OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
92
CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
ltome@autonoma.pt
Professor Catedrático na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), onde é Director do
Departamento de Relações Internacionais, Director da unidade de investigação OBSERVARE-
Observatório de Relações Exteriores e Coordenador do Doutoramento em Relações Internacionais:
Geopolítica e Geoeconomia Investigador nas áreas das Relações Internacionais, Geopolítica e
Estudos de Segurança especializado nas regiões Euro-Atlântica, EurAsiática e Ásia-Pacífico.
É autor e coautor de mais de uma dezena de livros e de inúmeros ensaios e artigos publicados nas
revistas da especialidade.
Resumo
O que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir entre “ordem mundial” e “ordem
internacional”? Em que bases emergiu a ordem liberal e quais os factores que contribuem
para a sua erosão? Este artigo procura responder a estas questões, num texto dividido em
quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de “ordem” nas relações internacionais (RI),
a diferenciação entre ordem “internacional” e “mundial” e a nossa concepção de “ordem
internacional liberal”. Na segunda, justificamos o paradoxo de considerarmos que a ordem
liberal foi construída sobre o que muitos apelidam de “sistema vestefaliano” embora
rejeitemos essa designação e tipificação e, por outro lado, a tentativa inicial de construir uma
ordem liberal mundial a seguir à I Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na
terceira parte demonstramos a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II
Guerra Mundial, no quadro de uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria.
E na quarta evidenciamos que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria,
mas que esse processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a
sua desconstrução.
Palavras chave
Ordem Internacional, Ordem Mundial, Liberalismo, Relações Internacionais, História
Como citar este artigo
Tomé, Luis (2021). Construção e Desconstrução da Ordem Internacional Liberal. Janus.net,
e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-
2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.6
Artigo recebido em 30 de Agosto de 2021 e aceite para publicação em 13 de Outubro de
2021
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Construção e desconstrução da ordem internacional liberal
Luis Tomé
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CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO
DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
Introdução
Alguns dos debates mais emblemáticos e intensos nas Relações Internacionais incidem
sobre a caracterização da ordem internacional. Curiosamente, as muitas visões distintas
e contrastantes convergem na percepção de erosão da “ordem liberal”, tanto entre os
seus defensores como entre os seus opositores, alvitrando desde «O Fim da Ordem
Mundial Americana» (Acharya, 2014) a «Uma Nova Ordem Mundial Made in China»
(Gazibo e Chantal, 2011), «Ordem Mundial 2.0» (Haass, 2017), «um Mundo Pós-
Ocidental» (Flockhart et al., 2014), «A Emergência do Resto» (Beeson, 2020: 17-27) ou
«O Regresso da Anarquia» (Gaspar, 2019). Se para uns terá chegado ao fim a ordem
liberal «que nunca existiu» (Barnet, 2019; Ferguson e Zakaria, 2017), para outros «a
ordem liberal está viciada» (Colgan e Keohane, 2017) e outros questionam «Porque é
que o Internacionalismo Liberal Falhou» (Mead, 2021) ou se «A China Ganhou»
(Mahbubani, 2020). Enquanto alguns entendem que a ordem liberal é uma espécie de
regime constitucional da sociedade internacional e que, portanto, a sua continuidade não
depende das oscilações estratégicas das grandes potências, incluindo os Estados Unidos
(Ikenberry e Nexon, 2019), outros consideram que a ordem liberal pode existir num
sistema unipolar «onde o Estado líder é uma democracia liberal» (Mearsheimer, 2019:
7) ou que «Trump pode ser o catalisador involuntário para uma era mais equitativa... um
mundo multipolar» (Deo and Phatak, 2016). Se uns consideram os EUA um hegemon
benigno (Monteiro, 2014; Ikenberry e Nexon, 2019, Mearsheimer, 2018), outros
condenam o “hegemonismo” dos EUA e esperam que «Um período de colapso abra
possibilidades de criação de uma nova ordem mundial; esperançosamente, uma ordem
mais justa, estável e pacífica do que tem sido experienciado» (Karaganov e Suslov, 2019:
72). Se uns falam na emergência de uma “segunda” Guerra Fria ou até que EUA e China
poderão estar «destinados a entrar em Guerra» (Allison, 2017), outros acreditam que
«Não Haverá uma Nova Guerra Fria» (Christensen, 2021; Nexon, 2021) ou propõem um
“novo concerto de potências” que «Previna a Catástrofe e Promova Estabilidade num
Mundo Multipolar» (Hass e Kupchan, 2021). E enquanto para uns a ordem internacional
liberal «estava destinada a falhar desde o início, pois continha as sementes da sua própria
destruição», e que será inevitalmente substituida por uma «ordem realista»
(Mearsheimer, 2019: 7-9), outros sustentam que é possível salvar a ordem liberal
através de um «novo consenso normativo» (Kupchan, 2014 e Hass, 2021) ou
reformando-a (Colgan e Keohane, 2017 e Kundnani, 2017).
