OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022)
197
SOB A BRISA DO ÍNDICO PORTUGUÊS:
TURISMO E PATRIMÓNIO EM ZANZIBAR
MARIA JOÃO CASTRO
mariajoaocastro@fcsh.unl.pt
Doutorada em História da Arte Contemporânea e investigadora integrada do Centro de
Humanidades (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (NOVA/FCSH, Portugal). Integrou comissões científicas, organizou e participou em eventos
académicos, ações levadas a cabo em Portugal, Espanha, França, Escócia, Roménia, Itália,
Dubai, Brasil, Nova Zelândia e Zanzibar, dos quais resultou a publicação de artigos. Os seus
domínios de especialização centram-se na História da Arte e Cultura Contemporânea, infletindo
na ligação da Arte com o Poder quer em relação à Viagem e aos Estudos (Pós) Coloniais, quer no
que concerne ao Turismo. É presentemente bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia com o projeto “ArTravel. Viagem e Arte Colonial na Cultura
Contemporânea”.
Resumo
O turismo é, em pleno século XXI,a maior indústria a vel mundial constituindo
umfenómenoestruturadoa partirde uma articulaçãodinâmica e tentacular.De entre
asformasque o fenómeno consagra, o chamado turismo de memória” tem vindo a
ganharrelevância,assente numa herança colonial cujas valências se formulam segundo
umareminiscênciade uma cultura/património outrora partilhada: a dos impérios
ultramarinos.Ao ganharem um novo protagonismo, esteslugarespós-coloniaisabrem-se a
novasleituras,respondendo a um desafio societal da mobilidade contemporânea através
doolhar para a viagem como forma de construir cultura e definir identidades, pelo que se
propõe cartografar o patrimóniode raiz portuguesa no arquipélago de Zanzibar,lugar integra
dono império lusitano durante duzentos anos e fonte de multiculturismo e alteridadede que
o nosso tempo é herdeiro.
Palavras-chave
Impérios Coloniais, Índico, Património, Turismo, Contemporaneidade.
Como citar este artigo
Castro, Maria João (2021). Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em
Zanzibar. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº.2, Novembro 2021-Abril
2022. Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.12.2.12
Artigo recebido em 22 Abril 2021 e aceite para publicação em 10 Agosto 2021
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
198
SOB A BRISA DO ÍNDICO PORTUGUÊS:
TURISMO E PATRIMÓNIO EM ZANZIBAR
MARIA JOÃO CASTRO
Introdução
O turismo é hoje a indústria com maior impacto na economia mundial, constituindo um
fenómeno global e transversal de âmbito tentacular. Na sua génese, turismo e
colonialismo não são fenómenos da mesma ordem, mas a atividade turística e o
imperialismo são produtos fruto de um mesmo contexto encontrando-se
intrinsecamente ligados uma vez que passam ambos pela posse de um território e da
sua exploração.Certo é que a ascendência dos impérios europeus no desenvolvimento
do turismo tem um forte impulso nas Exposições Universais, montras dos territórios
ultramarinos que, ao cristalizarem toda uma imagética exótica e longínqua,
impulsionaram uma elite a embarcar na viagem colonial que em breve se massificaria,
contribuindo para o fenómeno turístico global contemporâneo.
1
As motivações por trás
de tal ímpeto assentam em razões distintas, mas uma há que tem vindo a ganhar peso
quando se trata de eleger um destino de viagem: a nostalgia pós-colonial que aspira a
visitarlugares parados num certo tempo-pedra, ainda não totalmente contaminados por
uma urbanidade acelerada, devolvendo momentaneamente uma vivência que o
quotidiano da sociedade ocidental há muito excluiu. Esta espécie de “turismo da
saudade” tem vindo a ganhar adeptos e percebe-se porquê. Seja pela arquitetura, pela
herança cultural, pelo apelo ao “Bom Selvagem” que há em nós, pelo legado artístico
ou outro motivo enraizado num pretérito comum, as ex-colónias europeias têm vindo a
tornar-se em destinos turísticos de eleição. Por outro lado, o facto de o turismo ser um
aliado basilar do desenvolvimento económico, social e cultural, gerando importantes
receitas, tem aumentado a pressão sobre as tutelas, havendo a necessidade de
administrá-lo de forma responsável e com pensamento crítico, pelo que é um assunto
presente nas agendas dos governos, nomeadamente no que concerne ao património a
preservar, seja ela material ou imaterial.
Neste sentido, o chamado “Turismo de Memória” tem vindo a ganhar um protagonismo
cada vez maior não dentro das políticas nacionais e regionais dos governos como no
âmbito da investigação académica. Daí que esta reflexão proponha criar uma rota de
“Turismo de Memória” de herança portuguesa em Zanzibarrespondendo à questão: que
1
Claro que o turismo enquanto fenómeno social o surgiu nas Exposições; ele tem a sua genealogia nos
finais do século XVII, início do XVIII com o Grand Tour, movimento nascido no seio da aristocracia inglesa
que se propôs concluir a sua educação através da verificação/visitação do passado civilizacional. Porém,
essa viagem foi sempre canalizada para os grandes centros artísticos europeus (primeiro Itália, depois
França e Grécia) pelo que não contemplou os territórios do império cujos residentes/visitantes eram
maioritariamente, compostos por missionários, administradores e tropas.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
199
herança patrimonial de raiz portuguesa se pode encontrar no arquipélago de Zanzibar?
