OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL12 N2, DT1
Dossiê temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020)
Dezembro 2021
28
ÀS VÉSPERAS DO LIBERALISMO, BOA RAZÃO E PROVA DO DIREITO COMUM NA
AMÉRICA PORTUGUESA (1769-1808)
CLÁUDIA ATALLAH
clauatallah@gmail.com
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF, Brasil) e Professora Permanente do
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Possui graduação em História e Mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). É Doutora em História pela UFF, com a tese “Da justiça em nome d’El Rey:
justiça, ouvidores e inconfidência em Minas Gerais (Sabará, 1720-1777)”, publicada pela EdUERJ
(2016) com financiamento FAPERJ. Publicou as coletâneas Justiças, Governo e Bem Comum na
administração dos Impérios Ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII) com Junia Furtado e
Patrícia Silveira (2016); Estratégias de poder na América portuguesa: dimensões da cultura
política séculos XVII-XIX), com Helidacy Corrêa (2010).
Resumo
O artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa, ainda em andamento, que investiga
as formas pelas quais a justiça administrativa do império português era exercida no reino e
em seus domínios na América, em fins do Antigo Regime. Para tanto procurarei concentrar-
me nos impactos da Lei Máxima de 18 de agosto de 1769, mais tarde intitulada Lei da Boa
Razão, na América Portuguesa, considerando, mormente, a validade do direito comum e das
práticas consuetudinárias durante o período estudado (1769 a 1808). A referida lei,
promulgada pelo Secretário dos Negócios do Reino de Dom José I, Sebastião José de Carvalho
e Melo (Conde de Oeiras e Marquês de Pombal), instituía a obrigatoriedade do direito pátrio
e subjugava as práticas costumeiras então operantes por todo império.
Palavras chave
Direito comum, Reformas, Razão, Justiça, Minas Gerais
Como citar este artigo
Atallah, Cláudia (2021). Às vésperas do Liberalismo, Boa Razão e prova do direito comum na
América portuguesa (1769-1808). Janus.net, e-journal of international relations. Dossiê
temático 200 anos depois da Revolução (1820-2020), VOL12 N2, DT1, Dezembro de 2021.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.DT0121.2
Artigo recebido em 12 de Abril de 2021 e aceite para publicação em 2 de Setembro de
2021
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Às vésperas do liberalismo, boa razão e prova do Direito Comum na América portuguesa (1769-1808)
Cláudia Atallah
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ÀS VÉSPERAS DO LIBERALISMO, BOA RAZÃO E PROVA DO
DIREITO COMUM NA AMÉRICA PORTUGUESA (1769-1808)
CLÁUDIA ATALLAH
Introdução
O texto que apresento aos leitores tratará do uso do direito comum na América
portuguesa após a instituição da Lei Máxima de 18 de agosto de 1769. Num primeiro
momento, será feito um balanço da historiografia sobre as reformas pombalinas. O
objetivo é compreender as cardinais interpretações acerca das transformações
promovidas por Carvalho e Melo durante seu período como Secretário de Estado e, da
mesma forma, analisar as leituras feitas pelos principais autores sobre o período pós-
pombalino. Mais à frente, analisarei a incidência da Boa Razão e da exigência do legalismo
jurídico sobre as dinâmicas cotidianas e do poder local a partir dos pedidos de prova do
direito comum que subiam ao Conselho Ultramarino, registrados durante o período
apontado (1770-1808) depositados no Projeto Resgate. As capitanias em investigação
são: Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (e as comarcas que as cortavam
territorialmente)
1
.
A historiografia das reformas pombalinas
A teoria acerca da gradativa centralização política operada nas monarquias modernas
durante as últimas décadas vem sendo problematizada. Alguns estudos propõem certa
pluralidade político-jurídico ao analisar as estruturas de poder do Antigo Regime
português. A intenção é rever as bases estruturantes de investigação ao observar as
conformações de auto-organização social medievais, bem como as relações de
interdependência e os indícios corporativos daquela sociedade. Esses debates sugerem a
ausência do Estado como entidade soberana no âmbito doutrinal e das práticas políticas
(Cardim, 1998). O debate em torno do assunto não esteve restrito a Portugal,
estendendo-se a toda Europa moderna. (Elliot, 1992; Ladurie, 1994; Greene, 1994)
António Manuel Hespanha nos demonstrou o quanto as práticas cotidianas se pautavam
em costumes consuetudinários e heranças tardo-medievais que avançaram quase
irretocáveis ao longo do tempo. Dessa forma, a coroa se adequou, ao longo da época
moderna, à essas estruturas de poder, buscando meios de fortalecimento dos laços de
1
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso Brasileira Projeto Resgate. Disponível em
http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
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interdependência com os vassalos, relações que pairavam no campo simbólico e
costumeiro (Hespanha, 1994).
