OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Dossiê temático
200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
81
SOCIABILIDADE PATRIÓTICA E DEFESA DA CAUSA CONSTITUCIONAL
ANA CRISTINA ARAÚJO
araujo.anacris@sapo.pt
Doutorada em História Moderna e Contemporânea, é Professora Associada com agregação na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal), investigadora do Centro de História
da Sociedade e da Cultura e diretora da Revista de História das Ideias. Tem-se dedicado à
investigação em História das Ideias e da Cultura, séculos XVIII e XIX. É autora de numerosos
artigos, em publicações nacionais e estrangeiras, e de vários livros, como A morte em Lisboa.
Atitudes e Representações (1700-1830), Lisboa, 1997; A Cultura das Luzes em Portugal. Temas
e Problemas, Lisboa, 2003; e Memórias Políticas de Ricardo Raimundo Nogueira (1810-1820),
Coimbra, 2011. Co-coordenou recentemente o livro Gomes Freire de Andrade e as Vésperas da
Revolução de 1820, Lisboa, 2018 e obras coletivas de referência sobre a Universidade no período
pombalino.
Resumo
A modernidade filosófica do Iluminismo contribuiu para a mudança de agentes culturais e
de redes internacionais do conhecimento. Os veículos de comunicação intelectual, à escala
europeia, foram expandidos e secularizados. Novas formas de sociabilidade intelectual e
patriótica surgiram na esfera pública. Neste contexto, a sociabilidade mundana foi marcada
pelo estabelecimento de associações filantrópicas, económicas e patrióticas. Neste estudo
destacamos a importância que três associações tiveram no final do século XVIII e inícios do
século XIX: a Sociedade dos Mancebos Patriotas com sede em Coimbra (1780); o Montepio
Literário (1813); e a Sociedade Patriótica Literária de Lisboa (1822).
Palavras chave
Luzes, Sociabilidade, Sociedades Patrióticas, Filantropia
Como citar este artigo
Araújo, Ana Cristina (2021). Sociabilidade patriótica e defesa da causa constitucional.
Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução
(1820-2020), Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.5
Artigo recebido em 21 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 29 de Julho de 2021
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Sociabilidade patriótica e defesa da causa constitucional
Ana Cristina Araújo
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SOCIABILIDADE PATRIÓTICA E
DEFESA DA CAUSA CONSTITUCIONAL
ANA CRISTINA ARAÚJO
No período que medeia entre a segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX
ocorreram mutações significativas nos espaços, agentes e mecanismos de sociabilidade
literária, cultural, científica e política na sociedade portuguesa. Sob a influência das
Luzes, marcada por novas perceções da cultura e da filosofia de tipo enciclopedista, e
tendo em conta os conhecidos canais de acesso à produção impressa estrangeira, por
meio da circulação clandestina de livros, periódicos, novidades literárias e do teatro,
foram despertando em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra um conjunto diversificado
de instituições associativas (Araújo, 2003). Em Portugal, à semelhança do que aconteceu
em outros países europeus, a participação e a interação mundana caracterizaram os
espaços de lazer, as tertúlias literárias e as sessões de recriação filosófica frequentados
pelas elites culturais e por homens e mulheres letrados (Chartier, 1990). O convívio social
e a acuidade a temas e problemas ligados à atualidade por parte destes grupos sociais
acabaram por refletir as mudanças operadas no modo de apropriação e partilha do
conhecimento, ensaiada primeiro em círculos culturais de recorte cosmopolita, em
certames e encontros marginais aos tradicionais convívios cortesãos e em sessões
académicas (Araújo, 2017a).
