OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
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A VISÃO LIBERAL E O PROGRESSO NA COMPREENSÃO DA SEGURANÇA
LUÍS VALENÇA PINTO
lvpinto@autonoma.pt
General do Exército. Na sua carreira militar desempenhou, entre muitas outras, as funções de
Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, Chefe do Estado Maior do Exército,
Comandante da Logística do Exército, Diretor do Instituto da Defesa Nacional, Representante
Nacional junto do Quartel-General Aliado (SHAPE/NATO), Comandante da Escola Prática de
Engenharia e de Conselheiro na Delegação de Portugal junto da NATO e da UEO. Foi também
professor de Estratégia e de Geopolítica no Instituto de Altos Estudos Militares. É professor
catedrático convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigador integrado
no OBSERVARE. É autor de cerca de cem estudos, capítulos de livros e artigos sobre as temáticas
da Segurança e Defesa e conferencista em diversas instituições, em Portugal e no estrangeiro.
Resumo
Nos últimos dois séculos o progresso do entendimento sobre a Guerra fez evoluir o conceito
de Segurança. Nisso foram influentes as ideias ligadas ao liberalismo. Ao longo desse período
foi possível ir decantando as noções de Guerra, de Estratégia e de Segurança e aprofundar a
compreensão dos seus modelos. No que se refere à Segurança um trajeto que, no essencial,
vai da Segurança Nacional à Segurança Coletiva, até ao modelo contemporâneo de Segurança
Cooperativa, atenta à dimensão humana e cuja base de sustentação integra as ideias de
liberdade, de democracia e de liberalismo.
Palavras chave
Guerra, Segurança, Liberalismo, Pessoas, Cooperação
Como citar este artigo
Valença Pinto, Luís (2021). A visão liberal e o progresso na compreensão da Segurança.
Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução
(1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.9
Artigo recebido em 15 de Junho de 2021 e aceite para publicação em 10 de Novembro de
2021
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Luís Valença Pinto
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A VISÃO LIBERAL E O PROGRESSO
NA COMPREENSÃO DA SEGURANÇA
LUÍS VALENÇA PINTO
“…se alguém, algum dia, proclamasse a mais absoluta das verdades,
não o poderia fazer,
tudo está entretecido de conjetura”
Aristófanes, citado por Karl Popper em Em busca de um Mundo melhor
Introdução
Nunca é correto nem realista reduzir ideias manifestamente transcendentes a um
conceito. Muito menos encerrá-las nessa insuficiente e redutora perspetiva.
Ainda assim, e procurando identificar o que está no centro da questão que aqui se
pretende trabalhar, será porventura aceitável que se faça a simplificação de tentar
compreender as ideias liberais como tendo o Homem como sua causa primeira e como
seu objetivo último.
Também e muito justamente, se observa hoje que as Pessoas estão, ou se pretende que
estejam, no centro da compreensão contemporânea da Segurança. Ainda que não sejam
os seus referenciais únicos.
Radica nesta dupla leitura a questão que motiva este texto: que influência teve e tem a
visão liberal na evolução do entendimento quanto à Segurança?
Um fundamento para a relação entre Liberalismo e Segurança?
Uma primeira constatação é que não foi desde sempre que os conceitos de Liberalismo e
de Segurança se entrelaçaram. Nem podia ser diferentemente.
Não sofre contestação que o imperativo da Segurança e a correspondente noção
antecederam muito longamente a pulsão liberal, tal como ela se tem manifestado em
séculos recentes.
Poder-se-iam tecer considerações interessantíssimas relativas a tempos historicamente
mais recuados, mas talvez o objetivo deste ensaio, focado nos dois séculos mais recentes,
as possa dispensar.
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E talvez seja também consentido que aqui se labore na abstração de não levar em linha
de conta os relevantes contributos de culturas distintas das do Mundo ocidental. O facto
do movimento do liberalismo ser essencialmente um processo do Mundo ocidental
legitima essa opção.
De modo historicamente mais próximo é razoavelmente ajustado identificar duas
referências fundamentais para o progresso do ideário liberal.