O autor chamou a atenção também para a precariedade de aplicabilidade de mecanismos
de controle sobre as instituições de poder, tanto no reino quanto no mundo colonial
português. Funcionários régios, nomeados para fiscalizar as posturas camarárias e
exercer a justiça em nome do rei, quase sempre se envolviam nas tramas de poderes
locais, fato que tornava ainda mais complexo a administração e fiscalização à distância.
De qualquer forma, a governabilidade era, cotidianamente, exercida pelas instâncias
locais de poder, responsáveis pela seleção de seus representantes e pelo ônus municipal.
As leis estatutárias eram limitadas e ineficientes, mormente quando alargadas para fora
dos limites territoriais do reino. As relações administrativas e jurídicas cediam espaço a
moralidades e costumes, que demarcavam tempos as relações sociais e políticas e
envolviam os agentes régios no cotidiano administrativo local (Hespanha, 1994;
Hespanha, 2010).
Segundo Nuno Gonçalo Monteiro os anos que precederam ao reinado de D. José teriam
sido marcados por uma “mutação silenciosa”. Sob D. João V, os rituais e práticas de
sociabilidades foram redefinidos, reconfigurando novos simbolismos e nichos de
representações, reorganizando, assim, as formas de exercício de poder e das redes de
interdependência. Nesse aspecto, a monarquia assumiu posição central. E, segundo o
autor, um dos grandes focos dessa mutação a qual se refere é a reforma das Secretarias
de Estado em 1736. Essa nova configuração seria mantida até o reinado de D. José,
quando as secretarias alcançariam o status de ministérios, tal como as monarquias
vizinhas a Portugal. Nesse período de quase vinte anos (1736-1750), as relações entre
o centro administrativo e as conquistas tornariam a administração ainda mais complexa,
reforçando a importância dos agentes reinóis que exerciam seus cargos no ultramar.
Entretanto, em que pese todos esses argumentos, o autor afirmou que “as reformas mais
sistemáticas estavam por vir” e seria durante o secretariado do marquês de Pombal que
as esferas de intervenção da monarquia se alargariam consideravelmente (Monteiro,
2006: 36 e 37).
Em “O terramoto político”, José Manuel Subtil recorreu a uma metáfora, numa analogia
entre o sismo que assolou Lisboa em 1755 e a ascensão de Sebastião José de Carvalho
e Melo, o futuro Marquês de Pombal, à Secretaria de Negócios do Reino, em 1756. Após
examinar minuciosamente a composição das Secretarias de Estado, antes e após a
reforma de 1736, o autor chegou a uma conclusão bastante peculiar: as práticas que
demarcaram a política dos secretários ainda suscitavam os costumes políticos matizados
às relações pessoais tão caros à política de Antigo Regime. Quer isto dizer que em
nenhum momento do reinado de D. João V houve uma remodelação política do governo
e que mesmo o início do reinado de D. José não foi aproveitado para formar um novo
governo” (Subtil, 2006: 39).
A despeito dessa “mutação silenciosa”, Subtil (2006: 45) afirma que, no reinado de D.
João V, as relações sociais, tal como as estruturas políticas, eram ainda alicerçadas por
“ordens simbólicas” que tão bem representavam o patrimônio simbólico de Antigo
Regime. Na sua opinião, a centralidade régia que Lisboa passou a representar, nessa
época, possuía maior relação com a capacidade de ordenar a administração e suas
complexidades que emanavam das localidades continentais e do além-mar.
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Nesse sentido, as transformações operadas com a monarquia de D. José I representaram,
ainda segundo o autor, o “momento de ruptura política com o passado” (Subtil, 2006:
12). As incertezas e flutuações ocasionadas pelo terremoto de 1755 criaram condições
para que Sebastião José de Carvalho e Melo tomasse a frente da administração política
e elegesse as reformas como estratégia para a recuperação do país, tudo isso ao assumir,
em 1756, a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. A partir daí, as intenções de
superação da tradição corporativa e jurisdicional, que já eram discutidas nos meios
intelectuais e diplomáticos lusitanos meio século, demarcariam seus planos
reformistas (Subtil, 2011).
