OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
92
CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
ltome@autonoma.pt
Professor Catedrático na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), onde é Director do
Departamento de Relações Internacionais, Director da unidade de investigação OBSERVARE-
Observatório de Relações Exteriores e Coordenador do Doutoramento em Relações Internacionais:
Geopolítica e Geoeconomia Investigador nas áreas das Relações Internacionais, Geopolítica e
Estudos de Segurança especializado nas regiões Euro-Atlântica, EurAsiática e Ásia-Pacífico.
É autor e coautor de mais de uma dezena de livros e de inúmeros ensaios e artigos publicados nas
revistas da especialidade.
Resumo
O que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir entre “ordem mundial” e “ordem
internacional”? Em que bases emergiu a ordem liberal e quais os factores que contribuem
para a sua erosão? Este artigo procura responder a estas questões, num texto dividido em
quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de “ordem” nas relações internacionais (RI),
a diferenciação entre ordem “internacional” e “mundial” e a nossa concepção de “ordem
internacional liberal”. Na segunda, justificamos o paradoxo de considerarmos que a ordem
liberal foi construída sobre o que muitos apelidam de “sistema vestefaliano” embora
rejeitemos essa designação e tipificação e, por outro lado, a tentativa inicial de construir uma
ordem liberal mundial a seguir à I Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na
terceira parte demonstramos a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II
Guerra Mundial, no quadro de uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria.
E na quarta evidenciamos que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria,
mas que esse processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a
sua desconstrução.
Palavras chave
Ordem Internacional, Ordem Mundial, Liberalismo, Relações Internacionais, História
Como citar este artigo
Tomé, Luis (2021). Construção e Desconstrução da Ordem Internacional Liberal. Janus.net,
e-journal of international relations. Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-
2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0121.6
Artigo recebido em 30 de Agosto de 2021 e aceite para publicação em 13 de Outubro de
2021
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Construção e desconstrução da ordem internacional liberal
Luis Tomé
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CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO
DA ORDEM INTERNACIONAL LIBERAL
LUIS TOMÉ
Introdução
Alguns dos debates mais emblemáticos e intensos nas Relações Internacionais incidem
sobre a caracterização da ordem internacional. Curiosamente, as muitas visões distintas
e contrastantes convergem na percepção de erosão da “ordem liberal”, tanto entre os
seus defensores como entre os seus opositores, alvitrando desde «O Fim da Ordem
Mundial Americana» (Acharya, 2014) a «Uma Nova Ordem Mundial Made in China»
(Gazibo e Chantal, 2011), «Ordem Mundial 2.0» (Haass, 2017), «um Mundo Pós-
Ocidental» (Flockhart et al., 2014), «A Emergência do Resto» (Beeson, 2020: 17-27) ou
«O Regresso da Anarquia» (Gaspar, 2019). Se para uns terá chegado ao fim a ordem
liberal «que nunca existiu» (Barnet, 2019; Ferguson e Zakaria, 2017), para outros «a
ordem liberal está viciada» (Colgan e Keohane, 2017) e outros questionam «Porque é
que o Internacionalismo Liberal Falhou» (Mead, 2021) ou se «A China Ganhou»
(Mahbubani, 2020). Enquanto alguns entendem que a ordem liberal é uma espécie de
regime constitucional da sociedade internacional e que, portanto, a sua continuidade não
depende das oscilações estratégicas das grandes potências, incluindo os Estados Unidos
(Ikenberry e Nexon, 2019), outros consideram que a ordem liberal pode existir num
sistema unipolar «onde o Estado líder é uma democracia liberal» (Mearsheimer, 2019:
7) ou que «Trump pode ser o catalisador involuntário para uma era mais equitativa... um
mundo multipolar» (Deo and Phatak, 2016). Se uns consideram os EUA um hegemon
benigno (Monteiro, 2014; Ikenberry e Nexon, 2019, Mearsheimer, 2018), outros
condenam o “hegemonismo” dos EUA e esperam que «Um período de colapso abra
possibilidades de criação de uma nova ordem mundial; esperançosamente, uma ordem
mais justa, estável e pacífica do que tem sido experienciado» (Karaganov e Suslov, 2019:
72). Se uns falam na emergência de uma “segunda” Guerra Fria ou até que EUA e China
poderão estar «destinados a entrar em Guerra» (Allison, 2017), outros acreditam que
«Não Haverá uma Nova Guerra Fria» (Christensen, 2021; Nexon, 2021) ou propõem um
“novo concerto de potências” que «Previna a Catástrofe e Promova Estabilidade num
Mundo Multipolar» (Hass e Kupchan, 2021). E enquanto para uns a ordem internacional
liberal «estava destinada a falhar desde o início, pois continha as sementes da sua própria
destruição», e que será inevitalmente substituida por uma «ordem realista»
(Mearsheimer, 2019: 7-9), outros sustentam que é possível salvar a ordem liberal
através de um «novo consenso normativo» (Kupchan, 2014 e Hass, 2021) ou
reformando-a (Colgan e Keohane, 2017 e Kundnani, 2017).
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A estes debates somam-se confusões conceptuais promovidas também por dirigentes
políticos. Por exemplo, o Presidente Francês Emmanuel Macron, num discurso na
Assembleia-Geral da ONU, falou numa profunda crise na «ordre international libéral
westphalien», transcrita como «Westphalian liberal world order» na versão oficial em
inglês (Macron, 2018)
1
. Ou seja, Macron não se refere a uma “ordem liberal
vestefaliana” (portanto, assumindo numa mesma o que para muitos são duas ordens
distintas e opostas, a vestefaliana e a liberal) como usa indistintamente ordem
“internacional” e “mundial” apenas com variação no idioma em que se exprime.
Mas o que significa “ordem liberal”? E devemos distinguir ordem mundial” e “ordem
internacional” ou significam o mesmo? Por outro lado, em que bases emergiu a ordem
liberal e quais os factores que contribuem para a sua erosão e crise? Este artigo procura
responder a estas questões, explorando a construção da ordem internacional liberal e as
várias razões que explicam a sua desconstrução, perscrutando também os seus
elementos constitutivos e os dilemas e contradições que lhe são inerentes.
Em linha com outros trabalhos nossos, seguimos aqui uma “abordagem eclética
2
e as
“teorias da complexidade”
3
. Com base num modelo descritivo-analítico, e apoiado em
literatura especializada e documentos e discursos oficiais, apresentamos os nossos
argumentos num texto dividido em quatro partes. Na primeira, explicamos o sentido de
“ordem” nas relações internacionais, a diferenciação entre ordem “internacional” e
“mundial” e a nossa concepção de “ordem internacional liberal”. Na segunda justificamos
o paradoxo de considerarmos que a ordem liberal foi construída sobre o que muitos
apelidam de “sistema vestefaliano” embora rejeitemos essa designação e tipificação e,
por outro lado, a tentativa inicial de construir uma ordem liberal mundial a seguir à I
Guerra Mundial, bem como a sua rápida desconstrução. Na terceira parte demonstramos
a edificação e consolidação de uma ordem liberal após a II Guerra Mundial, no quadro de
uma ordem mundial mais ampla em contexto de Guerra Fria. E na quarta evidenciamos
que essa ordem liberal se “mundializou” desde o fim da Guerra Fria, mas que esse
processo ocorreu por entre paradoxos e ambivalências que contribuem para a sua
desconstrução.
1
A frase completa de E. Macron é a seguinte, nas duas línguas: «Nous vivons aujourd’hui une crise profonde
de l’ordre international libéral westphalien que nous avons connu» / «We are currently experiencing a deep
crisis of the Westphalian liberal world order that we have known».
2
A abordagem eclética assume que nenhuma das tradições de pesquisa/paradigmas/teorias convencionais
das RI, isoladamente e por si só, consegue abarcar e explicar toda a realidade internacional que, por
natureza, é complexa, dinâmica, imprevisível, adaptativa e coevolutiva. Assim, limitando o risco de a priori
alienar aspectos que podem ser cruciais, com pragmatismo e prudência, a abordagem eclética ultrapassa
as “expectativas naturais” dessas teorias, combina diferentes hipóteses explicativas e aproveita o potencial
das complementaridades aspecto ainda mais relevante pelas visões e propostas opostas e com que
frequentemente se digladiam as teorias liberais, realistas, construtivistas, sistémicas, funcionalistas,
estruturalistas, críticas e outras a respeito da ordem internacional. Para uma mais detalhada explicação
nossa sobre a “abordagem eclética” ver Tomé (2016).
3
Das teorias da complexidade extraímos, sobretudo, a assumpção de “não-linearidade”, que o resultado dos
comportamentos e interacções é “naturalmente imprevisível” e a noção de “sistemas complexos
adaptativos”, enfatizando as ideias de complexidade, coadaptação e coevolução dos actores e do sistema.
Uma nossa mais desenvolvida explicação acerca da pertinência e utilidade das teorias da complexidade e
da noção de “sistemas complexos adaptativosna análise das Relações Internacionais encontra-se em Tomé
e Açikalin (2019). Para uma mais ampla explicitação das teorias do caos e da complexidade e o seu emprego
em diversas áreas científicas, designadamente nas ciências sociais e humanas ver, por exemplo, Erçetin
and Açikalin (2020).
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1. Ordem nas relações internacionais e ordem internacional liberal
Falar de “ordem” nas relações internacionais pode parecer contraditório, considerando o
carácter relativamente “anárquico” do sistema internacional radicado na soberania dos
Estados. Essa aparente contradição explica que vários teóricos evitem utilizar o termo.
Por exemplo, Raymond Aron refere-se somente a “paz”, que não é obviamente a mesma
coisa: para ele, as relações internacionais têm apenas duas formas, a guerra e a paz,
entendendo esta como «a suspensão, mais ou menos duradoura, de formas violentas de
rivalidade entre unidades políticas», descortinando «três tipos de paz: equilíbrio,
hegemonia e império» (Aron, 1984: 158). Já Hedley Bull prefere falar em “sociedade
internacional”, concebida como uma «sociedade de Estados [...] quando um grupo de
Estados, conscientes de certos interesses e valores comuns, formam uma sociedade na
medida em que concebem para si próprios limites nas suas relações mútuas por um
conjunto comum de regras e participam na atividade de instituições comuns» (Bull, 1977:
13). Pelo seu caráter exclusivamente estato-cêntrico, estas visões de teóricos realistas
são contestadas pelas teorias liberais, construtivistas, funcionalistas, estruturalistas,
críticas e outras. E, por exemplo, numa perspetiva radicalmente distinta estão aqueles
que sobrelevam o papel e o impacto dos actores não-estatais, capazes não de
influenciar as decisões dos Estados, mas também o sistema internacional e até de
promover uma «sociedade civil global» (Keck e Sikkink, 1998).
Facto é que também entre os realistas muitos que assumem o conceito de “ordem”
nas RI, como John J. Mearsheimer (2019: 9) que a define simplesmente como «um grupo
organizado de instituições internacionais que ajudam a governar as interacções entre os
Estados-membros». Na mesma linha, Bart M.J. Szewczyk (2019: 34) concebe “ordem”
como «um conjunto de regras e normas para governar o comportamento Estatal e não-
estatal, através do direito internacional baseado na Carta das Nações Unidas, tratados
multilaterais e normas políticas decorrentes da prática estatal». Todavia, enquanto
Szewczyk entende que o objectivo primário da ordem é «minimizar a violência e
proporcionar estabilidade. O seu oposto era a "desordem", caracterizada pela guerra,
conflito e incerteza.» (ibid.), Mearsheimer (2019: 9, nota 3) considera que ordem «não
é o oposto de desordem, termo que remete para caos e conflito».