A sua justificação assenta na centralidade no património enquanto legado de uma
memória partilhada e tem objetivo basilar ser um facilitador da integração do turista na
História tornando-se parte dela. Por outras palavras: o estimular pelo conhecimento
pelo outro” faz com que nos conheçamos melhor a nós mesmos numa
interculturalidade efetiva e plena. A concretização deste objetivo central obriga a uma
investigação em sinergia daí a metodologia eleita se ancorar na interdisciplinaridade
(ciência histórica, património, arqueologia e história da arte) de vocação e valorização
transfronteiriça com ênfase pluricontinental.Porquanto se trate de património material e
imaterial, as fontes são, sobretudo, bibliográficas e arqueológicas e estendem-se dos
arquivos nacionais portugueses às instituições tutelares de conservação do arquipélago
de Zanzibar. Quanto à sua relevância esta assenta no facto de responder a um desafio
societal tentacular da mobilidade contemporânea através do olhar para a viagem como
forma de construir cultura e definir identidades entre visitantes e visitados produzindo
conhecimento e experiências capazes de contribuir para uma ciência cidadã e
esclarecida.
I. Contexto Histórico-Patrimonial
Como se sabe, o património é na sua essência de ordem memorial e que o que o
caracteriza é o seu carácter simbólico “uma espécie de aura imortalizante” (Lourenço,
2015a: 54), de um momento transcorrido, uma vez que todas as obras humanas têm
o seu tempo contado. Ora a diversidade cultural decorrente da ação humana ao longo
do tempo num determinado lugar tem vindo a ser valorizada pelo seu pluralismo,
característica que permite desenvolver um conhecimento plurívoco. Depois de um
período em que o anticolonialismo dominava a opinião pública, a crispação pós-
colonial foi lentamente dando lugar a um entendimento menos exclusivo do encontro
de culturas cuja preocupação se veio a centrar na preservação do património legado.
Um dos exemplos de tal atitude foi a criação em 1998 da rede do Comité Científico
Internacional do ICOMOS
2
e, no seio deste, do Comité para a Partilha da Herança
Colonial.
3
Esta organização tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de unir
esforços no sentido de preservar, estudar e promover os bens patrimoniais, dada a
importância da diversidade cultural enquanto fonte de intercâmbios, inovação e
criatividade das gerações presentes e futuras.
Assim, e dentro desta dimica dual (turismo-património) a UNESCO
4
tem vindo a
classificar lugares, práticas e expressões, reconhecidas como parte integrante de uma
cultura. E foi o que aconteceu em 2000 com Stone Town, a parte antiga da cidade de
Zanzibar na ilha homónima que viu chegar os primeiros europeus em 1503, aquando
das viagens de exploração do Caminho Marítimo para a Índia.
Conforme rezam as crónicas, os portugueses foram os primeiros europeus a
instalarem-se em Zanzibar. Vasco da Gama (1469-1524) no regresso da Índia
2
International Council on Monuments and Sites. Em linha: https://www.icomos.org/fr (acedido a
24.4.2021).
3
Em linha: https://www.icomos.org/risk/2001/colonial2001.htm (acedido a 23.4.2021).
4
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
200
assinalou a ilha, conforme rezam os anais da manhã de 29 de janeiro de 1499, quando
os portugueses passaram em frente de Zanzibar (Fonseca, 1998:56):
E a um domingo, que foram vinte e sete dias do mês (27.1.1499), nos
partimos daqui (baixos de S. Rafael) com mui bom vento à popa e à noite
seguinte pairámos. E quando veio a manhã nos achámos junto com uma
ilha muito grande, que se chama Zamgibar, a qual é povoada de muitos
mouros, a qual estará de terra bem a dez léguas. E ao primeiro dia de
fevereiro, à tarde, fomos pousar avante as ilhas de S. Jorge, em
Moçambique.
5
Em 1503, Rui Lourenço Ravascoimpôs ao sultão de Zanzibartributação à coroa
portuguesa. Anos depois, e firmemente estabelecidos em Moçambique e Melinde, os
sucessores de Vasco da Gama monopolizaram o tráfico da África Oriental fazendo com
que, desde 1522 (Campos, 1935:1-20), Zanzibar se tornasse num protetorado
português,embora a feitoria e a casa de hospitalização fossem estabelecidas após a
visita de Nuno da Cunha (1487-1539) à ilha, em 1527.
Em 1580, com a perda de independência da coroa portuguesa para Espanha e o
consequenteenfraquecimento do império d’além mar originaria, em breve, a perda de
algumas possessões d’além mar, nomeadamenteMascate (em 1650), Melinde (em
1660) e, finalmente, Zanzibar, no ano de 1698.
Desde então, e entre os finais do século XVII e o século XIX, a genealogia que reinou
sobre a ilha deu-lhe um novo impulso, arabizando-a e preenchendo-a com edifícios de
nítidos traços islâmicos, por entre os quais surgiram arquiteturas de influências
indianas, africanas e coloniais, esta última já no século XIX, quando os ingleses
tomaram conta do governoda ilha transformando-a num protetorado. É precisamente
por essa altura em 1879 que o sultão Barghash(1870-1888) assina com o rei de
Portugal, o famoso Tratado de Amizade e Comércio. Em 1885, o reino de Portugal abre
um consulado na ilha e nomeia como primeiro cônsul Alexandre de Serpa Pinto (1846-
1900) e no século XX, entre 1911 e 1918, Aristides de Sousa Mendes (1885-
1954).Nesses tempos, opredomínio da população de raiz portuguesa na ilha era
originária de Goa, tendo-se aqui fixado dezenas de famílias que se dedicavam
maioritariamente ao corcio sendo a colónia portuguesa, a segunda em número
(cerca de 400 pessoas), a seguir à brinica (Mello, 1890:89).