Portanto, as modernas dinâmicas de sociabilidade fizeram-se sentir de forma diferente
em associações de cunho intelectual com reportório marcadamente pedagógico, como
era o caso das academias literárias, científicas e militares, em sociedades económicas,
como foi o caso da Sociedade Económica dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público
de Ponte de Lima, direcionadas para o desenvolvimento económico e educativo local, e
em reuniões mais ou menos anónimas, no café, no botequim e no passeio público,
espaços onde a politização dos debates foi especialmente evidente a partir do alvorecer
de Oitocentos. Nas grandes cidades, a par destes lugares de conversação e convívio
expostos ao olhar de curiosos e à denúncia de espias ou agentes da Intendência Geral
de Polícia, havia ainda os salões literários, o mais conhecido dos quais tutelado pela
marquesa de Alorna, as assembleias privadas e públicas, as lojas maçónicas, as
sociedades patrióticas, os gabinetes de leitura, a Biblioteca Pública de Lisboa, criada em
1796, e outras bibliotecas de acesso mais controlado, mas igualmente frequentadas por
curiosos e eruditos de vários quadrantes sociais. Estes lugares propiciaram o
alargamento de diversos elos de sociabilidade, nem sempre encadeados entre si, mas
quase sempre dominados por preocupações mundanas, filosóficas e políticas. Apreciados
em conjunto, estes espaços sinalizavam a emergência de uma nova morfologia
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sociocultural urbana, especialmente em Lisboa, e contribuíam para desarticular os
tradicionais suportes de convivência das elites, conferindo um cunho mais interclassista
às associações de natureza instrutiva e recreativa.
Apesar das diferenças existentes entre as associações e as instituições atrás
mencionadas organizadas ou informais, espontâneas ou seletas, com ou sem
patrocínio do rei ou de um mecenas, secretas ou públicas , verifica-se que na maioria
delas os seus membros perseguiam o desígnio de progresso da sociedade e de
modernização cultural. No âmago de uma renovada convivialidade de eixo presentista,
moldada por preocupações seculares, características do horizonte filosófico e científico
da segunda metade do século XVIII, mas também no seio dos mais variados cenáculos
literários e académicos, “os indivíduos procuravam um lugar, mais do que meramente
devotado ao ócio, onde pudessem pensar, debater e criticar livremente. Desprendidos
que estavam das habituais diligências e convenções a que, noutras instâncias como a
Corte ou a Universidade, se achavam obrigados, eles vão, assim, ao mesmo tempo,
atualizando os seus interesses e gostos e redefinindo, enquanto atores, a esfera pública
em que se inserem” (Silva, 2020: 27).
Como afirma Maria Alexandre Lousada, esses novos espaços de encontro e debate de
ideias funcionaram como autênticos “laboratórios sociais” e revelaram-se fundamentais
para a emergência da esfera pública política em inícios de Oitocentos, sob os auspícios
da Revolução Francesa (Lousada, 2017: 319).
Não é possível avaliar, em breves palavras, os modelos de organização e reunião destas
agremiações, nem tão-pouco o produto do labor empenhado de algumas delas, mas a
partir de um ou de outro caso é cil perceber que muitas tinham como ponto de partida
discussões em rculos de amigos versando temas relacionados com projetos de
melhoramento público, obras filantrópicas e educativas. Os espíritos mais esclarecidos
consideravam portanto que a amizade e a filantropia convergiam para o aperfeiçoamento
do nero humano, inspirando a ação de notórias figuras identificadas com os ideais das
Luzes (Ramos, 1988: 99).
Neste contexto, sem outro fim que não fosse o contributo desinteressado de uns em prol
de todos, nasceram as chamadas sociedades dos amigos do bem comum, também ditas
sociedades patrióticas. O programa destas sociedades mostrava que a mobilização civil
era determinada pela correlação prática da instrução, da filantropia, da divulgação
científica e do fomento da atividade económica. Em Portugal, o modelo que vingou, com
manifesta tibieza, foi inspirado no robusto figurino espanhol das sociedades economicas
de los amigos del pais. Do outro lado da fronteira, o movimento de expansão das
sociedades económicas iniciou-se no País Basco, com a Sociedade Vascongada (1764) e
contou com o apoio expresso do ministro Campomanes. Em Portugal, as sociedades
económicas constituídas por bons patriotas, no âmbito da sociedade civil, participavam
de um novo entendimento da cultura científica e da sua utilidade para o bem-estar da
nação. Eram também portadoras de uma renovada visão do patriotismo, o ancorado
em feitos bélicos, na ancestralidade dos antepassados e em grandes honrarias mas numa
dimensão cívica de pertença territorial, de presença social e de participação ativa na vida
da comunidade. Em termos práticos, apontava-se para um patriotismo alicerçado na
participação de cada em prol do bem de todos e para o desenvolvimento económico da
região, da localidade e do país (Catroga, 2013).
