OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
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ARTIGOS
Terrorismo transnacional: uma ameaça à segurança global Lucie Calléja pp 1-12
NATO 2030: a sobrevivência numa nova era Marco António Ferreira da Cruz pp 13-32
O papel das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural e o soft power entre a China e a
União Europeia Silvia María González Fernández pp 33-64
A relação China-Rússia e a constituição da cultura da Organização para a Cooperação de Xangai
Diogo Machado pp 65-80
Os ODS em África, na luta pelos direitos humanos Tânia Libório pp 81-94
Para um novo modelo de migração do Estado rentista? Perceções da Ásia Central e dos Estados
Árabes do Golfo Farkhad Alimukhamedov, Hisham Bin Hashim pp 95-128
La cooperación descentralizada entre Smart Cities en energías renovables en la Unión Europea:
análisis de proyectos y acciones Camila Abbondanzieri pp 129-150
Passagem das taxas de câmbio para os índices de preços no Irão Mohsen Mohammadi pp 151-
167
O que os estudos estratégicos são ou não são: a propósito de um manifesto de Isabelle Duyvesteyn e
James Worral António Horta Fernandes pp 168-180
Carl Schmitt e as relações internacionais. Atualidade e posicionamento teórico Bernardo Calheiros
pp 181-195
Jurisdição penal universal: nova abordagem nos países da Europa Ocidental Safwan Maqsoon
pp 196-217
Les pratiques de l’état d’urgence et les droits de l’Homme: le cas d’expulsions massives des
fonctionnaires publiques en Turquie - Ömer Bedir pp 218-246
Os refugiados Rohingya no Bangladesh: um caminho difícil para a integração, entre preocupações
humanitárias e de segurança Shahanaz Parven pp 247-264
Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia Malika Shah, Vaibhav Chadha pp 265-278
NOTAS
Mikhail Gorbatchov, o fator humano e a implosão da União Soviética Daniela Pereira Nunes pp
279-285
RECENSÃO CRÍTICA
Mouffe, Chantal (2019). Por um populismo de esquerda. Lisboa: Gradiva, 95 pp. ISBN 978-989-616-
906-0 João Carlos de Sousa pp 286-291
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TERRORISMO TRANSNACIONAL: UMA AMEA À SEGURANÇA GLOBAL
LUCIE CALLÉJA
lucie.calleja@hotmail.fr
Investigadora doutorada no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa,
Lisboa (Portugal). É Coordenadora Executiva de Relações Internacionais na Católica Global
School of Law de Lisboa. Foi consultora do Conselho de Administração no Institute for the
Promotion of Latin America and the Caribbean (IPDAL) e voluntária global para uma Educação de
Qualidade com AIESEC Salvador
Resumo
O início do século XXI é caracterizado pela emergência de uma nova paisagem política
significativamente influenciada pela globalização. A crescente interconectividade que resulta
deste fenómeno implica a necessidade de redefinir os conceitos de política internacional,
estratégias, ameaças e segurança. Paralelamente, as novas tecnologias permitiram que as
ameaças transnacionais se desenvolvessem e surgissem como uma preocupação primordial
para as grandes potências e a governação global. Com base na análise de trabalhos anteriores
e estudos relevantes no terreno (Brown, 2017; Bannelier-Christakis, 2016; Jones, Pascual, &
Stedman, 2009; Garcia, 2006), este artigo explora a emergência do terrorismo transnacional
e a expansão do extremismo religioso como grandes ameaças para os estados e indivíduos
de hoje em dia. Ao procurar responder à questão de como abordar o terrorismo e o
extremismo violento, este artigo analisa diversas posições, medidas e consequências que
tiveram origem num contexto de insegurança global. A crescente interdependência entre
segurança interna e externa tem chamado os Estados a desenvolver novas estratégias para
manter a estabilidade e a ordem. O artigo sublinha a necessidade de construir parcerias e
reforçar a colaboração a todos os níveis para enfrentar os desafios colocados pelo terrorismo
transnacional. Neste contexto de crescente insegurança, as nações são instadas a cooperar
com diferentes atores para proteger a sua soberania e reforçar a segurança humana. Será o
panorama político contemporâneo caracterizado pela insegurança e desordem?
Palavras-chave
Globalização, Segurança, Ameaças, Terrorismo Transnacional, Extremismo
Como citar este artigo
Calléja, Lucie (2021). Terrorismo transnacional: uma ameaça à segurança global. Janus.net,
e-journal of international relations. Vol12, . 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.1
Artigo recebido em 23 Janeiro 2020 e aceite para publicação em 28 Setembro 2020
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Terrorismo transnacional: uma ameaça à segurança global
Lucie Calléja
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TERRORISMO TRANSNACIONAL:
UMA AMEAÇA À SEGURANÇA GLOBAL
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LUCIE CALLÉJA
Introdução
O mundo unipolar que emergiu com o desaparecimento do bloco soviético e a afirmação
dos Estados Unidos como uma superpotência tem sido cada vez mais questionado após
os trágicos acontecimentos do 11 de Setembro. O fenómeno da globalização favoreceu
a emergência do conceito de "multipolaridade", moldando o equilíbrio de poder entre os
diferentes polos representados pelos Estados. A globalização esbateu as tendências e
expectativas para o futuro da política internacional e da nova ordem global (Kaiser &
Rochefort, 2007). Embora o declínio da unipolaridade americana, a ascensão da China e
da Índia como grandes potências, os conflitos persistentes no Médio Oriente e em África
sejam factos observáveis, continua a ser difícil aprovar uma perspetiva única sobre a
evolução das relações internacionais (de Senarclens, 2006). Neste contexto, emerge uma
multiplicidade de interpretações e conclusões potenciais. Como afirma Raymond Aron,
"os conceitos e processos de investigação nas relações internacionais não oferecem a
certeza de antecipar o futuro" (Ibid: 25). No máximo, constituem interpretações que
aliviam fenómenos e dinâmicas incertas suscetíveis de afetar as relações entre poderes.
"Grandes potências" referem-se frequentemente a um grupo de Estados que possuem os
recursos e capacidades para projetar a sua influência à escala global (Kaiser & Rochefort,
2007). Estes Estados são geralmente caracterizados pelos membros permanentes das
Nações Unidas (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América), da
União Europeia e potências regionais emergentes como o Brasil, a África do Sul e a Índia,
desempenhando esta última um papel cada vez mais importante na esfera global (Ibid,
2007: 619). Este quadro interligado favoreceu a afirmação de um mundo multipolar em
que os principais atores têm participado no sistema económico internacional (Zaluar &
Zeckhauser, 2002). O poder da Rússia está a voltar a aumentar principalmente devido
aos seus recursos energéticos; O Japão é a economia do terceiro mundo e exerce uma
diplomacia ativa a nível mundial; a Índia surge como uma economia em crescimento e
uma potência nuclear; o Brasil e a África do Sul surgem como potências regionais que
começam a desenvolver a sua influência à escala global; a China surge como uma
superpotência comercial e financeira; a União Europeia é um ator importante no comércio
mundial e constitui o maior fornecedor mundial de ajuda; finalmente, os Estados Unidos
continuam a ser uma potência e influência significativa, com um orçamento de defesa
igual ao do resto do mundo (Kaiser & Rochefort, 2007: 627).
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Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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Neste cenário globalizado, a emergência de novas tecnologias aumentou as interações
entre os atores. As interdependências e interconexões entre Estados constituem
condições necessárias para a modernidade, o crescimento económico e o
desenvolvimento (Kaiser & Rochefort, 2007). No entanto, parece fundamental notar que
estas condições também abrem novos desafios e constrangimentos aos Estados. De
facto, a natureza das principais ameaças para a segurança internacional tomou um rumo
crucial. As "clássicas" guerras interestatais de natureza ideológica ou territorial foram
substituídas por conflitos intraestatais, guerras civis ou étnicas, e ameaças
transnacionais comuns como o terrorismo (Ibid, 2007). A abertura e grande volatilidade
resultantes da globalização permitiram o desenvolvimento destas novas formas de
violência. Os crescentes fluxos de mercadorias, informação e seres humanos, afetaram
significativamente a noção de fronteira (Ibid, 2007), tornando-se zonas flexíveis e fluidas
de contactos e trocas constantes. Consequentemente, o início do nosso século é
caracterizado por essas ameaças - terrorismo, crime organizado, proliferação de armas
nucleares, aquecimento global, instabilidades económicas e doenças - que ultrapassam
as fronteiras físicas. Neste contexto, a segurança dos Estados tomou um novo sentido e
a sua integração na comunidade internacional tornou-se essencial para proteger os seus
interesses (Garcia, 2006). De facto, estas múltiplas ameaças provaram ir além do
controlo dos Estados individuais e a sua característica transnacional criou uma
interdependência inextricável entre a segurança nacional e internacional (Jones, Pascual
& Stedman, 2009). Os métodos clássicos de dissuasão e desvio sistematicamente
utilizados no passado continuam a ser insuficientes para proteger contra as novas
ameaças transnacionais contemporâneas. De facto, constituídas principalmente por
agentes não estatais, as ameaças transnacionais são móveis, não estabelecidas num
território específico, e muitas vezes imprevisíveis (Kaiser & Rochefort, 2007). A utilização
de redes internacionais para divulgar as suas ideias e alcançar um grande número de
pessoas aumenta a vulnerabilidade dos Estados e, consequentemente, "o maior teste à
liderança global será a construção de parcerias e instituições de cooperação que possam
enfrentar o desafio" da insegurança internacional e das ameaças transnacionais (Jones,
Pascual & Stedman, 2009: 19).
Portanto, este ensaio centra-se no terrorismo transnacional no contexto do islamismo
radical, nas suas consequências à escala global, e nos métodos utilizados pelos Estados
para proteger a sua soberania num contexto de insegurança global. Embora o conceito
de "islamismo radical" continue ambíguo e não traga uma perceção clara do fenómeno,
é entendido neste ensaio como uma forma específica de islamismo, mais política, que se
opõe à ideia de modernização, crítica do Ocidente, e que envolve frequentemente
violência (Mozaffari, 2007: 18). Neste contexto, esta investigação visa responder à
seguinte questão de investigação: Como é que os Estados enfrentam o clima de
insegurança global que resulta do terrorismo transnacional? Outras questões de
investigação relevantes incluem: Como é que o terrorismo transnacional afeta o
panorama das relações internacionais? Como é que as grandes potências lidam com o
islamismo radical e as consequências que este provoca? O novo sistema internacional é
caracterizado por uma desordem global dominada por organizações terroristas
transnacionais?
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O Terrorismo Transnacional num Contexto Globalizado
O contexto da globalização e do progresso tecnológico tem permitido às redes criminosas
e terroristas aumentar e expandir a sua influência em todo o mundo. O antigo Secretário-
Geral da ONU Kofi Annan fala da ascensão de uma "sociedade incivil", que "pode escapar
ao controlo da sociedade das nações, e que constitui uma ameaça transnacional à
governação mundial” (Zaluar & Zeckhauser, 2002: 25). De facto, estes grupos são
principalmente atores não estatais que mobilizam as capacidades e os recursos para
desafiar a segurança e a estabilidade mundiais.
O conceito de terrorismo pode ser associado a uma categoria específica de discurso
político, utilizando a violência para atingir fins políticos e provocando um clima de
insegurança e terror (Garcia, 2006: 347). Além disso, através de ações diretas e
espetaculares, as organizações terroristas visam gerar traumas sociais e psicogicos,
bem como ressonância pública (Ibid, 2006: 349). Na sequência da definição de
terrorismo da OTAN, entendemos o conceito como:
“o uso ilegal ou o uso ameaçado da força ou da violência, instigando o medo
e o terror, contra indivíduos ou bens, numa tentativa de coagir ou intimidar
governos ou sociedades, ou de ganhar controlo sobre uma população, para
atingir objetivos políticos, religiosos ou ideológicos" (NATO, 2016).
Os avanços tecnológicos e a interconectividade que caracterizam o nosso século
favoreceram a proliferação de redes criminosas e terroristas à escala global,
ultrapassando as fronteiras nacionais com as suas ideias e operações. Criando ligações
com outros atores não estatais e redes organizadas de natureza cultural e ideológica, as
organizações terroristas transnacionais desenvolveram novas estratégias e capacidades,
tornando-se uma ameaça significativa do século XXI. Neste contexto, parece importante
analisar várias características das estratégias dos grupos terroristas, a fim de melhor
compreender a sua projeção e impacto globais.
A tecnologia global é um elemento importante através do qual as redes terroristas
transnacionais recrutam apoiantes e membros em todas as regiões do mundo. Estes
grupos descentralizam e desenvolvem filiações terroristas locais, permitindo-lhes
assumir a responsabilidade por operações que acontecem em qualquer parte do mundo
(Brown, 2017:153). De facto, a grande mediatização dos ataques terroristas permite-
lhes difundir a sua mensagem e chegar a um bilião de pessoas em todo o mundo. Por
exemplo, o Estado Islâmico do Iraque e o Levant (ISIL ou ISIS) utilizam uma grande
variedade de tecnologias (meios de comunicação social, vídeos, canais de rádio e
televisão, etc.) para reclamar a responsabilidade durante ou após atos terroristas. Após
os atentados bombistas de 2019 no Sri Lanka, causando cerca de 350 mortes, os
atacantes afixaram um vídeo em que prometiam fidelidade ao der do ISIS e declaravam
a sua responsabilidade pelo ataque (New York Times, 2019). Além disso, ao mesmo
tempo que mobiliza os meios de comunicação social, a característica teatral dos ataques
terroristas divulga as operações dos grupos islamistas e pode contribuir para a sua
propaganda em todo o mundo (Brown, 2017: 158). A estratégia de descentralização e a
presença de pequenos grupos dispersos baseia-se na promoção de uma ideologia em que
diferentes pessoas se identificam e que permite a sua existência à escala global (Ibid,
2017). As fontes de adesão a estes grupos estão frequentemente relacionadas com a
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raiva associada a questões sociais e culturais específicas, injustiças, e a fraqueza das
instituições democráticas (Garcia, 2006: 351). A ideia de uma coação ocidental global
contra a religião islâmica e a comunidade muçulmana difundida por grupos como a al-
Qaeda, o Estado islâmico ou Boko Haram, expandiu-se e motivou numerosos ataques
terroristas em todo o mundo.
Mais do que para fins de recrutamento, as redes terroristas utilizam tecnologias para
organização interna, coordenação de ações, comunicação e financiamento. Através de
ferramentas de chat, aplicações encriptadas, websites de adultos, comunicam os seus
planos de ação, alvos, fotografias e instruções para realizar operações (Mates, 2001). A
este respeito, diz-se que o Estado islâmico é o "mais bem capitalizado na nova paisagem
tecnológica através de ataques remotamente inspiradores e dirigidos", como ilustrado
pelo ataque do Curtis Culwell Center no Texas, EUA, em 2015, no qual o Twitter foi
utilizado durante a operação para dirigir os atacantes (Harrison, 2019: 28).
Outro aspeto central das estratégias dos grupos terroristas é o local escolhido para a
realização de ataques. O objetivo é gerar terror e difundir uma mensagem específica. O
ataque de Nice em 2016 (França) na celebração do Dia da Bastilha, o bombardeamento
da Arena de Manchester (Reino Unido) em 2017 após o concerto de Ariana Grande, ou o
ataque de 2017 em La Rambla, em Barcelona, por uma carrinha que matou vários peões,
demonstraram a importância de atacar locais com muita gente para maximizar o número
de potenciais testemunhas. O caráter simbólico dos locais escolhidos também parece ser
importante nas estratégias dos grupos terroristas. De facto, locais religiosos como
sinagogas, igrejas ou mesquitas são frequentemente alvo de tiroteios e atentados
suicidas. Paralelamente, ataques em cidades como Paris ou Bruxelas, representando
locais globalizados e turísticos, aumentam o sentimento de terror entre pessoas de todo
o mundo (Brown, 2017).
Além disso, embora alguns grupos jihadistas atuem localmente, as consequências podem
ser refletidas em maior escala (Ibid, 2017). Na Nigéria, Boko Haram ataca aldeias,
escolas e indivíduos que não respeitam a lei da Sharia e o princípio do Salafismo. Através
de raptos ou ataques bombistas suicidas, o grupo islamista é responsável pela deslocação
interna de cerca de 2,5 milhões de pessoas e pela migração de quase 250.000 refugiados
nigerianos para os países vizinhos da região do Lago Chade (UNHCR, 2019). Estes grupos
lutam contra questões locais e indivíduos em regiões específicas, mas as consequências
das insurreições ultrapassam as fronteiras e envolvem uma vasta gama de atores
transnacionais e globais. Além disso, como grande produtor de petleo e economia em
rápido crescimento, a Nigéria constitui um ator estratégico nas relações internacionais.
O United States Africa Command (USAFRICOM), estabelecido em 2007, empenhou-se na
Nigéria e na região do Sahel para treinar tropas militares e lutar contra Boko Haram com
a presença de cerca de 1.000 militares em 2018 (Africa Faith & Justice Network, 2018).
Em 2014, a França lançou a "Operação Barkhane" e enviou 4.000 tropas para a região
do Sahel para fornecer ajuda material e de inteligência contra o terrorismo. Esta iniciativa
pretende permitir aos países da região combater as ameaças terroristas de forma
independente e reforçar a sua segurança (Missão Permanente da França junto da ONU
em Nova Iorque, 2019). A China também se empenhou na cooperação de segurança
com a Nigéria, através da Parceria de Cooperação China-África para a Paz e a Segurança,
que visa prestar assistência técnica em operações de segurança em todo o continente
africano. De facto, como a Nigéria representa um mercado importante para a China e
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constitui o seu terceiro grande destino de investimento africano, é muito provel que a
China aumente o seu envolvimento militar no território para proteger os seus interesses
(Toogood, 2016). O contexto na Nigéria e a presença das grandes potências na região
do Sahel para ajudar na luta contra grupos terroristas transnacionais demonstram a
importância de tais ameaças à escala global. Este caso também caracteriza uma situação
em que os interesses económicos e políticos divergentes de várias grandes potências se
encontram numa via comum para combater o extremismo violento.
Um ponto adicional importante é que as redes terroristas transnacionais estão
frequentemente ligadas a outras ameaças transnacionais, tais como as organizações
criminosas organizadas, especialmente para o tráfico de armas, dinheiro e drogas
(Brown, 2017). Na África Ocidental e na região do Sahel, a Al-Qaeda está profundamente
envolvida em atividades criminosas como o tráfico de droga e o branqueamento de
dinheiro. O envolvimento em atividades com redes criminosas permite ao grupo
assegurar receitas financeiras para expandir a sua influência e adquirir armas
(Rousselier, 2011). Além disso, Estados instáveis ou falhados podem favorecer a
emergência de grupos terroristas ou estar diretamente ligados ao treino e planeamento
de operações, aumentando a insegurança entre cidadãos e nações vizinhas. De facto,
devido à debilidade das instituições e à incapacidade dos Estados de exercer o poder
internamente, os grupos terroristas podem encontrar oportunidades para se organizarem
e desenvolverem em territórios onde o controlo do Estado é inexistente ou nulo (Piazza,
2008). Segundo a Agência Central de Informações (CIA), a Al-Qaeda, a União Islâmica
Jihad e o Estado Islâmico do Iraque e ash-Sham-Khorasan, são exemplos de grupos
terroristas baseados na região norte do Afeganistão, o que constitui "um porto seguro"
para projetar a sua liderança (https://www.cia.gov, 2019). Na mesma linha, a situação
caótica que devastou a Síria a partir de 2011 permitiu ao Estado islâmico assumir o
controlo de vários territórios sírios e iraquianos, representando cerca de 110.000
quilómetros quadrados, e trazer perto de 50.000 jihadistas do estrangeiro
(Departamento de Estado dos EUA, 2019). A nível internacional, o Irão e a Rússia
intervieram para lutar contra o ISIS e apoiar o governo sírio de Bashar al-Assad. Por
outro lado, os EUA lideraram uma coligação composta pelos Estados ocidentais, os
Estados árabes sunitas e a Turquia, que intervieram para derrotar o ISIS enquanto
pediam a remoção de Bashar al-Assad. Contudo, devido à complexidade da intervenção,
a coligação liderada pelos EUA foi frequentemente "constrangida por objetivos e
lealdades conflituosas, dúvidas sobre o caráter 'moderado' de alguns grupos rebeldes, e
receios de ser arrastada mais profundamente para o pântano sírio” (Bannelier-Christakis,
2016: 745).
Que respostas para a Desordem Global?
Neste contexto complexo e intrigante, os governos são instados a agir em resposta e a
proteger os seus cidadãos. No entanto, devido à característica transnacional das
atividades terroristas, tem sido difícil para as nações determinar a natureza da sua
intervenção (Brown, 2017). Vários estudiosos têm argumentado que "as políticas
europeias antiterrorismo são mais reacionárias do que eficazes porque seguem o mesmo
padrão de supressão governamental dos direitos humanos em nome da segurança" (Ibid,
2017: 157). Os Estados tomaram um vasto leque de medidas internas, tais como
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aumentar o financiamento das agências governamentais que trabalham em operações
antiterroristas, denunciar opiniões extremas e radicais nas escolas, ou mobilizar eventos
interculturais para contrariar a propagação de ideologias que transportam a radicalização
e a violência. No entanto, as intervenções nacionais e a legislação antiterrorismo nas
sociedades ocidentais têm sido frequentemente controversas e denunciadas por
restringir as liberdades entre os cidadãos (Ibid, 2017). A base americana na Baía de
Guantánamo, Cuba, representa um caso de medida antiterrorista que implicou
importantes violações dos direitos humanos. G.W Bush criou o campo de detenção de
Guantánamo após o 11 de Setembro de 2001 para deter e interrogar terroristas e
indivíduos acusados de cometerem crimes de guerra. Durante muitos anos, o quadro do
direito internacional não foi respeitado, especialmente no que diz respeito ao direito a
um julgamento justo dos prisioneiros, ao tratamento e proteção dos detidos,
considerados pelo governo dos EUA como "combatentes ilegais" que "não podiam
beneficiar da proteção do direito humanitário internacional” (Guild & Bigo, 2018: 34).
Num outro contexto, o caso mais recente da França constitui outra medida antiterrorismo
que tem sido contestada internacionalmente. Após uma série de atos terroristas que
tiveram lugar em Paris em 2015, o Presidente Hollande declarou o "estado de
emergência" em todo o território francês. A legislação consistiu na expansão da vigilância
estatal para combater o terrorismo e foi prorrogada várias vezes até novembro de 2017.
Contudo, várias disposições e restrições do estado de emergência foram consideradas
pelos peritos em direitos humanos como limitando os direitos à privacidade, liberdade de
expressão, prática religiosa, reunião pacífica e associação (Guild & Bigo, 2018: 86).
Tomando como exemplo o encerramento de mesquitas em estado de emergência, o
Relator Especial para a Luta contra o Terrorismo e os Direitos Humanos, Aoláin,
declarou: evidente que a comunidade muçulmana francesa tem sido a comunidade
principalmente sujeita a medidas excecionais tanto durante o estado de emergência
como durante a nova lei, a par de outras medidas antiterroristas" (OHCHR, 2018). Este
caso ilustra o grande conjunto de dificuldades sentidas pelos Estados na luta contra o
terrorismo. Embora os governos possam estabelecer restrições para garantir a ordem
pública, as leis devem respeitar e garantir os direitos fundamentais e as liberdades civis
de todos os cidadãos.
Paralelamente, as medidas externas consistiram principalmente em desenvolver uma
maior cooperação entre países vizinhos e agências estatais para desmantelar as ameaças
(Brown, 2017: 154). Foram realizadas intervenções no estrangeiro através de treino
militar, ajuda humanitária e apoio financeiro, para evitar a expansão de grupos
terroristas em Estados fracos e falhados. A Coligação Internacional liderada pelos EUA
foi estabelecida em 2014 para derrotar o ISIS em todas as frentes. Composta por mais
de oitenta membros, a coligação é militar, ativa e unida contra a expansão do Estado
islâmico em vários territórios iraquianos e sírios (https://theglobalcoalition.org). Em
março de 2019, após quatro anos de intervenção militar e humanitária, todos os
territórios sírios foram libertados do controlo do ISIS. Os Diretores Políticos da Coligação
Global para Derrotar ISIS emitiram numa declaração conjunta que "hoje, Daesh/ISISIS
não controla o território e mais de 7,7 milhões de pessoas foram libertadas do seu
controlo. […] No entanto, a derrota territorial de Daesh/ISIS não representa a
erradicação do grupo terrorista ou o fim da ameaça terrorista que representa"
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(Departamento de Estado dos EUA, 2019). A este respeito, a Coligação deve continuar a
levar a cabo a sua missão através de engajamento militar e político.
Noutros casos, porém, as intervenções externas podem levar ao apoio de governos o
democráticos e ter consequências significativas na cena internacional (Brown, 2017:
160). A "guerra ao terror" empreendida pelos Estados Unidos após o 11 de Setembro,
implicou a adoção de leis antiterrorismo por muitos regimes autoritários e a prestação
de ajuda externa para este fim. No entanto, de certa forma, isto tinha justificado as
limitações das liberdades civis e o uso da violência em vários países antidemocráticos
(Sahar, 2018). O Egipto, como aliado dos EUA no contraterrorismo, cometeu violações
dos direitos humanos, tortura de detidos, violência contra pessoas acusadas de serem
membros de grupos islâmicos. As leis antiterroristas são também utilizadas contra
organizações da sociedade civil, jornalistas e defensores dos direitos humanos,
considerados como pondo em perigo a segurança nacional. No entanto, desde 1979, os
Estados Unidos gastaram 41 mil milhões de dólares em segurança e ajuda antiterrorista
no Egipto (Ibid, 2018: 1606). A assistência estrangeira dirigida a governos autoritários
que violam as liberdades fundamentais dos cidadãos poderia, em troca, jogar a favor de
organizações terroristas e difundir a imagem de agressores ocidentais que apoiam
ditadores violentos (Brown, 2017: 160).
Consequentemente, os esforços feitos pelos Estados e outros atores para combater o
terrorismo manifestam a importância da ameaça terrorista a nível mundial e as suas
consequências na segurança global. Em resposta, a comunidade internacional deve
enfrentar as ameaças transnacionais através de uma maior cooperação e políticas
comuns. Os Estados, decisores, organizações internacionais, atores não estatais e
empresas, devem construir uma estratégia de cooperação para reforçar uma governação
global eficaz num contexto de crescente insegurança (Zaluar & Zeckhauser, 2002). No
caso da região do Sahel, a Aliança do Sahel foi criada em 2017 para reforçar a cooperação
entre as grandes potências e os países do Sahel do G5 (Burkina Faso, Chade, Mali,
Mauritânia, ger) para enfrentar ameaças transnacionais como o terrorismo e o crime
organizado. A Aliança apela à implementação de medidas que respondam às
necessidades das populações e que garantam a segurança regional em áreas vulneráveis.
Os 12 doadores da Aliança do Sahel planeiam doar cerca de 9 mil milhões de euros para
implementar diversos projetos na região durante o período 2018-2022
(diplomatie.gouv.fr, 2019). Tais iniciativas de cooperação podem potencialmente
sustentar a estabilidade e a paz em países vulneráveis onde as ameaças transnacionais
são predominantes.
Embora o terrorismo transnacional constitua uma ameaça global, as nações estão
preocupadas e afetadas de forma diferente. Devido às caractesticas específicas
analisadas neste ensaio, observámos que estes grupos transnacionais e móveis têm um
impacto significativo na legitimidade, soberania e segurança global dos Estados.
Conclusão
Para concluir este ensaio, os conflitos entre grupos islamistas e o Ocidente e os seus
aliados são muito suscetíveis de continuar a influenciar o nosso século. A guerra no
Iraque e na Síria, o recrutamento contínuo de jihadistas, e a expansão de um Islão radical
e violento, constituem elementos que alimentam o terrorismo transnacional.
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Terrorismo transnacional: uma ameaça à segurança global
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Paralelamente, as relões entre as grandes potências constituem uma questão
complexa no seio das relações internacionais. Embora estas nações tenham
frequentemente definido interesses comuns na luta contra o terrorismo, também têm
fortes preocupações divergentes ou opostas, que podem afetar uma cooperação eficaz
(Zaluar & Zeckhauser, 2002). Os principais poderes têm um papel significativo na
garantia da estabilidade e implementação de uma comunidade de segurança global para
combater as ameaças transnacionais. Introduzida inicialmente por Karl Deutsch em 1957
e posteriormente repensada por Adler e Barnett (1998), a ideia de "comunidades de
segurança" enfatiza a necessidade de construir uma identidade e comunidade
transnacional a nível internacional para permitir uma mudança pacífica, estabilidade e
segurança comum. A este respeito, vários estudiosos argumentam que as democracias
liberais não deveriam ter muita dificuldade em reforçar as parcerias de cooperação,
protegendo simultaneamente a sua liberdade e autonomia nacional (Zaluar &
Zeckhauser, 2002:16). De facto, embora as políticas contra ameaças transnacionais
possam exigir um reforço do poder dos Estados, instituições democráticas fortes e
estáveis manterão um equilíbrio. Em contraste, os Estados fracos ou não democráticos
poderão ser incapazes de garantir a estabilidade política e económica. Jones, Pascual e
Stedman (2009) introduziram o conceito de "soberania responsável" referindo-se à
"injunção de que a soberania implica obrigações e deveres para com os próprios cidadãos
e para com outros Estados soberanos" (2009:9). De facto, as influências que resultam
das decisões e ações dos Estados vão mais longe nas suas próprias fronteiras e, portanto,
a segurança internacional exige que as nações projetem a sua soberania em colaboração
com outros atores da ordem global (Jones, Pascual & Stedman, 2009).
É essencial considerar que as ameaças transnacionais - terrorismo, crime organizado,
proliferação de armas nucleares, alterações climáticas, instabilidades económicas e
doenças infeciosas - estão frequentemente interligadas e o seu efeito cumulativo
constitui um perigo real para a soberania do Estado (Jones, Pascual & Stedman, 2009:
4). Para abordar estas preocupações de segurança e preservar a soberania dos Estados,
parece essencial construir acordos e alianças de cooperação entre as principais nões,
os Estados Unidos, a União Europeia, a China, o Japão, a Rússia, outras potências
regionais, como a Índia, o Brasil e a África do Sul, e com instituições internacionais. As
parcerias de cooperação entre serviços de investigação e agências de segurança são
também fundamentais para combater as ameaças transnacionais (Kaiser & Rochefort,
2007:622). Uma questão importante que poderíamos analisar mais profundamente são
as ligações entre o terrorismo transnacional, o crime organizado e as armas de destruição
maciça (ADM). Atualmente, o sistema internacional de não proliferação de armas
nucleares parece estar cada vez mais fragmentado (Ibid, 2007). Para além dos cinco
membros do Conselho de Segurança, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel
adquiriram armas nucleares. Embora até agora a posse de ADM tenha sido limitada aos
Estados, pode expandir-se rapidamente a grupos terroristas transnacionais e provocar
consequências terríveis. Esta questão constitui uma ameaça importante para todas as
grandes potências que deve ser mais estudada.
Outra preocupação atual é a transmissão de doenças infeciosas à escala global e a
incapacidade dos Estados de responder adequadamente. A pandemia global que surgiu
em 2019 com a propagação da COVID-19 testemunhou a vulnerabilidade da paz e
segurança internacionais contra ameaças tão imprevisíveis. Como declarou o
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Terrorismo transnacional: uma ameaça à segurança global
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Subsecretário-Geral das Nações Unidas para a Luta contra o Terrorismo, Vladimir
Voronkov, na Semana Virtual de Luta contra o Terrorismo, "A pandemia da COVID-19
apresentou à comunidade internacional um dos maiores desafios desde a criação das
Nações Unidas há 75 anos - testar a resiliência nacional, a solidariedade internacional e
a cooperação multilateral(Nações Unidas, 2020). Embora a preocupação global seja
combater a pandemia, as organizações terroristas aproveitam a situação, e os Estados
devem duplicar os seus esforços para "reforçar o multilateralismo e a cooperação
internacional a todos os níveis, a fim de 'reconstruir melhor'" (Nões Unidas, 2020). De
facto, num contexto de insegurança global, a ordem internacional depende da
coordenação de interesses comuns, da projeção de uma soberania responsável, da
existência de instituições fortes, e do grau de cooperação entre as potências maiores e
emergentes (Jones, Pascual & Stedman, 2009: 15). A capacidade dos Estados de
mobilizar os recursos necessários e de se empenharem em conjunto determinará a
paisagem internacional do século XXI.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
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“NATO 2030”: A SOBREVIVÊNCIA NUMA NOVA ERA
MARCO ANTÓNIO FERREIRA DA CRUZ
cruz.maf@ium.pt
Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar (Portugal)
Resumo
A NATO atravessa um momento de elevada complexidade, resultante em grande parte das
profundas divisões internas e que limitam a sua capacidade de atuação para lidar com os
diversos desafios estratégicos. Tendo por base o recém-publicado documento “NATO 2030:
United for a new era”, que analisa o ambiente estratégico e recomenda um conjunto de linhas
de atuação da organização para os próximos dez anos, o presente artigo argumenta que
grande parte das medidas propostas, para reforço da coesão política da Aliança, podem
ser implementadas com sucesso se forem tomadas duas medidas essenciais: aproximação à
Turquia e reforço da cooperação com a UE. A sobrevivência da NATO está de igual modo
dependente da identificação de uma ameaça comum, fundamental para esta tipologia de
comunidade, condição que é atualmente inexistente, sobretudo em relação aos dois
adversários sistémicos apresentados (Rússia e China).
Palavras-chave
NATO 2030, União Europeia, Turquia, rivais sistémicos, coesão política, ambiente estratégico
Como citar este artigo
Cruz, Marco António Ferreira da (2021). “NATO 2030”: A sobrevivência numa nova era.
Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado
[online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.2
Artigo recebido em 18 Janeiro 2021 e aceite para publicação em 7 Março 2021
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“NATO 2030”: a sobrevivência numa nova era
Marco António Ferreira da Cruz
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“NATO 2030”: A SOBREVIVÊNCIA NUMA NOVA ERA
MARCO ANTÓNIO FERREIRA DA CRUZ
Introdução
Foi apresentado, no dia 25 de novembro de 2020, um relatório com as principais linhas
estratégicas da NATO (North Atlantic Treaty Organization) para os próximos 10 anos. O
documento, com o título “NATO 2030: United for a new era” (NATO, 2020) foi elaborado
por um conjunto de dez especialistas
1
, de diferentes proveniências, de académicos a
políticos, convidados e nomeados pelo próprio Secretário-geral da NATO, Jens
Stoltenberg. Apesar de não terem sido apresentadas as razões da escolha de cada um
dos membros, importa sublinhar as ausências de Portugal e de Espanha deste fórum de
reflexão.
Apesar do grupo trabalhar de forma autónoma da estrutura da NATO, Jens Stoltenberg
deixou três recomendações orientadoras para as reflexões produzidas, designadamente:
i) reforço da unidade da aliança, da solidariedade e da coesão, incluindo a centralidade
das ligações transatlânticas;
ii) aumento da consulta e da coordenação política entre os membros da NATO;
iii) e reforço do papel político da NATO e dos seus principais instrumentos para lidar com
as atuais e futuras ameaças e desafios à segurança da aliança, com origem em todas
as direções estratégicas (NATO, 2020: 3)
Da análise ao documento, destacam-se duas ideias principais. A primeira diz respeito ao
reposicionamento global da NATO. É reconhecido que no contexto atual os desafios e
ameaçaso de natureza e dimensão globais. Para lhes responder é necessário, portanto
uma abordagem alargada. Conceptualmente, porém, o conceito expresso no documento
é de que a NATO se deve manter uma Organização Regional, mas que se insira de forma
mais conexa com a rede de parceiros globais indispensáveis (a exemplo da Austrália, do
Japão e da Coreia do Sul e da India) para, em conjunto, se possam esconjurar desafios
que afetam todos e que ultrapassam as capacidades isoladas de um único, mesmo as da
maior potência mundial, os Estados Unidos da América (EUA). A cooperação com os
aliados passou a ser uma assim um pressuposto fundamental do documento.
1
Greta Bossenmaier (Canadá), Anja Dalgaard-Nielsen (Dinamarca), Hubert Védrine (França), Thomas de
Maizière (Alemanha), Marta Dassù (Itália), Herna Verhagen (Holanda), Anna Fotyga (Polónia), Tacan Ildem
(Turquia), John Bew (Reino Unido) e Wess Mitchell (Estados Unidos da América). Tal como foi sublinhado
pelo próprio Secretário-geral, as recomendações e as conclusões deste documento, em nada vinculam a
própria NATO ou os Estados aos quais os peritos convidados pertencem.
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Um segundo ponto diz respeito à intenção de ser reforçada a sua capacidade política. Os
últimos anos deixaram bem patente a permanência dos riscos e desafios e o aumento da
sua complexidade. Mostraram um desajuste, público, na parceria transatlântica e o
surgimento de questões internas do foro democrático em relação a países da Aliança,
bem como de atitudes estratégicas e posturas militares impensáveis como no caso da
Turquia, nomeadamente da sua intervenção militar no Mediterrâneo ocidental, na Líbia
ou na Síria. O que leva a que o documento se foque na apresentação de medidas
passíveis de gerar a capacidade política necessária para ultrapassar esta situação
conjuntural.
É sobre estes dois pontos que pretendemos fazer a nossa reflexão, pois embora se
reconheça que existe uma necessidade de ser elaborado um novo conceito estratégico
para a NATO que traduza este novo contexto internacional, com outra tipologia de
ameaças, decorrentes das alterações climáticas, da proliferação nuclear, das disputas no
espaço, dos ciberataques, apenas para referir algumas, é também marcado por atores
que (re)emergiram e que disputam o poder à escala global. A Rússia passou a ser
considerada uma “ameaça para a segurança individual de Aliados NATO e para a
estabilidade e coesão da Aliança como um todo” (NATO, 2020: 25) e a China “um rival
sistémico” de amplo espectro que, embora não represente uma ameaça militar imediata
para a área euro-atlântica na escala da Rússia, “está a expandir o seu alcance militar
para o Atlântico, Mediterrâneo e Ártico”.
Julgamos, porém, que sendo entendíveis as medidas propostas, a adoção consensual das
mesmas pela Aliança está dependente de fatores complexos, mas particularmente da
atitude da nova administração americana, da Turquia e do quadro das relações com a
UE, que se configuram como fatores críticos de sucesso ou insucesso
O estabelecimento da NATO, em 1949, e as sucessivas adaptões que protagonizou
tiveram quase sempre a unanimidade como garantida, nomeadamente em relação à
tipologia de ameaças que pretendia combater. Na sua fase original, era aceite por todos
a necessidade de dissuasão e de defesa de um ataque soviético e mais tarde do Pacto de
Varsóvia. Depois da queda do muro de Berlim e do colapso do pacto de Varsóvia, foi
unânime a resposta às crises que imediatamente irromperam na sua periferia e que
levaram às primeiras operações, fora de área, com as intervenções nos Balcãs
Ocidentais, em resposta às atrocidades cometidas por forças militares sérvias na Bósnia
e no Kosovo. Na sequência do ataque terrorista do 11 de Setembro, a NATO declarou o
artigo V para apoiar os EUA e em 2003 projetou forças sob a sua bandeira para o
Afeganistão, alargando ainda mais a área externa de intervenção para combater o
terrorismo internacional, liderado então por Osama Bin Laden.
Hoje, todavia, a situação é bem mais complexa tanto externa como internamente. A
definição das ameaças ou desafios é menos consensual e o afastamento transatlântico
dos EUA, iniciado com a administração Obama
2
, deixou um rasto de dúvida sobre a
perenidade da Aliança e mesmo sobre a partilha de valores, de princípios e de
envolvimento efetivo na causa comum. Talvez esteja a raiz do sentimento de que a
2
No início do seu mandato, o presidente Barack Obama declarou que os EUA necessitavam de olhar mais
para a região Ásia-Pacífico, onde os interesses norte-americanos teriam de ser defendidos. Isso veio
refletido na Estratégia Nacional de Segurança (National Security Strategy) assinada então por Obama,
naquilo que ficou conhecido como o “pivot” para a Ásia. Trump não mudou esta redefinição de prioridades
estratégicas, ou, pelo menos, tal não ficou refletido na sua Estratégia de Segurança Nacional.
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NATO pode estar em “morte cerebral”, como recentemente afirmou o Presidente Francês
Emmanuel Macron (The Economist, 2019).
De igual modo, a partilha de valores, nomeadamente a validade da democracia,
apresentados como “cimento” da unidade política entre os Estados-membros da
organização, em contraponto aos valores distintos de outras regiões e atores, demonstra
ser bastante frágil, tendo em conta o passado de alargamentos da NATO a países que
tinham estado largos anos na órbita e dependência soviética, ou se encaminham por
princípios políticos controversos sendo atualmente discutíveis esses mesmos valores no
seio dos seus membros, como é o caso da Turquia, mas não só.
Além da presente introdução e das notas finais, este artigo está dividido em três partes
principais. Na primeira procuramos identificar os elementos que serviram para a criação
e para a manutenção da comunidade NATO e para as questões das adaptões ao
contexto estratégico internacional. Na segunda é abordado o tema central do documento
que serve de base para a nossa análise, o reforço do papel político da organização,
focando-se com maior relevância a dimensão interna dessa ambição. No sentido de
apresentar linhas de reforço dos mecanismos de coesão interna, na última parte, damos
conta de duas medidas essenciais, designadamente da reaproximação da NATO à Turquia
e do reforço de cooperação, em diferentes domínios, com a UE.
1. Uma comunidade de (in)segurança
Sem querermos aqui dissecar todas as questões relativamente à criação da NATO,
importa, no entanto, identificar os elementos que ajudam a entender a organização, o
seu estabelecimento e a sua evolução decorrente do contexto internacional, em particular
depois da queda do muro de Berlim e do colapso da União Soviética. No plano teórico
importa reter os elementos identificados por Karl Deutsch, em 1957, relativamente à
criação das designadas comunidades de segurança. O autor ajuda-nos a perceber, em
primeiro lugar, que a integração nesta comunidade pretende tornar a guerra improvável
entre os seus membros (Deutsch, 1957: 5), desenvolvendo-se um sentido de segurança
cooperativa e coletiva. O trabalho de Adler e Barnett (1998: 55-57), publicado 40 anos
depois, dá, igualmente, indicações importantes relativamente às comunidades de
segurança. Reforçando os princípios identificados por Deutsch, os dois autores sublinham
que a criação deste tipo de comunidade tem como pilar principal a identificação e o
reconhecimento comum de uma ameaça com origem externa.
Além da intenção de criação de uma comunidade de segurança, o estabelecimento da
NATO pretendeu responder a questões de natureza geopolítica, cujos princípios podem
ser encontrados na teoria proposta por Mackinder (1919, 1943), que defende que apenas
uma união das potências marítimas (atlânticas) pode conter o sentido (natural) de
expansão da potência continental (União Soviética). Também o discurso do primeiro
Secretário-geral da NATO, Lord Hastings Lionel Ismay, nos elementos que reforçam
este sentido geopolítico da NATO, tendo afirmado que o objetivo principal da NATO é
“manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo” (NATO, s.d). Na
verdade, grande parte dos esforços da NATO, desde a sua criação até o final da Guerra
Fria (1991), procuraram cumprir este degnio proposto por Ismay, senão vejamos.
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A relação com os russos durante este período foi sempre tensa, por vezes dramática,
não apenas no espaço euro-atlântico, e em particular nas fronteiras entre o espaço
soviético e a Europa Ocidental, mas também nas regiões periféricas onde as potências
europeias e os Estados Unidos procuravam manter a sua influência. Nesta altura, o
mundo estava dividido em dois grandes blocos (para além da existência de países não
alinhados). De um lado, o bloco ocidental, tendo como referência a democracia e a
economia de mercado, e a NATO como organização de defesa coletiva. Do outro lado,
encontrava-se a aliança da URSS com os países que tinham passado ao seu controlo
após a II GGM caraterizada por partilharem um regime de partido único e uma economia
de planeamento central, tendo como estrutura militar o Pacto de Varsóvia. Eram, pois,
dois blocos de antagonismo absoluto: filosófico, político, económico e militar. A ameaça
de uma guerra nuclear catastrófica levou, na década de 1950, ao estabelecimento no XX
Congresso do Partido Comunista da União Soviética da “coexistência pacífica” e à decisão
de atacar os “regimes capitalistas” fora da área europeia, pelo apoio à libertação das
colónias. Nas décadas seguintes o apoio aos movimentos de libertação passou a constituir
o foco central da sua política externa soviética. No campo ocidental, o perigo de um
cataclismo nuclear foi também tido em conta e, no quadro de Harmel Report, da década
de 1960 estabelecida a postura de “dual track” em que sustentando sempre uma defesa
sem tergiversações, a NATO abriu espaço a negociações com o Pacto de Varsóvia e a
URSS. Embora militarmente nunca tenham ocorrido confrontos diretos entre estes dois
blocos, existiram, porém, diversos conflitos por procuração (proxy conflicts), onde cada
uma das partes apoiou de alguma forma os grupos insurgentes em países sob a influência
da outra parte. São exemplos deste âmbito os conflitos no Vietname, na Península da
Coreia, no Afeganistão, e em grande parte das antigas colónias portuguesas (Hobsbawm,
1996: 241-243).
As diferenças políticas e a ameaça de expansão do comunismo para a Europa, em
particular, e para o mundo em geral, constituíram as bases para o reconhecimento
comum da ameaça soviética e paraalimentar” o esforço que todos os Estados-membros
dedicaram à estrutura política e militar da NATO. Para os países da UE o pilar da
Segurança estava por completo entregue à garantia de segurança da Aliança Atlântica.
No atinente à Alemanha, durante a Guerra Fria, a NATO procurou sempre manter, em
primeiro lugar, “sob vigilância” o instrumento militar alemão (Hobsbawm, 1996: 240),
em face do contexto das I e II Guerras Mundiais. Apesar de dividida, nas Repúblicas
Federal e Democrática, a NATO, a par da UE, deu garantias para a estabilidade europeia,
através da integração pacífica alemã com as restantes potências europeias,
especialmente com França. A manutenção de um substantivo contingente militar
americano na Alemanha durante a Guerra-fria foi certamente uma garantia de
estabilidade interna e de afirmação da partilha de responsabilidades perante um eventual
ataque do Pacto de Varsóvia.
Por último, nas palavras de Ismay, a NATO servia para “manter os americanos dentro”.
A criação da NATO, para as diversas administrações norte americanas, pode ser vista em
modo similar ao plano Marshall, que apoiou economicamente uma Europa devastada pela
II Guerra Mundial. Apesar desse apoio, que foi vital para a recuperação económica
europeia, desde essa altura que a influência americana se fez sentir com maior dimensão,
não apenas à escala europeia, mas também em termos globais. De igual modo, a NATO,
para além de ter permitido aos europeus redirecionaram todo o seu esforço para a
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recuperação das economias e para a construção da UE
3
(Gaddis, 2007: 45) tornando os
investimentos no setor militar pouco expressivos, dadas as garantias “oferecidas” pela
aliança com os norte americanos. Não é, por isso, de estranhar que as capacidades da
NATO, sobretudo em termos nucleares, tenham dependido (e ainda hoje dependam)
quase exclusivamente dos EUA. No entanto, tal como no Plano Marshall, também a NATO
permitiu que as diversas administrações norte americanas influenciassem em termos
políticos e militares os Estados europeus, tornando-se a fonte principal de aquisição
armamento militar, instalando bases militares e disponibilizando a sua doutrina militar,
incluindo no domínio informacional.
Depois da Guerra Fria e sensivelmente até ao ano de 2007, parte dos pressupostos
assumidos por Ismay no seu discurso assumiram menor relevância, apesar de não terem
desaparecido. A Alemanha continuou a estar muito dependente em termos militares da
NATO, receando sempre a forma como interna e internacionalmente poderiam ser vistos
esses desenvolvimentos (Kaplan, 1961; Daehnhardt, 2011). Para os Estados Unidos, a
NATO e nomeadamente as bases instaladas nos países europeus constituíram uma
importante plataforma de projeção de poder, incluindo para o Médio Oriente, através da
Turquia. No caso da Rússia, o estabelecimento de parcerias para o diálogo com a NATO
e a assinatura de acordos de cooperação, a exemplo do tratado Open Skies, tiraram
tensão à relação entre as duas partes. A distensão desta relação influenciou, no entanto,
um dos pilares centrais da Aliança, o reconhecimento de uma ameaça comum. Apesar
dos países a Leste, outrora pertencentes ao Bloco Soviético durante a Guerra Fria,
considerarem a ameaça de invasão militar russa uma realidade sempre presente, grande
parte dos países da UE, especialmente os do Sul e do Centro europeus, que mantêm
profundas dependências em termos económicos, relacionadas com a importação de
energia (gás e petróleo) da ssia, apresentaram visões bastante distintas. Não é por
isso de estranhar que, nesta altura, se tenham “levantado algumas vozes que
questionavam a manutenção da NATO, dada a ausência da ameaça que esteve na sua
base, a União Soviética, o Pacto de Varsóvia e seu exército vermelho.
A readaptação da NATO ao novo contexto internacional foi alcançada com a intervenção,
na cada de 1990, nos conflitos dos Balcãs Ocidentais (Gaspar, 2017: 110), e mais
tarde, no combate ao terrorismo, decorrente dos ataques do 11 de setembro, liderados
pela Al-Qaeda e dirigidos por Bin Laden. Se, no caso da primeira intervenção a NATO fez
despertar as atenções dos europeus para os riscos de contágio dos conflitos da sua
periferia, continuando a dar a garantia de segurança ao espaço europeu, o combate ao
terrorismo reuniu um consenso à escala global relativamente a esta tipologia de ameaça.
Também aqui a NATO desempenhou um papel central, ao ponto de ter sido invocado,
pela primeira vez na sua história, o artigo 5.º da Aliança (Defesa Coletiva)
4
. O conceito
3
Na altura organizadas em três comunidades: a Comunidade do Carvão e do Aço (CECA), a Comunidade
Europeia da Energia Atómica (EURATOM) e a Comunidade Económica Europeia (CEE).
4
As partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do
Norte será considerado um ataque a todas e, consequentemente concordam em que, se um tal ataque
armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido
pelo art.º 51º da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à parte ou partes atacadas, praticando sem
demora, individualmente e de acordo com as restantes partes, a ação que considerar necessária, inclusive
o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte. Qualquer
ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque são
imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho
de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança
internacionais.
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estratégico da NATO atualmente em vigor, aprovado em 2010, enfatiza em grande
medida os objetivos da organização no combate ao terrorismo.
O ano de 2007 marca uma nova viragem na relação entre a Rússia e os EUA, e
consequentemente, com a NATO. Durante um encontro anual sobre segurança, realizado
na cidade alemã de Munique, o convidado de honra Vladimir Putin, além de ter sublinhado
que a implosão da União Soviética foi o principal erro geopolítico doculo XX, contestou
as políticas de alargamento para Leste das organizações ocidentais (NATO e UE), e
reclamou um novo papel para a Rússia na Ordem Internacional. Adivinha-se, então, um
agravamento nas relações entre a NATO e a Rússia. Em 2008, deu-se a invasão da
Geórgia pela Rússia. Em 2014, e depois do presidente norte americano Barack Obama
se ter referido à Rússia como uma potência regional, contrariando desse modo a narrativa
de Putin em Munique anos antes, Moscovo ordena a invasão da península ucraniana da
Crimeia
5
.
Para além desta mudança na postura da Rússia, durante este período, novos ataques
terroristas foram concretizados em solo europeu, em particular no Reino Unido,
Dinamarca, Suécia, França, Espanha, Bélgica e Alemanha. A UE reagiu, de forma
unânime, na sequência dos ataques em Paris, invocando, a pedido de França, a cláusula
de “defesa ou assistência mútua” da UE, introduzida pelo Tratado de Lisboa, em 2009
(art.º 42º/7)
6
. Além dos atentados terroristas, começam a chegar à Europa milhares de
migrantes e refugiados, que fogem das zonas de conflito junto à fronteira externa da UE.
Os conflitos da ria, da Líbia, do Líbano, do Iraque, do Afeganistão, apenas para
mencionar alguns, são algumas das causas dessa vaga migratória em direção à Europa.
É neste contexto internacional, marcado pela postura mais assertiva da Rússia, do
aumento dos atentados terroristas em solo europeu e dos movimentos em massa de
populações em direção à Europa que a NATO procura responder, através das ações do
reforço de patrulhamento, terrestre, aéreo e marítimo, nas zonas dos Mares Báltico e
Negro e na continuação da projeção de operações para o Médio Oriente (Iraque e
Afeganistão) e para o Mar Mediterrâneo (Operation Sea Guardian). Este alargamento da
tipologia das ameaças que a NATO passou a combater, procurando responder às ameaças
a Leste (belicoso) e a Sul (frágil e instável), levou a que dentro da comunidade deixasse
de existir um reconhecimento comum, e claro, da principal ameaça. Para os países da
fronteira Leste, a Rússia deveria ser a principal prioridade, para os Estados do Sul
(mediterrânicos), a NATO deveria estar mais concentrada nas questões das migrações e
procurar estabilizar a região MENA (Middle East and North Africa). Para além disso, foi
marcante, negativamente, para a NATO a eleição do Presidente norte americano Donald
Trump, que reforçou as divergências com os aliados europeus, sobretudo com a
Alemanha e a França, e mesmo com a Turquia (assunto que retomaremos mais adiante).
A análise e as recomendações identificadas pelo grupo de reflexão, que produziu o
documento NATO 2030: United for a new era, materializam o alargamento que a NATO
5
Os conflitos da Geórgia e da Ucrânia estarão também relacionados com os convites feitos a esses dois países
pela UE e, especialmente, pela NATO, para uma futura adesão (Matsaberidze, 2015). Apesar das
divergências internas, na cimeira da NATO de 2008, que teve lugar em Bucareste, a declaração oficial refere
que estes dois países tornar-se-ão membros da NATO (NATO, 2008).
6
Esta cláusula foi inserida no Tratado de Lisboa essencialmente a pedido da Grécia, por forma a criar um
processo de defesa coletiva na União Europeia e não apenas no quadro da OTAN, uma vez que a Turquia é
membro desta última. Substituiu uma cláusula semelhante existente na União da Europa Ocidental (UEO),
organização entretanto extinta pelos seus membros em 2011 (Teles, 2017:16).
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se propõe concretizar no horizonte 2030. Além da Rússia, são identificadas medidas em
relação à China
7
(ambos rivais sistémicos), esta última potência (re)emergente que
contesta a hegemonia norte-americana e que tem feito um notável progresso de
modernização em todos os domínios, incluindo o nuclear, naval e tecnológico (que aplica
na sua projeção para o espaço (NATO, 2020: 17). Além destes dois atores, são
identificados os desafios relativos à emergência da tecnologia disruptiva, às ameaças
cibernéticas e híbridas, ao controlo de armas e às ameaças nucleares, à segurança
energética, às pandemias e aos desastres naturais. Também o terrorismo é identificado,
assim como as ameaças com origem a Sul, passando pelas questões climáticas, pela
segurança humana, pelo espaço sideral, pela comunicação estratégica, diplomacia e
desinformação. De todas as recomendações, além da permanente referência à palavra
resiliência, que surge no documento em 35 diferentes ocasiões (a título de curiosidade,
também a estratégia global da UE, aprovada em 2016, enfatiza esta mesma palavra),
dirigida sobretudo para o apelo da maior capacitação das sociedades, verifica-se uma
sugestão para o alargamento do espetro de atuação da NATO, em diferentes domínios e
espaços geográficos.
Este alargamento a espaços geográficos e outros campos de atuação (cibernético e
espacial), vem acentuar as divisões dos Aliados relativamente ao reconhecimento,
comum, das ameaças. Considerando somente a Rússia e China não encontramos, pelo
menos para já, esta unanimidade em relação aos desafios que cada um dos atores
comporta para os Estados-membros da NATO. Existem neste domínio profundas divisões
internas, resultantes em boa parte das interdependências, sobretudo económicas, da
maioria dos Aliados em relação à China e à Rússia, impedindo assim que as visões
agressivas, objetivamente ou subjetivamente avaliadas, possam ter efeitos na política
interna e externas de todos os membros, a exemplo do que aconteceu durante a Guerra
Fria em relação à União Soviética, ou durante o combate ao terrorismo, mais
recentemente. As dificuldades de impor sansões à Rússia, depois da invasão da Crimeia,
assunto que permanece até hoje adormecido, e a questão da adesão à tecnologia 5G
chinesa são apenas alguns dos pontos de divisão. Os recentes acordos comerciais
celebrados entre a UE e a China vêm aprofundar, ainda mais, a possibilidade de consenso
relativamente aos desafios que Pequim representa para a ordem internacional.
O alargamento às questões climáticas, às pandemias, aos desastres naturais, às questões
de género, ao domínio espacial e à desinformação, parece sobrepor-se a domínios
trabalhados e desenvolvidos pelos aliados europeus no contexto da UE. Apesar de ter
sido dedicado um ponto relativamente à consulta política com a UE e do Secretário-geral
ter enfatizado que a NATO pretende ser uma organização que junta outras sub-
organizações, a visão dos aliados europeus, incluindo as suas sociedades, para estes
assuntos é mais centrada nas respostas europeias, dada a natureza dos seus
7
Para o grupo de peritos, a China tem uma agenda estratégica cada vez mais global, apoiada no seu, cada
vez maior, peso económico e militar. Tem provado estar disposta a usar a força contra os seus vizinhos,
além de utilizar a coerção económica e a diplomacia intimidatória muito além da região do Indo-Pacífico.
É ainda sublinhado que, na próxima década, a China, provavelmente, também desafiará a capacidade da
NATO de construir a sua resiliência coletiva, de salvaguardar as suas infraestruturas críticas, de lidar com
tecnologias novas e emergentes, como 5G, e de proteger setores sensíveis da economia, incluindo cadeias
de abastecimento. A longo prazo, é cada vez mais provável que a China projete poder militar globalmente,
incluindo potencialmente na área euro-atlântica (NATO, 2020: 17).
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instrumentos (políticos e económicos), e não tanto na NATO. A exemplo de outras áreas,
também aqui são registados afastamentos entre as duas organizações.
Importa por isso sublinhar, e partindo dos pressupostos teóricos identificados, a par da
maior relevância em termos securitários para o espaço euro-atlântico, que o documento
produzido “NATO 2030” não favorece o seu objetivo principal, ou seja, o reforço da
coesão política da organização. A abrangência do seu escopo, multiespaços e multi-
domínios, torna difícil a concretização desta unidade política, que é agravada pelas
tensões entre os seus membros.
2. Uma identidade política
As questões políticas constituem uma parte significativa do documento “NATO 2030”. Se,
por um lado é afirmado que o instrumento militar se encontra adaptado para a
concretização das missões a cargo da Organização, em resultado dos desenvolvimentos
alcançados nos últimos anos (NATO, 2020: 6), por outro, a coesão política entre os
Aliados é apontada como a principal fragilidade. Na relação externa, uma parte
significativa das recomendações é dirigida para a necessidade de reforçar os
instrumentos políticos, através de uma maior coordenação entre os Aliados, para atribuir
mais eficácia à atuação da NATO. Internamente, essas recomendações têm aplicação aos
processos de decisão e aos mecanismos de consulta. Podemos, por isso, concluir que o
objetivo principal do documento e das suas recomendações é a promoção da dimeno
política da NATO, incluindo os seus princípios democráticos, que são a base da sua
fundação, os mecanismos de consulta, os processos de decisão e o desenvolvimento dos
instrumentos políticos, para responder às atuais e emergentes ameaças (NATO, 2020:6).