5
Convém referir que antes de Vasco da Gama, Pêro da Covilhã havia avançado pela costa oriental
africana passando ao largo da ilha, disso dando conta no seu diário,ainda que de modo pouco claro. Sabe-
se que percorreu demoradamente a costa litoral da Azania, tendo integrado embarcações de comerciantes
árabes que visitavam com regularidade os portos como Mombaça, Melinde,Zanzibar, Kilwa ou Sofala. Ver
Leal Freire, Pêro da Covilhã, Gráfica S. José, Castelo Branco, 1964, p. 10.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
201
Imagem 1 - Reprodução do frontispício do Tratado de Amisade e Commercio, Lisboa.
Fonte: Imprensa Nacional (1940). Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios
Estrangeiros.
Centrando a atenção no património português na ilha, durante os duzentos anos que
capitaneou Zanzibar, a coroa do reino de Portugal e dos Algarves procedeu a
edificações (feitoria, igreja, hospital) e movimentações (mudança da capital) que
reconfigurariam o seu território ainda que pouco tenha subsistido até hoje. Mas
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
202
vestígios sabem falar a quem está disposto a ouvi-los; basta atender nalguns
testemunhos para se conseguir formular um roteiro heterogéneo capaz de fazer
redescobrir parte da herança lusitana na ilha.
Contudo, esta presença e edificação patrimonial no arquipélago de Zanzibar é uma das
facetas menos estudadas sobre a expansão e presença portuguesa na África Oriental.
São conhecidos, os contributos diretos de Duarte Barbosa (c. 1480-1521), Gaspar
Correia (1492-c. 1561) e João de Barros (c. 1496-1570). Entretanto, vieram a lume os
estudos mais recentes de Abdul Sheriff e de Mark Horton que realçaram a temática,
mas agora com a crescente importância do turismo nos PIBs dos países, foi lançado
o repto para que outros historiadores explorem o tema. Duas ordens de razão podem
justificar tal lacuna. Desde logo, o foco no destino-objetivo Índia relevando-se
para segundo plano os lugares ancoradouros da Rota; depois as fontes reduzidas e
pontuais, dispersas por documentação de natureza assaz diversa dificultam o
desenhar de um quadro nítido sobre a presença e vincia dos portugueses em terras
de Zinj. Dados com hiatos cronológicos largos, documentos disseminados por vários
arquivos sem estarem catalogados e que incluem crónicas, relatos, apontamentos
administrativos e cartas trocadas entre oficiais de Zanzibar e as instâncias de poder
sediadas em Lisboa, condicionam e explicam a raridade (para não dizer ausência) de
estudos desta realidade histórica específica. Ainda assim, a informação reunida
perspetiva linhas mestras sobre a presença portuguesa no arquipélago de Zanzibar
numa inflexão de grande potencialidade histórico-cultural.
II. Subsídios para um itinerário portugs em Zanzibar
Desenhar um roteiro turístico pelo património material e imaterial de herança
portuguesa em Zanzibar resgata uma história inscrita aquando da navegação e da
exploração dos contornos do mundo, em consequentes viagens que o configuraram a
uma escala global introduzindo a época moderna. Interessa por isso ter em conta que a
história é feita por camadas, camadas essas que se vão sobrepondo umas sobre as
outras, afundando-se as mais antigas sob as mais recentes, num acumular de
sedimentos e testemunhos que consubstanciam frações da narrativa histórica. Aliás, é
nesse substrato pretérito que se encerra e justifica parte da Zanzibar contemponea
pelo que elencar esse legado constitui um excelente acesso para, na atualidade,
compreender e promover turisticamente o destino Zanzibar.
Adverte-se, porém, que não se trata de elaborar uma lista exaustiva da herança
lusitana em solo Zinj mas propõe-se sim a criação um corpus patrimonial com
identidade própria, sendo que este levantamento será sempre provisório e de múltiplas
leituras.
ARQUIPÉLAGO DE ZANZIBAR
UNGUJA (Ilha de Zanzibar)
I Património Material
1. Stone Town.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
203
Estabelecidas guarnições nos portos de Zanzibar, Pemba e Mombaça, a velha
capital de Zanzibar situada em UngujaUkuu, a cerca de vinte e quatro
quilómetros a sul da atual capital, foi sendo gradualmente preterida para um
local mais a noroeste, e que mais tarde viria a ser conhecido como Stone Town,
a Cidade de Pedra. Como se refere no manuscrito português da Relação feita
pelo padre Francisco de Monclaro da Companhia de Jesus, tal deveu-se ao porto
a sul, que era pequeno
6
para as naus portuguesas fundearem. Com a afluência
crescente das naus vindas da Índia a nova capital possibilitou um aumento das
escalas do tfico marítimo em Zanzibar, reiterando a importância deste porto
na costa do Índico.
2. Feitoria, Hospital, Igreja.
Em Stone Town, e após a visita de Nuno da Cunha em 1527, seria erguida uma
feitoria e uma casa de hospitalização, que seguramente acoplava uma capela-
igreja. Esta situava-se no chamado Forte Antigo (re) constrdo pelos árabes
após a conquista da ilha aos portugueses nos finais do século XVII. Os indícios
apontam no sentido de que, em 1612, terá havido uma igreja agostiniana,
aparecendo tal ocorrência na bula papal (Gray, 1958:174) de 21 de janeiro
desse ano, o que mostra o empenho eclesiástico lusitano para a África oriental.
