pioneiro na aplicação do estruturalismo nas Relações Internacionais,
concretamente, no seio da escola Realista, o estruturalismo foi um movimento que
dominou as ciências sociais no século XX. Os estruturalistas insistiam que as ciências
sociais devem ir além das self-conceptions e dos motivos, porquanto os indivíduos o
restritos por forças estruturais sobre as quais não detêm qualquer controlo e podem nem
saber da sua existência (Buzan, 1993: 5). Buzan (1993: 6) avança que esta abordagem
estruturalista permite romper com os pressupostos de estado de natureza para
fundamentar o comportamento dos agentes, segundo uma lógica realista.
No entanto, para Kenneth Waltz, a estrutura tem três dimensões: os princípios
ordenadores (i.e. anarquia), os princípios diferenciadores e a distribuição de capacidades
(Waltz, 1979: 79-101 apud Wendt, 1995: 134). Estes aspetos, embora realcem a
disposição dos agentes, o permitem compreender o comportamento dos mesmos,
porquanto esse fator depende sobretudo da intersubjetividade (Wendt, 1995: 134),
conceito que é alheio à teoria waltziana.
A crítica que mais adiante será feita a Waltz não se relaciona com o caráter estruturalista
da sua teoria, mas com o facto de esta se caracterizar como anárquica e a abordagem
primar pelos grupos conflituais como objeto de estudo, de modo a alcançar as premissas
realistas supramencionadas e a justificar a lógica de poder do sistema internacional. Pelo
que, a crítica é direcionada especificamente aos pressupostos realistas e não à
generalidade da sua abordagem estruturalista. Essa crítica basear-se no pressuposto
wendtiano de que a estrutura é constituída por condições materiais, interesses e ideias
(Wendt, 1999: 139), que aliados à intersubjetividade implicam que a estrutura seja
socialmente constituída i.e. dependente de um processo de socialização.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
240
Depreende-se, dos pressupostos apresentados sobre o estruturalismo, que existe uma
relação entre o conceito de estrutura e o conceito de estado de natureza que merece o
seu devido esclarecimento, com vista à compreensão do que é entendido como processo
de socialização e como pós-social.
A ordem de pensamento deve inspirar-se em Waltz (1979) e Aron (1968) e, tal como
estes pensadores, partir de pressupostos antropológicos, inspirados em Rosseau, para
encarar o estado de natureza como um estado não-sistémico onde não existe estrutura
social, porquanto as unidades políticas se encontram isoladas, desconhecendo a
existência de outras. Apenas quando as unidades políticas começam a interagir entre si
ou seja, iniciam o processo de socialização é que o sistema internacional se forma
(Buzan, 1993: 68-70) e as estruturas que o caracterizam emergem. Como para Waltz o
princípio ordenador da estrutura que caracteriza o sistema internacional é a anarquia
internacional, então esta só pode ser constituída após interação entre unidades políticas
ou seja, após início do processo social, sendo, por isso, pós-social. O processo de
socialização, analisado adiante, baseado nos pressupostos construtivistas wendtianos de
anarquia internacional também demonstrará esta mesma conclusão.
Até este ponto, a lente ainda não incidiu diretamente sobre o conceito de anarquia
internacional, aquele que é o objeto em análise, porém, é possível destacar alguns
pontos relevantes: primeiro, a anarquia internacional, seja na abordagem waltziana ou
na abordagem wendtiana, é uma característica da estrutura internacional; segundo,
sendo característica da estrutura internacional, a anarquia internacional não pode existir
no estado de natureza, tendo como condição necessária a interação entre unidades i.e.
o processo de socialização; terceiro, e tendo em consideração o segundo ponto, a
anarquia internacional é pós-social.
pressupostos neorrealistas em que o conceito de estado de natureza surge
erradamente associado ao conceito de anarquia internacional, sendo instrumentalizado
para explicar a origem de uma arena anárquica com base na natureza das unidades
constituintes (Little, 1993: 136-138). Este tipo de análise recorre sobretudo a
comparações com o estado de natureza hobbesiano para explicar a lógica de self-help e
o princípio de salvaguarda da segurança e autossuficiência dos Estados, como se poderá
verificar adiante. Porém, se a lógica por de trás do conceito de anarquia está interligada
com a natureza das unidades políticas, então se existir uma transformação na natureza
das unidades, também é possível uma transformação na lógica da anarquia (Little, 1993:
136-138).