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A estes debates somam-se confusões conceptuais promovidas também por dirigentes
políticos. Por exemplo, o Presidente Francês Emmanuel Macron, num discurso na
Assembleia-Geral da ONU, falou numa profunda crise na «ordre international libéral
westphalien», transcrita como «Westphalian liberal world order» na versão oficial em
inglês (Macron, 2018)
1
. Ou seja, Macron não se refere a uma “ordem liberal
vestefaliana” (portanto, assumindo numa mesma o que para muitos são duas ordens
distintas e opostas, a vestefaliana e a liberal) como usa indistintamente ordem
“internacional” e “mundial” apenas com variação no idioma em que se exprime.
Mas o que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir ordem mundial” e “ordem
internacional” ou significam o mesmo? Por outro lado, em que bases emergiu a ordem
liberal e quais os factores que contribuem para a sua erosão e crise? Este artigo procura
responder a estas questões, explorando a construção da ordem internacional liberal e as
várias razões que explicam a sua desconstrução, perscrutando também os seus
elementos constitutivos e os dilemas e contradições que lhe são inerentes.
Em linha com outros trabalhos nossos, seguimos aqui uma “abordagem eclética
2
e as
“teorias da complexidade”
3
. Com base num modelo descritivo-analítico, e apoiado em
literatura especializada e documentos e discursos oficiais, apresentamos os nossos
argumentos num texto dividido em quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de
“ordem” nas relações internacionais, a diferenciação entre ordem “internacional” e
“mundial” e a nossa concepção de “ordem internacional liberal”. Na segunda justificamos
o paradoxo de considerarmos que a ordem liberal foi construída sobre o que muitos
apelidam de “sistema vestefaliano” embora rejeitemos essa designação e tipificação e,
por outro lado, a tentativa inicial de construir uma ordem liberal mundial a seguir à I
Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na terceira parte demonstramos
a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II Guerra Mundial, no quadro de
uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria. E na quarta evidenciamos
que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria, mas que esse
processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a sua
desconstrução.
1
A frase completa de E. Macron é a seguinte, nas duas línguas: «Nous vivons aujourd’hui une crise profonde
de l’ordre international libéral westphalien que nous avons connu» / «We are currently experiencing a deep
crisis of the Westphalian liberal world order that we have known».
2
A abordagem eclética assume que nenhuma das tradições de pesquisa/paradigmas/teorias convencionais
das RI, isoladamente e por si só, consegue abarcar e explicar toda a realidade internacional que, por
natureza, é complexa, dinâmica, imprevisível, adaptativa e coevolutiva. Assim, limitando o risco de a priori
alienar aspectos que podem ser cruciais, com pragmatismo e prudência, a abordagem eclética ultrapassa
as “expectativas naturais” dessas teorias, combina diferentes hipóteses explicativas e aproveita o potencial
das complementaridades aspecto ainda mais relevante pelas visões e propostas opostas e com que
frequentemente se digladiam as teorias liberais, realistas, construtivistas, sistémicas, funcionalistas,
estruturalistas, críticas e outras a respeito da ordem internacional. Para uma mais detalhada explicação
nossa sobre a “abordagem eclética” ver Tomé (2016).
3
Das teorias da complexidade extraímos, sobretudo, a assumpção de “não-linearidade”, que o resultado dos
comportamentos e interacções é “naturalmente imprevisível” e a noção de “sistemas complexos
adaptativos”, enfatizando as ideias de complexidade, coadaptação e coevolução dos actores e do sistema.
Uma nossa mais desenvolvida explicação acerca da pertinência e utilidade das teorias da complexidade e
da noção de “sistemas complexos adaptativosna análise das Relações Internacionais encontra-se em Tomé
e Açikalin (2019). Para uma mais ampla explicitação das teorias do caos e da complexidade e o seu emprego
em diversas áreas científicas, designadamente nas ciências sociais e humanas ver, por exemplo, Erçetin
and Açikalin (2020).
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1. Ordem nas relações internacionais e ordem internacional liberal
Falar de “ordem” nas relações internacionais pode parecer contraditório, considerando o
carácter relativamente “anárquico” do sistema internacional radicado na soberania dos
Estados. Essa aparente contradição explica que vários teóricos evitem utilizar o termo.