Numa declaração recente, no âmbito do debate promovido pelo think tank Carnegie sobre
o documento aqui discutido, Jens Stoltenberg enfatizou as questões da identidade política
da NATO para se referir aos desafios da China. Para o Secretário-geral, este país asiático
não partilha os mesmos valores democráticos da NATO, incluindo o respeito pelos diretos
fundamentais. O apelo à identidade política da NATO tem sido usado em diferentes
momentos da história da organização, desde a sua fundação (capitalismo vs socialismo).
Também no combate ao terrorismo, a questão dos valores e a sua defesa foi enfatizada,
através da referência feita à ameaça que os ataques terroristas produziam nos valores
democráticos (Carnegie Europe, 2020).
Importa, pom, perceber a consistência que este apelo à identidade política da NATO
produz na coesão interna. Não querendo aqui detalhar a forma como é “construída”,
importa sublinhar apenas que a identidade resulta da identificação de um conjunto de
caraterísticas comuns entre os elementos de determinada comunidade, que os
distinguem de outros grupos. A manutenção destas mesmas características, sempre em
comparação com grupos externos, constitui por isso o “cimento” da integridade e da
sobrevivência destas comunidades. Em relação à identidade política da NATO,
encontramos em diferentes referências, a exemplo da declaração que antes
anteriormente do seu atual Secretário-geral, a identificação das questões e dos valores
democráticos, o respeito pela liberdade, pela justiça e pelos direitos humanos. Também
a UE tem usado estas questões como forma de europeizar as políticas dos seus Estados-
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membros, aplicando esta “receita” aos países em vias de integração, através dos
designados critérios de Copenhaga
8
.
Ao contrário da UE, as questões dos valores democráticos o foram, porém, uma
questão prioritária para a NATO nos processos de adesão dos seus membros, atendendo-
se sobretudo a questões de natureza geopolítica. A adesão de Portugal, em 1949,
constitui um exemplo desta relação entre os valores e as respostas às necessidades de
natureza geopolítica e geoestratégica (Hobsbawm, 1996: 244). A garantia da utilização
da base das Lages pelos americanos, ditou a integração de Portugal, na altura
reconhecidamente um regime autoritário, não democrático, na organização (Marcos,
2014). Decorrente destas opções, que são amplamente percecionadas pelas sociedades
que fazem parte da NATO, o apelo e a narrativa que é feita às questões dos valores é
extremamente frágil, tendo em conta o contexto atual de alguns dos países que integram
a Aliança Atlântica, em particular da Turquia e da Polónia (Petrova & Aydin-Düzgit, 2021).
Este último país encontra-se, inclusivamente, em diferendo com a UE sobre esta mesma
matéria.
As questões de natureza da política interna assumem uma relevância ainda maior quando
são analisadas as disputas entre os seus membros. Assim, às ameaças de conflito entre
a Grécia e a Turquia, relativamente à questão de Chipre e às disputas por área de
influência e acesso a recursos no Mediterrâneo Oriental, juntam-se ainda as tensões
resultantes da compra por parte de Ancara do sistema de defesa antiaérea russo S-400.
As divergências da Turquia com a NATO e com os EUA relativamente a esta aquisição
levaram a que, recentemente, Washington tenha imposto duras sansões comerciais à
Turquia
9
. O ministro dos negócios estrangeiros turco além ter classificado a decisão norte
americana como um erro grave, referiu que as sanções produziram efeitos na coesão da
NATO, prometendo que a Turquia tudo fará para retaliar, de forma e no tempo
adequados, às restrições impostas (Gumrukcu, 2020). Também o Presidente Turco,
Tayyip Erdogan, em declaração pública fez referência às sanções, sublinhando que “do
nosso Aliado da NATO, os EUA, esperamos apoio na batalha contra organizações
terroristas e não se sanções (Gumrukcu, 2020).
As divergências políticas entre alguns membros da NATO constituem um sério risco para
a organização por permitirem a intervenção de atores externos, que exploram essas
mesmas divisões. O documento NATO 2030 faz a referência à China e à Rússia que atuam
neste domínio, pondo em causa interesses e a segurança dos Aliados, em zonas
tradicionalmente prioritárias para a NATO, nomeadamente na sua coesão interna e
transatlântica, mas também se estendendo aos domínios cibernético, tecnológicos e
comercial estratégicos (5G), ameaçando, como é referido, o modo de vida democrático
(NATO, 2020: 9).
8
Os critérios de Copenhaga, formulados em 1993, pelo Conselho Europeu de Copenhaga, estabelecem os
requisitos que os Estados candidatos têm que cumprir antes da integração em três níveis distintos: ao nível
dos critérios políticos (estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os
direitos humanos e o respeito pelas minorias e a sua proteção), económicos (uma economia de mercado
que funcione efetivamente e a capacidade de fazer face à pressão concorrencial e às forças de mercado da
UE) e jurídicos e legais (capacidade para assumir as obrigações decorrentes da adesão, incluindo a
capacidade de aplicar eficazmente as regras, normas e políticas que compõem o corpo legislativo da UE (o
acervo) e a adesão aos objetivos de união política, económica e monetária).
9
As sanções incluem a proibição de exportação da principal Agência de compras militares da Turquia, bem
como congelamento de ativos e restrições de visto para os altos funcionários da organização (Barkey, 2020).
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Para além de “abrir espaço” à intervenção de atores externos, a falta de coesão política
põe em causa a capacidade de intervenção da NATO. É neste sentido que grande parte
das medidas propostas são direcionadas para os mecanismos e processos de decisão, a
exemplo do reforço dos mecanismos de consulta, entre aliados um pouco à imagem do
princípio da abstenção construtiva na UE. No atinente aos mecanismos de consulta entre
os Aliados, através do Conselho do Atlântico Norte - North Atlantic Council (NAC), é
defendido, em primeiro lugar o seu reforço entre os Aliados nas medidas relacionadas
com os dois rivais sistémicos (Rússia e China) e nas questões nucleares, no sentido de
ser alcançado um “entendimento e uma posição comuns (NATO, 2020: 37), no sentido
dessa posição ser inclusivamente identificada pelos Aliados noutras organizações
internacionais (NU e OSCE). Neste mesmo âmbito, merecem ainda destaque o reforço
de consulta entre a NATO e a UE, no sentido de incrementar a transparência entre as
partes.
Em relação aos processos de decisão política, a questão principal reside no bloqueio de
grande parte das decisões, por falta de consenso entre os Aliados. Esta matéria assume
especial relevância no relatório uma vez que, segundo é mencionado, afeta de forma
significativa a coesão da NATO. Das recomendações identificadas, cinco no total, grande
parte procura ultrapassar este tipo de constrangimentos no processo decisório. Assim, é
proposta a criação de mecanismos estruturais para estabelecer coligações dentro da
estrutura da Aliança, naquilo que poderá entender-se como uma espécie de cooperação
reforçada, prevista também pela UE para ultrapassar as dificuldades dos processos de
decisão por unanimidade, em que os Estados-membros mais “capazes” e com mais
vontade podem desenvolver projetos conjuntos, e em que vigora a decisão por maioria
qualificada. Para a NATO, estas coligações podem inclusivamente servir para concretizar
novas operações, sob o chapéuda organização, incluindo países Aliados e Não-Aliados,
que manifestem o desejo de participar. Sobre este aspeto, o documento identifica a
possibilidade de serem usadas as estruturas de comando e os processos de decisão da
NATO. Um último aspeto sugerido diz respeito à questão do financiamento das missões
realizadas, prevendo-se a possibilidade, para alguns casos, de deixar de ser aplicado o
princípio do pagamento por parte dos Estados que participam (de acordo com a ideia que
costs lie where they fall”, ou seja, pagam os custos os Estados-membros que
participem), para financiamento comum (“common funding”) para algumas despesas
resultantes das operações militares (NATO, 2020: 61).
Ainda em relação ao processo de decisão importa identificar a atribuição de uma maior
autonomia ao Secretário-geral da NATO nas decisões consideradas de rotina (sem serem
referidas quais e em que circunstâncias). Esta medida permite, segundo é identificado,
ultrapassar as questões do consenso político e a necessidade de satisfazer condições
estratégicas, motivadas pela rapidez da decisão. Sobre este aspeto da rapidez da
decisão, é proposto um tempo limite para a resposta, sob pena de um atraso poder
colocar em causa a segurança de um Aliado e a credibilidade da NATO.
Um dos aspetos mais relevante das recomendações relativas ao processo de decisão da
Aliança diz respeito ao bloqueio, ao nível ministerial, por parte de alguns dos Aliados. Se
por um lado o conjunto de medidas relativas à rapidez da decisão, atribuindo mais
poderes ao Secretário-geral, têm como objetivo as questões das ameaças a Leste, e dos
receios dos países bálticos de uma intervenção militar na região, o segundo ponto é
direcionado para as tensões criadas no interior da NATO relacionadas com os bloqueios
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à Turquia. Esta situação tem, aliás, impedido o estreitamente da cooperação entre a
NATO e a UE.
Apesar da relevância das recomendações propostas, relativas aos processos de decisão
e aos mecanismos de consulta, a sua execução torna-se, na maior parte dos casos, difícil.
Para isto concorrem dois aspetos essenciais. O primeiro diz respeito às questões de
soberania dos Estados, sobre a condução das suas próprias políticas externas e à
aplicação do instrumento militar. Tal como identificamos anteriormente, ao nível político,
não existe um consenso na NATO relativamente à tipologia das ameaças que afetam a
própria organização, razão pela qual se procurou identificar um conjunto alargado de
ameaças. A relação dos Aliados com os adversários sistémicos (Rússia e China) não é
igualmente consensual, existindo entre os Aliados políticas externas distintas, que vão
de dependências económica a “guerras” comerciais. Nesse sentido o consenso
relativamente à aplicação de medidas por parte da NATO torna-se bastante complexo,
afetando a coesão e a credibilidade da organização. As pprias disputas de interesses
entre os Aliados elevam o grau de dificuldade de ser alcançado tal consenso. Um segundo
aspeto diz respeito às questões da identidade política da NATO, fundada nos princípios e
valores da democracia, da liberdade e do estrito cumprimento da lei (rule of law). Apesar
da preocupação dos peritos em não identificar quaisquer Aliados, esta narrativa não tem
aplicação a uma parte dos seus membros, o que torna a coesão política muito difícil.
Aliás, os próprios processos de alargamento da NATO a outros Estados sempre
pretenderam dar resposta a necessidades geopolíticas e não em transformar as próprias
estruturas internas e o modelo político dos candidatos à adesão.
3. Da questão turca à responsabilidade partilhada
O ambiente estratégico atual, marcado por uma diversidade de desafios, materiais e
ideológicos, de natureza global, sistémica e com impactos em vários domínios, vem exigir
às organizações de segurança, como a NATO, uma grande capacidade de adaptação e de
resposta, no sentido de mostrar às sociedades que pretendem defender a sua capacidade
de resposta mesmo perante as dificuldades atuais. Desde a sua fundação, essa tem sido
a grande preocupação da Aliança, tendo os diferentes conceitos estratégicos refletido
uma grande capacidade de adaptação ao ambiente estratégico que vigorou durante a
Guerra Fria e no período seguinte, com destaque para as questões do terrorismo global.
Porém, as circunstâncias atuais são profundamente distintas dos momentos anteriores,
decorrentes da emergência de outra tipologia de ameaças, em que o instrumento militar
não assume a relevância de outrora, apesar da centralidade das questões nucleares e da
mudança do paradigma da utilização das capacidades militares para uso dual. Além disso,
as questões geopolíticas mudaram radicalmente, tendo em conta a emergência de novas
potências que procuram contestar a ordem internacional, assistindo-se igualmente a uma
transição acelerada dos centros de poder para outras regiões do mundo, com destaque
para a Ásia Oriental. Esta mudança exige uma readaptação profunda da NATO, incluindo
do seu próprio centro estratégico, vocacionado desde a sua origem para a Europa e para
o espaço atlântico.
Esta mudança é tão premente que pode inclusivamente pôr em causa a própria
sobrevivência da NATO, tema que assume uma relevância ainda maior quando
comparado com o final da Guerra Fria. Para concretizar esta mesma mudança, entre
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outros, existem dois aspetos profundamente essenciais. Um de carácter interno e o outro
de carácter externo. Enquanto o primeiro diz respeito à Turquia, o segundo tem a ver
com a futura relação com a UE.
Para além do que representa em termos geopolíticos para a NATO
10
, a Turquia tem uma
das maiores forças armadas entre os Aliados. Apesar de não deter armas nucleares, as
suas capacidades militares destacam-se não apenas pelo número, mas também pela
qualidade das suas capacidades. Desde o ano de 2001 que os orçamentos da Turquia
com a Defesa têm aumentado de forma contínua e significativa, em particular a partir do
ano de 2018, quando foram gatos mais de 22 mil milhões de dólares. Para efeitos de
comparação, nesse mesmo ano, França gastou cerca de 50 mil milhões, o Reino Unido
60, Espanha 13 e Portugal 3 (NATO, 2019: 7).
Figura 1 Turkey Military Expenditure (1953-2018)
Fonte: Trading Economics (s.d)
As opções políticas e estratégicas da Turquia têm levado a um afastamento notório das
autoridades turcas em relação à ligação com os países e organizações do Ocidente,
incluindo a UE. Depois de anos de negociações para a integração no espaço europeu, o
esfriamento atual levou o Presidente Erdogan a demonstrar a sua desilusão em relação
a este processo, o que tem levado ao cada vez maior afastamento em relação à UE. A
gestão das migrações criou um novo ponto de clivagens entre as partes, com os líderes
europeus, em particular a diplomacia francesa, a acusarem o presidente turco de usar a
questão das migrações como arma política, para reclamar um reforço da ajuda financeira
enviada por Bruxelas para Ancara, como forma de apoiar os migrantes estacionados na
Turquia, que pretendem vir para a Europa. Apesar das instituições europeias, com
destaque para o atual responsável pela Política Externa e de Segurança, Josep Borrel, e
da própria Alemanha e Itália procurarem mediar este diferendo, as relações de tensão
10
Tal como foi referido por Tim Marshall, para a NATO, a Turquia é um país-chave, porque controla as entradas
e saídas para e do Mar Negro, através do Estreito do Bósforo, impedindo assim o acesso da frota russa do
Mar Negro de ter acesso ao Mar Mediterrâneo (Marshal, 2017: 155).
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(históricas) com outros Estados-membros, nomeadamente a Grécia e o Chipre, não tem
facilitado este processo.
No atinente aos EUA, essas mesmas relações têm sido marcadas de igual modo por
grandes tensões, desde o início do conflito do Iraque, ressoando ainda na Turquia o
incidente de 4 de julho de 2003, quando forças norte americanas realizaram uma ação
na cidade de Sulaymaniyah (Nordeste do Iraque), tendo capturado 11 militares turcos,
pertencentes às operações especiais. O tratamento dado aos militares turcos, tendo-lhe
sido confiscados os seus equipamentos e tapadas as cabeças, foi visto como um grave
incidente diplomático. A par desta questão, a recusa americana de fornecer tecnologia
militar a Ancara, a exemplo dos mísseis para defesa aérea Patriot, levou à compra da
Turquia dessa capacidade à Rússia, o que tem gerado, como vimos anteriormente,
grande clivagens no seio da NATO (Johnson & Gramer, 2019). Também a condução de
uma política externa cada vez mais ativa, procurando retomar as zonas de influência
ocupadas pelo império otomano (Colborne & Edwards, 2018) (Ayoob, 2020), tem
afastado um entendimento no plano da relação com a NATO e com os restantes aliados.
A intervenção turca nos conflitos da Síria e da Líbia constituem dois dos diversos
exemplos referentes a este aspeto.
Decorrente da importância da Turquia para a NATO e das muitas relações de tensão
atuais, a materialização de grande parte das recomendações propostas pelos peritos
apenas poderá ser viável quanto se verificar uma reaproximação turca ao Ocidente.
Nesse sentido, a imposição de sansões por parte dos EUA e a falta de consenso em
relação à gestão das migrações e as disputas que ocorrem no Mediterrâneo Ocidental
que opõem a UE à Turquia nas disputas de áreas de soberania, entre outros pontos,
dificultam esse mesmo entendimento e consequentemente a coesão e a credibilidade da
NATO. Entende-se neste contexto a sugestão do relatório que temos vindo a examinar
do estabelecimento de um “Código de Conduta” que poderá definir de forma mais
detalhado o que é ou não aceite no quadro comportamental dos aliados.
Para além da questão da Turquia, a relação da NATO com a UE afigura-se de igual modo
vital para a materialização da ambição política das recomendações identificadas no
documento “NATO 2030”. Em primeiro lugar, pelo papel que a UE poderá/deverá ter
enquanto mediador nas relações com a Turquia, decorrente da proximidade geográfica,
da relação histórica e dos interesses económicos. Apesar das disputas existentes, esta
relação de aproximação foi uma realidade, a exemplo do que aconteceu em grande
parte das últimas duas décadas na região dos Balcãs Ocidentais, onde a Turquia integrou
inclusivamente o seu contingente militar na missão da UE na Bósnia e Herzegovina
(EUFOR). O reforço da cooperação entre a UE e a Turquia servirá certamente para
também aproximar politicamente Ancara da NATO. Esta estratégia de aproximar e
integrar a Turquia na UE, no sentido de promover a sua europeização, foi inclusivamente
patrocinada, durante anos, pelos EUA, com a motivação principal que essa integração
seria benéfica para “o modo de estar” da Turquia na NATO (Önis & Yilmaz, 2005) (Kivanc
et al, 2014: 1697).
Em segundo lugar, pela partilha das responsabilidades entre as duas organizações,
impedindo redundâncias na atuação, através da exploração das capacidades distintivas
de cada uma delas e da partilha de espaços geográficos. Apesar de dever ser reconhecido
que uma parte das ameaças identificadas são de carácter global e multidomínio,
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requerendo por isso o seu combate uma abordagem integral dos instrumentos, da
comparação entre o documento aqui discutido e a estratégia global da UE, aprovada em
2016 e atualizada ao longo dos últimos anos, resultam claras áreas de interesse comum,
em particular em relação às questões das migrações, do terrorismo, das ameaças a Sul,
da assertividade a Leste. A discussão em torno da autonomia estratégica da UE, em
domínios como a economia, a saúde e sobretudo na segurança e na defesa, deve, pois,
ser clarificada e, na perspetiva do documento, ser estabelecida de forma a conduzir ao
reforço mútuo das duas Organizações e não à sua competiçãotua.
O estabelecimento da Cooperação Estruturada Permanente e dos programas e estruturas
a esta ligados, a exemplo da coordenação da revisão anual sobre Defesa (CARD -
Coordinated Annual Review on Defence) e da Agência de Defesa Europeia (EDA), deve
ser entendido como uma forma de contribuição dos Estados-membros da UE para a
NATO. Este ponto não é novidade, tendo em conta o esforço permanente das instituições
europeias para procurar identificar e explicar os desenvolvimentos europeus no âmbito
da Defesa. Sendo certo que, desde a sua criação, a Política Externa e de Segurança
Comum (PESC) e a correspondente Política Comum de Segurança e Defesa, a segunda
fazendo parte da primeira, têm gerado grande debates na relação com a NATO e com os
EUA. Neste ponto, importa identificar duas visões distintas que têm ocupado grande parte
dessa mesma discussão.
Tendo em conta o cada vez maior empenhamento da UE em termos externos, em
missões e operações de gestão de crises, a primeira corrente defende a autonomia da
UE, identificando como necessidade o reforço da sua capacidade de atuação em regiões
de interesse estratégico, sublinhando que a UE começará a ser levada a sério como
ator de segurança quando desenvolver novas capacidades operacionais, para
salvaguardar os interesses europeus, incluindo o emprego de forças militares europeias
(Leonard e Rottgen, 2018). Para esta corrente, a prossecução dos interesses específicos
da UE não é feito em antinomia com a NATO a as capacidades desenvolvidas servem até
o reforço das suas capacidades militares dado o compromisso dos Estados-membros com
a aliança transatlântica. A segunda corrente sublinha que uma Europa mais “musculada”
pode pôr em causa a própria NATO, se for desenvolvida em contraponto com os EUA
receando que o incremento de capacidades europeias e a autonomia estratégica possam
condicionar a relação transatlântica (Boniface, 2016:102).
A relação com os EUA e com a NATO, a par da identificação das ameaças ao espaço
europeu, constituem por isso os pontos críticos da autonomia estratégica da UE. Durante
a Guerra Fria, o desenvolvimento de capacidades europeias foi, por regra, visto pelas
diversas administrações norte-americanas como reforço das próprias capacidades da
NATO. Ou seja, para os americanos a existência de uma capacidade militar europeia
efetiva foi considerada como benigna, desde que a mesma fosse feita no quadro da NATO.
A emergência da PCSD no final da década de 1990 levantou a questão da cultura militar,
de defesa e de segurança da UE, distinta do domínio da NATO e dos EUA (Helly, 2018:
13). A criação deste novo caminho europeu foi vista por alguns como o eco das
divergências entre os EUA e alguns Estados-membros da UE, a exemplo da que ocorreu
no final de 1997, quando a administração Clinton procurava aumentar a pressão exercida
sobre Bagdad. Nesta mesma altura, a França juntou-se à Rússia e à China no veto às
propostas norte-americanas apresentadas ao Conselho de Segurança (Kagan, 2003:53).
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O ponto de viragem do ceticismo americano em relação ao desenvolvimento militar
europeu, pelo menos em termos públicos, aconteceu durante a gestão do conflito do
Iraque, em 2003, momento em que vários países europeus decidiram não acompanhar
os EUA na invasão ao Iraque de Sadam Hussein. Nessa altura, a administração de George
W. Bush tomou consciência que uma UE mais forte seria um parceiro menos colaborante,
condicionando a política externa americana e a própria NATO (Ghez e Larrabee, 2009).
Em termos europeus, a França, através dos seus sucessivos presidentes (já desde o
general de Gaulle)
11
, tem mantido em geral uma linha política em apoio do reforço da
autonomia estratégica europeia. No entanto, tal como foi sublinhado por Boniface (2016:
101), a natureza mais franco-francesa que franco-europeia deste projeto contribuiu para
que fosse visto, dentro e fora da Europa, como visando mais substituir a hegemonia
americana pela influência francesa, do que desenvolver um verdadeiro projeto europeu.
Para os restantes parceiros europeus, em particular para a Alemanha, existiu sempre o
receio de alguma arrogância francesa e da vontade de substituir os americanos sem ter
os meios necessários para tal.
Para a visão francesa, que tem sido a “testa de ponte” para a autonomia estratégica, a
UE tem de se tornar uma entidade estratégica autónoma de modo a estar preparada para
a eventual retirada ou desinteresse dos Estados Unidos, mais preocupados com a Ásia,
cujas forças militares não vão permanecer para sempre no centro do continente europeu.
(Bozo, 1998). A França e outros membros da UE nunca se sentiram confortáveis com a
falta de liberdade de ação da UE, por estar substancialmente dependente da NATO (Ghez
e Larrabee, 2009).
Durante largos anos, foi o Reino Unido que liderou as resistências dentro da UE em
relação à autonomia estratégica, defendendo uma visão próxima dos EUA, preferindo
manter o status quo da Europa em relação a esta matéria. Quando, em 2003, foi proposto
(pela Bélgica, França, Alemanha e Luxemburgo) o estabelecimento de uma Europa da
Defesa e de um Comando Operacional na cidade de Tervuren, o Reino Unido considerou
que esta ação não só duplicava os existentes na NATO (nomeadamente o SHAPE), mas
podia ser visto como uma duplicação desnecessária da Aliança e colocar em perigo o
papel da NATO como “pedra angular” da segurança europeia (Duke, 2018: 25-26).
Estas resistências de Londres foram acompanhadas por diversos Estados-membros, para
quem a garantia de defesa deve recair na NATO e nos EUA, a exemplo de Portugal,
Dinamarca, Holanda e Itália. Para estes Estados, a autonomia europeia e uma
reorientação da PESD duplicativa da Aliança pode desenvolver um sentido antiamericano.
Esta visão “atlantista” da Segurança e Defesa Europeia foi reforçada aquando do
alargamento da UE a leste, concretizado em 2004 e 2007, através da integração de dez
novos Estados-membros
12
, outrora sob influência do bloco soviético, para quem o reforço
11
Para a França, o projeto europeu é, em grande medida, filho de um desejo francês de conter a Alemanha
e, também de criar um contrapeso para os EUA (Bongiovanni, 2012: 22). Na incerteza em torno do fim da
Guerra Fria, a França encontrou a concorrência dos Estados Unidos para uma posição de liderança na nova
Europa. Paris cada vez mais se ressentia em relação às tentativas dos EUA para preservar ou até mesmo
aumentar a sua influência sobre a segurança europeia. Mitterrand foi hostil a qualquer expansão nas tarefas
atribuídas à NATO, que via como um instrumento para o domínio da América (Grant, 1996: 59-60). A
criação de uma identidade de segurança europeia é por isso vista como um meio para desafiar o domínio
dos Estados Unidos na Europa (Menon, 1996:5).
12
Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, Eslovénia e Eslováquia.
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da liderança da PCSD pode significar um enfraquecimento da NATO (Ghez e Larrabee,
2009) (Faleg, 2017: 137).
Além destas questões, durante os últimos anos, sobretudo a partir da administração
Clinton (apesar do assunto ter assumido uma maior visibilidade no período em que
Donald Trump esteve à frente da Casa Branca), que os americanos têm reclamado um
maior investimento por parte dos Europeus no setor da defesa, reclamando que esse
mesmo investimento atinja, no mínimo, os 2 % do Produto Interno Bruto (PIB), no
contexto da NATO. A partilha do esforço, o designado burden-sharing, tem sido por isso
um dos pontos mais centrais nas relações, de tensão, entre os dois lados do Atlântico.
Importa, por isso, que a UE demonstre uma maior disponibilidade para contribuir para o
setor da defesa, gastando de forma mais racional e procurando coerência nos seus
investimentos, e que a nova administração norte-americana um sinal dessa mesma
vontade, o que contribuiria para retomar o sentido estratégico da relação entre os dois
blocos. Dessa forma, a centralidade do discurso deixaria de estar focada em torno do
burden-sharing, para um novo conceito de responsabilidade partilhada (responsability-
sharing) entre a NATO e a UE. Esta mudança de abordagem exige a montante um
realinhamento dos documentos estratégicos e das visões das respetivas visões, no
sentido de partilhar campos de atuação e espaços geográficos consentâneos com os
instrumentos e com as respetivas capacidades. Este esforço de gerar interdependências
e relações de cooperação entre a NATO e a UE daria vantagens a ambas organizações
para combater as ameaças que afetarão os espaços europeus e norte americano.
Considerações finais
O documento NATO 2030 constitui uma importante orientação para o próximo documento
estratégico da Aliança Atlântica. Porém, deve ser enfatizada a importância que é atribuída
às questões internas, relacionadas com os mecanismos de decisão interna em termos
políticos e para a procura do reforço dos fóruns de consulta entre aliados, com o intuito
de atribuir maior coesão e credibilidade à NATO. Nesse sentido, apesar de ser identificado
um leque muito alargado de desafios que a Organização deve ser capaz de enfrentar
externamente, as recomendações dependem em grande parte deste contexto interno.
A NATO, como outras organizações, atravessa hoje uma das maiores crises da sua
história, que pode inclusivamente pôr em causa a sua própria sobrevivência. As questões
transatlânticas bem expressas nos últimos anos, o afastamento de alguns aliados de
normas e atitudes políticas longo tempo interiorizadas, podem levar à ausência de
uma visão estratégica comum, ou mesmo da perceção de um destino comum,
contribuindo, pois, para esta visão pessimista em relação aos próximos tempos. O
proposto reforço do instrumento político para atuação em termos externos, assim como
a maior capacitação do instrumento militar, apenas parecem alcançáveis se a coesão
política indispensável for alcançada. Nesse sentido, o documento é (talvez demasiado)
ambicioso, tendo em conta que a aplicação das recomendações se configura, no atual
contexto, de difícil aplicação.
Para que seja ultrapassada mais esta crise, importa concretizar o uma
reaproximação à Turquia, o que no atual contexto se mostra muito difícil, atendendo ao
agravamento das sanções impostas e às disputas territoriais que mantém com alguns
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dos membros da NATO (e da UE). De igual modo, o caminho de uma maior aproximação
à UE, através da partilha de responsabilidades demonstra ser uma inevitabilidade, pois
ao mesmo tempo que não fará sentido uma Europa sem o contributo da NATO, o mesmo
é válido quando falamos da dependência (política) da NATO em relação aos europeus.
Por último, importa mudar a narrativa dos princípios democráticos, enquanto pilar
estrutural da aliança, direcionando esses mesmo discursos para as questões das ameaças
ao espaço euro-atlântico, estas sim raízes de identificação das comunidades de
segurança.
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O PAPEL DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS E CRIATIVAS NA DIPLOMACIA
CULTURAL E O SOFT POWER ENTRE A CHINA E A UNIÃO EUROPEIA
SILVIA MARÍA GONZÁLEZ FERNÁNDEZ
silviamaria.gonzalez@gmail.com
Doutorada em Lazer e Desenvolvimento Humano pela Universidade de Deusto. Mestre em Direito
Civil e Comercial pela Universidade de Xiamen. Trabalha em Segurança e Saúde Ocupacional:
Prevenção de Riscos Ocupacionais na Câmara de Comércio Espanhola e em Gestão de Projetos
de Lazer: Turismo, Cultura e Desporto na Universidade de Deusto (Espanha). Especialista em
Gestão Cultural local pela Universidade de Deusto e em Direito Internacional pela Academia de
Direito Internacional de Xiamen. Escreveu artigos internacionais e tem trabalhado na
Universidade de Deusto, CiCtourgune, DuPont e Universidade de Oviedo. Atualmente é
consultora freelance e investigadora em diversos projetos europeus. As suas áreas de interesse
são branding urbano, diplomacia cultural, política cultural, geso cultural, gestão e comunicação
de eventos, gestão do turismo, indústrias criativas e culturais e cooperação.
Resumo
O presente artigo analisa os diferentes termos usados na diplomacia pública e as relações
simbióticas que unem a União Europeia e a China através da cultura, mobilidade, diplomacia
cultural e soft power. A primeira parte do artigo analisa os principais tratados e acordos
firmados entre os dois continentes no campo cultural e justifica a mobilidade como motor para
fortalecer as relações entre os países. O objetivo principal e eixo central do artigo é investigar
os papéis desempenhados pelas indústrias culturais e criativas no campo das relações
internacionais e da diplomacia entre a União Europeia, Espanha e China através de um estudo
de caso: uma análise dos artistas chineses em residências espanholas. As metodologias
utilizadas são análises qualitativas e quantitativas assentes em entrevistas aprofundadas a
artistas chineses, inquérito às residências artísticas e mapeamento de Sistemas de
Informação Geográfica (SIG). A última parte do artigo avança algumas reflexões e conclusões
sobre a correlação e relevância das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural ou
mobilidade entre países, o soft power e a imagem de um país no estrangeiro.
Palavras-chave
Diplomacia cultural, China, Espanha, União Europeia, soft power, indústrias culturais e
criativas, sociedade da informação
Como citar este artigo
Férnandez, Silvia María González (2021). O papel das indústrias culturais e criativas na
diplomacia cultural e o soft power entre a China e a União Europeia. Janus.net, e-journal of
international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.3
Artigo recebido em 21 Novembro 2019 e aceite para publicação em 24 Setembro 2020
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 33-64
O papel das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural e o soft power
entre a China e a União Europeia
Silvia María González Fernández
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O PAPEL DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS E CRIATIVAS NA
DIPLOMACIA CULTURAL E O SOFT POWER
ENTRE A CHINA E A UNIÃO EUROPEIA
1
SILVIA MARÍA GONZÁLEZ FERNÁNDEZ
Introdução
As indústrias criativas desempenham um papel importante na criação, transformação e
definição do conhecimento (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico [OECD], 2018).
Zallo (2003) referiu que, do ponto de vista geográfico, os territórios agem por meio do
poder de influências concêntricas. Nessa perspetiva, podemos entender que as grandes
superpotências se aglutinam em territórios e países, puxando os cordões da comunicação
em todo o mundo, mas sem perder de vista a identidade e as pessoas locais. Os espaços
que não são macro cidades têm direito a permanecer nos seus locais com a sua história,
cultura, cidadãos e tradições, dando um apoio forte às suas vidas. A privatização das
indústrias públicas e a desregulamentação dos canais de comunicação tornaram os
processos de inovação mais competitivos, cooperativos e globalizados.
Consequentemente, uma sociedade justa deve ter diversidade, mantendo a sua própria
identidade cultural e economia. A diversidade cultural é o necessária para a raça
humana quanto a diversidade biológica o é para os organismos vivos. Nesse sentido,
torna-se património cultural da humanidade e deve ser reconhecido pelas gerações
presentes e futuras (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura [UNESCO], 2001). Por esses motivos, a tolerância, diversidade e comunicação
entre culturas e países são necessárias para a cooperação internacional e a manutenção
de boas relações entre os países. A cultura está ligada à diplomacia cultural e ao soft
power devido à necessidade de coexistência das diferentes comunidades, territórios e
nações da nossa aldeia global. As novas tecnologias e comunicações tornam-nos mais
próximos a cada dia. As análises da diplomacia cultural e da diplomacia soft fornecem-
nos uma ferramenta para melhorar as relações internacionais e alcançar os objetivos dos
países. Nesta seção, analisamos os conceitos de cultura, diplomacia cultural e soft power
para compreender as relações internacionais. Esses elementos estimulam a comunicação
e o diálogo entre países. As indústrias culturais e criativas formam um modelo de massa
que mexe com as consciências através dos seus padrões e canais de comunicação. A
cultura mostra realidades à comunidade por meio de histórias, storytelling e
performances. Expressa desafios, conflitos e ideologias da sociedade. Estamos imersos
num mundo onde coexistem diferentes perspetivas, opiniões e pessoas. Nesse sentido,
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
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O papel das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural e o soft power
entre a China e a União Europeia
Silvia María González Fernández
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as indústrias culturais e criativas são uma ponte e um de conexão para construir
relações entre países e lugares que reflitam as sociedades. Assim, a diplomacia soft é
uma ferramenta para gerar admiração, prestígio e valores da identidade local e nacional,
oferendo um caminho a percorrer. As novas tecnologias mudaram a forma como as
relações diplomáticas são criadas e a nova diplomacia pode agora chamar-se “diplomacia
digital” porque surgiram novos canais, atores e públicos, modificando as relações
governamentais clássicas. O substrato cultural confere prestígio e influência no
estrangeiro, impulsionando uma cooperação rápida. A China lidera a economia cultural e
criativa para ganhar prestígio e poder económico em todo o mundo e a Europa é pioneira
neste setor. Por esta razão, o poder dos intangíveis para criar relações amigáveis e
económicas é frequentemente subestimado. No entanto, as indústrias culturais e
criativas oferecem a oportunidade de retratar a imagem de um país no estrangeiro e
construir relações internacionais. Governos locais, universidades e outras instituições
devem investir nesta área estratégica de comunicação em todo o mundo.
A cultura como ferramenta de diálogo entre civilizações
A UNESCO define “cultura” como “o conjunto de características espirituais, materiais,
intelectuais e emocionais distintas da sociedade ou grupo social que abrange, além da
arte e literatura, estilos de vida, formas de viver em conjunto, sistemas de valores,
tradições e crenças” (UNESCO, 2001). A cultura é uma ferramenta para criar o diálogo
entre as comunidades, fortalecendo a coesão social, a paz social e o desenvolvimento
económico. A diplomacia cultural é o mecanismo usado para comunicar entre diferentes
culturas. Implica intercâmbios culturais entre comunidades ou países para promover a
cultura nacional. As pessoas usam a cultura como uma carta de apresentação para gerar
admiração, poder, se apresentarem ou promoverem o entendimento em países
estrangeiros. Cummings (2003) descreveu a diplomacia cultural como um conjunto de
ideias, informações e intercâmbio de arte entre nações e locais que tem o objetivo de
estimular o entendimento mútuo. Para outros investigadores (Belanger, 1999; Kim,
2011), a diplomacia cultural é estudada como uma estratégia de comunicação
internacional para produzir impactos e mudanças na opinião pública nos países do
Terceiro Mundo. Por essas razões, o conceito de cultura e diplomacia pública assenta no
significado de poder. Joseph Nye (2008) combinou os conceitos de poder e cultura e
denominou-o “soft power”. O soft power tem, por exemplo, a capacidade de alcançar
objetivos próprios e persuadir os outros a fazer algo que de outra forma não fariam. O
conceito transmite persuasão e também influência. A diplomacia cultural foi criada no
final da Guerra Fria. A hostilidade e inimizade entre os países surgem de mal-entendidos
e ignorância. O Conselho Científico de Política Governamental da Holanda (1987)
declarou que a eliminação desses mal-entendidos promoveria a paz em todo o mundo.
As condições para a geração de soft power num país são valores, ideias, projetos
relacionados com a cultura e a credibilidade do país, conforme demonstrado pelo seu
comportamento (Snow, 2009). Os atores envolvidos neste processo sempre foram os
estados, mas as novas tecnologias de informação e comunicação trouxeram outros atores
não governamentais, como universidades, organizações científicas, instituições culturais,
think tanks, associões, organizações não governamentais, o setor empresarial, artistas
e sociedades civis.
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O papel das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural e o soft power
entre a China e a União Europeia
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Anholt (2010) argumentou que a Nova Diplomacia Pública é gerida pelas quatro áreas
estratégicas de governança, inovação, competitividade e internacionalização. Todas
essas áreas são responsáveis pela gestão holística de um país. De acordo com esse
especialista, a diplomacia pública mudou porque as comunicações e as redes mudaram.
Canais e públicos mudaram, portanto, no cenário internacional.
Neste sentido, a comunicação é essencial. As pessoas e entidades são responsáveis por
tecer uma nova diplomacia pública, interação pessoa-a-pessoa (diplomacia civil) e
intercâmbios culturais entre o governo educacional e os cidadãos. Manfredi (2012)
observou que uma relação sinérgica surge entre esses três conceitos que envolvem todos
os intervenientes, coordenada por uma estratégia internacional de branding do país. O
intercâmbio cultural envolve não apenas a cultura de um país, região ou cidade, mas
também o seu conhecimento, ciência, pesquisa e desenvolvimento, pensamentos e
valores. É também a construção do trabalho em rede entre todos os atores da sociedade
e a coordenação de todos os atores dentro e fora do país. Estay Rodríguez (2009)
destacou que o soft power oferece um método indireto para atingir um objetivo
internacional por meio de prestígio, valores, prosperidade e economia. Promove a
cooperação em países terceiros e ajuda os países a unir forças e a desenvolver-se juntos.
O Instituto Confúcio da China está a envidar esforços relativamente às questões culturais
assentes numa base ideogica que envolve o Confucionismo, o Tasmo e o Budismo.
Mejía Mena (2015) observou que todos esses esforços apostam em refletir a cultura
mundial, a imagem e o poder para manter a paz entre os Estados. Fatores como
reputação, atrações turísticas, produções musicais, cinema, exportação de moda,
qualidade de vida, gastronomia, investimento estrangeiro e valores (incluindo
democracia, liberdade, mobilidade social e política externa) ajudam a reforçar o poder
contra outros países. Estay Rodriguez (2009) refere que as características do soft power
são cultura, democracia, linguagem, ajuda e cooperação, produção de cinema e ciência.
O soft power de um país reflete-se na credibilidade e no presgio das suas instituições e
marcas. Nessa linha, nova diplomacia pública é um termo difuso. Pode ser diplomacia
digital. Diplomacia digital é um novo termo que surgiu com as novas TICs, e com as
redes sociais como o Twitter e o Facebook (Pohan, Pohan, & Savitri, 2016), que têm o
poder de atingir distinta audiências e públicos. De acordo com Park, Chung e Park (2019),
big data é uma ferramenta importante para medir e avaliar a influência das redes sociais
nas questões diplomáticas. Atualmente, todos os atores envolvidos na gestão da marca
do país o responsáveis pela diplomacia cultural e pública. Eles podem influenciar e
participar nas decisões nacionais. As indústrias culturais e criativas têm uma influência
importante na difusão e geração de novos públicos. Os processos comunicativos tornam-
se mais horizontais e, portanto, têm um papel ativo nas relações diplomáticas e na
diplomacia soft. Al-Muftah, Weerakkody, Rana, Sivarajah e Irani (2018) argumentam
que o termo "e-diplomacia" é semelhante a "diplomacia digital" e que as TICs constituem
uma ferramenta básica para promover transparência e governo aberto, reduzir a
complexidade operacional e melhorar as interações entre países. Nesse sentido, cultura
e turismo são conceitos sinérgicos que envolvem as comunidades para definir as suas
identidades (Baranowski et al., 2019) e promovê-las no exterior. A diplomacia cultural é
canalizada por diferentes agentes e instituições, e envolve atores diversos. Na maioria
dos países, a diplomacia cultural é canalizada por embaixadas porque elas têm uma rede
mundial e podem trabalhar rapidamente. Porém, hoje em dia, a cultura é administrada
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por governos regionais, cidades e conselhos, e o setor criativo trabalha com diversos
canais e atores, não apenas através de embaixadas. As redes sociais são vitais para a
diplomacia pública e a diplomacia digital usa-as para promover a imagem de um país no
estrangeiro. O mesmo sistema, igualmente um elemento de divulgação de informação,
é muito utilizado em assuntos imediatos, alertas consulares e comunicação entre
consulados. Temos todas as ferramentas para viver num mundo global, mas a cultura
também funciona localmente - eventos locais o publicados localmente.
Na Europa, podemos destacar elementos como cultura, língua, arte, literatura, música,
moda e gastronomia como valores europeus. Elementos adicionais influenciam o poder
político, tais como o investimento em cultura política estrangeira e desenvolvimento de
democracia pública, línguas, Prémio Nobel de Literatura, turismo e qualidade de vida.
Nesse sentido, é necessário um debate público sobre a política de imagem, levando em
consideração o papel do soft power e as reais perceções que os cidadãos têm do seu
país.
Europa e China: principais desafios culturais
Nye (2008) sublinha que a ferramenta soft power da Europa confere-lhe uma capacidade
extraordinária para colocar desafios. A União Europeia e a China estabeleceram relações
diplomáticas em 1975, através do Tratado de Comércio e Cooperação da União Europeia
e da China, ratificado em 1985 (Morgan & Tuijnman, 2009), e sete outros tratados
juridicamente vinculativos (Comissão Europeia, 2012). A China também tem vindo a
desenvolver os seus regulamentos e legislação desde que se tornou membro da
Organização Mundial do Comércio em 2001 (OMC, 2013).
A China foi um dos principais atores na construção política documentada pela Convenção
sobre a Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela UNESCO em 2005 e dedicada
ao reconhecimento internacional das funções específicas dos bens e serviços culturais.
Esta convenção também foi adotada para legitimar os direitos dos estados de adotar
políticas nos setores culturais e criativos (Aylett, 2010).
Existem muitas oportunidades de investimento, especialmente com as tendências das
redes sociais, mas ainda existem muitos mal-entendidos interculturais (Centro de PME
da EU, 2014). A Europa quer participar no mercado chinês, mas ambas as partes devem
manter um diálogo produtivo para apoiar o desenvolvimento e promoção das indústrias
culturais e criativas em ambos os mercados - Os intercâmbios culturais entre a Europa e
a China baseiam-se em acordos de cooperação bilateral.
As políticas culturais para os estados membros da União Europeia são administradas
localmente por uma rede política que une os ministérios de assuntos políticos, cultura e
comércio dos governos. Atualmente, um relatório recente da Comissão Europeia
menciona algumas ações para fortalecer os laços através da cooperação estratégica “Os
compromissos e interesses comuns da UE e da China no desenvolvimento sustenvel
global e a Agenda 2030 apresentam oportunidades para uma cooperação mais estreita,
inclusive em países terceiros. uma necessidade real de estabelecer parcerias e
fornecer os recursos significativos necessários para atingir os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável” (Comissão Europeia, 2019: 2).
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Tabela 1 - Cooperação e acordos culturais entre a União Europeia e a China
ANO/LOCAL
ORGÃO
DOCUMENTO
2006
Conselho de Assuntos Internacionais
(Bruxelas).
Acordo de cooperação com a China para
promover a estabilidade com a Ásia,
incluindo ASEAN e ASEM.
2008. Pequim
2009. Copenhaga
2010. Xangai
Institutos Nacionais de Cultura da União
Europeia (EUNIC) China.
Terceiro diálogo europeu-chinês sobre
cultura.
2011. Pequim
Ministério do Comércio e Cultura, apoiado
pelo Projeto de Comércio UE-China (2)
(EUCPT 2).
Mesa-redonda.
2011. Shenzhen
Comércio UE-China de serviços criativos.
Conferência sobre comércio.
2012. Chengdu
Comissão Europeia e Fundação
Guanghua.
Diálogo UE-China sobre política de
juventude.
2012. Pequim
UEChina. Comissão Europeia e
Ministério da China.
Diálogo de alto nível UE-China de Pessoas
para Pessoas.
2012. Pequim
DG Educação e Cultura, Comissão
Europeia e Ministério da Cultura Chinesa.
Fórum de alto nível.
2013.
16ª Cimeira UE-China.
Programa estratégico de cooperação
cultural.
2013. Hangzhou
Congresso Internacional de Cultura para
o Desenvolvimento Sustentável.
Documento sobre questões de cultura e
desenvolvimento.
2015.
Declaração Conjunta da Cimeira UE-
China de 2015.
Cooperação UE-China
2019. Bruxelas
Declaração Conjunta da Cimeira UE-
China.
Relações bilaterais
Fonte: Da autora (2019)
Em relação às indústrias culturais e criativas por subsetores, existem poucos tratados
entre os dois continentes:
Destacam-se os seguintes:
- “Tratado de Pequim sobre performances audiovisuais”. O Tratado foi elaborado para
ajudar os artistas audiovisuais - atores de televisão e cinema, músicos, dançarinos e
outros - muitos dos quais saltam de emprego para emprego em circunstâncias
económicas precárias. O Tratado amplia os direitos relacionados com a performance
dos trabalhadores audiovisuais, que podem traduzir-se em pagamentos de
retransmissão mais elevados - um benefício especialmente crítico, que muitas novas
produções se encontram interrompidas devido à pandemia COVID-19. Foi assinado
em abril de 2020
2
.
- "Festival de Música e Arte Juvenil UE-China 2019" assinado em 27 de julho de 2019
em Zandhoven, no qual cerca de 100 jovens e artistas de folclore da Bélgica e da
China se reuniram para apresentões musicais
3
.
2
Disponível em: https://www.natlawreview.com/article/beijing-treaty-audiovisual-performances-comes-
force-china-today-april-28-2020
3
Disponível e informação adicional em: http://www.xinhuanet.com/english/2019 07/28/c_138265065.htm
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Entre os principais eventos europeus realizados na China que refletem a diversidade e
identidade dos diferentes países membros, destacam-se os seguintes (Smits, 2014): Rua
da Europa (2005); Festival de Cinema da UE (2005), Concerto da Orquestra Juvenil da
União Europeia (EUYO) em Pequim (2008); Exposição de Fotografia Olímpica da UE
(2008); EU Extravaganza (2009); Encontros com a Europa (2010); Livro de fotografia
(2010); UE na Expo Xangai (2010); Ano da Juventude UE-China (2011); Dias Abertos da
UE (celebrados anualmente desde 2011); Europa no meu Coração ‘Exposição de Arte
Infantil’ (2011); Ano do Diálogo Intercultural UE-China (2012); Ligações amorosas UE-
China (2012); Exposição fotográfica e livro entre as pessoas da UE China (2012); UE-
China Perseguidores de Sonhos (2013); Conferência Sabor da Europa celebrada em
Pequim em 2013; Festival Europeu de Vinhos e Gastronomia (2013); China nos meus
Sonhos (2013); Festival de Cinema Online (2012 e 2014); Festival europeu de cultura
de rua realizado em Pequim em 2019 e Festival de Música e Arte Juvenil UE-China 2019
na Bélgica mencionado no parágrafo anterior.
Negociações com Espanha
A China e a Espanha estabeleceram relações diplomáticas em 1973. Posteriormente, a
Espanha executou o Plano Ásia-Pacífico para atender à necessidade de estabelecer um
plano estratégico. Este plano foi posto em prática de 2005 a 2008 para fortalecer a
presença espanhola na Ásia através de diálogos bilaterais, viagens e mobilidade de altos
funcionários diplomáticos.
Em 2008-2012, foi assinado um acordo de cooperação científica e tecnológica entre a
Espanha e a China. Ambos os países promoveram o intercâmbio de estudantes. Entre os
acordos principais, destacam-se:
- Acordo de Cooperação Cultural, Educacional e Científica (7 de abril de 1981).
- Acordo de Cooperação e Desenvolvimento Económico e Industrial (15 de novembro
de 1984).
- Acordo Básico de Cooperação Científica e Tecnológica. (5 de setembro de 1985).
- Acordo de Transporte Aéreo e Civil para evitar a dupla tributação e a perda de
impostos (22 de novembro de 1990).
- Acordo de Estímulo Mútuo ao Investimento e sua Proteção (6 de fevereiro de 1992).
- Tratado de Assistência Judiciária em Matéria Civil e Comercial (5 de maio de 1992).
- Acordo de Cooperação Intergovernamental para punir o crime organizado (25 de junho
de 2000).
- Declaração Conjunta entre a República Popular da China e o Reino de Espanha (15 de
novembro de 2005).
- Em 2007, celebrou-se o ano da China em Espanha.
- Em 25 de setembro de 2014, foi assinado o acordo de coprodução de filmes entre os
governos da Espanha e da China.
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- Em novembro de 2015, foi celebrado o Festival de Dança de Guangdong, evento que
surgiu em 2004, em Guangzhou. Este é um dos objetivos definidos pelo AC/E Asia
Pacific 2015-2016
4
.
- Em 29 de janeiro, Íñigo Méndez de Vigo, Ministro espanhol da Educação, Cultura e
Desporto, e Luo Shugang, assinaram com a China um acordo cultural para o período
2018-2021 nos seguintes setores: videogames, artes visuais, cinema, publicações,
museus e direitos de autor
5
.
O papel das indústrias culturais e criativas nas relações diplomáticas
entre a China, a Europa e a Espanha
As indústrias culturais e criativas desempenham um papel importante. Têm o poder de
transformar e definir o conhecimento, bem como de desenvolver a economia global. A
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, 2013)
afirmou que, entre 2002 e 2011, o comércio de bens criativos e culturais aumentou cerca
de 8,8%. As indústrias culturais e criativas m potencial para estimular a economia,
criar empregos, apoiar a inovação e o empreendedorismo, ajudar na regeneração urbana
e rural e promover o comércio. A definição de indústrias culturais e criativas surgiu nos
campos da economia criativa e da propriedade intelectual. A criatividade é um motor
para o desenvolvimento social e individual, bem como uma importante conexão para o
crescimento económico competitivo na economia do conhecimento (Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Económico [OCDE], 2018).
As indústrias criativas na China
Li Shu-sheng (2012) destaca que a China usou o termo “indústria cultural no livro
“Dialética do Iluminismo”, publicado em Amsterdão em 1947. Posteriormente, surgiu nas
recomendações do governo central do Comité Central do Partido Comunista da China
(PCC), “Décimo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Económico e Social Nacional” em
outubro de 2000. Em 2003, o Ministério da Cultura promoveu o apoio às indústrias
culturais para o desenvolvimento deste termo como “atividades lucrativas para a
produção de bens culturais e oferta cultural de serviços”(Zhu Zhenming, 2015).
A definição atual reconhece nove setores criativos: cultura e artes; imprensa e
publicações, rádio, televisão e cinema; serviços de software, redes e computadores;
exposições; comércio de arte; serviços de design; entretenimento; e outros serviços de
suporte. Ambos os conceitos (indústrias culturais e criativas) são usados indistintamente.
A China lidera a economia criativa. O Gabinete Nacional de Estatística da China (2008)
informou que, em 2008, as indústrias culturais e criativas contribuíram com 50,32 bilhões
de euros de valor agregado e 1,48% do emprego.
4
Disponível em:
https://www.accioncultural.es/media/Default%20Files/activ/2015/grafica/AsiaPacifico_ACE.pdf
5
Disponível em: http://www.realinstitutoelcano.org/wps/wcm/connect/70d1270b-1f68-44e2-8533-
b273036d2d0d/Informe-Elcano-24-Relaciones-Espana-China.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID=70d1270b-
1f68- 44e2-8533-b273036d2d0d
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entre a China e a União Europeia
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A China passou por um desenvolvimento espetacular na economia criativa desde que o
Governo Central posicionou esta indústria como uma área-chave para o desenvolvimento
estratégico. Há uma mudança na orientação política de “feito na China” para “criado na
China”. Além disso, o Ministério da Cultura tem como objetivo construir entre cinco e dez
marcas na indústria do entretenimento. UNESCO (2013) sublinhou que Pequim é
internacionalmente reconhecida pelo seu setor de design; empregou 250.000 pessoas e
contribui com mais de 160.000 milhões de RMB para a economia. Os benefícios da
indústria cultural aumentaram 25,8% e representam 2,75% do produto interno bruto. A
meta de Pequim em 2016 era aumentar o valor acrescentado da indústria do
entretenimento.
Smits (2014) observou que a China tem a seguinte infraestrutura para as questões
culturais em países estrangeiros:
Oitenta departamentos culturais nas suas embaixadas.
Catorze centros culturais na China. O Ministro da Cultura anunciou que haveria 50
centros até 2020, incluindo um em Bruxelas, ao lado da Direção-Geral da Educação e
Cultura (DG EAC) da Comissão Europeia, previsto para o final de 2014.
Mais de 400 centros do Instituto Confúcio
Quinze gabinetes de representação do Conselho Chinês para a Promoção do Comércio
Internacional (CCPIT).
As cidades têm as suas próprias políticas para o desenvolvimento de intercâmbios
culturais com países estrangeiros. As empresas públicas que administram os grupos de
arte e artesanato estão envolvidas em missões culturais estrangeiras. A arte chinesa
expandiu-se internacionalmente e criou tendências na Europa, adaptando-se a novas
necessidades políticas e económicas. Para o mercado europeu, a China é um objetivo
importante, oferecendo um vasto leque de exposições e um amplo intercâmbio entre os
profissionais da área. As agências privadas e estrangeiras são canais importantes para
promover atividades internacionais em artes visuais.
O mundo artístico ainda se está a adaptar à nova procura do mercado. Há escassez de
ocupantes de empregos altamente qualificados com experiência em gestão e TIC. Os
subsetores das indústrias criativas procuram a colaboração europeia neste domínio. O
governo europeu está ansioso por trocar bens culturais e criativos na China. Na medida
em que os temas não são delicados, a censura não é a principal desvantagem
(Parlamento Europeu, 2009). Desde os tempos antigos, a arte tem sido usada como uma
ferramenta para a diplomacia. As indústrias culturais e criativas constituem conexões
importantes para as relações culturais e para a imagem de um país através da diplomacia
soft. A diplomacia pública está focada em projetar a identidade de um país com o objetivo
de fortalecer as relações internacionais (Melissen, 2005). As tendências neste campo
concentram a cultura e as indústrias criativas em pequenos grupos ou nichos, a serem
publicados internacionalmente e a mobilidade dos artistas constitui um motor
fundamental para a comunicação entre os países e uma ferramenta para o entendimento
mútuo.
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Indústrias culturais e criativas na Europa
Os setores culturais e criativos estão no centro do programa Europa Criativa da União
Europeia. As indústrias criativas também foram classificadas pela UNCTAD (2013) como
o principal recurso para superar a depressão mundial. A definição de “economia cultural
e criativa” tem sido polémica, gerando debates abertos e construtivos quanto às
atividades que podem ser consideradas indústrias culturais e criativas e quanto aos
papéis que desempenham no processo de regeneração urbana e no desenvolvimento
regional (Mazilu, 2018). Cada país e sociedade possui um modelo único de indústrias
culturais e criativas que depende da sua cultura, valores e identidade local. As indústrias
culturais e criativas pertencem à economia criativa que combina economia, cultura e
tecnologia.
Existem seis modelos europeus de indústrias criativas, abrangendo uma vasta gama de
atividades culturais e criativas: UNCTAD; a Organização Mundial de Propriedade
Intelectual (WIPO); o Departamento de Digital, Cultura, Comunicação Social e Desporto
do Reino Unido (DCMS); UNESCO; o modelo de círculos concêntricos e o modelo de texto
simbólico. O modelo de círculos concêntricos (Throsby) de cultura e indústrias criativas
compreende uma ampla gama de atividades: belas artes; música; artes cénicas e visuais;
cinema, rádio e televisão; museus e bibliotecas; indústrias editoriais; gravação de áudio;
serviços patrimoniais; jogos de vídeo; e outras atividades relacionadas com publicidade,
arquitetura, design e design de moda. Este modelo inspirou o Relatório da Comissão
Europeia de 2006 “A Economia da Cultura na Europa” (KEA, 2006).
Assim, a economia cultural começou a ganhar relevância nas agendas políticas, incluindo
o Tratado de Lisboa e a Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural, ratificada
pela Alemanha em fevereiro de 2007. O Ano Europeu da Criatividade e Inovação teve
lugar em 2009 e novas conclusões do Conselho foram publicado neste contexto. O
Cultural and Creative Cities Monitor (CCCM) explica que uma abordagem de
desenvolvimento baseada na cultura deve centrar-se não apenas numa economia criativa
próspera, mas particularmente num ambiente social e culturalmente inclusivo. Esta
abordagem foi encorajada pela própria Comissão Europeia na Nova Agenda Europeia para
a Cultura 2018 (Montalto et al., 2019). As indústrias culturais e criativas atingem uma
receita anual de 535,9 bilhões, empregam mais de 7 milhões de pessoas e são
responsáveis por 4,2% do PIB, tornando-se uma importante fonte de recursos intangíveis
(Ernst & Young, 2014).
Indústrias culturais e criativas em Espanha
Estima-se que 3,3% da economia pertence às indústrias culturais e criativas vinculadas
à propriedade intelectual, segundo a conta satélite espanhola. Envolve mais de 687,200
pessoas e mais de 118,407 empresas
6
. Boix et al. (2012) refere que as cidades mais
6
Disponível em: http://www.culturaydeporte.gob.es/dam/jcr:87dfd2bb-b456-40f3-b164-
83f850596654/memoria-politicas-fomento-icc-2019.pdf
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criativas de Espanha são Madrid, Barcelona, Valência, Bilbao, Sevilha e Santiago de
Compostela.
Porém, não são apenas as indústrias culturais e criativas que têm a responsabilidade de
promover um país no exterior. As instituições públicas e os governos o os principais
responsáveis.
Podemos indicar algumas organizações e instituições espanholas que garantem a cultura
e a comunicação no estrangeiro (devemos considerar que o lançamento da renovação da
imagem da Espanha é relativamente recente, com a criação das seguintes organizações
e instituições:
Em 1982, foi criado o Instituto Nacional de Promoção das Exportações (INFE),
antecessor do atual ICEX, que mudou de nome em 2012 por Decreto-Lei Real
20/2012.
Na década de 1990, foram instituídos o Instituto Cervantes, a Casa de América e os
Congressos de Língua Espanhola. Quando a economia abre, é preciso investir no
exterior.
Em 1921, foi construído o Gabinete de Relações Culturais.
Em 1926, foi construída a Junta de Relações Culturais, o Instituto de Cultura Hispânica
e a fundação das Casas de Espanha.
