1. Ordem nas relações internacionais e ordem internacional liberal
Falar de “ordem” nas relações internacionais pode parecer contraditório, considerando o
carácter relativamente “anárquico” do sistema internacional radicado na soberania dos
Estados. Essa aparente contradição explica que vários teóricos evitem utilizar o termo.
Por exemplo, Raymond Aron refere-se somente a “paz”, que não é obviamente a mesma
coisa: para ele, as relações internacionais têm apenas duas formas, a guerra e a paz,
entendendo esta como «a suspensão, mais ou menos duradoura, de formas violentas de
rivalidade entre unidades políticas», descortinando «três tipos de paz: equilíbrio,
hegemonia e império» (Aron, 1984: 158). Já Hedley Bull prefere falar em “sociedade
internacional”, concebida como uma «sociedade de Estados [...] quando um grupo de
Estados, conscientes de certos interesses e valores comuns, formam uma sociedade na
medida em que concebem para si próprios limites nas suas relações mútuas por um
conjunto comum de regras e participam na atividade de instituições comuns» (Bull, 1977:
13). Pelo seu caráter exclusivamente estato-cêntrico, estas visões de teóricos realistas
são contestadas pelas teorias liberais, construtivistas, funcionalistas, estruturalistas,
críticas e outras. E, por exemplo, numa perspetiva radicalmente distinta estão aqueles
que sobrelevam o papel e o impacto dos actores não-estatais, capazes não só de
influenciar as decisões dos Estados, mas também o sistema internacional e até de
promover uma «sociedade civil global» (Keck e Sikkink, 1998).
Facto é que também entre os realistas há muitos que assumem o conceito de “ordem”
nas RI, como John J. Mearsheimer (2019: 9) que a define simplesmente como «um grupo
organizado de instituições internacionais que ajudam a governar as interacções entre os
Estados-membros». Na mesma linha, Bart M.J. Szewczyk (2019: 34) concebe “ordem”
como «um conjunto de regras e normas para governar o comportamento Estatal e não-
estatal, através do direito internacional baseado na Carta das Nações Unidas, tratados
multilaterais e normas políticas decorrentes da prática estatal». Todavia, enquanto
Szewczyk entende que o objectivo primário da ordem é «minimizar a violência e
proporcionar estabilidade. O seu oposto era a "desordem", caracterizada pela guerra,
conflito e incerteza.» (ibid.), Mearsheimer (2019: 9, nota 3) considera que ordem «não
é o oposto de desordem, termo que remete para caos e conflito».
Outra questão concerne à utilização, frequentemente de forma indistinta, das
terminologias “ordem internacional” e “ordem mundial” – além de “ordem global” que
alguns referem (Hurrel, 2007; Lo, 2020). O seu uso e distinção raras vezes é explicada
pelos autores (Bertrand, 2004), mas é relevante para nós aqui. Hedley Bull faz essa
diferença, considerando que «A ordem mundial é mais vasta» e «do qual o sistema
interestatal é apenas parte» (Bull, 1977: 21). Acrescenta que «A ordem mundial é mais
fundamental e primordial do que a ordem internacional porque as unidades finais da
sociedade de toda a humanidade não são Estados (ou nações, tribos, impérios, classes
ou partidos), mas seres humanos individuais [...]. A ordem mundial é moralmente
superior à ordem internacional», uma vez que os seus valores são os de toda a
Humanidade, e não apenas os que prevalecem na sociedade de Estados (ibid.). Na
mesma linha, embora com pressupostos distintos, James N. Rosenau, uma das principais
figuras da escola liberal das RI, desenvolveu o modelo de «bifurcação» entre dois mundos
no que apelidou de era da «política pós-internacional»: fundamentalmente,