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Nas décadas de 70 e 80 do século XVIII, surgiram nas regiões do Minho, Elvas, Douro,
Valença e Évora, várias tentativas de constituição de sociedades patrióticas (Cardoso,
1989: 110; Vaz, 2002: 222). A única que chegou a ter um funcionamento regular foi a
Sociedade Económica dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público de Ponte de Lima,
fundada em 1779-1780. Tinha por objetivos promover a Agricultura em todos os ramos,
que a respeitão, as Artes, e a Industria. Previa a constituição de uma livraria enriquecida
com obras de natureza económica, a publicação de memórias e a instituição de escolas
patrióticas, gratuitas, onde se ensinariam ofícios, por exemplo, a tecer e branquear o
linho. Previa também a aquisição de máquinas, utensílios agrícolas, sementes e plantas,
bem como a concessão de prémios monetários, depois de devidamente aprovados pelos
sócios, àqueles que solucionassem problemas respeitantes aos diversos ramos da
agricultura.
Dispondo de um programa objetivamente ambicioso, a Sociedade Económica de Ponte
de Lima, muito por falta de uma base social de apoio sólida acabaria, à semelhança de
outros projetos, por soçobrar. A despeito disso, porém, o deve ser negligenciado o
facto de ter tido como vice-presidente um limiano ilustrado, o ministro António de Araújo
de Azevedo, futuro conde da Barca, e de as suas aspirações reformistas terem
permanecido em embrião e influenciado a formação de outras associações congéneres.
Neste campo, merece destaque a tentativa de constituição de uma Sociedade dos
Mancebos Patriotas Estabelecida em Coimbra no ano de 1780 debaixo da Real Protecção
de sua Alteza o Serenissimo Senhor Principe do Brazil, cujos Estatutos Literários.
Provinda do meio académico e arquitetada por um grupo de estudantes, esta associação
económica procurava incorporar e levar mais longe o espírito científico, de matriz técnico-
experimental e racionalista que presidira à reforma pombalina da Universidade de
Coimbra (1772). Guiados pela certeza de que era imperiosa a instrução e vulgarização
do conhecimento científico pretendiam os mancebos, ou seja, os rapazes sócios da
agremiação patriótica instituir um organismo versado nas ciências naturais e ativo no
processo de desenvolvimento da produção regional. Dito de outro modo, pretendiam criar
uma sociedade patriótica que fosse capaz de sensibilizar os cidadãos das províncias do
reino para a utilidade social do conhecimento técnico-científico. O Memorial que
acompanhava os Estatutos Literários e Económicos da Sociedade afirmava, portanto, que
“os mancebos estudiosos, filhos da Universidade, aplicados às Sciencias da Natureza [...]
para o futuro jurarão prestar à Pátria os esforços dos seus talentos”
1
.
A sociedade que “nasceu sobre os votos dos bons cidadãos” recomendava que nas suas
atividades e reuniões públicas e particulares se praticasse “a união, a simplicidade no
comportamento, a sinceridade nas consultas e conferencias”
2
. Entre outras atividades,
relacionadas com recolha de amostras de História Natural, com a promoção de culturas
apropriadas à natureza dos solos e com o desenvolvimento das manufaturas locais, os
sócios deviam produzir regularmente memórias científicas sobre os trabalhos de campo
a empreender.
Neste capítulo, contavam com a tradução de inúmeras obras diticas e memórias
instrutivas consentâneas com este e outros projetos de sociedades patrióticas. Refiram-
se apenas alguns títulos desta moderna e especializada biblioteca de textos económicos
1
ANTT, Real Mesa Censória, nº 702.
2
ANTT, Real Mesa Censória, nº 702, fls. 26-27.