Em 1992, vários eventos importantes tiveram lugar: O V Centenário da Descoberta
da América, Madrid foi sede da Capital Cultural da Europa, e eventos mundiais como
as Olimpíadas de Barcelona e a EXPO de Sevilha, que promoveram a imagem de
Espanha na arena internacional. A imagem do país foi posicionada graças a
acontecimentos internacionais como estes e esforços têm sido feitos para aliviar os
estereótipos de «festa», «touros», «sesta» e «vulgaridade» que podem estar
presentes na cultura espanhola, mas não a nível generalizado (Prieto, 2013). Isto
permite mostrar Espanha como um país livre e moderno, de democracia e abertura.
É um objetivo perseguido ao longo do tempo e que pode ser medido em diversos
estudos realizados pelo Observatório da Imagem de Espanha (OIE) e pelo Instituto da
Reputação.
Em 1999, com a criação do Fórum de Marcas Espanholas de renome, as marcas
espanholas de maior prestígio tornaram-se os maestros do Made em Espanha.
Por volta do ano 2000, foram criadas instituições para realizar ações de diplomacia
cultural como a Fundação Carolina, a SEACEX (Sociedade Estatal de Ação Cultural
Estrangeira), a SECC (Sociedade Estatal de Comemorações Culturais) ou a SEE
(Sociedade Estatal de Exposições Internacionais) e o foco está na coordenação de
esforços de empresas e instituições privadas para exportar a imagem do país, para o
qual se criou a Marca Espanha (Marco e Otero, 2010).
Em 2002, o Instituto Real Elcano instituiu o Observatório Permanente da Imagem
Estrangeira de Espanha (OPIEX), para análise, recolha e divulgação de informação
para a Marca Espanha.
Em 2010, o Conselho de Ministros fundiu as três sociedades estatais de promoção
cultural no exterior sob os ministérios da Cultura e Relações Exteriores e Cooperação:
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a Sociedade Estatal de Comemorações Culturais (SECC), a Sociedade Estatal de Ação
Cultural Estrangeira (SEACEX) e a Sociedade Estatal de Exposições Internacionais
(SEEI). Assim, a Acción Cultural Española (AC/E) foi criada com o objetivo de dar
forma a uma "estratégia reforçada de promoção da cultura espanhola no estrangeiro".
Em julho de 2012, Santiago de Mora-Figueroa y Williams, Marquês de Tamarón, foi
nomeado Embaixador da Diplomacia Cultural de Espanha.
No final de 2012, foram criados o Observatório da Imagem de Espanha e o Conselho
da Marca Espanha com o objetivo de revitalizar a Marca Espanha. Assim, a perceção
da imagem da Espanha do ponto de vista cultural é gerida por diferentes entidades
como o Ministério de Relações Exteriores e Cooperação, através da Direção-Geral de
Relações Culturais e Científicas, a Agência Espanhola de Cooperação para o
Desenvolvimento Internacional (AECID), a sociedade estatal Acción Cultural Española
(AC/E) dependente da Subdireção Geral de Promoção Externa da Cultura da Secretaria
de Estado da Cultura, Turespaña, ICEX e Instituto Cervantes, além de representões
regionais e locais no estrangeiro, entidades privadas, museus, fundações e estruturas
empresariais.
Atualmente, a identidade de um país é formada pelas indústrias culturais e
criativas e pelos cidadãos que as compõem, pelas empresas e pelas influências
recebidas no estrangeiro. O prestígio de um país está ligado à segurança,
qualidade de vida, cultura, facilidade de comercialização dos produtos no exterior
e às facilidades que terá para a internacionalização das suas empresas. Por isso,
a imagem de um país é um elemento fundamental para as relações desse mesmo
país. O responsável pela realização dessas ações promocionais é o Ministério de
Relações Exteriores e Cooperação (MAEC) em conjunto com organizações como
a Fundação Carolina, o Instituto Real Elcano, Turespaña, ICEX, Ação Cultural
Espanhola, o Fórum de Marcas Espanholas de Renome (FMRE), o gabinete de
patentes e marcas espanholas, o Instituto Cervantes e representações
diplomáticas, bem como diferentes programas como PICE (ACE) ou o livro branco
das indústrias culturais e criativas feito por algumas comunidades autónomas.
Todos estes organismos e instituições o responsáveis pela coordenação dos
acordos, tratados, atividades e programas que configuram a imagem de Espanha
através das indústrias culturais e criativas.
Estudo de caso: um exemplo de artistas chineses nas residências
espanholas
Os artistas que viajam da China para a União Europeia (ou da União Europeia para a
China) devem superar as barreiras administrativas e a censura das comunicações, bem
como os problemas com tributação, fronteiras geográficas e barreiras linguísticas.
No parágrafo a seguir, explicamos algumas razões para transcender as barreiras culturais
com o objetivo de promover relacionamentos de longo prazo:
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Um dos principais desafios o os canais de comunicação e de redes sociais: as redes
sociais influenciam o processo de democratização e todos os cidadãos podem expressar-
se sem medo de retaliação. Contudo, frequentemente esses canais de informação são
institucionalizados. As informações podem ser tendenciosas, manipuladas ou enganosas.
A tecnologia permitiu que os consumidores de internet chineses passassem gradualmente
daa situação de público assistente para a de oradores; conseguiram abrir um número
crescente de canais contra a censura estatal. Blogs e microblogs desempenham um papel
fundamental na transferência de informações para um público global (Tang 2014).
Nessa linha, lembramos o artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos que
garante o direito à informação gratuita (Macovei, 2014). A recomendação da UNESCO
em 1980 sublinha que os Estados-membros da UNESCO estão obrigados a proteger,
ajudar e defender os artistas e a liberdade de criação. Os países devem fazer tudo o que
for necessário para estimular a criatividade e o talento artístico, especificamente
adotando medidas que garantam a liberdade artística.
Em março de 2018, o Relator Especial da ONU para os direitos culturais apresentou o
“Relatório do Relator Especial na área dos direitos culturais” (Conselho de Direitos
Humanos da ONU, 2018). Os instrumentos e a Recomendação da UNESCO (1980) sobre
o estatuto do artista são reconhecidos, por exemplo, na convenção da UNESCO (2005)
sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. O relatório destaca
que os artistas devem gozar de todos os direitos previstos nas leis internacionais e
nacionais de direitos humanos, especificamente as liberdades de expressão, informação
e comunicação.
Num relatório de 19 de abril de 2005, a ONU considerou que as liberdades de opinião e
expressãoo instrumentos essenciais para a participação efetiva na vida democrática e
indicadores claros do nível de proteção efetiva dos direitos fundamentais (Comissão de
Direitos Humanos da ONU, 2005). Gellner (1988) refere que a China deseja abrir-se ao
mundo moderno. A burocracia da China iniciou um processo de adaptação por meio do
qual os cidadãos estão a ganhar mais poder sobre as decisões tomadas no país. Desde
então, a abertura da política económica gerou uma classe política vinculada à
participação política e cívica na gestão pública, embora a dinâmica seja lenta. Outro
desafio são os requisitos de visto e autorização de trabalho, que podem impedir
seriamente a mobilidade dos artistas, tanto a curto como a longo prazo. Às vezes, o
tempo de execução do visto é curto e a sua renovação é bastante cara. Por exemplo, o
Artigo 10 da Diretiva da UE 2004/38/EC obriga os membros da família de cidadãos da
UE (se eles não pertencerem a nenhum Estado-membro europeu) a obter um cartão de
residente se desejarem permanecer na Europa por mais de três meses (Parlamento
Europeu e Conselho, 2004). Na Resolução 2006/2249 (INI) sobre o estatuto social dos
artistas, o Parlamento Europeu (2007) resolveu alguns problemas sobre o visto,
confirmando que os artistas com contratos de curta duração têm sérios problemas em
cumprir as condições gerais para obter vistos e autorizações de trabalho. O visto
Schengen, uma das soluções propostas na Resolução 2006/2249 (INI) para estadias não
superiores a 3 meses, é uma autorização destinada aos Estados membros de Schengen.
Permite uma residência regular alinhada com o período temporal (Parlamento Europeu
2007). Os problemas descritos acima não são os mais importantes, pois o principal
problema burocrático da mobilidade é a segurança social. A próxima seção descreve os
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principais problemas com impostos globais e como a União Europeia e a China lidaram
com esta situação. Explica as principais responsabilidades das pessoas em termos de
segurança social e tributação. Segurança social e tributação o outro requisito
complexo: em 1951, a cooperação bilateral de segurança social entre a China e outros
países foi implementada com um regulamento e os principais problemas de
internacionalização da segurança social aumentaram. Antes disso, havia poucos
estrangeiros na China e o governo não tinha aprovado nenhum regulamento especial.
Em 1999, foi elaborada uma regra provisória sobre o contributo da segurança social que
estabelecia a pensão básica de velhice na China. Essa medida possibilitou que
estrangeiros beneficiassem do sistema chinês (Wang e Wei, 2009). Portanto, as
empresas estrangeiras também devem pagar obrigações à segurança social e tributação
dupla. Essa dupla tributação começou a gerar problemas com os vistos de trabalho.
A China resolveu esse conflito com um acordo que entrou em vigor em abril de 2002 e
resolveu os problemas de dupla tributação. Entre os Estados-membros da União
Europeia, existem muitas diferenças nos sistemas de tributação. A legislação a cada
Estado-membro a liberdade de projetar o seu próprio sistema tributário e fornecer fundos
aos artistas. No entanto, os Estados-membros estão subordinados à interpretação dos
tratados bilaterais e a dupla tributação depende se o beneficiário é residente ou não
(Agenda Europeia para a Cultura, 2014).
Além das burocracias e da separação geográfica, as muitas diferenças culturais e
linguísticas entre a China e a Europa apresentam obstáculos à mobilidade.
Outros elementos que podem afetar a decisão de fixar residência incluem: a estabilidade
política do destino; o prestígio da universidade ou da cidade; cosmopolitismo; e
prosperidade económica. O artista sempre quer sucesso profissional, para além de
visibilidade e reputação internacional, também elementos-chave a considerar
Mobilidade através de residências artísticas
Na seção anterior analisámos as principais barreiras que um artista deve evitar quando
tenta viajar para o estrangeiro em trabalho. Os programas de mobilidade das residências
artísticas tornaram-se um fator intrínseco na carreira profissional dos artistas, pois
oferecem uma importante fonte de financiamento e um processo de aprendizagem, bem
como os principais elementos da arte contemporânea. Um artista participante ajuda a
compreender, a construir pontes, a contribuir para a diversidade cultural e a gerar ideias
para o desenvolvimento de novos projetos. As residências promovem o entendimento e
a cooperação entre os países, oferecendo aos artistas a oportunidade de trabalhar com
diferentes recursos e equipas interdisciplinares. As residências oferecem hospedagem,
programas de aprendizagem, espaços de trabalho, instalações, produções artísticas e
apresentações. De vez em quando, os artistas podem trabalhar em associação com
outros profissionais criativos, como cientistas ou escritores. As residências artísticas
culminam com uma exposição, workshop ou colaboração, embora por vezes acabem sem
resultados (Agenda Europeia para a Cultura, 2014). As residências artísticas são uma
fonte inspiradora de conhecimento. Curadores, artistas contemponeos e outros
profissionais culturais unem as suas competências e ideias para construir projetos.
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Esta cooperação incentiva a materialização de ideias. As residências artísticas trabalham
em conjunto com pequenas e médias empresas culturais privadas, empresas estatais,
museus, teatros e fundações. O objetivo é ajudar os artistas a serem visíveis, aprender
novas técnicas e estabelecer novos contatos ao viver uma experiência internacional e
excecional (Acción Cultural, n.d.). ResArtis (n.d.) é uma rede mundial de residências
artísticas que existe para conceptualizar e fazer com que a residência artística na
sociedade seja um sucesso. A Res Artis definiu a residência artística como um espaço
organizado de tempo e recursos; uma força motriz no processo criativo; responsável pela
experimentação, troca e diálogo; uma conexão entre o local e global; relevante para o
ecossistema artístico; promove ligações entre campos, assuntos e setores não artísticos;
impulsionadora da compreensão intercultural e do desenvolvimento de competências;
criadora de oportunidades profissionais e individuais; um refúgio seguro para a
mobilidade global; uma forma de contribuir para as políticas culturais e a diplomacia. Os
centros artísticos são destinos de acolhimento de gestores, curadores, patrocinadores e
comerciantes.
Muitas cidades europeias o, ou acreditam ser, parceiras destes programas de
residência. As autoridades públicas compreendem os aspetos positivos das residências
artísticas. Contribuem para o fortalecimento da arte e da cultura de uma cidade, gerando
mais opções culturais para atrair turistas e cidadãos. Auxiliam o progresso social porque
ajudam a regenerar espaços deficientes e potencialmente dar-lhes novos usos, como o
Zorrotzaurre em Bilbao. A participação de uma comunidade numa cidade costuma
produzir soluções criativas de conflitos, diminuindo lacunas e reduzindo comportamentos
de conflito social. A participação dos cidadãos produz integração e diálogo intercultural,
criando “cidades criativas” abertas (Florida, 2002).
As resincias artísticas são centros onde o artista pode dar passos rumo à promoção
profissional, conquistar novos públicos, aprender novas técnicas, fazer contatos e montar
novos produtos e ideias para expandir a sua atuação.
O anfitrião da residência também beneficia, pois esse tipo de programa confere prestígio
à instituição. As residências podem atrair perfis internacionais, fazer contatos e identificar
diferentes fontes de financiamento. Consequentemente, contribuem para a diplomacia
cultural porque atraem investimentos, geram comércio e dinamizam a cidade. As
residências artísticas proporcionam enriquecimento cultural, sendo nós do processo
criativo. A participação da comunidade em eventos, exposições e conferências melhora
a qualidade de vida dos cidadãos através de interações e apresentações culturais. Muitos
projetos artísticos geram um impacto positivo na cidade, impulsionando a atividade
empresarial com a participação dos agentes locais. Quando uma cidade se comporta bem
com um artista, o artista envolve-se com ela, publicando e comunicando a sua história,
o seu conhecimento e a amabilidade da sua população. Desta forma, o artista torna-se
embaixador da marca da cidade.
Frequentemente, os artistas residentes realizam programas para públicos jovens, com
atuações, eventos ou demonstrações. Às vezes fazem apresentações ao vivo para
públicos locais e internacionais. Algumas residências transmitem eventos, colocando-os
no ar. Boletins e blogs geram fóruns e debates entre artistas e profissionais de outras
áreas.
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No cenário da residência artística, uma complexa rede de elementos, incluindo artistas,
patrocinadores, públicos, promotores, organizações não governamentais, associações,
professores, workshops, eventos e exposições, empresários e empreendedores locais,
instituições de arte, escolas, teatros, museus, fundações culturais, cientistas, jornalistas,
grupos de arte, curadores e muitas outras instituições envolvem-se nas plataformas,
doam fundos e estabelecem contatos internacionais. O networking é um fator relevante
na esfera da residência, pois ajuda a fomentar aspetos positivos da experiência (Agenda
Europeia para a Cultura, 2014). As redes oferecem benefícios tangíveis e intangíveis a
todas as partes interessadas envolvidas no projeto. A curto prazo, induzem melhorias na
pesquisa e na comunicação de um projeto. A longo prazo, oferecem plataformas que
permitem a comunicação entre artistas que trabalham na mesma área. Promovem
conexões e sinergias com outros setores. É importante sublinhar que melhoram a
cooperação entre as instituições de arte locais, escolas de arte e a comunidade local.
Exemplo de mobilidade criativa chinesa em residências espanholas:
identificação e análise das residências artísticas espanholas que
acolheram artistas chineses
Esta seção descreve o projeto de um mapa do Sistema de Informação Geográfica (SIG)
para refletir a natureza das residências artísticas espanholas que têm participado em
programas de arte com a China. O mapa foi desenvolvido do ponto de vista da oferta e
utilizou fatores como mapa térmico e mapas SIG para descrever as residências situadas
em áreas urbanas ou rurais.
O delineamento no mapa do papel das residências reflete a definição da residência
artística como um espaço criativo de envolvimento e troca de valores, bem como de
inovação por meio da arte e das novas tecnologias (Ortega, 2008). A investigação
aprofundada das residências artísticas em Espanha permite-nos analisar e desenvolver
um diagnóstico da situação atual.
Figura 1 - Análise do grupo das residências artísticas na Espanha por cidades
Fonte: Da autora, 2017
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Os picos do gráfico (figura 1) representam as cidades com os maiores conglomerados de
residências artísticas: Barcelona, Madrid, Bilbao e Valência. A maioria das residências
artísticas encontra-se em áreas urbanas e abrange uma ampla gama de disciplinas,
incluindo pintura, escultura, dança, artes plásticas, moda, cinema, dio, software,
música, literatura, arquitetura e investigação científica.
O mapa da figura 2 mostra uma análise da propoão de residências artísticas espanholas
em áreas rurais e em áreas urbanas - 71% urbanas e 29% rurais. Agrupam-se em áreas
urbanas porque as torna competitivas e beneficiam de economias de escala. Por outro
lado, a arte e a criatividade nas áreas rurais promovem e desenvolvem as economias das
aldeias.
A Figura 2 mostra que a Catalunha é a comunidade com mais residências urbanas. Madrid
é a segunda. O País Basco e a Andaluzia ocupam a terceira e a quarta posições, com
quase metade das residências rurais. Outras comunidades, como Valência, Galiza,
Astúrias, Canárias, Baleares, Castela e Leão, Extremadura e Múrcia, também se
destacam.
Figuras 2 e 3 - Mapa SIG com a situação atual das residências artísticas
Fonte: Da autora, 2017
O mapa SIG da figura 3 reflete a situação atual das residências artísticas na Espanha.
Retira a informação de uma base de dados de todas as redes europeias, incluindo
ResArtis, Transartis, Localizarte, Artmotile e Danza Guía. Ao todo, essas redes operam
153 residências espanholas. Barcelona acolhe 32 delas (os círculos vermelhos mostram
sobreposições), mais do que o dobro do número de Madrid. Podemos concluir que a sua
cultura faz de Barcelona a cidade mais criativa da Espanha. Este número não considera
as cidades vizinhas, como Sant Antoni de Vilamajor, Avinyón, Lloréns, Sant Pére de
Vilamajor e Terrasa. A segunda cidade mais artística é Madrid, com 19 residências
artísticas. Em seguida, temos Bilbao com sete e Valência com cinco. Outras cidades
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médias com grande potencial são Málaga (duas residências artísticas) e Cádis (três),
Maiorca, Sabadell, Santa Cruz de Tenerife e Granada.
A Figura 4 reflete a situação atual das residências artísticas em Espanha. O mapa térmico
usa cores para mostrar grupos de residências artísticas, sendo as áreas amarelas as mais
concentradas e, portanto, as mais artísticas. Como podemos ver, Barcelona é a cidade
mais artística, com Madrid em segundo e Bilbao em terceiro. Áreas como o Levante,
Astúrias e Cádis têm as concentrações mais artísticas.
Figura 4 - Mapa térmico de residências artísticas
Fonte: Da autora, 2017
Realizámos um inquérito a todo o universo de residências com três questões simples
para investigar três questões básicas (número de residentes desde 2010, número total
de residentes internacionais e número total de residentes de outros continentes).
Obtivemos 30 respostas com um intervalo de confiança de 90 e uma margem de erro de
15%. Obtivemos os seguintes resultados:
Figura 5 - Percentagem do total de residentes
Fonte: Da autora, 2019
25%
5%
5%
15%
10%
10%
20%
0%
10%
0-20 21-40 41-60 61-80 80-120 120-250 250-350 350-500 >500
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O gráfico mostra as seguintes percentagens de artistas: 25% das residências alojaram
mais de 620 artistas nos seus centros e 26% entre 250 e 350 residentes. As percentagens
menores (5% e 10%) são residências que acolheram menos de 50 residentes desde
2010.
O gráfico seguinte descreve a diferença entre os estrangeiros que desfrutaram de uma
estadia em residências espanholas e os estrangeiros de fora da Europa que
permaneceram em residências espanholas.
Figura 6 - Percentagem de estrangeiros e estrangeiros de outros continentes
Fonte: Da autora, 2019
O gráfico de barras indica que quase 60% das residências de artistas albergam poucos
estrangeiros fora da UE, o que faz sentido porque os estrangeiros que vivem fora da
União Europeia têm que gastar mais (visto, transporte, entre outras barreiras…). No
entanto, podemos observar no gráfico de barras como à medida que o número total de
artistas aumenta, a percentagem de estrangeiros residentes na União Europeia também
aumenta. Mais de 30% das residências que acolheram acima de 120 artistas são da União
Europeia, em comparação com 5% dos artistas de outros continentes.
Seleção da amostra
Strauss e Corbin (1990) distinguiram três tipos de seleção de amostra: aberta;
relacional-flutuante; e discriminante. Aqui, utilizamos critérios discriminantes,
subordinados à codificação seletiva (Peña, 2006), pois interessa-nos categorizar por
nacionalidade para analisar a mobilidade de artistas entre a China e Espanha. As
residências que receberam artistas chineses constituem o nosso principal grupo de
estudo. Escolhemos critérios lógicos para a amostra.
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70%
0 a 20
21 a 40
41 a 60
61 a 80
Entre 80 e 120
Mais de 120
Proporção de estrangeiros de fora da União Europeia Proporção de estrangeiros
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Cinco residências arsticas preenchem os requisitos enquanto objetos de estudo. Esta
amostra é menor do que penvamos que encontraríamos, mas os resultados mostram
que o tamanho limitado da amostra também tem um significado que analisaremos
posteriormente no diagnóstico de resultados. Creswell (2009) afirma que o tamanho da
amostra não é relevante em estudos qualitativos, pois a adaptação do conteúdo à
pesquisa é o fator mais importante. As residências são Can Serrat em El Bruc, a Jiwar
Creation and Society em Barcelona, a Térmica em Málaga, o Museu Gas Natural Fenosa
de Arte Contemporânea em A Coruña e a Plataforma Laboral Cero em Gijón. Quatro delas
são urbanas e uma é rural.
Artistas chineses identificados e selecionados
O mapeamento cartográfico, a análise exploratória da documentação digital e o
levantamento das residências artísticas levaram à seleção de quinze artistas e nove
estadias de residência do total da amostra. Uma dessas estadias envolveu um grupo de
sete artistas da mesma instituição anfitriã. A tabela seguinte descreve os artistas
selecionados.
Tabela 2 - Perfil das residências dos artistas
Artista
Residência
Cidade
Rede
Data da
estadia
Pei- Ying Lin
Plataforma Cero, Laboral
Gijón
Transartis
2015
Chi Po-Hao
Plataforma Cero, Laboral
Gijón
Transartis
2016
Weina ding
Museo de Arte Contemporáneo
Gas Natural Fenosa
A Coruña
Redartis
2012
Siying Zhou
Jiwar Creation & Society
Barcelona
Redartis / Transartis
2013
Chai-mi
Can Serrat
El Bruc. Barcelona
Redartis / Transartis
2014
Dunet Chan Sheung
Can Serrat
El Bruc Barcelona
Redartis / Transartis
2013
Xiao yang li
Can Serrat
El Bruc Barcelona
Redartis / Transartis
2014
Fonte: Da autora, 2017
Metodologia e resultados das entrevistas
Em primeiro lugar, preparámos entrevistas aprofundadas com o objetivo de investigar
qual o papel do artista na cooperação entre países e identificar valores culturais e
motivações para viajar. As principais limitações das entrevistas são o tempo, a
confiabilidade, a validade e a observação direta. Outros fatores importantes para avaliar
as entrevistas são barreiras como o idioma e os canais de comunicação. Todos os
entrevistados foram escolhidos de acordo com os mesmos critérios (1 a 3 estadias de
curta duração, chineses e estar em Espanha para um programa de residência)
Dividimos as perguntas das entrevistas em três blocos (Dexter 1970):
A) Variáveis culturais e de motivação
B) Variáveis de imagem e perceção do país
C) Transmissão de conhecimento e experiência de aprendizagem
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Tabela 3 - Guião da entrevista
Fonte: Da autora, 2017
Resultados das entrevistas:
Bloco 1: fatores culturais e motivações
Sete artistas foram entrevistados, dos quais apenas uma, Chai Mi, tinha residência em
Pequim (ela veio com o marido e foi patrocinada pela New Century Art Foundation, um
colecionador privado na China cuja missão é promover a arte contemporânea chinesa).
A maior parte dos artistas estudou no estrangeiro, apenas dois estudaram nos seus
próprios países, mas a maioria não conhecia a Espanha (dois tinham passado férias em
Madrid, Barcelona, Granada e Jerez).
Estudos de disciplinas e especialização é outra variável importante porque a maioria dos
artistas combinou disciplinas distintas, como escultura com cinema, design e biologia e
programação.
Caso 2: Artistas. Qual é a sua disciplina artística e especialização?
Código: [Disciplinas]
FATORES
CÓDIGOS
QUESTÕES
Fator cultural e
valores
(Coook,1962,
Schwartz, 2003;
Hofstede 2016;
Barómetro imagen de
España (2015)
[Disciplina]
[Residência atual]
[Estudos Internacionais]
[Finanças]
[Valores Culturais]
[Interação- cultural- local]
Qual é a sua disciplina artística e
especialização?
Qual é a sua cidade natal?
Onde mora atualmente?
Que diferenças ou semelhanças encontra
entre a Espanha e China, Taiwan ou Hong
Kong?
Fez amigos e contatos espanhóis?
Onde tem estudado?
Como conseguiu financiamento?
Fator de cultura
espanhola (Amir,
1969).
[Grau de envolvimento no projeto de
residência]
[Estadia em família ou sozinho]
Como é que a residência o ajudou?
Veio sozinho?
Fator temporal
(Bochner, 1982)
[Frequência de contato] [duração da
estadia]
Há quanto tempo está na residência?
Fator motivação
(Bochner, 1982)
[Motivação para viajar]
Por que escolheu essa residência?
É a primeira vez que tem uma estadia em
residência?
É a primeira vez que está num país
estrangeiro?
Perceção do destino
cultural (Hunt 1975;
Etchner & ritchie,1991,
1993; Noya, 2008;
Anholt, 2002; Van
Ham, 2001 & 2008;
Saavedra, 2012)
[Perceção do país/destino]
[Experiências]
[Sentimentos]
[Memórias visuais]
Qual é a primeira imagem que vem à
mente quando pensa nesta experiência?
Gostou da Espanha e da cidade?
fez turismo ou viajou para outras
cidades?
Pesquisou antes de vir para a Espanha?
Quais os aspetos que destacaria da sua
experiência?
Voltaria ou que cidade escolheria para
repetir a mesma experiência?
Fatores cnicos e
transmissão de
conhecimento
(Reisinger, 1994;
Bochner,1982)
[Aprendizagem técnica] [Transmissão
de conhecimento] [valores] [lazer
cultural e virtual]
Aprendeu novas técnicas?
Vai usar o que aprendeu?
Como foi a experiência em geral?
Pertence a uma rede especial de artistas?
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“Arte com música, um pouco sobre arte, programação, instalação, uso a tecnologia para
interagir com o meu trabalho e criar novos projetos”.
Caso 4: Artistas.
Código: [Disciplinas]
“A minha especialização é muito diversa, em artes visuais e normalmente faço projetos
que incluem média, texto, fotografia, vídeo, escultura... Exploro diferentes disciplinas”.
Caso 5: Artistas.
Código: [Disciplinas]
“A minha especialização é o design, mas agora as minhas práticas artísticas são as
relações com a arte contemporânea, que é o que sinto e reflito nas minhas exposições”.
A grande maioria dos artistas desenvolveu as suas carreiras em países estrangeiros.
Apenas dois artistas estudaram no seu país.
Caso 4: Artistas
Código: [Estudos internacionais]
“Eu estudei artes visuais na Austrália e fiz um mestrado, depois parei e tenho estado a
trabalhar. Depois disso estive a trabalhar em Darwin durante 5 anos e meio e mudei-me
para Melbourne para estudar novamente e aprender. Precisava de ter feedback e
comentários. Senti que precisava de algo... e sei que tive tantas interrupções, mas
precisava de outra coisa. fiz muitas exposições e ninguém me criticou, não tinha
opinião formada sobre os meus trabalhos, por isso precisava de melhorar. Uma pessoa
faz o trabalho e é isso. Aqui, os estudos são perfeitos. Este é o momento que eu
precisava, pois tenho recursos, feedback e tutoriais. Isso é tão bom para mim”.
Caso 6: Artistas
Código: [Estudos internacionais]
“Estudei educação física e fiz um mestrado em Artes com especialização em cinema na
Universidade de Hong Kong”
Entre as principais motivações para a escolha da residência, o motivo mais comum foi a
recomendação de um amigo.
Sobre a questão sobre requisitos financeiros e financiamento, nem todos conseguiram
financiamento para os seus projetos. Todos concordaram que precisavam de apoio
financeiro, mas acharam difícil obtê-lo por falta de conhecimento. Alguns têm acordo de
intercâmbio com instituições e alguns vinculam as possibilidades profissionais à ajuda
financeira. Os acordos entre países são importantes para a imigração e a mobilidade.
Os valores culturais são estudados de forma generalista. Existe um mal-entendido no
conceito de valor por parte do artista, por isso conclui-se que o seu estudo foi complexo.
Alguns exemplos:
Que diferenças ou semelhanças encontra entre a Espanha, China, Taiwan ou Hong Kong?
Caso 2: Artistas
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Código: [valores culturais]
“O tempo é um valor cultural”. A forma como as pessoas trabalham aqui é. Pensam sobre
a cooperação com a população local. Aqui as pessoas trabalham menos, têm horário e
têm mais tempo livre. Esta não é uma cidade enorme, e é por isso que não muita
pressão sobre o trabalho. Em Taipé estamos sempre ocupados. O tempo como valor é
um conceito diferente”.
Caso 3: Artistas
Código: [valores culturais]
“Sim, agora está mais aberto. Tenho viajado muito e vejo as diferenças entre Barcelona,
Madrid e A Coruña. A Coruña é mais local, fechada como o interior da China. Porém,
melhorou muito, agora es melhor. Mais aberto. Acho que é por causa do
desenvolvimento da economia. Lembro-me de quando vim para a Espanha, na China
havia programas que ofereciam espanhol como idioma e é difícil aprender, mas agora
existem muitos programas que oferecem espanhol. Os relacionamentos estão muito
melhores agora. Encontrei muitos estrangeiros no aeroporto de Pequim”.
Caso 5: Artistas
Código: [valores culturais]
“Existem muitas diferenças, é uma grande questão. Talvez existam muitas diferenças
culturais, mas não me senti diferente. Em Barcelona senti-me muito relaxado e com
liberdade. É a primeira cidade da Europa em que me sinto assim. Estive em Paris e em
Viena e sempre me senti estrangeiro, mas aqui não. As pessoas são boas e gentis”.
A questão sobre o papel do anfitrião no processo é relevante. Alguns artistas pensaram
que a aceitação por parte do anfitrião significava que estavam a receber ajuda, pois
tinham passado por um filtro - nem todos os anfitriões aceitam toda a gente para
residência. Além disso, existem acordos entre residências e instituições, por exemplo,
entre o Museu Laboral e o Museu de Arte Contemponea de Taiwan. As residências dão
ao artista um lugar para estudar e fornecem alimentação e alojamento. Motivam o artista
com jantares, festivais e, em algumas ocasiões, também ajudam a coordenar projetos e
a promover networking.
Muitos dos artistas participaram em festivais, eventos e workshops com artistas
espanhóis e todos mencionaram que aprenderam muito com a imersão cultural,
beneficiando de outros pontos de vista e de técnicas e tecnologias que podem aplicar em
projetos futuros. Este ambiente enriquecedor incentiva a criação.
As seguintes questões estão relacionadas com o Bloco B (destino e perceção do país).
Perguntámos os artistas sobre a sua primeira imagem quando pensam sobre a sua
experiência. Alguns demonstraram relutância em pensar. Outros pensam na capacidade
de construir e na cidade, moderna e com pouca gente. Outros artistas recordam
conversas com amigos num café...
Caso 1: Artistas
Código: [memórias visuais]
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“Não prestei muita atenção quando cheguei ao aeroporto. Achei que era enorme, mas
depois de dois dias pensei: Isto está vazio... sou muito tímido, sempre morei numa
cidade grande onde tenho que falar com pessoas todos os dias, mas aqui estou sozinho
e fecho a porta e penso... será que vai vir alguém... o há ninguém, então não vou sair.
Isso é bom porque não preciso de me esforçar para ser mais social. Estou concentrado
no meu projeto, o meu pensamento está concentrado em várias tarefas e estou sempre
e pensar... tenho que fazer isto e...aquilo. E aqui é diferente, porque posso estar
realmente muito focado.”
Caso 7: Artistas
Código: [memórias visuais]
“Oh meu Deus, isto fica no meio do nada. Estou em um país estrangeiro no meio do
nada!”
Quando perguntamos sobre a perceção do país, alguns revelaram-se surpreendidos
porque achavam que a Espanha era mais subdesenvolvida, suja e desorganizada, mas
encontraram cidades limpas, arrumadas e modernas com lugares iluminados e culturais.
A maioria deles viajou pela Espanha e referiu atributos como Jerez, festival da primavera
ou Gaudí. Outros destacam a natureza e a montanha como parte de sua experiência.
Caso 1: Artistas
Código [destinos /perceção do país]
“É uma cidade grande, mas não muito. É moderna, mais moderna do que outras que
visitei na Europa, e não tem muita gente a viver aqui em comparação com a minha cidade
natal, porque a minha cidade é uma floresta. Passei uma noite em Oviedo”.
Caso 7: Artistas
Código [destinos / perceção do país]
“Sim, adoro a cultura espanhola. Na verdade, pensei que poderia ter uma experiência
focada na população local. Na residência estavam pessoas de outras partes do mundo
como Suécia, Inglaterra… mas não artistas locais. Havia um de Madrid, mas não o
conheci. Talvez eu tenha perdido esse aspeto. A residência organizava jantares e
festivais, um dia houve um festival de música e saí com artistas espanhóis”.
Todos os artistas viajaram para a Espanha sem terem feito qualquer pesquisa prévia.
Não conheciam nem a residência nem a cidade.
Os aspetos gerais que destacam sobre sua experiência foram os seguintes:
Caso 4: Artistas
Código [Experiências]
“Lembro-me que as melhores experiências foram as conversas. Entrevistei muitas
pessoas para o meu projeto e foi um prazer. Foi uma experiência gratificante. Quando
voltei para o meu país não pude trabalhar da mesma forma, tinha material suficiente
para fazer outro projeto, mas não pude recriar a mesma experiência, porque foi boa.
Gostei muito desse projeto. Acho que foi a primeira vez que estive em Barcelona para
conhecer a cidade e a cultura local, principalmente no Natal. Fui ao mercado, pude ver
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todas as tradições... Fui o único artista do programa e sinto que fiz algo profissional e
social”.
Caso 5: Artistas
Código [Experiências]
"Foi bom; Nunca tinha tido este tipo de experiência. Pude estar perto da montanha e foi
ótimo. O povo espanhol é gentil, passei momentos tão engraçados com gente de outros
países também, como Paquistão, Austrália, Estados Unidos… e escalámos a montanha e
conversámos sobre arte”.
Todos os artistas relembram esta experiência como tendo sido inesquecível e memorável.
Alguns relembram as praias, os momentos espirituais, a vida e as pessoas tranquilas,
outros veem as urbanidades, a natureza e os jantares como a melhor parte da
experiência. Quando perguntamos se iriam repetir a cidade, disseram que gostariam de
ir a Barcelona por motivos profissionais, exceto Dunet Chang, que gostaria de ir visitar o
Guggenheim, ou Xiao Yang Li, que gostaria de ir para a Alemanha e os Estados Unidos.
Quase todos escolheriam Barcelona como líder cultural mundial ou Madrid porque é a
capital da Espanha.
O último bloco das entrevistas em profundidade é o Bloco C: Aprendizagem e experiência
de conhecimento.
À pergunta se aprenderam novos métodos de aprendizagem, todos mencionaram que
poderiam reproduzir o que aprenderam, e que o fariam por meio de oficinas, eventos e
exposições. Alguns argumentaram que poderiam reunir dados e adquirir materiais e
recursos para criar projetos semelhantes - muitos registaram todos os processos para se
lembrarem no futuro.
Caso 3: Artistas
Código [aprendizagem cultural e técnica]
“Sim, aprendi novas ideias, compartilhamos muitas experiências com outras faculdades
e é muito gratificante construir novos projetos. O museu organizou muitas atividades,
cursos, workshops e exposições com muitos artistas espanis. Foi muito bom”.
Caso 7: Artistas
Código [aprendizagem cultural e técnica]
“Sim, aprendi diferentes técnicas de outros estrangeiros mas senti curiosidade em utilizar
materiais locais para os meus trabalhos. Usei pinturas e madeira das árvores... criamos
uma cadeira. Foi uma aula de aprendizagem”.
A avaliação final das experiências vividas durante as residências foi positiva. Todos
concordaram que viveram uma experiência maravilhosa e memorável, repletos de
conhecimentos de línguas, comunidades e culturas. Gostariam de repetir a experiência
que dizem ter sido notável.
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Conclusões
As iniciativas de gestão cultural estão vinculadas ao progresso económico e à abertura.
As globalizações da economia expandem os laços amigáveis e removem as fronteiras
entre cidades e estados, especialmente na Europa. A mobilidade cultural cria novas
ideias, gera redes internacionais e estimula a economia local. No entanto, a globalização
e a mobilidade contribuíram para a perda de algumas minorias e identidades culturais,
pelo que também encorajaram situações injustas e conflitos sociais (Lin 2019).
Este artigo mostrou e analisou os múltiplos problemas e barreiras (impostos, burocracia,
falta de informação, requisitos legais, idiomas, distâncias logísticas e geográficas ou
deficiência de fundos) que um artista tem que enfrentar antes de viajar para o exterior,
especialmente da China para a Europa e especificamente para a Espanha, no campo
cultural e criativo. Em comparação com outros continentes, havia poucos artistas
chineses em residências. As despesas com viagens ou a falta de informação foram as
principais desvantagens em escolher a Espanha como destino. A mobilidade cultural é
uma ferramenta para construir cooperação e relações e para melhorar os tratados
económicos e bilaterais. No entanto, o poder e o prestígio de um país não se medem pelo
seu peso económico, mas pelos direitos, alternativas de comunicação, tolerância e
diversidade. Hoje em dia, a facilidade de comunicação, o desenvolvimento de
infraestruturas e a abertura das economias melhoraram as viagens, o turismo e o
comércio. Estes, com uma comunicação mais rápida nos órgãos de comunicação social e
novas tecnologias, conseguiram relações pacíficas entre os países e abriram as portas à
diversidade e a tolerância. Vimos, com a situação de pandemia, a importância da
mobilidade, da liberdade e dos serviços sociais. Não podemos agir como se fossemos
uma ilha porque estamos ligados a todo o mundo.
As residências artísticas estão ligadas às cidades culturais e criativas. Florida (2002)
afirmou que algumas cidades são polos de atração para a classe criativa. Essas cidades
são epicentros artísticos e criativos com distritos culturais de atração de talentos. Este
autor introduziu a teoria dos três T's (Tolerância, Talento e Tecnologia) para situar as
cidades na economia criativa como fonte de troca, inovação e criatividade. Nesse sentido,
património cultural significa património cultural humano, a ser reconhecido e consolidado
globalmente para as gerações futuras e presentes (UNESCO 2002). A cultura é um
instrumento de promoção da democracia, tolerância, respeito e compreensão cultural
entre os países. Cria liberdade de expressão, confiança, integração, inovação, direitos à
igualdade de nero e desenvolvimento económico. No entanto, deve ter-se em
consideração que a má gestão cultural nas cidades gera precariedade, desequilíbrio
social, lacunas económicas e discriminação. Devemos ponderar que as consequências
negativas e positivas da mobilidade e da globalização cultural num lugar não dependem
apenas de como são administradas, mas também do seu contexto e historial anteriores,
da sua cultura, regulamentos e recursos de que dispõe. Além disso, a mobilidade criativa
gera e atrai mais talentos para as cidades e, consequentemente, mais eventos e
desenvolvimento económico local para os destinos. A mobilidade, neste caso, é utilizada
como ferramenta de comunicação e cooperação entre países. Em primeiro lugar,
precisam de tratados anteriores de cooperação entre os países e, em segundo lugar, os
artistas atuam como embaixadores do país, apreciam as tradições locais e as pessoas
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locais, fazem exposições e contribuem para a comunicação na imprensa e nas redes
sociais através de eventos, workshops, exposições, projetos e canais de comunicação
tradicionais. A União Europeia referiu-se aos residentes e ao intercâmbio cultural como
uma parte fundamental dos seus planos de cooperação. No estudo de caso, podémos
observar como os residentes em Espanha se dispersaram por diferentes canais e este
trabalho elaborou e coordenou um novo banco de dados de residentes com informações
que não existiam, como a situação das residências (áreas urbanas ou rurais) e os
conglomerados.
Identificámos um número reduzido de artistas chineses, em comparação com a
percentagem de artistas de fora da União Europeia. Isto significa que ainda existem
muitas barreiras a serem superadas, mas as entrevistas aprofundadas a artistas chineses
sugerem que a experiência e o intercâmbio cultural foram únicos e inesquecíveis. Todos
aprenderam, desfrutaram e viajaram por Espanha, agindo como embaixadores. As
residências de artistas atestam que os intercâmbios culturais o importantes, inclusive
no campo das indústrias culturais e criativas, para fortalecer as relões, a cooperação e
promover a imagem de um país no exterior.
Por último, mas não menos importante, os artistas ajudam a dialogar e a firmar acordos
culturais entre os países. Vivem uma experiência memovel e fortalecem os los entre
as pessoas. Os acordos de cooperação cultural são a cereja no topo do bolo,
complementados por tratados económicos e bilaterais.
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O papel das indústrias culturais e criativas na diplomacia cultural e o soft power
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A RELAÇÃO CHINA-RÚSSIA E A CONSTITUIÇÃO DA CULTURA DA
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO DE XANGAI
Diogo Machado
diogo2000machado@gmail.com
Estudante finalista na licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Portugal).
Membro Associado do Observatório Político.
Resumo
Este artigo procura perceber como é que a relação entre a China e a Rússia, os dois membros
mais influentes na criação e na ação da Organização para a Cooperação de Xangai, influenciou
a cultura da organização. Através de um desenho de pesquisa construtivista, são identificados
os principais elementos intersubjetivamente partilhados na relação referida, argumentando-
se posteriormente que eles foram incorporados na cultura da Organização para a Cooperação
de Xangai, em especial nos dois aspetos considerados para a avaliar regras formais e
normas.
Palavras-chave
Cultura, Cooperação, Organização para a Cooperação de Xangai, Relação sino-russa,
Soberania
Como citar este artigo
Machado, Diogo (2021). A relação China-Rússia e a constituição da cultura da Organização
para a Cooperação de Xangai. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1,
Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.4
Artigo recebido em 21 Outubro 2020 e aceite para publicação em 6 Março 2021
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A relação China-Rússia e a constituição da cultura da Organização para a Cooperação de Xangai
Diogo Machado
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A RELAÇÃO CHINA-RÚSSIA E A CONSTITUIÇÃO DA CULTURA DA
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO DE XANGAI
1
Diogo Machado
Introdução
O presente artigo tem como objetivo perceber como é que a relação entre a China e a
Rússia determinou a cultura da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX). Como
o título sugere, será utilizado um desenho de pesquisa construtivista, que será explicado
nesta secção, seguido da apresentação da estrutura do artigo.
Seguindo a ontologia construtivista, a sua análise às organizações internacionais (OI),
como é o caso da OCX, foca-se sobretudo nas componentes imateriais ou sociais,
nomeadamente the ways in which international institutions create, reflect, and diffuse
intersubjective normative understandings(Martin & Simmons, 2013: 335). As OI são
vistas como a articulação institucional e formal de comunidades internacionais que
partilham uma cultura, isto é, identidade, valores e normas coletivamente partilhados
(Schimmelfennig, 2003).
É postulado que existe uma constituição mútua de identidades dos atores e das OI, isto
é, ao passo que a cultura e as regras formais das OI advêm de um consenso
intersubjetivo a nível de identidade, valores e normas coletivos entre os atores que
depois a formam, a OI adquire, posteriormente, uma capacidade de agência que lhe
permite alterar as identidades e interesses dos próprios atores que a constituem (Martin
& Simmons, 2013) existe uma relação mutuamente constitutiva entre Estados e OI.
Ora, é no seguimento destas premissas que desenvolvemos o nosso desenho de pesquisa
para estudar a influência da relação sino-russa na cultura da OCX. Para o efeito,
partiremos da obra Crafting Cooperation - Regional International Institutions in
Comparative Perspective (Acharya & Johnston, 2007), onde é elencado um conjunto
exaustivo e eclético de variáveis que podem influenciar o design institucional de uma OI.
Entre as variáveis independentes apresentadas, os autores consideram que o design
institucional das OI pode ser influenciado pela ideologia e identidade dos seus principais
empreendedores, isto é, a identidade, os valores e as normas coletivamente partilhados.
Os autores explicam que a variável independente supramencionada é especialmente
1
O autor agradece ao Professor Rui Henrique Santos e à colega Marta Carvalho pelo apoio e comentários
sobre as versões iniciais deste artigo, bem como aos dois revisores anónimos pelas sugestões e comentários
muito úteis.
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A relação China-Rússia e a constituição da cultura da Organização para a Cooperação de Xangai
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eficaz a explicar quem faz parte da OI e as suas normas ideologia formal e informal,
argumentos causais e normativos que apresenta (Acharya & Johnston, 2007).
Neste sentido, a nossa variável independente será a 'relação sino-russa', mais
concretamente a identidade, os valores e as normas coletivamente partilhados por estes
Estados. Do ponto de vista teórico, numa relação a prática social e a cooperação repetidas
produzem significados intersubjetivos na estrutura social da relação que molda as
interpretações dos atores e disciplina-os (Hopf, 1998). Ademais, a cooperação
suficientemente iterada faz com que os atores "are simultaneously learning to identify
with each other - to see themselves as a "we" bound by certain norms" (Wendt, 1994:
390). Forma-se, assim, uma comunidade entre os agentes que partilham uma cultura
identificam-se positivamente um com o outro, partilham valores e normas comuns
(Schimmelfennig, 2003). Para efeitos de operacionalização da comunidade criada pela
relação sino-russa a nossa variável independente utilizaremos o modelo da Tabela 1,
que descreve competentemente as várias componentes de uma comunidade. Apesar do
modelo se referir à ‘identidade’, neste caso coletiva, este conceito pode utilizar-se de
forma indiferenciada com o de ‘relação’ ou ‘comunidade’ que aqui referimos, uma vez
que têm as mesmas componentes.
Tabela 1 - Quatro componente s da identidade coletiva
Fonte: adaptado de Abdelal et al. (2006)
A variável independente acima descrita explicará a nossa variável dependente ‘cultura
da OCX’ , que, a nosso ver, compreende os seguintes aspetos da tipologia de Acharya
e Johnston (2007): normas (ideologia formal e informal, argumentos causais e
normativos) e regras formais. Aqui, divergimos em parte dos autores porque
consideramos que a identidade, valores e normas partilhados pelos principais
empreendedores da OI, além de explicarem os membros e as normas da OI, também
explicam competentemente as suas regras, uma vez que elas o são mais do que a
materialização. institucionalização e codificação das normas. Não consideramos o aspeto
dos membros da OCX (quem integra) por limitações de espaço, o que nos obriga a
selecionar apenas os outros aspetos referidos, que consideramos mais relevantes. Na
Figura 1 é apresentada um esquema do desenho de pesquisa.
Normas constitutivas
Normas ou regras que definem a pertença
a um grupo
Propósitos sociais
Objetivos ou propósitos partilhados por um
grupo
Comparações relacionais
Visões e crenças coletivamente
partilhadas sobre outras identidades ou
grupos
Modelos cognitivos
Cosmovisões ou entendimentos
coletivamente partilhados sobre o mundo
que partilham, sobre interesses e
condições políticas ou materiais
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Figura 1 - Esquema do desenho de pesquisa
O argumento deste ensaio é que, sendo a ssia e a China os dois membros mais
influentes na criação e na ação da OCX, a sua relação influenciou fortemente a cultura
da OCX, que incorpora muitos dos seus elementos intersubjetivamente partilhados nos
dois aspetos considerados para a caraterizar normas e regras formais.
Na primeira secção caraterizaremos a relação sino-russa. Na segunda secção
explicaremos como o conteúdo intersubjetivo presente nesta relação determinou a
cultura da OCX, descrevendo-a. Na conclusão, o argumento do artigo é resumido e, a
partir dele, são levantadas algumas questões para investigação posterior.
A relação sino-russa
A visita de Boris Yeltsin à China em 1992 marcou o reatar das relações sino-russas (Lukin,
2018) após décadas marcadas por grande tensão durante a Guerra Fria. Após a adesão
dos ex-membros do Pacto de Varsóvia à NATO, a Rússia procurava novos parceiros numa
lógica de balancing em relação aos Estados Unidos da América (EUA), ao passo que a
China pretendia limitar a influência daquele país na região; estas circunstâncias aliadas
ao facto de, depois do embargo na sequência de Tiananmen, a Rússia ser um dos poucos
fornecedores de armas disponível, criou as condições para um entendimento e,
posteriormente, para uma parceria formal (Carlsson, M. et al., 2015). Entretanto, a
relação desenvolveu-se e aprofundou-se, mas, apesar de a cooperação ser significativa,
pauta-se também por elementos de desconfiança.
Do lado russo, a principal preocupação prende-se com o rápido crescimento da China,
que pode tornar este país numa ameaça à sua segurança no futuro (Ferdinand, 2013;
Horta, 2008). Do lado chinês, também incerteza quanto às verdadeiras intenções
russas. A China preocupa-se com a capacidade de a Rússia cumprir os seus
compromissos porque se tem mostrado frequentemente relutante em avançar com a
cooperação, nomeadamente a nível da indústria energética, das (incipientes) relações
económicas e comerciais, entre outros aspetos (Ferdinand, 2013). Estes fatores serão
importantes para explicar o facto de a cooperação sino-russa ser ainda algo limitada,
centrando-se “around energy, armaments, the common border, the UN Security Council
and the development of the Russian Far East(Carlsson, M. et al., 2015: 15).
Depois deste breve enquadramento, dedicamo-nos agora à descrição do conteúdo
intersubjetivamente partilhado na relação entre a China e a Rússia quanto aos quatro
aspetos identificados no modelo da Tabela 1. A prática social, em geral, e o discurso, em
particular, têm, para o construtivismo, o poder de reproduzir os significados
Variável dependente Cultura da OCX
Normas e regras formais da OCX (Acharya
e Johnston, 2007):
Variável independente Relação sino-russa
Normas constitutivas, propósitos sociais,
comparações relacionais e modelos
cognitivos da relação (Abdelal et al, 2006)
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intersubjetivos que constituem estruturas sociais (Hopf, 1998). Assim sendo,
utilizaremos uma análise essencialmente discursiva de posições que a Rússia e a China
tomaram em conjunto no âmbito da sua relação que permitem identificar as
componentes intersubjetivamente partilhadas que lhe subjazem.
Compartimentaremos a nossa análise em função das componentes que queremos
identificar segundo o modelo da Tabela 1: normas constitutivas, propósitos sociais,
comparações relacionais e modelos cognitivos (Abdelal et al., 2006). Renovamos a
chamada de atenção que os autores fazem para o facto de estes elementos não serem
mutuamente exclusivos, o que se traduzirá numa visível relação entre eles no nosso
argumento, apesar da tentativa de os compartimentar para fins analíticos.
As normas constitutivas designam as práticas que identificam os atores e levam outros
grupos a reconhecê-los, assim como os atributos e regras que determinam a pertença
àquele ator ou grupo (Abdelal et al., 2006). No caso da relação em questão, é notável,
em primeiro lugar, a ênfase que os atores colocam em esclarecer que não se trata de
uma aliança, mas sim de uma ‘parceria estratégica’. De facto, no primeiro comunicado
conjunto dos dois países (1992), que marcou o reatar de relações, está contemplado que
a friendly national relationship must be maintained and developed under the condition
of non-alliance(Ying, 2016: 3), o que tem sido constantemente reiterado pelos líderes
de ambos os países até hoje, assim como o facto de a parceria se destinar a promover o
interesse nacional de ambos e de não visar ser contra terceiros (Ying, 2016). A parceria
não prevê efetivamente nenhuma obrigação de defesa mútua em caso de agressão, como
seria de esperar se fosse uma aliança.
No entanto, foram estabelecidos alguns limites quanto à forma como os dois Estados se
relacionam. O Treaty of Good-Neighborliness and Friendly Cooperation Between the
People's Republic of China and the Russian Federation de 2001, momento em que se
formaliza esta relação, impõe, logo no primeiro artigo, mutual respect of state
sovereignty and territorial integrity, mutual non-aggression, mutual non-interference in
each other's internal affairs" (Foreign Ministry of the People’s Republic of China [FMPRC],
2001). Esta é uma norma fulcral desta relação e prevê também: a resolução pacífica de
conflitos; o respeito pelos caminhos de desenvolvimento de cada um; o reconhecimento
de que Taiwan faz parte da China (China retribui mais tarde no caso da Chechénia)
(FMPRC, 2001). Existe uma hipótese na literatura que afirma que a tónica na salvaguarda
da soberania e sobrevivência do regime se deve ao facto de os dois países terem regimes
autoritários ou semi-autoritários (e um legado histórico desta natureza) numa ordem
internacional que pressiona a democratização, assim como à circunstância de terem
sofrido inúmeras invasões de potências ocidentais (Ying, 2018).
O mesmo Tratado esclarece tamm outra norma desta relação, embora na prática seja
menos importante do que a anterior a cooperação win-win e a coordenação. O artigo
16 estabelece que the contracting parties shall conduct cooperation in such areas as
economy and trade, military know-how, science and technology, energy resources,
transport, nuclear energy, finance [e muitas outras]” (FMPRC, 2001). Com efeito, a
Rússia e a China estabeleceram, antes deste Tratado, cooperação a vários níveis e
anunciaram várias vezes a intenção mútua de a aprofundar. Desenvolveram também
mecanismos eficientes de consulta mútua e coordenação sobre várias matérias, o que se
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reflete numa frequente convergência de posições em muitos assuntos, nomeadamente
do foro internacional.
Podemos então concluir que a prática social da relação sino-russa, a nível de normas
constitutivas, revela que existe um entendimento intersubjetivo entre a China e a Rússia
de que não são uma aliança, mas sim dois atores com regimes autoritários ou semi-
autoritários zelosos da sua sobrevivência e indepenncia, que devem respeitar o modelo
de desenvolvimento/regime de cada um, assim como a segurança e soberania da outra
parte. Comprometem-se também a desenvolver cooperação win-win e coordenação a
vários níveis.
Noutra dimensão, os propósitos sociais referem-se aos objetivos associados a uma
identidade (Abdelal et al., 2006), neste caso, à relação sino-russa. Neste ponto, conm
distinguir duas dimensões de análise: propósitos sociais bilaterais e propósitos sociais
internacionais.
Os primeiros são, naturalmente, o fortalecimento da cooperação win-win e da
coordenação a vários níveis, como foi referido. Acrescenta-se também um frequente
destaque que é dado ao objetivo de reforçar a confiança mútua, nomeadamente a nível
da segurança, o que explica as manobras militares conjuntas a partir de 2005 (Lukin,
2018).
No que concerne aos propósitos sociais internacionais, existe o entendimento de que as
partes shall strive to promote the […] establishment of a new international order(China
& ssia, 1997: 987). Esta frase está presente na Joint declaration on a multipolar world
and the establishment of a new international order (1997), declaração marcante no que
toca aos propósitos sociais internacionais desta parceria. Esta intenção é reiterada em
várias declarações conjuntas subsequentes até aos dias de hoje. A Rússia e a China
expressam o entendimento intersubjetivo de que devem pugnar conjuntamente por uma
nova ordem internacional que tenha como princípios:
a multipolaridade, evitando hegemonia, power politics e conflito (China & Rússia,
1997);
mutual respect for sovereignty and territorial integrity, mutual non-aggression, non-
interference in each other's internal affairs[...] [as the] the basis for a new
international order” (China & Rússia, 1997: 987);
Every country has the right independently to choose its path of development [...]
without interference from other States” (China & Rússia, 1997: 987);
A coexistência pacífica, o multilateralismo e a resolução pacífica de conflitos (China &
Rússia, 1997);
the role of the United Nations and the Security Council must be strengthened […].
They believe that the United Nations, as the most universal and authoritative
organization of sovereign States, has a place and role in the world that cannot be
supplanted by any other international organization (China & Rússia, 1997: 988);
the strengthening and expansion of trade, economic, scientific, technical and
humanitarian exchanges and cooperation on the basis of equality and mutual
advantage” (China & Rússia, 1997: 987);
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the developing countries […] should take their rightful place in the future new
international order and participate in international affairs on an equal and non-
discriminatory basis.” (China & Rússia, 1997: 988).
Concluímos assim que os propósitos sociais intersubjetivamente partilhados entre a
China e a Rússia são, a nível bilateral, o aprofundamento da cooperação, coordenação e
confiança mútua, ao passo que a nível internacional se prendem com a promoção de uma
nova ordem internacional. Neste sentido, os atores entendem que devem promover a
multipolaridade, o respeito pela soberania dos Estados acima de tudo, a coexistência
pacífica, o multilateralismo, o reforço e primazia da Organização das Nações Unidas
(ONU), a cooperação win-win e a igualdade, valorizando os países em desenvolvimento
que devem ser tratados de uma forma o-discriminatória. Salientamos que, à
semelhança das normas constitutivas da relação, também neste ponto se both
governments attaching primary importance to resisting ‘external interference’ in
domestic affairs and preserving the right to pursue an ‘autonomous path’ of political
development(Dueben, 2013: 89).
Olhamos, então, agora para a componente da comparação relacional no consenso
intersubjetivo presente nesta relação, ou seja, de referências em relação à identidade de
outros grupos dos quais se distingue (Abdelal et al., 2006). O binómio ‘eu-outro’ é
importante no discurso da relação sino-russa, apesar de não ser muito expcito,
nomeadamente na contraposição com os países desenvolvidos ou Ocidente, no geral, e
com os EUA, muito especialmente. Expressam muitas vezes reticências acerca da
unipolaridade americana, desejando a multipolaridade, uma vez que a primeira leva a
hegemonia, power politics, unilateralismo e monopolização dos assuntos internacionais,
que condenam (China & Rússia, 1997; FMPRC, 2008). Afirmam-se também contra a
politicization of human rights issues” (FMPRC, 2008), que encaram como pretexto para
o Ocidente e os EUA violarem a soberania dos países e interferirem nos seus assuntos
internos. Denunciam ainda um conjunto de tendências negativas nas relações
internacionais que são encorajadas pelos EUA:
“efforts to downplay the role of the United Nations and its bodies, NATO’s
attempts to assume the functions of the UN Security Council, interference in
the internal affairs of sovereign states, support for separatist movements,
NATO’s expansion, the secession of the US from the ABM Treaty and refusal
to join some other international agreements” (Lukin, 2018: 103).
No entanto, não os tomam como inimigos diretos ou imediatos, uma vez que afirmam
procurar a cooperação com os países desenvolvidos (e com os EUA), reconhecendo-lhes
até um papel fundamental para apoiar os países em desenvolvimento chegam até a
exigir “increase development aid to developing countries” (FMPRC, 2008).
Por último, o modelo cognitivo diz respeito à worldview, or a framework that allows
members of a group to make sense of social, political, and economic conditions(Abdelal
et al., 2006: 8), isto é, a forma como veem o mundo e como se posicionam no mesmo,
o que lhes permite intuir significados sobre fenómenos e factos da realidade uma
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espécie de ontologia e epistemologia intersubjetivamente partilhada pelos atores
expressa na relação (Abdelal et al., 2006).