Mais recentemente, António Manuel Hespanha nos deixou estudo fundamental para
compreendermos toda essa conjuntura de mudanças de paradigmas entre o século XVIII
para o século XIX no mundo ibérico. Analisando certo equilíbrio entre as fontes legais do
Direito e as doutrinais e sua persistência durante boa parte do século XIX, observou a
importância dos códigos modernos instituídos e como estavam caucionadas com a
autoridade de um legislador que, se não estava ainda legitimado pelo voto, o estava
pela sua sapiência e pela autoridade do monarca, que a doutrina jurídica do pós-
iluminismo pressupunha” (Hespanha, 2017: 52). Seja como for, o autor demarcou muito
bem a complexidade que a influência das reformas assumiu durante esse período e, por
outro lado, a persistência de traços tradicionais na construção do Direito contemporâneo.
Sobre o tema, ainda que a historiografia sobre o tema parta de diferentes interpretações,
é unânime em reconhecer a incidência do período pombalino e de suas reformas sobre o
processo de modernização, para os moldes da época, sofrido pelas instituições
portuguesas setecentistas, às vésperas da Revolução Liberal de 1820.
As reformas na justiça e o cumpra-se da Lei Máxima de 18 de agosto de
1769
No que diz respeito à aplicabilidade das leis, o pombalismo buscou a construção do campo
jurídico, dentro de uma razão estatal e sob os auspícios das “forças reguladoras”
(Antunes, 2011: 18), a instrução e a norma, objetivando a retidão nos julgamentos das
causas
2
.
O ponto latente das pretensões reformistas na área do Direito e da justiça foi a Lei
Máxima de 18 de agosto de 1769, mais tarde intitulada Lei da Boa Razão.
3
Composta por
catorze itens, trazia, em sua estrutura, a pretensão de formalizar o direito português e
o alinhar à tutela do Estado. Um direito pátrio, forjado à luz do iluminismo e da
racionalização das instituições. Tal projeto abrigou-se sob a égide de um conjunto de
reformas comandadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, nomeado Secretário de
Estado dos Negócios do Reino em 1756 (Subtil, 2006; Pollig, 2017).
2
Pierre Bourdieu chamou a atenção para a ideia de campo jurídico: um lugar onde disputas são estabelecidas
pela garantia do “monopólio do direito de dizer o direito” configurando, desse modo, a “boa ordem”. Agentes
sociais, munidos de técnica e previamente reconhecidos, legitimam a interpretação dos textos que
“consagram a visão legítima, justa, do mundo social”. Segundo Bourdieu, é um processo que contempla
profissionalização, hierarquização e apropriações simbólicas. (Bourdieu, 2010: 212 e 213)
3
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Lei de 18 de agosto de 1769. A partir do comentário
crítico tecido pelo jurista José Homem Correia Telles em 1824, com o objetivo de contrapor ao pluralismo
jurídico típico do antigo regime que havia ficado para traz. (Telles, 1824.)
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O terramoto de 1755 criou a conjuntura necessária para uma espécie de “grau zero da
política”. Segundo José Subtil, a partir dali a autonomia do “grupo de criaturas de
Pombal” alavancou ligeiramente. A frente do delinear das providências a serem tomadas
estava alguns notáveis desembargadores que detinham a confiança do astuto secretário
dos Negócios do Reino. Após os quatro primeiros anos, ao sufocar alguns conflitos e
perseguições, Carvalho e Mello aniquilaria de vez o “grupo conservador que mantinha
influência na Corte” e inicia um consistente “ciclo de reformas” que abalou
profundamente as estruturas político-jurídicas do Antigo Regime (Subtil, 2013: 276).
Para o autor, tais reformas se estenderam ao período mariano-joanino e se desdobraram
no Estado de Polícia, “um Estado proto liberal” que estabeleceu um diálogo com alguns
“aspectos identitários do liberalismo” ao mesmo tempo em que instalou mecanismos de
disciplina reguladores da vida social, estabelecendo códigos de conduta que criavam
modelos de cidadania e de marginalidade (Subtil, 2020: 3).
Nesse aspecto, a Lei da Boa Razão significou a demarcação de um campo jurídico que
objetivava a profissionalização e especialização dos seus agentes, além do controle sobre
suas ações nos auditórios e nos cargos reinóis. Além da observância restrita das leis do
reino, fixava a jurisprudência a partir dos Assentos da Casa de Suplicação (Subtil, 2020).
O objetivo de tais medidas era proibir (ou ao menos aniquilar) as práticas costumeiras e
do direito comum que estavam arreigadas naquela sociedade há tempos.