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e patrióticos. O Discurso sobre a Educação e Fomento dos Artistas (1774) de
Camponanes, divulgado em diferentes versões portuguesas, remetia claramente para o
modelo instrutivo de promoção das atividades económicas praticado em Espanha. Mas
outros textos circularam em Portugal na década de oitenta do culo XVIII, como
demonstram as traduções e artigos publicados na Miscellanea Curioza e Proveitoza, entre
1781 e 1785 (Nunes, 2001: 55-61); as remissões à Sociedade Económica de Berna,
criada em 1766, feitas por José António de no Compendio de Observaçoens que
formão o plano de Viagem Politica e Filosofica que se deve fazer dentro da Patria (1783)
e por Vilalobos e Vasconcelos nos Elementos de Polícia Geral de Hum Estado (1786-
1787); e como atesta ainda a tradução de Francisco Xavier do Rego Aranha dos
Elementos de Agricultura fundados sobre os mais sólidos princípios da razão, e da
experiência, para uso das pessoas do campo, que mereceram o premio da Sociedade
Economica de Berne em 1774 por Mr. Bertrand, dada ao prelo, em Lisboa, em 1788. A
conceção deste livro remonta ao tempo de fundação e/ou refundação da Sociedade dos
Mancebos Patriotas de Coimbra, aceitando como balizas do ciclo de vida desta
agremiação, de acordo com as datas de 1780 e a rasura de 1785 que constam do texto
manuscrito dos seus Estatutos. Conforme explica na dedicatória e na advertência a esta
edição Manuel Henrique de Paiva, que dá ao prelo a obra, a tradução daquela memória,
cujo autor era pastor protestante e membro da Sociedade de Berna, fora realizada pelo
“bacharel F. X. Aranha (...) no tempo, em que estudava jurisprudencia e historia natural
na Universidade de Coimbra: e havendo-ma entregado para della fazer o que entendesse,
assentei comigo que faria grande utilidade ao Publico, publicando-a com algumas notas,
que esclarecessem a matéria” (Araújo, 2017b: 114-115).
Apesar da sua envolvência institucional e instrutiva, a Sociedade dos Mancebos Patriotas
Estabelecida em Coimbra o chegou a sair do papel, pois os estudantes envolvidos na
sua conceção acabaram julgados em 1781 depois de terem sido imputadas condutas
errantes e libertinas a Manuel Henriques de Paiva, Vicente Seabra da Silva Teles,
Francisco José de Almeida, Francisco de Melo Franco, António de Moraes Silva, Pereira
Caldas e outros estudantes (Ramos, 2001: 311-326).
Também ligada à instrução pública, mas com uma finalidade eminentemente filantrópica
surgiu, em 1813, com um outro figurino associativo, o Monte Pio privativo dos
professores e mestres da Corte, que passou a funcionar regularmente a partir de 1816
(Araújo, 2021). O Montepio formou-se por iniciativa de um grupo de professores régios
que se uniu com o propósito de remediar o progressivo empobrecimento da classe e de
responder às dificuldades vividas durante as invasões francesas (1807-1811) e no pós-
guerra. Os fundamentos da associação assentavam, portanto, num programa filantrópico
e mutualista destinado a um conjunto amplo de associados e famílias de professores e
homens de letras.
No essencial, os fundadores do Montepio procuraram acautelar, de forma voluntária e
livre, condições dignas de sobrevivência na velhice a um grupo considerável de indivíduos
que se superiorizavam da população em geral pelo domínio da cultura escrita mas cujos
recursos materiais eram notoriamente baixos. A iniciativa de constituição desta
associação patriótica e mutualista replicava assim o sentido originário de outras
associações mutualistas e de beneficência existentes na Europa, conforme comprovavam
os estatutos da associação.
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O projeto do Montepio Literário, designação porque ficou conhecida esta associação, foi
ideado por Joaquim Lemos Seixas Castel-Branco, professor régio de primeiras letras na
cidade de Lisboa, cavaleiro da ordem de Cristo e proprietário do colégio dos Cardaes de
Jesus, por ele fundado na capital, em 1815. Joaquim de Seixas Castel-Branco era um
homem ilustrado, subescrevia os Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, jornal de
exílio, publicado, em Paris, por Solano Constâncio, e procurava ajustar a sua atividade
pedagógica aos ideais humanitaristas e filantrópicos das Luzes. À época era também
adepto do constitucionalismo liberal britânico. Antes de lançar, com outros apoiantes, o
projeto do Montepio Literário deu ao prelo, em 1809, um curioso opúsculo intitulado
Breve mas circunstanciada noticia do governo e constituição da Grã-Bretanha, com huma
noticia geral de todas as revoluções que tem acontecido aos reis e á nação. Tanto quanto
sabemos, trata-se do primeiro escrito de que notícia de adesão expressa ao modelo
constitucional inglês publicado em Portugal. Portanto, não foi indiferente à consumação
do paradigma de sociabilidade mutualista de Joaquim Lemos Seixas Castel-Branco esta
referência ideológica que, sendo fruto da sua formação intelectual, acabou por ser
publicamente sustentada no contexto das guerras napoleónicas e da crise internacional
de inícios do século XIX.