Outra questão concerne à utilização, frequentemente de forma indistinta, das
terminologias “ordem internacional” e “ordem mundial além de “ordem global” que
alguns referem (Hurrel, 2007; Lo, 2020). O seu uso e distinção raras vezes é explicada
pelos autores (Bertrand, 2004), mas é relevante para nós aqui. Hedley Bull faz essa
diferença, considerando que «A ordem mundial é mais vasta» e «do qual o sistema
interestatal é apenas parte» (Bull, 1977: 21). Acrescenta que «A ordem mundial é mais
fundamental e primordial do que a ordem internacional porque as unidades finais da
sociedade de toda a humanidade não o Estados (ou nações, tribos, impérios, classes
ou partidos), mas seres humanos individuais [...]. A ordem mundial é moralmente
superior à ordem internacional», uma vez que os seus valores são os de toda a
Humanidade, e não apenas os que prevalecem na sociedade de Estados (ibid.). Na
mesma linha, embora com pressupostos distintos, James N. Rosenau, uma das principais
figuras da escola liberal das RI, desenvolveu o modelo de «bifurcação» entre dois mundos
no que apelidou de era da «política pós-internacional»: fundamentalmente,
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“internacionalcaracteriza a ordem no «mundo estato-cêntrico» entre Estados «limitados
pela soberania», utilizando “pós-internacional”, “mundial” ou “global” para descrever a
ordem no «mundo multicêntrico» dos actores não-estatais «livres de soberania»
(Rosenau, 1990 e 1997).
Em nosso entender, distinguir entre ordem “internacional” e “mundial” pretendendo que
a primeira se refere a uma ordem entre Estados soberanos e a segunda a uma que
envolva também os actores não-estatais, o faz sentido. A diferença é conceptualmente
pertinente e muito útil, mas com outros fundamentos. Na nossa concepção, “ordem
internacional” refere e caracteriza o padrão proeminente de ideias, valores, interesses,
regras, instituições, comportamentos e interacções entre actores, estatais e não-estatais,
podendo existir tanto numa escala regional como mundial, e incluir apenas uma parte
dos actores ou a sua generalidade. Quando a ordem internacional abrange o espaço-
mundo e os actores principais, transforma-se em “ordem mundial”. Dito de outro modo,
a ordem mundial pode incluir várias e distintas ordens internacionais, mas uma ordem
internacional é mundial ou global se e quando alargada à escala planetária. A distinção
assim feita é importante porque um dos nossos argumentos, como veremos adiante, é
que a ordem internacional liberal só se tornou mundial no final da Guerra Fria.
Por outro lado, ordem não é sinónimo de paz nem de estabilidade nem ausência de
competição, tal como não é simplesmente o contrário de desordem (caos e conflito) nem
um conceito caracterizador da balança de poder numa região ou no mundo. Mas está
associada a tudo isso, porquanto ordem atenua o carácter anárquico do sistema
internacional e o recurso à violência, limita a dependência dos jogos de poder e
proporciona um certo tipo de autoridade, regulação e estabilidade na convivência entre
actores. Uma ordem internacional pode existir e ser referenciada em função da estrutura
de poder, mas é mais do que o simples reflexo disso. A construção da ordem liberal está
ligada à supremacia do “Ocidente” e à hegemonia dos Estados Unidos, mas "liberal"
significa um conjunto específico de valores, normas e instituições, naturalmente distinto
do de outras visões e ordens internacionais. Importa, por isso, explicitar os seus
elementos constitutivos.
A ordem internacional liberal é normalmente caracterizada em torno de duas ideias
primordiais: por um lado, é «aberta e baseada em regras», em contraste com outra
«organizada em blocos rivais ou esferas regionais exclusivas» (Ikenberry, 2011b: xii),
estando «consagrada em instituições como as Nações Unidas e normas como o
multilateralismo» (Ikenberry, 2011a: 56); por outro, a associação entre liberalismo
político e liberalismo económico, também referidos à luz de termos como “democracia”
e “capitalismo”, o que para alguns cria «uma ordem internacional profundamente
dependente da natureza interna das unidades que a compõem» (Simão, 2019: 42).
Assim, a ordem internacional liberal inclui «mercados abertos, instituições internacionais,
comunidade democrática de segurança cooperativa, mudança progressiva, resolução
colectiva de problemas, soberania partilhada, primado da lei» (Ikenberry, 2011b: 6). Ou
é «baseada principalmente na democracia, nos direitos humanos, no primado da lei, nas
economias de mercado e no comércio justo.» (Szewczyk, 2019: 34) e no pressuposto de
que «apenas a ordem liberal considera o indivíduo um actor central com direitos
inalienáveis» (ibid.: 35). Outros preferem caracterizar a ordem liberal desagregando
tematicamente os seus «três elementos: a ordem de segurança, a ordem económica e a
ordem de direitos humanos» (Kundnani, 2017: 4-8). À ordem liberal estão também
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frequentemente associadas teorias como as da “paz democrática”, “interdependência
económica” e Pax Americana.
Independentemente das múltiplas formas de a caracterizar e referenciar os seus
elementos constitutivos, entendemos que a ordem internacional liberal se baseia na
promoção da Democracia Liberal; na economia de mercado aberta e no comércio livre;
numa certa limitação das soberanias dos Estados e na partilha de responsabilidades,
através da criação conjunta de regras comuns, primado da lei, multilateralismo e ação
colectiva; na segurança colectiva (segurança por todos, para todos e em nome de todos);
na livre navegação dos mares; no acesso livre aos "bens comuns globais" e na
disseminação e protecção dos “bens públicos globais”; no reconhecimento da
legitimidade de diferentes actores internacionais, estatais e não-estatais; e numa
concepção dos Direitos Humanos que implica a salvaguarda da liberdade individual,
dignidade humana e respeito dos direitos inalienáveis do indivíduo.
Alguns destes elementos podem enformar outras ordens internacionais, mas, no seu
conjunto, definem e distinguem o que consideramos ordem internacional liberal. Por
outro lado, os elementos constitutivos indicados foram evoluindo e sendo adaptados ao
longo da construção da ordem internacional liberal. No entanto, deve salientar-se que
nem todos esses elementos são reconhecidos como parte da ordem liberal, quer pelos
seus opositores, quer também por alguns dos seus defensores; que a sua caracterização
geral não significa que os promotores da ordem liberal respeitem sempre e todos os seus
preceitos; e que tensões e contradições entre elementos constitutivos da ordem
liberal.
2. Ordens anteriores e tentativa inicial de construir uma ordem
internacional liberal
Ao longo da História, existiram múltiplas e distintas ordens internacionais, normalmente
associadas a poderes imperiais e autoridades divinais. Essas diversas ordens
internacionais foram sempre limitadas no tempo e também no espaço (com sucessivas e
coexistentes ordens na Europa, no Médio Oriente, na Ásia e, entretanto, também no
Continente Americano), mesmo que algumas se pretendessem “universais”. Devemos
reconhecer, todavia, que o “Ocidente” tem sido o principal inspirador e âncora de certas
ordens internacionais e também da ordem mundial de grande parte dos últimos séculos.
Com efeito, muitas das ideias, doutrinas e ideologias (do liberalismo ao nacionalismo,
passando pelo capitalismo, socialismo, democracia, Estado-nação, soberania,
multilateralismo, institucionalismo) que haveriam de marcar várias e distintas
mundivisões sobre “ordem internacional” surgiram na Europa e disseminaram-se fruto
do domínio e expansão colonial das potências europeias e, entretanto, da ascensão dos
Estados Unidos. Ainda assim, até ao Século XIX, partes substanciais do mundo e certos
actores, como o Império Otomano, a China ou o Japão, por exemplo, eram alheios a
essas ideias, e as ordens internacionais na Europa, na Ásia, no Médio Oriente e nas
Américas permaneciam largamente desconectadas entre si. Ou seja, existiam múltiplas
ordens internacionais regionais, mas não uma “ordem mundial”.
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A prévia ordem anárquica, mas não “vestefaliana”
Por outro lado, é muito frequente a ideia de que a ordem internacional liberal surgiu por
oposição e/ou foi construída sobre a “ordem vestefaliana”. Porém, não é adequado
associar aos Tratados de Vestefália (Münster e Osnabrück) de 1648 uma “ordem
internacional ou sequer um novo “sistema internacional”, normalmente descrito como
“sistema vestefaliano”. Conforme demonstra com particular clareza Luís Moita (2012), a
Paz de Vestefália que pôs fim à “Guerra dos Trinta anos” na Europa não representou a
origem do Estado nacional territorializado, não inaugurou o conceito de soberania e não
fundou o “moderno” sistema europeu de Estados-Nações. Sem escamotear a importância
dos Tratados de Vestefália, a ordem europeia em meados do Século XVII não
corresponde a um sistema homogéneo estato-cêntrico. Prevaleceu uma situação difusa,
nela coincidindo formações políticas muito diversas e sobrepostas (de impérios a
principados, passando por Estados, reinos e outros territórios organizados sob diversas
configurações e designações) com diferentes graus de autonomia e em que, no essencial,
o Estado era “principesco” e os regimes absolutistas. mais tarde, no decurso dos
Séculos XVIII e XIX, se assistiu à disseminação e consolidação dos Estados nacionais no
sentido moderno, incluindo as unificadas Itália (1870) e Alemanha (1871), sendo etapas
decisivas nesse processo as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) e a
Revolução Industrial. Segundo Luís Moita (2012: 38)
o Estado-Nação, no sentido moderno do termo, resulta historicamente de uma
confluência de elementos: por um lado, o fim do ancien régime ditado pela
revolução francesa, por outro, a emergência do capitalismo industrial. O
primeiro factor sublinha a dimensão político-institucional, o segundo a
dimensão sócio-económica do processo», acrescentando que «a origem do
moderno Estado-Nação se deve articular com a emergência da sociedade
industrial e com o fenómeno do nacionalismo (ibid.: 39).
Entretanto, após as Guerras Napoleónicas, as grandes potências europeias
(essencialmente, “impérios”) estabeleceram, no Congresso de Viena de 1815, um
“Concerto” a fim de evitar a guerra entre elas, manter a estabilidade no Velho Continente
e preservar as dinastias reinantes. Porém, o “concerto de Viena” foi de curta duração e
nunca constituiu, obviamente, uma verdadeira ordem mundial basta recordar, por
exemplo, que nas Américas a ordem internacional evoluiu distintamente entre várias
independências e a proeminência dos EUA, que no Médio Oriente e Norte de África a
ordem era, essencialmente, a Otomana” e que na Ásia Oriental era a do “Império do
Meio”. Por outro lado, o Congresso de Viena de 1815 foi apenas um de vários exemplos
de diplomacia multilateral que, na Europa, ao longo do Século XIX e no início do Século
XX, procurou regular certas questões e estipular regras de convivência
4
, a que se
somaram os muitos tratados bilaterais. Também ao longo do Século XIX, tirando partido
da dianteira na Revolução Industrial, o Reino Unido fomentou a sua primazia económico-
comercial e naval, promovendo uma economia e um comércio internacionalizados sob os
4
Outros exemplos salientes são os Congressos de San Stefano e de Berlim de 1878 (divisão dos Balcãs) ou
a Conferência de Berlim de 1884-85 (partilha de África).
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auspícios da Pax Britannica. Mas nem os concertos multilaterais nem a supremacia
britânica significaram “ordem mundiale nem sequer estabilidade internacional, tal como
não impediram novas guerras na Europa, nas Américas e na Ásia Oriental
5
.
Paralelamente, ocorreram transformações substanciais nas estruturas de poder quer na
Europa (por exemplo, por via do recuo do Império Otomano nos Balcãs e da unificação
da Itália e da Alemanha), que nas Américas (hegemonia dos EUA) quer na Ásia (declínio
da China e ascensão do Japão), salientando-se a emergência de novas grandes potências
no final do Século XIX/início do Século XX, designadamente a Alemanha, os Estados
Unidos e o Japão que não impactaram nos sistemas regionais como, a par das “velhas
grandes potências”, consolidaram uma estrutura de poder global multipolar.