A anarquia internacional é definida por Waltz (2014: 130) como «the absence of a central
Monopoly of legitimate force» acima das unidades políticas, para Wendt (1995) podemos
concluir que a anarquia é socialmente construída. No entanto, a sua definição e
operacionalização é demasiado limitada, revelando-se como um conceito que tudo
sustenta, mas que pouco o explica, como defendia Onuf (1989). O sentido lexical da
palavra anarquia remete para desordem, inexistência de regras ou até inexistência de
uma estrutura normativa (Fernandes, 2012: 88). Paradoxalmente, o sentido que lhe é
empregado em Relões Internacionais implica exatamente o oposto.
Sobre a definição waltziana é de salientar que a ausência de um poder coercivo acima
dos Estados não implica necessariamente que estes se encontrem num estado de
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
241
natureza, como analisamos anteriormente. Ademais, quando se refere o monopólio
legítimo da força, faz-se referência à força coerciva; no entanto, isso não implica que as
unidades políticas (i.e. os Estados) não sejam limitadas por forças estruturais, que
atuam acima delas e condicionam o seu comportamento. Esse tipo de poder, a existir,
apenas se pode formar a nível estrutural ou seja, acima dos Estados -, como
característica da estrutura internacional. A existir uma força desta natureza, continua a
existir anarquia internacional?
Barnett & Duvall (2005) desenvolveram uma taxonomia sobre o conceito de poder,
baseada na conceptualização da dualidade agente-estrutura, procurando focar na relação
entre o contexto social e a ação humana. Uma das tipologias abordadas é a
conceptualização de Poder Estrutural, que opera de uma forma direta, espefica e
mutuamente constitutiva nas relações sociais dos agentes (Barnett & Duvall, 2005: 48-
49). Este conceito de poder estrutural, embora reconheça a capacidade transformadora
que os agentes podem ter, dá uma ênfase ao papel condicionante da estrutura sobre a
agência (Barnett & Duvall, 2005: 49). É este poder caracterizante da estrutura que define
a natureza e que tipo de agentes sociais as unidades políticas serão, estabelecendo as
normas intersubjetivas que definem os interesses que sustentam as ações (Barnett &
Duvall, 2005: 53).
Portanto, a mesma estrutura que, para Waltz, é caracterizada pela anarquia internacional
como princípio ordenador, poderá deter como característica, também, a aplicação de um
poder estrutural que molda o comportamento das unidades políticas. Sendo, em termos
lexicais, anarquia e poder termos opostos, então a anarquia internacional, sendo
característica da estrutura e, por isso, resultado do processo de socialização (o que faz
dela pós-social) -, recai sobre um paradoxo.
Ademais, entendendo a anarquia internacional como resultado do processo de
socialização, de forma a ser uma característica da estrutura, então esta é
institucionalizada como uma norma que compõe a estrutura. Ou seja, tal como o poder
estrutural é canalizado através do processo de socialização para limitar a ação humana,
também a anarquia internacional é canalizada para (não) limitar a ação dos Estados.
Essa institucionalização de uma ausência de um monopólio de força legítima acima dos
Estados (norma da não norma) é aplicada precisamente através de mecanismos de força
estrutural que condicionam as ações das unidades políticas. Este processo social de
institucionalização de normas será explicado adiante.
Análise dos pressupostos realistas de anarquia internacional
desenvolvidos por Raymond Aron e Kenneth Waltz
A visão realista clássica destaca a anarquia internacional como um elemento único
característico das relações entre os Estados, sendo esta a explicação da ocorrência de
conflitos entre os mesmos (Aron, 1966: 724). Assim, numa coletividade de soberanias
cada uma delas reger-se pela sua própria lei e os soberanos não devem reconhecer
obediência a mais ninguém, sendo o Estado o detentor do monopólio legítimo da
violência, aplicando o seu poder externamente sem constrangimentos (Aron, 1968: 28).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
242
Para Aron (1968), o Homem é naturalmente um animal social que atinge o máximo da
sua potencialidade através da sociedade, que permite a acumulação de conhecimento e
poder entre gerações. No desenvolvimento deste argumento, inspirado pelas críticas de
Kant a Rosseau, Aron utiliza a metodologia antropológica deste último para
empiricamente fortalecer o seu pensamento com o exemplo de desenvolvimento das
sociedades do Neolítico, que através da formulação de um quadro de valores, um estilo
de vida e uma forma de ver o mundo característica de cada uma delas começaram a
identificar os seus comuns e os “estrangeiros”. Esta estranheza e identificação da
diferença não implica necessariamente um ambiente hostil entre as socialidades, significa
que cada socialidade se desenvolveu consciente da sua originalidade e da sua cultura
própria, celebrando a descoberta de serem diferentes de outros. Perante tal pressuposto,
as relações internacionais são denotadas de cultura e, portanto, não derivam do estado
natural, sendo os conflitos uma parte integral das civilizações e uma forma de relação
entre Estados também não advêm do estado de natureza, mas sim da cultura (Aron,
1968: 30).