Por exemplo, Raymond Aron refere-se somente a “paz”, que não é obviamente a mesma
coisa: para ele, as relações internacionais têm apenas duas formas, a guerra e a paz,
entendendo esta como «a suspensão, mais ou menos duradoura, de formas violentas de
rivalidade entre unidades políticas», descortinando «três tipos de paz: equilíbrio,
hegemonia e império» (Aron, 1984: 158). Já Hedley Bull prefere falar em “sociedade
internacional”, concebida como uma «sociedade de Estados [...] quando um grupo de
Estados, conscientes de certos interesses e valores comuns, formam uma sociedade na
medida em que concebem para si próprios limites nas suas relações mútuas por um
conjunto comum de regras e participam na atividade de instituições comuns» (Bull, 1977:
13). Pelo seu caráter exclusivamente estato-cêntrico, estas visões de teóricos realistas
são contestadas pelas teorias liberais, construtivistas, funcionalistas, estruturalistas,
críticas e outras. E, por exemplo, numa perspetiva radicalmente distinta estão aqueles
que sobrelevam o papel e o impacto dos actores não-estatais, capazes não de
influenciar as decisões dos Estados, mas também o sistema internacional e até de
promover uma «sociedade civil global» (Keck e Sikkink, 1998).
Facto é que também entre os realistas muitos que assumem o conceito de “ordem”
nas RI, como John J. Mearsheimer (2019: 9) que a define simplesmente como «um grupo
organizado de instituições internacionais que ajudam a governar as interacções entre os
Estados-membros». Na mesma linha, Bart M.J. Szewczyk (2019: 34) concebe “ordem”
como «um conjunto de regras e normas para governar o comportamento Estatal e não-
estatal, através do direito internacional baseado na Carta das Nações Unidas, tratados
multilaterais e normas políticas decorrentes da prática estatal». Todavia, enquanto
Szewczyk entende que o objectivo primário da ordem é «minimizar a violência e
proporcionar estabilidade. O seu oposto era a "desordem", caracterizada pela guerra,
conflito e incerteza.» (ibid.), Mearsheimer (2019: 9, nota 3) considera que ordem «não
é o oposto de desordem, termo que remete para caos e conflito».
Outra questão concerne à utilização, frequentemente de forma indistinta, das
terminologias “ordem internacional” e “ordem mundial além de “ordem global” que
alguns referem (Hurrel, 2007; Lo, 2020). O seu uso e distinção raras vezes é explicada
pelos autores (Bertrand, 2004), mas é relevante para nós aqui. Hedley Bull faz essa
diferença, considerando que «A ordem mundial é mais vasta» e «do qual o sistema
interestatal é apenas parte» (Bull, 1977: 21). Acrescenta que «A ordem mundial é mais
fundamental e primordial do que a ordem internacional porque as unidades finais da
sociedade de toda a humanidade não o Estados (ou nações, tribos, impérios, classes
ou partidos), mas seres humanos individuais [...]. A ordem mundial é moralmente
superior à ordem internacional», uma vez que os seus valores são os de toda a
Humanidade, e não apenas os que prevalecem na sociedade de Estados (ibid.). Na
mesma linha, embora com pressupostos distintos, James N. Rosenau, uma das principais
figuras da escola liberal das RI, desenvolveu o modelo de «bifurcação» entre dois mundos
no que apelidou de era da «política pós-internacional»: fundamentalmente,
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“internacionalcaracteriza a ordem no «mundo estato-cêntrico» entre Estados «limitados
pela soberania», utilizando “pós-internacional”, “mundial” ou “global” para descrever a
ordem no «mundo multicêntrico» dos actores não-estatais «livres de soberania»
(Rosenau, 1990 e 1997).
Em nosso entender, distinguir entre ordem “internacional” e “mundial” pretendendo que
a primeira se refere a uma ordem entre Estados soberanos e a segunda a uma que
envolva também os actores não-estatais, o faz sentido. A diferença é conceptualmente
pertinente e muito útil, mas com outros fundamentos. Na nossa concepção, “ordem
internacional” refere e caracteriza o padrão proeminente de ideias, valores, interesses,
regras, instituições, comportamentos e interacções entre actores, estatais e não-estatais,
podendo existir tanto numa escala regional como mundial, e incluir apenas uma parte
dos actores ou a sua generalidade. Quando a ordem internacional abrange o espaço-
mundo e os actores principais, transforma-se em “ordem mundial”. Dito de outro modo,
a ordem mundial pode incluir várias e distintas ordens internacionais, mas uma ordem
internacional é mundial ou global se e quando alargada à escala planetária. A distinção
assim feita é importante porque um dos nossos argumentos, como veremos adiante, é
que a ordem internacional liberal só se tornou mundial no final da Guerra Fria.