A primeira, para reconhecer que, embora a ideia do liberalismo remonte aos alvores do
período do Iluminismo, é fundamentalmente com o pensamento de John Locke, que as
teses liberais ganham corpo e sustentação. Por isso John Locke (1632-1704) é tomado
por muitos como sendo o Pai do liberalismo. Para essa interpretação muito contribuem
as teses que elaborou, nomeadamente a propósito do contrato social e da tolerância. É
de Locke a ideia, tão central para esta reflexão, que a Paz tem que assentar em Homens
livres e iguais (Locke, 1689).1
Para ele os Homens nascem na posse de direitos naturais, num estado de natureza
caraterizado por Paz, concórdia e harmonia. As realidades de vida coletiva conduzem,
porém à necessidade de práticas regulatórias e, por essa via, à organização política da
sociedade e, portanto, ao Estado, ente que, fundamentado na escolha livre dos Homens,
traduz um pacto social (Mello, 2000: 85).
Sem ignorar a Revolução Gloriosa e a Revolução Americana, a segunda grande referência
para a afirmação e expansão das ideias liberais encontra-se na Revolução Francesa. Foi
com ela, em particular com o pensamento que a inspirou e que marcou a sua fase inicial
que, em termos com verdadeiro e significativo impacto na sociedade, se consolidou e
expandiu uma fonte particularmente forte dos ventos da visão liberal. Pelo menos
enquanto ventos consistentes e reiterados. Ventos que foram realmente ventos da
História e que sopraram por muitas geografias.
Por isso o tempo pós-Revolução Francesa, a Idade Contemporânea, é o tempo em que,
com mais propriedade, se pode tentar identificar e compreender a relação entre visão
liberal e Segurança.
Entender a Segurança
A ideia de Segurança é tão velha como o Homem. Primeiro sob a perspetiva da mera
sobrevivência individual. Depois alargando progressivamente o seu âmbito à proteção da
família, do clã e da tribo.
No seu âmbito a Segurança corresponde a uma prática política e pública decorrente da
necessidade de regulação da vida coletiva. Na sua natureza é uma condição indispensável
à vida social. Barry Buzan compreendeu a Segurança como a special kind of politics or
above politics (Buzan et al, 1997: 23).
Mas importa menos definir com exatidão o conceito de Segurança do que perceber a sua
necessidade e identificar as vias que a construam, a promovam e a sustentem.
1 Locke, John (1978). Segundo Tratado sobre o Governo Civil, São Paulo: ed. Abril Cultural, edição de
1689).
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Naturalmente que as diversas fórmulas de Segurança decorrem e atendem aos contextos
moral, histórico, político e estratégico em que se inscrevem (Pinto, 2013: 806).
Enquanto prática regulatória de âmbito coletivo, a Segurança foi-se estruturando na
perspetiva do outro. De quem era compreendido e receado como um potencial agressor.
Quando da tribo se evoluiu para a Nação o modelo de construção da Segurança continuou
a ser basicamente esse. Sob uma ótica mais coletiva e, portanto, mais política, o
agressor, ou simplesmente o agressor potencial, passou a ser tido como o Inimigo e ao
modelo, passando a estar referenciado ao Estado, chamou-se de Segurança Nacional.
Os objetivos desta Segurança, agora de natureza estatocêntrica, permaneceram no
essencial os mesmos, apenas alargados para a dimensão da Nação e politicamente
traduzidos pelos valores da defesa da independência nacional, da afirmação da soberania
e da preservação da integridade territorial.
Tratou-se de uma fórmula binária. Nós e os outros. A compreensão de Poder que séculos
mais tarde foi conceptualmente elaborada e que continua a manter pertinência e
legitimidade, ainda que não de forma exclusiva, tem aqui o seu fundamento. O Poder
percebido como a capacidade de impor a vontade própria à vontade dos outros.
Segurança, Guerra e Estratégia
Se um Inimigo, mesmo que apenas potencial, pressupõe-se a Guerra. Pelo menos o
risco e a probabilidade da Guerra. E se essa equação contém duas vontades opostas,
ambas inteligentes e ambas de natureza política, o quadro é o de um exercício
característico da Estratégia.
Assenta nisto a correlação entre as ideias de Guerra, de Estratégia e de Segurança. Nas
suas géneses e, em particular, no que respeita à evolução da compreensão que,
relativamente a cada uma delas, se foi afirmando.
Historicamente foi mais do que uma correlação. Teve aspetos de manifesto sincretismo.
De facto e durante muitos séculos, basicamente desde a Grécia Antiga, Guerra e
Estratégia foram ideias dificilmente dissociáveis. O que também implica que durante todo
esse longo percurso a Estratégia foi percebida como algo apenas respeitante ao contexto
bélico.