A ssia e a China percecionam a existência de um mundo onde persistem power politics,
conflito, unilateralismo, hegemonia e umaglobal economy [..] increasingly imbalanced
(FMPRC, 2008). Todavia, consideram que the trend towards a multi-polar world is
irreversible” (FMPRC, 2008). Neste sentido, percecionam também que o poder e
importância dos países em desenvolvimento, especialmente da Rússia e da China, estão
a crescer, logo consideram ter cada vez mais capacidade de influenciar os assuntos
internacionais, assim como de promover a ordem internacional que desejam conforme a
descrevemos.
As conclusões desta secção estão sumarizadas na seguinte tabela:
Tabela 2 - Conteúdo do consenso intersubjetivo da relação sino-russa
A influência da relação sino-russa na cultura da OCX
Esta secção procura mostrar que o consenso intersubjetivo da relação sino-russa
influenciou fortemente a cultura da OCX, que, como foi explicado na parte introdutória,
é indicativa de dois aspetos regras formais e normas. Começamos por uma breve
resenha histórica do surgimento da OCX. De seguida, analisamos as semelhanças do
conteúdo do conteúdo intersubjetivamente partilhado na relação sino-russa com o
conteúdo da cultura da OCX primeiro, em relação às regras formais; segundo, quanto
às normas da OCX.
Alexander Lukin (2018) explica que o nascimento da OCX deriva do Shanghai Process,
que surgiu poucos anos após o fim da Guerra Fria, envolvendo inicialmente cinco países
- Rússia, China, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão para resolver disputas
fronteiriças. Este processo é, por sua vez, uma extensão das negociações fronteiriças
entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a China aos outros três
Estados. Os acordos durante o Shanghai Process estabeleceram rios compromissos do
ponto de vista militar, desde consultas regulares a obrigações de abstenção de uso da
força contra outros. Em 2001, estes cinco países, juntamente com o Uzbequistão,
fundaram a OCX, formalizada em 2002, sinal da sua vontade de alargar e aprofundar a
cooperação. Depois de resolverem as suas disputas fronteiriças, os participantes
decidiram prolongar a sua cooperação para endereçar coletivamente os desafios
securitários não-convencionais que proliferaram após o colapso da URSS (Aris, 2011). A
Normas
constitutivas
Não-coligação; soberania; cooperação e coordenação
Propósitos
sociais
Bilaterais - desenvolver cooperação, coordenação e confiança mútua
Internacionais - pugnar por nova ordem internacional: multipolar, respeito
pela soberania, coexistência pacífica, multilateralismo, refoo e primazia
da ONU, cooperação win-win e igualdade, empoderando os países em
desenvolvimento
Comparações
relacionais
Contraposição com Ocidente e especialmente EUA, condenados por
promoverem hegemonia, unilateralismo, power politics , conflito e violação
de soberania
Modelo cognitivo
Mundo ainda desequilibrado em favor do Ocidente e dos EUA, mas que
inevitavelmente se tornará multipolar. Progressivamente maior poder e
influência da China e da Rússia nos assuntos internacionais
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OCX identifica-se, assim, como uma OI que atua no espaço geopolítico da Eusia e cujo
objetivo principal é combater os desafios securitários não-convencionais que assolam a
região, especialmente o terrorismo, o separatismo e o extremismo, mas também o crime
organizado como o tráfico de droga (Aris, 2011).
É, contudo, consensual na literatura que a China and Russia are the twin engines of
the SCO [OCX](Albert, 2015), ou seja, os atores mais influentes da OCX, o que
explica que a sua relão seja, por sua vez, tão influente na cultura da organização.
Isto é também visível no facto de as suas línguas oficiais e de trabalho serem o
chinês e o russo (OCX, 2002).
De facto, uma grande incorporação das normas constitutivas da relação sino-russa
nas regras formais da OCX. O artigo 2 da Carta da OCX, relativo aos princípios, afirma
que os Estados aderem a mutual respect of sovereignty, independence, territorial
integrity of States and inviolability of State borders, non-aggression, non-interference in
internal affairs, non-use of force or threat of its use in international relations (OCX,
2002: 3). À semelhança da relação sino-russa, também na OCX os atores expressam
formalmente um entendimento sobre a suma importância de respeitar a soberania e
segurança de cada um. A OCX, de igual forma, o cria nenhuma obrigação de defesa
de qualquer membro em caso de ataque o é uma aliança. Coincide ainda no objetivo
de encouraging efficient regional cooperation in such areas as politics, trade and
economy, defense, law enforcement, environment protection, culture, science and
technology, education, energy, transport, credit and finance, and also other areas(OCX,
2002: 2).
Concluímos que as normas constitutivas da relação sino-russa respeito pela soberania,
não confrontação, resolução pacífica das disputas entre membros, e compromisso a
cooperar em várias áreas foram incorporadas na cultura da OCX e institucionalizadas
nas suas regras formais. As semelhanças do ponto de vista das regras formais, que
refletem consensos normativos, o evidentes, e é curioso observar que até a linguagem
dos documentos oficiais em ambos os contextos é idêntica. A OCX dispõe de um arranjo
institucional mais sofisticado e complexo (com vários órgãos como, por exemplo, um
secretariado) devido ao facto de ser uma OI de facto. Ainda assim, argumentamos que
a estrutura e funcionamento da OCX em tudo reflete as prioridades normativas dos
membros e, logicamente, também da China e da Rússia. O facto de todas as decisões
(exceto as relativas a expulsão ou suspensão de membros da OCX) serem tomadas por
unanimidade, conforme o artigo 16 da Carta, reflete a prioridade absoluta dada pelos
atores à sua soberania e independência, que já vimos que deriva da relação sino-russa.
A OCX assume, assim, um caráter intergovernamental, em que as decisões, salvo a
exceção apontada, nunca são tomadas contra a vontade de um dos membros. Isto é
visível também no facto de o Conselho de Chefes de Estado ser the supreme SCO body
(OCX, 2002: 2). O Secretariado, órgão executivo que representa somente a OCX, é
nomeado pelo Conselho de Chefes de Estado por unanimidade e tem as fracas
capacidades de fornecer apoio técnico, fazer propostas não vinculativas e de
supervisionar aplicação de decisões de outros órgãos. Não tem a capacidade autónoma
de decidir ou legislar isso está reservado aos órgãos com representantes dos Estados-
membros e condicionados pela regra da unanimidade.
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Mesmo na prática efetiva da OCX, é visível esta prioridade dada à soberania dos seus
atores. De longe, a área de cooperação mais avançada é “in the field of security, above
all in combating […] extremism and terrorism, often linked to separatist movements and
international fundamentalist organizations (Lukin, 2018: 120). Podemos argumentar
que a prioridade dada a esta área de cooperação se deve ao facto de estes fenómenos
serem uma ameaça direta à integridade territorial dos atores, que é uma prioridade
intersubjetivamente partilhada. De facto:
Central Asian elites […] consider internal security as the most important
concern to their regimes, because of the perceived threat such internal
dynamics pose to both the legitimacy of their regimes and the territorial
integrity of the state(Aris, 2011: 101).
Por exemplo, Lukin (2018) nota que, no âmbito da cooperação económica multilateral,
não existe ainda nenhum projeto implementado, apenas planos e declarações de intenção
há, no entanto, a vel bilateral num contexto extrainstitucional. Os Estados, apesar
de integrarem uma OI com vista a cooperar, permanecem muito ciosos da sua
autonomia, o que é um entrave ao aprofundamento da cooperação em sede da OCX que
é, assim, ainda bastante limitada. Este consenso normativo sobre uma lógica de
preservação de soberania e de cooperação limitada é em tudo semelhante à relação sino-
russa. Aliás, a Rússia é quem frequentemente impede o aprofundamento da cooperação
em sede da OCX, nomeadamente a nível económico, mas não (Lukin, 2018; Horta,
2008). Como vimos, além da disparidade económica assinalável em relação à China,
a Rússia tem rejeitado a agenda económica daquele país para a OCX devido à persistência
de “phobias about the rise of China and its growing influence in Russia’s traditional zone
of interest, Central Asia” (Gabuev, 2017).
O modelo de cooperação estadocêntrico da OCX apresenta a aparente contradição de
coadunar a proteção da soberania estatal com uma resposta regional coordenada a
ameaças securitárias que não respeitam este princípio, sendo transnacionais e não-
estatais por natureza (Aris, 2011). Ainda assim, tem sido possível construir uma
arquitetura institucional eficaz no combate ao terrorismo, separatismo e extremismo,
embora pouco densa (Aris, 2011). No entanto, o aprofundamento da cooperação e a sua
extensão a outras áreas revela-se difícil. Em primeiro lugar, os Estados-membros
privilegiam a sua soberania e integridade territorial, o que os leva a desejar cooperar
somente nas áreas mencionadas por representarem uma ameaça direta a estes objetivos
e a resistir em abdicar do controlo de prerrogativas nacionais (Aris, 2011). Em segundo
lugar, persistem desconfianças entre a China e a Rússia já analisadas, disputas entre os
Estados mais pequenos e receio destes Estados em relação à Rússia e à China (Horta,
2008). A entrada da Índia e do Paquistão veio agravar este problema não devido ao
conhecido antagonismo entre os dois países, mas também devido à rivalidade entre a
China e a Índia, que cresce em virtude das disputas fronteiriças e à medida que este
último se aproxima dos EUA (Gabuev, 2017).
Avançamos então para as normas da OCX, isto é, a ideologia formal e informal da OI,
assim como os argumentos causais e normativos que apresenta sobre os assuntos
internacionais (Acharya & Johnston, 2007). Também aqui é visível a grande incorporação
de elementos do entendimento intersubjetivo. Em primeiro lugar, também a OCX se
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destina à promotion of a new democratic, fair and rational political and economic
international order (OCX, 2002: 2). No entanto, uma simples análise da Carta é
insuficiente para aferir a convergência entre as duas propostas de uma nova ordem
internacional. Temos, então que recorrer a uma análise discursiva da OCX para perceber
se houve efetivamente uma incorporação de normas, valores, propósitos sociais,
modelos cognitivos e comparações relacionais na cultura da OCX quanto à relação sino-
russa.
Assim, analisaremos comunicados à imprensa do Conselho de Ministros dos Negócios
Estrangeiros da OCX, principal órgão que expressa entendimentos entre os membros
relativos aos assuntos internacionais. Na impossibilidade de analisar todos, olharemos
para 6 destes comunicados 2002, 2003, 2005
2
, 2016, 2017 e 2018. Por um lado, é um
conjunto significativo o suficiente para afirmar a presença ou ausência de determinados
elementos na cultura da OCX. Por outro lado, permite perceber a evolução temporal
destes elementos se se mantêm ou não e se a sua expressão se reforça ou enfraquece.
Elencamos um conjunto de aspetos considerados mais importantes no entendimento
intersubjetivo da relação sino-russa, que podem não ser mutuamente exclusivos, e
testamos a sua presença nos 6 documentos referidos:
‘Soberania’ – referência à importância de preservar a integridade territorial ou a não-
ingerência externa em assuntos domésticos de um Estado, quer enunciado como
princípio a implementar no geral, quer no contexto de um acontecimento concreto;
‘Igualdade’ referência à necessidade de as relações internacionais serem mais
igualitárias, com tratamento não-discriminatório e igual para todos, quer enunciado
como princípio a implementar no geral, quer no contexto de um acontecimento
concreto;
‘ONU’ – referência à necessidade de reforçar o papel da ONU; ou ao papel primordial
conferido à ONU nas relações internacionais; ou apelo à intervenção da ONU,
considerada essencial, numa determinada situação;
‘Ocidente’ denúncia e condenação de comportamentos do Ocidente ou a ele
atribuídos implícita e obviamente;
‘Paz’ referência à necessidade de paz e de resolução pacífica de conflitos, quer
enunciado como princípio a implementar no geral, quer no contexto de um
acontecimento concreto;
‘Cooperação’ – referência à vontade e disponibilidade da OCX cooperar ou coordenar-
se com outras OI ou Estados, quer no geral, quer no contexto de um acontecimento
concreto.
Olhando para a Tabela 3, verificamos que, à exceção de ‘Ocidente’, todos os restantes
elementos intersubjetivamente partilhados na relação sino-russa são constante e
consistentemente expressados na prática social da OCX, o que constitui uma prova
empírica quer para considerá-los parte da cultura da OCX, quer para afirmar que, de
facto, a cultura da OCX foi fortemente influenciada pela relação sino-russa.
2
O de 2004 não está disponível.
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Tabela 3. Coincidência (‘X’) de elementos da relação sino-russa na cultura da OCX
Também podemos afirmar que condenação do Ocidente elemento ‘Ocidente’ faz parte
da cultura da OCX, embora com menos força. A partir de 2016, verificamos uma aguda
e constante crítica por parte da OCX a ações do Ocidente: crítica ao sistema de defesa
antimíssil instalado pelos EUA na Roménia em 2016 (OCX, 2016); crítica à mentalidade
de Guerra Fria e à interferência em assuntos internos de países (OCX, 2017), ambos
associados implicitamente ao Ocidente; condenação das pressões unilaterais do Ocidente
a Estados e concretamente ao ataque de mísseis de França, EUA e Inglaterra à Síria
(OCX, 2018). Sem dúvida que este elemento faz parte da cultura da OCX. O facto de não
ser visível nos anos inicias da OCX pode dever-se à sua necessidade de, numa fase inicial,
se afirmar, prestigiar e legitimar na sociedade internacional.
Em relação aos outros elementos, a OCX reiteradamente expressa a importância do
principle of respect for state sovereignty, non-interference in internal affairs of states
(OCX, 2016: 2), condenando casos de violações de soberania, como no caso sírio (OCX,
2018). Também afirma sempre vontade e necessidade de cooperar com outras OI e
Estados, tanto no geral (OCX, 2018), como para solucionar problemas concretos.
Salvaguarda, no entanto, que esta cooperação tem que ser em termos de igualdade
(OCX, 2002; OCX, 2005). Reforça frequentemente a necessidade de relações
internacionais baseadas em mutual trust, justice, equality, mutually beneficial
cooperation (OCX, 2018: 3). uma constante ênfase na preservação da paz e
resolução pacífica de conflitos como, por exemplo, no caso norte-coreano (OCX, 2005;
OCX, 2017), mas também quanto ao Afeganistão, Irão e Iraque. Por fim, o papel
fundamental da ONU é sempre reiterado, quer como the most universal, representative
and authoritative international organization (OCX, 2017: 3), quer apelando ao seu
reforço (OCX, 2003) e à importância da sua intervenção em casos concretos (OCX, 2002).
Nesta secção aferimos que o consenso intersubjetivo da relação sino-russa influenciou
fortemente a cultura da OCX, nomeadamente quanto às suas regras formais e normas.
A nível de regras formais, foram incorporados legalmente os princípios da soberania,
autonomia, não-aliança e cooperação em várias áreas, o que se reflete no caráter
intergovernamental da OCX e no facto de as decisões serem tomadas por unanimidade.
Acabamos também por argumentar que o facto de a cooperação ser limitada privilégio
do combate ao terrorismo, separatismo e extremismo, ao passo que outras áreas são
marginais - se deve ao entendimento intersubjetivo que subjaz às regras formais. A nível
das normas, a OCX incorporou em grande medida o conteúdo das ideias relativamente
aos assuntos internacionais presente na relação sino-russa: o primado da soberania; a
necessidade de mais igualdade nas relações internacionais; o papel fundamental da ONU;
2002 2003 2005 2016 2017 2018
Soberania X X X X X
Igualdade X X X X X
ONU X X X X X X
Ocidente X X X
Paz X X X X X X
Cooperação X X X X X X
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a crítica às ações do Ocidente; a salvaguarda da paz e da resolução pacífica de conflitos;
o desejo de cooperação com outras OI e Estados.
Conclusão
O argumento deste ensaio é que, sendo a ssia e a China os dois membros mais
influentes na criação e na ação da OCX, a sua relação influenciou fortemente a cultura
da OCX, que incorpora muitos dos seus elementos intersubjetivamente partilhados nos
dois aspetos considerados para a caraterizar normas e regras formais.
O conteúdo intersubjetivamente partilhado na relação sino-russa consiste, a nível das
normas constitutivas, na não-coligação, soberania, cooperação e coordenação. quanto
aos propósitos sociais, podem distinguir-se os bilaterais desenvolver cooperação,
coordenação e confiança mútua dos internacionais - pugnar por nova ordem
internacional multipolar, respeitadora da soberania e marcada pela coexistência pacífica,
pelo multilateralismo, pelo reforço e primazia da ONU, assim como pela cooperação win-
win e igualdade, empoderando os países em desenvolvimento. Existe uma comparação
relacional que contrapõe os atores com o Ocidente, especialmente os EUA, condenados
por promoverem hegemonia, unilateralismo, power politics, conflito e violação de
soberania. Em termos de modelo cognitivo, percecionam um mundo ainda desequilibrado
em favor do Ocidente e dos EUA, mas que inevitavelmente se tornará multipolar, com
progressivamente maior poder e influência da China e da Rússia nos assuntos
internacionais.
Olhando para os dois aspetos escolhidos para a avaliar a cultura da OCX, podemos aferir
que o conteúdo intersubjetivo da relação sino-russa a influenciou fortemente. A nível de
regras formais, foram incorporados legalmente os princípios da soberania, autonomia,
não-aliança e cooperação em várias áreas, o que se reflete no caráter intergovernamental
da OCX e no facto de as decisões serem tomadas por unanimidade. Argumentamos
também que o facto de a cooperação ser limitada, prevalecendo a nível do combate ao
terrorismo, separatismo e extremismo, se deve ao entendimento intersubjetivo que
subjaz às regras formais. A nível das normas, a OCX incorporou em grande medida o
conteúdo das ideias relativamente aos assuntos internacionais presente na relação sino-
russa: o primado da soberania; a necessidade de mais igualdade nas relações
internacionais; o papel fundamental da ONU; a crítica às ões do Ocidente; a
salvaguarda da paz e da resolução pacífica de conflitos; o desejo de cooperação com
outras OI e Estados.
É possível alegar que a OCX é quase uma exteno da relação sino-russa (mas com mais
participantes) dadas a coincidência clara do ponto de vista normativo, identitário e
valorativo, salvo as diferenças do ponto de vista institucional, que a OCX é uma OI
formal com órgãos próprios. No entanto, é necessária investigação posterior que explique
as causas da sua formação com base na relação sino-russa. Parece no mínimo paradoxal
a própria criação e durabilidade desta mesma organização quando a cooperação é tão
limitada e quando existem profundos antagonismos e desconfianças entre alguns dos
membros, o que se torna ainda mais paradoxal com a entrada da Índia, com quem a
China tem uma relação hostil, e do Paquistão, rival da Índia, em 2017. Albert (2020)
nota que as disputas entre a China e a Índia, a pressão do Paquistão para marginar a
Índia na OCX e o aprofundamento das relações sino-russas estão a colocar pressão na
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OCX, nomeadamente quanto à sua capacidade de promover boas relações entre os
membros, que a Índia parece cada vez mais excluída no reduto da OCX. Será
interessante observar como é que OCX confrontará estes desafios que parecem poder
comprometer seriamente a sua eficiência.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
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OS ODS EM ÁFRICA, NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS
TÂNIA LIBÓRIO
tsliborio@gmail.com
Doutorada em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais, Universidade de Évora.
Pós-Doutorada em Cooperação Internacional, Universidade de Évora (Portugal).
Resumo
No mundo atual é fundamental refletirmos sobre a problematização dos valores e do papel
das ONG’s no âmbito da solidariedade e do voluntariado, promovendo assim o
desenvolvimento pessoal, social e cultural dos indivíduos e tornando-os parte da cidadania
ativa e comprometida neste mundo que tão pouco ainda tem de solidário.
Neste sentido, é importante que todos nós estejamos de “olhos postos” nos movimentos
solidários e que sejamos os primeiros intervenientes no sentido de ajudar, defender e
cooperar, em diferentes áreas, com outras realidades.
Nesta era global, onde interage a riqueza e a pobreza, transparecendo as suas potencialidades
e vulnerabilidades, emerge a convicção de enfrentar essa diversidade pela cooperação em
nome da educação e das atitudes que podem transformar. As ONGs desempenham um papel
catalisador capaz de promover o desenvolvimento e em cooperação com a consecução dos
ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Este artigo tem como objetivo, apresentar as missões realizadas no continente africano, em
prol da realização dos ODS estipulados pela ONU; missões estas integradas em projetos,
levados a cabo por voluntários de uma ONG portuguesa, a AMI Assistência Médica
Internacional e demonstrar como a sua atuação consegue promover a cooperação e o
desenvolvimento sustentável das comunidades nas quais atua, bem como a defesa dos
Direitos Humanos.
Não podemos ficar alheios a um movimento solidário global, os voluntários contribuem de
modo fundamental para a cooperação e para a ajuda aos países mais necessitados, sendo
que, a principal “arma” de desenvolvimento de um país, acreditamos que é a educação pelos
Direitos Humanos.
Palavras-chave
ONG’s, África, Voluntariado, Direitos Humanos, ODS
Como citar este artigo
Libório, Tânia (2021). Os ODS em África, na luta pelos direitos humanos. Janus.net, e-journal
of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.5
Artigo recebido em 4 Março 2020 e aceite para publicação em 8 Fevereiro 2021
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Os ODS em África, na luta pelos direitos humanos
Tânia Libório
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OS ODS EM ÁFRICA, NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS
TÂNIA LIBÓRIO
Introdução
Com o propósito de demonstrar a importância e o impacte que os ODS Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável têm na atuação das ONG’s, e especificamente na AMI,
através dos seus projetos pelo mundo, iremos analisar a sua importância em África,
numa perspetiva de aprendizagens e experiências das comunidades, e em várias
vertentes, somos nós, que devemos estar de “olhos postos” nas necessidades e nos
pedidos prementes da nossa sociedade, para enfrentarmos o futuro de um modo mais
justo e harmonioso e na luta pelos Direitos Humanos.
Os meios de ação das ONG’s na defesa das suas causas, são em termos genéricos, as
formas através das quais estas tentam, ou persuadir os Estados e as instituições a
alterarem os seus comportamentos ou políticas, ou denunciam situações de violações de
Direitos Humanos, põem em prática projetos de ajuda humanitária, ou procedem ainda
à mediação de negociação pacífica de conflitos, promovendo deste modo, o
desenvolvimento do país.
Os desafios dos Direitos Humanos em África
A constelação dos Direitos Humanos vive hoje um momento de turbulência. Esta
turbulência revela-se sobretudo com um impasse, em que ficam evidentes os limites dos
Direitos Humanos convencionais, uma linguagem de dignidade cuja hegemonia é hoje
incontestável (Santos, 2015: 33).
Identificam-se três tensões, que, ao mesmo tempo, são constitutivas da presente
turbulência e representam um desafio para uma ressignificação emancipatória dos
direitos humanos à luz das epistemologias do Sul. A primeira diz respeito à tensão entre
o direito ao desenvolvimento e a incessante devastação ambiental do planeta. A segunda
refere-se à tensão entre as aspirações coletivas de povos indígenas, afrodescendentes e
camponeses e o individualismo que marca o none originário dos direitos humanos. A
terceira refere-se à tensão que resulta da inadequação da linguagem de direitos, e em
particular dos direitos humanos, para reconhecer a existência de sujeitos não humanos
(Rodriguez-Garavito, 2005: 42).
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Os ODS em África, na luta pelos direitos humanos
Tânia Libório
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Deste modo, a hegemonia de uma conceção universal de dignidade humana subjacente
aos direitos humanos, baseada em pressupostos ocidentais, reduz o mundo ao
entendimento que o ocidente tem dele, ignorando ou trivializando deste modo
experiências culturais e políticas decisivas em países do sul global. Este é o caso dos
movimentos de resistência contra a opressão, marginalização e exclusão que têm vindo
a emergir nas últimas décadas e cujas bases ideológicas pouco ou nada têm que ver com
as referências culturais e políticas ocidentais dominantes ao longo do século XX (Santos,
2019: 54).
O discurso dos direitos humanos desempenha um papel importante no desafio à ordem
do mundo refletida no conceito de “cadeia dos seres” e, apesar de não aparentar,
antecipa o discurso da colonialidade. Com a transição, no século XX, dos “Direitos do
Homem” para os direitos humanos, pode observar-se mais claramente até que ponto
esses direitos constituem um apelo à assimilação do humano e das formões
sociopolíticas por parte do ideário ocidental, assim como substitutos de uma efetiva
descolonização. “Os Direitos do Homem” proclamados até finais do século XVIII podem
ser entendidos como fazendo parte de uma revolta contra a monarquia hereditária, a
nobreza e as hierarquias medievais (Wallerstein, 1991: 95).
Deste modo, numa situação em que os direitos, o Estado de direito e a democracia são
apresentados como o bem supremo, um valor humano universal, uma panaceia para
todos os males em África, é importante recordar que não a doença, mas também o
medicamento disponível são histórica e socialmente determinados. A natureza não
colocou como condição original, por um lado, o Norte civilizado, desenvolvido, rico e
poderoso e, por outro, o Sul atrasado, subdesenvolvido, pobre e impotente.
Esta condição foi criada historicamente através da aplicação de violência “universal”. Por
sua vez, a violência, a força e a dominação foram legitimadas e racionalizadas através
de camadas, histórica e socialmente determinadas, das linguagens da religião, da raça,
da cultura, da etnicidade, entre outras, tendo todas elas, em momentos diferentes,
alegado a sua superioridade e a sua universalidade, tal como a ideologia dos direitos
humanos o faz hoje (Shivji, 1989: 23).
Os direitos humanos não são atributos absolutos inerentes a todos os seres humanos,
como condição original, para serem descobertos com o progresso e a civilização, neste
caso, presumivelmente, a civilização ocidental, cristã e europeia, são isso sim, um
produto de circunstâncias históricas e de lutas sociais (Shivji, 1989: 24).
É verdade que na maior parte do mundo afro-asiático, antes de pegar em armas, os
povos colonizadores sentiram espontaneamente a necessidade de “purgar” a sua
consciência da inferioridade racial inventada e inculcada pelos senhores coloniais. Esta
necessidade assumiu variadas formas ideológicas em diferentes situações concretas, mas
no fim de contas tratou-se de uma reconstrução da ideologia racial dominante para
produzir “ideologias de resistência” (Gibbon, 1992: 93).
Assim, durante as duas primeiras décadas de independência em África, o discurso dos
direitos humanos evoluiu com um contraponto ao discurso desenvolvimentista. As
variantes dominantes deste último assentavam numa das várias teorias de
desenvolvimento social. Em África, nas duas primeiras décadas do período pós-
independência assistiu-se a um debate intenso entre duas escolas de pensamento, a da
modernização e a do subdesenvolvimento/depenncia (Hettne, 1990: 49).
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Do lado dos direitos humanos, assistiu-se ao evoluir de paradigmas como o da
indivisibilidade dos direitos humanos, o das necessidades fundamentais como um todo.
Foi neste contexto que, o discurso dos direitos humanos fez a sua entrada forçada em
cena no palco africano, no final da década de 1970 (Gibbon, 1992: 95).
O impacte da Intervenção humanitária no mundo
No início do século XXI, a tensão entre a afirmação de uma humanidade comum como
protagonista dos direitos humanos e a recorrente criação de novas discriminações e
exclusões que negam essa pertença comum à humanidade, continua a marcar os debates
em torno das conceções da dignidade humana e do que significa ser humano, reiterando,
em diferentes versões, o problema de como afirmar, simultaneamente, a igualdade e o
reconhecimento da diferença (Santos, 2004: 45).
Na cosmovisão europeia em que se funda a formulação dos direitos humanos, no século
XVIII, os homens nascem livres e iguais. O ser humano autónomo e dotado de razão é
reconhecido como o sujeito desses direitos. Mas esta conceção é marcada, desde a sua
origem, pelas exclusões de uma parte da humanidade dessa condição de sujeitos de
direitos. Às mulheres, às crianças, aos escravos, aos povos colonizados, àqueles que são
declarados como privados da capacidade para a autonomia e razão, essa igualdade criada
pelo nascimento foi negada ou condicionada. O século XX trouxe o reconhecimento da
humanidade de muitas das pessoas, grupos ou comunidades excluídas, e chegou mesmo
a suscitar a discussão sobre a ampliação dos direitos humanos a entidades não-humanas.
As violações dos direitos humanos e da dignidade humana passam a ser expressas como
ameaças à vida ou à integridade dos corpos sujeitos a violência ou sofrimento
desnecessários. A resposta é a intervenção destinada a salvar vidas e aliviar o
sofrimento, suspendendo a referência às diferenças e desigualdades, para tratar cada
ser humano como um ser vulnerável ao sofrimento, ameaçado pela violência, seja ela
decorrente da ação humana ou de desastres imputados à natureza (Santos, 2019: 68,
69).
A humanidade enquanto espécie, aparece exposta a formas de sofrimento que exigem
resposta pela intervenção em situações em que a vida ou a integridade física de seres
humanos se encontra em perigo iminente. A intervenção humanitária, exige escolhas
entre o sofrimento, que, em determinado momento, merece uma resposta e aquele que
é excluído dessa resposta (James, 2010: 23).
A humanidade que não foi feita para sofrer” inclui, de facto, várias humanidades,
diferentes na definição do que conta como sofrimento que merece intervenção urgente.
Assim, “a capacidade de sofrer é, claramente, uma parte do que é ser humano. Mas nem
todo o sofrimento é equivalente” (Farmer, 2005: 91). E nem todas as vidas, confrontadas
com o sofrimento, são tratadas com a mesma dignidade e reconhecimento, mesmo na
morte (Butler, 2010: 32).
O humanitarismo, inspirado inicialmente pela Criação da Cruz Vermelha, no século XIX,
assumiu um novo perfil e uma nova face a partir da década de 1970, através de uma
posição que postulava passar por cima do respeito pela soberania dos Estados para
responder a crises reconhecíveis pela ameaça à vida e à integridade física de populações
ou grupos humanos, que exigiriam alguma forma de intervenção orientada para o alívio
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do sofrimento e para a necessidade de salvar vidas em perigo. Alguns dos protagonistas
desse novo humanitarismo, viriam a propor a ideia de um “direito de ingerência”,
implicando ir muito além da assistência humanitária baseada numa estrita neutralidade
em relação às partes envolvidas nas situações em causa, e problematizando, um dos
mais antigos e problemáticos princípios em que assentava o humanitarismo (Fassin,
2010: 281).
Um olhar mais próximo sobre a prática da intervenção humanitária mostra que, além das
suas diferenças em relação a ões explicitamente orientadas para a denúncia de
violações dos direitos humanos, o humanitarismo atua em nome da defesa da “dignidade”
(Redfield, 2013: 22).
O objetivo já não é a defesa em geral dos direitos humanos ou a tentativa de contribuir
para melhorar a condição humana em situações que ofendem a dignidade humana, mas
aliviar o sofrimento onde e quando este ocorrer, assim como salvar vidas, através de
intervenções de emergência.
O humanitarismo e as suas políticas, encontram assim a legitimação de uma forma de
intervenção que não demorou em abrir crises e tensões, que persistem no seio de
algumas das organizações que, com inegável coragem, generosidade e abnegação,
procuram dar resposta às existências precárias de seres humanos que, enquanto pessoas
e coletivamente, são vítimas de formas extremas de opressão e violência (Ticktin, 2011:
17).
Os desafios dos ODS
Para criar um mundo mais sustentável e para se envolverem com questões relacionadas
com a sustentabilidade, e com os ODS, os indivíduos devem tornar-se agentes de
mudança para a sustentabilidade. Eles precisam de conhecimentos, habilidades, valores
e atitudes que lhes permitam contribuir para o desenvolvimento sustentável. A educação
é, portanto, crucial para a consecução deste desenvolvimento (UNESCO, 2017: 67).
Os 17 ODS e as 169 metas demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda
Universal, construindo-se sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e
concluirão o que estes não conseguiram alcançar. Eles buscam concretizar os Direitos
Humanos de todos e alcançar a igualdade de género e o empoderamento das mulheres
e meninas, e são integrados e indivisíveis, equilibrando as três dimensões do
desenvolvimento sustentável: a económica, a social e a ambiental.
Nunca, antes, os deres mundiais se comprometeram a uma ação comum e uma agenda
política tão ampla e universal. Estão a criar juntos um caminho rumo ao desenvolvimento
sustentável, dedicando-se coletivamente à busca do desenvolvimento global e da
cooperação vantajosa para todos, que podem trazer enormes ganhos para todos os
países e todas as partes do mundo. Cada país enfrenta desafios específicos em busca do
desenvolvimento sustentável.
Hoje, também, a decisão reverte-se de maior importância histórica, ao construir um
futuro que possa representar uma significativa melhoria para todas as pessoas, incluindo
às quais foi negada a hipótese de alcançar o seu pleno potencial humano. Nós podemos
ser a primeira geração a ter sucesso em acabar com a pobreza; assim como também a
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última a ter uma hipótese de salvar o planeta. O mundo poderá ser um lugar melhor em
2030 se alcançarmos os nossos objetivos (NAÇÕES UNIDAS, 2015).
Para os objetivos serem alcançados, todos precisam de fazer a sua parte: governos, setor
privado, sociedade civil e todos os seres humanos em todo o mundo. Espera-se que os
governos assumam a responsabilidade e estabeleçam marcos, políticas e medidas
nacionais para a implementação da Agenda 2030. Uma característica fundamental da
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável é a sua universalidade e
indivisibilidade (UNESCO, 2017: 10).
A importância do Desenvolvimento Sustentável foi reconhecida nas três cúpulas
influentes de desenvolvimento sustentável global: a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (UN Conference on Environment and
Development UNCED), no Rio de Janeiro; a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável de 2002 (World Summit on Sustainable Development WSSD), em
Joanesburgo, África do Sul; e a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável de 2012 (UN Conference on Sustainable Development UNCSD), também
no Rio de Janeiro, Brasil (UNESCO, 2017: 11).
À medida que as sociedades ao redor do mundo se esforçam para acompanhar o ritmo
dos avanços da tecnologia e da globalização, elas deparam-se com muitos desafios novos
(Wals, 2015: 43). Para que todos possam atuar em favor dos ODS, todas as instituições
de educação devem considerar como sua responsabilidade trabalhar intensamente com
questões de desenvolvimento sustentável, promover o desenvolvimento de
competências de sustentabilidade e desenvolver os resultados de aprendizagem
específicos relacionados a todos os ODS (UNESCO, 2017: 54).
Nas palavras de Ban Ki-Moon, “os 17 ODS são a nossa visão comum para a Humanidade
e um contrato social entre os líderes mundiais e os povos” (ONU, 2017: 5).
Deste modo, passamos a apresentar os ODS:
ODS 1: Erradicar a pobreza em todas as suas dimensões, em todos os lugares, a
cooperação para o desenvolvimento com países terceiros, vetor chave da política externa
portuguesa, assenta num consenso alargado entre as forças políticas e a sociedade civil,
tendo como objetivo a erradicação da pobreza e o desenvolvimento sustentável dos
países parceiros, no respeito pelos Direitos Humanos. Em particular, destacam-se os
Programas Estratégicos de Cooperação com Timor-Leste, Cabo Verde, Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau, que privilegiam a capacitação institucional nas áreas da
proteção social, emprego, formação profissional e inclusão social, e o apoio a projetos de
luta contra a pobreza, promovendo a igualdade de acesso aos serviços básicos nos países
parceiros (ONU, 2017: 13-15).
ODS 2: erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e
promover a agricultura sustentável, ao nível da cooperação internacional, tem vindo a
ser reforçada a cooperação transfronteiriça (ONU, 2017: 16).
ODS 3: garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para todos, em
todas as idades, no âmbito da cooperação internacional, a lei prevê ainda que cidadãos
oriundos dos PALOP se desloquem para tratamento médico em Portugal ao abrigo de
acordos de cooperação no domínio da saúde (ONU, 2017: 18).
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ODS 4: garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos, e relativamente à
cooperação com países parceiros, Portugal tem sido motor para o desenvolvimento de
ações no seio da CPLP, tendo apoiado outros países no desenvolvimento dos seus
sistemas educativos. Destas, destacam-se: o alargamento das escolas portuguesas em
Macau, Timor-Leste, Angola e Moçambique; a abertura de uma escola em Cabo Verde e
em São Tomé e Príncipe (ONU, 2017: 19).
ODS 5: Alcançar a igualdade de nero e empoderar todas as mulheres e raparigas,
Portugal tem sido motor para o desenvolvimento de medidas e ações no âmbito da não
discriminação e igualdade de nero no seio da CPLP, promovendo a elaboração de
planos de ação para a sua implementação (ONU, 2017: 20).
ODS 6: Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do
saneamento para todos, Portugal tem vindo a partilhar a sua experiência e conhecimento
nesta matéria com os países em desenvolvimento, apoiado por recursos financeiros
próprios ou mobilizados ao nível internacional e envolvendo setor público e privado e a
sociedade civil (ONU, 2017: 21).
ODS 7: Garantir o acesso a fontes de energia fiáveis, sustentáveis e limpas para todos,
e na cooperação com países parceiros, destacam-se as políticas públicas do setor
energético, nomeadamente: com Cabo Verde, com Moçambique, e com Timor-Leste.
Realça-se, igualmente, o apoio prestado a atores da sociedade civil, em particular ONGD,
no desenvolvimento de tecnologias e boas práticas, nomeadamente na Guiné-Bissau e
São Tomé e Príncipe, procurando apoiar as populações a tirar partido destas novas
tecnologias (ONU, 2017: 22).
ODS 8: Promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e
produtivo e o trabalho digno para todos, Portugal é signatário de diversos Memorandos
de Cooperação com Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, tendo por objetivo a promoção
da estabilidade macroeconómica e financeira nos referidos países, bem como o fomento
das suas relações económicas e financeiras, ou através da implementação do Plano de
Ação para a Promoção da Igualdade e Equidade de Género na CPLP (ONU, 2017: 23-24).
ODS 9: Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e
sustentável e fomentar a inovação, Portugal tem promovido o apoio ao desenvolvimento
de infraestruturas sustentáveis e resilientes, destacando-se: em Moçambique, em Cabo
Verde e em Angola (ONU, 2017: 25).
ODS 10: Reduzir as desigualdades no interior dos países e entre países, a política de
cooperação portuguesa traduz a vontade nacional de participar no desenvolvimento dos
países terceiros, visando o respeito pelos Direitos Humanos, pela democracia e pelo
Estado de direito. Portugal procura apoiar os Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa e Timor-Leste, através da promoção da proteção social, inclusão social e
emprego (ONU, 2017: 26).
ODS 11: Tornar as cidades e comunidades inclusivas, resilientes e sustentáveis, é de
referir a Campanha Cidades Resilientes das Nações Unidas, que promove a
implementação de medidas de redução de catástrofes por parte das autoridades locais
como um dos seus princípios orientadores (ONU, 2017: 28).
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ODS 12: Garantir padrões de consumo e de produção sustenveis, com as seguintes
orientações: desenvolver a economia circular, com enfoque na desmaterialização,
economia colaborativa e consumo sustentável, conceção de produtos, uso eficiente e
valorização de recursos; alterar os modelos de produção e consumo: menos recursos,
mais eficiência e menos impactos ambientais; aumentar as taxas de recolha, reciclagem
e valorização globais e setoriais para os diferentes materiais constituintes dos resíduos;
promover práticas de compras públicas ecológicas e sustentáveis; garantir o acesso à
informação, participação do público na tomada de decisão e acesso à Justiça em matéria
de Ambiente; promover comportamentos mais sustentáveis do ponto de vista ambiental,
através da fiscalidade verde (ONU, 2017: 29).
ODS 13: Adotar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus
impactos, é de referir a recente apresentação por países desenvolvidos de um plano para
alavancar financiamento público e privado para o clima, trabalho ao qual Portugal se
associou e, neste contexto se comprometeu a prosseguir o desenvolvimento de parcerias,
em particular com os PALOP (ONU, 2017: 32).
ODS 14: Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e os recursos
marinhos para o desenvolvimento sustentável, as orientações são: prevenir e reduzir a
poluição e lixo marinhos; limitar o impacto da pesca no meio marinho e adaptar a pesca
à proteção das espécies; promover a proteção, restauração e gestão sustentável dos
ecossistemas marinhos e costeiros e da biodiversidade marinha; fomentar o
desenvolvimento local das comunidades costeiras; promover o ordenamento do espaço
marítimo e a criação de áreas marinhas protegidas nos espaços marítimos sob jurisdição
nacional; potenciar as áreas de investigação e fiscalização de natureza tributária, fiscal
e aduaneira; aprofundar a política de vigilância marítima; aumentar o conhecimento
científico, desenvolver capacidades de investigação e transferir tecnologia marinha (ONU,
2017: 36).
ODS 15: Proteger, restaurar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres,
gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, travar e reverter a
degradação dos solos e travar a perda de biodiversidade, no plano internacional, note-
se a participação ativa de Portugal na Convenção de Berna sobre a Vida Selvagem e os
Habitats Naturais na Europa, na Convenção de Bona sobre Espécies Migradoras da Fauna
Selvagem, na Convenção de Ramsar sobre as Zonas Húmidas com interesse internacional
para as aves aquáticas e na Convenção de Washington sobre o Comércio Internacional
de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (ONU, 2017: 72).
ODS 16: Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável,
proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis
e inclusivas a todos os níveis, a nível da lusofonia, no âmbito da CPLP e da cooperação
com os PALOP, contribuindo para que as instituições militares dos países parceiros sejam
de forma crescente e sustentada, produtores de segurança e indutores de
desenvolvimento, e que contribuam para reforço da segurança e autoridade do Estado
(ONU, 2017: 76-80).
ODS 17: Reforçar os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável e no sentido de reforçar a qualidade da sua ação externa
no âmbito da cooperação internacional e para o desenvolvimento sustentável, de entre
os quais se destacam: desvinculação de abordagens assistencialistas, investindo-se na
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capacitação institucional e humana, com vista a facilitar a mobilização de investimento e
comércio e promover a sustentabilidade; transição para uma lógica de cofinanciamento
nacional, europeu e internacional, público e privado, através do recurso a novas e
diversas fontes de financiamento, algumas das quais baseadas em mecanismos
inovadores, e envolvimento dos agentes económicos, do mundo académico e da
sociedade civil (ONU, 2017: 81-85).
A concretização dos ODS no continente africano
Tomando como ponto de partida a ONG portuguesa AMI e o seu projeto, “ODS em Ação”,
pretende-se contribuir para uma sociedade mais informada e ativa na promoção do
desenvolvimento sustentável e no respeito pelos Direitos Humanos. Disseminar os ODS
junto dos jovens portugueses, consciencializá-los para os desafios da cooperação para o
desenvolvimento e da ação humanitária e promover uma cidadania ativa, através do
estímulo para o voluntariado, com a divulgação de oportunidades de voluntariado nas
respetivas regiões.
Para tal, consideramos os seguintes países: São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, no
sentido de representar exemplos concretos de desenvolvimento de projetos nos PALOP,
nos quais as atividades e missões são desenvolvidas com o objetivo de cumprir cada um
dos ODS. Consideramos ainda outros países africanos, nomeadamente, Senegal,
Camarões, Madagáscar, Uganda, Costa do Marfim, Zimbabué, Níger e Gana, que a nível
de projetos em curso, no que diz respeito à consecução dos ODS,o representativos do
esforço que tem vindo a ser desenvolvido, no sentido de colocar em prática os ODS, na
defesa pelos Direitos Humanos.
Deste modo, na Guiné-Bissau, o Projeto: “Rádio Comunitária de Bolama”, que se refere
a colocar em prática o ODS 10, tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de
uma comunidade mais informada e sensibilizada através de um meio de comunicação de
massas, ao serviço do desenvolvimento local e inclusivo na Região de Bolama. Em
Bolama não existe um meio de comunicação social de proximidade e direcionado para
uma população eminentemente rural e pouco alfabetizada, o que coloca limitações de
vária ordem, com consequências negativas sobre as aspirações e expetativas dessas
populações. Com este projeto pretende-se contribuir para eliminar esta carência e lançar
as bases para uma participação e cidadania ativas dos residentes nas ações e tomada de
decisões que interferem com a sua vida e das suas comunidades. Uma vez instalada e
funcional, a rádio será um meio de comunicação capaz de informar e formar com razoável
eficácia a comunidade local (AMI, 2017).
Outro projeto, que coloca em prática o ODS 4, é referente à Construção da Escola de Gã-
Bacar. Este projeto pretende apoiar a construção de um edifício destinado às aulas do
Pré-Escolar e Ensino Básico (AMI, 2017).
Desde o ano de 2000, a AMI encontra-se na Região Sanitária de Bolama, assumindo-se
como um ator impulsionador do desenvolvimento, através da implementação de
projetos, estabelecimento de parcerias com associações locais e também pela
dinamização de Aventuras Solidárias nesta região. Assim, pretende-se contribuir para a
melhoria do ensino na tabanca de -Bacar, beneficiando diretamente 138 alunos e 8
professores.
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Em São Tomé e Príncipe, o projeto que põe em prática os ODS 2 e 8, intitula-se: “Porto
de Partida São Tomé e Príncipe”, e tem como objetivo: a redução da pobreza através
da melhoria das condições higiénico-sanitárias, promoção da literacia em saúde e
saneamento do meio e intervenções de desenvolvimento local.
Caué é o distrito mais pobre de São Tomé, com frágil tecido económico, baixos
rendimentos e iliteracia, conducentes a uma economia de subsistência e à criação animal
arbitrária e desenvolvida informalmente. O projeto visa sensibilizar a população para os
malefícios da atual situação de criação animal; construção de infraestruturas para acolher
animais e proceder ao seu abate em condições de higiene adequadas; desenvolver
atividades de cariz social que permitam combater situações de pobreza extrema no
distrito, através da criação de um negócio gerador de rendimento que as sustente (AMI,
2015).
No Senegal, o “Projeto de Luta Contra a Insegurança Alimentar”, coloca em prática os
ODS 1, 2, 10, 17, e pretende melhorar a produtividade das Explorações Familiares de
três comunidades do Departamento de Bambey, facilitando o acesso a fatores de
produção, promovendo práticas agro-ecológicas e a valorização da produção; contribuir
para a melhoria da segurança alimentar de 100 explorações familiares. Nesta zona, os
solos o pobres e houve um declínio da produção agrícola e da segurança alimentar,
contribuindo para o aumento da migração de jovens e mulheres.
As famílias vivem, maioritariamente, em situação de insegurança alimentar. A produção
não cobre as necessidades alimentares, os rendimentos baixaram e as necessidades de
saúde e educação das crianças não são totalmente cobertas. Com este projeto pretende-
se que as explorações familiares tenham acesso aos fatores de produção e implementem
práticas agro-ecológicas e que a produção local seja valorizada e os resultados da mesma
sejam seguidos, capitalizados e disseminados (AMI, 2017).
Outro Projeto neste país, é a “Promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres e
jovens do meio rural”, que consiste na educação e sensibilização das mulheres e jovens
que vivem nas zonas rurais de Thiès e de Diourbel, para as problemáticas das doenças
sexualmente transmissíveis.
De forma a contribuir para a redução dos 6800 novos casos de cancro de colo do útero,
que todos os anos são diagnosticados no Senegal, este projeto levou a cabo uma série
de ações de sensibilização nas rias comunidades. Com este projeto foram colocados
em desenvolvimento os ODS 3 e 5 (AMI, 2017).
Em Camarões, o Projeto: “Capacitação de 50 crianças noivas”, põe em prática os ODS 1,
4, 5 e 8, e pretende contribuir para a redução da vulnerabilidade e dependências das
jovens e crianças em risco e em casamentos forçados nas comunidades rurais. Através
deste projeto pretende-se promover o empoderamento e melhoria dos acessos a
oportunidades que permitam aumentar as perspetivas de vida das jovens em casamentos
precoces ou crianças em risco, bem como a consciencialização e, possivelmente, reverter
os desafios associados à problemática dos casamentos precoces com crianças na
comunidade.
Para além da possibilidade de proporcionar cursos vocacionais em áreas chave, a
iniciativa contempla também o pagamento de propinas das meninas que ainda se
encontrem a frequentar a escola. Outro dos eixos estratégicos deste projeto é o de
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sensibilizar a comunidade, nomeadamente líderes comunitários e religiosos para esta
problemática, através, não só de sessões de sensibilização, mas também de programas
de rádio e da realização de um documentário com testemunhos das vítimas (AMI, 2019).
Em Madagáscar, o Projeto: “Pediatria em Madagáscar”, põe em prática o ODS 3, e é
entendido como um reforço do serviço de pediatria e formação do pessoal no centro de
saúde. No âmbito do programa PIPOL (Projetos Internacionais em Parceria com
Organizações Locais), através do qual a AMI apoia e financia projetos de organizações
locais, em diversos sectores como saúde, educação, segurança alimentar e
associativismo, foi estabelecida uma nova parceria com uma Organização local, para a
melhoria técnica do serviço de saúde infantil (AMI, 2019).
Madagáscar é um país com uma elevada taxa de incidência de pobreza, sendo bastante
afetado pelas alterações climáticas. Na região, a situação de extrema pobreza adicionada
às condições socio ambientais favorece a presença de doenças como a tuberculose e
outras doenças pulmonares, malária, parasitoses intestinais e dermatológicas, doenças
gastrointestinais e oculares, odontológicas e otorrinolaringológicas. Verifica-se também
na região elevadas taxas de desnutrição infantil, seja aguda ou crónica.
Com este projeto em particular, a AMI está a contribuir ativamente para a Agenda 2030,
não apenas através do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3 Saúde de
Qualidade, mas também através do ODS 17 Parcerias para a Implementação dos
Objetivos (AMI, 2019).
Outro Projeto neste país, é: “Instalação de um sistema de gás cirúrgico no bloco
operatório do Centro Sanitário de St. Paul D’Ampefy-Andasibe”, que tem como objetivo
colocar em prática os ODS 3, 8 e 9, e põe em prática a instalação de um sistema de gás
cirúrgico no bloco operatório (AMI, 2019).
No Uganda, o Projeto: “Talk2Me – Sensibilização e Promoção de Boas Práticas de Saúde
Sexual e Reprodutiva nos Campos de Refugiados do Uganda”, é um projeto de Ação
Humanitária que premelhorar as condições de vida da população refugiada no norte
do Uganda, colocando em prática os ODS 3 e 5.
Com intervenção no Uganda, a AMI detetou a necessidade de apoiar o trabalho de
acolhimento de refugiados que é feito no país. Ocupando a posição dianteira como país
que mais recebe refugiados no continente africano e o terceiro no mundo. Perante os
números crescentes e as condições de fragilidade das comunidades que acolhem estes
refugiados, existem algumas limitações na prestação de apoio social e no acesso aos
Cuidados de Saúde Primários. Foi por isso decidido desenvolver um projeto de
sensibilização e promoção de boas práticas de Saúde Sexual e Reprodutiva nos campos
de refugiados (AMI, 2019).
Outro Projeto neste país, intitula-se como: “Melhorar a gestão da higiene menstrual nas
zonas rurais do Uganda”, e trata-se da sensibilização e disseminação de soluções
sustentáveis para uma melhor gestão da higiene menstrual das jovens adolescentes
ugandesas, em idade escolar, quebrando tabus e fomentando a igualdade de
oportunidades no acesso à educação para todos os jovens independentemente do
género.
Para o efeito, são fabricados e distribuídos “kits menstruais” nas escolas, tornando
disponíveis soluções sustentáveis e sensibilizando as jovens adolescentes desta região,
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para a importância da sua higiene menstrual. Assim, são também desmistificados
fenómenos associados à menstruação, de forma a que as jovens não percam dias de
escola por estarem menstruadas (AMI, 2018).
Na Costa do Marfim, o Projeto: “Construção de duas Cantinas em Kaloufa e Gokoupleu”,
pretende colocar em prática os ODS 1, 2 e 3, com o objetivo de dar apoio para a
construção de duas cantinas escolares, pois nas zonas rurais, é significativo o abandono
escolar por falta de capacidade financeira das famílias, para assegurarem a alimentação
dos seus educandos (AMI, 2018).
No Zimbabué, o Projeto: “Melhoria dos meios de subsistência e das condições de vida de
pessoas com deficiência”, coloca em prática o ODS 1, e tem como objetivo a capacitação
e melhoria das condições socioeconómicas dos agregados familiares de elementos
portadores de deficiência. Este grupo mostra-se particularmente vulnerável, sujeito a
diversos fatores de exclusão social, abuso e negligência, com dificuldade de integração
no mercado de trabalho, sendo conduzidos frequentemente a situações de extrema
pobreza (AMI, 2018).
Em Níger, o Projeto: “Apoio ao desenvolvimento socioeconómico das populações da
aldeia de Gountikoira, na região de Tillabéry”, pretende a criação de um furo, construção
de uma escola e compra de terras para fins agrícolas. O projeto, que põe em prática o
ODS 1, pretende erradicar as dificuldades da população, que vive com situações de
desrespeito dos seus direitos enquanto cidadãos (AMI, 2018).
No Gana, o Projeto: “Continuidade da aquisição de competências pela população de Cape
Coast”, pretende ajudar os meninos de rua e providenciar oportunidades de reintegração
na sociedade através da formação em futebol, costura e música, colocando assim em
prática, os ODS 1 e 4 (AMI, 2016).
Todos estes projetos atuantes em nome da concretização dos ODS, têm por base a luta
pela defesa dos Direitos Humanos, em todas as suas vertentes, adaptando-se às
necessidades mais prementes das populações, tornando o mundo mais justo e mais
harmonioso.
Conclusão
Os Direitos Humanos, considerados como direitos universais, podem ser concebidos e
praticados de um modo globalizado, sendo sempre vistos como um instrumento do
Ocidente, para o resto do mundo; embora seja sabido que os direitos humanos não são
universais na sua aplicação.
O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos,
tipicamente ocidentais: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida
racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante
realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser
defendida da sociedade ou do Estado.
Na luta pela defesa e promoção da dignidade humana, os direitos humanos colocam em
prática uma entrega moral, afetiva e emocional muito característica das ONG’s, e que
é possível a partir de postulados inscritos na personalidade e nas formas básicas de
socialização.
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Atualmente, o discurso dos direitos humanos concentra-se à volta do ajustamento, por
oposição ao desenvolvimento, que se pretende demonstrar através de projetos e
programas com o objetivo de atenuar a pobreza, as desigualdades sociais e as injustiças
sociais no mundo. Mas, apesar de todos estes esforços, os problemas e as questões
fundamentais da vasta maioria dos povos e classes africanos não desapareceram.
São estes projetos concebidos através dos ODS, que permitirão levar ao desenvolvimento
dos países mais carenciados e que permitirão que os Direitos Humanos sejam uma
realidade em todo o mundo.
Referências
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promocao-de-boas-praticas-de-saude-sexual-e-reprodutiva-nos-campos-de-refugiados-
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menstrual-nas-zonas-rurais-do-uganda/(acessado em 13 de dezembro de 2019).
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kaloufa-e-gokoupleu-costa-do-marfim/(acessado em 14 de dezembro de 2019).
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socioeconomico-das-populacoes-da-aldeia-de-gountikoira-na-regiao-de-tillabery-
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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PARA UM NOVO MODELO DE MIGRAÇÃO DO ESTADO RENTISTA?
PERCEÇÕES DA ÁSIA CENTRAL E DOS ESTADOS ÁRABES DO GOLFO
FARKHAD ALIMUKHAMEDOV
farkhad.alimukhamedov@univ-toulouse.fr
Pós-doutorando no Laboratoire des Sciences Sociales du Politique (LaSSP) e Docente no Instituto
de Ciências Políticas de Toulouse (França). A investigação inclui estudos da Ásia Central,
migração internacional e internacionalização do ensino superior.
HISHAM BIN HASHIM
hbh24@georgetown.edu
Assistente de Investigação no Laboratório de Inovação Humanitária do Qatar (Q-HIL),
Universidade do Qatar (Qatar). Os interesses de investigação o orientados para abordagens
centradas no utilizador à inovação humanitária numa vasta gama de campos, incluindo educação,
saúde e água. Foi coautor, com Laurent A. Lambert, de um capítulo de livro intitulado "MOOCs
and International Capacity Building in a UN Framework: Potencial e Desafios" publicado no
Handbook of Lifelong Learning for Sustainable Development da Springer.
Resumo
Em 2015, a chamada "crise dos migrantes" tornou-se uma questão internacional importante
que desde então afetou as políticas de imigração e os sistemas nacionais de asilo de dezenas
de países em todo o mundo. No contexto de uma crise económica global causada pela
pandemia da COVID-19 e por movimentos migratórios em massa renovados na América
Central e no Mediterrâneo, uma melhor compreensão do impacto dos movimentos migratórios
em massa de 2015-2016 nas políticas e legislação migratória de vários países poderá revelar-
se útil para antecipar melhor as mudanças políticas e legislativas num futuro próximo. Em
primeiro lugar, o presente artigo utiliza estatísticas descritivas globais e tendências nas
políticas de reforma jurídica e de deportação para os requerentes de asilo e refugiados, para
destacar um padrão específico que tem sido observado entre os Estados rentistas
exportadores de energia: entre 2015-2017, a maioria dos Estados rentistas exportadores de
hidrocarbonetos, embora permanecendo abertos a entradas economicamente vitais de
trabalhadores migrantes temporários, adaptaram a sua legislação de modo a torná-la
particularmente restritiva para os requerentes de asilo. Mais precisamente, encontrámos uma
correlação perfeita (100%) entre ser um Estado rentista exportador de hidrocarbonetos de
elevado rendimento e ter uma legislação restritiva e/ou políticas fortes de deportação para os
requerentes de asilo e imigrantes clandestinos a partir de finais de 2017. Esta observação não
pode ser correlacionada de forma satisfatória com todos os países que têm elevados padrões
de vida. Apenas uma minoria (30%) de Estados de elevado rendimento, mas não pertencentes
à categoria dos "rentistas", classificados como tendo regimes legislativos igualmente
restritivos para os requerentes de asilo e refugiados. Os Estados rentistas das regiões do Golfo
Arábico e da Ásia Central, que confirmaram estas observações globais, foram analisados mais
profundamente e demonstraram que, em rutura com a sua tradição passada de acolhimento
de populações de refugiados significativas, tem vindo a emergir um modelo de migração
estatal novo - e mais restritivo - na sequência do aumento dramático dos fluxos de refugiados
desde 2015.
Palavras-chave
Requerentes de Asilo; Ásia Central; GCC; Europa; Fluxos de Refugiados; Política de Migração;
Preços do Petróleo; Estados Rentistas
Como citar este artigo
Alimukhamedov, Farkhad; Hashim, Hisham Bin (2021). Para um Novo Modelo de Migração do
Estado Rentista? Perceções da Ásia Central e dos Estados Árabes do Golfo. Janus.net, e-
journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.6
Artigo recebido em 20 Setembro 2019 e aceite para publicação em 26 Março 2020
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Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 95-128
Para um novo modelo de migração do Estado rentista? Perceções da Ásia Central
e dos Estados Árabes do Golfo
Farkhad Alimukhamedov e Hisham Bin Hashim
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PARA UM NOVO MODELO DE MIGRAÇÃO DO ESTADO RENTISTA?