Do pouco se conhece, parece que o poder missionário lusitano encontrou aqui
uma sociedade tolerante mas profundamente convicta da sua religiosidade
(muçulmana) pelo que a evangelização se reduziu a conversões pontuais.
Segundo o artigo de J. J. Campos, havia um edifício onde funcionaria a feitoria e
a igreja portuguesa que seria protegido por um muramento erguido
posteriormente pelos árabes. Em 1774, AlexanderDalrymple o geógrafo
escocês afirmaria no seu Collection of Charts etc. in theIndianNavigation, que
essa “fortaleza” parecia uma igreja em ruínas. Uma inscrição no museu da Beit
al Ajaib informa:
Remanescentes Portugueses indicando ter existido uma capela portuguesa
de traça cruciforme, com janelas retangulares, construída no século XVI, e
da qual restam vestígios na parede oeste do velho forte.
E, a poucos metros, no Velho Forte, uma placa reitera que este foi:
Erguido pelos árabes omanis cerca de 1700 com base nos materiais da
antiga capela portuguesa e residência contígua.
6
Relação feita pelo padre Francisco de Monclaro da Companhia de Jesus, da expedição ao Monomotapa,
comandada por Francisco Barreto, Manuscrito português nº 8, fls. 241-265, V., BNP, Lisboa, 1573, p. 344
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
204
Imagem 2 - Placa informativa à entrada do Forte Velho, Stone Town.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
Estudos e escavações recentes em 2017 e 2019 confirmam a autoria da igreja
7
e
avançam para novas formulações de interrogações no que concerne
Quanto ao antigo hospital, este foi edificado a seguir à visita do futuro governador da
Índia, Nuno da Cunha que, ao conquistar definitivamente Mombaça em 1527,
desembarcou com o seu capitão da guarda Manoel Machado em Zanzibar onde
deixando duzentos enfermos ao cuidado de Aleixo e Sousa Chichorro. Desde essa data,
a ilha iria figurar como um porto de hospitalização de doentes na Rota da Índia, uma
vez que era menos palustre do que Moçambique (Strandes, 1961:118) e foi com a
expulsão dos portugueses, em 1698, que o Real Hospital (na ilha) de Moçambique se
tornou basilar enquanto local de cura dos soldados e tripulantes enfermos vindos nas
naus do reino.
8
7
Em linha: https://www.bristol.ac.uk/news/2017/august/early-portuguese-churches.html(acedido a
24.5.2021).
8
A criação do Real Hospital (na Ilha) de Moçambiqueremonta ao século XVI tendo sido confiada, em 1681,
a sua administração aos religiosos da Ordem de o João de Deus. No ano seguinte, 1682, os
hospitaleiros transferiram o hospital para o sul da povoação, numa zona considerada de melhores ares.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
205
3. Beit al Ajaib (Casa das Maravilhas).
3.1. Canhões.
À entrada da maior construção de Stone Town até ao século passado
figuram dois canhões portugueses.
9
Ambas as peças, fundidas em bronze,
trazem em relevo as armas de D. João III (1502-1557) com a coroa e a
cifra real “J” em ornato, sendo o estandarte real sustentado por um leão
heráldico. Uma das peças mede 3.7 metros e tem calibre de 20
centímetros e diâmetro de 55 centímetros; a outra tem 3.12 metros de
cumprimento, calibre de 18 centímetros e diâmetro de 44 centímetros.
ainda um outro canhão, o maior de todos, que se encontra no jardim do
Palácio do Residente inglês com 4.15 metros de cumprimento.
Numa legenda em persa gravada posteriormente pode ler-se:
Imagens 3, 4, 5 - Canhões Portugueses à entrada da Beit al Ajaib, Stone Town.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
Em nome de Deus e por graça de Mahomed Ali comunica-se aos verdadeiros
crentes congregados para guerrear, as boas notícias do sucesso e vitória no
ano de 1031 da Hegira.
10
No reinado de Shah Abbas, Safawi, Rei da Terra e
do tempo, cujo poder sempre aumenta, imamKuliKhan, pela graça de Shah,
Defensor da Fé, conquistou Fars, Lar, Monte Kaiwan, Bahrein e a Fortelaza
de Ormuz e prendeu Ibn Ayyub.
9
Em linha: http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BIVG/BIVG-N026&p=24
(acedido a 21.4.2021).
10
1622 da nossa Era Comum.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
206
Depreende-se da inscrição que os canhões terão vindo de Ormuz, após o
cerco de 1622 e que terão sido os árabes de Omã a transportar as peças
para terras de Zinj.
3.2. Pedra.
No Museu do rés-do-chão da Beit al Ajaib, a um canto e protegida por uma
vitrina, jaz uma pedra de arenito cinza, cujos sulcos desenham letras que
se agrupam em palavras portuguesas. O cinzel gravou uma frase da qual
são hoje legíveis as seguintes letras:
VEL
11
LEITAO
12
G…SEM
TÃO MOR
13
MEMDES
14
SELO
15
Este tipo de pedra não existe em Zanzibar pelo que se supõe que a pedra
terá vindo de Portugal.
Imagem 6 - Pedra com inscrição em Beit al Ajaib, Stone Town.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
11
Fragmento da palavra Notável?
12
Palavra referente ao nome próprio Leitão?
13
Fragmento da palavraCapitão-mor?