Foi apenas na primeira metade do século XIX que no Mundo Ocidental a Guerra foi
assumida como algo muito mais vasto e complexo do que um processo exclusivamente
militar. Esse tremendo salto conceptual filiou-se no pensamento de Carl von Clausewitz,
tornado público em 1832 com a publicação do seu monumental tratado “Da Guerra”.
Não teria verdadeiro fundamento pretender relacionar diretamente Clausewitz com o
ideário liberal. Mas é verdade que na sua obra, Clausewitz, se refletiu por um lado, a sua
experiência e observação enquanto participante ativo nas campanhas europeias do
período napoleónico e imediatamente posterior, também refletiu, por outro, uma
compreensão da organização da sociedade e do Estado marcada pela influência da
ideia liberal.
Pela primeira vez no Mundo ocidental a Guerra, pese embora a presença da violência e
as suas dramáticas consequências, perdeu o seu caráter dir-se-ia de “jogo de xadrez em
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ambiente indefinido e quase abstrato”, de vinculação discutível e sobretudo ligada à
vontade do soberano, para passar a ser olhada como um fenómeno integrante de um
contexto político, económico e social. A Guerra tornou-se uma coisa pública, respeitante
à Nação e ao conjunto da sociedade e não aos militares.
Clausewitz foi categórico na subordinação da Guerra à Política. A essa luz tornou explícitos
preceitos até então nunca claramente formulados.
No seu conjunto esses preceitos definiram e regularam a Guerra em moldes novos e
radicalmente diferentes, acentuando que a Guerra é um instrumento da Política, que não
tem objetivos ou lógica próprios, que antes visa satisfazer as finalidades da Política em
obediência e em coerência com a lógica dessa mesma Política. Uma lógica que deve,
portanto, nortear a ação estratégica, compreendida como apenas militar, e que deve ter
a Paz como o seu propósito, assim se evidenciando a Paz como sendo o verdadeiro fim
da Guerra (Clausewitz, 1976)
Esta inédita e tão diferente visão marcou de facto um extraordinário momento de ruptura.
Contudo e apesar desta nova e tão desafiante abordagem, os conceitos de Estratégia e
de Segurança permaneceram imbricados ainda durante largo tempo.
Mas ambos ganharam plenamente a dimensão de práticas públicas, respeitantes ao
conjunto social e ao Estado e regidas pelo superior valor e responsabilidade da Política.
O alicerce dessa situação de interpenetração dos dois conceitos encontra-se na
convergência e até na sobreposição de dois aspetos principais. A Segurança era assente
e quase que exclusivamente encerrada na dimensão militar, e os meios com que se
contava para a ação estratégica eram fundamentalmente os meios militares.
Tardou a que os dois conceitos se individualizassem. Enquanto referência, o ser humano
esteve presente e foi decisivamente marcante em ambas as evoluções.
Foi na primeira metade do século XX que melhor se percebeu que, para bem servir os
objetivos da Política, a Estratégica carecia de usar todos os recursos disponíveis. Os de
natureza material, de que os militares eram apenas uns, e também os intangíveis, os de
natureza moral (Hart, 1991: 322).
Quando, por esta via, o universo da Estratégia se abriu para dimensões como a
económica, a social, a cultural e a psicológica, o conjunto da sociedade e com isso o
Homem, foram trazidos para o âmago daão estratégica.
A consequente necessidade de assegurar o bom e útil emprego de todas essas dimensões
em conjugação e em simultaneidade com o emprego da dimensão militar, tornou muito
mais saliente a função tutelar e reguladora da Política, tanto como definidora das
finalidades, mas igualmente como guia e como indispensável instrumento de controlo da
ação. E é despiciendo salientar a obrigatória intervenção humana no domínio da Política.
Por outro lado, a convocatória, tanto para o axis como para a praxis da Estratégia, dos
recursos intangíveis, como o moral, a vontade ou o patriotismo, todos valores com origem
e repercussão no ser humano, acentuou a nova importância que, designadamente a partir
da primeira metade do século XX, foi reconhecida ao valor e ao papel do Homem.
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Evolução recente dos modelos de Segurança
posteriormente o percurso da ideia de Segurança veio a conhecer um novo
desenvolvimento apreciável. Um desenvolvimento identicamente no sentido do humano
e nessa dimensão muito significativo. O que decorreu da natural e obrigatória
dependência e subordinação da Segurança em relação ao contexto político e estratégico
em que se inscreve e que deve servir.