Paradoxalmente, embora rejeitemos a designação de “ordem vestefaliana” pelas razões
atrás referidas, reconhecemos que o sistema internacional e as ordens internacionais
regionais que, no culo XIX e no início do Século XX se caracterizavam, genericamente,
pelos elementos que são comummente atribuídos ao tal “sistema vestefaliano”
correspondendo ao que John Mearsheimer (2019: 12-13) chama de “ordem realista” - ,
ou seja, formado por Estados nacionais soberanos alegadamente “iguais” em direitos e
obrigações, designadamente a não ingerência nos “assuntos internos” uns dos outros;
para atenuar o carácter inerentemente anárquico do sistema, os Estados têm o dever de
respeitar os compromissos assumidos (Pacta Sunt Servanda) e as regras que soberana
e conjuntamente estipulam (Direito Internacional); se e quando necessário, os Estados
soberanos resolvem e regulam certas questões internacionais através da concertação
multilateral (congressos e conferências had hoc). Ainda neste sistema, prevalece uma
lógica de comércio livre (imposto pelos “Ocidentais”, por exemplo, à China e ao Japão),
de domínios coloniais, de áreas de influência e de balança de poder, residindo
precisamente nos jogos e (des)equilíbrios entre as grandes potências a (des)ordem nas
relações internacionais.
Uma primeira tentativa, rapidamente desconstruída
Como corolário deste sistema e das evoluções e transformações ocorridas no final do
Século XIX/início do Século XX, ocorreu mais uma grande guerra entre potências
europeias que, entretanto, se alastrou e envolveu outras importantes potências não
europeias, no que ficaria para a História como a I Guerra Mundial, provocando uma
devastação sem precedentes. O final dessa Grande Guerra de 1914-18 foi marcado pela
ambição de criar uma “nova ordem mundial” visando garantir que não voltaria a ocorrer
um conflito dessa magnitude. Foi neste contexto que, entre os vencedores, sobressaíram
os Estados Unidos que definiram, pela primeira vez, aquelas que deveriam ser as linhas
orientadoras de uma nova ordem mundial”, configurando também a primeira real
tentativa de transpor para a ordem internacional a vio liberal. No seu discurso ao
Congresso Americano, em 2 Abril de 1917, onde pediu a declaração de guerra contra a
Alemanha, o Presidente Wilson justificou a entrada dos EUA no conflito para «tornar o
mundo seguro para a democracia» (Wilson, 1917). Menos de um ano depois, em 8 de
Janeiro de 1918, num novo discurso ao Congresso, o mesmo Presidente Americano,
5
Como as guerras da Crimeia de 1853-56, a Franco-Prussiana de 1870-71 ou as balcânicas de 1912-13;
entre os EUA e Espanha, em 1898; ou as “guerras do ópio” contra a China imperial, a guerra sino-japonesa
de 1894-95 ou a russo-japonesa de 1904-05.
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Democrata, articulou os seus famosos “14 pontos”, metade dos quais dedicados às
questões territoriais específicas entre os países beligerantes e os restantes prescrevendo
uma visão para a paz e a nova ordem mundial propondo, em síntese: uma “paz sem
vencidos nem humilhados”, o fim dos acordos secretos e a transparência nas relações
internacionais, a “absoluta” livre navegação dos mares, o comércio livre, a redução dos
armamentos, «A free, open-minded, and absolutely impartial adjustment of all colonial
claims, based upon a strict observance of the principle that in determining all such
questions of sovereignty the interests of the populations concerned must have equal
weight with the equitable claims of the government whose title is to be determinede
ainda «A general association of nations must be formed under specific covenants for the
purpose of affording mutual guarantees of political independence and territorial integrity
to great and small states alike.» (Wilson, 2018).
O idealismo do Presidente Wilson valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz 1919 e inspirou o que
pode ser designado “ordem internacional liberal”. Todavia, no imediato, não convenceu
nem os seus Aliados nem o Senado Americano. As grandes vencedoras europeias,
concretamente as democráticas França e Reino Unido, partilhavam do liberalismo político
e económico dos EUA, mas não inteiramente da visão do Presidente Wilson para as
relações internacionais. Daí que Paris e Londres tenham preferido impor uma paz
humilhante aos vencidos, sobretudo, a Alemanha, e utilizado o “princípio das
nacionalidades” apenas no quadro do desmantelamento dos Impérios Alemão, Austro-
Húngaro, Otomano e Russo, sem o estenderem às suas possessões coloniais. Por outro
lado, foi criada a Sociedade das Nações nos termos propostos por Wilson, mas o Senado
Americano não ratificou a adesão dos EUA à SdN prevalecendo em Washington,
portanto, o ímpeto “isolacionista” por contraposição ao “internacionalismo”.
A ordem pós-Grande Guerra de 1914-18 é bastante distinta das ordens internacionais
que a precederam, não só em virtude de alterações substanciais na estrutura de poder,
mas também pela criação da inovadora Sociedade das Nações de inspiração “liberal” e
“Ocidental” que, sendo de carácter "mundial” (abrangendo todo o espaço-mundo e
participantes de todos os Continentes), deveria salvaguardar a “livre navegação dos
mares” e o “comércio livre”, fazer respeitar os tratados e garantir a paz e a estabilidade
entre os Estados soberanos com base no Direito Internacional, na diplomacia multilateral
permanente e na segurança colectiva. É nessa linha que se estabeleceram também
outras importantes convenções internacionais, como o Protocolo de Genebra de 1925
que proibiu o uso das armas biológicas, primeiro tratado multilateral proibindo a
utilização de “armas de destruição massiva”. Significa isto que uma certa ordem liberal
“mundial” começou a ser construída no pós-Grande Guerra.
No entanto, o alheamento e a falta de empenho das principais potências liberais
impediram que se consolidasse como verdadeira ordem internacional. Continuaram a
vigorar os elementos fundamentais do sistema “anárquico” anterior, quer globalmente
quer nos reconstruídos Médio Oriente, Europa e Ásia. Na Europa, a nova ordem pode ser
designada como a “de Versalhes” por referência ao Tratado de Paz de 1919 imposto pelos
Aliados à Alemanha, com as potências vencedoras interessadas em manter os resultados
do conflito e as potências derrotadas e desmanteladas interessadas, sobretudo, em
recuperar das humilhações e condições impostas. Além disso, para a nova República da
China, o Japão ou a novíssima Turquia, a concepção liberal da ordem internacional era
relativamente estranha; e a nova “Rússia soviética”, surgida no contexto da Grande
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Guerra, tinha uma concepção da política, da economia, da sociedade e, portanto, das
relações internacionais não só distinta como hostil à visão liberal. Entretanto, a
emergência de certo tipo de “nacionalismos ofensivos”, do fascismo e do nacional-
socialismo, contrários aos princípios liberais - com destaque para o “espaço vital” da
Alemanha Nazi e a “esfera de co-properidade da Ásia Oriental” do Japão imperialista -,
iriam desmantelar quer os aspectos liberais do sistema internacional quer as ordens
regionais quer a frágil ordem mundial” pós-Grande Guerra, provocando uma II Guerra
Mundial ainda mais devastadora. Em suma, a construção inicial da ordem liberal nas
relações internacionais, primeiro, fundiu-se no sistema anárquico e, depois, foi desfeita
por ele.
3. A consolidação de uma ordem internacional liberal, mas não mundial
Foi em plena II GM (1939-1945) que novamente dirigentes Ocidentais iniciaram a
reconstrução de uma ordem liberal. Ainda antes dos EUA se tornarem beligerantes no
conflito (o que aconteceria em dezembro de 1941), o seu Presidente Franklin Delano
Roosevelt referiu-se às «four freedoms» - freedom of speech, freedom of worship,
freedom from want, and freedom from fear - that should exist «anywhere in the world»
(Roosevelt, 1941), numa mensagem ao Congresso Americano, em 6 de Janeiro de 1941.
Nesse mesmo ano, o Presidente Roosevelt e o Primeiro-Ministro britânico Winston
Churchill proclamaram a “Carta do Atlântico”
6
, cujos princípios seriam incorporados na
“Declaração das Nações Unidas” de 1 de Janeiro de 1942, assinada por 26 países Aliados,
não apenas Ocidentais, mas também, por exemplo, União Soviética, China, Cuba ou
África do Sul, e a que se associariam depois mais de duas dezenas de outros, do Brasil à
Etiópia ou à Turquia. Seriam, igualmente, integrados na “Carta das Nações Unidas”,
assinada em São Francisco, a 26 de Junho de 1945, por representantes de 50 países,
entrando em vigor a 24 de Outubro desse mesmo ano. Por outro lado, no final da II
Guerra Mundial, os Estados Unidos gozavam de uma hegemonia sem precedentes (em
todos os domínios, incluindo o exclusivo da arma atómica) traçando, pela segunda vez
no Século XX, as linhas orientadoras de uma “nova ordem mundial, agora pelas mãos
dos democratas Presidentes Roosevelt e Truman. E desta vez, ao contrário de 1918-19,
os EUA tornaram-se membros fundadores da ONU e não retiraram, apenas reduziram,
os seus dispositivos militares dos teatros europeu e asiático assumindo, portanto, a
responsabilidade da reorganização mundial pós-Guerra.
6
Afirmando que os respectivos países não procurariam nenhum engrandecimento territorial nem de outra
natureza; as modificações territoriais deveriam ocorrer de acordo com os desejos livremente expostos
pelos povos atingidos; o direito que assiste a todos os povos de escolherem a forma de governo sob a qual
querem viver e a restituição dos direitos soberanos e a independência aos povos que deles foram despojados
pela força; todos os Estados, grandes ou pequenos, vitoriosos ou vencidos, devem ter acesso em igualdade
de condições ao comércio e às matérias primas do mundo; promover, no campo da economia, a mais ampla
colaboração entre todas as nações, com o fim de conseguir, para todos, melhores condições de trabalho,
prosperidade económica e segurança social; uma paz que proporcione a todas as nações os meios de viver
em segurança dentro de suas próprias fronteiras, e aos homens em todos os locais a garantia de existências
livres de temor e de privações; liberdade de navegação nos mares e oceanos; a renúncia ao emprego da
força e o desarmamento dos potenciais agressores; e o estabelecimento de um sistema mais amplo e
duradouro de segurança geral (Atlantic Charter, 1941).
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A nova ONU não era uma réplica exata da defunta SdN, mas os seus objectivos e
princípios eram basicamente os mesmos
7
. Embora a Carta das Nações Unidas inicie com
a expressão “Nós, os Povos” (de inspiração liberal e lembrando a Constituição dos
Estados Unidos de 1787), os seus membros eram Estados que de algum modo
autolimitavam a sua soberania pelo respeito da Carta e do Direito Internacional, da
segurança colectiva, do direito de autodeterminação e dos direitos humanos, ao mesmo
tempo que conferiam à organização, em especial ao seu Conselho de Segurança, a
autoridade e a legitimidade para reconhecer novos Estados, decidir sobre questões de
guerra e paz e sancionar os agressores e violadores das regras estabelecidas. A isso
soma-se a edificação de uma série de novos organismos da “família onusiana”, incluindo
comissões, programas, fundos e agências especializadas - do Tribunal Internacional de
Justiça ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Organização
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) à Organização Mundial de Saúde (OMS) e
novas convenções internacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (também de inspiração Ocidental e liberal) adoptada pela Assembleia-Geral da
ONU, em 1948. Ou seja, o “sistema onusiano” foi estabelecido fazendo equilíbrios entre
a soberania dos Estados e o associado princípio de não ingerência nos assuntos internos,
o supranacionalismo do Conselho de Segurança e do Direito Internacional e ainda os
direitos dos povos e dos indivíduos.