A distinção filosófica entre estado de natureza onde cada um pode contar apenas
consigo mesmo” e sociedade civil onde reina a lei, se presta justiça através dos
tribunais e onde a polícia supressa a violência” (Aron, 1968: 31) não implica que as
relações entre Estados continuem a representar um estado primário de guerra de todos
contra todos (Aron, 1968: 31) - ou seja, de uma inimizade primitiva que surge
espontaneamente no contacto com a diferença -, esta distinção é fruto da experiência
histórica. As cidades-estado e os impérios foram construídos através da violência, sem
que existisse uma entidade superior que procedesse à supressão da mesma. Desde esse
momento, a experiência histórica tem demonstrado que todos os sistemas internacionais
têm sido anárquicos, pois não se têm submetido a uma soberania. Uma soberania deste
calibre, ao ser reconhecida, anularia a autonomia, a indepenncia e a soberania dos
Estados. Por este motivo, a ordem das relações entre Estados é anárquica e essa
anarquia tem sido fomentada pela experiência histórica (Aron, 1968: 30-32). Esta visão
de Aron (1968) acompanha a linha de pensamento exposta anteriormente.
A escola neorrealista, que ganha ímpeto na figura de Kenneth Waltz, herda os contributos
dos realistas clássicos, mas inspira-se no pressuposto de que: “Entre Estados, o estado
de natureza é um estado de guerra (Waltz, 2014: 130). Este princípio permite a
comparação com o pressuposto hobbesiano de estado de natureza. Não existindo um
governo coercivo de furor internacional, que detenha o monopólio da violência no sentido
weberiano, desconhece-se quando um conflito pode despoletar. Sendo, a anarquia
internacional esta ausência de regras supranacionais associadas à ocorrência de violência
(Waltz, 2014: 130), os Estados interagem num ambiente de insegurança constante, onde
procuram ganhos próprios, colocando em causa a sobrevivência dos seus pares (Bull,
1981: 721).
Deste modo, na esfera anárquica, as unidades similares(Waltz, 2014: 131) coagem,
tentando manter uma autonomia numa lógica de self-help, onde cada unidade investe
na produção de meios para a sua proteção contra outros, subentendo que cada unidade
servirá aquilo que ditam os seus interesses. Se num cálculo racional, um Estado
considerar que atacar outro é o que lhe serve melhor, então é o que fará e o haverá
nada que o impeça (Waltz, 1959: 232). Assim, no sistema internacional apenas relações
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
243
de força podem resultar devido ao seu carácter anárquico. No entanto, nem todas as
relações entre Estados são conflituais e um conflito é uma das tipologias de relação entre
duas unidades.
Análise dos pressupostos construtivistas wendtianos de anarquia
internacional
As ideias construtivistas de Alexander Wendt assumem pressupostos waltzianos partindo
de uma teoria estatocêntrica e holística, onde o Estado, como ator principal na cena
internacional, canaliza os comportamentos de outros atores e define a estrutura
consoante a sua identidade em constante transformação.
O foco na estrutura é necessário para desafiar os poderes causais da anarquia, se o
processo e as instituições não se encontrarem a ela subordinados. Se a anarquia é aquilo
que os Estados fazem dela(Wednt, 1995: 132) e se um sistema de self-help e de poder
político é socialmente construído sob a anarquia” (Wednt, 1995: 132), então esta
anarquia é mutuamente constitutiva numa relação agente-estrutura, partindo
primeiramente do processo social dos agentes.