A instituição da Lei de 18 de agosto também visava dirimir a autoridade intocável e
simbólica, até então inquestionável, do jurista. Baseada numa cultura do litígio, a
administração da justiça, durante o Antigo Regime, confundia-se, por vezes, com as
práticas políticas e possuía um espaço plural de atuação e de interpretações. Homens
cultos, formados sob a ética coimbrense e aos cuidados do neotomismo jesuítico,
bacharéis, corregedores e ouvidores tinham a consciência de representar a justiça real
e, em casos de conflitos e litígios, deveriam agir em nome da monarquia (Atallah, 2016).
Essa lógica, impregnada que estava do direito romano, impunha ao monarca a função de
mediador e dava forma à teoria “dos dois corpos do rei”: o corpo do monarca e o de
Cristo, “uma persona mista”, faziam-no responsável pela justiça divina e a dos homens
(Kantorowicz, 1998: 48).
De forma semelhante, a Lei de 1769 revogava a autoridade secular do direito canônico,
proibindo sua invocação nos auditórios civis, prática permitida pelas Ordenações e
habitualmente usada por juristas e oficiais da justiça. A partir daí, a utilização do Direito
canônico fica restrito aos tribunais eclesiásticos
4
.
Esse panorama de reformas e institucionalização de um racionalismo jurídico que vinha
atender aos interesses de um Estado forte e regulador e seu primado da lei (Hespanha,
1993) gerou conflitos e resistências por todo império português: acusações de
inconfidência por blasfêmias contra Pombal e(ou) D. José (Catão, 2005; Atallah, 2016);
ampliação das Ordenações Filipinas no que tange ao poder dos ministros e oficiais do
reino, transformando qualquer resistência a esses homens em crime de lesa-majestade
4
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Item 8. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
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de Segunda Cabeça
5
; condenação e execução por lesa majestade dos principais líderes
das rebeliões em Vila Rica e em Salvador (Furtado, 2002; Valim, 2018).
Quanto à Lei da Boa Razão, o cotidiano da América portuguesa teria dificuldades de se
adaptar, àquela altura, à imposição do legalismo racionalista. Os povos das conquistas
acreditavam poder gerir suas vidas a partir de códigos locais, regionais, enraizados
socialmente tempos. Tal perspectiva gerou embates jurídicos entre os auditórios
coloniais e o reino e, muitas vezes, envolviam os agentes da coroa que exerciam seus
cargos na banda ocidental do império português.
A prova do direito comum e o exercício dos costumes nas paragens
coloniais o caso das Minas
Em oito de maio de 1783, Dom Rodrigo José de Menezes e Castro, governador da
capitania de Minas Gerais, escrevia a Martinho de Melo e Castro, Secretário de Estado da
Marinha e do Ultramar do Reino de Portugal, para tratar do “estabelecimento na dita
capitania do direito costumário, oposto à disposição da lei”
6
.
Dom Rodrigo havia assumido o governo das Minas Gerais em fevereiro de 1780, umas
das capitanias mais importantes, no que diz respeito aos trânsitos mercantis e
populacionais, do império português. A região enfrentava, nessa época, um acirramento
da escassez aurífera e das dívidas ao fisco, o que era justificado, segundo as autoridades,
pelo aumento do contrabando e a lassidão como tal quadro era tratado. Também
enfrentara, há muito, o povoamento clandestino das regiões de sertões, panorama que,
ao final do século XVIII, somente se complexou (Rodrigues, 2003).
Eram tempos difíceis. Além de buscar meios de controle sobre a mineração e os
devedores dos impostos reais, o governador se viu às voltas com as indefinições
fronteiriças das minas de ouro, envolvendo-se num emaranhado de poderes locais que
desafiava os oficiais régios e impunha dinâmicas políticas e sociais próprias. Por toda a
América portuguesa, bandos comandados por homens que adquiriram certa prerrogativa
social e política nas localidades ao longo do processo de conquista incomodavam
profundamente os poderes instituídos (Anastasia, 2005). Em sua jurisdição, esteve
envolvido no desbravamento dessas terras de sertão e de suas redes. A intenção era
extinguir as áreas tidas como “proibidas” e integrá-las, política e socialmente, aos
domínios da coroa. Os sertanejos, até aquele momento marginalizados pela legislação,
deveriam ser transformados em fiéis vassalos
7
.
O historiador Charles Boxer foi um dos pioneiros a demarcar o grande êxito de Portugal
de Antigo Regime ao consolidar sua soberania em áreas o desconectas e remotas entre
si. Um império marítimo: de uma ponta a outra do hemisfério sul, “as sociedades
humanas que floresceram e declinaram em toda a América, e em grande parte da África
5
Coleções da Leis, Decretos e Alvarás que compreende o feliz reinado Del Rei Fidelíssimo D. José o I. Tomo
II. Lisboa, Oficina Miguel Rodrigues, 1761 a 1769.
6
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
7
Arquivo Público Mineiro. Seção Colônia. Registro de Ofícios do governador à Secretaria de Estado. Códice
224.