Significa isto que da Guerra de 1939-45 emergiu uma ordem liberal mundial resultante
de duzentos anos de “ascendência liberal” fundida no sistema vestefaliano”, conforme
defende John Ikenberry (2011b: 2)? Só parcialmente. Ainda que de inspiração Ocidental
e liberal, o desenho da nova ONU coube aos EUA, Reino Unido e também URSS, os “três
grandes” que, a par das por eles convidadas França e China, assumiram os lugares de
Membros-Permanentes do Conselho de Segurança da nova organização dispondo do
direito exclusivo de veto. Paralelamente, os EUA e a URSS articularam e partilharam
entre si, enquanto aliados e em contexto de guerra, nas Cimeiras de Ialta e de Potsdam,
respectivamente, em Fevereiro e Julho-Agosto de 1945 - onde também participou o Reino
Unido -, as condições de rendição da Alemanha e do Japão e, sobretudo, áreas respetivas
de influência nos teatros europeu e asiático. Essa “partilha” conduziria, a partir de 1946-
47, à Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética que marcou as relações internacionais
até 1989-91.
A ordem mundial da Guerra Fria
A estrutura de poder global que se estabeleceu no pós-II Guerra Mundial não foi unipolar
(conforme sugeria a hegemonia dos EUA) nem multipolar (como indiciava a constituição
do CSNU com os seus cinco membros-permanentes), mas sim “bipolar” pela emergência
7
Com os seus membros decididos a «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra… A reafirmar a
nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; A estabelecer as
condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de
outras fontes do direito internacional; A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro
de um conceito mais amplo de liberdade; e para tais fins A praticar a tolerância e a viver em paz…; A unir
as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; A garantir, pela aceitação de princípios e
a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; A empregar
mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos (United
Nations Charter, 1945: Preamble)
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de duas superpotências. EUA e URSS perfilhavam de ideologias opostas, o liberalismo e
o marxismo-leninismo, mas «ambos eram ideologias esclarecidas que buscavam
expandir-se à civilização universal» (Gray, 2007: 30). Envolveram-se, então, numa
disputa estratégica, económica e ideológica que começou na Europa e se alastrou
rapidamente a todas as regiões do mundo, determinando sistemas de alianças,
alinhamentos económicos, conflitos, regras, instituições, comportamentos e interacções
entre a generalidade dos actores, estatais e o estatais. Muito mais do que a ONU e o
Direito Internacional, foram as armas nucleares (que a URSS também passou a possuir
desde 1949) e a dissuasão pela “destruição mútua garantida” que obrigou americanos e
soviéticos a coexistirem em Guerra Fria e o mundo viver sob esse “equilíbrio do terror”.
Cada uma das superpotências dispunha de “áreas de influência” no mundo e nas rias
regiões, liderando e organizando o seu “bloco” em função dos respectivos interesses,
visões e instituições. Desta confrontação bipolar resultaram diretamente inúmeros
conflitos, guerras civis, golpes de Estado, movimentos de guerrilha e subversivos,
“guerras por procuração” e “crises” e guerras internacionais.
Paralelamente, ainda que sempre em competição, os EUA e a URSS foram conseguindo
cooperar e articular-se quando os seus interesses convergiam. Por exemplo, ambos
favoreceram o direito da autodeterminação e a descolonização pelos países europeus, tal
como condenaram certas posturas neocoloniais (como na Crise do Suez de 1956). Foi
possível desenvolver o “sistema onusiano”, reconhecer inúmeros novos Estados
independentes e até lançar “missões de paz” da ONU (quando nenhum exerceu o seu
direito de veto no CSNU). A articulação entre os “blocos” Leste e Oeste foi igualmente
crucial para a celebração do armistício que pôs fim à Guerra da Coreia de 1950-53,
Acordos de Paz como os de Genebra de 1954, a “substituição” da República da
China/Taiwan pela República Popular da China na ONU (e logo como membro-
permanente do seu Conselho de Segurança), em 1971, ou os Acordos de Helsínquia
alcançados na Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), em 1975.
E se é certo que o nível de interdependência económica e comercial entre os dois lados
era mínimo e não justificou o desenvolvimento de regras e instituições comuns nesse
domínio, articularam-se para criar ou apoiar o desenvolvimento de novas normas e, por
vezes, instituições, a respeito do controlo de armamentos, da não militarização de certos
espaços ou da não proliferação de armas nucleares, nos veis bilateral e multilateral, de
que são exemplo o Antarctic Treaty System, o Moon Agreement, o Outer Space Treaty,
os Tratados Anti-Ballistic Missile (ABM), Strategic Arms Limitations Talks (SALT) 1 e 2 e
Strategic Arms Reductions Talks (START), a Convention on Certain Conventional
Weapons, Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Civil
Aviation, a Biological Weapons Convention aos Seabed Arms Control Treaty, o
Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty, o Partial Test Ban Treaty , o Tratado de Não
Proliferação Nuclear, a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) ou o Nuclear
Suppliers Group.
Portanto, a ordem mundial que vigorou entre 1946-47 e 1989-91 foi, essencialmente, a
da Guerra Fria, fundida com o “sistema onusiano” que, apesar de tudo, se desenvolveu
e alargou a muitos novos Estados resultantes dos processos de descolonização que a
organização apoiou, sobretudo, através da sua Assembleia-Geral (ver O’Sullivan, 2005).
No âmbito e coexistindo com essa ordem mundial, estabeleceram-se outras duas outras
ordens internacionais correspondendo aos “campos” liderados por cada uma das
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superpotências: de um lado, o “Ocidente”, “Capitalista”, “Liberal”, Democrático” ou
“Mundo Livre”; do outro, o “Comunista”, “Bloco Leste”, “Soviético” ou das “Democracias
Populares”. Essas duas ordens internacionais eram dinâmicas e foram sofrendo
alterações: basta lembrar, por exemplo, a cisão sino-soviética que rasgou o campo
comunista”, despoletou uma nova “guerra fria” entre a URSS e a RPC e introduziu uma
dinâmica triangular Washington-Moscovo-Pequim. Por outro lado, essas ordens o eram
definidas numa lógica regional, mas sim em blocos ideológicos, estratégicos e
económicos com as respetivas convenções e instituições multilaterais (ver Crump e
Godard, 2018). Pode ainda admitir-se uma terceira ordem internacional que foi tentando
ser promovida, corporizada no espírito da Conferência Ásia-África de Bandung e do
Movimento de o Alinhados, bem como na doutrina dos três mundos” chinesa, na
adopção pela AGNU do conceito de “soberania permanente sobre recursos naturais”
8
ou
na ideia de uma “Nova Ordem Económica Mundial”
9
. No fundo, a ordem mundial nas
décadas subsequentes à II Guerra Mundial era um compósito complexo de várias ordens
internacionais, sendo a liberal apenas uma delas.
A ordem internacional liberal no “Ocidente”
Essa ordem internacional liberal é radicada no liberalismo político e económico e nas
quatro liberdades enunciadas pelo Presidente Roosevelt, em 1941, baseando-se na
“democracia liberal” (distinta da “democracia popular” comunista) e em preceitos
igualmente distintivos a respeito da organização económica e social ou dos direitos
humanos, corporizando-se em regras e instituições próprias para do “universo
onusiano” e opostos à “ordem soviética”. Por exemplo, na Europa, as democracias
europeias cedo criaram a União da Europa Ocidental (UEO), em 1948 e o Conselho da
Europa, em 1949, ao mesmo tempo que os EUA criavam no Continente Americano, e
com sede em Washington, a Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948.
Dados os constrangimentos associados ao ideal da “segurança colectiva” inscrita na ONU,
os EUA estabeleceram com o Canadá e países europeus ocidentais, desde 1949, a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), mecanismo multilateral de
“defesa colectiva”, a fim de conter a expansão da União Soviética e do comunismo e «to
safeguard the freedom, common heritage and civilisation of their peoples, founded on
the principles of democracy, individual liberty and the rule of law» (NATO, 1949).
Todavia, nem todos os fundadores da NATO eram “democracias liberais”, como Portugal
do “Estado Novo”, o que demonstra o peso das considerações geoestratégicas ligadas à
8
Foi a partir dos anos 1950 que o conceito de "soberania permanente" dos Estados (de conteúdo económico,
distinto da habitual concepção simplesmente política) começou a emergir no seio da AGNU, com a adopção
de uma resolução, em 1952 sobre o “direito de se explorar livremente os recursos e riquezas naturais”. Na
década seguinte verificou-se uma mudança na terminologia adotada pelas resoluções da ONU, referindo a
"soberania permanente sobre os recursos". Um marco nessa evolução foi a adopção pela AGNU, em 14 de
dezembro de 1962, da Resolução 1.803 (XVII) sobre "Soberania Permanente sobre Recursos Naturais",
desenvolvida em resoluções subsequentes em 1966 e 1973. No fundo, estas resolução apoiam os esforços
dos países em desenvolvimento (ou do "terceiro mundo") para controlo efectivo sobre os recursos naturais
nos seus territórios, reconhecendo que cada Estado tinha o direito a determinar o montante de compensação
e o modo de pagamento, e que possíveis litígios deveriam ser resolvidos de acordo com a legislação nacional
de cada Estado.
9
Resoluções 3.201 e 3.202 de Maio de 1974 adoptadas pela AGNU, englobando a "Declaração sobre o
Estabelecimento de uma Nova Ordem Económica Internacional" e o "Programa de Ação para o
Estabelecimento de Nova Ordem Económica Internacional", a que se seguiu a “Carta de Direitos e Deveres
Económicos dos Estados” (Resolução 3.281) de Dezembro desse ano.
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Guerra Fria. Os mesmos objectivos e imperativos geoestratégicos presidiram à
generalidade do Sistema de alianças dos EUA nas outras regiões e que incluiu quer
alianças bilaterais (das Filipinas ao Paquistão, passando por Japão, Coreia do Sul,
República da China/Taiwan ou Tailândia) quer trilaterais (como a ANZUS entre Austrália,
Nova Zelândia e EUA) quer multilaterais, desde o Tratado InterAmericano de Assistência
Recíproca (TIAR ou Tratado do Rio) à Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE
ou Pacto de Manila) e Organização do Tratado Central (OTC/CENTO ou Pacto de
Bagdade). Nem todas estas alianças foram bem sucedidas, algumas até se
desmantelaram (como a SEATO e o CENTO, nos anos 1970), e nem todos os aliados
eram democracias liberais, tendo apenas a “vantagem” de serem anticomunistas. Mas o
facto é que muitas delas foram cruciais para consolidar e/ou expandir a democracia
liberal e manter a paz entre democracias, sendo a Pax Americana susentáculo da ordem
internacional liberal.
O pilar económico radica no “sistema de Bretton Woods”, conjunto de acordos alcançados
na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas realizada na cidade de Bretton
Woods, no Estado Americano de New Hampshire, em julho de 1944, com a presença de
delegações de 44 países. ficou definida a base para a gestão monetária do comércio
internacional, passando o valor das outras moedas a ser associado ao dólar dos EUA e
continuando este a ter o seu valor ligado ao do ouro. Em Bretton Woods ficou também
acordada a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) - responsável por manter um
fundo de emergência para auxiliar os países que tivessem défices comerciais
incomportáveis e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)
para apoiar a reconstrução dos países. O BIRD seria integrado no Banco Mundial que, tal
como o FMI, foi formalmente estabelecido em 1945. Dois anos depois, em 1947, juntou-
se-lhes o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), a fim de impulsionar o comércio
internacional pelo esbatimento de barreiras alfandegárias. No mesmo ano, os EUA
lançaram o Plano Marshall” destinado a ajudar a recuperação económica da Europa e
eliminar as condições que favoreceriam a expansão do comunismo (ver Leffler, 1988) e,
em 1950, estabeleceram o Comité Coordenador para o Controlo Multilateral das
Exportações (CoCom) para embargo de bens, tecnologias e armas aos países do Comité
de Assistência Económica Mútua (COMECOM) liderado pela URSS (Mastanduno, 1992).