PERCEÇÕES DA ÁSIA CENTRAL E DOS
ESTADOS ÁRABES DO GOLFO
1
FARKHAD ALIMUKHAMEDOV
HISHAM BIN HASHIM
Introdução
Nos últimos anos, poucos afegãos que deixaram o seu país em guerra encontraram abrigo
nos países vizinhos exportadores de gás e mais ricos a norte (por exemplo,
Turquemenistão e Uzbequistão) ou no resto da Ásia Central, como na economia
emergente do Cazaquistão. Pelo contrário, tem sido o Paquistão, apesar da sua falta de
recursos naturais preciosos e da pobreza generalizada, a acolher várias centenas de
milhares de refugiados afegãos. Do mesmo modo, no Médio Oriente, apenas um número
limitado de sírios encontrou refúgio nas monarquias ricas em petróleo do Golfo Arábico,
enquanto milhões estão alojados em países pobres em petróleo e significativamente mais
pobres como a Jordânia, Líbano e Turquia. O objetivo deste artigo é investigar e dar
sentido à influência que um país que é um Estado rentista exportador de energia tem na
adoção de disposições políticas e legislativas restritivas durante um período de fluxos
maciços de refugiados, analisando a resposta dos Estados rentistas do Golfo Arábico e
da Ásia Central durante a chamada "crise dos migrantes" de 2015-2017.
Este artigo começa por fornecer uma panorâmica estatística global das políticas nacionais
para os refugiados, com especial atenção para destacar aspetos em que os Estados
rentistas diferem geralmente de outros Estados membros das Nações Unidas (ONU). A
nossa análise mostra que, na sequência do rápido aumento dos fluxos de refugiados em
2015, os Estados rentistas em todo o mundo adotaram políticas e regulamentos de porta
fechada para os refugiados e requerentes de asilo, com apenas algumas exceções (não
de elevado rendimento), como o Irão e a Indonésia. Na Secção 2, o documento toma os
estados rentistas da Ásia Central e do Golfo Árabe como estudos de caso para oferecer
uma análise mais aprofundada das políticas de migração nacionais e regionais. A nível
teórico, investigamos porque é que os estados rentistas exportadores de hidrocarbonetos
estão tão abertos e, por vezes, largamente dependentes de certos tipos de migração
interna, estando, simultaneamente, particularmente fechados aos requerentes de asilo e
aos migrantes sem documentos. Finalmente, este documento argumenta na secção 3
que tanto a economia política específica dos Estados rentistas, como as suas graves
preocupações económicas em tempos de depressão dos preços dos hidrocarbonetos
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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(2015-2016), parecem ter transformado a ideia de acolher um grande número de
requerentes de asilo num não arranque.
1. Tendências Estatísticas Globais em Política de Refugiados
1.1. Conceitos e metodologia
Os Estados rentistas são geralmente definidos como Estados que recebem a maior parte
das suas receitas do estrangeiro, numa base regular, para a exploração de um recurso
nacional. Desde os anos 70, os cientistas sociais que analisam a economia política dos
países do Médio Oriente exportadores de petróleo concentram-se num fator estrutural
fundamental, a natureza rentista dos seus sistemas políticos e económicos. No contexto
pós-independência das décadas de 1950 e 1960, vários países do Médio Oriente e do
Norte de África beneficiaram de receitas cada vez maiores das concessões petrolíferas e
das suas jovens companhias petrolíferas nacionais (Mabro, 1969; Mahdavy, 1970).
Mahdavy, em particular, considerou os anos 50 como um período de mudança
paradigmática na história económica da região. Com base no caso da rápida
modernização através da expansão do Estado no Irão (um país exportador de petróleo
localizado na junção do Médio Oriente e Ásia Central), Mahdavy (1970) generalizou este
padrão político de fortuitus Etatismalimentado pelas receitas petrolíferas para toda a
região do Médio Oriente. Mais tarde, Beblawi (1990) propôs quatro critérios para melhor
definir as características-chave de um estado arquetípico rentista. Os critérios de Beblawi
(1990: 87-88) são os seguintes:
- As receitas do aluguer de recursos naturais dominam claramente a economia;
- A origem dos rendimentos do aluguer é estrangeira;
- Apenas uma minoria da população ativa es envolvida na geração desta renda,
enquanto a maioria trabalha na distribuição ou utilização da mesma;
- O Estado é o principal beneficiário da renda externa.
Embora as receitas do petróleo tenham financiado realizações de desenvolvimento
impressionantes na maioria dos países do Golfo Arábico, tais como a ligação universal de
água e fornecimento de eletricidade ou sistemas modernos de educação e cuidados de
saúde, a noção de rentismo no Golfo Arábico também conota a má eficiência ecomica
e a governação política autoritária. No contexto das petromonarquias ricas do Golfo
Arábico, Lambert (2014) descreve uma "pechincha de rentistas", na qual o povo apoiaria
obedientemente a hegemonia do regime sobre a política interna e internacional em troca
de um Estado-Providência abrangente e generoso” (2014: 12).
Além disso, de acordo com a literatura sobre a teoria do Estado rentista, o Estado rentista
é considerado protegido de quaisquer aspirações democráticas da sua sociedade, pelo
menos enquanto for capaz de financiar um generoso Estado social, porque as políticas
de redistribuição económica tendem a despolitizar os cidadãos. No entanto, esta hipótese
teórica foi criticada na sequência das revoluções da Primavera Árabe 2010-2011 e da
mobilização política particularmente forte verificada no Bahrain, Líbia e Kuwait, em que
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o Estado (rentista) foi contestado apesar das políticas redistributivas significativas,
enquanto as questões internacionais (tais como os baixos preços sustentados do petróleo
ou as grandes tensões diplomáticas) poderiam também afetar as políticas redistributivas
(Gengler & Lambert, 2016).
Neste artigo, tomamos em consideração um conceito mais amplo de renda que inclui não
as receitas de exportação de hidrocarbonetos, mas também outras rendas. Malik
(2017) argumentou que as receitas do petróleo na região do MENA são complementadas
com outros fluxos de receitas não obtidas da ajuda, das remessas e da regulamentação
governamental, que no seu conjunto constituem um desafio mais vasto de "rentismo". O
conceito de estado de rentistas também tem sido utilizado nas últimas cadas em outros
lugares para além do Médio Oriente.
Após o colapso da União Soviética, vários estudiosos aplicaram a teoria do Estado rentista
para determinar o modelo político e económico dos países recentemente independentes
da Ásia Central e do Cáucaso. Os países exportadores de petróleo e gás como o
Turquemenistão (Kuru, 1999), bem como o Azerbaijão e o Cazaquistão (Franke, Gawrich,
Alakbarov, 2009; Kendall-Taylor, 2012), foram definidos como estados rentistas. Pal
Istvan Gyene (2015) considerou o Turquemenistão e o Cazaquistão como o tipo ideal de
"Estado rentista", enquanto qualificou o Quirguistão e o Tajiquistão como economias
rentistas (devido à sua dependência de recursos externos, tais como ajuda externa e
remessas) e o Uzbequistão como funcionando sob uma lógica rentista. Apesar da baixa
percentagem de recursos naturais, o papel das remessas dos migrantes é extremamente
importante entre os estados semi-rentistas, segundo Ostrowski (Ostrowski, 2014) para
os quais o Quirguizistão e o Tajiquistão (32% e 38% do PIB em 2018) são definidos como
estados semi-rentistas. Também define o Uzbequistão como um estado rentista devido
à sua profunda dependência pós-soviética dos recursos naturais (algoo, ouro, etc.), e
ao papel acrescido das remessas dos migrantes. A aplicação do rentismo e da lógica
política de rentista ao campo académico da política de migração tem o potencial de
fornecer novos conhecimentos e perspetivas para a investigação sobre as políticas de
migração dos países em desenvolvimento e das economias emergentes e a sua economia
política.
As discussões relacionadas com regimes políticos e políticas de migração nem sempre
são responsáveis pela estrutura económica dos países de acolhimento. Os países ricos
em recursos geralmente apresentam fluxos de imigração relativamente grandes e
desempenham um papel importante nas migrações internacionais. Estudos comparativos
que tratam das políticas de imigração dos países ricos em recursos também mostraram
que todos eles tiveram uma necessidade substancial de mão-de-obra estrangeira, o que
deverá resultar em algumas semelhanças nas suas políticas de imigração laboral (Valenta
et al., 2017; Lambert et al., 2015). Argumentamos neste artigo que tendem a seguir
uma gica de rentistas e a utilizar políticas alternativas ao que poderia ser visto como
as melhores práticas internacionais em relação aos requerentes de asilo.
As poticas de migração dos Estados rentistas baseiam-se no monopólio do poder e esta
última visa controlar os meios legítimos de circulação e migração. Consequentemente,
os Estados rentistas produzem sistematicamente migrantes vulneráveis com direitos
limitados (Bel Air, 2018). Este quadro migratório do Estado rentista não pode ser
dissociado das dimensões de poder nas relações internacionais onde os países periféricos
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(Wallerstein) dependem dos países centrais e reforçam as relações de poder desiguais.
Desenvolvem dimensões de poder desiguais com Estados mais fracos porque as
economias em expansão de países ricos em recursos estão ansiosas por importar uma
força de trabalho relativamente barata (Valenta et al., 2017).
A lógica rentista na migração pode compreender diferentes formas e campos de
migração. Por exemplo, estados semi-rentistas ou estados rentistas de baixos
rendimentos podem também encontrar no acolhimento de refugiados uma renda
importante, levando em alguns casos ao que Tsourapas (2018) chamou um "estado
rentista refugiado": alguns países (como a Jordânia ou o Líbano no Próximo Oriente)
acolhem indiscutivelmente um grande número de refugiados durante muitos anos com o
objetivo de beneficiarem de uma renda paga pela comunidade internacional. Pelo
contrário, os Estados rentistas exportadores de hidrocarbonetos com rendimentos
elevados podem parecer ter menos a beneficiar do facto de estarem particularmente
abertos aos requerentes de asilo.
Os atores o estatais podem ser implicados no reforço de uma lógica rentista nas
migrações. Por exemplo, as agências de recrutamento de mão de obra que operam no
Golfo Arábico e nos países de origem são sinais visíveis de um "sistema de migração
rentista" com custos crescentes de recrutamento de migrantes desde os anos 80
(Rahman, 2015). Embora o discurso da migração inclua geralmente remessas, não
sublinham o papel das dívidas contraídas pelos migrantes no processo migratório. A
grande maioria dos atuais migrantes económicos dos países do Sudeste Asiático não se
podem dar ao luxo de se mudarem para países do CCG com as suas próprias poupanças,
levando-os frequentemente a contrair dívidas que levam vários meses ou anos a pagar
(Rahman, 2015). Esta situação fortaleceu o quadro de exploração ao longo do tempo e
tornou os migrantes mais vulneráveis face à sociedade de acolhimento. Demonstramos
neste documento que a maioria dos Estados rentistas tem leis restritivas (ou outras
barreiras, tais como condições de entrada difíceis) em relação aos refugiados e
requerentes de asilo, não por falta de recursos para os ajudar, mas as suas estruturas
económicas baseiam-se na importação de mão de obra principalmente pouco qualificada
e de baixo custo, numa base temporária. Paradoxalmente, uma parte considerável dos
migrantes económicos no CCG é proveniente de países devastados pela guerra (Valenta
& Jacobsen, 2017).
O nosso estudo indica que existe uma forte correlação entre ter uma economia de
hidrocarbonetos rentistas e ter regulamentos e políticas restritivas em relação aos
requerentes de asilo e/ou refugiados. Os Estados rentistas também não aderem aos
quadros legais internacionais ou regionais devido à securitização da migração. As suas
políticas de migração mostram que são severamente restritivas no que diz respeito aos
refugiados e requerentes de asilo e menos restritivas noutros domínios da migração
(regras de entrada/saída, regulamentos sobre vistos, etc.). Outros estudos mostram
também que os países ricos em recursos têm diferentes níveis de restrição com base em
diferenciações relacionadas com as competências (Valenta et al., 2017). Apesar dos
regimes de migração relativamente restritivos, os estados rentistas, especialmente os
estados do Golfo Arábico, continuam a ser atores importantes nos fluxos migratórios
internacionais, devido ao número crescente de migrantes que recebem.
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Na nossa análise, compilámos uma lista de todos os Estados membros da ONU,
juntamente com as classificações do Banco Mundial para o grupo de rendimentos dos
países, e acrescentámos os nossos próprios dados categóricos sobre quais destes países
são:
a) Exportadores líquidos de hidrocarbonetos;
b) Estados ricos em hidrocarbonetos (isto é, países para os quais os hidrocarbonetos
representam a maior fonte de receitas governamentais);
c) Estados com sistemas de asilo restritivos e políticas de imigração para refugiados.
Classificamos um país como sendo restritivo em relação aos refugiados, com base no
seguinte conjunto de critérios:
Não ser signatário e/ou ratificar a Convenção sobre Refugiados de 1951;
Não ser signatário e/ou não ratificar o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos de 1966;
Novas leis e regulamentos que divergem significativamente das normas e padrões
internacionais de não expulsão, tais como a aplicação de um princípio de "país terceiro
seguro" aos refugiados que fogem de Estados que não o reconhecidos como países
terceiros seguros, como o Afeganistão e o Iraque, por exemplo)
2
;
Com base na abordagem utilizada pelos dados da DEMIG
3
, identificamos a capacidade
restritiva da legislação relacionada com a migração ao longo do tempo.
1.2. Distribuição da população mundial de refugiados
Em 2015, o mundo assistiu ao início da maior migração internacional em massa desde o
fim da Segunda Guerra Mundial. Este movimento migratório em massa chamou a
atenção dos meios de comunicação internacionais para as condições das populações
requerentes de asilo que fogem dos conflitos civis e da guerra, especialmente do
Afeganistão e do Médio Oriente, acabando por conduzir a importantes reformas
legislativas e políticas numa série de países. Ao pesquisar os padrões de migrações e
asilo durante esse período, surgiram alguns pades surpreendentes.
Segundo o ACNUR (2016), na sequência do aumento dos fluxos migratórios em 2015,
uma maioria (59%) dos refugiados ficou concentrada nos 10 principais países de
acolhimento de refugiados, e apenas um deles, o Irão (número 4 do ranking), é um país
rico em petróleo. Como ilustra o Quadro 1, o "fardo" de recursos do acolhimento de
refugiados é essencialmente suportado pelos países relativamente mais pobres. Por
exemplo, pequenos países do Médio Oriente, como o Líbano e a Jordânia, acolhem mais
2
Para a definição europeia e implicações legais do conceito de país terceiro seguro, ver:
http://www.asylumineurope.org/reports/country/united-kingdom/asylum-procedure/safe-country-
concepts/safe-third-country
3
https://www.migrationinstitute.org/data/demig-data.
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refugiados do que as maiores economias do mundo, incluindo a China, a Alemanha, o
Japão e os Estados Unidos da América.
Poderíamos também observar que apenas quatro Estados ricos em hidrocarbonetos,
nomeadamente o Irão, Sudão do Sula Suo e Iémen, fazem parte dos 20 principais
países de acolhimento de refugiados. No entanto, vale a pena notar que nenhum destes
quatro Estados rentistas são países de elevado rendimento. O Iémen e o Sudão do Sul,
em particular, sofrem de conflitos de alta intensidade que minam significativamente a
soberania do Estado e o Estado de direito. Quanto ao Sudão, embora seja o lar de uma
considerável população de refugiados, também começou a deter e a deportar migrantes.
Em suma, a questão que nos foi levada a colocar é: até que ponto existe uma correlação
entre ser um Estado rentista de elevado rendimento e ter políticas restritivas em relação
aos refugiados?
Tabela 1 Os vinte principais países anfitriões de refugiados em 2016
País
Total Refugiados
Total População
Refugiados como
Percentagem da
População Total
1.
Turquia
2,869,421
80,745,020
3.55%
As 10
principais
nações de
acolhimento
de refugiados
representam
59,38% da
população
mundial de
refugiados
2.
Paquistão
1,352,560
197,015,955
0.69%
3.
Líbano
1,012,969
6,082,357
16.65%
4.
Irão
979,435
81,162,788
1.21%
5.
Uganda
940,835
42,862,958
2.19%
6.
Etiópia
791,631
104,957,438
0.75%
7.
Jordânia
685,197
9,702,353
7.06%
8.
Alemanha
669,482
82,114,224
0.82%
9.
DRC
451,956
81,339,988
0.56%
10.
Quénia
451,099
49,699,862
0.91%
11.
Sudão
421,466
40,533,330
1.04%
As 20
principais
nações de
acolhimento
de refugiados
representam
77,83% da
população
mundial de
refugiados
12.
Chade
391,251
14,899,994
2.63%
13
Camarões
375,415
24,053,727
1.56%
14.
China
317,255
1,410,000,000
0.02%
15.
França
304,546
64,979,548
0.47%
16.
Tanzânia
281,498
57,310,019
0.49%
17.
Bangladesh
276,207
164,669,751
0.17%
18.
E.U.A.
272,959
324,459,463
0.08%
19.
Iémen
269,783
28,250,420
0.95%
20.
Sudão do Sul
262,560
12,575,714
2.09%
Top 20 Total
13,377,525
2,877,414,909
0.46%
Total mundial
17,187,488
7,466,964,280
0.23%
Fonte: ACNUR, Relatório Global 2016
1.3. Efeitos do Rentismo de Hidrocarbonetos e do Rendimento
Nacional no Sistema Nacional de Asilo
Uma análise estatística de todos os Estados membros da ONU com os critérios acima
mencionados mostra rapidamente uma forte correlação entre ter uma economia de
hidrocarbonetos rentistas e ter uma regulamentação e um sistema político restritivo em
relação aos requerentes de asilo e/ou migrantes ilegais, provando a nossa primeira
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hipótese. No seu conjunto, mais de 64,3% dos Estados rentistas exportadores de
hidrocarbonetos têm legislação muito restritiva ou aplicam políticas de deportação em
massa para os requerentes de asilo ou migrantes ilegais, em comparação com apenas
15,2% para os Estados não-rentistas entre os Estados membros da ONU (ver quadro no
Anexo 1). Esta correlação, contudo, torna-se ainda mais forte se distinguirmos entre, por
um lado, os estados rentistas de rendimento baixo e dio (por exemplo, Azerbaijão,
Chade, Uzbequistão) e, por outro lado, os estados rentistas de rendimento alto mais ricos
(por exemplo, Brunei, Noruega e Kuwait). Exatamente 100% dos Estados rentistas de
elevado rendimento têm legislação restritiva que impede ativamente a proteção dos
refugiados ou são conhecidos por estarem a avançar nessa direção. Se agruparmos os
estados rentistas de elevado rendimento com estados rentistas de rendimento médio-
alto, a percentagem de países com regulamentos e/ou políticas de imigração restritivas
continua a ser relativamente elevada, com 79%. Uma concluo errada poderia ser que
simplesmente todos os países de elevado rendimento em geral - ou seja, estados
rentistas ou o - têm uma legislação mais restritiva e/ou uma política de deportação
em massa para os requerentes de asilo e migrantes clandestinos do que os mais pobres.
Mas este pressuposto não suporta um exame estatístico.
Entre os Estados membros da ONU como um todo, a proporção de Estados de elevado
rendimento, mas não pertencentes ao grupo de países com legislação de imigração
restritiva e/ou políticas recentes de deportação em massa, é de apenas 30%, em
comparação com 100% para os Estados ricos em hidrocarbonetos de elevado
rendimento, como mencionado anteriormente. Se considerarmos todos os Estados não-
rentistas com rendimentos elevados e médios superiores, este valor diminui ainda mais
para 22,3%, contra 79% para os seus homólogos rentistas. Dada a força desta
correlação, parece pertinente explorar mais profundamente, e de uma forma mais
qualitativa, o impacto de ser um Estado rentista com hidrocarbonetos nas políticas de
asilo e imigração de um país.
Este relatório reflete a situação internacional dos sistemas nacionais de asilo e das
políticas de migração a partir de meados de novembro de 2017. Numa nota relacionada,
mesmo com uma potencial classificação de até cinco países, devido, por exemplo, a
situações em rápida mudança e casos mal documentados, a margem de erro por detrás
desta análise não excede 2,6%.
2. Refugiados e requerentes de asilo na Ásia Central e no Golfo Arábico
2.1. Regimes Internacionais de Migração e Refugiados no CCG e nos
"Modelos" da Ásia Central
Nas relações internacionais, falamos do "regime internacional" "desde os finais dos anos
70, seguindo a "Teoria do Regime" (Keohane, 1982). De acordo com a definição-padrão
de um regime nas Relações Internacionais: "princípios, normas, regras e procedimentos
de tomada de decisão implícitos ou explícitos em torno dos quais convergem as
expectativas dos atores numa determinada área das relações internacionais” (Krasner,
1983).
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No entanto, vários autores argumentam que não existe um regime de migração global
(Betts, 2010; Hollifield, 1992; Koslowski, 2011). Betts afirma mesmo que "aqui não
existe nenhuma Organização das Nações Unidas para a Migração e nenhum regime de
migração internacional (2010: 1).
Os países devem cooperar porque é difícil ultrapassar dificuldades como a imigração
clandestina ou o contrabando sem cooperação internacional (Koslowski, 2011). Ronen
Shamir argumenta assim sobre "a emergência de um sistema de mobilidade global,
orientado para o encerramento e bloqueio" (2005: 199). Hoje em dia, não importa numa
perspetiva global ou numa perspetiva multinível e multidimensional, a governação da
imigração forçada não pode ser considerada verdadeiramente "global" (Benz &
Hasenclever, 2010: 376).
Existem abordagens da perspetiva das Relações Internacionais para explicar a situação
atual relacionada com o regime global de refugiados. A primeira é o Dilema dos
Prisioneiros proposto por Suhrke (1998) onde
Coletivamente, os Estados reconhecem o valor da proteção dos refugiados
(tanto por razões de segurança como humanitárias); individualmente, a
estratégia ótima dos Estados é a de «dar uma volta livre» sobre as
«contribuições» de outros Estados, enquanto «Jogo da Suasão» (perspetiva)
- conduz a uma situação em que o ator mais fraco ou «aceita o que é
oferecido», ou se magoa mais a si próprio ao não cooperar de todo
(Hasenclever et al., 1997; Martin, 1993).
Para Betts que emprega a perspetiva do Jogo Suasão “O regime de refugiados pode ser
caracterizado como uma situação de impasse Norte-Sul" onde "eles (Estados do Sul)
ficam numa posição em que têm poucas opções para além de aceitarem "o que está em
oferta" em termos de contribuições limitadas do Norte ou de se desvincularem totalmente
das negociações” (2010, 134). Contudo, outros estudiosos argumentam que a falta de
uma organização formal para a migração e tratados não pode ser apenas uma questão
de preocupação, mas também uma oportunidade para descobrir princípios implícitos de
como gerir a migração em múltiplos níveis (Punter, van der Veen, Wingerden,
Vingeswaran, 2019).
Os padrões de várias décadas de fluxos migratórios internacionais indicam que as
tendências migratórias tendem a ser relativamente análogas entre países da mesma
região, ou dentro da mesma região (por exemplo, América Central, África Austral,
Magrebe), com poucas exceções (por exemplo, Sudeste Asiático e América Oriental). Nas
primeiras regiões, os países vizinhos tendem a adotar um quadro legislativo
relativamente semelhante relacionado com a migração, reforçando assim as trajetórias
migratórias comuns. Nesta perspetiva, este documento tenta rever e redefinir as linhas
gerais do chamado "Modelo do Golfo" e "Modelo da Ásia Central", e propor explicações
para algumas mudanças políticas recentes relativas aos refugiados e requerentes de
asilo, e particularmente dos países vizinhos. Devemos o termo 'modelo' ao trabalho de
Thiollet (2016) sobre a forma como as políticas de migração dos países do Golfo se
desenvolveram ao longo do tempo. Articula algumas peculiaridades, sublinhadas abaixo,
que as distinguem de outros países recetores de migrantes.
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Na literatura, a maioria dos artigos centrados nas políticas de imigração e integração têm
origem nos países de acolhimento de migrantes, principalmente na UE e na América do
Norte, e, em menor medida, nas economias emergentes da Ásia Oriental (cf. por exemplo
Arslan et al., 2015; Castelos & Vezzoli, 2009). Durante a última cada foram
desenvolvidos muitos estudos nestes países a fim de ilustrar a abordagem comparativa.
Por conseguinte, os índices de medição foram fornecidos por académicos e institutos de
investigação como o MIPEX
4
, EUDO GlobalCIT
5
, DEMIG
6
, IMPIC
7
, IMPALA
8
. A pesquisa
contemporânea sobre questões de migração oferece indiscutivelmente medidas e
métodos mais refinados relacionados com os fluxos migratórios e tem em conta o quadro
global (Ortega & Peri, 2009, 2014; Mayda & Patel, 2004; Bjerre et al., 2014
[C1]
), tal como
a OCDE, numa base regular. Foram realizados vários estudos em vários países com
métodos quantitativos (Klugman & Pereira, 2009; Ruhs, 2011; Czaika & de Haas, 2013).
Tabela 2 - População total e percentagem de nacionais e não-nacionais (países CCG)
País
Data/
Período
População
Total
Data/
Período
Nacionais
Não-nacionais
% na população total
Nacionais
Não-
nacionais
Bahrein
(1)
meados de
2016
1,423,726
meados de
2016
664,707
759,019
46.7
53.3
Kuwait
(2)
31
dezembro
2016
4,411,124
31
dezembro
2016
1,337,693
3,073,431
30.3
69.7
Omã (3)
7 abril 2017
4,599,051
7 abril 2017
2,488,755
2,110,296
54.1
45.9
Qatar (4)
fevereiro
2017
2,673,022
abril 2010
243,073
1,456,362
14.3
85,7
Arábia
Saudita
(5)
maio 2016
31,742,308
maio 2016
20,064,970
11,677,338
63.2
36.8
Emirados
Árabes
Unidos
(6)
meados de
2010
8,264,070
meados de
2010
947,997
7,316,073
11.5
88.5
Total*
53,113,301
25,747,195
26,392,519
49.4
50.6
Fontes: GLLM, baseado no respetivo ministério ou autoridade de estatística dos países do CCG
9
Embora as medidas acima referidas possam ser úteis e simples na análise das políticas
de migração e de refugiados, é importante sublinhar que, com poucas exceções (Ruhs,
2011), muitos modelos de medição excluem as Repúblicas da Ásia Central (RCA) e os
países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG). De facto, os países do Golfo Arábico
estão entre os principais recetores de migrantes económicos no mundo. Os países do
Golfo são, em termos per capita, os principais destinatários dos migrantes globais
(Fargues, 2015). Apesar da sua população global de menor dimensão, a Arábia Saudita
e os Emirados Árabes Unidos estão entre os 10 principais países de acolhimento de
imigrantes em termos absolutos, à frente de países como o Reino Unido, França, Canadá
4
http://www.mipex.eu/
5
http://globalcit.eu/
6
https://www.migrationinstitute.org/data/demig-data
7
http://www.impic-project.eu/
8
http://www.impaladatabase.org/
9
Cf. http://gulfmigration.eu/gcc-total-population-percentage-nationals-non-nationals-gcc-countries-
national-statistics-2010-2017-numbers/ [Último acesso 19/11/2017].
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ou Austrália (KNOMAD, 2016). O Qatar, os Emirados Árabes Unidos e o Kuwait, mais
particularmente, estão entre os três primeiros países mundiais em termos do rácio de
imigrantes em relação aos seus cidadãos nativos. Como um todo, a região do CCG tem
uma proporção excecionalmente elevada de imigrantes entre a sua população, como
mostra a tabela abaixo.
No entanto, apesar do elevado número de migrantes, as políticas de migração dos países
do Golfo são altamente criticadas. Diop, Johnson e Trung Le (2018: 43) sublinham o
regime político para explicar os atuais desafios migratórios. Eles defendem que
A teoria do «Selectorate» (de Mesquita et al., 2004) sugere que em regimes
monárquicos como os do CCG, os governantes devem manter um subconjunto
das suas populações satisfeito para evitar que os desafiantes surjam e
substituam o regime vigente. Embora a definição deste subconjunto possa
ser muitas vezes difícil na prática, no caso dos Estados do CCG, este grupo
vital deriva claramente da pequena população de cidadãos (2018: 43).
Os governos do CCG interferem sistematicamente para "restringir mais", apesar de terem
muito pouco impacto no terreno (Thiollet, 2015: 9). Thiollet sublinha duas características
principais do chamado modelo do Golfo: importação temporária de mão de obra e
políticas anti integração. A temporalidade é imposta pelos Estados do Golfo para limitar
a estadia dos migrantes. Por exemplo, em 2006, os EAU impuseram uma estadia máxima
de 6 anos para migrantes, e em 2015, a Arábia Saudita impôs uma estadia máxima de
8 anos para migrantes. Ao mesmo tempo, os governos reforçam voluntariamente a ficção
política da "migração temporária", recusando-se a divulgar dados sobre as populações
estrangeiras (Thiollet, 2015).
As políticas anti integração podem mesmo ser observadas em relação aos árabes étnicos.
Por exemplo, a substituição sistemática de migrantes árabes por migrantes asiáticos
começou desde 1979 (Bel Air, 2015). Fargues observa que "a sua riqueza petrolífera
cresceu muito mais rapidamente do que a sua população nativa, e eles atraíram um
grande número de trabalhadores estrangeiros. Ao mesmo tempo, sempre mantiveram
uma separação rigorosa entre nacionais e não nacionais" (Fargues, 2015).
Apesar do elevado número de migrantes, é digno de nota que existe também um elevado
volume de negócios com taxas significativas de "migrantes irregulares”: Não só os não
cidadãos têm menos direitos que os cidadãos, mas a sua própria presença deve ser
negociada - e pode ser questionada - a qualquer momento. Muitos estão constantemente
em risco de cair numa situação irregular” (Fargues, 2015). De facto, o objetivo da
"temporalidade" com políticas "anti integração" está orientado para aumentar o volume
de negócios dos migrantes (Bel Air, 2015). Além disso, as políticas de nacionalização do
Golfo (por exemplo, a política de Nitaqat na Arábia Saudita) que constituem tentativas
de reduzir a dependência de o de obra estrangeira podem também resultar em
empurrar os migrantes para a irregularidade. Por último, mas não menos importante, o
sistema de Kafala proporciona "duplo controlo" (Estado e cidadão participam) ao
contrário de outros países e permanece entre os principais canais de "reprodução de
migrantes irregulares". O rentismo é considerado como uma explicação para tal modelo
de migração, de acordo com vários investigadores. Diop, Johnson, Trung Le (2018)
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argumentam, com base no seu estudo relacionado com os desafios da reforma do kafala,
que
Para alguns grupos, a resistência à reforma da kafala deriva do seu interesse
político básico no status quo. Estes interesses tornam o sistema prevalecente
tão rentável que quase qualquer mudança resultaria em perdas" (44).
Fargues (2018) pensa que "Novidades como o pleno emprego dos nacionais,
incluindo no sector privado, tributação dos rendimentos ou alteração da kafala
significariam que uma mudança na cultura política, de um rentista para um
modelo produtivo”.
Estudos salientaram o contexto da Ásia Central como um "sistema de migração sub-
regional" (Sadovskaya, 2007: 168) e também introduziram o termo "subsistema de
migração regional na Ásia Central" (Sadovskaya, 2013: 31). Contudo, ao contrário dos
países do Golfo, a Ásia Central não tem um modelo regional único, quase completamente
homogéneo. A liberdade de movimentos e a migração laboral desenvolveram-se sob uma
base regional, durante a era soviética, mas agora apresentam algumas diferenças
significativas de um país para outro (Ormonbekova, 2011). A região da Ásia Central como
um todo era predominantemente uma região que enviava migrantes antes da
desintegração da URSS e essa ampla tendência continua ainda hoje em dia. Com a
notável exceção do Cazaquistão e, em menor medida, do Turquemenistão, todos os
outros países ainda estão parcial ou totalmente dependentes economicamente das
remessas enviadas pelos seus cidadãos que trabalham no estrangeiro,
predominantemente da Rússia e do espaço pós-soviético. O Tajiquistão, por exemplo, é
o país mais fortemente dependente das remessas dos seus cidadãos migrantes no
mundo.
As leis adotadas nos países da Ásia Central desde a sua independência (1991) indicam
que existe uma crescente abertura à cooperação internacional em várias áreas de
migração, tais como regras de entrada/saída, relações com a diáspora, cooperação
internacional em matéria de tráfico de seres humanos e, em menor extensão, nas regras
de cidadania. No entanto, tem havido leis e regulamentos cada vez mais restritivos
noutras áreas que lidam com os refugiados/requerentes de asilo, e também
regulamentos relacionados com a migração laboral. As políticas de migração em todos
os estados da Ásia Central mostram que os governos tentaram estabelecer um controlo
rigoroso sobre a o de obra estrangeira, mas também sobre a exportação de mão de
obra para o estrangeiro. Por conseguinte, os dados reais e oficiais relacionados com os
trabalhadores migrantes eram significativamente diferentes porque a grande maioria dos
migrantes ainda trabalha para além dos quadros estabelecidos entre os governos. No
caso dos países de origem dos migrantes, não tem havido políticas eficazes para
organizar a emigração laboral.
Consequentemente, os governos da Ásia Central enfrentaram muitos desafios na
substituição categórica (salto de categoria), reconhecimento formal do estatuto dos
migrantes e "lacunas de implementação" das suas políticas de migração. Assim, alguns
estudos utilizaram o termo "estratégia de sobrevivência" (Sadovskaya, 2006;
Zayonchovskaya, 2003) para destacar os desafios legais dos migrantes na região da Ásia
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Central. Outros estudos mostram que, para além das decisões formais, as práticas
informais são altamente visíveis na gestão da migração num sistema de migração
eurasiático mais vasto (Polese, Urinboyev, 2016).
Da mesma forma, para os Estados do Golfo Arábico, o Cazaquistão e o Turquemenistão
são ricos em recursos naturais e os seus respetivos Estados dependem das suas receitas
de petróleo e gás. Contudo, apenas o Cazaquistão e a Rússia no pós-soviético evoluíram
como países recetores quidos de migrantes. Tanto exportam petróleo como gás, e como
muitos países do Golfo, acolhem um grande número de migrantes económicos (Marat,
2009). Por conseguinte, é difícil identificar um modelo de migração da Ásia Central devido
ao facto de - à semelhança de muitas outras regiões - apresentar uma considerável
diversidade interna.
Tabela 3 - Características dos "Modelos" de Migração GCC e CAR
Diferenças
Aspetos comuns
Impactos do regime de
migração global
- Regime de migração aberto e
apertado controlo do Estado nos
países da Ásia Central,
conduzido pelo empregador
- Concessão liberal de vistos de
trabalho no Golfo e
procedimentos complexos de
autorização de trabalho na Ásia
Central
- Acesso muito limitado à
cidadania no CCG e possível
acesso à cidadania para os
migrantes económicos nos
países da Ásia Central
Papel importante dos atores
privados na migração do Golfo
enquanto as agências
governamentais tinham controlo
exclusivo sobre a migração
laboral na Ásia Central.
Atualmente, há um papel
crescente dos atores privados na
Ásia Central na exportação de
mão de obra migrante
"Importação de mão de obra"
baseada em acordos bilaterais
CCG e países de envio de
migrantes; uma ínfima parte da
migração laboral organizada
com base em acordos bilaterais
ou multilaterais no sistema de
migração eurasiático
Segregação residencial no CCG e
nenhuma política deste tipo nos
países da Ásia Central
- Parte importante de
imigrantes/emigrantes
- Contratos precários ou a curto
prazo
- Elevada rotatividade de migrantes
- Temporalidade
- Ausência de políticas de
integração
- Dificuldades de reagrupamento
familiar (para trabalhadores semi-
qualificados e não-qualificados)
- Segregação profissional
- Hierarquização" de migrantes no
CCG (Jamal, 2015) e na Ásia
Central (prioridade dada aos
migrantes étnicos)
- Direitos socioeconómicos
limitados
- Programas de deportação
- Quadro exploratório (sistema de
Kafala nos países do Golfo e
procedimentos complexos de
autorização de trabalho na Ásia
Central)
- Renacionalização da migração
durante a crise (Nitaqat no Golfo,
e atenção aos migrantes internos
no Cazaquistão)
- Securitização da migração
- Disparidades entre leis e
práticas
- "Lacuna legal" em
conformidade com as
normas internacionais
- “Revolução da Saída”
- Facilitação das regras de
entrada/saída
- Aumento dos acordos
bilaterais na gestão dos
fluxos migratórios
Preparado pelos autores, com base em Thiollet (2016), Jamal (2015) e GLMM (2014).
Alguns estudiosos demonstraram que, embora os países que enviam migrantes nem
sempre tenham políticas semelhantes, os países que recebem migrantes, como a Rússia
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e o Cazaquistão, desenvolveram políticas e abordagens semelhantes para os imigrantes;
ambos têm um procedimento legislativo em mudança e complexo que, por vezes, afeta
negativamente o fluxo migratório (Ni, 2015). Por conseguinte, pode ser feita uma
classificação com base em motivos legislativos que apresentem características comuns
de um modelo de migração da Ásia Central que tem muito em comum com o modelo do
Golfo.
Tem sido argumentado que nem todos os regimes abertos aos migrantes acolhem
necessariamente refugiados (Breunig, Cao, Luedtke, 2012). Tanto os países do Golfo
como os países de acolhimento de migrantes da Ásia Central (essencialmente do Norte)
(i.e. Cazaquistão) acolhem elevados rácios de migrantes entre a sua população e figuram
entre os 30 maiores países de acolhimento de mão de obra migrante. Em alguns países
como o Qatar e os EAU, os migrantes constituem até 90% da população, como se pode
ver no Quadro 3. Tal descrição poderia também aplicar-se ao Cazaquistão, à Rússia e,
em menor medida, ao Turquemenistão. Outro elemento que parece espelhar os países
exportadores de hidrocarbonetos do Golfo e do Norte da Ásia Central, é a sua relativa
proximidade com os requerentes de asilo.
Tanto os modelos de migração CAR como GCC desenvolvem uma elevada rotatividade
de migrantes económicos sem aderir a todos os instrumentos internacionais necessários
relacionados com a sua proteção.
Tabela 4 - Rácio Nacional/Não Nacional e número de instrumentos da OIT assinados pela CAR e
GCC
Países
(Líquido) país de envio ou de
acolhimento
Rácio oficial
(aproximado)
Nacional/Não
Nacional
10
,
11
Instrumentos
da OIT
assinados
centrados nos
trabalhadores
migrantes
12
(3
no total
13
)
Base de
dados de
boas
práticas da
OIT
14
Bahrein
Acolhimento
52% (imigrantes)
0
2
Cazaquistão
Acolhimento
12% (imigrantes)
0
3
Kuwait
Acolhimento
69% (imigrantes)
0
1
Quirguistão
Envio
13-28% (emigrantes)
1
2
Omã
Acolhimento
44% (imigrantes)
3
0
Qatar
Acolhimento
85% (imigrantes)
0
0
Arábia Saudita
Acolhimento
32% (imigrantes)
0
0
Tajiquistão
Envio
25-46% (emigrantes)
2
0
Turquemenistão
Nem envio, nem acolhimento
-
0
0
EAU
Acolhimento
88% (imigrantes)
0
1
Uzbequistão
Envio
9-11% (emigrantes)
0
0
Preparado pelos autores utilizando dados da OIT e GLMM
10
http://gulfmigration.eu/total-population-and-percentage-of-nationals-and-non-nationals-in-gcc-countries-
latest-national-statistics-2010-2015/
11
http://eng.globalaffairs.ru/valday/Labour-Migration-from-Central-Asia-to-Russia-in-the-Context-of-the-
Economic-Crisis-18334
12
Estes instrumentos incluem as seguintes convenções e recomendações: C097, C143 e C021.
13
http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:12030:0::NO:::#Migrant_workers
14
http://www.ilo.org/dyn/migpractice/migmain.home Para efeitos de aferição, vale a pena mencionar que os
EUA assinaram o maior mero de acordos, ou seja, 12 "boas práticas”.
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109
Outro elemento crítico são os dados limitados disponíveis para os estados rentistas.
Embora os dados disponíveis mostrem taxas relativamente baixas de migrantes nos
países eurasiáticos com base em autorizações de trabalho atribuídas a migrantes
económicos, uma abordagem mais matizada sugere que a realidade poderia ser bastante
diferente. Os complexos requisitos administrativos relacionados com a contratação de
mão de obra estrangeira nos países eurasiáticos conduzem à utilização e abuso de mão
de obra estrangeira através de meios ilegais. Assim, é importante considerar o papel dos
migrantes ilegais nas economias do Cazaquistão e da Rússia.
De acordo com o website do Gulf Labour Markets, Migration and Population Center
(GLMM):
"Apesar das questões relativas às normas internacionais de direitos humanos
e à situação dos estrangeiros nos países do CCG, o afluxo de imigrantes
(temporários) continua e os números absolutos e as percentagens relativas
de estrangeiros em relação aos nacionais de todos os países do CCG
permanecem pelo menos estáveis e, na maioria dos casos, continuam a
crescer. Isto acontece não obstante as políticas declaradas para reduzir a
percentagem de trabalhadores estrangeiros e aumentar a participação de
nacionais na força de trabalho”
15
.
Isso resultou num nível significativo de proximidade dos regimes de migração no CCG
em comparação com outras regiões. Como Ruhs mostrou no seu artigo, os programas
de imigração dos países do CCG são mais restritivos, especialmente em termos de
residência, família e direitos sociais entre 46 países de rendimento alto e médio (Ruhs,
2011).
2.2. Tratados internacionais, Convenções e sua aplicação e
rentismo
Betts argumenta que como exemplo típico do Eurocentrismo, a Convenção de Genebra
foi aplicada permanentemente à escala global em 1967, sem modificações. Por
conseguinte, os países do Médio Oriente e da Ásia não assinaram o acordo, o que
acreditam ser inconsistente com as condições de asilo nas suas áreas (Betts, 2018: 16).
Consideram que a Convenção não está em conformidade com a realidade da deslocação
na sua região e, em qualquer caso, a sua própria cultura e práticas jurídicas fornecem
abrigo (Betts, 2018: 50).
Outra característica saliente do estado rentista é a não aplicação e o não envolvimento
com normas internacionais ou regionais relacionadas com a proteção dos refugiados e
dos requerentes de asilo. O Quadro 5 mostra as capacidades comparativas de
acolhimento e a forma como vários países absorvem a população mundial de refugiados.
Como mostra a tabela, apesar de estarem fechados para os refugiados, os Estados
rentistas do CCG são colocados entre os doadores importantes do ACNUR. No Qatar, por
exemplo, os doadores privados contribuíram com mais de 39 milhões de USD (para além
15
https://gulfmigration.org/about/context/
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de mais de 9 milhões de USD do governo do Qatar em 30 de abril de 2019),
16
classificando o país entre os principais doadores do ACNUR. Bel Air (2015) mostrou que
apesar de os países do Golfo Arábico não estarem oficialmente vinculados à Convenção
de Genebra de 1951, eles concedem asilo a alguns requerentes de asilo sírios.
Tabela 5 - Indicadores selecionados que medem a capacidade e as contribuições dos países de
acolhimento
Países
/ Indicadores
Ranking
na
população
total de
refugiados
Ranking
de
Refugiados
por 1000
habitantes
Ranking em
pedidos de
asilo
apresentados
Volume
da
população
nacional
milhões
Produto
Interno
Bruto
(mil
milhões)
Superfície
nacional
(km
2
)
Doação
global
Ranking
(privado
e
estatal
em
2018)
Classifica
ção geral
dos
doadores
(privados
e estatais
em
2019)
Bahrein
138
107
152
1,5
32,179
771
-
-
Omã
134
130
149
4,8
66,293
309500
66
71
Qatar
141
126
135
2,6
152,452
11600
20
9
Arábia Saudita
143
164
71
33,5
646,438
2149690
28
21
EAU
111
122
128
9,5
348,743
83600
31
40
Kuwait
118
111
62
4
110,876
17820
34
37
Cazaquistão
122
143
111
18
137,278
2724902
80
-
Uzbequistão
156
172
63
32
67,22
447400
-
-
Turquemenistão
155
166
125
5,8
36,18
488100
-
-
Quirguistão
132
135
139
6
6,551
199949
95
-
Tajiquistão
91
101
100
9
6,952
141376
-
-
Dados: UNHCR, 2018
Os Estados rentistas também revelaram a sua abordagem na adaptação ao afluxo de
refugiados. Por exemplo, o Uzbequistão ofereceu ajuda humanitária aos refugiados do
Quirguistão durante os conflitos de 2005 e abriu as suas fronteiras. O CCG prestou uma
atenção significativa à situação dos refugiados palestinianos e implementou medidas
rápidas para proteger os seus interesses na década de 1950. Apesar desta história de
assistência aos refugiados, como se viu no protocolo de Casablanca de 1955, a atual
resposta aos refugiados sírios demonstra uma mudança de atitude entre os Estados
rentistas no que diz respeito à demonstração de solidariedade étnica ou religiosa
(Alimukhamedov, Lambert, Bin Hashim, 2018).
Bel Air (2015) também escreve que continua a ser impossível verificar a exatidão das
posições destes países sobre os requerentes de asilo devido a uma falta geral de dados.
O problema dos dados relacionados com os refugiados é mais bem descrito pelo ACNUR
(2012) na sua Revio Periódica dos EAU, mostrando a complexidade da questão devido
a um quadro legislativo que sublinha que “(d) apesar da ausência de um quadro nacional
que regule as questões relacionadas com o asilo, o Governo dos EAU continua a respeitar
as normas internacionais de proteção dos refugiados, incluindo o princípio essencial da
não expulsão” (UNHCR, 2012: 1). Os países do CCG não reenviam todos os requerentes
de asilo para os países de origem devido às leis nacionais, apesar de não estarem
vinculados pela Convenção de Genebra de 1951. No entanto, as leis nacionais de
imigração dos países do CCG não reconhecem os refugiados, com exceção dos
requerentes de asilo político, como se pode ver no quadro acima.
16
https://www.unhcr.org/partners/donors/5baa00b24/2019-unhcr-donor-ranking.html
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O o reconhecimento do estatuto de refugiado pelo CCG aplica-se também às práticas
regionais propostas pela Liga dos Estados Árabes. Em 1994, a Liga dos Estados Árabes
propôs a Carta Árabe dos Direitos do Homem, onde o artigo 28º declara que:
“Todas as pessoas têm o direito de procurar asilo político noutro país a fim de
escapar à perseguição. Este direito o pode ser invocado por pessoas que
enfrentam uma acusação por um delito de direito comum. Os refugiados
políticos não podem ser extraditados”.
Esta Carta não altera a posição dos países do CCG relativamente ao asilo e foi assinada
por todos os Estados do Golfo, com exceção de Omã, que é menos dotado em petróleo
e gás. Em 1994, a Liga Árabe aprovou a "Convenção Árabe sobre a Regulamentação do
Estatuto dos Refugiados nos Países Árabes", que é largamente semelhante à Convenção
de Genebra (1951). No entanto, simplesmente não tem signatários. O processo de não
reconhecimento de refugiados cria na prática outras categorias, tais como "irmãos e
irmãs árabes em perigo" (KNOMAD, 2018) sem proporcionar a proteção jurídica e
administrativa necessária.
Tabela 6 Dados do ACNUR sobre Refugiados no Golfo Arábico, Ásia Central e Rússia
País/Território de asilo
Refugiados
Requerentes
de asilo
Pessoas sob o mandato
de apátrida do ACNUR
Total da população
afetada
Bahrein (2016)
247
113
Nenhuma
360
Cazaquistão (2015)
708
97
7 909
8 714
Kuwait (2016)
741
900
93 000
94 641
Quirguistão (2014)
354
158
9 118
9 630
Omã (2016)
245
190
Sem dados
435
Qatar (2016)
120
118
1 200
1 438
Arábia Saudita (2016)
118
Mais de 30
70 000
Mais 70 148
Tajiquistão (2016)
1969
288
19469
21 779
Turquemenistão (2014)
26
Sem dados
7125
7151
EAU (2016)
882
600
30 000 100 000
31 482 101 482
Uzbequistão (2016)
27
0
86 524
86810
Preparado por autores, com base em múltiplos relatórios do ACNUR
À exceção do Uzbequistão
17
, os RCA são todos signatários da Convenção de Genebra de
1951. Em comparação com os países do CCG, estão também mais bem envolvidos com
17
Desde 2016, o novo governo uzbeque implementou políticas numéricas positivas no domínio da migração.
O Uzbequistão tornou-se membro da OIM em 2018 e adotou uma série de decisões centradas na proteção
dos direitos dos trabalhadores migrantes, organização da exportação da força de trabalho (Rússia, Polónia,
Coreia do Sul, etc.), regras de entrada/saída, etc. O decreto presidencial sobre a concessão de asilo no
Uzbequistão foi assinado em 29.05.2017.
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os instrumentos jurídicos internacionais relevantes, como se pode ver no Quadro 7. Além
disso, os RCA também tinham mecanismos alternativos como o acordo da CEI sobre a
ajuda aos refugiados e deslocados à força, assinado em 1993 pelos RCA, na sequência
do colapso da URSS. Em 1995, foi criada uma estrutura de apoio aos refugiados e às
pessoas deslocadas à força.
Tabela 7 - Partes no Tratado de Instrumentos Jurídicos Relevantes
País ou território
Convenção e/ou
Protocolo sobre
Refugiados
CAT
ICCPR
Cazaquistão
Sim
Sim
Sim
República do Quirguistão
Sim
Sim
Sim
Tajiquistão
Sim
Sim
Sim
Turquemenistão
Sim
Sim
Sim
Uzbequistão
Não
Sim
Sim
Irão
Sim
Não
Sim
Arábia Saudita
Não
Sim
Não
Bahrein
Não
Sim
Sim
Kuwait
Não
Sim
Sim
Qatar
Não
Sim
Não
Omã
Não
Não
Não
EAU
Não
Sim
Não
Fonte: Informação sobre Assistência Jurídica aos Refugiados para os Advogados que Representam
os Refugiados Globalmente
No entanto, como mencionámos acima, os Estados têm lacunas significativas na
aplicação das normas internacionais devido a leis nacionais incompatíveis que nem
sempre estão em conformidade com a Convenção de Genebra de 1951. O chamado "vazio
legislativo" entre a Convenção de Genebra de 1951 e as legislações nacionais dos países
da Ásia Central são uma questão para lidar com os refugiados. Isto pode incluir: a falta
de um conjunto vinculativo e escrito de procedimentos operacionais ou mecanismos de
encaminhamento para a determinação do estatuto de refugiado (DER); a ausência de
um centro de alojamento temporário para os requerentes de asilo recém-chegados;
aconselhamento jurídico e representação insuficientes que os refugiados e requerentes
de asilo possam requerer; e a não utilização de informações apropriadas sobre o país de
origem no processo de DER.
De acordo com Cynthia Orchard, "os governos e organizações regionais da Ásia Central
dão geralmente prioridade à concentração do poder e da segurança sobre os direitos
humanos. Embora existam preocupões legítimas de segurança na região, estas são
frequentemente exageradas, e todos os governos da região são responsáveis por graves
violações da IRL e do direito internacional dos direitos humanos” (Orchard, 2016). De
facto, é importante considerar não só a Convenção de 1951, mas todas as séries de Leis
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113
de Direitos Humanos, a fim de ver o diagnóstico exato das políticas de refugiados e
requerentes de asilo dos países de acolhimento. A ratificação dos Instrumentos de
Direitos Humanos desempenha um papel fundamental na medição dos compromissos
morais dos Estados combinados com outros acordos internacionais fundamentais
relativos aos refugiados, migrantes e apátridas. De acordo com o estatuto da ratificação
dos Instrumentos de Direitos Humanos, a CAR e estão entre o 2º (entre 10-14
instrumentos assinados de 18) e os Estados do CCG estão em 3º (entre 5 e 9
instrumentos assinados de 18) grupos, respetivamente
18
. De facto, importantes barreiras
no desenvolvimento das condições dos refugiados e dos requerentes de asilo nos RCA
estão muito ligadas ao cumprimento dos Instrumentos de Direitos Humanos.
Ao aplicar a medição básica com codificação
19
relacionados com alterações nas
legislações nacionais ao longo do tempo, descobrimos que os estados rentistas têm
menos probabilidades de adotar o pleno cumprimento das normas internacionais em
matéria de proteção dos refugiados. Por exemplo, desde a assinatura da Convenção de
Genebra de 1951, os RCA aprovaram procedimentos de aplicação restritivos na sua
regulamentação das políticas de refugiados e requerentes de asilo. As práticas legais não
se tornaram mais restritivas em comparação com os primeiros anos de independência,
como evoluíram continuamente para serem mais restritivas ao longo do tempo.
Apesar da assinatura da Convenção de Genebra de 1951 e do Protocolo de 1967 em
1999, a República do Cazaquistão (RK) ainda aplica uma divisão rigorosa entre os
conceitos de "refugiado" e de "asilo político". As autoridades cazaques o as promotoras
da iniciativa do Plano de Ação de 10 Pontos na Ásia Central
20
, mas a questão do pleno
cumprimento da Convenção de Genebra na legislação nacional do Cazaquistão não é
alcançada. Por exemplo, a questão principal diz respeito à autorização de estadia anual
atribuída aos refugiados. De facto, "a concessão do estatuto de refugiado por um ano e
a sua subsequente prorrogação anual está em conflito com as disposições da Convenção
de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e à Lei de RK sobre Refugiados, sobre o
Estatuto Jurídico dos Estrangeiros e sobre a Cidadania da República do Cazaquistão” (De
Berry & Petrini, 2011). Embora a Convenção de 1951 preveja o direito de trabalhar e de
ser empregado nos países de acolhimento, na realidade os refugiados não têm acesso ao
mercado de trabalho. De acordo com o Código do Trabalho da RK, são necessários os
seguintes documentos: uma cópia do código social individual (SIC), uma cópia do número
de registo do contribuinte (TRN), a partir de 1 de janeiro de 2013 - uma cópia do número
de identificação individual (IIN), e uma cópia do documento de registo” (Abishev &
Sultanov, 2012: 120). A lista de obstáculos complexos que os refugiados enfrentam
também inclui a Resolução n.º 266 do Banco Nacional da República do Cazaquistão, que
não permite aos indivíduos temporariamente residentes no Cazaquistão ter uma conta
bancária ou fazer transações, limita o acesso a benefícios sociais como cuidados de saúde
gratuitos, nega a propriedade privada de habitação e dificulta a aquisição da
nacionalidade cazaque pelos filhos de refugiados nascidos no Cazaquistão (Abishev &
Sultanov, 2012). Esta última é muito complexa e pode ser dada pelo Presidente do
país enquanto o estatuto de refugiado é redefinido anualmente pelo decreto 273 do
18
Para mais informações detalhadas ver http://indicators.ohchr.org/.
19
(+) por uma mudança positiva para os refugiados e (-) por medidas restritivas tomadas pelas autoridades
20
A Ação salienta o problema dos refugiados e tenta mobilizar todos os parceiros (países) vizinhos que são
afetados pelos refugiados afegãos.
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Ministério do Trabalho e da Proteção Social de 20-11-2007. Mesmo a nova lei de 2010
(alterada em 2017) não introduziu alterações às políticas restritivas do Kazakhtan.
No caso do vizinho Quirguistão, adere tanto à Convenção de Genebra de 1951 como ao
seu Protocolo em 1996. Foi adotada a "Lei dos Refugiados" de 25 de março de 2002, que
geralmente cumpre tais normas. Teoricamente, os refugiados após três anos de estadia
podem candidatar-se à cidadania. Contudo, esta decio foi alterada em 2006 em relação
à entrada legal de refugiados e requerentes de asilo, excluindo principalmente os Uigures
e os Uzbeques da candidatura ao estatuto de refugiado devido a preocupações políticas.
O artigo 2º da lei foi modificado e aplicado apenas aos requerentes que permanecem no
território por motivos legais, o que constitui uma violação da Convenção de Genebra de
1951. O Quirguistão também se tornou mais ativo na deslocação de refugiados para
países terceiros (1900 refugiados). Para além das restrições legais, a República do
Quirguistão detém uma taxa muito baixa de reconhecimento do estatuto de refugiado (0
em 2012, 13% em 2013).
O Tajiquistão adere tanto às disposições de Genebra de 1951 como ao seu Protocolo em
1993. A nova lei de asilo adotada em 2002 (a primeira na Ásia Central) e as resoluções
nacionais implementaram políticas em contradição com as convenções. Por exemplo, a
resolução 325 (2000) e a resolução 328 (2004) proíbem os requerentes de asilo e
refugiados de residirem em áreas urbanas designadas, tais como a capital Dushanbe ou
Khujand. A Resolução 325 (artigo 499(3) do código administrativo) permite a deportação
e mesmo a repulsão de refugiados, o que está em contradição com o artigo 14(1) da lei
sobre refugiados. Vários países o designados como países terceiros seguros para os
requerentes de asilo pela Resolução 323 (2000), como o Afeganistão, Bielorrússia, China,
Irão, Cazaquistão, Quirguistão, Paquistão, Rússia, Turquemenistão e Uzbequistão. A
resolução também proíbe a concessão do estatuto de refugiado aos requerentes que
residiram temporariamente nestes países sem definir o período de estadia (Rozumek,
2012). As connuas restrições do regime de refugiados no Tajiquistão foram reforçadas
em anos posteriores. A Lei 1124 adotada pelo Parlamento em 26-07-2014 eliminou a
possibilidade de se tornar cidadão do país (os refugiados tinham a possibilidade de
requerer a cidadania após 2, 5 estadia no país). A lacuna na implementação é reforçada
nos procedimentos de pré-registo antes de um pedido de asilo ser registado. Além disso,
o acesso ao asilo depende atualmente também de vários requisitos preliminares (visto,
documento de viagem, ou prova de residência).
Além de aderir à Convenção de Genebra e ao Protocolo em 1998, o Turquemenistão é o
único entre os RCA que assinou a convenção de 1954 relacionada com a apatridia e a
convenção de 1961 sobre a redução da apatridia em 2012. No entanto, o Turquemenistão
concedeu o estatuto de refugiado principalmente à etnia turquemena vinda de países
vizinhos. Em 2005, concedeu a cidadania a 10.158 refugiados, e após 2011 o
Turquemenistão concedeu a nacionalidade a mais de 6.400 apátridas e refugiados. Como
Estado rentista, o Turquemenistão utiliza o cartão étnico no SDP e no RSD. As
autoridades turquemenas também aplicam procedimentos separados para refugiados e
requerentes de asilo, em contradição com a convenção de 1951. Desde 2005, o
Turquemenistão não aceitou nenhum pedido de asilo (2ª categoria) no país, uma vez que
a responsabilidade do RSD é transferida para o Serviço de Migração do Estado.
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115
Tal como demonstrado acima, apesar da adesão legal, não nenhum país na Ásia
Central que cumpra integralmente a Convenção do ACNUR de 1951. Em contraste, a
experiência dos RCA mostra como a lacuna legal aumentou em relação às normas
internacionais ao longo do tempo.
Como dissemos anteriormente, os regimes de migração dos Estados rentistas são
formados em relação à segurança do seu regime. Por conseguinte, os passos legais e a
consequente implementação nos Estados rentistas ocorrem em relação à segurança do
regime. Recentemente, ocorreram alterações importantes em relação às políticas gerais
de migração no Qatar. O país adotou a lei do asilo de refugiados (primeiro no CCG) e
novas leis laborais em 2018. Estas mudanças positivas não podem ser totalmente
dissociadas da segurança do regime (o recente isolamento político do Qatar no CCG e o
próximo Campeonato Mundial 2022
21
). Estas abordagens positivas visam também
proteger os regimes através da cooperação e reconhecimento internacionais. Contudo, a
segurança do regime nos Estados rentistas pode também ter reações opostas em relação
à sua situação política e económica. Por exemplo, após a tentativa de assassinato de
Niyazov em 2002, as políticas de migração foram reforçadas e muitas medidas restritivas
foram introduzidas (estabelecimento de vistos de saída para os cidadãos, nenhum acordo
de isenção de visto tornando impossível a visita de estrangeiros de qualquer país ao
Turquemenistão sem visto, proibição da dupla cidadania e outros) no Turquemenistão.