Mas voltando agora ao Compromisso do Montepio, ou estatutos, é sabido que o termo
de aprovação desta associação foi subscrito, inicialmente, por pouco mais de 130
professores e homens de letras. Aos requerentes a sócios do Montepio pedia-se que
atestassem a sua profissão, morada e idade e, não sendo professores, que
apresentassem também uma certidão de vitae et moribus passada pelo pároco da sua
freguesia. Em suma, todos os associados deviam ser indivíduos virtuosos e
trabalhadores, discretos e respeitadores do compromisso lido no ato de matrícula e sobre
o qual haviam prestado juramento ao serem admitidos. Uma vez matriculados, passavam
a ter o estatuto de compromissários. Contraíam um encargo financeiro inicial e pagavam
mensalmente ao cofre do Montepio uma contribuição, com o objetivo de acautelarem
uma subvenção, em caso de doença e fatalidade de perda de emprego na velhice, ou
uma tença, por morte, a favor, primacialmente, de suas vvas e órfãos. No termo de
inscrição ou matrícula o compromissário devia declarar os nomes dos familiares diretos
que estatutariamente podiam beneficiar do cofre da associação mutualista.
O Montepio congregou, à partida, inúmeros espíritos ilustrados. Alguns dos seus
membros eram maçons, como António Maria do Couto (Marques, 1990, 342) e, com
grande probabilidade, alguns associados terão mesmo mantido contactos com o grupo
de conspiradores que reunia na Rua do Salitre, em vésperas da conspiração de Gomes
Freire de Andrade.
Pelos seus propósitos mutualistas, sociais e culturais, esta associação prenunciava a
emergência de um padrão secularizado de sociabilidade e de novas preocupações
filantrópicas na esfera civil. De forma livre, voluntária e a coberto de um sistema de
quotizações, oferecia aos seus associados uma série de socorros mútuos, incluindo a
pensão de reforma atribuída aos associados e suas viúvas a partir da constituição de um
fundo financeiro pprio.
Mas outros aspetos importantes a referir: o Montepio ramificou-se por todo o país, ou
seja, tinha sede em Lisboa e delegações nas províncias. Era uma associação secularizada
formada por homens livres e beneficentes, com uma filosofia distinta do modelo de
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caridade das confrarias e irmandades religiosas. Os seus estatutos proibiam mesmo os
associados de envergarem, na sua festa anual, hábito religioso, opa ou qualquer insígnia
de alheia confraternidade. Os estatutos contemplavam também a “construção de hum
colegio de educação” destinado a acolher os órfãos dos associados e um recolhimento
para as suas viúvas e filhas solteiras que não chegou a ser criado (Couto 1816: 27). Com
o objetivo de praticar o bem e instruir os sócios aventou-se, mais tarde, a integração do
Gabinete Literário que funcionava, em 1821, contíguo às instalações do estabelecimento
mutualista num mesmo espaço comum sito na Rua dos Douradores, número 31.
Nos primeiros cinco anos de funcionamento do Montepio, o número de compromissários
foi sempre aumentando. Até ao ano de 1821, só em Lisboa candidataram-se a sócios do
Montepio cerca de mil indivíduos (Couto 1821: p. 11). Apesar do seu poder de
mobilização e da sua atratividade social, a associação mutualista passou por dificuldades
financeiras e logo após a instalação da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino
na capital, um dos seus primeiros atos públicos foi o agraciamento de Manuel Fernandes
Tomás com uma cédula de “compromissário honorário” do Montepio Literário
3
. O
reconhecimento de uma das figuras políticas mais influentes do movimento liberal,
assinalava assim a adesão da associação mutualista ao novo regime.
Para melhor inteligência da lei chegaram a ser coligidas, no decurso do triénio liberal,
novas regras a observar na instituição, que passaria a ter a designação de “Monte Pio
Nacional”
4
. Estas normas comportavam continuidades e mudanças, sendo a mais
relevante a que franqueava o acesso das mulheres ao Montepio, com o estatuto de
associadas ou compromissárias, isto é de benfeitoras
5
.