Foi com base nesses princípios e debaixo do “chapéu americano” que se estabeleceram
e desenvolveram, igualmente, certas organizações regionais, com destaque para as
Comunidades Europeias do Carvão e do o (CECA), em 1951 e da Energia Atómica
(CEEA ou Euratom) e Económica (CEE), em 1957. Seriam ainda criadas outras
instituições, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE), em 1961, a fim de estimular o progresso económico e o comércio internacional.
De um modo geral, os países dessa ordem económica liberal conheceram um
desenvolvimento económico e social significativo, em particular, na América do Norte, na
Europa Ocidental, Japão, Austrália, Nova Zelândia e “Novos Países Industrializados” da
Ásia Oriental. Porém, nunca se encontraram respostas totalmente satisfatórias para a
redistribuição da riqueza, gerando excluídos e desigualdades quer dentro dos países quer
entre eles, ao mesmo tempo que manteve muitos outros povos e Estados,
designadamente do “terceiro mundo”, largamente arredados desse desenvolvimento (ver
Keohane, 1984 e Krasner, 1999). Por outro lado, a erosão do sistema de Bretton Woods
levou o Presidente Richard Nixon, em 1971, a determinar que o dólar americano deixaria
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de estar associado ao ouro, pondo fim ao histórico padrão-ouro e inaugurando uma nova
fase de “câmbios flutuantes”. Logo a seguir, a crise petrolífera de 1973 evidenciou as
vulnerabilidades associadas às interdependências económicas e à insuficiente regulação
dos mercados internacionalizados. Este tipo de distorções e insuficiências levariam a
revisões e readaptações da ordem económica liberal, através de reformas e novas regras
no FMI, no GATT ou na OCDE, da criação de novos quadros intergovernamentais de
cooperação e regulação - como o G7
10
, cuja primeira cimeira teria lugar em 1975 - ou
ainda de novos mecanismos de diálogo entre o sector privado e dirigentes políticos, de
que talvez o melhor exemplo seja o Fórum Económico Mundial/Fórum de Davos, lançado
em 1971.
As liberdades e direitos existentes nas democracias liberais foram atraindo cada vez mais
povos e indivíduos “externos” à ordem liberal, incluindo muitos “dissidentes” do “Bloco
Leste”. De igual modo, o desenvolvimento económico propiciado pelo modelo liberal
atraía muitos povos e mesmo dirigentes de modelos opostos. Foi este o caso de Deng
Xiaoping que, a partir de 1978, abandonando a ortodoxia maoísta e com grande
pragmatismo, lançou na República Popular da China reformas profundas no sentido de
“criar o socialismo de características chinesas com os meios do capitalismo”. Alguns anos
depois, em 1985, Mikhail Gorbatchov viu os hierarcas do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS) aprovarem a sua Perestroika. A diferença é que as reformas chinesas
nunca puseram em causa o papel dirigente do Partido Comunista da China (PCC) e estão
na base da modernização e ressurgência da China até aos dias de hoje, enquanto a
Perestroika de Gorbatchov não impediu, em poucos anos, o fim do “império soviético” e
o colapso do PCUS e da própria URSS. A implosão soviética pôs fim à ordem mundial da
Guerra Fria, favorecendo a expansão da ordem internacional liberal.
4. Da mundialização à desconstrução da ordem liberal
A ordem mundial alterou-se subitamente, marcada por eventos significativos: em 1989,
ruiu o “muro de Berlim”, símbolo maior da divisão da Europa e do mundo em Guerra
Fria; em 1990, o CSNU autorizou o uso da força para expulsar o Iraque do Kuwait por
uma ampla coligação internacional liderada pelos EUA; em 1991, desfaziam-se
oficialmente o COMECOM e o Pacto de Varsóvia e a URSS dava lugar a 15 novos Estados
independentes, um deles a Federação Russa. Pelo meio, a União Soviética e a RPChina
normalizaram as suas relações, em 1989, ano em que também ocorreu a “tragédia de
Tiananmen”. É importante recordar estes últimos eventos para sublinhar que terminava,
assim, a “dupla Guerra Fria”, com dois vencedores principais, os EUA e a China; e que
com a repressão brutal dos anseios democráticos na China, o regime do PCC se colocou
no sentido contrário da tendência de liberalização politica da época.
A mundialização da ordem internacional liberal
Os EUA ficavam sozinhos na categoria de superpotência, numa estrutura de poder que
passava, então, a ser unipolar. E pela terceira vez no Século XX, traçavam as linhas
10
Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido e República Federal da Alemanha.
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orientadoras de uma “nova ordem mundial”, com o Presidente Republicano George Bush
a proclamar, na AGNU, a visão
of a new partnership of nations… based on consultation, cooperation, and
collective action, especially through international and regional organizations…
the rule of law…a partnership whose goals are to increase democracy,
increase prosperity, increase the peace, and reduce arms…. Calls for
democracy and human rights are being reborn everywhere... (Bush, 1990a).
No ano seguinte, na ressaca da vitória na “Guerra do Golfo”, o mesmo Presidente
Americano assegurava que «in our quest for a new world order… the United States has
no intention of striving for a “Pax Americana”…. we seek a “Pax Universalis” built upon
shared responsibilities and aspirations.» (Bush, 1991). Os sucessivos inquilinos da Casa
Branca assumiram com entusiasmo o papel de hyperpuissance: «Não há substituto para
a liderança americana», disse Bush (1990b); ou «Nação Indispensável», conforme
preferiam dizer a Secretária de Estado da Administração Clinton, Madeleine Albright
(1998) e o Presidente Barak Obama (2014). Por outro lado, sob a liderança dos EUA
apoiados pelos seus aliados e parceiros “Ocidentais”, a ordem liberal expandiu-se e
mundializou-se.
O fim da Guerra Fria desencadeou novas vagas de democratização por todo o globo,
parecendo confirmar a tese de Fukuyama (1989) de que não havia outra alternativa de
organização política viável. Aliás, a “Carta de Paris” de 1990, subscrita por quase todos
os países europeus e também Estados Unidos, Canadá e URSS estabelecia «democracy
as the only system of government of our nations»
11
. A grande maioria dos ex-regimes
comunistas, do Leste europeu à Mongólia, passando pela nova Rússia, abraçou a
democracia liberal, o mesmo acontecendo com inúmeros antigos regimes autocráticos
anticomunistas e outros autoritarismos. Segundo a Freedom House (2017), 34% dos
países eram “democracias”, em 1986; essa percentagem saltou para 41%, em 1996 e
47%, em 2006. O novo contexto internacional permitiu também pôr termo a certas
situações antes existentes, como o fim do regime segregacionista do apartheid na África
do Sul ou o fim da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia e o exercício da
autodeterminação timorense.
Paralelamente, a concepção liberal/Ocidental dos Direitos Humanos “universalizou-se”,
favorecendo inúmeras campanhas a favor dos direitos humanos e desde a defesa das
minorias e da liberdade religiosa aos direitos das mulheres visando, frequentemente,
governos e dirigentes autocráticos. Estes são os principais visados também de noções
como “segurança humana”, que ganhou relevo desde meados dos anos 1990 com base
na defesa da “dignidade humana” e na fórmula “liberdade de temer e liberdade de
querer”. O novo primado dos direitos humanos está, igualmente, associado a outros
princípios controversos como o “direito de ingerência humanitária” (invocado pela NATO
na intervenção no Kosovo, em 1999) ou a “Responsabilidade de Proteger”, adoptada na
Cimeira Mundial da ONU, em 2005. E precisamente para reforço dos direitos humanos
11
E explicita ainda: «Democratic government is based on the will of the people, expressed regularly through
free and fair elections. Democracy has as its foundation respect for the human person and the rule of law.
Democracy is the best safeguard of freedom of expression, tolerance of all groups of society, and equality
of opportunity for each person» (Charter of Paris, 1990).
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no mundo e com competência específica nesse domínio, a AGNU criou, em 2006, o
Conselho dos Direitos Humanos, herdeiro da extinta Comissão dos Direitos Humanos. Por
outro lado, surgiram novas convenções internacionais e “pactos globais” visando maior
protecção dos direitos das crianças, das mulheres, das pessoas com deficiência ou dos
migrantes e refugiados. Ganhou interesse e impacto a perseguição internacional aos
violadores dos direitos humanos, levando alguns a dizer que «As Acções Judiciais em
matéria de Direitos Humanos estão a mudar a Política Mundial» (Sikkink, 2011).
Desenvolveu-se ainda a justiça penal internacional (Teles e Kowalski, 2017) e
estabeleceu-se o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 2002. Tal como ganharam “nova
vida” o Tribunal Internacional de Justiça, órgão jurisdicional da ONU e o Tribunal
Permanente de Arbitragem e outros tribunais. Inevitavelmente, muitos destes
desenvolvimentos significaram a erosão da soberania tradicional do Estado, característica
distintiva de ordens internacionais anteriores.
No domínio da segurança, expandiu-se a Pax Americana. Os EUA mantiveram o seu
sistema de alianças legado da Guerra Fria, estabeleceram novas parcerias estratégicas
bilaterais e multilaterais (como o “Quad” com o Japão, a Austrália e a Índia, desde 2007)
e a NATO alargou-se, quase duplicando o número de membros, maioritariamente antigos
adversários do Leste Europeu. Além disso, mantiveram a sua omnipresença estratégica
global e continuaram a manter o papel de equilibrador” na Europa, no Médio Oriente e
na Ásia-Pacífico. E intervieram militarmente, não apenas na liderança de missões da ONU
(Guerra do Golfo ou Somália), mas também da NATO (da Bósnia ao Afeganistão,
passando pelo Kosovo e pela Líbia) e de certas coligações de vontade” (do Haiti ao
Iraque e à Síria), bem como invadindo e ocupando o Afeganistão em “legítima defesa”
na sequência do 11 de setembro. Acrescem as muitas operações especiais, os
bombardeamentos cirúrgicos, múltiplos exercícios militares e de “livre navegação dos
mares” ou ainda a perseguição implacável aos seus inimigos, de Milosevic a Saddam
Hussein, Ossama Bin Laden, Muammar Gaddafi ou Abu Bakr al-Bagdadi por vezes,
exercitando uma espécie de “direito de ingerência antiterrorista”.
Por outro lado, o fim da Guerra Fria favoreceu, de imediato, vários processos de paz,
desde o Camboja a Angola, do conflito Israelo-Palestiniano a Moçambique. Aumentou
consideravelmente o mero de “missões de paz da ONU, disparando o número de
peacekeepers e de países participantes e diversificando-se a natureza e tipologia dessas
missões, desde a prevenção de conflitos à estabilização e reconstrução pós-bélica (ver
United Nations Peacekeeping). A “segurança colectiva” conhecia novo impulso reforçada,
entretanto, também pelas missões levadas a cabo por rias organizações regionais
NATO, UE, OSCE, UA, CEDEAO/ECOWAS, OEA - e por coligações internacionais ad hoc,
incluindo na luta contra o terrorismo ou a pirataria marítima (SIPRI Multilateral Peace
Operations Database). Entretanto, a CSCE deu origem à Organização para a Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE), em 1994, ano em que também se estabeleceu o ASEAN
Regional Forum (ARF) na Ásia-Pacífico. A África do Sul, a Líbia e os ex-soviéticos
Bielorrúsia, Cazaquistão e Ucrânia desistiram dos seus programas nucleares, e foi
possível também estabelecer o “acordo nuclear” com o Irão, em 2015
12
.
12
Formalmente, Plano de Ação Conjunto Global (Joint Comprehensive Plan Of Action-JCPOA) celebrado entre
os cinco Membros-Permanentes do CSNU mais a Alemanha (5+1) com o Irão, em 2015.