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e do Pacífico, eram completamente desconhecidas dos que viviam na Europa e na Ásia”
(Boxer, 2002: 15).
Dom Rodrigo José de Meneses observou, com excelência, toda essa descontinuidade
territorial e política nas Minas e em seu entorno. Em suas reflexões escritas para Martinho
de Melo e Castro reconhecia, conforme dito acima, a utilização do direito costumeiro em
“quase todos os contratos das mais avultadas somas” julgados nas minas. Justificava-
o, porém, observando o quanto a América portuguesa era inóspita e como as grandes
distâncias que de uma a outras povoações” dificultavam “os contínuos tratos de
comércio interior que pede toda a rapidez nas suas operações”. Decerto, reconhecia a
inoperância das dinâmicas reinóis frente à descontinuidade daquelas terras, povoadas,
porém alheias, em grande parte, às leis escritas em voga
8
.
O governador fazia referência à Lei Máxima de 18 de agosto de 1769, promulgada por
Carvalho e Melo. Suas preocupações giravam em torno dos inúmeros contratos de dívidas
e penhora que existiam na região e das dificuldades de julgar as cobranças judiciais sob
a nova lei. Ainda afirmava que
Quase todos os contratos das mais avultadas somas se celebravam por
simples obrigações particulares o que os ministros de Justiça vendo a geral
desordem que de contrário resultaria foram obrigados a dar a força de
Penhoras públicas julgando pela sua existência ou validade das maiores
dívidas e vendo na Relação confirmadas as suas sentenças
9
.
Portanto, e não com bases no parecer do governador, gostaria de levar o leitor a
refletir sobre as dificuldades de imposição das leis régias naquelas paragens, onde a
manutenção da ordem dependeu sempre de negociações entre os povos e os agentes
régios, as relações costumeiras ampararam certo equilíbrio precário que fazia o império
funcionar. Os ministros da justiça conviviam, cotidianamente, com a pluralidade da
justiça e com práticas jurídicas tardo-medievais que suplantavam, àquela época, as
reformas legislativas implementadas por Pombal.
Segundo D. Rodrigo, todo o panorama que descrevia em sua carta, ainda que desditoso,
fazia-se necessário devido às “circunstâncias” sob as quais viviam as minas. Os ouvidores
do rei, em suas correições e julgamento das sentenças, viam-se muitas vezes obrigados
a refletir quanto a aplicabilidade da lei e de suas interpretações.
não obstante a necessidade obrigada a seguir os princípios estabelecidos pela
serie dos tempos, contudo, ao Legislador pertencia atender às
Circunstâncias para derrogar ou declarar em todo ou em parte a Disposição
da Lei e conformando-se a ela deram algumas sentenças condenando na
parte em que a mesma Lei dá validade às ditas obrigações
10
.
8
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
9
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
10
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
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A retidão jurídica teria ocasionado o desaparecimento da “boa aparente entre os
homens”, além de consternar os credores, dificultando-os “demandarem os seus mais
temidos devedores com o receio de verem perdidos até a esperança os seus cabedais”.
Nesse universo costumeiro, perdia também a Real Fazenda. Segundo o governador, a
dificuldade de cobranças das dívidas prejudicava também os cofres reais, haja vista
“somas avultadíssimas” fossem perdidas pelas dificuldades de cobrança das querelas que
tramitavam no juizado dos feitos
11
.
Segundo as reflexões de D. Rodrigo, era de suma importância que a coroa reconhecesse
a necessidade de os ouvidores julgarem as querelas ancorados nas observâncias do
direito comum, sob a influência do direito romano, que séculos amparava a
aplicabilidade da justiça em Portugal e, ulteriormente, em seus domínios. Esse era o
cotidiano das minas e de todo império português.
A prova do direito comum foi um recurso cada vez mais utilizado pelos povos das
conquistas para resolver suas contendas judiciais. António Manuel Hespanha já afirmou
o quanto a lei era precária no universo jurídico de Antigo Regime. O “viver o direito”
possuía relações com “as condições sociais, culturais e políticas” das quais o direito
depende (Hespanha, 1993: 8). Durante a maior parte dessa época (séculos XVI e XVIII)
“teria se vivido” sob a guarida “do direito régio e o direito comum”, principalmente sob
a Glossa de Acúrsio, nos comentários de Bartolo e, mais tarde “na communis opinio dos
‘modernos’” (Hespanha, 2005: 49).