Alguns estudiosos argumentam que os regimes dos RCA beneficiaram da integração nos
mercados globais apesar de muitos críticos relacionados com a situação política interna
(Rustemova Tutumlu, 2011, 2012). Uma gestão eficiente da migração pode também
criar-lhes oportunidades de reforçar as suas capacidades através da diversificação de
recursos.
3. Importância crescente da fundamentação económica na moldagem
dos regimes de migração
3.1. Uma lógica económica para as tendências convergentes no
sentido de um "modelo de migração do Estado rentista"?
Lambert et al. (2015) e Shin (2016) consideram que os principais determinantes das
políticas e regulamentos de imigração de um país são a natureza política do Estado
envolvido e a sua economia política. Shin (2016) enfatizou particularmente a distinção
entre regimes democráticos e autocráticos, considerando que a política de imigração
deste último é essencialmente uma consequência da tomada de decisão de um autocrata
sobre as receitas dos recursos naturais e a sua política redistributiva. Quanto mais um
país autocrata pode redistribuir aos seus cidadãos, menos necessário é que os cidadãos
trabalhem em empregos mal remunerados, levando a uma maior dependência da mão
de obra importada. Shin articula a sua ideia da seguinte forma:
“a política de imigração de um regime autoritário é uma consequência da
política redistributiva das elites e da sua preocupação com o mercado de
trabalho. Embora as elites prefiram geralmente a mão de obra imigrante, a
21
https://orientxxi.info/magazine/is-the-reform-of-the-right-of-asylum-in-qatar-for-real,3154
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e dos Estados Árabes do Golfo
Farkhad Alimukhamedov e Hisham Bin Hashim
116
política de imigração depende da medida em que os autocratas são capazes
de redistribuir aos cidadãos nativos que estariam subempregados na presença
de uma imigração substancial e pouco qualificada. Quando os governos
dependem unicamente das receitas fiscais das elites, não têm capacidade
para redistribuir. Sem redistribuição, os autocratas fornecem salários em
troca do trabalho dos trabalhadores nativos. Os governos que procuram
receitas encorajam a participação dos trabalhadores domésticos no mercado
de trabalho, restringindo ao mesmo tempo a imigração. Contudo, os governos
com fontes de rendimento independentes distribuem rendas aos seus
cidadãos enquanto fornecem trabalhadores migrantes às elites que apoiam o
regime.” (Shin, 2016: 16)
Contudo, Lambert et al. (2014) exploraram empiricamente as muitas semelhanças na
contratação de trabalhadores domésticos asiáticos nos países exportadores de
hidrocarbonetos dos Estados do Golfo Arábico e da Escandinávia (democrática). A
Noruega e o Qatar especificamente, e mais geralmente os países exportadores de
petróleo e s de ambas as regiões, tendem a criar nichos legais especiais (como "au
pair" na Escandinávia ou como "trabalhadores domésticos" no CCG) para importar mão
de obra de baixo custo do Sul e Sudeste Asiático (especialmente as trabalhadoras das
Filipinas) e contornar o código laboral nacional mais exigente no CCG ou os acordos
sectoriais dos sindicatos na Escandinávia. Em ambas as reges, os trabalhadores
domésticos asiáticos acabam por realizar trabalhos domésticos considerados como não
atrativos para os cidadãos, sendo pagos várias vezes menos do que o salário mínimo a
que os cidadãos têm legalmente direito. Este fenómeno migratório semelhante é
observável tanto em contextos democráticos como não democráticos e, portanto, tende
a relativizar a relevância da dicotomia autocrática/democrática proposta por Shin (2016),
apoiando, no entanto, tanto Lambert et al. (2015) como o argumento comum de Shin
(2016) de que a economia política e a redistribuição das receitas dos hidrocarbonetos
são elementos importantes na elaboração das políticas de imigração.
3.2. Como podem as tendências económicas explicar a convergência
para um modelo de migração do Estado rentista?
Estados rentistas de alto rendimento como Brunei, Kuwait, Qatar e Noruega, entre
outros, têm um sofisticado Estado social redistributivo e uma economia política diferente,
em comparação com Estados não-rentistas, "estados produtivos" (ver Luciani, 1990). No
caso destes últimos, contudo, as economias não dependem das exportões de produtos
naturais e os refugiados não são necessariamente vistos como um fardo, mas, do ponto
de vista da economia do lado da oferta, como uma via para acrescentar à sociedade
membros com maior contribuição económica. Na Europa, isto pode ser parcialmente
explicado pelos problemas demográficos que alguns Estados da UE enfrentam, devido ao
envelhecimento da população e a algumas zonas rurais quase desertificadas. A posição
aberta de países da UE como a Alemanha, Suécia e Finlândia pode ser explicada pelos
seus modelos económicos e sociais que procuram expandir as suas economias e manter
alguns setores para fins de exportação, incluindo a agricultura e indústrias que requerem
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117
populações jovens, produtivas e com uma boa relação custo-eficácia. Nesta perspetiva,
os refugiados podem ser vistos como um investimento económico. Podem ajudar as
economias locais substituindo os nativos nos chamados "empregos 3D" (ou seja, Sujos,
Perigosos e Difíceis), permitindo assim que estes últimos ocupem posições geralmente
mais qualificadas e mais bem remuneradas.
A recente e gradual convergência para um "modelo de migração do Estado rentista",
especialmente entre os países exportadores de hidrocarbonetos de elevado rendimento,
tende a afastar-se acentuadamente desta perspetiva. Os países rentistas podem
continuar a ter uma elevada proporção de imigrantes económicos temporários (tanto não
qualificados como de colarinho branco), mas ao mesmo tempo não querem carregar uma
parte do "fardo" do acolhimento de refugiados, como têm feito nas últimas décadas. Um
refugiado torna-se um "fardo" dentro de uma economia política onde a riqueza não é
tanto produzida (por exemplo, a partir da agricultura, produção industrial e serviços)
como redistribuída a partir das receitas dos hidrocarbonetos. Quando uma grande parte
do rendimento nacional provém em grande parte de um recurso finito, como as rendas
do petróleo, os refugiados podem não ser vistos como potenciais contribuintes, mas sim
como beneficiários estrangeiros e, portanto, indiscutivelmente ilegítimos de uma fatia
(gratuita) da tarte. Como os recursos de carvão, petleo e s são finitos, a
redistribuição e captura de renda são jogos de soma zero, em que acrescentar pessoas
implica retirar alguns recursos a outros.
A queda de 2014 nos preços do petróleo e do gás (por exemplo, os preços do petróleo
bruto caíram de 114 USD (por barril) em 2014 para 30 USD em 2015) afetou
negativamente os Estados rentistas do CCG e da RCA durante os últimos três anos.
Muitos sofreram com a desvalorização da moeda cazaque (Schenkkan, 2015), que
mais de um milhão de migrantes foram deportados da Arábia Saudita de 2014 a 2016
(GLMM, 2016), e a Rússia endureceu a legislação sobre migração (Denisenko, 2017).
Para além da deportação em massa de imigrantes, várias políticas conduzidas pelos
regimes como a "Saudização" ou a "Emiratização" são frequentemente consideradas
como formas de criar melhores oportunidades económicas para os nativos, embora
gerem efeitos negativos para os imigrantes, particularmente entre os expatriados de
colarinho branco em termos de segurança de emprego. O modelo redistributivo do Estado
rentista proporciona algumas formas de cooperação e partilha de poder entre o Estado e
os nacionais no controlo da imigração durante os abrandamentos económicos, como os
países da RCA e do CCG estão atualmente a experimentar. O Estado rentista estabelece
uma "hierarquização" entre os nativos e os imigrantes - a flexibilidade de emprego destes
últimos, proporcionando uma boa alavanca para uma maior segurança de emprego entre
os primeiros, em tempos de menor crescimento económico. Este modelo acaba por
permitir alguma redução da pressão dos cidadãos sobre o governo. Durante períodos de
dificuldades económicas, a pressão é suportada pelos imigrantes e não é igualmente
partilhada com os cidadãos nacionais e o governo. Os imigrantes podem ser rápida e
eficientemente explorados dentro deste sistema (por exemplo, através de reduções de
salário, deportação antes do fim do contrato, substituições), dependendo dos interesses
evolutivos do Estado. Os direitos sociais e económicos limitados, associados à separação
espacial das comunidades, alimentam e reforçam este status quo. Por conseguinte, o
modelo de Estado rentista não pode ser simplesmente reduzido a vantagens económicas,
mas sim, fornece também bens políticos para a elite governante, que pode facilmente
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jogar a "carta" temporária do imigrante para vários fins, e particularmente como uma
variável de ajustamento. Vale a pena mencionar, outros países exportadores de
hidrocarbonetos, para além da RCA e dos Estados do Golfo Arábico, reduziram tamm
as afluências de migrantes e começaram a deportar maciçamente imigrantes económicos
não qualificados ao longo do último ano, enquanto as receitas petrolíferas deprimidas
deterioraram a sua situação económica. Isto envolve Estados rentistas significativamente
diferentes, tais como a Argélia, Guiné Equatorial, Noruega e Venezuela, entre outros.
A atual crise da COVID atinge imediatamente os migrantes, tornando a sua situação
extremamente difícil. Dados oficiais sugerem que no Kuwait, nos EAU e no Bahrein quase
todos os casos de COVID são encontrados entre migrantes, muitos dos quais vivem em
campos de trabalho (The Guardian, 2020). No Cazaquistão, os migrantes sem
documentos foram "deixados para trás todos os paraquedas possíveis e oportunidades
de segurança" sem acesso à assistência médica estatal (Cabar, 2020). Além disso, a
Assembleia Nacional do Kuwait aprovou um projeto de lei que procura reduzir o número
de trabalhadores estrangeiros de 70% para 30%. Como resultado, os indianos não
devem exceder 15% da população, apesar de constituírem atualmente a maioria dos
migrantes no país (BBC, 2020). Embora haja ceticismo quanto à implementação do
projeto, os governos "aproveitam" esta situação para não renovar a residência dos
migrantes sem qualquer critério (Gulfnews, 2020). Outro país do CCG, os EAU, tornou
legal para os empregadores a alteração unilateral dos contratos de trabalho para
"restruturar a relação contratual", permitindo frequentemente a organizações privadas
cortar salários ou forçar os empregados a tirarem férias não remuneradas (Business-
humanrights.org, 2020).
A noção de crise está geralmente associada à dificuldade presente e à incerteza futura.
Ao mesmo tempo, oferece também a possibilidade de questionar os quadros de migração
existentes. Isto pode proporcionar mais oportunidades para pensar em melhores
sistemas e atualizar os presentes regimes de migração. Contudo, as políticas dos estados
rentistas durante qualquer período de crise parecem dar-lhes mais oportunidades de
tornar os migrantes remanescentes vulneráveis e aumentar os seus receios e ansiedades.
Conclusão
O objetivo deste artigo era investigar, e faz sentido, a influência do rentismo energético
sobre a política e as disposições legais de um país relativamente aos requerentes de asilo
e refugiados, como durante a chamada "crise dos migrantes" entre 2015-2016.
Este artigo realçou que alguns Estados exportadores de hidrocarbonetos do Golfo Arábico
e da Ásia Central, que há muito tempo têm sido relativamente generosos na concessão
de asilo a populações das suas respetivas regiões, tornaram agora as suas fronteiras
muito menos abertas. Com base em estatísticas descritivas globais, demonstrámos que
existe de facto uma forte correlação entre ser um Estado rentista exportador de
hidrocarbonetos e ter uma legislação restritiva e/ou políticas de deportação em massa
para os requerentes de asilo. É o caso, por exemplo, dos Estados ricos em energia da
Arábia Saudita e do Cazaquistão, enquanto a maioria dos refugiados do mundo são
acolhidos por países com dotes naturais e recursos económicos per capita de valor
limitado.
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e dos Estados Árabes do Golfo
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119
Através de estudos de caso este documento analisou as políticas dos Estados ricos em
hidrocarbonetos em relação aos requerentes de asilo e potenciais refugiados.
Comparando os atuais modelos de migração dos Estados rentistas no Conselho de
Cooperação do Golfo e na Ásia Central, o documento salientou que a maioria dos Estados
da Ásia Central muito que ratificaram um número significativamente maior de
convenções internacionais do que os seus homólogos do Golfo. A nível regional, porém,
muito poucos afegãos encontraram abrigo nos países da Ásia Central - especialmente
nos estados ricos em petróleo e gás do Cazaquistão e Turquemenistão - e apenas um
número muito limitado de sírios e iemenitas encontraram proteção nas monarquias ricas
em petleo do Golfo depois de 2015. Esta tendência contrasta com a história dos Estados
do Golfo que acolheram comunidades de requerentes de asilo da região, tais como
palestinianos, minorias iranianas e iemenitas durante conflitos anteriores. Este artigo
conclui assim que se pode observar uma dinâmica de convergência entre os Estados
rentistas de ambas as regiões no sentido de um modelo de migração mais restritivo e
indiscutivelmente novo do Estado rentista. Contudo, este documento ainda não pode
afirmar que o aumento dos fluxos de refugiados foi o principal motor da mudança política
e legislativa nestas duas regiões.
Os autores reconhecem que a aceleração das leis e regulamentos mais restritivos das
políticas de deportação em massa para os requerentes de asilo e "migrantes ilegais"
nestes Estados rentistas está também correlacionada com um importante fator externo
de mudança: isto é, preços internacionais do petróleo e do gás mais baixos desde o
segundo semestre de 2014. Como a correlação não implica necessariamente uma causa,
é necessária uma investigação mais aprofundada para determinar qual o fator que tem
sido a principal força motriz para as trajetórias evolutivas semelhantes dos sistemas
nacionais de asilo e das políticas de deportação para os imigrantes entre os Estados
rentistas. Esta pesquisa adicional é necessária, não só à escala regional, mas também à
nacional e internacional, uma vez que as dinâmicas acima mencionadas foram
observadas muito para além da região do Golfo Arábico e da RCA, em muitos outros
Estados rentistas exportadores de hidrocarbonetos, como a Argélia, a GuiEquatorial e
a Noruega.
Anexo 1 - Lista dos Estados membros da ONU por classificações de grupo de rendimento, exportador líquido
de hidrocarbonetos, Estado rentista, e políticas de imigração muito restritivas
País
Grupo rendimentos
Exportador
líquido de
hidrocarbonetos
Estado rentista
exportador de
hidrocarbonetos
Políticas muito
restritivas para
os refugiados
Afeganistão
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Albânia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Argélia
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Sim
Andorra
Alto rendimento
Não
Não
Não
Angola
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Sim
Antígua e Barbuda
Alto rendimento
Não
Não
Não
Argentina
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Arménia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Austrália
Alto rendimento
Sim
Não
Sim
Áustria
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Azerbaijão
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Não
Bahamas
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Bahrein
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
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Bangladesh
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Barbados
Alto rendimento
Não
Não
Não
Bielorrússia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Bélgica
Alto rendimento
Não
Não
Não
Belize
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Benim
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Bermuda
Alto rendimento
Não
Não
Não
Butão
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Bolívia
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Não
Bósnia e Herzegovina
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Botsuana
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Brasil
Rendimento médio alto
Sim
Não
Sim
Brunei Darussalam
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Bulgária
Rendimento médio alto
Não
Não
Sim
Burkina Faso
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Burundi
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Cabo Verde
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Camboja
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Camarões
Rendimento médio baixo
Não
Não
Sim
Canadá
Alto rendimento
Sim
Não
Sim
Rep. Centro Africana
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Chade
Baixo rendimento
Sim
Sim
Não
Chile
Alto rendimento
Não
Não
Não
China
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Colômbia
Rendimento médio alto
Sim
Não
Não
Comores
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Rep. Dem. Congo
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Congo
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Costa Rica
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Costa do Marfim
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Croácia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Cuba
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Curaçao
Alto rendimento
Sim
Não
Não
Chipre
Alto rendimento
Não
Não
Não
Rep. Checa
Alto rendimento
Não
Não
Não
Dinamarca
Alto rendimento
Sim
Não
Sim
Djibouti
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Dominica
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Rep. Dominicana
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Equador
Rendimento médio alto
Não
Não
Sim
Rep. Árabe Egito
Rendimento médio baixo
Sim
Não
Não
El Salvador
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Guiné Equatorial
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Sim
Eritreia
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Estónia
Alto rendimento
Não
Não
Não
Etiópia
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Fiji
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Finlândia
Alto rendimento
Não
Não
Não
França
Alto rendimento
Não
Não
Não
Gabão
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Sim
Gâmbia
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Geórgia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Alemanha
Alto rendimento
Não
Não
Não
Gana
Rendimento médio baixo
Sim
Não
Não
Grécia
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Granada
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Guatemala
Rendimento médio baixo
Sim
Não
Não
Guiné
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Guiné-Bissau
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Guiana
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Haiti
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Honduras
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
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e dos Estados Árabes do Golfo
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Hungria
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Islândia
Alto rendimento
Não
Não
Não
India
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Indonésia
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Não
Rep. Islâmica Irão
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Não
Iraque
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Não
Irlanda
Alto rendimento
Não
Não
Não
Israel
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Itália
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Jamaica
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Japão
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Jordânia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Cazaquistão
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Sim
Quénia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Kiribati
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Rep. Dem Coreia
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Rep. Coreia
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Kuwait
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Rep. Quirguistão
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Lao PDR
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Letónia
Alto rendimento
Não
Não
Não
Líbano
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Lesoto
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Libéria
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Líbia
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Sim
Liechtenstein
Alto rendimento
Não
Não
Não
Lituânia
Alto rendimento
Não
Não
Não
Luxemburgo
Alto rendimento
Não
Não
Não
Macedónia
Rendimento médio alto
Não
Não
Sim
Madagáscar
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Malawi
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Malásia
Rendimento médio alto
Sim
Não
Sim
Maldivas
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Mali
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Malta
Alto rendimento
Não
Não
Não
Ilhas Marshall
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Mauritânia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Maurícias
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
México
Rendimento médio alto
Não
Não
Sim
Est. Fed. Micronésia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Moldávia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Mónaco
Alto rendimento
Não
Não
Não
Mongólia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Montenegro
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Marrocos
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Moçambique
Baixo rendimento
Sim
Sim
Não
Mianmar
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Sim
Namíbia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Nauru
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Nepal
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Países Baixos
Alto rendimento
Sim
Não
Não
Nova Zelândia
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Nicarágua
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Níger
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Nigéria
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Não
Noruega
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Omã
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Paquistão
Rendimento médio baixo
Não
Não
Sim
Palau
Alto rendimento
Não
Não
Não
Panamá
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Papua Nova Guiné
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Não
Paraguai
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
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e dos Estados Árabes do Golfo
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Peru
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Filipinas
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Polónia
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Portugal
Alto rendimento
Não
Não
Não
Qatar
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Roménia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Federação Russa
Rendimento médio alto
Sim
Sim
Não
Ruanda
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Samoa
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
São Marino
Alto rendimento
Não
Não
Não
São Tomé e Príncipe
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Arábia Saudita
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Senegal
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Sérvia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Seychelles
Alto rendimento
Não
Não
Não
Serra Leoa
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Singapura
Alto rendimento
Não
Não
Sim
Rep. Eslovaca
Alto rendimento
Não
Não
Não
Eslovénia
Alto rendimento
Não
Não
Não
Ilhas Salomão
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Somália
Baixo rendimento
Não
Não
Não
África do Sul
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Sudão do Sul
Baixo rendimento
País em Guerra
Espanha
Alto rendimento
Não
Não
Não
Sri Lanka
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
St. Kitts e Nevis
Alto rendimento
Não
Não
Não
St. Lucia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
São Vicente e
Granadinas
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Sudão
Rendimento médio baixo
Sim
Sim
Não
Suriname
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Suazilândia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Suécia
Alto rendimento
Não
Não
Não
Suíça
Alto rendimento
Não
Não
Não
Rep. Árabe Síria
Rendimento médio baixo
País em Guerra
Tajiquistão
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Tanzânia
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Tailândia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Timor-Leste
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Togo
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Tonga
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Trinidad e Tobago
Alto rendimento
Não
Não
Não
Tunísia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Turquia
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Turquemenistão
Rendimento médio alto
Sim
sim
sim
Tuvalu
Rendimento médio alto
Não
Não
Não
Uganda
Baixo rendimento
Não
Não
Não
Ucrânia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Emirados Árabes
Unidos
Alto rendimento
Sim
Sim
Sim
Reino Unido
Alto rendimento
Sim
Não
Não
Estados Unidos
Alto rendimento
Sim
Não
Sim
Uruguai
Alto rendimento
Não
Não
Não
Uzbequistão
Rendimento médio baixo
Sim
Não
Sim
Vanuatu
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Venezuela, RB
Rendimento médio alto
sim
Sim
Sim
Vietname
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Iémen, Rep.
Rendimento médio baixo
País em Guerra
Zâmbia
Rendimento médio baixo
Não
Não
Não
Zimbab
Baixo rendimento
Não
Não
Não
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 95-128
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LA COOPERACIÓN DESCENTRALIZADA ENTRE SMART CITIES EN ENERGÍAS
RENOVABLES EN LA UNIÓN EUROPEA: ALISIS DE PROYECTOS Y ACCIONES
CAMILA ABBONDANZIERI
cabbondanzieri@hotmail.com
Becaria doctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET,
Argentina). Es doctoranda en Relaciones Internacionales por la Universidad Nacional de Rosario
(UNR), licenciada en Relaciones Internacionales (UNR) y magíster en Integación y Cooperación
Internacional (CERIR - UNR). Es profesora adscripta en la UNR e integrante del Centro de
Estudios en Género(s) y Relaciones Internacionales (CeGRI) de IRI-UNLP.
Resumen
Las cuestiones energéticas en la Unión Europea han estado presentes desde los inicios del
proceso de integración en el bloque. Motivada por los desafíos del siglo XXI y por la
intensificación de problemáticas vinculadas al abastecimiento energético, la Comisión Europea
propuso cambios en el abordaje del tema que resulte en una transformación profunda de los
sistemas energéticos mediante la propuesta de la Unión de la Energía en 2015. En este
contexto, se han desarrollado proyectos y acciones de cooperación descentralizada entre
Smart Cities, que implicaron una vinculación entre las dimensiones subnacionales con las
regionales para el tratamiento de las problemáticas energéticas desde una perspectiva de
gestión eficiente y sostenible de los recursos.
Palabras clave
Cooperación descentralizada, Smart Cities, Unión Europea, energías renovables, Unión de la
Energía.
Cómo citar este artículo
Abbondanzieri, Camila (2021). La cooperación descentralizada entre Smart Cities en energías
renovables en la Unión Europea: análisis de proyectos y acciones. Janus.net, e-journal of
international relations. Vol12, . 1, Mayo-Octubre de 2021. Consultado [en línea] en la fecha
de la última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.7
Artículo recibido el 26 de Enero de 2020 y aceptado para su publicación el 8 de Marzo de
2021
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Vol. 12, Nº. 1 (Mayo-Octubre 2021), pp. 129-150
La cooperación descentralizada entre Smart Cities en energías renovables en la Unión Europea:
análisis de proyectos y acciones
Camila Abbondanzieri
130
LA COOPERACIÓN DESCENTRALIZADA ENTRE SMART CITIES EN
ENERGÍAS RENOVABLES EN LA UNIÓN EUROPEA:
ANÁLISIS DE PROYECTOS Y ACCIONES
CAMILA ABBONDANZIERI
Introducción
El objetivo del presente artículo consiste en identificar y detallar el tipo de proyectos y
acciones que se llevaron a cabo mediante la cooperación descentralizada entre Smart
Cities en materia de energías renovables en la Unión Europea tras la propuesta de la
Unión de la Energía por parte de la Comisn Europea en febrero de 2015. Para ello, se
abordarán un conjunto de casos dentro del Sistema de Información sobre Smart Cities
(SCIS) como CITyFiED, GrowSmarter, PITAGORAS y STORM; se referirá a la Asociación
Europea para Smart Cities y Comunidades (EIP-SCC) y al Pacto de los Alcaldes.
Se argumenta que el modelo de Smart City se encuentra estrechamente conectado con
las propuestas de la Unión de la Energía y su vinculación representa una “ventana de
oportunidad” que ofrece potencialidades para sortear los principales desafíos del sector
energético y las limitaciones políticas de los Estados miembros para el tratamiento de las
cuestiones energéticas en la Unión Europea. En función de ello, se torna oportuno centrar
la atención estrictamente en el nivel subnacional y específicamente en las medidas e
iniciativas concretas que las Smart Cities desarrollaron para afrontar sus respectivos
retos energéticos.
El objeto del presente artículo, es decir, la cooperación descentralizada entre Smart Cities
en materia de energías renovables en la Unión Europea, es motivado por la creciente
importancia que las cuestiones energéticas han adquirido en el bloque en los últimos
años y por su significativa interrelación con las problemáticas asociadas con el cambio
climático. El sector energético incluye una serie de problemáticas para la Unión Europea
que obligan a repensar constantemente la manera en la que esta temática puede ser
abordada por las instituciones europeas. De hecho, según el análisis de Reja Sánchez y
Burnier da Silveira (2016:50), en la actualidad,
“el bloque europeo, primer importador energético del mundo, obtiene el 53%
de su energía del exterior con un coste anual de aproximadamente 400.000
millones de euros, es altamente dependiente del exterior, lo que la debilita y
representa un alto riesgo para el crecimiento y la estabilidad económica en el
viejo continente”.
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La cooperación descentralizada entre Smart Cities en energías renovables en la Unión Europea:
análisis de proyectos y acciones
Camila Abbondanzieri
131
En este orden de cuestiones, la apuesta de la Unión Europea por las energías renovables
ha ido adquiriendo progresivamente una trascendencia inusitada al presentarse como un
medio indispensable para liderar la transición hacia un sistema energético transparente,
sostenible y eficiente que se encuentre en consonancia con los principales lineamientos
para apuntalar un crecimiento constante y respetuoso del ambiente tal como se ha
sostenido desde el Tratado de Maastricht en el artículo 130 R
1
.
Con lo cual, la dimensión energética interpretada a través del prisma de la planificación
inteligente y sostenible que propone el modelo Smart City se presenta como una
oportunidad para vislumbran lecciones y desafíos en la ejecución de políticas públicas de
cara al futuro.
En pos de lograr el objetivo de investigación propuesto, el artículo está estructurado en
dos grandes secciones: en primer lugar, se indagará acerca de la manera en la que se
desarrolla la cooperación descentralizada entre Smart Cities en la Unión Europea; y, en
segundo lugar, se identificarán los principales proyectos y acciones en materia de
energías renovables efectuados en el marco de la cooperación descentralizada entre
Smart Cities; finalmente, se expondrán unas breves conclusiones.
I. Precisiones metodológicas preliminares
El método seleccionado para el desarrollo del presente artículo es el estudio de caso,
considerando que el objeto de investigacn, es decir la cooperación descentralizada
entre Smart Cities en materia de energías renovables en la Unión Europea, representa
un caso enmismo que expresa una realidad particular que tiene lugar en el marco de
los desafíos y limitaciones de la Unión de la Enera en el bloque.
En términos metodológicos, se recurria la estrategia cualitativa aplicándose la forma
descriptiva y la comprensión interpretativa de fuentes primarias y secundarias. El
abordaje cualitativo será funcional a los objetivos del artículo en tanto ofrece
herramientas para orientar la investigación, en particular, mediante la técnica de
recolección de datos y el análisis de documentos bibliográficos.
En lo concerniente a las fuentes consultadas y analizadas, se recurri a las elaboradas
por las instituciones y agencias oficiales de la Unión Europea y a bibliografía especializada
y pertinente de la disciplina de las Relaciones Internacionales. La factibilidad está
garantizada ya que todos los documentos consultados se encuentran en línea y son de
acceso público.
La delimitación del recorte temporal se encuentra estrechamente ligada a la definición
de los conceptos esenciales que guiarán la investigación. Efectivamente, la cooperación
descentralizada entre Smart Cities en la Unión Europea y su relación con la Unión de la
Energía representan un caso de estudio que se encuentra circunscripto a lo discurrido del
siglo XXI. De hecho, el concepto de Smart City comienza a ser difundido a mediados del
1
“La política de la Comunidad en el ámbito del medio ambiente contribuirá a alcanzar los siguientes objetivos:
la conservación, la protección y la mejora de la calidad del medio ambiente; la protección de la salud de las
personas; la utilización prudente y racional de los recursos naturales; el fomento de medidas a escala
internacional destinadas a hacer frente a los problemas regionales o mundiales del medio ambiente”,
Tratado de Maastricht, Art. 130 R.
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La cooperación descentralizada entre Smart Cities en energías renovables en la Unión Europea:
análisis de proyectos y acciones
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siglo XXI y su tratamiento por parte de las instituciones europeas comenzó
aproximadamente hace una década. Por otra parte, la propuesta de la Unión de la Energía
fue manifestada por la Comisión Europea en febrero de 2015.
En lo que concierne al marco teórico, poder enmarcar a la Unión Europea dentro de una
categoría de las Relaciones Internacionales de por es un hecho problemático. La
dinámica particular que ha adquirido este proceso lo ha dotado de características propias
que lo distancian de lo que se considera comúnmente como un mero proceso de
integración. Lo que actualmente es reconocido internacionalmente como Unión Europea
es el resultado de una larga y continua trayectoria de avances y retrocesos en delegación
de competencias a instancias europeas y de la construcción de un esquema de
Gobernanza Multinivel, donde los conceptos tradicionales de la disciplina de las
Relaciones Internacionales se diluyen y adquieren nuevos matices e implicancias (Morata,
2002).
En virtud de la perspectiva teórica de la Gobernanza Multinivel, la gobernanza europea
es el resultado de la interacción entre una multiplicidad no solo de actores, sino también
de niveles. La Unión Europea no es un Estado, porque carece precisamente de los
atributos fundamentales de un Estado, pero tampoco es una simple organización
internacional. Es una forma sui generis de integración y gobernanza política en el sistema
internacional del siglo XXI en la que no existe un único centro de decisión, sino múltiples.
Las problemáticas energéticas y la construcción de una Política Energética en la Unión
Europea pueden ser analizadas, tal como advierten Szulecki et al. (2016), a partir de
distintas aproximaciones teóricas.
En primer lugar, los autores enumeran un conjunto de teorías vinculadas al
intergubernamentalismo que focalizan su atención en los Estados miembros como los
principales actores y detentadores del poder en la escena europea. Este grupo de
estudios enfatiza las problemáticas asociadas a las dificultades y obstáculos por ceder
soberanía en un ámbito especialmente complejo como el energético. Wettestad et al.
(2012: 67) destacan, al respecto de estas corrientes teóricas, que los Estados miembros
todavía adquieren una posición central en la discusión energética y que solamente han
realizado transferencias de poder a las instituciones europeas en la medida en que sus
intereses nacionales no son amenazados.
En segundo lugar, las corrientes teóricas vinculadas al supranacionalismo y al
neoinstitucionalismo, basadas en la perspectiva primigenia del funcionalismo de la
integración europea, destacan la capacidad de las instituciones europeas, sobre todo de
la Comisión, para fijar la agenda política a nivel europeo y para marcar el camino para la
construcción de la Política Energética y, posteriormente, para desarrollar la propuesta de
la Unión de la Energía.
Finalmente, los autores destacan una tercera aproximación teórica denominada
“governance-oriented” que incluye dinámicas y procesos que no adscriben de manera
estricta a las corrientes previamente mencionadas y que, por el contrario, son pasibles
de ser analizadas en conjunto para obtener un entendimiento integral y global de las
problemáticas energéticas en la Unión Europea. De acuerdo con este abordaje, los
autores enfatizan cómo los procesos políticos en la Unión Europea trascienden las
múltiples escalas y niveles entre actores que componen el complejo entramado de la
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Unión Europea y, además, destacan la participación de “grupos de interés específicos”.
En este esquema, Wettestad et al, incluyen la considerable autonomía de la Comisión
Europea para proponer e impulsar soluciones a nivel europeo interpelando a una
multiplicidad de actores públicos y privados, destacándose entre ellos, los subnacionales
(Wettestad et al., 2012).
El abordaje “governance-orientedrepresenta una herramienta teórica fundamental para
analizar el rol de las instituciones europeas, y, sobre todo de la Comisión Europea, de los
Estados miembros y de los actores subnacionales, en particular las Smart Cities, en el
tratamiento de las problemáticas energéticas del bloque. Sin soslayar el alcance del nivel
nacional en la Unión Europea, este abordaje permite analizar en profundidad la manera
en la que la cooperación descentralizada entre entes subnacionales contribuye en la
práctica a aproximarse a los objetivos energéticos esbozados por la Comisión Europea
con la propuesta de la Unión de la Energía.
En otro orden de cuestiones, los aportes teóricos de Wettestad et al. contribuyen a
orientar las investigaciones en torno a la cooperación descentralizada entre entes
subnacionales en materia energética y a analizar su sintonía con los lineamientos
propuestos por las instituciones europeas, en particular, por la Comisión Europea.
Indudablemente, indagar acerca de las problemáticas (en este caso energéticas) que se
desarrollan en el territorio de la Unión Europea en el siglo XXI no puede soslayar la
práctica de la descentralización que se ha estado desplegando de manera constante y
recurrente desde hace aproximadamente cuatro décadas. No considerar las acciones de
los actores subnacionales, y para los fines del presente artículo, el rol de las Smart Cities
en particular, implica un análisis sesgado y limitado de la situación actual en la Unión
Europea en materia de energías renovables.
II. La cooperación descentralizada entre Smart Cities en la Unión
Europea
En la Unión Europea, la acción internacional de las ciudades y el recurso a la cooperación
descentralizada y el relacionamiento a través de redes internacionales son prácticas
usualmente escogidas por los actores subnacionales para apuntalar sus desafíos de
desarrollo local.
Precisamente, los proyectos gestados desde lo local focalizan su atención en cuestiones
endógenas y, en ese sentido, resultan clave para que puedan identificarse con detalle las
particularidades de cada situación problemática y para que puedan diseñarse soluciones
adecuadas a las características del contexto local.
De manera específica, las cuestiones energéticas, al ser problemáticas eminentemente
endógenas, constituyen una temática de atención recurrente en los proyectos e
iniciativas que se llevan a cabo mediante la cooperación descentralizada en la Unión
Europea.
La cooperación descentralizada representa un paradigma de la cooperación internacional
que se distingue del tradicional enfoque asistencialista y verticalista. De acuerdo con esta
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nueva modalidad, las acciones de cooperación son orientadas por los principios de
horizontalidad, reciprocidad y simetría entre socios.
Además, los factores sociales, culturales y políticos se incorporan como condicionantes
claves para el desarrollo de los diagnósticos de factibilidad y perdurabilidad de los
proyectos. En este sentido, la incorporación de actores provenientes de diversos sectores,
por una parte, y del principio de multilateralidad, por otra, resultan clave en el esquema
de la cooperación descentralizada.
Las modalidades de cooperación descentralizada son variadas e incluyen un amplio
espectro de prácticas que trascienden la mera transferencia de recursos financieros para
la ejecución de programas y proyectos. Por ejemplo, se destacan las experiencias de
asistencia técnica, transferencia de tecnología, intercambio de experiencias y buenas
prácticas, formación de recursos humanos y desarrollo institucional.
Estas modalidades pueden ser clasificadas, además, de acuerdo a la forma que adquieren
las iniciativas (Hourcade, 2011: 59):
Duraderas: hermanamientos o convenios de cooperación a largo plazo
Efímeras: proyectos acotados en el tiempo o intervenciones puntuales
Proyectos Comunes: entre varios actores que implican intervenciones concretas en
temáticas específicas
Redes: trabajos sistematizados no acotados en el tiempo
Alianzas estratégicas: con incidencias sobre agendas nacionales y regionales
Redes de representación política y lobby: con el propósito de defender intereses de
actores locales y para fomentar el municipalismo en el ámbito global.
La cooperación descentralizada, además de ser una herramienta fundamental en el
diseño de las estrategias de relacionamiento internacional de los actores subnacionales
de la Unión Europea, representa la posibilidad de conjugar el abordaje de problemáticas
locales y de desarrollo endógeno con la búsqueda de soluciones regionales de manera
sinérgica con un vasto conjunto de actores que enfrentan retos similares, que poseen
recursos semejantes y que proponen alternativas afines.
En el marco de la Unión Europea, los actores subnacionales se han constituido en
verdaderos agentes de la cooperación internacional y consecuentemente han dado lugar
a una modalidad característica, es decir, la cooperación descentralizada. A lo largo de las
últimas tres décadas las instituciones de la Unión Europea advirtieron su rol como agentes
del desarrollo endógeno y, en consecuencia, los actores subnacionales comenzaron a ser
reconocidos formalmente como partes centrales en los proyectos y acciones del bloque.
Sobre todo, para el tratamiento de problemáticas que trascienden las fronteras de cada
localidad y que representan verdaderos desafíos transnacionales, la cooperación
descentralizada se posiciona como una alternativa con múltiples beneficios para los
actores subnacionales en un contexto signado por las limitaciones políticas impuesta por
las soberanías de Estados miembros para el abordaje de los asuntos energéticos.
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Los desafíos energéticos representan una temática fundamental que a lo largo del siglo
XXI ha motorizado de manera recurrente los proyectos e iniciativas de una gran cantidad
de acciones y prácticas de cooperación descentralizada entre actores subnacionales en
la Unión Europea. En efecto, las cuestiones energéticas han sido una constante desde la
década del cincuenta hasta la actualidad para las instituciones europeas y si bien siempre
ha representado una prioridad política, no ha tenido un tratamiento legislativo formal
hasta la entrada en vigencia del Tratado de Lisboa. Desde los albores del proceso
integracionista en la Unión Europea, la relevancia del sector energético ha sido destacada
y si bien no contó con una formalización en el derecho primario per se, ha estado presente
en el tratamiento de políticas adyacentes como en las políticas de mercado interno.
Las limitaciones impuestas por los Estados miembros reticentes a ceder cuotas de
soberanía en un ámbito considerado estratégico obstaculizaron los intentos por
trascender el tradicional enfoque nacionalista en el tratamiento de la cuestión energética.
Efectivamente, la vinculación de las políticas energéticas con la seguridad nacional de los
Estados miembros es un rasgo insoslayable.
Tanto la Política Energética en 2009 como la propuesta de la Unión de la Energía en 2015
representan avances significativos para que la cuestn energética pueda ser abordada
con un enfoque orientado a soluciones comunes de acuerdo a las intenciones de las
instituciones europeas, en particular de la Comisión. Aun así, la existencia de desafíos
energéticos y las limitaciones vinculadas al compromiso político de los Estados miembros
y a la reafirmación del resguardo de sus competencias nacionales en materia energética,
representan un conjunto de tensiones que complejizan el abordaje promovido por
Bruselas
De acuerdo con Granato y Oddone (2010: 237)
“el establecimiento de canales específicos de cooperación internacional; y,
particularmente a través de la cooperación descentralizada entre ciudades,
pretende estimular la acción internacional de las ciudades con el objetivo de
construir el desarrollo desde una perspectiva bottom up”.
En este sentido, la emergencia de los actores subnacionales como protagonistas políticos
con capacidad de autonomía e iniciativa en la Unión Europea se encuentra
indisolublemente ligada al surgimiento de las prácticas de vinculación internacional y las
primeras experiencias de cooperación descentralizada en el territorio europeo. Desde el
fin de la Segunda Guerra Mundial, la participación de los actores subnacionales en las
dinámicas internacionales y, más precisamente, en programas y proyectos de
cooperación descentralizada, se han difundido y consolidado de manera progresiva como
prácticas recurrentes.
A partir de la década del ochenta, una yuxtaposición de factores como el despliegue
imparable de la globalización tras la caída del Muro de Berlín y la intensificación de
procesos de reforma estatal domésticos, alentaron la emergencia de experiencias de
relacionamiento internacionales entre actores subnacionales desde un paradigma
novedoso de la cooperación (Hourcade, 2011: 51).
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Indudablemente, las tendencias globales que la teoría de la Interdependencia Compleja
había comenzado a advertir desde finales de la década del setenta, tales como la
multiplicidad de canales de vinculación internacional y el auge de las temáticas asociadas
a la baja política, sustentaron un nuevo paradigma de la cooperación internacional que
empezó a asentarse desde la década del ochenta.
La desjerarquización de la agenda internacional y el entremezclamiento de los procesos
domésticos e internacionales contribuyeron, por una parte, al afianzamiento de los
actores subnacionales en la escena internacional como protagonistas impulsores del
desarrollo local y, por otra parte, a la consolidación de la cooperación internacional como
una práctica pertinente y propicia para el tratamiento de problemáticas localizadas.
En este sentido, Grandas Estepa (2011: 53) manifiesta que
“la cooperación descentralizada se ha perfilado como una alternativa en la
que confluyen una amplia gama de posibilidades de actuación, que involucra
de manera directa a la sociedad en una activa participación, percibe las
necesidades de la población y contribuye al fortalecimiento de la democracia
y a los procesos descentralizadores que han dado mayor autonomía y poder
a los entes locales, considerados como parte importante de un proceso de
desarrollo”.
En la misma línea, Pinto da Silva (2011:169) advierte que las ciudades se han
transformado en deres en procesos de innovación territorial y la cooperación
descentralizada en un medio facilitador para que las ciudades puedan transformar esas
tecnologías en herramientas eficientes para la solución de problemáticas locales.
El desarrollo en la práctica de modalidades novedosas de cooperación movilizadas por
los actores subnacionales ciertamente motivó la búsqueda de definiciones y de un marco
legal por parte de las instituciones europeas. Tal es así que, en la década del noventa, la
Comisión Europea definió a la cooperación descentralizada como
“un nuevo enfoque en las relaciones de cooperación que busca establecer
relaciones directas con los órganos de representación local y estimular sus
propias capacidades y proyectar y llevar a cabo iniciativas de desarrollo con
la participación directa de los grupos de población interesados, tomando en
consideración sus intereses y sus puntos de vista sobre el desarrollo”
(Comisión Europea, 1992).
Mediante esta definición, los niveles subnacionales y locales de gobierno comenzaron a
ser avalados formalmente como los agentes pertinentes de este nuevo esquema de la
cooperación internacional por parte de las instituciones europeas.
Es importante destacar que la cooperación descentralizada en la Unión Europea puede
ser analizada a partir de dos enfoques: por una parte, desde una perspectiva extra-
bloque a partir de su vinculación con la cooperación al desarrollo y a las capacidades de
los actores subnacionales europeos en relación con socios de países que se encuentran
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fuera de la Unión Europea; y, por otra parte, desde una perspectiva intra-bloque, es
decir, entre actores subnacionales de la Unión Europea en la que ciertamente las
prácticas y dinámicas adquieren un cariz particular y se refieren a problemáticas de
desarrollo endógeno y entre las que se destacan para los fines del presente artículo, las
cuestiones energéticas.
Si bien ambos enfoques aluden a prácticas que se ejecutan en distintos territorios (es
decir, fuera o dentro de la Unión Europea), las perspectivas extra-bloque e intra-bloque
ciertamente comparten las caracterizaciones y principios rectores de la cooperación
descentralizada como un paradigma renovado y distinto al de la cooperación tradicional
tal como pudimos analizar previamente. No obstante, ambos enfoques deben ser
distinguidos debido a que los fines perseguidos y los recursos adoptados hacen referencia
a dos situaciones disimilares.
Gran parte de las definiciones y conceptos implementados por las instituciones de la
Unión Europea desde la década del noventa aluden a la cooperación descentralizada
extra-bloque, focalizando la atención en las prácticas internacionales con países con una
diferente situación de desarrollo. Por otra parte, para referirse a los procesos y acciones
de cooperación descentralizada que tienen lugar dentro del bloque, las instituciones de
la Unión Europea han recurrido al abordaje de la descentralización.
La Comisión Europea distingue cuatro fases en la trayectoria que han experimentado las
instituciones europeas para el tratamiento de la descentralización que ciertamente han
influido en la manera en las consideraciones asociadas a la cooperación descentralizada:
“Proyectos de desarrollo en el ámbito local” (1980–mediados de la cada de 1990):
signada por el apoyo a micro-proyectos impulsados por la comunidad,
fundamentalmente en el área de desarrollo rural y provisión de infraestructura local.
Se trata de una etapa caracterizada por la falta de una comprensión sistémica de la
participación de la Unión Europea.
“Evolución hacia enfoques basados en el actor y una reflexión sobre los sistemas”
(mediados de la década de 19902010): representada por creciente interés
institucional por apoyar las prácticas de cooperación descentralizada mediante una
primera generación de proyectos dirigidos a los actores subnacionales como
participantes claves. Las temáticas se ampliaron a cohesión social, desarrollo
económico local, sostenibilidad del medioambiente y personas desplazadas
internamente.
“Reconocimiento e incorporación de la perspectiva de los actores subnacionales en la
cooperación” (2005 en adelante): fundamentada en el creciente reconocimiento
internacional de los actores subnacionales como actores del desarrollo impulsaron la
revisión de los acuerdos previos; creación de instrumentos financieros temáticos;
formulación de comunicaciones específicas; puesta en marcha de programas
temáticos, etc.
Reconexión de la descentralización y el desarrollo a través de los enfoques
territoriales” (a partir de 2013): evidencia un claro salto cualitativo en la forma de
vincular descentralización, desarrollo y actores subnacionales que impulsa la
elaboración de una estrategia coherente (Comisión Europea, 2016: 10).
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En síntesis, si bien las perspectivas extra-bloque e intra-bloque de la cooperacn
descentralizada en la Unión Europea comparten un gran conjunto de características
indispensables con respecto a las definiciones y conceptos utilizados, es preciso remarcar
que representan dos abordajes diversos que implican ser matizados y contextualizados.
La perspectiva intra-bloque de la cooperación descentralizada está asociada al concepto
de "integración subnacional”, es decir, el ejercicio de la cooperación descentralizada
intrarregional, concebida para reforzar los lazos de la integración (Ventura y García
Fonseca, 2012: 51). Las autoras advierten que la cooperación descentralizada ayudaría
a reforzar a la integración regional y, al mismo tiempo, la integración podría contribuir a
legitimar el proceso de cooperación descentralizada al no haber un embate entre ambos
procesos y que, por el contrario, la complementariedad se configuraría como una
estrategia de profundización de la integración.
Para cumplir el objetivo de investigación del presente artículo, indudablemente la
perspectiva intra-bloque resulta fundamental y adecuada para analizar los proyectos y
acciones en materia de eneras renovables en el marco de la cooperación
descentralizada entre Smart Cities en la Unión Europea, no simplemente por referirse a
las prácticas que tienen lugar dentro del territorio de la Unión Europea, sino por aludir
directamente a problemáticas de desarrollo local.
II.1. El rol de las Smart Cities en la cooperación descentralizada en
materia energética en la Unión Europea
Durante los últimos años, las ciudades comenzaron a ser interpeladas de manera directa
para el tratamiento de las problemáticas energéticas debido a las grandes
potencialidades que el ámbito local ofrece frente a desafíos de esta índole. Coll (2014:
2) argumenta que las ciudades, concebidas como los sistemas organizativos
socioeconómicos, culturales y políticos fundamentales del siglo XXI, son los actores que
se encuentran en la mejor posición para abordar los desafíos locales mediante la
provisión de servicios públicos y para formular e implementar políticas educativas,
económicas, de seguridad, energéticas y de movilidad. Además, el autor advierte que en
la fase de diseño e implementación de políticas son actores con ventajas al encontrarse
de manera directa con los detalles de las problemáticas locales.
A lo largo del siglo XXI, las ciudades europeas han debido afrontar los desafíos causados
por los efectos de la globalización y de la descentralización sumados a las dinámicas
propias del proceso de integración del que forman parte como, por ejemplo, el
incremento de la población urbana, el aumento de la contaminación, los avatares del
cambio climático, la escasez de recursos naturales (Russo et al., 2014) y, sin dudas, los
desafíos energéticos tal como pudimos esbozar en el capítulo anterior.
De acuerdo estos autores (Russo et al., 2014: 1), los nuevos desafíos combinan
cuestiones vinculadas a la competitividad y el desarrollo urbano sustentable de manera
simultánea. En su análisis, los autores, además, enumeran una serie de indicadores para
dar cuenta el alcance de las problemáticas urbanas en la Unión Europea: por ejemplo,
advierten que el nivel de urbanización se encuentra por encima del 75% con expectativas
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de crecimiento a un 80% para 2020; también subrayan que el consumo energético
supera el 70% con un considerable porcentaje de emisiones de gases de efecto
invernadero.
De manera particular, el paradigma de Smart City comena ganar atención e interés
en la Unión Europea por la singular manera en la que se comprenden y abordan las
cuestiones energéticas desde una perspectiva eficiente y sostenible que la diferencia del
manejo tradicional de los recursos urbanos y, de manera específica, apuesta
explícitamente a la implementación de energías renovables como parte de las soluciones
en sus proyectos y acciones.
En lo que respecta a la definición de Smart City, cabe destacar que existe una amplia
literatura con respecto a este novedoso paradigma de ciudad en el siglo XXI. De acuerdo
con Villarejo-Galende (2015: 17),
“desde la aparición del concepto y con la popularidad que ha despertado en
los medios de comunicación, se han creado elevadas expectativas tanto en el
mundo empresarial como político, e incluso académico, alentadas sin duda
por el impulso recibido desde la Comisión Europea”.
Según el Parlamento Europeo (2014: 17), una ciudad puede ser definida como
inteligente,
“cuando las inversiones en capital humano y social y en infraestructuras de
transporte y TIC contribuyen al desarrollo económico sostenible y a mejorar
la calidad de vida, con una gestión racional de los recursos naturales, a través
de un gobierno participativo”.
El modelo de Smart City actúa como facilitador y promotor en el marco de la cooperación
descentralizada en materia energética en la Unión Europea debido fundamentalmente a
dos motivos: por una parte, por las características propias del modelo de Smart City; y,
por otra parte, por la naturaleza misma de los desafíos energéticos. La combinación de
ambos motivos propicia un contexto favorable y un gran potencial para el desarrollo de
proyectos y acciones que se lleven a cabo mediante la cooperación descentralizada.
En efecto, en este esquema, los proyectos y acciones enmarcados en instancias de
cooperación descentralizada en la Unión Europea adquieren un tratamiento singular al
ser ejecutados por actores cuya perspectiva acerca de la eficiencia y sostenibilidad en la
gestión de los recursos trasciende las delimitaciones locales y que, por el contrario,
favorece prácticas conjuntas con socios similares transnacionales para lograr soluciones
de manera sinérgica.
Es decir, el modelo de Smart City implica una redefinición en la manera en la que se
perciben los desafíos locales y el modo en el que se proveen sus soluciones. A esta
particularidad debe sumársele que los desafíos energéticos representan una problemática
que no puede circunscribirse a una localidad concreta y que, por ende, su resolución no
puede definirse de manera aislada sin considerar a un conjunto abarcativo de actores del
bloque.
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De hecho, los desafíos energéticos ciertamente no se ciñen a las fronteras nacionales.
Por el contrario, representan un reto transnacional que exige un tratamiento coordinado,
acorde y en conjunto por parte un amplio espectro de niveles y actores en la Unión
Europea. El abordaje de los desafíos energéticos promovido por las instituciones
europeas es delineado en clave regional e intenta involucrar a todo el bloque en pos de
realizar la transición a un nuevo sistema energético de acuerdo con la propuesta de la
Unión de la Energía.
En este orden de cuestiones, la cooperación descentralizada representa una alternativa
viable y adecuada para que las Smart Cities en la Unión Europea puedan cumplimentar
sus propios objetivos energéticos locales en sintonía y coordinación con otros actores del
bloque que posean características similares a partir del intercambio de prácticas exitosas,
de la promoción de un modelo de gestión sostenible y eficiente que pueda ser replicado
o emulado a escala regional.
De acuerdo con las modalidades de cooperación descentralizada enumeradas
previamente, en lo concerniente a las Smart Cities en la Unión Europea se destacan
fundamentalmente el intercambio de buenas prácticas y el recurso a las redes de este
tipo de ciudades.
Con respecto a la primera modalidad, la publicación y difusión de buenas prácticas con
experiencias concretas de cada Smart City en materia energética representan un recurso
implementado con frecuencia desde una perspectiva top down por parte de las
instituciones europeas (fundamentalmente la Comisión Europea
2
), y, desde una
perspectiva bottom-up, por parte de redes de actores subnacionales
3
. Esta modalidad
será ejemplificada con casos concretos en la siguiente sección.
Si bien cada ciudad representa una unidad singular con problemáticas específicas, el
modelo de Smart City tiende a que, en términos generales, los objetivos y las prioridades
energéticas sean similares en la Unión Europea, independientemente de las
particularidades de cada caso y siempre y cuando se promueva la gestión eficiente y
sostenible de recursos energéticos. Es decir, el modelo de Smart City en la práctica como
tal no existe; es más bien un tipo ideal al que las ciudades tienden mediante la gestión
eficiente y sostenible de sus recursos. Así, la difusión de buenas prácticas como
modalidad de cooperación descentralizada, permite y facilita a los actores subnacionales
la consecución de sus objetivos energéticos orientados por el modelo de Smart City.
La segunda modalidad de cooperación descentralizada, es decir, las redes de ciudades,
representa otro de los recursos frecuentemente optados por las Smart Cities en la Unión
Europea. De acuerdo con Granato y Oddone (2010), la articulación en redes asociativas
se produce cuando dos o más gobiernos locales acuerdan llevar adelante políticas que se
ven traducidas en acciones concretas y en donde cada uno realiza una o más tareas
específicas en relación de cooperación horizontal con los otros gobiernos locales
2
Dentro de este grupo de reportes, se destaca “The Making of a Smart City: Best practices across Europe”
(2017), publicado por el Sistema de Información sobre Smart Cities (SCIS), una plataforma para el
intercambio de información, experiencias y know-how y para la colaboración entre Smart Cities. La iniciativa
es impulsada y apoyada por la Comisión Europea.
3
Dentro de este conjunto de reportes, se incluye a la base de datos del Pacto de los Alcaldes en línea, en la
que se comparten las experiencias y buenas prácticas de un gran conjunto de localidades del bloque.
Recuperado de https://www.covenantofmayors.eu/plans-and-actions/good-practices.html
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participantes con el objetivo de fortalecer el desarrollo de una o varias políticas públicas.
Simplemente para mencionar un caso, se puede destacar el Pacto de los Alcaldes, lanzado
en 2008 con el objetivo de reunir de manera voluntaria a los gobiernos subnacionales
para coadyuvar al cumplimiento de los objetivos energéticos y climáticos de la Unión
Europea. Las redes de ciudades serán analizadas con mayor profundidad y detalle en la
siguiente sección.
La cooperación descentralizada, ya sea mediante la modalidad de intercambio de buenas
prácticas o a través de las redes de ciudades, le permite a las Smart Cities trabajar
directamente sobre las problemáticas energéticas locales sin incurrir en el costo político
asociado al tratamiento en términos nacionales de las cuestiones energéticas. Lo local,
en ese sentido, dota de mayor legitimidad a los proyectos y acciones de cooperación
descentralizada en materia energética y, por otra parte, promueve una aproximación de
abordajes con socios del bloque sorteando las limitaciones políticas de los Estados
miembros.
La externalidad positiva de este esquema de cooperación descentralizada en materia
energética entre Smart Cities redunda en una suerte de interconexión de los modelos
energéticos al promover determinado tipo de prácticas que, al promover una gestión
sostenible y eficiente de los recursos, en última instancia, coadyuva a la transición de los
sistemas energéticos del bloque, tal como es promovido por la propuesta de la Unión de
la Energía.
II.2. Los proyectos y acciones en energías renovables en el marco de la
cooperación descentralizada en la Unión Europea
A lo largo de la última década, se experimentó una proliferación de proyectos y acciones
dedicados a las temáticas energéticas en la Unión Europea. En un contexto de
limitaciones políticas impuestas por la soberanía de los Estados miembros en materia
energética y de desafíos energéticos de la Unión de la Energía, cabe destacar que se han
abierto “ventanas de oportunidad” para el tratamiento de las problemáticas energéticas
fundamentalmente de la mano de los actores subnacionales, en especial de las Smart
Cities.
En pos de obtener una comprensión abarcativa de la cooperación descentralizada entre
Smart Cities en materia energética, en la presente sección se analizarán una serie de
propuestas e iniciativas concretas que se llevaron a cabo en la Unión Europea en los
últimos años.
Dentro del vasto espectro que incluyen las cuestiones energéticas, a fines metodogicos
optamos por recortar el análisis al caso de estudio de las energías renovables. La razón
de esta precisión analítica radica fundamentalmente en el hecho de que existe un gran
conjunto de proyectos energéticos en curso que refieren a las más variadas dimensiones
que pueden desglosarse en esta área. Para poder profundizar en un caso de estudio en
particular y para poder analizar cualitativamente y con mayor grado de detalle la
información, se abordarán exclusivamente los proyectos y acciones dedicados a las
energías renovables al ser un objeto indicativo y significativo en el esquema de gestión
eficiente y sostenible de los recursos tal como promueve el paradigma de Smart City y,
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además, por ser un factor fundamental esgrimido por las instituciones europeas para
impulsar la transformación profunda a un sistema energético como pretende la propuesta
de la Unión de la Energía.
III. Sistema de Información sobre Smart Cities
El Sistema de Información sobre Smart Cities (SCIS) es una plataforma apoyada por la
Comisión Europea dedicada al intercambio de información, experiencias y conocimiento
técnico cuyo objetivo consiste en la colaboración para el impulso de las Smart Cities en
la Unión Europea. Los proyectos y acciones de SCIS están concentrados en tres áreas:
energía, movilidad y transporte y TICs.
Sintéticamente, los objetivos de esta iniciativa consisten en establecer buenas prácticas
que puedan ser replicadas por otros actores subnacionales del bloque; identificar
barreras y destacar lecciones aprendidas con el propósito de encontrar soluciones
eficientes mediante la implementación de la tecnología; y, proveer recomendaciones y
realizar sugerencias a los hacedores de políticas.
En 2019, en lo concerniente al área de enera, se identificaron cincuenta y cinco
proyectos
4
. Dentro de ese conjunto, hemos seleccionado CITyFiED, GrowSmarter,
PITAGORAS, STORM por referirse a la temática de las energías renovables. En los casos
de estudio escogidos, se destaca el hecho de que la Comisión Europea ha participado con
financiacn de entre el 50% y el 100% para la realización de los proyectos.
El objetivo proyecto CITyFiED
5
consiste en desarrollar estrategias integradas, replicables
y sistémicas para adaptar a las ciudades y a los ecosistemas urbanos de la Unión Europea
para aproximarse a los requerimientos del paradigma de Smart City, concentndose en
la reducción de la demanda energética y en la promoción de las fuentes de energías
renovables a partir del impulso e implementación de tecnologías de innovación y de
metodologías aplicadas a la construcción de viviendas, tendidos eléctricos y redes de
calefaccionamiento urbano. Básicamente, la estrategia del proyecto consiste trabajar en
tres localidades que actúan como casos piloto y generar modelos que puedan ser
replicados por actores del bloque. De acuerdo con la evaluación del proyecto, los
impactos trascendieron los objetivos propuestos, logrando externalidades positivas para
las comunidades en las que se desarrollaron tales acciones. En efecto, de acuerdo con el
reporte final del proyecto, CITyFiED implementó de manera exitosa tres estrategias
integrales para la modificación profunda de edificios cubriendo 190,462 m2 en las tres
ciudades del proyecto, involucrando a 2,067 viviendas. Más de 5,700 ciudadanos fueron
beneficiados. CITyFiED utilizó 37.8 M€ para generar un profundo impacto en las ciudades
seleccionadas mediante la reducción del consumo energético, reducción de gases de
efecto invernadero, mejor uso de las fuentes de energías renovables y un alto grado de
4
Los proyectos citados están disponibles en línea de SCIS. Recuperado de https://smartcities-
infosystem.eu/sites-projects/projects
5
El proyecto se desarrolló entre abril de 2014 y marzo de 2019. La Comisión Europea financió más del 50%.