No fundamental o paradigma clássico de uma Segurança orientada para as questões
atinentes à independência, à soberania e à manutenção do território permaneceu
inalterado, até ao fim da Guerra Fria. Apenas modificado pela compreensão que nas
circunstâncias muito exigentes que se foram revelando e confirmando, a Segurança
Nacional seria melhor assegurada num quadro coletivo, agregando Aliados e Parceiros
em torno de valores e objetivos comuns e de compromissos tuos. Mas essa foi uma
mudança basicamente instrumental.
Nos seus fundamentos a ideia de Segurança Coletiva, que de algum modo se tentou que
existisse após a GM e que teve evidente consagração no pós Guerra Mundial, não
diferia e não difere do modelo da Segurança Nacional. É assim quanto aos seus objetivos
e quanto à identificação das ameaças e ao tipo de recursos que mobiliza.
Em ambas essas figuras, Segurança Nacional e Segurança Coletiva, o Homem é
referência, ainda que num registo que talvez se posa considerar como apenas implícito.
Em ambas está presente a preocupação em afirmar e preservar a liberdade, condição
indispensável à existência digna e responsável das Pessoas.
No ambiente do pós-Guerra Fria, tudo isso se manteve. Tanto no quadro dos Estados
como no quadro das Organizações Internacionais que integram a Segurança no seu
múnus. Seria estranho que assim o fosse. Mas muitos dos parâmetros definidores da
Segurança conheceram então e continuam a conhecer hoje, uma considerável evolução.
Deixou de se estar focado num Inimigo potencial, identificou-se a cooperação como uma
via de inestimável valor, percebeu-se que para além da clássica expressão da coerção,
aliás cada vez mais difícil de afirmar, o Poder se exprimia também por influência e até
por atratividade, relacionou-se insegurança com exclusão, ao vetor militar enquanto pilar
de Segurança e num plano agora de importância equivalente, juntaram-se outros como
o diplomático, o económico, o social e o cultural. Todos eles tutelados pela ação política,
como forma de garantir que a sua ação, ainda que diversa na sua natureza, seja
convergente com os fins e seja igualmente coerente e coordenada.
Percebeu-se também que não era possível ignorar o caráter intensamente comunicacional
do tempo atual, e que, ao contrário, era mesmo positivo que se utilizasse essa nova
faceta, utilizando-a na identificação e construção de soluções suscetíveis de receberem
um acolhimento favorável quando expostas ao escrutínio político e público, assim se
tornando porventura mais conformes à ética e à moral e, de um ponto de vista
pragmático, mais sustentáveis.
Os objetivos clássicos permaneceram inalterados e mantiveram a sua natural e destacada
consagração nos múltiplos quadros constitucionais, mas a eles foram adicionadas
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preocupações com a salvaguarda da vida, dos valores, dos direitos e dos bens das
Pessoas.
A esta nova noção, fundamentalmente caracterizada pela multidimensionalidade das
ações e pela busca da cooperação, se chama Segurança Cooperativa. (Pinto, 2013: 808).
Uma fórmula que, agora e de maneira explícita, tem as Pessoas no seu centro, tanto
como sujeitos ativos, como na qualidade de objeto da Segurança.
Por isso frequentemente se este modelo de Segurança ser também designado como
Segurança Humana. Mas talvez seja mais ajustado designá-lo como Segurança
Cooperativa e conferir-lhe uma forte dimensão humana, atenta aos imperativos das
Pessoas, seja no plano da sua inerente dignidade, seja nos múltiplos planos das suas
condições materiais de vida. Da nutrição, à escolaridade, à saúde ou às infraestruturas
básicas.
Articulando de modo muito evidente Segurança com Desenvolvimento e Bem Estar.
Consagrando um nexo entre esses dois objetivos primaciais e permanentes.
Mais uma vez assim se cruzam os caminhos das ideias liberais e da Segurança,
convidando a uma leitura a isso favorável e que assente no reconhecimento que, também
no que se reporta à Segurança, “o Homem é visto como um fim e não como um meio”,
fazendo aqui uma apropriação do preceito de Immanuel Kant (1724-1804) 2
A centragem no Homem faz também com que a lógica última da Segurança Cooperativa
seja do tipo win-win, afastando-se assim das lógicas das Segurança Nacional e Coletiva
que, muito naturalmente, são win-lose (Mihalka, 2001: 3)
Esta mais recente fórmula não é binária, mas sim compósita, envolvendo múltiplos
Atores. É também uma fórmula cuja gestão não se pretende hierarquizada nem
setorializada ou segmentada, mas antes que seja feita em rede, dando sentido
operacional à interconectividade que carateriza o Mundo do presente e que se antevê
reforçada no futuro.