Ao alargar das fronteiras imperiais, as condições de governabilidade se complexaram,
devido às dificuldades de demarcação dos territórios e de seu conturbado controle.
Gustavo Cabral nos adverte que, em se tratando da análise do direito em terras luso-
americanas, “há dificuldades em se falar em um direito colonial brasileiro como uma
categoria geral válida como parâmetro amplo, tal qual ocorreu na América Hispânica
(Cabral, 2018). O espaço jurídico, na América portuguesa, se apresentou quase sempre
de forma fluida e precariamente definido por leis escritas. Segundo o autor, o chamado
“direito colonial brasileiro” pode ser entendido, seguindo um viés interpretativo adotado
por António Manuel Hespanha, a partir de um conjunto práticas, muitas vezes não
escritas, baseadas em costumes e nas decisões judiciais.
Ainda há de se considerar as prerrogativas políticas e sociais das quais os poderes locais
eram detentores. Interessante notar também que pouco do direito consuetudinário foi
registrado pelas comunidades políticas, apesar de as ordenações do reino
recomendassem que o fizesse
12
. Pouco dessas práticas costumeiras foi, ao longo do
tempo, sendo registrado nos livros de posturas das câmaras (Hespanha, 2005).
Na América portuguesa, pedidos de prova do direito comum eram registrados pelo
Conselho Ultramarino desde fins do século XVII, embora menos usualmente. Conforme
encimado, embora a dispersão do império tenha sido uma constante a ser neutralizada
pelas autoridades régias, na maioria das vezes sem sucesso, a Lei da Boa Razão somente
11
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento 31.
12
Ordenações Afonsinas. Livro Primeiro. Título 27, Item 8. Disponível em
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/ Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Título 66, Item 28. Disponível
em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm Ordenações Manuelinas. Livro I. Título 46, Item
8 disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/
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instituiu o cumpra-se em 1769. A partir daí, observa-se um aumento significativo dessas
solicitações, conforme veremos.
Recomendava-se que a legislação do Reino, parcamente estendida aos domínios, fosse
aplicada pelos legisladores: o que deveria ser praxe nos auditórios do império, no
entanto, não era. O Projeto Resgate, que reuniu documentos relativos à administração
ultramarina, possui registros dessa prática anteriores a 1769. A maioria dos catalogados
por essa pesquisa teve suas solicitações deferidas pela coroa
13
.
Para a capitania das Minas Gerais registraram-se dois casos. Em vinte e oito de novembro
de 1726, Francisco Ribeiro, no “juízo geral da ouvidoria da vila de São João Del Rey (...)
ofereceu (...) um libelo contra o sargento mor Simão de Almeida Campos”. A contenda
girava em torno da propriedade de uma “negra” escravizada e de suas “crias”, que havia
recebido em dote pelo casamento com sua filha e estava em pose do sargento mor. O
noivo buscava retomar seu dote através de testemunhas, haja vista não “ter contrato
que o comprovasse. Interessante notar que Francisco chamava a atenção, como D.
Rodrigo José de Meneses, para o fato de que a contenda corria na “forma que se
pratica naquelas conquistas”. Menciona a demora imposta pelas grandes distâncias, o
que dificultava a retidão legislativa.
Quadro 1 - Solicitações para Prova do Direito Comum (1770-1808)
Fonte: Biblioteca Nacional. Projeto Resgate. Biblioteca Luso Brasileira. Minas Gerais; Rio de Janeiro
e São Paulo. Disponível em http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
Em dezembro do mesmo ano, o ouvidor do Rio das Mortes, Thomé Godinho Ribeiro,
emitia parecer favorável ao pleito, confirmado em terceira instância em janeiro de
1727.
14
Noutro caso, José Fernandes Carreiros, morador da Vila de Mariana, requeria a coroa “a
mercê de lhe permitir exigir (...) segundo a prova do direito comum” a cobrança de uma
13
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. São Paulo Alfredo Mendes
Gouveia (1618-1823): 30 de outubro de 1710. Caixa 1; Documento 89. Bahia Luísa da Fonseca (1599-
1700): 7 de novembro de 1673. Caixa 14; Documento 1191 e 26 de janeiro de 1689. Caixa 12; Documento
1549. Bahia Avulsos (1604-1828): Anterior a 3 de setembro de 1720. Caixa 14; Documento 1191.
Disponível em http://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate
14
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate Minas Gerais (1680-
1832): Anterior a 20 de janeiro de 1727. Caixa 10; Documento 9.