Las ciudades piloto fueron Laguna del Duero, Lund y Soma. Se identificaron ciudades europeas que han
comenzado a adoptar las medidas en Alemania, Italia, España, Suecia. La información acerca del impacto
del proyecto se encuentra disponible en línea. Recuperado de http://www.cityfied.eu/the-cityfied-
project/impacts.kl
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aceptación social. Por lo tanto, sin circunscribirse meramente a objetivos energéticos per
se, el proyecto arrojó tantos impactos sociales como económicos y ambientales.
Por su parte, el proyecto GrowSmarter
6
promueve soluciones urbanas eficientes a partir
del desarrollo de tres ciudades que han sido seleccionadas como faros. Mediante los casos
de Estocolmo, Colonia y Barcelona, se pretende difundir un conjunto de doce soluciones
urbanas eficientes agrupadas en tres dimensiones, entre las que se destaca la
incorporación de fuentes de energías renovables para la red de abastecimiento urbano.
Este proyecto se desarrolcon el propósito de que el resto de las ciudades del bloque
pudiera contar con modelos exitosos y referenciarse de buenas prácticas que puedan ser
replicados en sus propias localidades. Espeficamente en lo concerniente a la dimensión
energética, el proyecto promueve acciones para la remodelación de distritos con bajo
consumo energético a partir de la refacción de edificios y de gestión eléctrica.
En lo que respecta a la evaluación del proyecto, las tres ciudades aludidas refieren a la
efectiva implementación y validación de las acciones en sus propios territorios y
promueven la difusión de sus prácticas mediante la visibilización de lecciones aprendidas.
Por ejemplo, en la Conferencia número 25 de Naciones Unidas sobre Cambio Climático
que tuvo lugar en Madrid en 2019, el proyecto GrowSmarter obtuvo un panel para
compartir las prácticas de eficiencia urbana en materia de energías renovables. Dicho
encuentro, resultó en el logro de consensos entre representantes políticos de distintas
localidades de España
7
. En el caso específico de Colonia, desde 2019 se identificaron
intercambios sinérgicos con la vecina localidad de Leverkusen para trabajar de manera
conjunta en cuestiones de movilidad a partir de las lecciones aprendidas en
GrowSmarter
8
.
Por otra parte, el proyecto PITAGORAS
9
se concentra la integración eficiente de los
distritos urbanos con los parques industriales a partir del desarrollo de tendidos eléctricos
eficientes y sostenibles en las localidades de Graz y Brescia. El objetivo principal del
proyecto consiste en difundir un sistema de generación de energía a gran escala,
eficiente, rentable y altamente replicable que permita la planificación urbana sostenible
a partir de un bajo consumo eléctrico. La implementación de la tecnología para estos
casos estuvo relacionada con el perfeccionamiento de fuentes de energías renovables
como la energía solar y el sistema de almacenamiento de energía térmica estacional. En
lo que respecta a su potencial como proyecto, PITAGORAS fue presentado en múltiples
conferencias entre 2014 y 2017 en diversas ciudades de la Unión Europea como Bilbao,
Brescia, Belfast, Barcelona, Ostrava, Lyon, Bruselas, Milán, Budapest no solamente con
6
El proyecto se desarrolló entre enero de 2015 y diciembre de 2019. Más del 50% de la financiación provino
de la Comisión Europea. Además, el proyecto se enmarca dentro del Programa Horizonte 2020. Desde el
comienzo del proyecto, se refaccionó una superficie de 123,000 m2 para mejorar la eficiencia energética.
La visibilización de los esfuerzos por ahorrar consumo energético generepercusiones en la ciudadanía.
Los resultados e impacto del proyecto hasta la fecha se encuentran disponibles en línea. Recuperado de
https://cordis.europa.eu/project/rcn/194441/reporting/es
7
Para más información, se puede consultar el portal oficial de comunicación del proyecto en https://grow-
smarter.eu/inform/blog-updates/blog-archive/?c=search&uid=3eKwPPp6
8
https://grow-smarter.eu/inform/blog-updates/blog-archive/?c=search&uid=ONaylGOt
9
El proyecto se desarrolló entre noviembre de 2013 y octubre de 2017. Más del 50% de la financiación
provino de la Comisión Europea. De acuerdo con los resultados, los hornos de arco eléctrico fueron
replicados en 400 casos en la Unión Europea. Los resultados se encuentran disponibles en línea. Recuperado
de
https://pitagorasproject.eu/sites/pitagoras.drupal.pulsartecnalia.com/files/documents/SCISconference201
7Tecnalia%20Pitagoras%20project.pdf
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el objetivo de compartir lecciones aprendidas sino también para difundir oportunidades
de negocios entre emprendedores locales destacando la importancia de construir
vinculaciones con el sector empresarial local. De esta forma, la cooperación
descentralizada tiende a imbricarse con un variado conjunto de actores relevantes del
tejido social. En este sentido, la acción política de las ciudades interpela de manera
directa al sector productivo a partir de las orientaciones de proyectos enfocados en
soluciones sostenibles y eficientes.
Finalmente, el objetivo del proyecto STORM
10
consiste en impulsar la eficiencia energética
en los distritos urbanos mediante el recurso a fuentes de energías renovables para la
generación y el almacenaje energético basado en algoritmos de aprendizaje en el
consumo. Mediante esta implementación de la tecnología, se permite maximizar el
rendimiento del consumo. Las ciudades seleccionadas fueron Heerlen y Rottne. Los
beneficios del proyecto pueden ser transferidos a un amplio conjunto de actores
interesados de la Unión Europea y su réplica, difusión y aprendizaje contribuyen a un
desarrollo amplio de este tipo de sistemas energéticos a nivel regional.
En definitiva, de acuerdo con la tipología enumerada previamente, los casos analizados
pueden ser considerados como Proyectos Comunes ya que implican intervenciones
concretas en temáticas específicas con propósitos definidos.
Los objetivos delineados por los cuatro proyectos analizados se relacionan directamente
con la intención de generar réplicas de modelos y difusión de prácticas exitosas, que, en
última instancia, implican la propagación de tendencias y promueven una suerte de
aproximación en los abordajes y soluciones a ser implementadas por los actores
subnacionales en la Unión Europea de cara a los desafíos energéticos. La cooperación
descentralizada en estos casos de estudio se vincula, por una parte, con la formulación
y ejecución de Proyectos Comunes y, por otra parte, con la difusión de buenas prácticas
mediante la plataforma de SCIS.
En otro orden de cuestiones, mediante la financiación de los proyectos por parte de la
Comisión Europea se impulsa la transición a un sistema energético que se encuentra en
sintonía con los principales objetivos de la propuesta de Unión de la Energía. En este
esquema, el paradigma de Smart City resulta funcional para afrontar los desafíos
energéticos y representa una alternativa para difundir prácticas y promover soluciones
energéticas en el marco de las limitaciones políticas de los Estados miembros.
IV. La Asociación Europea para Smart Cities y Comunidades
La Asociación Europa para Smart Cities y Comunidades (EIP-SCC) reúne diferentes
ciudades, industrias y ciudadanos con el propósito de mejorar la calidad de vida urbana
a partir de la búsqueda y ejecución de soluciones sostenibles y eficientes de manera
integrada en las áreas de energía, transporte y TICs. El objetivo de esta asociación
consiste en catalizar el progreso en estas áreas íntimamente relacionadas y ofrecer
10
El proyecto se desarrolló ente marzo de 2014 y agosto de 2018. La totalidad del financiamiento provino de
la Comisión Europea. De acuerdo con los resultados, se logró una reducción de hasta 57% de ineficiencia
energética en los casos estudiados. Los resultados y el impacto del proyecto se encuentran disponibles en
línea. Recuperado de https://storm-dhc.eu/en/storm-controller/final-test-results
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alternativas interdisciplinarias para mejorar los servicios a partir de la reducción del
consumo energético
11
.
En el financiamiento de los proyectos enmarcados en EIP-SCC participa un amplio
conjunto de actores que incluye a instituciones europeas como el Banco Europeo de
Inversiones además de participantes públicos y privados. Actualmente se están llevando
a cabo dos tipos de iniciativas: por una parte, los Proyectos Faro (Lighthouse Projects)
que son parcialmente financiados por el programa Horizonte 2020; y, por otra parte,
proyectos y acciones financiados por entidades privadas y públicas (como por ejemplo el
Fondo Europeo Estructural de Inversiones) con el propósito de difundir soluciones
vinculadas al paradigma de Smart City que puedan ser replicadas por el resto de los
actores subnacionales del bloque.
Desde EIP-SCC se pretende generar conexiones entre el sector privado y las ciudades
con fuentes de financiamiento para la realización de ciertos proyectos. Es decir, desde
este espacio se intentan superar las dificultades asociadas al acceso al financiamiento y,
además, sirve como nexo para desarrollar vinculaciones estratégicas entre actores
interesados para que los proyectos puedan ser ejecutados.
EIP-SCC desarrolló un conjunto de Clusters de Acción en donde se pueden reunir socios
para trabajar en asuntos específicos vinculados a las problemáticas de Smart Cities a
partir del intercambio de experiencias, compartiendo el valor agregado de las prácticas
locales y nacionales y permitiendo identificar los principales focos de atención y pasos a
seguir. Los Clusters están organizados en torno a distintas áreas temáticas y,
precisamente, una de ellas hace referencia a los Distritos Sostenibles que
específicamente hace hincapen la reducción del consumo de energía y en el impacto
ambiental. Desde EIP-SCC, se advierte la premisa de que el presupuesto para lograr la
transición energética y para modernizar la infraestructura es significativo. Por lo tanto,
en pos de paliar esta situación, se identifican a las ciudades con mayores dificultades
para acceder a un financiamiento que les permita conseguir los objetivos energéticos, y
en función de eso los socios de EIP-SCC despliegan estrategias para contribuir a los casos
con mayores desventajas
12
.
En el marco de EIP-SCC se desarrollan proyectos y acciones relativos a las energías
renovables entre los que se pueden destacar, por una parte, Deep Retrofitting Project
(Proyecto de Modificación Profunda) y Positive Energy Blocks Project (PEB Project). El
primer proyecto promueve el ahorro energético de manera estratégica a partir de la
mejora del stock existente. Se pretende lanzarlo en 2020 a lo largo de todos los países
del bloque, con la expectativa de contar con al menos un caso por Estado miembro. En
síntesis, el proyecto consiste en escoger edificios estratégicos y, apoyado por el uso de
las TICs, coadyuvar a la reducción de su consumo energético a partir de la generación
de energía renovable propia. Por otra parte, el objetivo del segundo proyecto consiste en
promover la interconexión de tres edificios por ciudad que puedan producir más energía
de la que consumen por año, generando un consumo positivo de energía. Este proyecto
11
La información acerca de los objetivos y proyectos se encuentra disponible en línea de EIP-SCC. Recuperado
de https://eu-smartcities.eu/page/what-eip-scc-marketplace
12
La información relativa a los Clusters de Acción de EIP-SCC se encuentra disponible en línea. Recuperado
de https://eu-smartcities.eu/clusters
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también se lanzará en 2020 y cuenta con el apoyo de la Comisión Europea para la
implementación de fuentes de energías renovables.
En ntesis, se pueden encontrar una serie de similitudes con los proyectos y acciones
del SCIS. Por una parte, cabe resaltar que también en el marco de EIP-SCC se puede
detectar la estrategia de generar casos exitosos y de difundir sus buenas prácticas para
que éstas puedan ser replicadas por distintos actores subnacionales del bloque. Por otra
parte, es importante subrayar la participación de la Comisión Europea en calidad de
financista en un contexto caracterizado precisamente por la dificultad para acceder a
fuentes que permitan costear la realización de los proyectos.
Finalmente, de acuerdo con la tipología de la cooperación descentralizada inicialmente
expuesta, se pueden extraer una serie de conclusiones. En primer lugar, en lo que
respecta a los proyectos en mismos, es posible afirmar que se trata nuevamente de
Proyectos Comunes que implican intervenciones concretas en temáticas específicas. En
segundo lugar, el carácter de EIP-SCC como espacio apto para las vinculaciones entre
múltiples actores para solucionar las problemáticas de financiamiento de proyectos,
induce a considerar este caso como una suerte de alianza estratégica al constituirse como
un núcleo que posibilita el relacionamiento entre actores. Es decir, este espacio
trasciende la instancia de diagramación y planificación de proyectos y en realidad
promueve, de manera estratégica, la vinculación entre actores para que los proyectos
puedan ser concretados.
IV.1. El Pacto de los Alcaldes
El Pacto de los Alcaldes por el Clima y la Energía
13
, tal como anticipamos en la sección
previa, es una red conformada por autoridades locales y regionales de manera voluntaria
cuyo propósito consiste en implementar en el ámbito local las metas climáticas y
energéticas de la Unión Europea. El Pacto de los Alcaldes está conformado por un
consorcio de cinco redes de ciudades europeas: FEDARENE, Energy Cities, Climate
Alliance, Eurocities, CMR y ICLEI Europa. Se trata de una iniciativa bottom-up iniciada
en 2008 con el apoyo de la Comisión Europea y que en la actualidad cuenta con más de
9.000 participantes.
El Pacto de los Alcaldes adoptó la perspectiva de las Smart Cities dentro de su ámbito de
actuación y comenzó a participar en las reuniones planteadas por redes asociadas a este
13
La Federación Europea de Agencias y Regionales por la Energía y el Medioambiente (FEDARENE), creada en
1990 define la estrategia del Pacto de los Alcaldes; Energy Cities es una red de lobby de 1,000 gobiernos
locales situados en 30 países; Climate Alliance conglomera a 1,700 miembros de 26 países de la Unión
Europea, gobiernos regionales y ONGs dedicadas a la lucha por el cambio climático; Eurocities, fundada en
1986 por seis grandes ciudades europeas (Barcelona, Birmingham, Frankfurt, Lyon, Milán y Rotterdam) es
la mayor red de ciudades grandes de la Unión Europea; el Consejo de Municipalidades y Regiones Europeas
(CEMR) es la asociación más antigua de gobiernos locales y regionales que desde1951promueve la
construcción de una Europa democrática, pacífica y unida fundada en el respeto al gobierno local, al principio
de subsidiariedad y a la participación ciudadana; ICLEI Europa es una asociación de gobiernos locales y
regionales comprometidos con el desarrollo urbano sostenible que provee a los miembros en Europa, Norte
de África, Medio Oriente y Asia Occidental una voz en la escena europea e internacional, una plataforma
para conectar con socios y herramientas para promover un cambio ambiental, económico y social.
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paradigma de ciudad
14
. De esta manera, el Pacto ha incorporado el abordaje que permite
trabajar en pos del desarrollo de un modelo estandarizado de soluciones que puedan ser
replicadas por otros socios del bloque.
En el 2015, tras el anuncio de la propuesta de la Unión de la Energía, el Pacto de los
Alcaldes incorporó una serie de objetivos para alinearse con las iniciativas energéticas
esgrimidas por la Comisión Europea. En ese sentido, se profundi el abordaje de la
descarbonización de las fuentes energéticas y se intensificó la promoción de ciudades y
sistemas energéticos resilientes donde los ciudadanos puedan contar con un acceso
seguro, sostenible y asequible a la energía. Además, el Pacto se comprometió a
cumplimentar los Planes de Acción por la Energía Sostenible y el Clima 2030 (que
implican una reducción del 40% de los gases de efecto invernadero) y a implementar
acciones locales para mitigar el cambio climático
15
.
En pos de traducir el compromiso político en proyectos prácticos y mesurables, los
participantes del Pacto acordaron desarrollar Planes de Acción para la Energía Sostenible
y el Clima (SECAPs) puntualizando y sistematizando las acciones que planean tomar en
pos de la consecución de los objetivos del bloque y en sintonía con la Unión de la Energía.
Sintéticamente, los participantes se comprometen a compartir informes periódicos para
evaluar el estado de sus planes de acción de manera anual. Mediante la plataforma del
Pacto de los Alcaldes se puede realizar un seguimiento de los resultados y el impacto de
cada una de las acciones desplegadas por las localidades signatarias.
16
En base a los
reportes de monitoreo de cada signatario, se genera una base de datos con buenas
prácticas a la que los participantes pueden acceder para obtener detalles acerca de la
planificación de proyectos que pueden ser replicados. La información detallada acerca de
cada uno de los planes de acción incluye una visión general del proyecto, un inventario
de las emisiones, los planes de acción propiamente dichos (incluyendo información
presupuestaria), los avances, acciones clave y soporte adicional.
A lo largo de los últimos diez años, el Pacto ha capitalizado la experiencia de una iniciativa
generada con un sentido bottom-up, basada en la cooperación multinivel y en un marco
de acción orientado a la planificación localizada. Además, los participantes del Pacto han
sido beneficiados por el intercambio de experiencias exitosas de los socios del bloque.
En términos cuantitativos, el Pacto de los Alcaldes está compuesto por 9.847
participantes cubriendo a una población total de 315.484.544 habitantes. Además,
involucra a 221 coordinadores, 31 ONGs, 67 agencias temáticas, 96 redes de ciudades y
2 socios estratégicos. De todos los planes de acción propuestos, 180.392 acciones fueron
implementadas exitosamente
17
.
14
La información acerca de la participación del Pacto de los Alcaldes en conferencias de Smart Cities está
disponible en línea. Recuperado de https://www.pactodelosalcaldes.eu/informaciones-y-
eventos/eventos/eventos-precedentes/2243-smart-cities-and-communities-conference.html
15
La información acerca de los objetivos y compromisos del Pacto de los Alcaldes se encuentra disponible en
línea. Recuperado de https://www.pactodelosalcaldes.eu/sobre-nosotros/el-pacto/objetivos-y-alcance.html
16
La información acerca de las acciones particulares de los participantes se encuentra disponible en línea.
Recuperado de https://www.pactodelosalcaldes.eu/planes-y-acciones/resultados.html
17
La información acerca del Pacto de los Alcaldes se encuentra disponible en línea. Recuperado de
https://www.eumayors.eu/about/covenant-initiative/covenant-in-figures.html
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En definitiva, la cooperación descentralizada que se desarrolla en el marco del Pacto está
basada en el carácter de red de esta iniciativa y, en este sentido, la difusión de buenas
prácticas y vinculación para el intercambio de técnica nuevamente se posiciona como
uno de los recursos más frecuentes. Además, la problemática del financiamiento está
presente y su resolución está contemplada y apoyada por la Comisión Europea.
Conclusiones
En la Unión Europea, las prácticas que se desarrollan bajo el paradigma de la cooperación
descentralizada son múltiples y variadas. Cada caso debe ser analizado teniendo en
consideración el contexto de realización en el que está sumergido y, fundamentalmente,
las características de los socios involucrados. En ese sentido, una de las precisiones
básicas consiste justamente en puntualizar la modalidad intra-bloque de la cooperación
descentralizada en la Unión Europea.
Tal como fue abordado a lo largo del artículo, las Smart Cities han recurrido
fundamentalmente a cuatro modalidades de la cooperación descentralizada para el
tratamiento de las energías renovables en la Unión Europa: las redes de ciudades, los
proyectos comunes, el intercambio de buenas prácticas y conocimiento técnico y, en
menor medida, a las alianzas estratégicas.
A pesar de que las cuatro tipologías han sido definidas como prácticas diferenciadas al
principio del artículo, el análisis de los proyectos y acciones del SCIS, EIP-SCC y del Pacto
de los Alcaldes ha demostrado que las tipologías no son excluyentes y, por el contrario,
son pasibles de ser conjugadas e interrelacionadas para fomentar las capacidades de los
actores involucrados. Por ejemplo, la participación de las Smart Cities en redes de
ciudades ha potenciado el intercambio de buenas prácticas entre socios y ha promovido
de manera frecuente la difusión de modelos exitosos a ser replicados por actores del
resto del bloque.
Asimismo, las lecciones aprendidas en proyectos como CITyFiED, GrowSmarter y
PITAGORAS fueron visibilizadas en distintos foros y espacios de intercambio en diversas
localidades del bloque interpelando a un vasto conjunto de actores del tejido social a fin
de potenciar las capacidades económicas y sociales locales desde una perspectiva
sostenible y eficiente en términos energéticos y ambientales. Como consecuencia, la
cooperación descentralizada, en sus distintas modalidades, representa una herramienta
fundamental no solamente para lograr visibilizar prácticas y lecciones en el marco de la
aplicación de proyectos locales, sino para interpelar a un variado conjunto de actores
locales con relevancia económica y social. En definitiva, se trata de una propuesta de
gestión pública que permite vincular la acción local con las capacidades locales y las
lecciones internacionales.
Uno de los rasgos salientes de los distintos tipos de proyectos y acciones enmarcados en
la cooperación descentralizada entre Smart Cities en materia de energías renovables,
ciertamente lo constituye la participación de la Comisión Europea en su rol de proveedor
de fondos. La presencia significativa de la institución contribuye a la ejecución de los
programas y acciones que, en última instancia, están alineados con la propuesta de
generar una transición a un sistema energético sostenible de acuerdo a la Unión de la
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Energía. Basta recordar que en algunos casos como STORM del SCIS, la Comisión ha
financiado la totalidad del proyecto.
Finalmente, es dable destacar que, en el marco de los proyectos y acciones de
cooperación descentralizada en materia de energías renovables, el modelo de Smart City
ha servido como facilitador y promotor de soluciones en conjunto para desafíos locales a
partir de la gestión eficiente y sostenible de los recursos fundamentalmente debido a la
naturaleza misma de los desafíos energéticos y a los postulados relacionados con el
propio paradigma de Smart City.
En suma, la noción de que la cooperación descentralizada es concebida para reforzar los
lazos de la integración es congruente con la situación analizada en el caso de las energías
renovables en la Unión Europea. Además, pudimos identificar la conexión entre las
problemáticas situadas en el nivel subnacional impulsadas fundamentalmente por el
modelo de Smart City, con las propuestas pensadas a escala regional a partir de la Unión
de la Energía. En este esquema, el tratamiento de la cuestión de las energías renovables
en los proyectos y acciones analizados es representativo de cómo se promueve la réplica
de modelos y el intercambio de buenas prácticas para que, en última instancia, se
difundan tendencias similares en lo concerniente a la gestión de la energía de manera
sostenible y eficiente en la Unión Europea.
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PASSAGEM DAS TAXAS DE CÂMBIO PARA OS ÍNDICES DE PREÇOS NO IRÃO
MOHSEN MOHAMMADI KHYAREH
m.mohamadi@ut.ac.ir
Professor auxiliar, Universidade de Gonbad Kavous (Irão)
Resumo
Um dos principais desafios da política monetária é prever como as flutuações da taxa de
câmbio afetam a inflação e os índices de preços. Por conseguinte, o principal objetivo deste
estudo é examinar a flutuação da taxa de câmbio nos índices de preços no Irão. Este artigo
analisa os efeitos das flutuações cambiais nos índices de preços e outras variáveis
macroeconómicas do Irão durante o período de 2004-Q1 a 2018-Q4, utilizando o quadro de
um modelo VAR recursivo, baseado em Bernanke (1986) e Sims (1986). Os resultados
indicam que a transferência das alterações da taxa de câmbio para os índices de preços é
imperfeita, de tal forma que a trajetória da taxa de câmbio para os pros no consumidor, no
produtor e na importação é de 14,68%, 15,55% e 18,22% no primeiro período aumenta para
51,78%, 53,15% e 88,14% no 13º período. Além disso, os resultados indicam que o percurso
da taxa de câmbio diminui ao longo da cadeia de distribuição, com a taxa de câmbio mais
elevada a passar pelos preços de importação, preços no produtor e preços no consumidor,
respetivamente. O resultado tem implicações interessantes para a capacidade do Irão de
atingir um regime eficaz de inflação. Os decisores políticos monetários devem reduzir as
flutuações das taxas de câmbio, adotando políticas cambiais adequadas, a fim de minimizar
a incerteza do índice de preços no consumidor. O estudo contribui para a literatura ao avaliar
o efeito das alterações na taxa de câmbio (o rial iraniano em relação ao dólar americano)
sobre os preços utilizando uma série cronológica atualizada de 2004 a 2018. Aborda as
limitações dos estudos anteriores, que não encontraram uma relação forte entre a taxa de
câmbio e a taxa de inflação no contexto iraniano. Uma destas limitações era a utilização do
IPC, como único índice de preços.
Palavras-chave
Percurso cambial, política monetária, índice de preços, VAR recursivo, Irão
Como citar este artigo
Khyareh, Mohsen Mohammadi (2021). Passagem das taxas de câmbio para os índices de
preços no Irão. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro
2021. Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.12.1.8
Artigo recebido em 31 Outubro 2020 e aceite para publicação em 4 Março 2021
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Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 151-167
Passagem das taxas de câmbio para os índices de preços no Irão
Mohsen Mohammadi Khyareh
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PASSAGEM DAS TAXAS DE CÂMBIO PARA OS ÍNDICES DE PREÇOS
NO IRÃO
1
MOHSEN MOHAMMADI KHYAREH
Introdução
Devido às transações de divisas em produtos petrolíferos e petroquímicos, o Irão sempre
teve uma balança comercial positiva. No entanto, nos últimos meses de 2017 e desde o
início de 2018, o mercado de divisas do país conheceu uma volatilidade substancial, e a
taxa de câmbio do mercado aberto subiu. As razões para o aumento da taxa de câmbio
devem ser encontradas a partir de dois tipos de fatores de fundo e fatores agravantes.
Nos últimos anos, surgiram os fatores potenciais mais importantes que tornaram o país
vulnerável ao sistema cambial, incluindo o rápido aumento das restrições de liquidez dos
bancos iranianos relacionadas com a transferência de fundos; a dependência de moedas
intermédias como o dólar americano e o euro, e a dependência do sistema SWIFT
centralizado. No entanto, os fatores que levam à subida acentuada da taxa de câmbio
são o aumento acentuado do nível de saídas incertas de capital no ambiente económico
do país, a retirada das corretoras e novas restrições nas rotas de comércio de divisas do
país.
Note-se que nem todos os fatores que afetam as flutuações da taxa de mbio são
influenciados por fatores puramente económicos, e muitos fatores não económicos, tais
como a evolução política, podem afetar as expectativas da taxa de câmbio, influenciando
as expectativas da sociedade. Contudo, para considerar a coincidência da evolução
política e das flutuações cambiais durante o período 2013-2018, devemos dizer que a
eleição do presidente dos EUA Donald Trump, em novembro de 2016, causou um
aumento da flutuação da taxa de câmbio no Io e, além disso, a ameaça de Trump de
se retirar do plano de ação global conjunto (JCPOA)
2
causou mais flutuações na taxa de
câmbio iraniana. Assim, a fim de manter a inflação baixa e estável, é necessário
identificar os fatores importantes envolvidos na inflação no Irão. Entretanto, parte da
elevada inflação no Io deve-se a choques de preços estrangeiros devido à elevada
percentagem de bens importados no PIB, pelo que as elevadas flutuações da taxa de
câmbio levaram a nossa atenção a estudar a taxa de câmbio sobre os índices de preços
no Irão. Como a taxa de câmbio é um fator determinante da inflação, as alterações nas
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
2
O Plano de Ação Global Conjunto (JCPOA) (normalmente conhecido como acordo nuclear iraniano ou acordo
iraniano, é um acordo sobre o programa nuclear iraniano alcançado em Viena em 14 de julho de 2015,
entre o Irão e o P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas-
China, França, Rússia, Reino Unido, Estados Unidos-mais Alemanha (juntamente com a União Europeia).
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taxas dembio são consideradas importantes na conceção da política monetária,
especialmente quando um país tem uma política cambial flexível, bem como uma política
comercial aberta. Assim, tem sido um desafio permanente para os economistas examinar
a passagem da taxa de câmbio (ERPT) para os preços internos. Por conseguinte, o
principal objetivo do presente estudo é avaliar o grau de ERPT no Irão. Para o efeito,
será examinada a resposta dinâmica da inflação aos índices de preços aos choques
cambiais no Irão.
De acordo com a Figura 1, o desenvolvimento do mercado cambial do país mostra a
turbulência do mercado e a dramática volatilidade das últimas décadas. Ao mesmo tempo
que o Irão implementou uma política cambial unificada em 1993, a taxa de câmbio subiu
acentuadamente devido ao desequilíbrio dos pagamentos internacionais, principalmente
devido à queda dos preços do petróleo e à questão do pagamento davida devida. Mais
tarde, em 2002, através do apoio financeiro das reservas cambiais do banco central e da
cobertura financeira do banco central, foi implementada uma política cambial unificada,
que reduziu grandemente a distância entre o mercado livre e a taxa de câmbio oficial.
Proporcionando assim uma relativa estabilidade no mercado de divisas. Além disso, entre
2002 e meados de 2010, está a ser implementado um sistema de flutuação gerido.
Contudo, uma vez que o principal fornecedor do país depende das receitas cambiais das
exportações de petróleo, as flutuações dos preços mundiais do petróleo e a decisão de
utilizar as receitas do petróleo no orçamento anual levaram à fragmentação do mercado
de divisas. Desde meados de 2010, após o alargamento do fosso entre o mercado e a
taxa de câmbio oficial, o mercado cambial flutuou acentuadamente em 2011 e 2012.
Figura 1 - Tendência da variação percentual anual das variáveis
Fonte: Base de dados de séries cronológicas, Banco Central do Irão
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Uma das razões mais importantes para o aumento da taxa de câmbio é a crescente
procura especulativa de divisas, o aumento esperado do retorno da taxa de câmbio e o
aumento esperado dos lucros esperados das compras cambiais. A subida contínua das
taxas de mbio do mercado, as perspetivas futuras negativas de sanções, os
rendimentos cambiais do país e as reservas de divisas, a expansão do espaço arrendado
e o aumento das pressões inflacionistas fizeram com que o país estivesse à beira de uma
crise cambial no final de 2011 e meados de 2018. Por outro lado, a taxa de crescimento
da liquidez e das receitas petrolíferas nos últimos anos, e mais importante ainda, a
qualidade da sua distribuição, é outro fator importante nas flutuações contínuas das taxas
de câmbio. O canal da procura especulativa é um canal que afeta a liquidez e a
volatilidade da taxa de câmbio. Deve também notar-se que a acumulação de liquidez
prejudicial ao longo dos anos promoveu tumultos económicos em vários domínios, tais
como a terra, o mercado imobiliário, o mercado do ouro e, recentemente, o mercado de
divisas. Além disso, fatores como a elevada inflação nos últimos anos, a falta de
ajustamento cambial e a elevada dependência das receitas do petróleo tornaram-se
fatores que afetam as flutuações das taxas de câmbio nos últimos anos. No entanto, as
sanções são o fator mais influente quando as moedas começaram recentemente a flutuar.
Portanto, devido à estreita relação entre flutuações cambiais, liquidez e receitas do
petróleo, este artigo estuda a relação entre elas.
No caso do Irão, a relação entre o índice de preços e o ERPT foi testada utilizando modelos
VAR e de variância estrutural (SVAR). A característica saliente deste estudo é a utilização
de um modelo VAR recursivo para verificar o ERPT. Este estudo investigou os efeitos das
receitas petrolíferas, do crescimento económico, do crescimento da oferta monetária e
das flutuações das taxas de câmbio. Aà data, os efeitos destas variáveis não foram
estudados no âmbito do modelo VAR recursivo. Outra característica do modelo é a
capacidade de avaliar a sustentabilidade dos resultados através da avaliação da
sensibilidade dos resultados a diferentes classificações de Cholesky. Em comparação com
outros modelos utilizados em pesquisas anteriores, outra característica deste modelo é
que pode examinar o impacto das diferentes políticas das autoridades monetárias em
diferentes choques económicos.
Na segunda parte deste artigo, revemos a política cambial do Irão, e na terceira parte
revemos a literatura teórica e empírica. A quarta parte discute os métodos e dados de
investigação. A quinta parte discute os resultados experimentais, e finalmente as
conclusões da sexta parte são discutidas.
1. Visão geral do sistema financeiro iraniano
Ao longo das últimas décadas, o mecanismo de determinação das políticas cambiais e
das taxas de mbio mudou amplamente e, de um modo geral, ao longo do tempo,
mudou para disposições mais flexíveis. Após a adoção do sistema de taxas de mbio
fixas durante os anos (1959-1978), o sistema de taxas de câmbio múltiplas foi aplicado
nos anos que se seguiram à revolução islâmica e até 1992. Este sistema está em vigor
desde (1994-2001) e desde meados de 2010 até agora. Depois disso, o sistema flutuante
gerido foi implementado no país com duas experiências completamente diferentes. Na
primeira experiência, em 1993, devido ao desequilíbrio na balança de pagamentos, que
se deveu principalmente à queda dos preços do petróleo e ao reembolso de dívidas
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vencidas, o sistema falhou. Contudo, o sistema de flutuação gerido voltou a ser
implementado em 2002, e devido aos elevados lucros e abundância de ganhos cambiais
continuou até meados de 2010.
O evento que afetou o funcionamento do sistema de flutuação controlada foi a imposição
de sanções contra o sistema financeiro do país em outubro de 2010. Embora a história
da hostilidade ocidental contra o Irão e a sua manifestação sob a forma de sanções
unilaterais e multilaterais remonte à formação inicial da República Islâmica do Irão; em
meados de 2010, as sanções ocidentais contra o Io tomaram um rumo diferente, em
termos de quantidade e alcance. Era mais amplo em termos de regras e mecanismos de
execução do que em sanções anteriores.
Na nova série de sanções ocidentais ao Irão, adotada em julho de 2010 pela primeira
vez para além dos Estados Unidos, a Europa também impôs sanções ao Io e sanções
às instituições financeiras iranianas, bancos centrais, companhias de seguros,
exportações de petróleo e gás, petroquímicos e produtos. As transações petrolíferas e
financeiras (como a SWIFT) e a transferência de receitas em divisas também foram
incluídas nas sanções.
Uma das consequências mais importantes e imediatas da imposição e imposição de
sanções foi o seu impacto no sistema de taxas de câmbio e no mercado de divisas do
país. A prova tem sido que o mercado cambial reagiu às sanções a curto prazo nos
últimos seis anos. No setor real da economia, as sanções também reduziram as receitas
cambiais e reduziram o fornecimento de divisas, restringindo as exportações de petróleo,
gás, produtos petrolíferos e petroqmicos.
1.1 Evolução e história dos acordos cambiais no Irão
A investigação da evolução dos acordos cambiais do Irão desde 1957 mostrou uma
mudança do sistema de taxas de câmbio fixas para um sistema de taxas de câmbio mais
flexível. Em geral, a economia iraniana, durante este período, experimentou três tipos
de política cambial adotada ao longo de seis tempos diferentes.
Antes da vitória da Revolução Islâmica, o país tinha um sistema de taxas de câmbio
estável. Contudo, a supervisão governamental, o racionamento das taxas de câmbio e o
estabelecimento de prioridades para as despesas em divisas continuou até 1973. Em
1974, o preço do petróleo nos mercados mundiais aumentou notavelmente. Com o
aumento das receitas cambiais das exportões de petróleo, a quota foi eliminada
(mantendo um sistema de taxas de câmbio estável). Após a vitória da Revolução
Islâmica, o sistema cambial do país continuou a ser um sistema de taxas de mbio fixas,
mas com a emergência da atmosfera de fuga de capitais do banco central para conter e
controlar este fluxo implementou controlos .
O início da guerra imposta causou muitas restrições cambiais, oportunidades de
exportação reduzidas, aumento da procura de importações, e preços mundiais do
petróleo mais baixos. Ao mesmo tempo, a adoção de uma política de substituição de
importações, que começou uma década antes da vitória da revolução, aumentou a
necessidade de indústrias de alta capacidade, cujos principais equipamentos foram
importados para receitas em divisas. Por outro lado, a importação de bens essenciais
necessários à sociedade, bem como os custos crescentes dos projetos de
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desenvolvimento, exigiam também o acesso a recursos em divisas. Dadas as limitadas
receitas em divisas do país, foi crucial canalizar e otimizar a afetação destes recursos.
Após a guerra imposta e a reconstrução inicial da taxa de mbio, a unificação tornou-
se uma das prioridades da transformação económica do país. A política de unificação da
taxa de câmbio foi introduzida pela primeira vez em 1993. A política cambial no Irão em
1993 foi seguida de um forte aumento da taxa de câmbio devido aos desequilíbrios nos
pagamentos, principalmente devido à queda dos preços do petróleo e ao problema dos
pagamentos em atraso. Em geral, as políticas implementadas não foram bem-sucedidas
devido à falta de coordenação e requisitos em todas as políticas de unificação das taxas
de câmbio do país.
Uma vez que a política de unificação das taxas de câmbio com a abordagem de alcançar
um sistema de taxas de câmbio mais flexível desempenha um papel importante na
melhoria do desempenho dos diferentes setores económicos, esta política foi novamente
aplicada em 2002 e os tipos de taxas existentes foram abolidos. Em 2002, a
implementação de uma política cambial de unificação utilizando o apoio financeiro das
reservas cambiais do banco central reduziu significativamente a diferença cambial livre
e oficial e proporcionou uma relativa estabilidade no mercado de divisas. O sistema de
câmbios flutuantes geridos esteve em funcionamento de 2002 a meados de 2010.
Durante estes anos, para além da taxa de câmbio derivada das exportações de petróleo
e gás, o aumento contínuo das exportões não petrolíferas serviu como um recurso para
a gestão do mercado cambial. Embora houvesse opiniões de que o ajustamento da taxa
de câmbio era proporcional à diferença entre as taxas de inflação interna e externa, a
existência de recursos cambiais suficientes tornava difícil a manutenção da estabilidade
relativa no mercado cambial.
Desde 2010, com a imposição de novas sanções contra o sistema bancário do país, devido
a um endurecimento do programa e à restrição das receitas petrolíferas, a subida da taxa
de câmbio acelerou. A taxao oficial do dólar no final de 89 era de cerca de 10400 rials,
que no final de março do ano seguinte subiu para o rial de 19000. De facto, a taxa do
dólar não oficial em 2011 registou um crescimento de 80 por cento. Na sequência destas
inflamações, o Banco Central do Io começou a aumentar a taxa oficial e anunciou a
taxa oficial do dólar a 12260 rials. O choque cambial de 2011 continuou no ano seguinte,
pois as flutuações da taxa de câmbio foram muito elevadas e o dólar no mercado aberto
registou um preço de 40000 rials por 1 dólar americano. No segundo semestre do ano
2017 começou uma nova ronda de volatilidade no mercado cambial que foi exatamente
a mesma que nos anos 2011 e 2012. O aumento do preço do lar acelerou desde
dezembro de 2017 e aumentou gradualmente até ao limite de 48, 500 rials por dólar
americano.
2. Revisão da literatura
Desde os anos 90, os investigadores têm-se concentrado mais em estudos empíricos das
taxas de câmbio. Desde então, a maior parte da investigação empírica tem estudado o
efeito do ERPT sobre os preços em determinadas indústrias, países específicos, ou grupos
de países, dependendo das características gerais da sua macroeconomia. Por exemplo,
Feinberg (1989) e Knetter (1993) examinaram empiricamente o ajustamento dos preços
em termos de grau de concentração do mercado, quotas relativas dos produtos nacionais
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e importados, penetração das importações e flutuações das taxas de câmbio. Estudos
como Devereux e Yetman (2010) concluíram que o ERPT es significativa e
positivamente correlacionado com a taxa de inflação média e o ambiente de baixa
inflação leva à transmissão de taxas de câmbio baixas aos preços de importação. Além
disso, Campa e Goldberg (2005), Taylor (2000) e Frankel (2012) consideram a
volatilidade da taxa de câmbio como um fator importante no ERPT.
Além disso, um grande número de estudos examinou o grau de taxas de câmbio internas
e de preços de importação para países em desenvolvimento e emergentes como um
painel inter-países. Investigadores como McFarlane (2009) e Razafimahefa (2012)
examinaram o grau de ERPT sobre preços ao consumidor e preços de importação para
os países em desenvolvimento e mercados emergentes. Estes artigos constataram
geralmente que o grau de ERPT para países em desenvolvimento e emergentes era
significativamente maior do que o dos países avançados. Além disso, o ERPT pode ter
um efeito assimétrico nos preços, dependendo da diminuição ou aumento do valor da
taxa de câmbio e da sua flutuação absoluta. No papel de Kohlscheen (2010), utilizando
o modelo VAR, o grau de ERPT aos preços ao consumidor foi examinado para vários
países durante os seus regimes de taxas de câmbio flutuantes. Os resultados mostraram
que para os países com maiores flutuões da taxa de câmbio nominal e menor
diversificação comercial, as taxas de câmbio mais elevadas passam. Num outro estudo,
Ito e Sato (2008), ao examinar o ERPT nos países da Ásia Oriental, concluiu que o grau
de ERPT ao longo da cadeia de distribuição diminuiu e que a taxa mais elevada de ERPT
acontece respetivamente nos preços de importação, no produtor e no consumidor. A este
respeito, Ghosh (2013) examinou o ERPT para vários países da América Latina ao longo
das últimas quatro décadas. Os resultados mostraram que o grau de ERPT diminuiu ao
longo do tempo.
Foram também realizados muitos estudos sobre a repercussão das taxas de mbio em
diferentes países ao longo do tempo. Justel e Sansone (2015), ao examinar o grau de
ERPT utilizando o modelo VAR para o Chile, concluiu que a taxa de transmissão das taxas
de câmbio no Chile tem vindo a diminuir ao longo do tempo. Espada (2013) investigou o
grau de ERPT no México, utilizando o modelo VAR. Os resultados indicam que o ERPT não
foi estatisticamente significativo. No mesmo período, Peón e Brindis (2014) constataram
que o grau de ERPT diminuiu ao longo da cadeia. Num outro documento, Rincón-Castro
e Rodríguez-Niño (2016), utilizando a abordagem bayesiana ao expressar
endogenamente o ERPT e a situação económica, concluíram que o ERPT é maior se, (1)
a inflação do consumidor for acelerada, e a sua flutuação for grande (2) a taxa de câmbio
real sobrevalorizada (3) o hiato positivo do produto (4) a baixa abertura do comércio (5)
os preços elevados das mercadorias (6) a taxa de juro interbancária for baixa.
Masha e Park (2012) examinaram o grau de ERPT aos preços ao consumidor e ao
produtor nas Maldivas utilizando a análise VAR recorrente. Os resultados mostram um
elevado, mas incompleto grau de ERPT em comparação com outros países. Arslaner
(2014) utilizou um modelo de correção de erros para estimar o ERPT na Turquia para o
período 1986-2013. Os resultados indicam um grau significativo de ERPT à inflação do
consumidor. Savoie-Chabot e Khan (2015) também examinaram o grau de ERPT aos
preços ao consumidor. Verificaram que o ERPT desempenhou um papel importante na
recente dinâmica da inflação no Canadá. Tunc e Kilinc (2018) também examinaram o
ERPT na Turquia utilizando uma abordagem VAR estruturada. Os seus resultados indicam
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que alcançar o objetivo de estabilidade de preços permanentemente na Turquia se torna
um grande desafio num mercado financeiro global volátil, devido a um ERPT elevado.
Grande parte da literatura sobre o ERPT demonstrou que as flutuações das taxas de
câmbio são apenas parcialmente transmitidas aos preços internos, cujo efeito também
se perde ao longo da cadeia de produção. As taxas de câmbio passam pelos preços
internos através de vários canais. Desde efeitos diretos através de preços de energia e
outras mercadorias até efeitos indiretos através de preços de importação, formação de
salários e margens de lucro (Bacchetta & Van Wincoop, 2003; Burstein & Gopinath, 2014;
Ito & Sato, 2008; McCarthy, 2007). Mesmo no caso de bens comercializáveis
internacionalmente, diferentes formas de segmentação de mercado e adesões nominais
podem explicar o ERPT incompleto. Em relação à menor sensibilidade dos preços internos
às flutuações cambiais, vários fatores estruturais incluem o grau de concorrência entre
empresas exportadoras e importadoras (Amiti et al., 2016), a frequência dos
ajustamentos de preços (Devereux & Yetman, 2003; Corsetti et al., 2008; Gopinath et
al., 2010), composição do comércio (Goldberg & Campa, 2010), envolvimento global na
cadeia de valor (Georgiadis et al., 2017), quota de comércio de divisas (Casas et al.,
2016; Gopinath, 2015) e a utilização de instrumentos de cobertura do risco cambial
(Amiti et al., 2014). Além disso, um quadro credível de política monetária que apoie
expectativas de inflação ancoradas pode servir como uma abordagem eficaz para reduzir
os preços de ERPT ao consumidor (Carriere-Swallow et al., 2016; Gagnon & Ihrig, 2004).
Para além dos fatores estruturais e características específicas do país, a natureza da
dinâmica macroeconómica que causa a flutuação da taxa de câmbio desempenha um
papel fundamental na determinação da dimensão e intensidade do ERPT (Comunale &
Kunovac, 2017; Forbes et al., 2018; Shambaugh, 2008). Isto reflete o facto de que os
impulsos que afetam a taxa de câmbio afetam simultaneamente a atividade, margens de
lucro, produtividade e outros fatores que contribuem para moldar as expectativas de
preços e inflação. Helmy et al. (2018), utilizando dados mensais egípcios para o período
de 2003 a 2015, concluíram que a passagem da taxa de mbio para os três índices de
preços (importação, produtor e consumidor) no Egipto era relativamente significativa e
incompleta. Evidentemente, o grau de ERPT aos preços ao consumidor era mais elevado
do que os preços ao produtor e de importação. Ha et al. (2019) estimaram modelos SVAR
para um conjunto de 47 países e concluíram que diferentes choques domésticos e globais
eram um fator importante para explicar o grau de taxa de mbio entre países. Além
disso, as características e condições específicas de cada país incluem os quadros de
política para a implementação da próxima política monetária influente. Além disso, a taxa
de câmbio era mais baixa em países com taxas de câmbio flexíveis e objetivos de inflação
credíveis. Finalmente, provas empíricas demonstraram que o grau de indepenncia do
banco central influencia o grau de ERPT aos preços. Adekunle e Tiamiyu (2018)
examinaram a assimetria do ERPT aos preços no consumidor na Nigéria durante o período
2001-2015. Os resultados mostraram que, a curto prazo, os preços ao consumidor
tinham expectativas comparáveis e taxas de câmbio incompletas passavam.
Embora tenha havido muitos estudos estrangeiros sobre o grau de ERPT, ainda poucos
estudos nacionais. Em continuação, os estudos empíricos internos o brevemente
revistos. Mesbahi et al. (2017) avaliaram o grau de ERPT dos preços de importação,
enfatizando o papel da volatilidade nos rendimentos petrolíferos. Tayebi et al. (2015)
concluem que a inflação cambial está incompleta com diferentes índices de preços, mas
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as flutuações das taxas de câmbio provocam flutuações nos índices de preços de
importação, no consumidor e no produtor e parte da variabilidade da inflação interna ao
longo do período. O caso é explicado. Kazerooni et al. (2012) propuseram que, ao
implementar simultaneamente o sistema de metas monetárias de inflação e o sistema
de taxas de câmbio flutuantes, a taxa de câmbio passante será reduzida. Khoshbakht e
Akhbari (2007) demonstraram no seu estudo que as alterações do ERPT no índice de
preços de importação são mais do que o índice de preços no consumidor. No seu estudo,
Shajari et al. (2005) concluíram que o grau de ERPT no Irão está incompleto e que as
alterações da taxa de mbio real têm um efeito positivo e significativo sobre o preço
dos bens importados.
3. Metodologia de Investigação
O objetivo deste estudo é investigar a relação dinâmica entre os fatores que afetam a
taxa de câmbio no Irão. Assim, o modelo VAR proposto por Sims (1980) assume que
todas as variáveis são endógenas num modelo macroeconómico sem quaisquer
constrangimentos nas suas relações. O formulário de retorno VAR contém não as
interrupções da variável endógena, mas também os valores ininterruptos de outras
variáveis endógenas. As exportações de petróleo para países ricos em petróleo são
importantes fontes de receitas em divisas, mas a externalização destas receitas conduz
a uma incerteza e instabilidade generalizada nas suas economias e nas suas políticas
económicas. Dada a elevada dependência da economia iraniana das receitas do petróleo
e a aleatoriedade dos choques dos preços do petróleo, o ambiente macroeconómico foi
afetado e a combinação destes fatores conduziu à incerteza. A volatilidade da economia
e o mau ambiente macroeconómico conduziram a um aumento da taxa de câmbio. À
medida que as receitas do petróleo aumentam, a incerteza da taxa de câmbio diminui, e
a taxa de câmbio abranda.
A subida dos preços do petróleo e as receitas resultantes podem dar um impulso à taxa
de câmbio e aos preços de importação, aumentando a procura de importações. Portanto,
o aumento dos preços do petróleo está na primeira fase da cadeia de distribuição por
impulso, afetando outras variáveis do modelo. A taxa variável de crescimento económico
da produção na literatura local sobre a taxa de câmbio pode ser citada como um indicador
da pressão da procura interna. O crescimento económico está a impulsionar a procura e,
dada a incapacidade da produção em satisfazer a procura, isto aumentará a procura
interna e, em última análise, conduzirá a um aumento da procura de bens importados,
ao aumento das taxas dembio e ao aumento dos preços dos bens importados. O índice
de preços ao consumidor na cadeia de distribuição de impulsos é posterior à taxa de
câmbio porque o efeito da taxa de câmbio sobre o preço de importação através de inputs
estrangeiros importados afeta o preço ao consumidor. Finalmente, a função de resposta
do banco central é estimada na qual a função de procura relaciona o crescimento da
moeda com outras variáveis do modelo, uma vez que a política monetária pode refletir
as flutuações da taxa de câmbio (McCarthy, 2007).
Na sequência de McCarthy (2007), no presente estudo, a equação de crescimento da
oferta monetária é considerada como uma função de resposta do banco central. Nos
países exportadores de petleo, o aumento dos preços do petróleo e,
subsequentemente, o aumento das receitas do petróleo levam a uma injeção maciça de
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dinheiro na economia, pelo que o fornecimento de dinheiro é também uma função dos
preços e receitas do petleo. De acordo com o que foi dito acima, o modelo baseia-se
no estudo (McCarthy, 2007) e tem a seguinte ordem para as variáveis.


󰅹 󰅹
󰅹
󰅹

󰅹

󰅹

󰅹
Onde inflação do preço do petróleo, crescimento anual do PIB, alterações
no câmbio nominal,
CPI
t
inflação dos preços no consumidor,
PPI
t
inflação dos preços no
produtor,
IPI
t
inflação dos preços de importação, e é a taxa de crescimento do
dinheiro. Neste contexto, observa o efeito dinâmico do impulso da taxa de câmbio sobre
os índices de preços ao longo da cadeia de distribuição. De acordo com McCarthy (2007),
a inflação dos preços no consumidor é composta por sete componentes em cada fase. A
primeira componente é a inflação esperada com base na informação disponível no período
t-1. Os efeitos dos choques da oferta e da procura na inflação nesta fase são utilizados
como segunda e terceira componentes no período t. A quarta componente é o efeito da
dinâmica da taxa de câmbio sobre a inflação. A primeira componente é a inflação
esperada com base na informação disponível no período t-1. Os efeitos dos choques da
oferta e da procura na inflação nesta fase são utilizados como segunda e terceira
componentes no período t. A quarta componente é o efeito da dinâmica da taxa de
câmbio sobre a inflação.
Os impulsos estruturais são obtidos a partir de resíduos VAR utilizando a análise de matriz
de variância-covariância de Cholesky. Assim, a inflação do preço do petróleo ( ) é
utilizado como um lado da oferta e do crescimento da produção, ( ) como um lado da
procura, além disso, o modelo envolve dinheiro como uma variável de política
monetária que responde a outras variáveis através da função de resposta. Sob esta
hipótese, os impulsos neste sistema VAR podem ser representados por um sistema VAR
recursivo da seguinte forma:

















































Onde os choques de fornecimento, choques de procura, choques na taxa de
câmbio, choques de inflação dos preços no consumidor,
PPI
t
inflação dos preços no
produtor,
IPI
t
inflação dos preços de importação e choques da oferta monetária.
exprime as expectativas das variáveis em termos de informação disponível no
oil
t
t
y
t
e
1
t
M
oil
t
t
y
1
t
M
oil
t
y
t
e
t
cpi
t
1M
t
1t
E
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final do período t-1, que representa o período de tempo t. As equações de expectativa
condicional podem ser substituídas por previsões lineares em termos de 5 interrupções
de variáveis endógenas.
Em seguida, serão apresentadas as funções de reação instantânea da inflação dos preços
ao consumidor a choques cambiais não relacionados com a taxa de câmbio. Além disso,
a identificação de impulsos utilizando a análise de Cholesky gera o sujeito, identificando
a oferta de impulso e a procura agregada. Assume-se aqui que os pressupostos não estão
correlacionados e não estão correlacionados ao longo de um período.
4. Resultados e discussão
4.1. Resultados estacionários
A fim de modelar com precio o modelo VAR, foram realizados testes estáticos e de
cointegração para as características dos dados estudados e os resultados o
apresentados nas Tabela (1) e Tabela (5). No primeiro passo, os dados estáticos o
examinados utilizando o teste generalizado de unidade de raiz Dickey Fuller (ADF). A
tabela (1) mostra os resultados do teste de raiz única para variáveis endógenas do
modelo.
Tabela 1 - resultados dos testes unitários de raiz
variável
estatística ADF
valor de probabilidade
grau de acumulação
Resultados de testes de raiz unitária ao nível das variáveis
OIL
-1/69762
0/4195
Não estacionário
ER
-1/31789
0/6586
Não estacionário
CPI
1/36534
0/9856
Não estacionário
M1
-0/15997
0/9321
Não estacionário
PIB
1/90123
0/9872
Não estacionário
PPI
0/51239
0/9543
Não estacionário
IPI
-1/29654
0/62367
Não estacionário
Resultados do teste de raiz unitário na primeira diferença de variáveis
D(OIL)
-11/76813
0/0000
Estacionário
D(ER)
-10/45789
0/0000
Estacionário
D(CPI)
-11/34587
0/0000
Estacionário
D(M1)
-7/14821
0/0000
Estacionário
D(GDP)
-6/32167
0/0004
Estacionário
D(PPI)
-7/67294
0/0000
Estacionário
D(IPI)
-8/52312
0/0000
Estacionário
4.2. Seleção do desfasamento optimal
A fim de selecionar o período de atraso adequado para estimar o modelo VAR, foram
avaliados rios testes, tais como o teste LR modificado sequencialmente, o teste de
Wald (omitindo os atrasos sem significado estatístico), o critério de informação Hannan
Qwuinn (HQ), o critério de informação Akaike (AIC), o critério de informação Schwarz
(SC) e o erro de previsão final (FPE). Ao escolher o atraso adequado no modelo VAR,
evitará o excesso de ajuste, limitando a duração dos pequenos intervalos de
amostragem. Também minimiza a estipulação incorreta do modelo, ao não selecionar
interrupções demasiado pequenas. Os testes de intervalo de comprimento de referência
são mostrados na tabela 2. Teste LR modificado sequencialmente, erro de previsão final
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(FPE) e critério de informação Akaike (AIC) sugerem a utilização do modelo VAR (3). Por
conseguinte, o modelo VAR é estimado com três intervalos no presente estudo.
Tabela 2 - Resultados do período de atraso optimal
HQ
SC
AIC
FPE
LR
Log L
Período desf.
6.78
6.61*
6.4
1.09 E-04
NA
-437.54
0
6.11*
6.78
5.9
6.3 E-05
149.42
-368.32
1
6.51
7.35
5.8
6.6 E-05
53.52
-332.21
2
6.63
8.18
5.8*
6.1E-05*
35.13*
-273.43
3
7.52
8.39
5.62
6.8 E-05
46.17
-232.7
4
Os resultados do teste da variável mãe omitida são apresentados na tabela 3 para
determinar se os intervalos contendo informação significativa foram omitidos do modelo.
Os resultados indicam que as três interrupções no sistema VAR são mutuamente
significativas.
Tabela 3 - Resultados do teste Wald de exclusão de atraso
Conjunto
DM1
DMPI
DCPI
DEX
DGDP
DOIL
159.41
(0.01)
31.1
(1.13)
4.26
(0.64)
40.11
(0.01)
19.15
(0.00)
11.03
(0.13)
15.9
(0.01)
Atraso
1
72.18
(0.00)
9.32
(0.19)
12.18
(0.08)
7.912
(0.35)
14.99
(0.01)
14.2
(0.00)
3.47
)0.72)
Atraso
2
89.1
(1.13)
14.7
(0.01)
14.6
(0.01)
11.7
(0.04)
5.891
(0.45)
24.01
(0.08)
17.3
)0.05)
Atraso
3
* Os números entre parênteses representam o valor P
Além disso, o coeficiente Lagrange de correlação residual em série (LM) no modelo VAR
foi calculado com a hipótese nula de ausência de correlação em série.
Tabela 4 - Resultados do teste de correlação em série LM
Hipótese Zero: Sem Correlação em Série no Intervalo de Ordem H
valor de probabilidade
Estatística LM
interrupções
0/2212
42/21341
1
0/5849
35/88122
2
0/1103
46/32723
3
0/3122
39/31674
4
0/0547
44/5523
5
4.3. Teste de cointegração
Os resultados do teste de cointegração entre variáveis utilizando o teste do coeficiente
Johansen são apresentados na Tabela 5.
Devido à existência de sete variáveis de modelo e aos resultados dos efeitos especiais e
testes de xima verosimilhança, são aceites seis coeficientes no máximo. Como
resultado, tenta-se estimar o modelo VECM, considerando seis relões coerentes.