14
Palavra referente ao nome próprioMendes?
15
Palavra referente ao apelidoVasconselos?
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
207
Quanto ao nome, sabe-se que em Mombaça, as obras na fortaleza de Jesus
foram iniciadas pelo seu primeiro capitão, Mateus Mendes de Vasconcelos
entre 1593 e 1596, e sabe-se igualmente que o capitão morto aquando do
assalto ao mesmo baluarte em 1631 se chamava Pedro Leitão de Gamboa.
A datação aponta para o século XVII pelo que ambas as hipóteses são
plausíveis carecendo de um estudo mais aprofundado.
Quanto à sua função, a legenda que acompanha a pedra diz que esta é um
testemunho de uma lápide de sepultura do Velho Leitão, aparentemente
encontrada na zona de Uroa, na parte este da ilha. Contudo, o seu
tamanho e as palavras inscritas apontam mais no sentido de ter sido uma
pedra comemorativa, uma vez que numa lápide de túmulo tende a gravar-
se outro tipo de epígrafes.
4. Arco Português.
Na esquina do cruzamento das ruas Kanuda e Vuga, e inserido num pequeno
jardim, encontra-se o chamado Velho Arco Português. Não obstante a sua
construção e edificação se encontrar envolta em mistério, a sua estrutura e
elementos decorativos são inticos a outros portugueses espalhados pelo
mundo. Sem se encontrar datado, o arco ogival com capiteis laterais coríntios
poderá ser um vestígio da presença portuguesa na ilha ou, simplesmente, ter
sido construído com base na influência arquitetónica religiosa disseminada pela
costa oriental africana de origem lusitana.
Imagem 7 - Arco Português, Stone Town.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
208
5. Ruas.
5.1. Rua Portugueza.
A rua Portuguezaficava por detrás do forte velho e foi rebatizada de
Gizenga. Hoje, continua a ser uma das mais movimentadas da capital tal
como o era há mais de um século quando aí se encontravam a maior parte
das lojas dos comerciantes portugueses vindos Goa. Em fotografias de
época pode observar-se os letreiros com apelidos portugueses como Silva,
Paixão de Noronha, e que anunciavam as lojas de especialidades várias
como medicina, vinhos e fotografia.
Imagem 8 - Antiga Rua Portuguesa hoje renomeada Gizenga Street, Stone Town,c.
1930. Postal de época.
Fonte: Coleção da autora.
5.2. Rua Souza.
Sobre esta rua há um testemunho do século XIX que a enuncia da
seguinte forma:
Avolumavam os portugueses indianos, que em Zanzibar compõem uma
numerosa colonia, cujos membros quasi todos se apelidam de Souza e
vendiam bebidas alcoólicas. até na cidade uma rua dos Sousas
(Anónimo, 1851: s.p.).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
209
Imagem 9 - Anúncio ao estabelecimento Sequeira & Souza, Stone Town, 1924.
Fonte: Coleção RohitRamezOza, Capital ArtStudio.
6. Ruínas de Fukuchani e Mvuleni.
No museu daBeit al Ajaib,em Stone Town, uma inscrição assinala:
Em Fukuchani e Mvuleni existia um conjunto de herdades ou feitorias nestas
zonas rurais com portas em arco e brechas nas paredes exteriores que, de
modo defensivo, serviam para colocar armas de fogo.
Os vestígios das habitões portuguesas de Fukuchanie Mvuleni situam-se no
norte da ilha. Provavelmente eram antigas casas de comerciantes, ambas
datadas do século XVI.
Em Fukuchani, frente à ilha de Tumbatu, o recinto em torno da habitação
principal mostra uma cercania de paredes com altura de dois metros e que
mostra, sem grande dificuldade, orifícios perfurados destinados a neles colocar
armas. Cada uma destas aberturas tem uma orientação diferente consoante o
ângulo do alvo que se pretendia atingir. O edifício principal encontra-se agora
protegido por uma estrutura de colmo que abriga as paredes que dividem
quartos dispostos em torno de um corredor central de leste a oeste, com
varandas na parte da frente e nas traseiras. As portas foram desenhadas em
arcos vidaka, típicos da arquitetura local. As autoridades ligadas ao património
procederam a várias escavações mas poucos indícios foram resgatados
16
não
permitindo apurar o seu real propósito.
A menos de um quilómetro a sul de Fukuchani, uma muralha rematada por um
portão ferrugento, guarda Mvuleni. O plano da construção de Mvuleni é quase
16
Nas imediações, achados recentes puseram a descoberto missangas, potes chineses e cerâmica vermelha
polida, bem como duas moedas do Império do Meio datadas do século XIV, confirmando estes artefactos
a presença dos chineses antes da chegada dos portugueses.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
210
idêntico ao de Fukuchani. Também aqui se observa aberturas na muralha
defensiva que serviam para colocar as armas dos seus proprietários. A parede
leste do recinto delimita um tanque subterrâneo alimentado uma por fonte de
água doce. Ao contrário de Fukuchani, as ruínas de Mvuleni encontram-se
submersos de vegetação patente em fotografias do início do século XX e
pertencentes aos Arquivos Nacionais. Na parte central da fachada sobressai uma
enfiada de portas lateralizadas por janelas de arcos ogivais de nítida influência
árabe.