Por outro lado, ordem não é sinónimo de paz nem de estabilidade nem ausência de
competição, tal como não é simplesmente o contrário de desordem (caos e conflito) nem
um conceito caracterizador da balança de poder numa região ou no mundo. Mas está
associada a tudo isso, porquanto ordem atenua o carácter anárquico do sistema
internacional e o recurso à violência, limita a dependência dos jogos de poder e
proporciona um certo tipo de autoridade, regulação e estabilidade na convivência entre
actores. Uma ordem internacional pode existir e ser referenciada em função da estrutura
de poder, mas é mais do que o simples reflexo disso. A construção da ordem liberal está
ligada à supremacia do “Ocidente” e à hegemonia dos Estados Unidos, mas "liberal"
significa um conjunto específico de valores, normas e instituições, naturalmente distinto
do de outras visões e ordens internacionais. Importa, por isso, explicitar os seus
elementos constitutivos.
A ordem internacional liberal é normalmente caracterizada em torno de duas ideias
primordiais: por um lado, é «aberta e baseada em regras», em contraste com outra
«organizada em blocos rivais ou esferas regionais exclusivas» (Ikenberry, 2011b: xii),
estando «consagrada em instituições como as Nações Unidas e normas como o
multilateralismo» (Ikenberry, 2011a: 56); por outro, a associação entre liberalismo
político e liberalismo económico, também referidos à luz de termos como “democracia”
e “capitalismo”, o que para alguns cria «uma ordem internacional profundamente
dependente da natureza interna das unidades que a compõem» (Simão, 2019: 42).
Assim, a ordem internacional liberal inclui «mercados abertos, instituições internacionais,
comunidade democrática de segurança cooperativa, mudança progressiva, resolução
colectiva de problemas, soberania partilhada, primado da lei» (Ikenberry, 2011b: 6). Ou
é «baseada principalmente na democracia, nos direitos humanos, no primado da lei, nas
economias de mercado e no comércio justo.» (Szewczyk, 2019: 34) e no pressuposto de
que «apenas a ordem liberal considera o indivíduo um actor central com direitos
inalienáveis» (ibid.: 35). Outros preferem caracterizar a ordem liberal desagregando
tematicamente os seus «três elementos: a ordem de segurança, a ordem económica e a
ordem de direitos humanos» (Kundnani, 2017: 4-8). À ordem liberal estão também
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frequentemente associadas teorias como as da “paz democrática”, “interdependência
económica” e Pax Americana.
Independentemente das múltiplas formas de a caracterizar e referenciar os seus
elementos constitutivos, entendemos que a ordem internacional liberal se baseia na
promoção da Democracia Liberal; na economia de mercado aberta e no comércio livre;
numa certa limitação das soberanias dos Estados e na partilha de responsabilidades,
através da criação conjunta de regras comuns, primado da lei, multilateralismo e ação
colectiva; na segurança colectiva (segurança por todos, para todos e em nome de todos);
na livre navegação dos mares; no acesso livre aos "bens comuns globais" e na
disseminação e protecção dos “bens públicos globais”; no reconhecimento da
legitimidade de diferentes actores internacionais, estatais e não-estatais; e numa
concepção dos Direitos Humanos que implica a salvaguarda da liberdade individual,
dignidade humana e respeito dos direitos inalienáveis do indivíduo.
Alguns destes elementos podem enformar outras ordens internacionais, mas, no seu
conjunto, definem e distinguem o que consideramos ordem internacional liberal. Por
outro lado, os elementos constitutivos indicados foram evoluindo e sendo adaptados ao
longo da construção da ordem internacional liberal. No entanto, deve salientar-se que
nem todos esses elementos são reconhecidos como parte da ordem liberal, quer pelos
seus opositores, quer também por alguns dos seus defensores; que a sua caracterização
geral não significa que os promotores da ordem liberal respeitem sempre e todos os seus
preceitos; e que tensões e contradições entre elementos constitutivos da ordem
liberal.
2. Ordens anteriores e tentativa inicial de construir uma ordem
internacional liberal
Ao longo da História, existiram múltiplas e distintas ordens internacionais, normalmente
associadas a poderes imperiais e autoridades divinais. Essas diversas ordens
internacionais foram sempre limitadas no tempo e também no espaço (com sucessivas e
coexistentes ordens na Europa, no Médio Oriente, na Ásia e, entretanto, também no
Continente Americano), mesmo que algumas se pretendessem “universais”. Devemos
reconhecer, todavia, que o “Ocidente” tem sido o principal inspirador e âncora de certas
ordens internacionais e também da ordem mundial de grande parte dos últimos séculos.