Os modelos de Segurança no tempo presente
O que realmente hoje se verifica no Mundo é a coexistência natural dos três modelos
básicos de Segurança: o Nacional, o Coletivo e o Cooperativo.
As exigências da Segurança Nacional não são descartáveis para ninguém, o modo mais
eficaz de as observar é o modo coletivo e a fórmula cooperativa vai-se progressivamente
afirmando, seja porque as circunstâncias políticas e estratégicas assim o recomendam e
permitem, seja porque, verificando-se essa condição de possibilidade, os seus
fundamentos vão ganhando uma adesão crescente.
Nunca perdendo de vista a Segurança puramente Nacional, uma síntese enunciável, uma
formulação dir-se-ia “em banda larga”, corresponde à visão que aquilo que hoje mais
generalizadamente se pratica corresponde a Segurança Coletiva contra ninguém e
Segurança Cooperativa com todos os que a queiram promover e praticar (Pinto, 2013:
808).
2 Kant, Immanuel (2013). Crítica da Razão Pura. Lisboa: ed Fundação Calouste Gulbenkian, edição.
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Como é natural a dependência do contexto político e estratégico determina que o teor e
a intensidade com que este triplo entendimento da Segurança se manifesta sejam
diferentes consoante os distintos espaços geopolíticos.
O multilateralismo de visão liberal e a validação da Segurança
Tem também aqui lugar recordar que, independentemente do modelo a que respeitam,
os objetivos da Segurança têm uma validade reforçada quando emanam de vontades
políticas cuja matriz legitimadora é de natureza liberal, tem consagração constitucional.
e beneficia de escrutínio público. Sob esse enquadramento mais exigente as visões e as
decisões, mesmo que porventura mais difíceis de afirmar, tornam-se particularmente
robustas.
No plano internacional esta observação conduz-nos à reflexão sobre o tipo de
instrumentos de regulação e tendencialmente ordenadores que melhor podem estimular
uma agenda securitária legítima, adequada e assim compreendida.
Nessa ótica, a visão liberal que tem informado o multilateralismo surge novamente como
um privilegiado fator potenciador. Sobretudo se nos reportarmos à visão que prevaleceu
no s-Guerra Fria e se empenhadamente a expurgarmos das perspetivas ditas neo-
liberais e economicistas que, em particular no início desse período, também se
afirmaram.
É preciso, porém dar corpo a um renovado e mais profundo multilateralismo, que acentue
o enfoque nas Pessoas e que, sem deixar de reconhecer e de atentar em aspetos de
competição, de oposição e de perturbação políticos e estratégicos, se afaste ou pelo
menos se tente afastar, das chamadas Geopolíticas de Poder, centradas numa
competição ou pelo menos num antagonismo político e estratégico vistos como
praticamente inevitáveis.
A renovação e aprofundamento do multilateralismo que por enquanto conhecemos deve
incluir o reconhecimento da existência de outros e relevantes Atores, para além dos
Estados e das Organizações Internacionais. A presença na cena política e estratégica
internacional do presente das grandes empresas transnacionais, das Igrejas, dos
operadores da comunicação social, das Regiões, das redes de cidades, das ONGD e das
Pessoas é um dado indesmentível. Mas até aqui estes outros Atores não têm sido
suficientemente convocados para contribuírem de modo construtivo para as agendas
globais e, por essa via, a comprometerem-se com elas.
Mas, para além do alargamento aos novos Atores, importará também a um renovado
multilateralismo reconhecer e observar a abrangência contemporânea do âmbito da
Segurança, daí retirando como normativo fundamental que a Segurança não pode ser
promovida e construída contra as Pessoas e sem as Pessoas. O que é um preceito a que
as teses das Geopolíticas de Poder, não atendem, nem aparentam mostrar a preocupação
de atenderem.
Se sobrelevar no Mundo a lucidez e a determinação para trilhar esta via de refrescamento
e aprofundamento do multilateralismo de correta inspiração liberal, será mais fácil
encontrar soluções que melhor satisfaçam valores tão essenciais como a liberdade e a
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democracia. E que melhor fundamentem uma Segurança mais humana, mais equitativa
e mais legítima (Guterres, 2020).