Imagem 10 - Fachada da antiga habitação portuguesa em Mvuleni, Unguja.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
7. Arcas/baús
Feitas em madeiras nobres e decoradas com embutidos em latão, prata e
madrepérola as arcas de Zanzibar refletem o estilo indo-português importado de
Goa. Conhecidas como sanduku(do árabe sanduq) ou kasha(do português caixa)
estas peças de mobiliário substituem cómodas, armários e roupeiros e são
herdadas de uma geração para a seguinte como bens de grande valor.
II Património Imaterial
1. Vocabulário
Subsiste hoje no vocabulário suaíli um conjunto de palavras cuja origem
remonta aos portugueses. A maior parte destas palavras liga-se ao mar e
percebe-se porquê: porque foram eles os primeiros a dinamizar o comércio
marítimo na costa suaíli, apesar de anteriormente haver tfico na região.A
título de exemplo enunciam-se as seguintes que, por mais comuns, são
facilmente audíveis nas conversas do quotidiano:
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
211
Quadro 1 - Exemplos de vocábulos suaíli de origem portuguesa:
almirante
almiranti
amarra
amari
bandeira
bendera
barquinha
barikinya
batel
batela
bomba
bereu
boia
boya
bolo
boleo
bule
buli
caixa
kasha
cárcere
gereza
17
cana
kana
chapéu
chepeo
companhia
kompania
copo
kopo
fronha
foronya
lenço
leso
limão
mlimau
manteiga
manteka
mesa
meza
padre
padri
pão
pao
parafuso
parafujo
pistola
batola
roda
roda
sapato
sapatu
tabaco
tumbako
vinho
mvinyo
xaile
shali
No conjunto, perto de sessenta palavras de raiz portuguesa ainda hoje utilizadas no
vocabulário suaíli em Zanzibar.
2. Fotógrafos
Variados fotogramas de época, tirados por profissionais com apelidos como
Gomes, Coutinho, Souza, Almeida ou Silva, subsistem até aos dias de hoje num
“sultanato” de fotógrafos de ascendência portuguesa que tem vindo a ser
estudada, permitindo começar a perceber a dinâmica da viagem dos residentes
da Índia portuguesa para a ilha de Zanzibar.
18
Este movimento inscreve-se no final do século XIX quando desembarcam
famílias goesas vindas da Índia Portuguesa para abriram estúdios fotográficos. A
Coutinho Bros foi provavelmente a primeira casa fotográfica comercial na África
17
Este é o termo suaíli para cárcere e vem do português igreja, tendo a sua origem no facto de muitas
igrejas e fortes portugueses espalhados ao longo da costa africana terem sido posteriormente convertidos
(pelos árabes e ingleses) em cárceres. Daí a analogia.
18
Ver estudos de Pamila Gupta. Em linha:
https://www.researchgate.net/publication/325077977_Sensuous_Ways_of_Seeing_in_Stone_Town_Zanzi
bar_Patina_Pose_Punctum(acedido a 20.4.2021).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
212
do leste tendo feito, em 1890, sociedade com aA. C. Gomes (que tinha um
estúdio na ilha do Zanzibar desde 1870), dos irmãos Coutinho, ambos de origem
portuguesa. Os filhos de A. C. Gomes continuaram o negócio da família
assinando A. C. Gomes & Cº, photographers, Zanzibar; alguns anos depois
encontramos carimbos com Copyright issuedby A. C. Gomes & Cº, Son, Zanzibar
e finalmente A. C. Gomes & Cº, Sons, Zanzibar.
Hoje sobra uma única loja aberta, a Capital Art Estúdio, na KenyattaRoad. Em
atividade desde 1930, teve como fundador Ronchad T. Oza(? 1993) que,
apesar de o ser de origem goesa, começou a trabalhar como aprendiz de
fotógrafo para a casa A.C.Gomes & Cº, Sons em 1925. Ronchad tornou-se o
fotógrafo oficial do sultão Khalifa bin Haroub (1879-1960). Em 1979 o seu filho,
RohitRamezOza, ficou à frente da loja, um espaço que remete para um tempo
pretérito dadopelas paredes forradas a fotografias a preto e branco. Em muitos
destes registos, as ruas retratadas exibem tabuletas penduradas anunciando
apelidos de origem portuguesa mostrando a profusão de famílias eu até à meio
século habitava as ruas de Stone Town.
Imagem 11 - Capital Art Studio, Rohit Oza, Stone Town.
Fonte: Fotografia de Maria João Castro.
3. Toda a documentação relativa às relões Zanzibar-Portugal que se encontra
nos National Zanzibar Archives (ZNA), Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Arquivo Histórico Ultramarino e que
contém variados documentos entre os sultões de Zanzibar e a monarquia
portuguesa.
ILHA DE PEMBA
1. Fortaleza ChakeChake.
Acredita-se que a fortaleza de Chake Chake
19
teve origem portuguesa (1594).
20
O
antigo espaço uma espécie de quartel seiscentista acredita-se que tenha
19
Em linha: http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BIVG/BIVG-N026&p=17 (acedido a
21.4.2021).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
213
sido destruído pelos omanitas para dar lugar a um novo edifício defensivo, uma
fortaleza. Os vestígios da guarnição portuguesa não são visíveis mas há registos
datados do início do século XIX que a descrevem como sendo de planta
retangular, com duas torres quadradas e duas redondas nos cantos, encimadas
por telhados de colmo. Como se sabe, as torres redondas são típicas da
arquitetura árabe e suaíli da época, mas as torres quadradas são incomuns e
indicam a possível influência portuguesa. Hoje alberga o Pemba Museum
showing, History and Culture of the Island including early history, polity,
maritime culture, colonial occupation and ways against it, years of politics,
independence and revolution.