Com efeito, muitas das ideias, doutrinas e ideologias (do liberalismo ao nacionalismo,
passando pelo capitalismo, socialismo, democracia, Estado-nação, soberania,
multilateralismo, institucionalismo) que haveriam de marcar várias e distintas
mundivisões sobre “ordem internacional” surgiram na Europa e disseminaram-se fruto
do domínio e expansão colonial das potências europeias e, entretanto, da ascensão dos
Estados Unidos. Ainda assim, até ao Século XIX, partes substanciais do mundo e certos
actores, como o Império Otomano, a China ou o Japão, por exemplo, eram alheios a
essas ideias, e as ordens internacionais na Europa, na Ásia, no Médio Oriente e nas
Américas permaneciam largamente desconectadas entre si. Ou seja, existiam múltiplas
ordens internacionais regionais, mas não uma “ordem mundial”.
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A prévia ordem anárquica, mas não “vestefaliana”
Por outro lado, é muito frequente a ideia de que a ordem internacional liberal surgiu por
oposição e/ou foi construída sobre a “ordem vestefaliana”. Porém, não é adequado
associar aos Tratados de Vestefália (Münster e Osnabrück) de 1648 uma “ordem
internacional ou sequer um novo “sistema internacional”, normalmente descrito como
“sistema vestefaliano”. Conforme demonstra com particular clareza Luís Moita (2012), a
Paz de Vestefália que pôs fim à “Guerra dos Trinta anos” na Europa não representou a
origem do Estado nacional territorializado, não inaugurou o conceito de soberania e não
fundou o “moderno” sistema europeu de Estados-Nações. Sem escamotear a importância
dos Tratados de Vestefália, a ordem europeia em meados do Século XVII não
corresponde a um sistema homogéneo estato-cêntrico. Prevaleceu uma situação difusa,
nela coincidindo formações políticas muito diversas e sobrepostas (de impérios a
principados, passando por Estados, reinos e outros territórios organizados sob diversas
configurações e designações) com diferentes graus de autonomia e em que, no essencial,
o Estado era “principesco” e os regimes absolutistas. mais tarde, no decurso dos
Séculos XVIII e XIX, se assistiu à disseminação e consolidação dos Estados nacionais no
sentido moderno, incluindo as unificadas Itália (1870) e Alemanha (1871), sendo etapas
decisivas nesse processo as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) e a
Revolução Industrial. Segundo Luís Moita (2012: 38)
o Estado-Nação, no sentido moderno do termo, resulta historicamente de uma
confluência de elementos: por um lado, o fim do ancien régime ditado pela
revolução francesa, por outro, a emergência do capitalismo industrial. O
primeiro factor sublinha a dimensão político-institucional, o segundo a
dimensão sócio-económica do processo», acrescentando que «a origem do
moderno Estado-Nação se deve articular com a emergência da sociedade
industrial e com o fenómeno do nacionalismo (ibid.: 39).
Entretanto, após as Guerras Napoleónicas, as grandes potências europeias
(essencialmente, “impérios”) estabeleceram, no Congresso de Viena de 1815, um
“Concerto” a fim de evitar a guerra entre elas, manter a estabilidade no Velho Continente
e preservar as dinastias reinantes. Porém, o “concerto de Viena” foi de curta duração e
nunca constituiu, obviamente, uma verdadeira ordem mundial basta recordar, por
exemplo, que nas Américas a ordem internacional evoluiu distintamente entre várias
independências e a proeminência dos EUA, que no Médio Oriente e Norte de África a
ordem era, essencialmente, a Otomana” e que na Ásia Oriental era a do “Império do
Meio”. Por outro lado, o Congresso de Viena de 1815 foi apenas um de vários exemplos
de diplomacia multilateral que, na Europa, ao longo do Século XIX e no início do Século
XX, procurou regular certas questões e estipular regras de convivência
4
, a que se
somaram os muitos tratados bilaterais. Também ao longo do Século XIX, tirando partido
da dianteira na Revolução Industrial, o Reino Unido fomentou a sua primazia económico-
comercial e naval, promovendo uma economia e um comércio internacionalizados sob os
4
Outros exemplos salientes são os Congressos de San Stefano e de Berlim de 1878 (divisão dos Balcãs) ou
a Conferência de Berlim de 1884-85 (partilha de África).
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auspícios da Pax Britannica. Mas nem os concertos multilaterais nem a supremacia
britânica significaram “ordem mundiale nem sequer estabilidade internacional, tal como
não impediram novas guerras na Europa, nas Américas e na Ásia Oriental
5
.