Capitania
Comarca
Quantidade
Minas Gerais
Vila Rica
23
Rio das Mortes
4
Rio das Velhas
1
Serro do Frio
1
Sem Informação
7
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
81
Espírito Santo
1
Sem Informação
33
São Paulo
Sem Registros
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dívida de Francisco Rodrigues do Passo. Possuo poucas informações a respeito desse
processo, mas há indícios que tal contenda se arrastava há anos e recebeu parecer
favorável em agosto de 1748
15
. Como se e até onde a pesquisa realizada pôde chegar,
as solicitações de prova do direito comum anteriores à Boa Razão eram exíguas.
Ainda de se investigar, contudo, se todas as contendas tratadas sob a lógica
costumeira chegavam até os tribunais.
A partir do Quadro 1
16
, as solicitações de prova do direito comum, ou ao menos o registro
destas, multiplicaram-se após a instituição da lei de 1769. Considerando as capitanias
pesquisadas e as comarcas que as recortavam, Rio de Janeiro e Minas Gerais
concentraram grande parte desse material.
Epicentros de alguns dos maiores centros urbanos de toda América colonial, essas
capitanias estavam interligadas, àquela altura, por caminhos e fronteiras que definiam a
territorialidade administrativa e, ao mesmo tempo, delineavam transações clandestinas
que estavam alheias à administração reinol (Furtado, 2006; Oliveira, 2014). A comarca
do Rio de Janeiro era uma das maiores da América portuguesa. Criada em 1608, possuía,
no limiar do século XVIII, uma jurisdição que cortava boa parte do litoral do Estado do
Brasil. A norte, seus limites eram demarcados pela capitania da Paraíba do Sul dos
Campos dos Goytacazes, região de conflitos constantes, pois se dividia entre uma
administração distrital sob responsabilidade da capitania do Rio de Janeiro e a jurisdição
da comarca do Espírito Santo, da qual era termo (Cunha e Nunes, 2016; Atallah, 2019.).
A complexidade da governabilidade à distância e das tradições costumeiras ditava o
cotidiano das conquistas. As reformas empreendidas nos anos pombalinos e confirmadas
no período mariano-joanino seriam de difícil aplicabilidade nessas paragens, por vezes
as leis do reino não as alcançavam. E, como exímio administrador em nome do rei e um
astuto negociante dos equilíbrios de poder, Dom Rodrigo Jo de Meneses havia
percebido tal conjuntura.
Em sua carta ao conselheiro ultramarino, o governador solicitava a rainha Maria I
declarasse “a validade das referidas obrigações nesta Capitania pelo menos de todas as
que até agora se tem feito na boa fé”, pois “em que os credores se acharam de que por
elas tinham um Direito incontestável para requererem o seu reembolso”. Reconhecia que
De outro modo se viram repentinamente transtornadas todas as fortunas
particulares a Real Fazenda experimentauma perda considerável e tirará
15
Como explicado no resumo, a pesquisa está sendo feita junto ao acervo digital do Projeto Regate, disponível
no site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate Minas Gerais (1680-1832): Anterior a
31 de agosto de 1748. Caixa 52; Documento 81. Importante registrar que Arno Wehling e Maria José
Wehling nos informam que esses documentos aqui analisados fazem parte da demanda que chegava ao
Conselho Ultramarino e que esses processos corriam, igualmente, pelos tribunais de Relação. Nesse sentido,
pode haver algumas distinções nos números aqui apresentados. A intenção inicial desse projeto que está
em andamento foi justamente identificar a demanda reunida pelo CU, principal Tribunal responsável pelas
contendas ultramarinas (Wehling e Wehling, 1997).
16
Agradeço aos bolsistas de iniciação científica do projeto de pesquisa Alexandre de Azevedo, Felipe Mathias,
Fernanda Figueiredo e Hiago Rangel a pesquisa e organização desses registros a partir do acervo relativo
às capitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo reunidos pelo Projeto Resgate. Agradeço à FAPERJ
e ao CNPq a concessão das referidas bolsas.
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utilidade a do devedor que se quiserem aproveitar do Benefício da Lei
cujo espírito não pode nunca dirigir-se a patrocinar Cavilações
17
.
Infelizmente o encontrei indícios de que esse clamor de Dom Rodrigo tenha sido
respondido pela rainha ou por Melo e Castro. No entanto, conforme demonstrado acima,
a coroa portuguesa costumava acatar as solicitações por prova do direito comum que
chegavam das conquistas.