2. Touradas.
Introduzidas em Pemba durante a colonização portuguesa as touradas têm lugar
durante as mais variadas comemorações na ilha, como, por exemplo, no dia de
Ano Novo. Reminiscências de uma tradição implantada no século XVII, as
touradas são vistas como um teste de bravura dos homens que possuem gado
bovino mantém-se dentro de um forte cunho comunitário e festivo em pequenas
aldeias como Chuale e Kangagani.
Concluída a elencagem não exaustiva, e ao contrário do que Oliver e Mathew
escreveram de que “a presença portuguesa durante 200 anos não contribuiu em nada
para a arte e a arquitetura” e de que a sua passagem foi “um mero sonho perdido”
(Oliver, 1963:168), constata-se que esta não foi meramente residual mas relevante
no sentido de ter deixado um legado que o tempo se encarregou de extinguir. Porém,
nas últimas décadas começou-se a perceber o seu alcance, mercê de novas
investigações, escavações e análises que têm vindo a ser concretizados através de
parcerias e protocolos com entidades estrangeiras e que têm trazido à luz da
contemporaneidade alguns dados significativos com que se colmatam zonas menos
claras da história.
Dito isto é preciso não esquecer que a vitória definitiva dos árabes de Muscate sobre
os portugueses em 1698 e o colonialismo inglês que tornou a ilha num protetorado
britânico durante parte do século XIX e XX em muito contribuíram para uma diluição
de vestígios de culturas anteriores, como aliás acontece em todos os processos
históricos.
III. Considerações não finais
Traçado o itinerário de parte da herança portuguesa em Zanzibar interessa perceber
que a história é uma descoberta em permanente crescendo que se constrói e
perspetiva numa dinâmica de múltiplas abordagens. A própria visão dos bens culturais
e artísticos que integram o património de um país encontra-se em constante
20
Em linha: https://books.google.pt/books?id=Zlqv0gSkk-
kC&pg=PA8&lpg=PA8&dq=dhow+zanzibar+portuguese&source=bl&ots=mQ6k3Whbvt&sig=ACfU3U2-
xP1nOSvgTxn3wVb6sOxmoQnzOg&hl=pt-
PT&sa=X&ved=2ahUKEwi1lpSt6ZXpAhVE4eAKHQuKBVgQ6AEwBnoECAoQAQ#v=onepage&q=dhow%20za
nzibar%20portuguese&f=false (acedido a 2.5.2021).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
214
reconfiguração pelo que não olhares unifocais ou definitivos; há sim aproximações
que, sendo interdisciplinares, transnacionais e intercomunitárias alavancam a
construção de uma política de património cultural responsável e atenta. Porque o
património pode ser um instrumento de resiliência das comunidades locais, sendo
elemento basilar na manutenção de uma identidade comum. Na verdade, ele tem
vindo a ser usado como força prospetiva capaz de promover o bem-estar e a coesão,
contribuindo para uma sociedade mais inclusiva e sustentável, dentro de uma
dinâmica geopolítica mais altruísta e solidária.
Nesse sentido, se se tiver em atenção o crescimento de um mercado turístico
sustentado com os recursos de Zanzibar, este poderá ser o catalisador para uma
melhoria da qualidade de vida da sua população e da sedimentação da sua identidade
cultural. Claro que o equilíbrio desta equação é desafiante e coloca uma série de
questões aos governantes. Sendo o turismo um fenómeno recente (anos 1970) no
arquipélago impulsionado pelo declínio da cultura do cravinho a partir de 1975 ,
este foi visto como substituto da entrada de divisas na ilha, com base numa oferta que
alia não só lazer (vilegiatura) mas igualmente uma cultura própria árabe-suaíli.O
sucesso desta aposta traduz-se no facto de o turismo contribuir com mais de 27% do
produto interno bruto (Keshodkar, 2013:71) dados de 2012 o que não só mostra a
ascendência do setor na economia como equaciona novos reptos à preservação da
mesma (Zanzibar Mail, 2020:7).
No campo de uma filosofia, etnologia, antropologia ou historiografia da arte, a
compreensão da natureza de uma dada herança arstica foi frequentemente ancorada
num pensamento de matriz ocidental (Palmeirim, 2006: 14) que os estudos pós-
coloniais vieram agitar. O que será, porventura, parece basilar neste âmbito é que,
independentemente de correntes, linhas de pensamento ou tomadas de posição
etnocêntricas, a herança cultural-artística cartografada num dado território integra
uma genealogia estética e simbólica que determina o tempo e a vivência presente.
Nesse sentido, a pesquisa visual de uma fenomenologia do lugar construído sob várias
camadas histórico-artísticas realiza-se plenamente em Zanzibar.
Seja como for, no palimpsesto diáfano e melífluo que é Zanzibar, a ilha-joia da
civilização islâmica e suaíli apresenta-se hoje como um foco turístico de eleição que
vai muito para além da oferta unívoca do destino praia. Porque a riqueza do
património e da memória resultante de uma narrativa fundamentada na miscigenação
das culturas árabe, africana, indiana e também lusitana, coloca o seu território como
um destino referencial da cultura do Índico. Tal circunstância constitui um desafio para
a tutela do arquipélago pois centra-se num equilíbrio de uma equação de grande
fragilidade e complexidade: conservação, desenvolvimento e sustentabilidade.