Paralelamente, ocorreram transformações substanciais nas estruturas de poder quer na
Europa (por exemplo, por via do recuo do Império Otomano nos Balcãs e da unificação
da Itália e da Alemanha), que nas Américas (hegemonia dos EUA) quer na Ásia (declínio
da China e ascensão do Japão), salientando-se a emergência de novas grandes potências
no final do Século XIX/início do Século XX, designadamente a Alemanha, os Estados
Unidos e o Japão que não impactaram nos sistemas regionais como, a par das “velhas
grandes potências”, consolidaram uma estrutura de poder global multipolar.
Paradoxalmente, embora rejeitemos a designação de “ordem vestefaliana” pelas razões
atrás referidas, reconhecemos que o sistema internacional e as ordens internacionais
regionais que, no culo XIX e no início do Século XX se caracterizavam, genericamente,
pelos elementos que são comummente atribuídos ao tal “sistema vestefaliano”
correspondendo ao que John Mearsheimer (2019: 12-13) chama de “ordem realista” - ,
ou seja, formado por Estados nacionais soberanos alegadamente “iguais” em direitos e
obrigações, designadamente a não ingerência nos “assuntos internos” uns dos outros;
para atenuar o carácter inerentemente anárquico do sistema, os Estados têm o dever de
respeitar os compromissos assumidos (Pacta Sunt Servanda) e as regras que soberana
e conjuntamente estipulam (Direito Internacional); se e quando necessário, os Estados
soberanos resolvem e regulam certas questões internacionais através da concertação
multilateral (congressos e conferências had hoc). Ainda neste sistema, prevalece uma
lógica de comércio livre (imposto pelos “Ocidentais”, por exemplo, à China e ao Japão),
de domínios coloniais, de áreas de influência e de balança de poder, residindo
precisamente nos jogos e (des)equilíbrios entre as grandes potências a (des)ordem nas
relações internacionais.
Uma primeira tentativa, rapidamente desconstruída
Como corolário deste sistema e das evoluções e transformações ocorridas no final do
Século XIX/início do Século XX, ocorreu mais uma grande guerra entre potências
europeias que, entretanto, se alastrou e envolveu outras importantes potências não
europeias, no que ficaria para a História como a I Guerra Mundial, provocando uma
devastação sem precedentes. O final dessa Grande Guerra de 1914-18 foi marcado pela
ambição de criar uma “nova ordem mundial” visando garantir que não voltaria a ocorrer
um conflito dessa magnitude. Foi neste contexto que, entre os vencedores, sobressaíram
os Estados Unidos que definiram, pela primeira vez, aquelas que deveriam ser as linhas
orientadoras de uma nova ordem mundial”, configurando também a primeira real
tentativa de transpor para a ordem internacional a vio liberal. No seu discurso ao
Congresso Americano, em 2 Abril de 1917, onde pediu a declaração de guerra contra a
Alemanha, o Presidente Wilson justificou a entrada dos EUA no conflito para «tornar o
mundo seguro para a democracia» (Wilson, 1917). Menos de um ano depois, em 8 de
Janeiro de 1918, num novo discurso ao Congresso, o mesmo Presidente Americano,
5
Como as guerras da Crimeia de 1853-56, a Franco-Prussiana de 1870-71 ou as balcânicas de 1912-13;
entre os EUA e Espanha, em 1898; ou as “guerras do ópio” contra a China imperial, a guerra sino-japonesa
de 1894-95 ou a russo-japonesa de 1904-05.
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Democrata, articulou os seus famosos “14 pontos”, metade dos quais dedicados às
questões territoriais específicas entre os países beligerantes e os restantes prescrevendo
uma visão para a paz e a nova ordem mundial propondo, em síntese: uma “paz sem
vencidos nem humilhados”, o fim dos acordos secretos e a transparência nas relações
internacionais, a “absoluta” livre navegação dos mares, o comércio livre, a redução dos
armamentos, «A free, open-minded, and absolutely impartial adjustment of all colonial
claims, based upon a strict observance of the principle that in determining all such
questions of sovereignty the interests of the populations concerned must have equal
weight with the equitable claims of the government whose title is to be determinede
ainda «A general association of nations must be formed under specific covenants for the
purpose of affording mutual guarantees of political independence and territorial integrity
to great and small states alike.» (Wilson, 2018).