A estrutura internacional, neste sentido, não advém da anarquia internacional, uma vez
que esta é insuficiente para explicar as relações entre os Estados. O processo de
formação identitária preocupa-se principalmente com a auto preservação, o que explica
a existência de diferentes interesses entre diferentes agentes. O sistema de self-helpo
é mais do que uma forma de instituição de um tipo de estrutura que pode ocorrer sob a
anarquia internacional, no entanto, não é único, dependendo das interações entre
Estados e dos seus posicionamentos face ao Outro. A lógica de anarquia e de distribuição
de poder depende desta variável cognitiva de instituição para se caracterizar, pelo que à
caracterização realista deve-se acrescer a intersubjetividade de uma estrutura de
identidades e interesses em constante transformação (Wendt, 1995: 133-138).
As implicações deste pensamento conduzem Wendt (1995) a afirmar que os Estados,
antes de realizarem interações entre si, não têm uma conceção de si ou do Outro, não
tendo interesses de segurança antes de qualquer interação (Wendt, 1995: 139-140).
Tanto as instituições de estruturas transformam os interesses e identidades dos Estados,
como estes transformam aquela primeira, sendo ambos mutáveis (Wendt, 1995: 153).
A relação entre as instituições e o processo de socialização explica-se pela existência de
um entendimento intersubjetivo e de expectativas entre A e B, ou seja, uma estrutura.
O Estado A tem os seus próprios interesses e a sua própria identidade, tal como o Estado
B. Estas componentes de estrutura, Estado A e Estado B, resultam na instituição. O
processo, por sua vez, é constituído por cinco etapas, existindo uma relação de
causalidade entre cada, sendo que a última é causalidade da primeira, incorrendo num
circuito circular. Primeiramente, um estímulo que requer uma ação. De seguida, o
Estado A, consoante aquilo que é ditado pelos seus interesses e pela sua identidade,
definirá a situação na sua perspetiva, definindo-se a si mesmo. Ponto de situação
assente, o Estado A passará à ação, criando expetativas e entendimentos subjetivos que
influenciam tanto A como B. Da ação de A, o Estado B retiraa sua interpretação da
ação de A, tendo em conta os seus interesses próprios e a sua identidade, perspetivando
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
244
uma definição de situação. Consoante a sua interpretação, o Estado B reagirá à ação de
A, contribuindo para a intersubjetividade e permitindo ao Estado A uma definição de B
(Wendt, 1995: 153-155).
Figura 1 Dinâmica do processo de socialização e das instituições
Fonte: Anarchy is what states make of it” de Alexander Wendt (1995)
Wendt explica assim como a anarquia se constrói socialmente como parte integral da
estrutura.
Conclusão
Para Aron (1968) e para Wendt (1995), a anarquia internacional não é uma característica
que advém de os Estados se encontrarem num estado de natureza, esta resulta do
estabelecimento de relações entre os mesmos. Este fator de desassociação entre
anarquia internacional e estado de natureza, permite descartar os pressupostos
waltzianos de caracterização da anarquia internacional e destacar o processo de
socialização como fator explicativo da mesma.
Deste modo, entende-se que a estrutura internacional é socialmente construída, que
através dos processos de socialização ao longo da experiência histórica institucionaliza a
anarquia internacional como uma regra da não regra. Ou seja, os conflitos não surgem
naturalmente entre os Estados e estes não tendem para a auto preservação devido ao
estado de natureza. Uma estrutura definida nos termos neorrealistas poderá ocorrer se
um padrão comportamental no processo de socialização conduzir a tal, mas esta não se
verifica necessariamente, pois o agente tem a capacidade de transformar a estrutura.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
245
Ao não existir estrutura antes do processo de socialização, também não poderá existir
anarquia internacional dentro dessas condições, pois esta é característica daquela. Ao
aceitar-se a anarquia como aquilo que os Estados fazem dela” (Wendt, 1995: 132),
apenas fará sentido interpretar a anarquia como fruto da interação entre Estados. Esta
ideia não pode ser considerada absurda, pois um Estado, antes de receber um estímulo
que conduza à interação com Outro, não tem perceção deste, encontrando-se isolado.
Neste contexto abstrato de apenas um Estado, não existe anarquia, pois não existe
espaço para relações entre atores. É particularmente no instante em que este Estado
recebe o estímulo para iniciar interação com Outro que se apercebe que não existe um
condicionamento à sua ação, portanto, apenas no processo de socialização é possível um
reconhecimento da anarquia internacional. O Outro, que reagirá a esta primeira iniciativa,
terá a mesma realização, originando um reconhecimento mútuo de anarquia
internacional.