Não será um exercício simples.
Numa perspetiva imediatista as construções mentais ligadas às Geopolíticas de Poder
sugerem conter uma grande evidência. Uma evidência que de resto é servida por muitos
indicadores e abundantes estatísticas de que se procuram extrair tendências e conclusões
achadas inapeláveis.
Porém, uma leitura mais atenta, mais ambiciosa e mais exigente aponta que não pode
ser negligenciável atentar que a agenda que o Mundo tem pela frente está preenchida
por desafios muito marcantes, como são os ligados ao ambiente, às alterações climáticas,
ao controle de pandemias, aos riscos de proliferação de Armas de Destruição Massivas,
em particular as Armas Nucleares, ao ciberespaço, ao progresso tecnológico e às
possibilidade e riscos que dele se antecipam, aos movimentos migratórios desregulados,
às crises da democracia representativa e da economia de mercado, à fome, à escassez
sistémica de recursos, à pobreza e à persistência de amplas manchas de
subdesenvolvimento.
São desafios que, pela sua natureza, estão para além da simples escala de prioridades e
que, com propriedade, devem ser rotulados como existenciais.
É impossível deixar de reconhecer que tudo isso reclama mais cooperação e menos
competição. E também que tudo isso define uma agenda essencial de promoção,
construção e sustentação da Segurança como um valor individual e coletivo, definindo
uma arquitetura de Segurança de caráter multinível: local, regional e global.
A relevância e a premência desses desafios superam as considerações que se façam
acerca dos riscos subjacentes a um e outro dos dois modelos, Geopolítica de Poder e
Cooperação Multilateral.
Nessa linha vão as abordagens que têm informado os Relatórios de Desenvolvimento
Humano da Nações Unidas e que se baseiam na identificação das possibilidade e
limitações que se encontram nos campos político, económico e social, visando que seja
desejavelmente possível promover e sustentar as dimensões de Segurança que importam
ao Homem (Rezende, 2016: 307).3
O que se espera é o enunciado de propostas e a construção de soluções políticas e práticas
que cubram a pluralidade da vida contemporânea, incluindo as novas ameaças e riscos,
e que sejam suscetíveis de agregarem todos os Atores da Sociedade Internacional.
A abordagem multilateralista, que se deseja renovada e valorizada, sendo certamente
muito mais exigente, é a única cuja natureza e inerente objetivo permitirá trilhar essa
via e assim servir os propósitos comuns e superiores da Humanidade. Um
multilateralismo que traga resultados às Pessoas que visa servir (Guterres, 2020).
3 No quadro do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) são consideradas sete dimensões
da Segurança Humana: económica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, política e comunitária
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Considerações finais
Ainda que não seja realista estabelecer relações de causalidade direta entre os valores e
as propostas do liberalismo e o entendimento relativo à Segurança, é um facto que a
noção de Segurança e nomeadamente a sua evolução mais recente, têm vindo a ser
inspirados e influenciados por valores intrínsecos à visão liberal.
Duas circunstâncias definem conjugadamente a matriz dessa relação. Por um lado, o
cunho crescentemente liberal do contexto político e estratégico e, por outro lado, a
também crescente correlação e subordinação da Segurança a esse contexto.
São também dois os planos em que isso é particularmente manifesto e decisivo.
Um, respeita à moderna centralidade das Pessoas no quadro da Segurança. Seja como
Atores, seja como objeto.
O segundo, tem que ver com compreensão da Segurança enquanto indispensável,
permanente e muito relevante política pública que, como tal e para ser inteiramente
legítima, carece de validação, regulação, escrutínio e fiscalização por parte da sociedade.
Os propósitos contemporâneos de uma Segurança atenta à dimensão humana,
particularmente orientados para as dimensões política, económica e social da vida, que
nas últimas décadas têm vindo ser enunciados e promovidos, designadamente pela
Organização das Nações Unidas, constituem a este propósito um claro paradigma.
Um paradigma que será melhor servido por um renovado multilateralismo, associando
tão articuladamente como possível todos os Atores da sociedade internacional e cobrindo
a pluralidade das ameaça e riscos que hoje se identificam e afirmam.
Compreender, construir e manter a Segurança global sob essa perspectiva humana
significa optar por ter o Homem no centro da ão, por estimular a liberdade e a inclusão
e, consequentemente, por promover uma Paz Justa e verdadeira.
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