Um digno ponto de partida foi o reconhecimento de Stone Town como Património
Mundial pela UNESCO em 2000. Encontrar o equilíbrio certo entre a qualidade de vida
dos habitantes e a qualidade da experiência dos visitantes, garantindo sobretudo
que os valores patrimoniais não são postos em causa, é sempre um desafio, o
obstante o potencial dos recursos de Zanzibar não se esgotarem na Cidade de Pedra
indo muito para além dela. Resta crer que, sob a brisa do Índico, o legado de um
tempo em que a expansão portuguesa passava pela instalação de empórios e tratos
de comércio junto ao mar constitui uma memória e um património capaz de
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
215
aprofundar a dimensão histórica não para quem procura reminiscências de um
pretérito partilhado como, principalmente, sabe que só conhecendo o passado se pode
ter em perspetiva o porvir porque a verdade última é que nós só existimos no
espelho dos outros” (Lourenço, 2015b).
Referências
AAVV (1888). Negócios Externos. Documentos Apresentados às Cortes. Negociações
com Zanzibar. Sessão Legislativa de 1888. Lisboa: Imprensa Nacional.
AAVV (1998). O Centenário da Índia -1898- e a Comemoração da viagem de Vasco da
Gama. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses.
AGA KHAN (2017). Zanzibar Stone Town Projects. Historic Cities Support Programme.
Stone Town. The Aga Khan Trust for Culture-AKDN.
Anónimo (1851-1900). Notas de Viagem a Zanzibar, fragmento de manuscrito
anónimo, Lisboa: BNP. Em linha: http://purl.pt/27148/3
Campos, J. J. (1935). Boletim do Instituto Vasco da Gama. N.º 26.
Carvalho, Selma (2016). Baker Butcher Doctor Diplomat. Goan Pioneers of East Africa.
United Kingdom, SC.
Castro, Maria João (2019). Zanzibar. Art of a (Re) Encounter. Lisboa:Caleidoscópio.
Coupland, R. (1965). East Africa and Its Invaders. From the earliest times to the death
of Seyyid Said in 1856. New York: Russel & Russel.
DGNE (1940). Tratado de Amisade e Commercio de 1879. Lisboa: Imprensa Nacional.
Fonseca, Luís Adão da (1998). “Relato directo da viagem de descobrimento do caminho
marítimo para a Índia”, Vasco da Gama: o Homem, a Viagem, a época. Lisboa: Expo
98.
Freeman-Grenville, G. S. P. (1989).“The Portuguese on Swahili Coast. Buidingsand
Language” in Revista Stvdia, N.º 49. Lisboa: Instituto de Investigação Científica e
Tropical.
Gray, John (1958). Early Portuguese Missionaries in East Africa. London: Macmillan and
Co. Limited.
Hall, C; Tucker, Hazel (2004). Tourism and Postcolonialism. Contested discourses,
identities and representations. London: Routledge.
Horton, M. C.; Clark, C. M. (2010). Archaeological Survey of Zanzibar. London:
Routledge.
Horton, Mark (2021). Zanzibar Archaeological Survey.Ministry Inf., Western Sydney
University.
Keshodkar, Akbar (2013). Tourism and Social Change in Post-Socialist Zanzibar:
Struggles for Identity, Movement, and Civilization. United Kingdom: Lexington Books.
Lans, Van Der (2019). Ng'ambo Atlas: Zanzibar. Netherlands: LM Publisdhers.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 2 (Novembro 2021-Abril 2022), pp. 197-216
Sob a Brisa do Índico português: turismo e património em Zanzibar
Maria João Castro
216
Lyne, Roberyt Nunez (2006). Zanzibar in Contemporary Times. Zanzibar: Gallery
Publications.
Lourenço, Lourenço (2015a). “Património” in Revista Património, Manuel Lacerda (dir.),
N.º 3, Lisboa: D.G.P.C.
Lourenço, Eduardo (2015b). Apresentação a 15 de junho de Em Diálogo com Eduardo
Lourenço. Lisboa: Centro Nacional de Cultura.
Markes, Sarah (2020). Sea Level. A portrait of Zanzibar. Dar esSalaam: Mkuki
Publishers.
Mattoso, Jo (dir.) (2010). Património de Origem Portuguesa no Mundo. África, Mar
Vermelho, Golfo Pérsico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Mello, Adelino António das Neves e (1890). Zanzibar. Lisboa: Typografia Minerva
Central.
Oliver, Roland; Mathew, Gervase (ed.) (1963). History of East Africa. Vol. I. Oxford:
Oxford University Press.
Ommanney, F. D. (1957). Isles of Cloves. A view of Zanzibar. London: The Travel Book
Club.
Palmeirim, Manuela (2006). “Objecto de Arte Ou a Arte do Objecto?” in O Eterno
Feminino. Emoção e Razão. Colecção do Pintor Eduardo Nery. Fão: Museu d’Arte.
Palmeirim, Manuela; Castro, Maria João (2021). Travessias do Índico. Memória e
Património. AHAM. Lisboa: CHAM.
Sheriff, Abdul (1991).Zanzibar Under Colonial Rule. London: James Currey.
Sheriff, Abdul (1995).Historical Zanzibar: Romance of the ages. ST: HST Publications.
Sheriff, A. &Jafferji, J. (2008).Zanzibar Stone Town: An Architectural Exploration.
Zanzibar: Gallery Publications.
Smith, Valene (1989).Hosts and Guests. The Anthropology of Tourism. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press.
Strandes, Justus (1961).The Portuguese Period in East Africa. Vol. II. Nairobi: East
Africa Literature Bureau.