Ainda que não tenham sido postas em prática as recomendações da Comissão
administrativa Montepio Literário
6
, criada pelo executivo liberal, as preocupações
filantrópicas e humanitaristas da classe política ampliaram o debate, conferindo-lhe um
carácter interclassista e chamando à liça a participação das mulheres na associação
mutualista.
No contexto da revolução de 1820, disseminaram-se os focos de sociabilidade patriótica
e política. Muitos destes ativos polos de convergência de cidadãos empenhados na
mudança de regime tinham origem em instituições maçónicas e paramaçónicas fundadas
no âmbito da cultura, da beneficência, da atividade jornalística e da política parlamentar
(Gil Novales, 1975). Segundo A. H de Oliveira Marques a “maioria das sociedades
patrióticas que surgiu em Portugal em 1820-23 (estamos a falar de 18 sociedades
patrióticas) e, depois, em 1834-42, “teve origem maçónica”. Para todos os efeitos, este
autor não as equipara às lojas mas considera-as organizações paramaçónicas. (Marques,
1997: 267).
3
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, docs. 6 e 8. A cédula, lacrada e datada de 1 de outubro de 1820,
está assinada pelo Provedor substituto Joaquim JoFerreira de Carvalho, pelo Tesoureiro José António
Monteiro e pelo secretário Caetano Pedro da Silva. A carta justificativa desta concessão graciosa é também
assinada pelo promotor geral António Maria do Couto.
4
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, doc. 9, fl. 63 a 68v Coleção de Regras para o regimen do Monte
Pio Nacional.
5
ANTT, Ministério do Reino, maço 360, doc. 9, fl. 64v-65 Coleção de Regras para o regimen do Monte Pio
Nacional.
6
Da incerta evolução posterior do Montepio pouco se sabe. Terá sobrevivido com dificuldades acrescidas até
se extinguir por total falta de crédito antes de findar segunda década do século XIX.
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A mais importante Sociedade patriótica do período vintista, foi fundada oficialmente em
Lisboa (2-1-1822) e chegou a reunir 269 afiliados. Referimo-nos à Sociedade Literária
Patriótica que teve também a sua origem ligada ao Gabinete de Leitura e Composição,
Gabinete Literário, fundado por uma Associação de Patriotas Portugueses e destinado a
congregar e a empreender todos os esforços em prol da Liberdade pela mais perfeita
Constituição
7
.
José Portelli que esteve diretamente envolvido na criação e funcionamento do Montepio
Literário foi também um dos fundadores da Sociedade Literária Patriótica, e do Gabinete
de Leitura e Composição
8
, levando-nos a presumir que uma e outra instituição eram
produto de uma mesma ideia-mãe. Isso mesmo é afirmado por Adrien Balbi no Essai
Statistique Sur Le Royaume De Portugal Et D’Algarve que relaciona os “membres qui
formaient le cabinet littéraire de Lisbonne, établi en 1821”, com a Académie littéraire,
sous le titre de Sociedade Literária Patriotica de Lisboa” (Balbi, 1822: 1-19).
Beneficiando das liberdades de reunião e comunicação que o novo regime possibilitara,
o Gabinete de Leitura e Composição desenvolveu inicialmente um plano de atividade de
clara orientação política liberal, mais inspirado no modelo das sociedades patrióticas do
que no clássico figurino dos cabinets de lecture (em França) ou das circulating librairies
(no Reino Unido). Pretendiam os fundadores do gabinete que o seu projeto servisse de
esteio a um ordenado e esclarecido processo de formação cívica, cuja intenção suprema
seria a de firmar a Liberdade pela mais perfeita Constituição.
Para tal, consideravam necessário assegurar, primeiro, a observância de uma série de
condições indispensáveis à sustentação e consolidação da Sociedade Literária Patriótica
que se formou a partir do Gabinete de Leitura e Composição. Cuidaram assim de garantir
através da cotização dos seus membros a viabilidade financeira da sociedade patriótica
e aplicaram todos os seus esforços na definição de um programa de formação ideológica
da sociedade civil. Entre os requisitos de funcionamento da sociedade avultava o carácter
internacional conferido à atividade dos sócios. Estes deviam manter contacto regular com
o estrangeiro, nomeadamente por meio da consulta de jornais e periódicos espanhóis,
italianos, ingleses e franceses e estimular, sempre que posvel, o relacionamento
próximo com agentes liberais desses países. Deste modo a Sociedade Literária Patriótica
participou ativamente daquilo a que Maurizio Izabella chamou a Internacional Liberal do
sul da Europa, no tempo da Restauração.