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No domínio da economia, aumentaram as interdependências e acelerou bruscamente a
“globalização económica”. Assistiu-se ao reforço e alargamento do FMI, do Banco Mundial
ou da OCDE, e o Fórum Económico Mundial / Fórum de Davos passou a convidar
empresários e dirigentes políticos de antigos regimes comunistas e das novas “economias
emergentes”. E estabeleceram-se inúmeros novos acordos e zonas de comércio livre,
novas instituições e novos mecanismos multilaterais: destacam-se o G20 que, desde
1999, reúne as maiores economias do mundo e, sobretudo, a criação, em 1995, da
Organização Mundial do Comércio, em substituição do antigo GATT, considerada por
Ikenberry (2011a: 62) «a instituição mais formal e desenvolvida da ordem internacional
liberal». No espírito do “comércio livre”, mas também como contrapeso à crescente
influência económica da China, os EUA promoveram novos quadros mega-regionais”
com os seus parceiros tradicionais, concretamente a Parceria Trans-Pacífico /Trans-
Pacific Partnership (TPP) acordada entre 12 países
13
, em 2015 e o Acordo de Parceria
Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) com a UE, negociado desde 2013.
Paralelamente, proliferaram as organizações internacionais e regionais, em todos os
domínios e todas as regiões do mundo. A ONU alargou-se quer a Estados antes
existentes (como as duas Coreias, em 1991) quer aos novos Estados independentes, dos
ex-soviéticos e ex-jugoslavos a Timor-Leste ou Sudão do Sul, tendo atualmente quase
quatro vezes mais membros do que quando foi fundada, ao mesmo tempo que se foi
reformando e expandindo o “sistema onusiano”. O Conselho da Europa estendeu-se aos
antigos adversários e as antigas Comunidades Europeias deram lugar à União Europeia
(UE) que se aprofundou e também alargou a muitos novos membros, essencialmente,
da Europa Central e Oriental, incluindo ex-soviéticos. A antiga Organização da Unidade
Africana foi substituída pela nova União Africana (UA), abrangendo a generalidade dos
países do Continente Africano, tal como a Associação das Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN) que se alargou a praticamente todos os países dessa região (a excepção é
Timor-Leste) e aprofundou enquanto “Comunidade”. Por outro lado, foram criadas
inúmeras novas organizações regionais, sub-regionais, pan-regionais e inter-regionais,
da Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC) ao North American Free Trade Agreement
(NAFTA), da Comunidade de Estados Independentes (CEI) ao Mercosul e à Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral (CEDEAO/SADC). Com efeito, o “regionalismo” é o
outro lado da “globalização”, entendida como a intensificação de todo o tipo de fluxos e
a diminuição de distâncias espaciais e temporais à escala global. A multiplicação de
instituições foi acompanhada pela adesão de mais Estados a convenções internacionais
e por um sem número de novos acordos internacionais e regionais sobre as mais variadas
matérias, incluindo algumas que ganharam relevo na agenda global
14
.
No sentido de “mundializar” a ordem liberal, os Estados Unidos e seus aliados procuraram
envolver em instituições-chave, entre muitos outros, a Rússia e a China. A Federação
Russa foi logo reconhecida como substituta da defunta URSS no lugar de Membro-
Permanente do CSNU, em 1991, aderindo também ao FMI e ao Banco Mundial, em 1992,
ao G7, em 1997 (que passou a “G8”, até 2014) e à OMC, em 2012. Pelo meio, a Rússia
13
Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura
e Vietname.
14
De que são exemplo a Convenção Internacional para a Repressão dos Atos de Terrorismo Nuclear (2005) e
a “Estratégia Global Contra o Terrorismo” (2006), o Protocolo de Quioto (1995) e o Acordo de Paris sobre
alterações climáticas (2015) ou a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime (2001) e a Resolução 74/197
da AGNU (2019) sobre Tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento sustentável.
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tornou-se parceira formal da NATO
15
e concretizou com os EUA vários acordos sobre
redução e controlo de armamentos estratégicos
16
. A República Popular da China (RPC)
era membro do CSNU, desde 1971 e do FMI e do Banco Mundial, desde 1980, quando
tomou o lugar anteriormente ocupado pela República da China/Taiwan nessas
instituições. E apesar das tensões provocadas pela tragédia de Tiananmen, foi
rapidamente integrada na APEC, em 1991 e, mais importante, na OMC, em 2001. Os
EUA, a China e a Rússia envolveram-se também em múltiplos outros mecanismos
multilaterais, desde as “Conversações a Seis”
17
sobre o programa nuclear e míssil da
Coreia do Norte à Iniciativa Global para Combater o Terrorismo Nuclear, do G20 ao ARF.
Paradoxos e ambivalências de uma ordem liberal mundializada em desconstrução
Um dos aspectos mais salientes da ordem mundial pós-Guerra Fria foi a proliferação e o
aumento da relevância dos actores não estatais, desde as organizações internacionais e
regionais às empresas multinacionais, associações cívicas e ativistas transnacionais,
grupos terroristas, redes de criminalidade organizada, ONG’s ou hackers. Porém, a ordem
internacional é aquilo que os principais actores fazem dela e, portanto, as grandes
potências continuam a ser os seus grandes artífices.
Esta é apenas uma das muitas ambivalências da ordem liberal mundializada, algumas
das quais contribuem, paradoxalmente, para a sua desconstrução. Por exemplo, a vaga
de democratização não impediu a subsistência de muitos autoritarismos por todo o
mundo, incluindo alguns regimes oficialmente “socialistas”. Registar-se-iam, entretanto,
alguns “retrocessos”, incluindo na Rússia desde a ascensão de Vladimir Putin ao poder,
em 1999. Paradoxalmente, em vez do liberalismo económico contribuir para o liberalismo
político, a hiperglobalização económica pareceu subverter a democracia (Rodrik, 2011 e
Halper, 2012), dado que o sucesso económico se tornou num factor de “legitimação” de
certas autocracias, com destaque para a RPChina. Por outro lado, continuam a verificar-
se violações massivas dos Direitos Humanos, e as instituições e convenções
internacionais mostram ter um impacto limitado no comportamento dos Estados e de ser
incapazes de regular eficaz e eficientemente algumas questões cruciais.
No domínio económico, apesar de uma redução muito significativa da pobreza no mundo
e da melhoria das condições de vida de centenas de milhões de pessoas, não se
impediram certas “crises” em inúmeros países e várias regiões, como a de 1997-98 no
Sudeste Asiático, mas com destaque para a crise económico-financeira que começou nos
EUA, em 2007-08, e rapidamente se tornou global. Paradoxalmente, a
“hiperglobalização” retirou influência aos dois lados do Atlântico Norte e, ao invés,
contribuiu para a centralidade da China e da Ásia-Pacífico na economia e no comércio
mundiais
18
. E o crescimento económico está na base do aumento do poder nacional
15
A Federação Russa aderiu ao Conselho de Cooperação do Atlântico Norte, em 1991 - fórum de diálogo
substituído, em 1997, pelo Euro-Atlantic Partnership Council - e ao programa Parceria para a Paz, em 1994,
formalizando o relacionamento bilateral com o “Ato Fundador”, em 1997 e o Conselho NATO-Rússia, desde
2002.
16
Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF), START 1 e START 2, Tratado de Moscovo
sobre Redução de Armas Estratégicas Ofensivas (SORT) e Novo START.
17
Também com a participação das duas Coreias e do Japão.
18
Em 1990, as “economias avançadas” representavam um share no PIB mundial em paridades de poder de
compra (PPP) de 63.25%, enquanto o das “economias emergentes” era de 36.75%; a situação inverteu-se
totalmente e, em 2021, essa parcela das economias avançadas baixou para 44.43% e o das economias
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abrangente” da China, com reflexos em todos os domínios, das capacidades militares à
ciência e tecnologia e à influência político-diplomática.
O progresso da segurança colectiva e a Pax Americana não impediram o genocídio do
Ruanda nem outros falhanços na Somália, no Haiti, na RDCongo ou no Sudão.
Continuaram por resolver inúmeros diferendos e disputas territoriais, fronteiriças e sobre
zonas económicas exclusivas, persistindo também alguns “hotspots” como a Palestina,
Caxemira, Taiwan, Mares da China do Sul e Oriental ou Península Coreana. Eclodiram
novos conflitos, da Geórgia à Síria, da região do Sahel à Ucrânia e ao men. A “Primavera
Árabe” resultou num turbulento “caos” que instigou mais instabilidade, insegurança e
violência. Proliferaram as redes transnacionais de criminalidade organizada e surgiram
novos e poderosos grupos terroristas, como a Al-Qaeda e o ISIS. Entretanto, a Índia e o
Paquistão (ambos, em 1998) e a Coreia do Norte (em 2006), nuclearizaram-se.
Paralelamente, depois de uma primeira década de redução global dos orçamentos
militares, as despesas militares mundiais voltaram a subir, ultrapassando as do tempo
da Guerra Fria
19
. E regressaram as “corridas aos armamentos”, em particular no Médio
Oriente e na Ásia-Pacífico, registando-se, entretanto, alterações substanciais no ranking
dos maiores orçamentos de defesa, com destaque para a ascensão da China
20
.
A hegemonia dos EUA também não eliminou as aspirações de outras potências, da China
à Rússia, Índia, Japão, UE, África do Sul, Brasil, Turquia, Arábia Saudita ou Irão. Com
efeito, o fim da bipolaridade EUA-URSS foi encarado por várias potências como a
possibilidade de lhe suceder um sistema “multipolar”, pelo que o “hegemonismo” e o
“unilateralismo” dos EUA foi sendo crescentemente contestado. Entretanto, o “momento
unipolar” (Krauthammer, 1990/91) ou o “interregno unipolar” (Gaspar, 2019: 123-172)
foi dando lugar a uma estrutura “uni-multi-polar” (Tomé, 2003 e 2004) e, depois, “uni-
bi-multi-polar” (Tomé, 2016, 2018 e 2021), onde a supremacia americana cada vez mais
incompleta coexiste com vários outros polos de poder, globais e regionais, dos quais se
passou a destacar a ressurgente China. Acresce que a visão sobre a “ordem
internacional” e, em particular, sobre os putativos benefícios universais da ordem liberal
nunca foram partilhados por muitos fora do “Ocidente” nem por todos os Ocidentais.
A China tem sido a principal beneficiária da ordem mundial pós-Guerra Fria, mas o regime
do PCC nunca deixou de criticar o “hegemonismo” dos Estados Unidos, de reclamar a
“multipolaridade” e de vociferar contra a ingerência dos países Ocidentais nos seus
emergentes subiu para 55.57% (IMF, 2021). Paralelamente, o share no PIB mundial em PPP da América do
Norte era, em 1990, de 26.53%, o da Europa Ocidental de 26.13% e o da Ásia-Pacífico de 27.52%; em
2021, essas parcelas da América do Norte e da Europa Ocidental caíram para 19.29% e 15.18%,
respectivamente, enquanto o da Ásia-Pacífico disparou para 45.14% (ibid.). A China foi mesmo a grande
ganhadora da globalização, tornando-se central na economia e no comércio mundiais: a sua parcela no PIB
mundial em PPP disparou de 4.03%, em 1990, para 18.78%, em 2021, enquanto no mesmo período os
shares dos EUA e da UE baixaram, respectivamente, de 21.64% para 15.97% e de 23.60% para 14.74%
(ibid.). A RPC tende a tornar-se a maior economia do mundo também em termos nominais dentro de poucos
anos, sendo já o maior exportador e importador mundial e o maior parceiro comercial dos EUA, da UE27,
da ASEAN10 e de mais de cem países por todo o mundo (WTO website).
19
Em 1990, o mundo gastava globalmente 1.372 Mil Milhões USD, valor que, a preços constantes, foi
ultrapassado a partir de 2004, atingindo os 1.960 Mil Milhões USD, em 2020 (SIPRI, 2021).
20
Embora permanecendo sempre destacados no topo desse ranking, os EUA começaram a ver reduzir o seu
share; as potências europeias foram caindo posições e perdendo parcelas; ainda que mantendo a paridade
nuclear com os EUA, a Rússia viu amentar o hiato face aos EUA e, entretanto, foi ultrapassada pela China
e, em alguns anos, também pela Índia e pela Arábia Saudita; e a China subiu ao segundo lugar destacado
desse ranking, aproximando-se gradualmente dos EUA e distanciando-se cada vez mais das restantes
potências (ver SIPRI, 2021).