Em agosto de 1779, anos antes da carta do governador das Minas, o alferes José de
Sousa Codeço requeria à rainha “provisão para apresentar sua prova do pagamento feito
a Francisco José de Fonseca do valor correspondente da compra do contrato dos dízimos
do Rio de Janeiro realizada com José Francisco de Almeida pelo direito comum.” O que
nos interessa, nesse caso, é a resposta dada pelo Conselho Ultramarino:
Não obstante que a graça pedida pelo alferes (...) seja a todos concessível e
V. Mag. a não denegue, por mais que as partes a impugnem, a que o
recorrente pede parece a deve V. Mag. denegar, vistas a forma o súplica, e a
porta que com ela pretende franquear, para as suas bem conhecidas
iniquidades.
18
Ao que parece, o alferes Codeço era bastante conhecido das autoridades por “suas
intrigas, as falsidades de que era mancomunado com outros a defraudar os negociantes
do Rio de Janeiro”. O Conselho também o acusava de criar falsas escrituras e apresentar
falsas testemunhas. Mais a frente, afirmava que
V. Mag. costuma dispensar na Lei do Reino para se provarem os [litígios] por
testemunhas os contratos que por pública escritura se celebram, quando os
recorrentes o de boa e, com a mesma, declaram na súplica quais as
testemunhas que produziram ou querem produzir
19
.
O Conselho Ultramarino reconhecia o costume de conceder provisões que dispensavam
os súditos da retidão das leis do reino. Porém, não deixava de analisar as súplicas que
lhe chegavam. Podemos supor, com bases nas afirmações colhidas no documento
apresentado acima e nas justificativas descritas pelo governador, que a sua carta tenha
recebido uma resposta positiva do Secretário de Estado do Ultramar, Martinho de Melo e
Castro.
Conclusão
Gostaria de chamar a atenção para os conflitos gerados pelas imposições institucionais
advindas das reformas de Pombal. O império, com suas dimensões marítimas e
17
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 8 de maio de 1783. Minas
Gerais. Caixa 119, documento. 31.
18
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 11 de agosto de 1779.
Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
19
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate. 11 de agosto de 1779.
Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
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descontínuas, estava sob a égide de um conjunto de leis insuficientes que tornava a
administração central frágil e dependente dos agentes régios e dos poderes locais, bem
como de seus rearranjos políticos. Essa governabilidade dependia do equilíbrio, quase
sempre precário, entre essas negociações e as dinâmicas locais e regionais que
demarcavam o cotidiano. As solicitações de prova de direito comum, sobretudo com o
beneplácito de um experiente governador que convivia tempos com os povos da
conquista e suas experiências, pode nos ajudar a compreender parte dessa conjuntura.
Sua justificativa para tais práticas reflete as mutações pelas quais passavam a política
administrativa imperial ao atravessar o Atlântico. Da mesma forma, acende uma luz
sobre a pertinência da longevidade e da problematização (cada vez mais presente na
historiografia a respeito) das reformas promovidas por Pombal, a partir do reinado de
Dona Maria.
Referências
Fontes manuscritas
Biblioteca da Universidade de Coimbra:
Coleções da Leis, Decretos e Alvarás que compreende o feliz reinado Del Rei Fidelíssimo
D. José o I. Tomo II. Lisboa, Oficina Miguel Rodrigues, 1761 a 1769.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Biblioteca Luso-Brasileira. Projeto Resgate:
Bahia Luísa da Fonseca (1599-1700): 7 de novembro de 1673. Caixa 14; Documento
1191 e 26 de janeiro de 1689. Caixa 12; Documento 1549.
Bahia Avulsos (1604-1828): Anterior a 3 de setembro de 1720. Caixa 14; Documento
1191.
Minas Gerais. 8 de maio de 1783. Caixa 119, doc. 31.
Minas Gerais (1680-1832): Anterior a 20 de janeiro de 1727. Caixa 10; Documento 9.
Minas Gerais (1680-1832): Anterior a 31 de agosto de 1748. Caixa 52; Documento 81.
Rio de Janeiro (1614-1830). Caixa 110, Documento 9187.
São Paulo Alfredo Mendes Gouveia (1618-1823): 30 de outubro de 1710. Caixa 1;
Documento 89.
Arquivo Público Mineiro
Registro de Ofícios do governador à Secretaria de Estado. Seção Colonial, Códice 224.
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http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/
Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Aditamentos. Lei de 18 de agosto de 1769. A partir
do comentário crítico tecido pelo jurista José Homem Correia Telles em 1824, com o
objetivo de contrapor ao pluralismo jurídico pico do antigo regime que havia ficado para
traz. Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
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Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Título 66, Item 28. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
Ordenações Manuelinas. Livro I. Título 46, Item 8. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/
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P. de Lacerda.
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