A Sociedade Literária Patriótica teve portanto um gabinete literário com oficinas de
leitura, previu editar obras originais e trabalhos de tradução e publicou um jornal,
ambição comum a outras organizações congéneres, nomeadamente, à Sociedade
Patriótica Constitucional ao Gabinete de Minerva que, no entanto, não conseguiram
materializar essa intenção.
O jornal da Sociedade Literária Patriótica era generalista. Continha uma série de artigos
sobre política mas também sobre arte, indústria, comércio, economia, ciência, história e
literatura. Dava a conhecer, com frequência, os assuntos tratados nas reuniões da
Sociedade Literária, que tinham lugar semanalmente. Noticiava e comentava os mais
7
O Portuguez Constitucional, nº 37, 4 de novembro de 1820.
8
Assim corrobora na Gazeta Universal nº 30, 7 de fevereiro de 1822, p. 2 quando noticia: “o M. R. P. Portelli,
Pai e fundador da Soc., de cujo prospecto he author, e para as bases da qual lançou pedra fundamental no
seu Gabinete Litterario”.
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recentes acontecimentos políticos internacionais (com destaque para os avanços da
Santa Aliança e para as pretensões de independência dos deputados do Brasil) e
publicava ainda leis, decretos, portarias, bem como extratos das sessões das Cortes.
Os responsáveis pela redação do jornal eram, ao todo, cinco distintos sócios. Entre os
redatores constavam Almeida Garrett e Nuno Álvares Pereira Pato Moniz, a quem se
atribui, aliás, a direção da redação do jornal (Balbi, 1822: 2-138), embora nenhum artigo
publicado no periódico da Sociedade Literária se faça, na verdade, acompanhar da
identificação de autoria.
O jornal era bissemanal e o seu corpo redatorial previra a publicação de suplementos
dedicados à causa da Constituição e da Liberdade. Na verdade encontramos artigos sobre
estas temáticas, como o célebre texto intitulado: Dos amigos e inimigos da patria e da
Constituição escrito com o intuito de reforçar o apoio á causa constitucional e de reprovar
todos aqueles que manchavam as leys fundamentaes ou Constituição do estado
9
.
A análise do corpo de sócios evidencia, como foi sublinhado por Maria Carlos Radich e
Diana Silva, o seu inegável carácter burguês (Radich, 1982: 2-125; Silva, 2020: 102-
103). No total, cerca de 40% dos seus membros estavam diretamente ligados ao
comércio e a atividades produtivas. Para além disso, 33% dos membros da Sociedade
Literária Patriótica pertenciam efetivamente à Maçonaria (Marques, 1997: 270).
As características sociológicas e culturais da associação revelavam-se consentâneas com
a transformação das práticas e dos espaços de sociabilidade ocorridos na sociedade
portuguesa na transição do século XVIII para o século XIX. Dito de outro modo, o
patriotismo cívico destas organizações emergentes correlacionava-se com a ascensão de
certos grupos sociais que, destacando-se pelas letras ou fazendo fortuna, procuraram
granjear no espaço de convívio intelectual e de lazer, presgio, notoriedade e influência
política. Neste contexto, percebe-se o impacto que as sociedades patrióticas tiveram
sobre as camadas burguesas, mobilizando-as para a adesão ao liberalismo e para o
desenvolvimento do espírito cívico e político indispensável à conservação do regime
constitucional. Em grande medida, o crédito público da Sociedade Literária Patriótica
passou também pela discussão, esclarecimento e comunicação de tudo o que se discutia
nas Cortes Vintistas.
Finalmente é também interessante constatar que foi precisamente pela mão de um dos
sócios da Sociedade (e/ou sob sua tutela), João Damásio Roussado Gorjão, com a
colaboração provável de outros colegas, que nasceu a célebre obra de propaganda
eleitoral, Galeria dos deputados das Cortes Geraes Extraordinarias e Constituintes da
Nação Portuguesa, referente à primeira época do liberalismo e publicada para informação
do público, em vésperas das eleições para a segunda legislatura das Cortes
Referências
Fontes
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