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assuntos internos (China, 2019a e 2019b). Na realidade, o regime de Pequim não
esconde a «distinction between three elements of the “U.S.-led world order”: “the
American value system,” “the U.S. military alignment system”; and the international
institutions including the UN system”» (Fu Ying, 2016). Pelo que quando os dirigentes
chineses falam em “apoiar a ordem internacional” estão a referir-se a uma ordem
baseada em regras”, mas não a um sistema baseado nos valores ocidentais nem à Pax
Americana. De uma e outra forma, é isso que Pequim repete à exaustão, incluindo pela
voz do Presidente da RPC e Secretário-Geral do PPC:
we should stay committed to international law and international rules instead
of seeking one’s own supremacy… China will continue to promote a new type
of international relations…Let us all join hands and let multilateralism light our
way toward a community with a shared future for mankind. (Xi Jinping, 2021).
A verdade é que o regime chinês viola muitas dessas regras, incluindo as que
formalmente subscreve: por exemplo, apesar de ser parte da Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), Pequim não não acatou a decisão do Tribunal
de Arbitragem sobre o Mar do Sul da China que, em 2016, sentenciou que «China’s claims
to historic rights, or other sovereign rights or jurisdiction, with respect to the maritime
areas of the South China Sea encompassed by the relevant part of the ‘nine-dash line’
are contrary to the Convention [UNCLOS] and without lawful effect» (PCA, 2016: 473,
X.B.2), como continuou a militarizar e reforçar as suas posições no Mar do Sul da China,
tentando estabelecer uma espécie de mare nostrum ou mare clausum. Com efeito, o PCC
parece empenhado em restaurar a centralidade da China, expandir a sua esfera de
influência e ter um papel de liderança na reforma do sistema global de governação:
China moving closer to center stage… new era of great power diplomacy with
Chinese characteristics… take an active part in leading the reform of the global
governance system… a leading position in terms of economic and
technological strength, defense capabilities, and composite national
strength… crossed the threshold into a New Era» (Xi Jinping, 2017).
É largamente este o sentido do “sonho chinês” e da “Nova Era de uma China mais
autoconfiante e cada vez mais assertiva nas suas revindicações, sobretudo, desde a
ascensão de Xi Jinping à liderança do PCC e da RPC, em 2012 (Shambaugh, 2020;
Markey, 2020). Entretanto, o seu crescente poder económico tornou a China numa
extraordinária parceira alternativa ao “Ocidente”, prejudicando os esforços de europeus
e americanos no sentido de promover a democracia, os direitos humanos e o estado de
direito.
Por seu lado, a Rússia considera-se a principal vítima do fim da Guerra Fria, opondo-se
muito ao alargamento da NATO e à expansão da influência dos “actores extra-
regionais” Ocidentais (EUA, NATO e UE) no espaço pós-soviético, entendidos como
ameaça, ingerência na sua “vizinhança próxima” e uma reedição da «infamous policy of
containment» (Putin, 2014). O Presidente Russo considera mesmo que «the collapse of
the Soviet Union was a major geopolitical disaster» (Putin, 2005), por duas razões
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fundamentais: por um lado, porque a Rússia perdeu muito do que é seu”
21
; por outro,
porque provocou um desequilíbrio de poder no mundo que os EUA aproveitaram para
forçar o seu unilateralismo e o Ocidente para impor os seus valores e interesses,
desencadeando caos e instabilidade
22
. Tal como Pequim, Moscovo defende a
multipolaridade, dispondo-se a utilizar todos os meios para salvaguardar os seus
interesses e objectivos estratégicos. Isso passou, por exemplo, por desenvolver parcerias
estratégicas com a China e a Índia; por invadir a Geórgia e reconhecer unilateralmente
as independências da Abkázia e da Ossétia do Sul, em 2008; por anexar a Crimeia
ucraniana, em 2014 e “dividir” o que resta da Ucrânia controlando o separatismo no
Donbas; ou por intervir militarmente na Síria, desde 2015, em apoio ao regime de Bashar
al-Assad. A Rússia não é a União Soviética, mas Putin atua como se fosse (Tomé,
2018/19), insistindo no regresso a um concerto entre grandes potências e de partilha de
zonas de influência similar às conferências de Ialta e Potsdam de 1945. Acresce que o
Presidente Russo passou a considerar que «The liberal idea has become obsolete» (Putin,
2019).
As visões da China e da Rússia sobre a ordem mundial não são inteiramente coincidentes,
mas isso não prejudica a sua articulação estratégica que se intensificou desde a anexação
russa da Crimeia (Lukin, 2018; Gaspar, 2019; Tomé, 2018 e 2019; Sutter, 2019; Lo,
2020; Markey, 2020; Stent, 2020). o por serem membros de uma “internacional
autocrática”, mas porque consideram que isso serve os seus respectivos propósitos
geopolíticos, estratégicos e económicos - incluindo conter a supremacia dos EUA, dividir
o Ocidente e as potências democráticas e suprimir influências políticas liberais nas
organizações e convenções internacionais e na ordem mundial. Ambas partilham o
pressuposto de que as grandes potências têm certos “direitos naturais”, incluindo esferas
regionais de influência; têm uma noção tradicional de segurança e de soberania,
absolutizando de forma instrumental o princípio da “não ingerência nos assuntos
internos”; e são concordantes a respeito de ideias como a “internet soberana”.
Paralelamente, Moscovo e Pequim têm sustentando certos regimes autocráticos, da
Coreia do Norte à Venezuela, Irão, Cuba, Síria, Bielorrússia, Myanmar e inúmeros países
africanos com apoio político e travando sanções no CSNU (usando o seu direito de
veto), furando sanções e bloqueios internacionais, vendendo-lhes armamentos e fazendo
negócios.
Essa desconstrução da ordem liberal passa também pelas organizações internacionais.
Moscovo e Pequim promovem, cada uma à sua maneira, uma espécie de embeded
revisionismnas instituições que integram conjuntamente com as potências ocidentais,
da ONU à OMC. Por outro lado, institucionalizam “realidades paralelas”. Com efeito, a
China e a Rússia estão entre as principais grandes potências e “potências intermédias
que lançaram novas instituições e novos mecanismos de diálogo e cooperação bilaterais,
trilaterais e multilaterais, criando aquilo que Barma, Ratner e Weber (2007) apelidaram
21
«After the collapse of the USSR, Russia, which was known as the Soviet Union or Soviet Russia abroad, lost
23.8 percent of its national territory, 48.5 percent of its population, 41 of the gdp, 39.4 percent of its
industrial potential (nearly half of our potential, I would underscore), as well as 44.6 percent of its military
capability due to the division of the Soviet Armed Forces among the former Soviet republics» (Putin, 2018).
22
«What is happening in today’s world... is a tentative to introduce precisely this concept into international
affairs, the concept of a unipolar world… first and foremost the United States, has overstepped its national
borders in every way» (Putin, 2007); «After the dissolution of bipolarity on the planet, we no longer have
stability… instead of democracy and freedom, there was chaos, outbreaks in violence and a series of
upheavals» (Putin, 2014).
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de «um mundo sem o Ocidente». Exemplos disso são o Triângulo Estratégico Rússia,
Índia e China, desde 2003
23
, ou o diálogo trilateral China-Japão-Coreia do Sul, desde
2008; grupos de países como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul, criado em 2003), o
BRICS (Brasil, ssia, Índia e China, desde 2006)
24
ou o MIKTA (México, Indonésia,
Coreia do Sul, Turquia e Austrália, desde 2013); e instituições como a Organização de
Cooperação de Xangai, desde 2001. Somam-se o Novo Banco de Desenvolvimento/New
Development Bank (NDB) criado pelos BRICS, em 2014 e o Banco Asiático de
Investimento em Infraestruturas/Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB),
estabelecido por 57 países fundadores, em 2015. A Rússia criou ainda a Comunidade
Económica Eurasiática-União Económica Eurasiática (a primeira foi criada em 2000,
sendo substituída pela segunda, em 2014) e a Organização do Tratado de Segurança
Colectiva (CTSO/CSTO), em 2002. No caso da China, essa “ordem sino-cêntrica” envolve,
igualmente, os muitos acordos bilaterais de comércio livre e investimento, a concessão
de créditos e empréstimos, o “consenso de Pequim” alternativo ao consenso de
Washington” (ver Ramo, 2004 e Halper, 2012) e, claro, a Belt and Road Initiative (BRI)
ou “Nova Rota da Seda” lançada pelo Presidente Xi Jinping em 2013 (Leandro e Duarte,
2020). Acrescem outros quadros como o Belt and Road Forum for International
Cooperation, China International Import Expo, Hongqiao International Economic Forum,
Fórum de Cooperação China-África, Fórum de Cooperação China-Estados Árabes, Fórum
da China e Comunidade dos Estados da América Latina e Caraíbas, Boao Forum for Asia,
Conferência sobre Diálogo das Civilizações Asiáticas, World Internet Conference, Fórum
Macau da China com os Países de Língua Portuguesa ou o mecanismo China + 17 países
do Centro e Leste europeu e Grécia.
Para a desconstrução da ordem liberal mundializada têm contribuído também vários
governos Ocidentais. Desde logo, os EUA e os seus aliados mostraram estar dispostos a
“quebrar as regras” da ordem de segurança, com destaque para as intervenções militares
da NATO contra a Sérvia, em 1999 e a anglo-americana contra o Iraque de Saddam, em
2003 - embora nenhuma tenha envolvido a anexação de território ou certos abusos na
“Guerra Global contra o Terrorismo”, fragilizando a autoridade moral do “Ocidente” como
defensor de “uma ordem baseada em regras”. Além disso, os EUA retiraram
atabalhoadamente do Iraque e do Afeganistão, em 2011 e 2021, respectivamente,
favorecendo a ascensão do ISIS (ver Tomé, 2015) e o regresso dos Talibã ao poder em
Cabul. Também noutras intervenções, como no Haiti, na Somália, na Líbia ou na Síria,
os resultados não foram a democracia e o estado de direito, “abandonando”, aliás, os
seus aliados democráticos locais. Por outro lado, os EUA não ratificaram certas
convenções internacionais a que aderiu a maioria dos países (como o Protocolo Quioto
sobre redução dos gases com efeito de estufa ou a Convenção sobre trabalho forçado da
Organização Internacional do Trabalho), tal como nunca se associaram à Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Os EUA e vários dos seus aliados e
parceiros também não se juntaram ao TPI e, frequentemente, parecem instrumentalizar
o direito de ingerência humanitária, o princípio da responsabilidade de proteger, a
23
Esta data refere a primeira reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos RIC à margem de uma
sessão da AGNU, em Nova Iorque, na sequência de proposta do antigo Primeiro-Ministro russo Yevgeny
Primakov no final dos anos 1990.
24
Os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Brasil, Rússia, Índia e China reuniram-se primeiramente
enquanto BRIC, em setembro de 2006, à margem de uma reunião da AGNU, em Nova Iorque. A primeira
Cimeira dos BRIC ocorreria em junho de 2009, em Ecaterineburgo, Rússia. A África do Sul juntou-se ao
grupo a partir de 2011, passando a sigla a ser "BRICS".
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“segurança humana” e certas “revoluções coloridas” não para promover a democracia, o
estado de direito e os direitos humanos, mas antes para projectar os seus interesses e
influência. Acresce que americanos e europeus têm preferido promover a segurança
colectiva através de missões da NATO, da UE e de “coligações de vontade” em vez de
disponibilizarem mais peacekeepers para as missões da ONU. Todos estes aspectos
ilustram que pode haver tensão entre “liberalismo” e “ordem”, ou como Geor Sorensen
(2006) referiu, entre “liberalismo de restrição e liberalismo de imposição”.