O idealismo do Presidente Wilson valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz 1919 e inspirou o que
pode ser designado “ordem internacional liberal”. Todavia, no imediato, não convenceu
nem os seus Aliados nem o Senado Americano. As grandes vencedoras europeias,
concretamente as democráticas França e Reino Unido, partilhavam do liberalismo político
e económico dos EUA, mas não inteiramente da visão do Presidente Wilson para as
relações internacionais. Daí que Paris e Londres tenham preferido impor uma paz
humilhante aos vencidos, sobretudo, a Alemanha, e utilizado o “princípio das
nacionalidades” apenas no quadro do desmantelamento dos Impérios Alemão, Austro-
Húngaro, Otomano e Russo, sem o estenderem às suas possessões coloniais. Por outro
lado, foi criada a Sociedade das Nações nos termos propostos por Wilson, mas o Senado
Americano não ratificou a adesão dos EUA à SdN prevalecendo em Washington,
portanto, o ímpeto “isolacionista” por contraposição ao “internacionalismo”.
A ordem pós-Grande Guerra de 1914-18 é bastante distinta das ordens internacionais
que a precederam, não só em virtude de alterações substanciais na estrutura de poder,
mas também pela criação da inovadora Sociedade das Nações de inspiração “liberal” e
“Ocidental” que, sendo de carácter "mundial” (abrangendo todo o espaço-mundo e
participantes de todos os Continentes), deveria salvaguardar a “livre navegação dos
mares” e o “comércio livre”, fazer respeitar os tratados e garantir a paz e a estabilidade
entre os Estados soberanos com base no Direito Internacional, na diplomacia multilateral
permanente e na segurança colectiva. É nessa linha que se estabeleceram também
outras importantes convenções internacionais, como o Protocolo de Genebra de 1925
que proibiu o uso das armas biológicas, primeiro tratado multilateral proibindo a
utilização de “armas de destruição massiva”. Significa isto que uma certa ordem liberal
“mundial” começou a ser construída no pós-Grande Guerra.
No entanto, o alheamento e a falta de empenho das principais potências liberais
impediram que se consolidasse como verdadeira ordem internacional. Continuaram a
vigorar os elementos fundamentais do sistema “anárquico” anterior, quer globalmente
quer nos reconstruídos Médio Oriente, Europa e Ásia. Na Europa, a nova ordem pode ser
designada como a “de Versalhes” por referência ao Tratado de Paz de 1919 imposto pelos
Aliados à Alemanha, com as potências vencedoras interessadas em manter os resultados
do conflito e as potências derrotadas e desmanteladas interessadas, sobretudo, em
recuperar das humilhações e condições impostas. Além disso, para a nova República da
China, o Japão ou a novíssima Turquia, a concepção liberal da ordem internacional era
relativamente estranha; e a nova “Rússia soviética”, surgida no contexto da Grande
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL12N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), Dezembro 2021, pp. 92-124
Construção e desconstrução da ordem internacional liberal
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Guerra, tinha uma concepção da política, da economia, da sociedade e, portanto, das
relações internacionais não só distinta como hostil à visão liberal. Entretanto, a
emergência de certo tipo de “nacionalismos ofensivos”, do fascismo e do nacional-
socialismo, contrários aos princípios liberais - com destaque para o “espaço vital” da
Alemanha Nazi e a “esfera de co-properidade da Ásia Oriental” do Japão imperialista -,
iriam desmantelar quer os aspectos liberais do sistema internacional quer as ordens
regionais quer a frágil ordem mundial” pós-Grande Guerra, provocando uma II Guerra
Mundial ainda mais devastadora. Em suma, a construção inicial da ordem liberal nas
relações internacionais, primeiro, fundiu-se no sistema anárquico e, depois, foi desfeita
por ele.
3. A consolidação de uma ordem internacional liberal, mas não mundial
Foi em plena II GM (1939-1945) que novamente dirigentes Ocidentais iniciaram a
reconstrução de uma ordem liberal. Ainda antes dos EUA se tornarem beligerantes no
conflito (o que aconteceria em dezembro de 1941), o seu Presidente Franklin Delano
Roosevelt referiu-se às «four freedoms» - freedom of speech, freedom of worship,
freedom from want, and freedom from fear - that should exist «anywhere in the world»
(Roosevelt, 1941), numa mensagem ao Congresso Americano, em 6 de Janeiro de 1941.