Assim, a anarquia internacional é interiorizada pelos atores como uma regra da não
regra, tornando-se uma norma de comportamento partilhada de forma intersubjetiva,
que canalizada pelo processo de socialização, se transforma numa norma comum
partilhada por todos. Um entendimento comum de anarquia é transferido entre os
Estados, resultando numa rede cognitiva de institucionalização. A anarquia, quando
institucionalizada e reconhecida pelos agentes, torna-se um elemento da estrutura. Ora,
um Estado A, com identidade e interesses próprios, é recetor dos entendimentos
intersubjetivos partilhados entre A e B, sendo a anarquia internacional um desses
entendimentos que se vão infiltrar nas identidades e na definição de interesses desses
Estados, condicionando a forma como exercem as suas ações. Pelo que, a anarquia
exerce um poder estrutural i.e. capacidade da estrutura de condicionar a ação do ator
e os seus interesses (Barnett & Duvall, 2005: 52-55) - sobre os Estados, na medida em
que padroniza e condiciona os seus comportamentos. Assim, o conceito de anarquia
internacional é desenhado como um paradoxo da norma de o norma, que não deixa
de ser limitadora.
Em suma, a anarquia internacional só pode ser construída ontologicamente através das
relações mutuamente constitutivas entre os agentes e a estrutura. Esta desconexão da
visão waltziana permite um exercício de abstração, onde a anarquia internacional se
institucionaliza como norma, sendo aplicada como poder estrutural. É precisamente este
incubimento de uma norma de o norma e esta aplicação de poder estrutural que faz
com que o termo anarquia internacional necessite de ser revisado.
Por fim, intenta-se que o debate em torno do conceito de anarquia se descentralize das
diferentes análises das suas consequências e se centralize em torno do núcleo da
problematização: os pressupostos ontológicos de um conceito que tudo explica, mas que
pouco o explica.
Referências
Aron, R. (1968). The Anarchical Order of Power, in: History, Truth, Liberty: Selected
Writings of Raymond Aron. Chicago: University of Chicago Press, 2752.
Aron, R. (1966). Peace and War: A Theory of International Relations. Routledge.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 13, Nº. 1 (Maio-Outubro 2022), pp. 237-246
Notas e Reflexões
Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos de uma conceção pós-social
Carolina Encarnação Correia
246
Barnett, M., Duvall, R. (2005). Power in International Politics. International Organization
59, 3975.
Bull, H. (1995). Society and Anarchy in International Relations, in: International Theory:
Critical Investigations. London: Palgrave, 75-93.
Bull, H. (1981). Hobbes and the International Anarchy. Social Research 48, 717738.
Buzan, B. (1993). Overview, in: The Logic of Anarchy: Neorealism to Structural Realism.
Columbia University Press.
Fergunson, Y. H., Mansbach, R. W. (1988). The Elusive Quest: Theory and International
Politics. Columbia: University of South Carolina Press.
Fernandes, A. H. (2012). A Anarquia Internacional Crítica de um Mito Realista. Relações
Internacionais 36, 87-104.
Holsti, K. J. (1985). The Dividing Discipline, in: Hegemony and Diversity in International
Theory. Boston: Allen & Unwin.
Keohane, R. O. (1986). Neorealism and its Critics. NY: Columbia University Press.
Little, R. (1993). The Structure and Logic of Anarchy, in: The Logic of Anarchy:
Neorealism to Structural Realism. Columbia University Press.
Niou, E. M. S., Odershook, P. G. (1991). Realism versus Neoliberalism: A Formulation.
American Political Science Review 35 (2), 481-511.
Onuf, N. (1989). World of Our Making: Rules and Rule in Social Theory and International
Relations. Columbia: University of South Carolina Press.
Walker, R. J. B. (1987). Realism, Change and International Political Theory. International
Studies Quarterly 31, 65-84.
Waltz, K. (2014). Anarchic orders and balances of powers, in: Realism Reader. Routledge,
NY, pp. 130141.
Waltz, K. (1979). Theory of International Politics. Reading Mass.
Waltz, K. (1959). Man, the State, and War. NY: Columbia University Press.
Wendt, A. (1999). Social Theory of International Politics. Cambridge University Press.
Wendt, A. (1995). Anarchy is what states make of it: The social construction of Powers
Politics, in: International Theory: Critical Investigations. London: Palgrave, 129180.
Como citar esta nota
Correia, Carolina Encarnação (2022). Anarquia internacional revisada: os desafios ontológicos
de uma conceção pós-social. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 13, Nº 1,
Maio-Outubro 2022. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.13.1.02