De igual modo, o Ocidente”, principal artífice da ordem económica liberal e das regras
e instituições que lhe estão associadas, é o principal responsável pela insuficiente
regulação da economia e do comércio mundiais ou pelas desvantagens comparativas do
próprio “Ocidente” na era da hiperglobalização. E foi nos EUA que teve início, em 2007-
08, a crise económico-financeira que contagiou o mundo. Por outro lado, com muita
frequência, os EUA e os seus parceiros Ocidentais secundarizam a democracia, o estado
de direito e os direitos humanos em favor de interesses económicos, como bem
exemplifica a entrada da China na OMC, em 2001. O que também revela as tensões entre
pilares da ordem liberal. Na realidade, americanos e europeus tendem a identificar os
seus valores e interesses com os da “comunidade internacional” e, para tornar a ordem
mundial mais liberal, foram minando e adulterando as bases dessa mesma ordem.
Para a desconstrução da ordem liberal acrescem ainda dois outros factores: a polarização
do “Ocidente” e o recuo da Democracia. As divergências e divisões quer transatlânticas
quer intra-europeias vêm em crescendo desde a viragem do Século, a respeito do
reconhecimento da independência do Kosovo, da doutrina americana da “guerra
preventiva”, da intervenção no Iraque, da crise das dívidas soberanas, da gestão da crise
migratória, do Brexit, das tensões com a Turquia e disputas no Mediterrâneo Oriental,
da “partilha do fardo”, da situação na Palestina, das relações com a Rússia e com a China
ou da gestão da crise pandémica. Por outro lado, os autoritarismos, nacionalismos,
protecionismos e populismos foram ganhando expressão também no “Ocidente” - por
vezes, violando fundamentos do liberalismo político, como o estado de direito, a liberdade
de imprensa e a separação de poderes; adulterando “valores universais” de salvaguarda
de direitos das minorias, dos migrantes e dos refugiados; e atacando o multilateralismo
e as instituições internacionais. A realidade é que a Democracia está, de facto, em recuo:
por exemplo, o mais recente “Freedom in the World” da Freedom House (2021) marca o
15º ano consecutivo de declínio da liberdade global, do mesmo modo que o último
“Democracy Index” do The Economist Intelligence Unit (2021) regista o pior resultado
de sempre desde que o Índice foi publicado pela primeira vez, em 2006.
Estes aspectos agravaram-se durante a Presidência de Donald Trump, cujo “America
First” foi a antítese da ordem liberal. A postura de Trump baseia-se na ideia de que o
internacionalismo liberal é prejudicial para a posição global dos EUA e que favorece
os seus inimigos e adversários, pelo que rompeu com muitas das regras e instituições
para assumir uma posição ostensivamente nacionalista e confrontacional num “mundo
competitivo” (ver The White House, 2017), e não contra a China. Trump enveredou
por uma linha nacionalista, populista e protecionista que não não colocou a democracia
e os direitos humanos entre as prioridades da política externa americana como foi
antagonista do comércio livre e das instituições e convenções internacionais. Por
exemplo, com Trump os EUA desfizeram o NAFTA (recriando-o enquanto United-States-
Mexico-Canada Agreement or USMCA) e retiraram-se do Acordo de Paris sobre Alterações
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Climáticas, do Acordo Nuclear com o Irão, do Tratado INF, do Conselho dos Direitos
Humanos da ONU, da UNESCO, do Tribunal Internacional de Justiça, do Pacto Global
sobre Migrações e Refugiados, do Tratado das Nações Unidas sobre o Comércio de Armas
(ATT), do Tratado de Céus Abertos (Open Skyes) e da Organização Mundial de Saúde
(OMS). Paralelamente, além da “guerra comercial” com a China, o proteccionismo de
Trump visou os seus tradicionais aliados e parceiros, incluindo novas tarifas impostas ao
Japão e à União Europeia e a retirada dos EUA do TPP e das negociações do TTIP com a
UE. Trump atacou também instituições centrais como a ONU e a OMC, e fruto das suas
opções, os aliados e parceiros dos EUA ficaram frequentemente do lado oposto dos EUA
(e do mesmo lado da China e da Rússia). Além disso, os seus aliados e parceiros
mantiveram a linha do “comércio livre” e aprofundaram quer os laços entre si - como
espelham a manutenção do TPP, reconvertido em Comprehensive and Progressive
Agreement for Trans-Pacific Partnership (CPTPP ou TPP11) e o estabelecimento do EU-
Japan Strategic Partnership Agreement, EU-Japan Economic Partnership Agreement e
EU-Japan area of safe data flow) quer também com a China: em 15 de novembro de
2020, os 10 países ASEAN, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram
juntamente com a China o Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) e, em
30 de dezembro de 2020, a UE e a China chegaram a acordo de princípio acerca do
“Acordo Global sobre Investimento” (Comprehensive Agreement on Investment-CAI)
bilateral. Por outro lado, a Administração Trump abdicou de liderar o mundo numa crise
global como foi a pandemia Covid-19 o que, somando-se à desastrosa gestão interna da
crise pandémica, fez novamente questionar a posição dos Estados Unidos na ordem
internacional. E como se não bastasse, Trump acentuou divisões na sociedade e na
política dos EUA e pôs em causa a própria democracia americana, tentando travar a sua
derrota/vitória de Joe Biden-Kamala Harris inventando “fraudes” e incentivando o ataque
popular ao Capitólio.
A Administração Biden procura reverter muito desse legado de Trump e restaurar os
alicerces tradicionais da política externa americana com base no slogan “America is
Back”. Mantendo e até agravando o tom competitivo e confrontacional face a China e
também à Russia (Tomé, 2021), Biden pretende «Lead and sustain a stable and open
international system, underwritten by strong democratic alliances, partnerships,
multilateral institutions, and rules» (The White House, 2021: 9). Nesse sentido, por
exemplo, fez regressar os EUA ao Acordo de Paris e à OMS, mostra-se disponível para
recuperar o “acordo nuclear” com o Irão, renovou o empenho dos EUA na NATO e na
ONU, estendeu por cinco anos o Tratado Novo START com a Rússia, promoveu a primeira
Cimeira entre Chefes de Estado e de Governo do Quad, organizou uma “Cimeira Mundial
de Líderes sobre o Clima” (com a participação de Xi Jinping e Putin), incentivou convites
à Austrália, à Índia, à Coreia do Sul e à África do Sul para participarem na Cimeira do G7
e convocou, para dezembro de 2021, uma “cimeira para a democracia” juntando líderes
políticos e sociedade civil. Biden tem, de facto, procurado recuperar uma certa ordem
liberal, mas não removeu certas tarifas da era de Trump nem fez os EUA regressar ao
TPP ou ao TTIP.
A questão é que nem os EUA nem o “Ocidente” têm o poder, a centralidade e a coesão
para determinar o curso da ordem mundial. Como também reconhece a Administração
Biden, «the distribution of power across the world is changing China is the only
competitor potentially capable of combining its economic, diplomatic, military, and
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technological power to mount a sustained challenge to a stable and open international
system» (The White House, 2021: 7-8), pelo que outro dos seus objectivos, porventura
o principal, é «Promote a favorable distribution of power» (ibid: 9). Ora, para manter a
supremacia e liderança no mundo, os EUA podem ter que sacrificar certas premissas da
ordem liberal. Aliás, Biden admite a reconstrução da ordem mundial com outros,
designadamente a China, num misto de competição e cooperação: «We cannot and must
not return to the reflexive opposition and rigid blocs of the Cold War», acrescentando
que
we cannot focus only on the competition among countries that threaten to
divide the world, or only on global challenges that threaten to sink us all
together if we fail to cooperate. We must do both… Competition must not
lock out cooperation on issues that affect us all (Biden, 2021).
Por seu lado, os aliados e parceiros dos EUA estarão mais interessados em cultivar uma
determinada “ordem” envolvendo a China, a Rússia ou o Irão do que, simplesmente,
aceitar todos os ditames de Washington ou insistir numa ordem exclusivamente” liberal.
Daí que, por incapacidade e por opção, o “Ocidente” afirme, sobretudo, que «We are
committed to the rules-based international order» (NATO, 2021), o que não significa
necessariamente uma ordem liberal. Na realidade, sobre a ordem liberal mundializada
desconstruída está a ser edificada uma nova ordem mundial “baseada em regras”,
mas com “novas regras”, muitas delas “à chinesa”.
Considerações Finais
Tem fundamento afirmar a existência de “ordem” nas relações internacionais, tal como
se justifica referir uma “ordem internacional liberal”, mas não significando esta
necessariamente o mesmo que “ordem mundial”. Ordem internacional também não
equivale a estrutura de poder, embora reflita os valores, interesses e poder das suas
unidades principais. A construção da ordem liberal está associada à hegemonia dos EUA
e à mundivisão Ocidental, mas caracteriza-se por um conjunto de elementos constitutivos
distinto do de outras ordens internacionais, baseado no liberalismo político e económico
e em direitos humanos inalienáveis, e corporizado em determinadas regras e instituições
internacionais. A primeira tentativa de construir uma ordem liberal surgiu após a I Guerra
Mundial, a fim de impedir as terríveis consequências do tradicional sistema anárquico,
porém, rapidamente desconstruída pela falta de empenho das principais potências
democráticas e desfeita pelas grandes potências antiliberais. Em plena II Guerra Mundial,
iniciou-se a reconstrução da ordem liberal, mas que viria a estabelecer-se apenas no
“Mundo Livre” e no quadro mais amplo da ordem mundial da Guerra Fria. Só com o fim
desta é que a ordem liberal se “mundializou”, o que é verificável no plano das ideias e
dos valores e também em novas vagas de democratização, no alargamento e
aprofundamento das organizações que vinham da ordem liberal Ocidental e na
proliferação de novas instituições multilaterais, expansão da Pax Americana,
multiplicação de regras e convenções internacionais, reforço da segurança colectiva e
aceleração da “globalização” económica.
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No entanto, os muitos paradoxos e ambivalências da ordem liberal mundializada
conduziram à sua desconstrução. A hiperglobalização económica pareceu subverter a
democracia e “legitimar” certas autocracias, ao mesmo tempo que retirou influência ao
“Ocidente” e favoreceu o crescimento do poder nacional abrangente da China. A China e
também a Rússia são dois dos principais opositores da ordem liberal, que confundem
com o “hegemonismo” dos EUA e a “arrogância” do Ocidente: ameaçando os seus
vizinhos, exportando autoritarismo, absolutizando o princípio da “não ingerência nos
assuntos internos”, vinculando-se a um número limitado de regras internacionais que em
nada prejudicam a sua soberania, moldando as instituições e as convenções
internacionais existentes aos seus interesses e criando, paralelamente, novas instituições
e mecanismos. Por seu lado, seja na tentativa de tornar a ordem mundial mais liberal
seja para manter a sua primazia, os EUA e seus aliados europeus mostraram estar
dispostos a “quebrar as regras” da ordem liberal, o que ilustra que pode haver tensão
entre “liberalismo” e “ordem” e entre os pilares liberais da segurança, da economia e dos
direitos humanos. A isto acrescem, entretanto, a polarização do Ocidente”, o recuo da
Democracia e os impactos da Presidência Trump. A Administração Biden reintroduziu
normalidade na política externa dos EUA, mas isso significa uma outra forma de tentar
manter a primazia e liderança americana no sistema internacional e não que a ordem
mundial possa voltar a ser o que já foi.
Como sempre, a ordem internacional depende do que os principais actores fazem dela.
Aparentemente, a ordem liberal está numa desconstrução irreversível, estando a ordem
mundial a ser recriada numa intensa dinâmica simultânea de competição e cooperação,
fundamentalmente, entre os EUA e a China, mas não só. O que isso significa ao certo, e
o que se manterá liberal nessa nova ordem, ainda é cedo para perceber.
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