Nesse mesmo ano, o Presidente Roosevelt e o Primeiro-Ministro britânico Winston
Churchill proclamaram a “Carta do Atlântico”
6
, cujos princípios seriam incorporados na
“Declaração das Nações Unidas” de 1 de Janeiro de 1942, assinada por 26 países Aliados,
não apenas Ocidentais, mas também, por exemplo, União Soviética, China, Cuba ou
África do Sul, e a que se associariam depois mais de duas dezenas de outros, do Brasil à
Etiópia ou à Turquia. Seriam, igualmente, integrados na “Carta das Nações Unidas”,
assinada em São Francisco, a 26 de Junho de 1945, por representantes de 50 países,
entrando em vigor a 24 de Outubro desse mesmo ano. Por outro lado, no final da II
Guerra Mundial, os Estados Unidos gozavam de uma hegemonia sem precedentes (em
todos os domínios, incluindo o exclusivo da arma atómica) traçando, pela segunda vez
no Século XX, as linhas orientadoras de uma “nova ordem mundial, agora pelas mãos
dos democratas Presidentes Roosevelt e Truman. E desta vez, ao contrário de 1918-19,
os EUA tornaram-se membros fundadores da ONU e não retiraram, apenas reduziram,
os seus dispositivos militares dos teatros europeu e asiático assumindo, portanto, a
responsabilidade da reorganização mundial pós-Guerra.
6
Afirmando que os respectivos países não procurariam nenhum engrandecimento territorial nem de outra
natureza; as modificações territoriais deveriam ocorrer de acordo com os desejos livremente expostos
pelos povos atingidos; o direito que assiste a todos os povos de escolherem a forma de governo sob a qual
querem viver e a restituição dos direitos soberanos e a independência aos povos que deles foram despojados
pela força; todos os Estados, grandes ou pequenos, vitoriosos ou vencidos, devem ter acesso em igualdade
de condições ao comércio e às matérias primas do mundo; promover, no campo da economia, a mais ampla
colaboração entre todas as nações, com o fim de conseguir, para todos, melhores condições de trabalho,
prosperidade económica e segurança social; uma paz que proporcione a todas as nações os meios de viver
em segurança dentro de suas próprias fronteiras, e aos homens em todos os locais a garantia de existências
livres de temor e de privações; liberdade de navegação nos mares e oceanos; a renúncia ao emprego da
força e o desarmamento dos potenciais agressores; e o estabelecimento de um sistema mais amplo e
duradouro de segurança geral (Atlantic Charter, 1941).
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A nova ONU não era uma réplica exata da defunta SdN, mas os seus objectivos e
princípios eram basicamente os mesmos
7
. Embora a Carta das Nações Unidas inicie com
a expressão “Nós, os Povos” (de inspiração liberal e lembrando a Constituição dos
Estados Unidos de 1787), os seus membros eram Estados que de algum modo
autolimitavam a sua soberania pelo respeito da Carta e do Direito Internacional, da
segurança colectiva, do direito de autodeterminação e dos direitos humanos, ao mesmo
tempo que conferiam à organização, em especial ao seu Conselho de Segurança, a
autoridade e a legitimidade para reconhecer novos Estados, decidir sobre questões de
guerra e paz e sancionar os agressores e violadores das regras estabelecidas. A isso
soma-se a edificação de uma série de novos organismos da “família onusiana”, incluindo
comissões, programas, fundos e agências especializadas - do Tribunal Internacional de
Justiça ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Organização
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) à Organização Mundial de Saúde (OMS) e
novas convenções internacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (também de inspiração Ocidental e liberal) adoptada pela Assembleia-Geral da
ONU, em 1948. Ou seja, o “sistema onusiano” foi estabelecido fazendo equilíbrios entre
a soberania dos Estados e o associado princípio de não ingerência nos assuntos internos,
o supranacionalismo do Conselho de Segurança e do Direito Internacional e ainda os
direitos dos povos e dos indivíduos.
Significa isto que da Guerra de 1939-45 emergiu uma ordem liberal mundial resultante
de duzentos anos de “ascendência liberal” fundida no sistema vestefaliano”, conforme
defende John Ikenberry (2011b: 2)? Só parcialmente. Ainda que de inspiração Ocidental
e liberal, o desenho da nova ONU coube aos EUA, Reino Unido e também URSS, os “três
grandes” que, a par das por eles convidadas França e China, assumiram os lugares de
Membros-Permanentes do Conselho de Segurança da nova organização dispondo do
direito exclusivo de veto. Paralelamente, os EUA e a URSS articularam e partilharam
entre si, enquanto aliados e em contexto de guerra, nas Cimeiras de Ialta e de Potsdam,
respectivamente, em Fevereiro e Julho-Agosto de 1945 - onde também participou o Reino
Unido -, as condições de rendição da Alemanha e do Japão e, sobretudo, áreas respetivas
de influência nos teatros europeu e asiático. Essa “partilha” conduziria, a partir de 1946-
47, à Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética que marcou as relações internacionais
até 1989-91.
A ordem mundial da Guerra Fria
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