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Tabela 5 - Resultados do teste de cointegração
Valor
Probabilidade
5% Crítico
Rastreio
estatístico
Valor
Probabilidade
5% Crítico
Valor Eigen
Número de
Equações
0.0000
91.6
179.02
0.0000
31.3
61.5
Não*
0.0000
68.7
120.28
0.0001
29.7
51.2
Um vetor
0.0000
46.6
76.292
0.0001
20.6
34.8
Dois vetores
0.001
39.2
51.998
0.012
19.1
25.9
Três vetores
0.009
25.653
46.3219
0.022
16.56
19.631
Quatro vetores
0.013
23.674
26.5916
0.0312
14.82
16.442
Cinco vetores
0.023
13.674
15.5916
0.0467
9.82
10.442
Seis vetores
* Rejeita a hipótese ao nível de 5%
4.4. Estimativa dos coeficientes ERPT
Usando a função de reação instantânea, os coeficientes cumulativos de transmissão são
calculados dividindo a reação instantânea acumulada dos preços após m período pela
reação instantânea acumulada da taxa de câmbio ao momento da taxa de câmbio após
m período. O ERPT no momento t é definido da seguinte forma:
Onde, P e E são respetivamente a variação do preço acumulado e a variação da taxa de
câmbio acumulada após m período. A Tabela 6 mostra os índices de preços ERPT ao
consumidor, produtor e importação calculados ao longo de um horizonte temporal de 20
anos. Os preços do ERPT ao consumidor, produtor e importação variaram entre 14,68%,
15,45% e 18,22% no primeiro período a 51,78%, 53,15% e 88,14% nos 13 períodos
seguintes, respetivamente. A dinâmica da taxa de câmbio aumenta. Também se pode
ver na figura 2 que o ERPT para importação e preços ao produtor é mais elevado do que
os preços ao consumidor. Este resultado é consistente com os resultados empíricos da
investigação conduzida no Io e com os fundamentos teóricos do ERPT. Porque os
choques cambiais terão o maior impacto nos preços dos bens acabados e dos fatores de
produção importados, e depois a inflação dos fatores de produção importados afetará o
preço ao produtor e depois o preço ao consumidor em último lugar. De acordo com os
resultados, pode dizer-se que a passagem da taxa de mbio para índices de preços do
Irão é incompleta, o que é consistente com os resultados experimentais da análise da
taxa de câmbio no Io tais como (Bahrami et al., 2014; Tayebi et al., 2015; Heydari &
Ahmadzadeh, 2015; Ebrahimi & MadaniZadeh, 2016) o compatíveis. Finalmente, cerca
de 46,74%, 50,38% e 88,53% da subida da taxa de mbio acabam por se refletir nos
preços ao consumidor, ao produtor e à importação, respetivamente, após 20 períodos de
choques. Além disso, os resultados mostram que o grau de redução do ERPT ao longo da
cadeia de distribuição e a taxa mais elevada do ERPT ocorrem a preços de importação,
preços ao produtor e preços ao consumidor, respetivamente. Os resultados do estudo
são Ito e Sato (2008) e Peón e Brindis (2014). Os resultados da transição cambial nos
resultados também mostram que o grau de ERPT tem diminuído ao longo do tempo, o
que está em consonância com o Ghosh (2013).
,
,
Pr
t t m
t
t t m
ice index
ERPT
Exchange rate
+
+
=
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Tabela 6 - Coeficientes ERPT
Preço ao consumidor
Preço do produtor
Preço de importação
Período
14.68
15.45
18.22
Após 1 período
16.73
18.34
20.45
Após 2 períodos
24.68
25.45
48.13
Após 3 períodos
27.44
28.37
51.22
Após 5 períodos
45.61
47.45
79.21
Após 8 períodos
50.43
52.35
82.37
Após 10 períodos
51.78
53.15
88.14
Após 13 rondas
45.62
47.59
83.67
Após 16 rondas
46.74
50.38
88.53
Após 20 rondas
Conclusão
Ao implementar políticas económicas anti-inflação em países de alta inflação, como o
Irão, é necessário analisar o impacto do ERPT no índice de preços. Por outro lado, as
alterações cambiais são muito importantes e têm um enorme impacto nos indicadores
macroeconómicos dos países. Por conseguinte, para uma economia empenhada em
manter a estabilidade dos preços, é muito importante ajustar as alterações da taxa de
câmbio. Desta forma, os países podem avaliar como o impacto dos choques cambiais
afeta as suas economias e podem tomar medidas preventivas e políticas com base nesta
informação. Utilizando a função de resposta transitória cumulativa derivada do modelo
VAR recursivo, os preços do ERPT ao consumidor, produtor e importação passaram de
14,68%, 15,45%, e 18,22% no primeiro período para 51,78%, 53,15%, e 88,14% em
13 períodos após o choque da taxa de câmbio. A função de resposta instantânea do índice
de preços à taxa de câmbio mostra que o impulso da taxa de câmbio tem um impacto
positivo e significativo na inflação do índice de preços.
A análise de variância também confirmou o impacto do ERPT, porque, tendo em conta a
elevada percentagem de bens importados no cabaz do consumidor e a concentração das
importações nas principais indústrias transformadoras, os aumentos das taxas de câmbio
levaram a preços mais elevados dos bens importados. E devido ao aumento das receitas
do petróleo, a procura de toda a economia também está a aumentar, pelo que os preços
também estão a aumentar. A função de resposta instantânea do índice de preços às
alterações da taxa de câmbio mostra que os choques cambiais têm um impacto positivo
na inflação. Os resultados da análise da variância confirmaram o papel do ERPT na
explicação da forma das flutuações do índice de preços. Assim, tendo em conta os
resultados da investigação e a importância das flutuações cambiais na explicação da
inflação na economia iraniana, a política monetária do banco central deverá ter como
objetivo reduzir o nível de passagem, e as políticas para limitar as flutuações cambiais
contribuirão para o objetivo da estabilidade dos preços. Do mesmo modo, nas pequenas
economias abertas, os empréstimos dos bancos centrais são particularmente importantes
para as flutuações das taxas de câmbio devido ao impacto favorável das taxas de câmbio
sobre as variáveis macroeconómicas (tais como a inflação). Um sistema de orientação
da inflação deve também ser estabelecido na economia do país, porque o impacto das
baixas taxas de câmbio nos preços internos dá às pessoas maior liberdade para
implementar políticas monetárias independentes, especialmente através de uma
orientação da inflação. Os resultados mostram também que a taxa de transferência da
taxa de câmbio muda para o índice de preços não é tão completa como outros estudos.
A transferência da taxa de câmbio não é completa, porque o preço dos bens importados
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não é apenas afetado pela taxa de câmbio, mas também por outros fatores (tais como o
aumento da procura interna).
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
168
O QUE OS ESTUDOS ESTRATÉGICOS SÃO OU NÃO SÃO: A PROPÓSITO DE UM
MANIFESTO DE ISABELLE DUYVESTEYN E JAMES WORRAL
ANTÓNIO HORTA FERNANDES
ahf@fcsh.unl.pt
Docente de carreira do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL, Portugal). Investigador do Instituto
Português de Relações Internacionais (IPRI). Auditor da Defesa Nacional.
Estrategista e polemologista.
Resumo
Com o presente artigo pretende-se fazer uma sintética actualização do “ser” da estratégia,
evocando os estudos estratégicos, nomeadamente nos aspectos concernentes ao objecto da
estratégia e à relação da estratégia com a política. Esta actualização é realizada confrontando-
a com um recente manifesto, da autoria de Isabelle Duyvestein e James Worral, importante
pelas repercuses que tem na ciência das relações internacionais, o qual padece de muitas
debilidades e não menos aporias. Importa, pois, desconstruir alguns dos seus pressupostos,
que têm sido também aqueles acriticamente aceites quando as Relações Internacionais
afloram a problemática inerente aos estudos estratégicos ou se debruça sobre a guerra.
Palavras-chave
Estratégia, Política, Guerra, Guerra Subversiva, Isabelle Duyvesteyn, James Worral
Como citar este artigo
Fernandes, António Horta (2021). O que os Estudos Estratégicos São ou não São: a propósito
de um manifesto de Isabelle Duyvesteyn e James Worral. Janus.net, e-journal of international
relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.9
Artigo recebido em 19 Janeiro 2021 e aceite para publicação em 4 Março 2021
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O que os estudos estratégicos são ou não são:
a propósito de um Manifesto de Isabelle Duyvesteyn e James Worral
António Horta Fernandes
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O QUE OS ESTUDOS ESTRATÉGICOS SÃO OU NÃO SÃO:
A PROPÓSITO DE UM MANIFESTO DE ISABELLE DUYVESTEYN E
JAMES WORRAL
ANTÓNIO HORTA FERNANDES
É sabido que, no âmbito das Relações Internacionais, os estudos estratégicos, ou a
estratégia, como preferimos designar, já conheceram melhores dias, em detrimento dos
estudos críticos de segurança. Todavia, não queremos volver ao debate sobre a confusão
entre estudos estratégicos e estudos de segurança, já antes merecedora de atenção por
parte da escola estratégica portuguesa (Fernandes, 2015). De igual modo, a inserção
ontológica e epistemológica da estratégia na ciência das relações internacionais não é
um ponto central da presente reflexão. Na realidade, não se trata de uma verdadeira
inserção sem mais da estratégia no seio das Relações Internacionais, porquanto a
estratégia é um saber próprio de fronteira. Ainda assim, esse assunto também foi
motivo análise no seio da escola estratégica portuguesa, pelo que nos remetemos ao
precipitado dessa análise (Fernandes, 2010).
Importa antes olhar para uma reflexão publicada em 2017, no muito conceituado Journal
of Strategic Studies, da autoria de dois internacionalistas, Isabelle Duyvesteyn e James
Worral, intitulada Global Strategic Studies: a manifesto. A ideia de um manifesto
apresentada pelos autores com cautelosa humildade acaba por ficar curta, porque se
trata antes de um verdadeiro ponto de situação - não do que melhor se faz em estratégia,
incluindo o mundo anglo-saxónico, pois nomes como os de Colin Gray, Beatrice Heuser
ou Lawrence Freedmann nunca aparecem, ou melhor, o mais inovador das suas
contribuições, isso sim não se deixa luzir no dito manifesto - do que surge como o mais
promissor e actualizado nos estudos estratégicos, de modo a convergir com as Relações
Internacionais. Mais ainda, os autores sintetizam de forma expedita aquilo que passa por
ser o último grito na matéria, ou então imediatamente a haver, e que escorre como boa
ou mesmo muito boa ciência sobre o tratamento a dar à hostilidade e à guerra em
Relações Internacionais, por intermédio do acervo regional dos estudos estratégicos. E é
justamente que reside o problema: o ganho é escasso, o incremento de confusão
significativo e a involução manifesta. Por isso, convém que um tal registo não passe
impune, como se nada fosse, logo em Portugal, onde não o Journal of Strategic Studies
tem larga audiência nos meios académicos e militares, mas sobretudo por existir uma
longa tradição de estudos sobre estratégia, a par de uma inovadora prática doutrinária e
no terreno, em particular na esfera da guerra subversiva ou insurrecional.
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Acerca do conteúdo da definição de estratégia
O supracitado manifesto começa por dizer, passando por ciência certa, ser a estratégia
um campo interdisciplinar que “examina, no seu cerne, as vias pelas quais o poder militar
e outros instrumentos coercivos podem ser usados para atingir fins políticos no curso de
uma interacção dinâmica de, pelo menos, duas vontades em competição”
1
. Estamos,
desde logo, diante de uma aporia séria. Não nos referimos aos sentidos possíveis que a
agonística competitiva pode ter em inglês, sobraçando eventualmente a competição
regrada, a qual é de muito difícil integração no objecto da estratégia. Pensamos até que
a expressão competing wills”, quiçá pouco rigorosa, quer traduzir, por facilidade de
expressão, no essencial, a hostilidade, a animoadversidade, num senso forte, entre
actores distintos de natureza política. A definição também não se refere à natureza
política das vontades antagonistas, mas o artigo no seu todo vai nesse sentido por
inteiro; a nosso ver bem a transposição integral do edifício estratégico para actores
não-políticos (por exemplo, económicos), fazendo-os agir prevalentemente em torno das
questões de estruturação das comunidades políticas e suas relações e do poder, torná-
los-ia actores políticos, e não de outra natureza (Duarte, 2004:127-131).
O problema reside antes na centralidade atribda ao vector militar. É certo que se
mencionam outros instrumentos de coerção, mas o foco da análise é de imediato posto
no vector militar. Ora, como é reconhecido, pacífico, o vector militar, que até há 70 anos,
sensivelmente, protagonizava o eixo não prático como teórico da estratégia, sendo,
além do mais, o seu eixo fundacional, deixou de o ser. Isto é, a teoria, por exemplo, de
Beaufre (Beaufre, 2004) a Abel Cabral Couto (Couto, 1988), para mencionar um par de
estrategistas que são hoje justamente tidos por clássicos, mas também a prática, usando
igualmente a título de exemplo a estratégia para a guerra subversiva e a estratégia
nuclear, evoluiu no sentido de considerar a par da estratégia militar outras estratégias
gerais, como a económica, a diplomática, a cultural, a informacional, entre várias mais,
todas elas subordinadas à grande manobra geral do actor político, denominada estratégia
integral, sem que o poder militar detenha qualquer primazia de princípio. O poder
militar é um entre vários instrumentos de gestão efectiva ou a haver da coerção, sendo
essa gestão no seu conjunto a ditar o uso ou não da força militar; sem que por isso haja
menos estratégia, no caso de omissão do emprego da força militar. De resto, em
consonância com a evolução da guerra, a qual trouxe ao terreiro novas modalidades que
não apenas a coaão armada, tecnicamente apelidadas de modalidades de guerra fria,
porquanto emergiram, no fundamental, durante a fase histórica conhecida pela
expressão Guerra Fria.
É evidente que quanto à guerra há uma precisão a fazer. Enquanto na estratégia, a
estratégia militar não detém qualquer primazia ao nível dos fundamentos, mais ainda,
havendo até modalidades de hostilidade que caem debaixo da alçada da estratégia mas
não são ainda guerra, nem quente nem fria, antes pressão hostil (para além de todas as
regras), o caso das manobras sobre aliados, sobre terceiros, de algumas operações de
1
No original, reza assim a definição: Strategic Studies is an inter-disciplinary field of studies, which at its
core examines the ways in which military power and coercive instruments may be used to achieve political
ends in the course of a dynamic interaction of (at least) two competing wills (Duyvesteyn e Worral, 2017:
347).
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apoio à paz, determinadas sequências na guerra subversiva, ou as estratégias inversas,
as quais agem na hostilidade por anti-hostilidade de meios e quase de fins. No
respeitante à guerra, sim, há uma primazia de fundo da luta armada. E porquê? Não
porque se trate de uma modalidade de luta conceptualmente superior às restantes, o
que as transformaria de imediato em formas de infra-guerra, transtornando por completo
a valorização ontológica e epistemológica da guerra contemporânea, antes porque é a
luta armada aquela que mais se presta ao desencadear da violência sem quartel, ao
incêndio geral provocado pela propagação da violência, à caótica derradeira que
estabelece o preço do fenómeno bélico e lhe permite adquirir singularidade fenómeno
em geral designado pelo sintagma conceptual guerra absoluta
2
.
Poder-se-ia objectar que, tal como aconteceu com o Conceito Estratégico de Defesa
Nacional (CEDN) português, de 2004, a definição em causa de Isabelle Duyvensteyn e
James Worral apenas se limita a constatar um facto consabido: depois de alguns anos
de elevadas expectativas não concretizadas, as restantes estratégias gerais, com
excepção da militar, ainda não atingiram o patamar arquitectural inerente à estratégia
militar. Porém, a definição dos autores é uma proposta conceptual de fundo e não apenas
um ajustamento conjuntural. Além do mais, os diferentes conceitos estratégicos
nacionais, como o português de 2004, foram-se ajustando à conjuntura; foram
sinalizando que contavam com todas as estratégias gerais de forma integrada, mas como
a sua ossatura não estava ainda sedimentada, não poderiam apresentar como tal o que
ainda não era realidade Por outro lado, aquilo que o Conceito de 2004 parecia querer
consagrar era igualmente a revalorização das Forças Armadas como braço de apoio da
política externa do Estado, em missões que evoluíram para além das clássicas operações
de guerra. Mas não nos equivoquemos: o alcance teórico das diversas estratégias está
perfeitamente estabelecido e é pacífico, embora nem sempre tivesse havido arte,
engenho, vontade ou fortuna de concretizar esse empenho teórico. Assim, como o militar
tende a ressurgir, num novo sentido, aliás, muito próximo da estratégia diplomática,
para além do incremento das missões não combativas a acompanhar o recrudescimento
de guerras subversivas, seja qual for o nome que hoje lhe queiramos atribuir, era e é
fácil, se menos atentos, voltar a querer confundir a estratégia com a sua vertente
exclusivamente militar.
À primeira vista, a confuo dos nossos autores seria muito típica do pensamento
estratégico anglo-americano, ou influenciado por este. Porém, mediante o seminal
conceito de grande estratégia, da autoria de Liddell Hart, o próprio estrategista inglês,
bem como Beatrice Heuser, Colin Gray, ou Edward Luttwak vão mais longe e tendem a
considerar esses outros instrumentos coercivos com muito maior vigor. Colin Gray define
a grande estratégia, o termo anglo-saxónico mais próximo para estratégia integral, do
seguinte modo:
the direction and use made of many or all among the total assets of a security
community in support of its policy goals as decided by politics. The theory and
practice of grand strategy is the theory and practice of statecraft itself(Gray,
2010: 18).
2
Sobre a importância da guerra absoluta na guerra contemporânea, veja-se o incontornável polímata e
polemologista Nil Santiáñez (Santiáñez, 2020) (Santiáñez, 2018).
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Beatrice Heuser afirma ser difícil encontrar uma definição universalmente válida de
estratégia através dos tempos. Ainda assim, conclui, com base nos resultados obtidos
por sucessivas gerações de estrategas e de estrategistas, ser a estratégia uma via global
através da qual se procura realizar fins políticos, incluindo aí a ameaça ou o uso efectivo
da força, no âmbito de uma dialéctica de vontades (Heuser, 2013: 27).
No caso de Colin Gray, constata-se que, para acolher distintas formas de luta, mais, para
que não haja um predomínio militar na definição, o autor -se obrigado a quase evacuar
o agonismo da estratégia, fazendo com que a grande estratégia coincida com a acção
geral e global do Estado no seu conjunto, a qual, mesmo pressupondo racionais realistas,
não se reduz aos objectivos passíveis de criar hostilidade por parte de uma outra vontade
política. É como se para se centrar na luta propriamente dita o vector militar tivesse de
ser novamente privilegiado de forma tácita. Em relação a Beatrice Heuser, uma vez mais
se corre o risco de evacuar o agonismo,o fosse a importância atribuída à dialéctica de
vontades, mas ainda assim abrindo a porta a considerar todo o agonismo, tanto o hostil
como o competitivo regrado. Todavia, mais importante, se bem que a estrategista de
origem alemã não mencione de que uso da força se trata, podendo, portanto, alargar-se
a formas de confrontação distintas da luta armada, o conjunto da obra em causa dedicada
à história da estratégia e do pensamento estratégico acaba por centrar-se na estratégia
militar, incluindo o século XX.
Afinal, donde derivam todas estas aporias no pensamento anglo-americano, de que nem
os estrategistas mais argutos se livram? Julgamos que as escolas anglo-americanas estão
ainda muito presa às teses de Liddell Hart. O estrategista britânico distingue a estratégia
pura, que é, no fundo, a estratégia militar, da grande estratégia, como dizendo respeito
à política em acto face ao conflito hostil (Liddell Hart, 1991)
3
. Política de defesa
(acentuando o vector militar) e estratégia integral aparecem assim amalgamadas, e se
os académicos anglo-saxónicos contemporâneos sabem perfeitamente que a estratégia
integra hoje outras dimensões que não exclusivamente a militar, como referimos,
quando se referem à estratégia per se, fruto ainda de um enquistamento das teorias
realistas e dos racionais herdados de Liddell Hart, pensam sobremaneira no aparelho
militar, ou se quisermos, no hard power, tendendo a encostar a estratégia ao militar.
Ora, como nem sempre para os próprios é claro (mesmo quando estão conscientes de
que estratégia e estratégia militar não se sobrepõem) se, em última análise, a estratégia
não remete para o militar e a grande estratégia para uma política de defesa escorada
ultimamente no vector militar, a ambiguidade permanece. Isto porque, em última
instância, a literatura anglo-americana acaba por sobrepor em demasia guerra e
estratégia, através do vector militar operacional. Lido este último, por sua vez, e em
3
O original da obra, tal como hoje aparece editada e intitulada, data de 1954. É aí que o estrategista ings
revê e acrescenta uma primeira versão da obra, datada de 1929, então intitulada, The Decisive Wars of
History, na qual a estratégia é apresentada como estratégia militar. Em 1954, o seu pensamento evolui,
em particular, com o advento do nuclear, adicionando uma quarta parte à obra, na qual passa a considerar
além da estratégia militar, agora denominada estratégia pura, uma grande estratégia enquanto política de
defesa em acto. É igualmente por essa altura que Liddell Hart começa a interpretar o estilo estratégico
indirecto como aquele que se socorre predominantemente das estratégias não militares, ao nível da grande
estratégia, superando a assim a sua anterior concepção, segundo a qual a estratégia indirecta não era mais
do que estratégia militar operacional de aproximação indirecta. De salientar ainda uma nova edição, datada
de 1967, onde Liddell Hart acrescenta à obra um capítulo sobre guerra de guerrilha.
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grande medida, pelas pautas de emprego na guerra convencional, no âmbito da guerra
quente, e pela ideia do combate, mormente o combate clássico, como razão de ser quase
exclusiva para o emprego das forças armadas.
Da relação entre a política e a estratégia
Outrossim, na relação entre estratégia e política, um aspecto decisivo do enquadramento
estrutural da estratégia, por maioria de razão num manifesto que pretende ajudar a
repensar os estudos estratégicos, a posição de Isabelle Duyvesteyn e James Worral não
é clara, até porque não aparece a mediação da grande estratégia, limitando-se os autores
a umas quantas considerações de política internacional prática. Embora não nos
espantaria se estivesse muito próxima daquelas que acabámos de enunciar, revelando
uma tendencial sobreposição entre política e estratégia aquando da definição, ao nível
cimeiro, dos objectivos a atingir e das regras de procedimento em face da confrontação
existente ou a haver. Algo que se pode tornar preocupante em tempo de guerra, dado
esta criar os seus próprios objectivos e facilitar a tentação de inverter a pirâmide
estratégica, enfeudando a político aos objectivos estratégicos, contra o bom desempenho
desta, contra o que esta quer enquanto disciplina de fins intermédios e não meramente
instrumental, e por responsabilidade política. Em rigor, a estratégia visa criar condições
para a consecução dos objectivos políticos que suscitam ou podem suscitar hostilidade
da parte de uma outra vontade política, retroagindo sobre a política, mas sempre com
vista à manutenção do seu lugar próprio subordinado à síntese política superior. Síntese
política superior essa que pondera os objectivos relativos à hostilidade no conjunto dos
demais objectivos, sejam respeitantes à cooperação, acomodação ou competição, em
ordem à realização dos fins políticos e supra-políticos norteadores de uma determinada
comunidade política. Quando os corpos directores da estratégia, hoje os mesmos da
política, ponderam sobre aquilo que se apelida (redutoramente) de estratégia de defesa,
ponderam e, posteriormente, decidem em função da hostilidade em si. Quando os corpos
directores da política (os mesmos da estratégia) ponderam sobre política de defesa
(expressão uma vez mais redutora), ponderam e decidem sobre a hostilidade em
correlação com todos os demais objectivos.
Expresso de uma outra maneira, podemos afirmar ser a estratégia uma disciplina de fins
incompletos, a completar na síntese política superior. Por essa via dos fins estratégicos
específicos mas incompletos, os objectivos estratégicos são tão estratégicos qua
estratégicos quanto objectivos políticos, necessariamente intermédios e subordinados. É
que não obstante a especificidade estratégica, estamos a falar da mesma comunidade
ou social, do mesmo actor que opera politicamente, inserindo-se no campo da hostilidade
política, e sabendo-se que a estratégia, no seu enquadramento vertical, despacha cada
vez mais próximo da política hoje em dia o responsável pela estratégia integral e o
decisor político são a mesma pessoa, que com funções diferentes, como dissemos
acima. O estratega, ao nível da estratégia integral, é o decisor político, e o seu estado-
maior informador, no exacto momento em que directrizes e despacha em razão da
hostilidade qua hostilidade, suscitada por determinados objectivos políticos.
Porém, os objectivos estratégicos não se sobrepõem ou coincidem na totalidade com os
objectivos políticos que suscitam ou podem suscitar hostilidade, porque a punção
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exercida pela conflitualidade hostil, mormente da guerra, alterando o processo social
normal, gera finalidades únicas, no sentido de obrigar a política a enquadrar essa punção
violenta no conjunto dos objectivos e finalidades comunitárias, isto é, a sobredeterminar
a gestão da violência de maneira a evitar a presença solipsista desta não poucas vezes
a estratégia retroage sobre a política no intuito de corrigir a cegueira pró-bélica desta.
Por outro lado, olhando agora sob o prisma estrita e propriamente político, e sem prejuízo
de que a remissão da estratégia para a política, em tese, relativiza a hostilidade,
enquadrada que fica esta pelos restantes objectivos políticos que se não esgotam nela,
os objectivos políticos passíveis de hostilidade têm de continuar activos e autónomos em
relação à estratégia para poderem ser ponderados com os restantes: com aqueles
referentes à cooperação, à acomodação, ou à competição. Podendo, em última análise,
a política querer valorizá-los mais, ou relativizá-los profundamente, enquanto síntese
superior, para além, independentemente e até a despeito da ponderação recursiva
exercida pela racionalidade social estratégica sobre o domínio político tout court - pode
muito bem até acontecer que a política aceite, é certo, a racionalização prudencial da
estratégia (no sentido de phronesis), os outputs da racionalidade social estratégica, mas
pretendendo ficar-se por aí, pelos fins incompletos da estratégia, enfeudar-se à
estratégia, apesar da vontade em contrário desta. Quando não queira mesmo perverter
essa prudência para promover uma hostilização mais sofisticada e apurada, a qual, em
vez de controlar danos os incrementa, mas de forma subtil.
Extensões estratégicas
Isabelle Duyvesteyn e James Worral sugerem aos estrategistas levar mais a sérios as
críticas que lhes são feitas a partir das Relações Internacionais, de que os estudos
estratégicos parecem ser apenas o braço armado das teorias realistas; ou lhes falta um
pensamento novo ou novas perspectivas (Duyvesteyn e Worral, 2017: 348). Porém,
como levar a sério tais críticas? A estratégia é mais antiga do que a ciência das relações
internacionais, os seus fundamentos e escolas de interpretação o espeficas. Se
autores afins ao realismo, talvez a um realismo aroniano no caso de Beaufre ou Abel
Cabral Couto, e outros são avessos ao realismo, mormente na escola estratégica
portuguesa, alguns mais são difíceis de identificar em qualquer das teorias de Relações
Internacionais, por exemplo Beatrice Heuser, ou Lucien Poirier. Por outro lado, ter de
desconstruir toda a ganga retórica que os estudos de segurança fizeram cair sobre o
objecto da estratégia é uma preocupação de sobra. Recordemos ser o objecto da
estratégia a hostilidade entre actores políticos distintos (ou arrogando-se de que o outro
o é, no caso das guerras internas). Assim, o campo da hostilidade na cena internacional
é o campo operativo da estratégia. Não quer isto dizer que a hostilidade e a estratégia
não se relacionem com outros factores, como a geopolítica dos recursos, a política de
potências, etc. Mas o campo em si mesmo, nos seus fundamentos, nas suas modalidades
de acção específicas, isto é, a gestão da hostilidade em si, é do domínio da estratégia,
subordinada à política. Por conseguinte, a interpretação avisada da cena internacional
sob este prisma específico, isto é, só e somente sob este prisma apenas está ao alcance
da reflexão estratégica; de modo algum, dos estudos de segurança.
Isabelle Duyvesteyn e James Worral afiançam igualmente que os estudos estratégicos,
por mais importantes que sejam os Estados, devem promover uma abordagem menos
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estatocêntrica (Duyvesteyn e Worral, 2017: 348 e ss.). Ao mesmo tempo devem olhar
para além dos conflitos convencionais clássicos como motor interpretativo dos estudos
estratégicos.
Estes racionais viriam muito a propósito se correspondessem à realidade dos estudos
estratégicos no mundo (corresponderá certamente ainda a alguns estudos de inspiração
ptolomaica num mundo copernicano, quântico mesmo, valha a metáfora), e até a um
olhar exclusivo sobre a história. Infelizmente, não é assim. o sabemos se os autores
têm em mente o estereótipo do chamado modo ocidental de fazer a guerra. Mas tenham-
no ou não em mente, o mesmo não corresponde ao evolver da guerra. Na prática,
estamos a falar de um ideal-tipo Oitocentista que sintetiza as convenções criadas
paulatinamente ao longo da Idade Moderna, dizendo respeito ao confronto de exércitos
regulares e fardados, enquadrados como tais, sob pertença de actores estaduais,
digladiando-se de acordo com regras de manobra, atrito e empenhamento em função da
batalha, dos cercos, e mais tarde, da sequência de batalhas. Ora, sabendo como essa
história é curta no tempo e no âmbito (já o mostrava Clausewitz, no Livro VI, do Da
Guerra) e os actores não-estatais voltaram a entrar em liça no após Segunda Guerra
Mundial, os estrategistas contemporâneos cedo começaram a reflectir sobre esses
actores não-estatais e sobre outras modalidades de guerra, para além da convencional,
nomeadamente sobre a guerra subversiva, ou sobre a importância das estratégias
estrutural, genética e declaratória no campo nuclear, dada a proeminência das
estratégias de não-emprego. Há muito que Sun Tzu ou Nguyen Van Giap são lidos, mas
por olhos que há não menos tempo dispõem de boas ferramentas para os ler.
A propósito da guerra subversiva, Duyvesteyn e Worral referem, criticamente, não ser a
contra-insurgência, divorciada de imperativos estratégicos mais amplos, a bala de prata
para tais conflitos Arremetendo, de passada, em referência, também crítica, a David
Kilcullen, contra a ideia consoladora para a opinião pública ocidental deste tipo de guerras
serem uma forma de “trabalho social armado”. Ao que parece, com base num artigo
absolutamente desastrado de Celeste Gventer, David Jones e MLR Smith sobre a COIN
Counter-Insurgency - (Duyvesteyn e Worral, 2017: 348)
4
. Todas estas referências são
feitas, no entanto, como se estivessem a falar de descobertas e derivas de última hora.
4
(Gventer, Jones e Smith, 2015). O artigo em causa questiona-se se mesmo se a COIN configura uma
estratégia, respondendo pela negativa. Uma coisa é podermos criticar os manuais de contra-insurgência
anglo-americanos por serem demasiado tecnocratas e ainda excessivamente focados na primazia da
estratégia militar, por incompreensão relativa do “ser” da estratégia. Outra, é pôr tudo em causa não
revelando o mínimo conhecimento do que é uma guerra subversiva (a qual tem dois lados obrigados a
acções concorrentes), nem inclusive da própria natureza da estratégia e da guerra. Algo aembaraçoso
tendo em atenção que um dos investigadores provém do justamente afamado departamento de estudos da
guerra do King’s College. Um dos principais fios condutores explícitos é de que a COIN não tem presente
ser a guerra sempre distinta. Mas não a guerra é distinta, a política também o é e, em última análise,
tudo na vida; nesse caso nada poderia ser dito ou aprendido. O relativismo, além de auto-contraditório e
auto-refutante, acaba por ter sempre como precipitado último o mero grunhido. Um importante fio condutor
implícito, se acaso lemos bem o texto, diz respeito aos motivos políticos, muitas vezes de inspiração
duvidosa, por detrás tanto da subversão como da contra-subversão. Mas que importância tem esse
elemento para aferir da pertinência dos racionais na leitura estratégica da realidade e na eficácia da acção?
Democracias ou ditaduras, opressores e oprimidos, justos e gente não recomendável, podem pensar bem
ou mal, ser mais ou menos proficientes. Esse é um assunto respeitante aos fins últimos da política e o
ao nível da estratégia; mesmo para uma estratégia como ética do conflito (deve evitar-se a confusão de
níveis, como já vimos, comum no pensamento anglo-americano). Na guerra as vítimas transmutam-se em
verdugos e vice-versa. E mesmo querendo assumir, sem rebuço, haver maus e bons, nem sempre os maus
querem a guerra e os bons a não fazer.
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Pois sim, mas a compreensive approach, e necessita ser bem entendida, mais não é do
que a acção psico-social devidamente enquadrada na conquista das mentes e do coração
da população, isolando os elementos subversivos (ou contra-subversivos, se vista do lado
da subversão) ou até, se possível, fazendo-os baldear para a outra banda. Porém, essa
prática, doutrina e leitura ajustada da natureza desta tipologia de conflito tem, ao menos,
60 anos. A guerra subversiva não é nem nunca foi um conflito predominantemente
militar. Inicia-se como luta armada, mas no seu âmago está a conquista da população e
não a derrota militar dos insurgentes ou contra-insurgentes, sempre subsidiária; muito
menos a aniquilação pura e simples do antagonista, que emerge, como é sabido, no meio
da população, correndo o risco de acarretar uma terrível escalada, numa tipologia de
conflitos de si configurando múltiplas ramificações de natureza insidiosa. Aliás, na
própria definição, corrente e batida por muitos anos de prova (nem por isso menos
acertada), de guerra subversiva
5
, quando se refere não apenas a retirada do poder à
autoridade de facto ou de direito, mas tão-só o bloqueamento da sua acção, fica patente
desde logo uma margem de manobra para que essa autoridade retire as conclusões
devidas, uma margem de desescalada, de contenção, e não o convite à destruição a todo
o transe do adversário enquanto tal, até porque isso poderia ser nefasto para a conquista
da população, o cerne de todo o “jogo”. Da mesma forma, no confronto militar
propriamente dito a brutalidade não só não é de lei como é muito perigosa porque pode
dar a entender à população quão excessivos somos. Pois se dizemos representar
verdadeiramente a população, mas o adversário não deixa também de sair do meio
desta, a desmesura pode pôr em causa a bondade do argumento, como se costuma dizer
no Direito.
Talvez intuitivamente e mercê da sua inteligência, mais que de um saber encartado no
assunto, do qual porventura o dispõe, a filosofa italiana Donatella di Cesare, referindo-
se à figura algo diferente do resistente, traça um notável quadro da guerra subversiva
quando afere que o resistente, no nosso caso, o insurgente,
Não confronta o inimigo para lhe infligir a derrota; antes defende-se do adversário para
o obrigar a largar a presa [- na perspectiva táctica, porque lhe ainda falta força, na
componente estratégica, a decisiva, para poder modelar ele a presa, o povo, de acordo
com o princípio das forças concorrentes -]. Desarma-o com as suas armas, abala as
regras, toma-o de surpresa, desorienta-o. Tenta sempre desta maneira reconquistar
espaço e tempo para se reorganizar. o quer a vitória, a não ser na forma de libertação
[- o é, pois, a vitória militar, antes o trazer a si, “libertar”, o povo -]” (Cesare, 2021:
35).
6
Face a isto, poder, eventualmente, insistir no confronto militar de forças diametralmente
opostas e não de forças concorrentes, afigura-se até um pouco ridículo.
A guerra subversiva, enquanto unidade de tempo por mor da lassidão, é um evento
insidioso, onde se procura levar o inimigo a concluir que mesmo os mais próximos,
incluindo o vizinho, o amigo, os familiares podem não estar com ele e, no limite, é ele o
5
A guerra subversiva como a luta conduzida no interior de um determinado território, por uma parte da sua
população, ajudada ou não do exterior (mas quase sempre envolvendo a componente externa), contra as
autoridades de direito ou de facto estabelecidas, com vista a lhes retirar o poder e o controle sobre esse
território, ou, pelo menos, a paralisar a sua acção.
6
O itálico é nosso.
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O que os estudos estratégicos são ou não são:
a propósito de um Manifesto de Isabelle Duyvesteyn e James Worral
António Horta Fernandes
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próprio inimigo de si mesmo e da comunidade, devendo, portanto, partir ou juntar-se às
forças subversivas. Dito de outra forma, chamando à colação o mais recente romance de
Mia Couto:
“o inimigo é o mainato que cuida dos nossos filhos. É o funcionário que se
senta ao nosso lado. O inimigo somos nós próprios que o sabemos até
quando podemos resistir” (Couto, 2020: 226).
É verdade que Mia Couto não é um escritor qualquer, tem uma longa e profunda
digressão sobre guerra nos seus romances, mas a sua escolha por nós não é inocente.
Quer significar o quanto se ensimesmou e se tomaram por básicos os elementos
nucleares da guerra subversiva, a ponto de uma boa tirada de romance os ilustrar sem
mais, sem necessidade de grandes sustentáculos teóricos; como atrás o fazia, de
alguma maneira, Donatella di Cesare. Assim, a escrita, por parte de Duyvesteyn e Worral,
de um manifesto para promover a invenção da roda (ou mais provavelmente, para a
desacreditar, se é que os autores a compreenderam verdadeiramente) é, no mínimo,
insólito.
Os autores referem-se ainda à necessidade de pôr de lado a unilateralidade das análises
de escolha racional, mais ou menos beahvioristas, incluindo uma justa alusão a
Clausewitz (Duyvesteyn e Worral, 2017: 349)
7
. Uma vez mais estamos diante de uma
redundância. muito que a estratégia, justamente para dar conta da assistematicidade
do fenómeno bélico e da liberdade que caracteriza a acção humana, pôs em jogo a arte,
incluindo racionais estéticos, a intuição, o savoir-faire e, acima de tudo, a sagesse, a
sabedoria prática, essa compenetração com o mundo, saber imersivo rompendo por
dentro da realidade, de baixo para cima e vice-versa, fundamental para uma área que
não perfaz apenas um campo de estudos, com os seus métodos e objectivos próprios,
com um objecto específico e, por conseguinte, com um substrato ôntico regional, mas
sobremodo é uma práxis, uma resposta muito própria das comunidades políticas face às
injunções ditadas pela excepcionalidade da conflitualidade hostil, em particular da
guerra.
A estratégia é a sabedoria prática ao serviço da política, naturalmente num sentido
normativo, ético, prudencial, no senso de phronesis, que gere a confitualidade hostil, a
qual tem o seu valor de utilidade marginal na guerra, com vista não apenas a alcançar a
vitória, a minorar a derrota ou a negociar um impasse aceitável, mas antes de mais fazer
implodir a própria conflitualidade hostil por dentro e para sempre. No fundo, o caminho
da estratégia enquanto ética do conflito, também ele motivo de meditação e debate na
escola estratégica portuguesa. Pois bem, também aqui Isabelle Duyvesteyn e James
Worral pouco têm a dizer de inovador com a sua própria definição e glosa consequente
em função de uma abordagem dita alargada dos estudos estratégicos. É que uma
definição de estratégia não pode reduzir-se à sua parte de lo operativa, a estratégia
integral, por mais importante que esta seja, e é. A estratégia integral não é a estratégia
por antonomásia. A estratégia deve considerar igualmente aquilo que Jean-Paul Charnay
designou por metastratégie (Charnay, 1990a: 188-189) (Charnay, 1990b: 213 e ss.) e
7
Sobre este ponto, veja-se o magnífico estudo de Alan Beyerchen (Beyerchen, 1992-93), e ainda (Engberg-
Pedersen, 2015).
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a propósito de um Manifesto de Isabelle Duyvesteyn e James Worral
António Horta Fernandes
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Lucien Poirier por stratégique (Poirier, 1987: 195, 199-201)
8
. A refleo sobre a natureza
da estratégia e sobre o seu intrínseco evolver, o seu enquadramento epistemológico
particular (o seu modo de produção), o sentido do agir estratégico com relação aos fins
políticos e aos fins supra-políticos são igualmente concreções da estratégia. Dir-se-ia que
são concreções fundamentais da estratégia, sem as quais a estratégia integral não teria
norte, pois não estaria ancorada na realidade integral, inteira. É por este último motivo
que não nos parece de lei, pace os dois renomados estrategistas franceses, evocar estes
conceitos para acolher as dimensões não operativas da estratégia num espectro à parte,
em que a estratégia propriamente dita, a stratégie, diria então respeito apenas à acção
estratégica e à sua envolvência directa, o ambiente estratégico. A nosso ver, isso seria
dessangrar a estratégia de dimensões nucleares, não exteriores, mas interiores, basilares
ao seu âmago praxista.
De resto, e com respeito à ideia da estratégia como disciplina praxista, ética do conflito,
arte da prudência para além da prudência, um ponto que no discurso de Isabelle
Duyvesteyn e James Worral ofusca pela ausência, mas capaz até de ter importantes
repercussões estratégicas operacionais. Referimo-nos à relação da estratégia com o
ambiente, e não apenas enquanto modelo analógico, embora com todo o cuidado, pois a
guerra, lesiva de tudo, o é também do ecossistema. A estratégia pode bem configurar
um modelo analógico para as campanhas ambientais, porque a sua lógica é a de
racionalizar evitando a delapidação desbragada de recursos humanos e materiais. Uma
frugalidade também inerente, por questões operativas e logísticas, às acções militares.
Na verdade, no concernente à acção militar em si, não se trata só de optimizar recursos,
fazendo mais com menos, não degradando o ambiente. O próprio instrumento armado
pode ser pesado de mais para agilizar em determinados conflitos, denominados de baixa
intensidade. Mas não menos importante no domínio das percepções, da estratégia
declaratória é a pegada ecológica deixada, podendo essa pegada ser percepcionada como
fruto de uma postura arrogante e desajeitada, alienando apoios.
Contudo, devemos ir mais longe. Se pensarmos que a estratégia age tamm sobre a
hostilidade a haver, e que acções de aparente pura incidência ambiental o, além de
um risco estratégico, quiçá também uma ameaça, podendo ser motivo de uma percepção
hostil, porque mesmo não sendo cogitadas e efectuadas com intenção de hostilizar um
outro actor, há, no entanto, hoje a perfeita consciência dos danos (por exemplo, a corrida
aos combustíveis fósseis no Árctico). Então, a estratégia como ética do conflito, visando
limitar e desarmar potenciais conflitos, enquanto atitude prudencial para com o outro e
para consigo mesmo, é, nesse sentido, também uma acção (ética) de abertura ao outro,
com incidência ambiental directa. Porque no seu modelo de frugalidade, de
racionalização, de ponderação fronética de recursos, ao procurar conter na justa medida
ou desarmar conflitos por causa do ambiente, fá-lo por desarme de posturas ambientais
agressivas, contribuindo para a ideia de casa comum.
9
Seria bom que os internacionalistas se inteirassem do manifesto em causa para
compreender, não o ponto da situação dos estudos estratégicos ou de uma renovação a
8
Curiosamente, o termo stratégique deu origem à mais importante publicação periódica com o mesmo nome
dedicada à estratégia.
9
Estas ideias, aqui esboçadas de modo ainda embrionário, foram-nos sugeridas por Abel Cabral Couto, na
sequência de uma oração de sapiência proferida por Viriato Soromenho-Marques, na sessão inaugural do
ano académico do Instituto da Defesa Nacional, em 2019.
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haver, mas quão enviesada está essa formulação da estratégia, de quão redutora e até
redundante é, olhando antes para o que de inovador se faz nacional e internacionalmente
no campo de estudos da estratégia há, pelo menos, 60 a 70 anos. O maior dos problemas
para as Relações Internacionais é que perspectivas como esta, bem como a dos estudos
de segurança, têm deixado cativa essas mesmas Relões Internacionais de uma
compreeno não só errónea, mas também maninha e como se fosse veludo rafado, não
apenas do significado dos estudos estratégicos, mas, acima de tudo da realidade da
conflitualidade internacional, em especial da guerra, infelizmente ainda tão impregnada
no tecido internacional.
Referências
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Beyerchen, Alan (1992-93). “Clausewitz, Nonlinearity and the Unpredictability of War”.
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Couto, Abel Cabral (1988). Elementos de Estratégia. Apontamentos para um curso, 2
vols. Lisboa: IAEM.
Couto, Mia (2020). O Mapeador de Ausências. Alfragide: Caminho.
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propósito de um debate estratégico teórico” in Francisco Abreu e António Horta
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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CARL SCHMITT E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS - ATUALIDADE E
POSICIONAMENTO TEÓRICO
BERNARDO CALHEIROS
bernardo.calheiros@gmail.com
Mestre em Estratégia e Licenciado em Relações Internacionais. Curso de Defesa Nacional e Curso
de Estudos Avançados de Geopolítica. Foi Diretor de Serviços das Relações Bilaterais no
Ministério da Defesa Nacional. Foi consultor das empresas Gaporsul e Kyron Consultores. Fez
parte da Direção do Instituto Lusíada de Cultura. Atualmente, é técnico superior da Direção-Geral
de Política de Defesa Nacional e doutorando em Relações Internacionais: Geopolítica e
Geoeconomia na UAL (Portugal). É investigador do Observare. Pertence aos órgãos sociais da
Fundação Luso Africana para a Cultura.
Resumo
Carl Schmitt (1888-1885) é um dos grandes ausentes da universidade em Portugal. Podemos
até afirmar que Portugal constitui uma das mais áridas paisagens existentes em terras
europeias em matéria de estudos schmittianos (embora seja devida uma referência, entre
outros, ao Prof. Alexandre Franco de Sá, principal divulgador e tradutor da sua obra no nosso
País). Autor de uma obra polifacetada, influenciou diversas disciplinas direito constitucional
e internacional, ciência política, história das ideias, filosofia política e teologia política bem
como as relações internacionais e sua história, geopolítica e polemologia. Rompendo
paradigmas, deixou-nos uma obra “heterodoxa” (Odisseos e Petito, 2007, p. 11), onde a
intuição sobre o conceito do político tem natural destaque; mas foi também um homem que
viveu num momento perigoso, em quase permanente estado de exceção, que sofreu
tentações e desilusões, que foi julgado pelas autoridades e, mais severamente, pelas pessoas.
Sobretudo pelos seus pares. A adesão momentânea ao III Reich esteve na base da sua
demonização e exclusão da universidade (Balakrishnan, 2006, p. 27), ele que era um
conservador católico e uma das figuras centrais do movimento da “Revolução Conservadora”
(Mohler, 1993, p. 661), tendo até, durante a República de Weimar, procurado evitar que Hitler
alcançasse o poder.
Neste artigo vamo-nos centrar no contributo de Carl Schmitt para as relações internacionais.
Mas porquê falar nele agora? Porque não podemos deixar de relevar concorde-se ou não
o seu conceito do político; porque consideramos que algumas das suas teorizações caso do
partisan ou do grande espaço são importantes para a compreensão do momento que
vivemos, nomeadamente a respeito do sistema internacional em mudança, ajudando-nos a
perceber o aparecimento dos novos Estados-civilização e o conceito de democracia iliberal;
finalmente, porque obras como “O Nomos da Terra” deveriam integrar o canon das leituras
obrigatórias da disciplina das Relações Internacionais.
O seu percurso é conhecido, sobretudo nas vertentes mais polémicas. Em jeito de introdução,
faremos um rápido excurso pela sua vida, enquadrando a evolução pessoal nas grandes
tendências do século. Depois, procuraremos analisar alguns aspetos centrais da sua obra, que
constituem contributos relevantes para o estudo das relações internacionais. Analisaremos a
atualidade do seu pensamento, procurando provar é essa a nossa ambição tratar-se de
um autor moderno” e importante para compreender a atualidade, devendo ser referência
obrigatória na disciplina das relões internacionais.
Palavras-chave
Amigo/Inimigo, realismo, decisão, grande espaço, Estado, guerra
Como citar este artigo
Calheiros, Bernardo (2021). Carl Schmitt e as Relações Internacionais - Atualidade e
posicionamento teórico. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-
Outubro 2021. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.10
Artigo recebido em 3 Agosto 2020 e aceite para publicação em 19 Fevereiro 2021
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Carl Schmitt e as Relações Internacionais atualidade e posicionamento teórico
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CARL SCHMITT E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS - ATUALIDADE
E POSICIONAMENTO TEÓRICO
BERNARDO CALHEIROS
Uma vida atribulada
Poucos autores foramo enaltecidos, e vilipendiados, como Schmitt. Acusam-no alguns
de, com a sua crítica do liberalismo de Weimar, ter contribdo para a ascensão de Hitler
ao poder, tendo-se tornado no “jurista da coroa” do novo regime; outros, olhando
sobretudo para a sua revolucionária intuição sobre o conceito do político, realçam antes
os seus múltiplos contributos para diversas ciências.
Carl Schmitt não teve um percurso irrepreensível, mas não foi o kronjurist do regime
1
. É
preciso contextualizá-lo, no tempo e no espaço, num período particularmente conturbado
(atravessando duas guerras mundiais) e numa Alemanha que foi derrotada e esmagada
consecutivamente.
Nascido em 1888, em Plettenberg, católico, cedo envereda pelo Direito e pela docência
universitária. No período entre guerras as consequências de Versailles fazem-se sentir
na economia e na sociedade, onde o desemprego e a inflação atingem números quase
irreais. É o tempo da desmilitarização e dos combates entre Corpos Francos e
spartakistas que trazem à Alemanha um clima de guerra civil, sendo que Schmitt se
aproxima da “Revolução Conservadora”. Contudo, a sua crítica do liberalismo, a opção
teórica pelo decisionismo e pelo conceito de legitimidade em detrimento do de legalidade,
bem como a apologia do defensor da Constituição, vão atrair a atenção dos meios
nacional-socialistas em asceno. Inscreve-se no partido (em 1933, ano da ascensão ao
poder, motivando acusações de oportunismo) e ascende nos meios universitários a
lugares de direção. Contudo, mais do que simpatia pelo ideal nazi, Schmitt adere ao
regime pela sua “preocupação pela ordem” (Hirst, 2011: 20). As suas teorias, contudo,
não agradam às SS
2
, sendo expulso do partido em 1936 (Brown, 2007: 63) e optando
por demitir-se dos seus cargos universitários de direção para dedicar-se à cátedra na
Universidade de Berlim
3
. Finda a guerra, é libertado depois de interrogado pelas forças
1
“Homem de alta cultura, o podia ser um hitleriano e nunca o foi. Mas, doutrinário de direita, nacionalista,
cheio de desprezo em relação à República de Weimar de que analisou implacavelmente as contradições e a
agonia, interpretou como jurista a chegada de Hitler ao poder” (Aron, 2003: 650).
2
No jornal das SS, Das schwarze korps, surgem críticas bastante ameaçadoras (Freund, 1978: 7)
3
Adeel Hussain e Armin von Bogdandy consideram que “o Estado pode até ter sido a principal razão para o
ceticismo do partido nazi em relação a Schmitt. A ênfase que punham no movimento popular
(Volksbewegung) não correspondia ao ponto de vista mais estatista de Schmitt” (2018: 19).
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aliadas. Escreve, sobre esta experiência, “Ex Captivitate Salus Memórias de 1945-47”
(1950).
Há diferentes fases no pensamento de Schmitt. Poderíamos distinguir ts: numa
primeira, no período entre guerras, abarca temas de Ciência Política e Direito
Constitucional
4
. O jovem professor é um estatista assumido, um realista político
defensor do Estado-nação. Não se integra, contudo, na tradição positivista alemã
5
,
centrando-se na crítica do liberalismo e na denúncia da neutralidade e despolitização do
Estado. A sua produção teórica é muito influenciada pela teologia política, dando ainda
grande relevo à decisão, bem como à dicotomia legalidade vs. legitimidade. Nesta fase,
teoriza “O Conceito do Político”
6
. Depois de 1933, num segundo período, sofre a atração
do regime nacional-socialista e produz as suas obras mais polémicas: “Estado,
Movimento e Povo” (1933) e “O Führer protege o Direito” (1934). Mas depressa se
desilude, iniciando uma terceira fase dedicada à reflexão sobre as relações internacionais,
onde produzirá vasta obra de que se destacam, entre outros títulos importantes, “O
Nomos da Terra no Direito de Gentes do «Jus Publicum Europaeum»” (1950) e “Teoria
do Partisan” (1963). A sua heterodoxia face à escola realista torna-se mais evidente, ao
adotar uma visão sistémica marcada pelo estudo das instituições e o recurso à história,
que o levam a alguns paralelismos com as teorias institucionalista e até construtivista.
Morre em Plettenberg, em 7 de abril de 1985, na residência que apelidara de San
Casciano, terra onde morreu Maquiavel, mas também nome de um Santo que, no século
IV, é morto pelos seus alunos com as penas com que transcreviam as lições. Schmitt
morre triste, sentindo-se injustiçado.
Uma revolução científica
Schmitt, inscreve-se na tradição do realismo político europeu. Na linha de grandes
pensadores como Tucídides (460 a.c.-400 a.c), Marsílio de Pádua (1275-1342), Nicolau
Maquiavel (1469-1527), Jean Bodin (1530-1596) e Thomas Hobbes (1588-1679),
Schmitt é o último dos clássicos, influenciando autores como Hans Morgenthau (1904-
1980), Raymond Aron (1905-1983), Julien Freund (1921-1993) ou Eric Voegelin (1901-
1985), entre tantos outros.
Independentemente das etiquetas
7
, a sua teorização do político (do fenómeno político)
está na origem de uma revolução científica essencial para compreendermos o mundo em
que vivemos. O novo paradigma apresenta-se sob a forma do critério do político: a
dicotomia amigo/inimigo.
4
As principais obras deste período serão, porventura: “Romantismo Político(1919), “A Ditadura” (1921),
“Teologia Política” (1922), “Catolicismo Romano e Forma Política” (1923), “O Conceito do Político” (1927),
“Teoria da Constituição” (1928), “O Defensor da Constituição” (1931), “Legalidade e Legitimidade” (1932).
5
Logo na primeira frase de O Conceito do Político” refere que: “O conceito de Estado pressupõe o conceito
do político”.
6
Benno Teschke, um teórico da escola marxista das relações internacionais, vê nesta teorização de Schmitt,
“a tentativa de definir o político em termos de um agrupamento amigo/inimigo, existencialista, ontológico
e agonal, serviu o propósito de unir uma fragmentada sociedade industrial democrática de massas numa
comunidade homogénea contra as ameaças externas e para resgatar o direito de fazer a guerra da
Alemanha de Weimar” (Teschke, 2011: 187).
7
“As posições schmittianas o uma recusa das fronteiras académicas” (Pasquier, 2018: 57), sendo que os
seus seguidores se integram nas mais diversas escolas teóricas.
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Em O Conceito do Político” (1927), mostrará que, tal como a ética surge da
contraposição entre o bem e o mal, e a estética fundamenta-se na dicotomia entre o belo
e o feio, a política tem como critério a oposição amigo/inimigo. É esta oposição que
permite concluir estarmos perante um fenómeno político. Schmitt rejeita aqui o
positivismo, ao declarar o primado do político sobre o Estado, na medida em que
considera que o conceito de Estado pressupõe o conceito do Político. Schmitt, aliás,
coloca sempre o Estado em perspetiva, nunca esquecendo tratar-se de uma construção
histórica, feita por homens, que a qualquer momento poderá ser substituída por outra
forma de organização do poder. Também, contrariamente às correntes normativistas,
duvida da viabilidade do ideal humanista liberal conducente a um futuro governo
mundial.
Refira-se, contudo, que o inimigo é sempre um inimigo público, não um inimigo privado.
Esta inimizade política existe entre Estados, não sendo uma inimizade absoluta. O inimigo
é considerado um justus hostis, não um inimicus. É um adversário que se respeita, que
tem os mesmos direitos e com o qual poderemos negociar a paz, pois, sendo o conflito
regulado pelo Direito e de acordo com as leis da guerra (vigentes desde a Paz de
Vestefália), o seu objetivo é sempre o regresso à normalidade, à paz.
O sistema vestefaliano dos Estados encontrou esta forma de controlar a guerra e limitar-
lhe os efeitos, tornando-a, segundo Schmitt, parecida com um duelo
8
. Pelo contrário, nas
guerras de religião, nas guerras civis, ou nas guerras justas” (ou humanitárias), este
inimigo é considerado um inimicus, um inimigo absoluto sob o ponto de vista moral, com
todas as implicações que isso traz.
O realismo heterodoxo de Schmitt leva Alessandro Colombo (2007: 22) a considerá-lo
como representante do “institucionalismo realista”
9
. Antes, era o expoente máximo do
“Decisionismo”: é soberano quem decide do estado de exceção, sendo que Benno
Teschke chama a atenção para “a sua mudança de posição durante os anos 30, do
decisionismo político para o concrete-order-thinking” (2011: 191)
10
.
A crença na centralidade do Estado-nação como ator privilegiado (que não único) das
relações internacionais, será abalada quando percebe que este modelo, que persistiu
durante séculos, iniciou a sua decadência no final do século XIX, recebendo novo golpe
com o Tratado de Versailles, que dita uma era de neutralizações onde o poder é disputado
por outros atores e o conceito de soberania perde relevância. A tendência acentua-se
depois da II Guerra Mundial.
Chantal Mouffe, autoproclamada “schmittiana de esquerda”, lembra que a dicotomia
amigo/inimigo se aplica também ao conflito político interno, defendendo que isso pode
acontecer mesmo no seio de uma democracia liberal, onde o debate democrático pode
ser concebido como “consenso conflitivo”, dado que “o adversário é em certo sentido um
inimigo, mas um inimigo legítimo em relação ao qual existe um terreno em comum. Os
adversários lutam uns contra os outros, mas não questionam a legitimidade das suas
posições respetivas. Compartem uma lealdade comum aos princípios ético-políticos da
8
Vide, Carl Schmitt, Teoria del Partisano”, p. 57.
9
Também Alain de Benoist (2007: 142), afirma que “em 1934, no momento em que abandona em parte o
seu antigo decisionismo para se juntar a um ‘pensamento da ordem concreta’ (konkretes Ordnungsdenken)
[…] se aproxima do institucionalismo de Maurice Hauriou ou de Santi Romano”.
10
O concrete-order thinking afirma que “todas as ordens legais são ordens territoriais concretas, fundadas
num ato constitutivo originário de apropriação da terra” (op. cit.: 193).
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democracia liberal” (Mouffe, 2011: 15). A autora tem, no entanto, o cuidado de usar a
expressão “em certo sentido”, e faz bem, que Schmitt renegaria esta afirmação. A
própria autora o reconhece ao afirmar que, para Schmitt, este adversário não passa de
um competidor ou um companheiro que debate (op. cit.: 16)
11
.
Terra e Mar/Land und Mer. Eine Weltgeschichtliche Betrachtung (1942)
Nesta obra marcadamente geopolítica, Schmitt contrapõe duas realidades: a Terra,
espaço localizado e organizado pelo Direito (o ‘Nomos da Terra’), demarcado por
fronteiras entre Estados soberanos que se respeitam e cujas disputaso reguladas pela
Lei; e o Mar, espaço imenso, livre e sem fronteiras, que o Direito não consegue regular
(nessa fase inicial das apropriões pelos Estados europeus de terras no ultramar), o que
condiciona a forma de fazer a guerra.
Como refere, “as grandes transformações históricas costumam, na verdade, ir
acompanhadas de uma mutação da imagem do espaço”. A maior “revolução espacial” foi
levada a cabo nos séculos XVI e XVII por portugueses e espanhóis, e depois holandeses
e britânicos, que o dar um sentido ao espaço com as linhas de demarcação dos
respetivos territórios. Primeiro com o Tratado de Tordesilhas, entre potências católicas e
arbitrado pelo Papa, mas depois contestado pelas potências protestantes e pela
intervenção da Inglaterra, o que vai garantir a liberdade dos mares. Conforme afirma Sir
Walter Raleigh (1552 ou 1554-1618): “quem domina o mar, domina o comércio mundial,
e a quem domina o comércio mundial pertencem todas as riquezas do mundo e o próprio
mundo” (Schmitt, 1952: 90).
Esta dicotomia terra/mar conduz a formas distintas de fazer a guerra, sendo a primeira
regida pelo Direito e a segunda (numa fase inicial) desregulada. Nesta última, o inimigo
não é visto como um justus hostis mas como um inimicus, daí derivando guerras sem
quartel mesmo entre potências europeias, mas só no mar e nos territórios do ultramar
onde é permitido arruinar o comércio do “outro”, com todas as implicações para as
populações. A terra, no entanto, acaba por se apropriar do mar, legislando sobre a
distinção entre figuras como o pirata e o corsário, sendo que este último é legitimado por
estar mandatado por um Estado.
A revolução industrial ifinalmente “mudar a relação do homem com o mar” (op. cit.:
103) e este é o segredo do domínio inglês sobre os oceanos.
Na oposição entre Terra e Mar, Schmitt dá natural primazia à Terra, ao elemento telúrico
onde existe um nomos, uma ordem. Contudo, não esquece que ts quartas partes do
globo são compostas pelo elemento líquido e que, consequentemente, o mar pode cercar
a terra. Cita, aliás, a obra do Almirante Castex (1878-1968), O mar contra a terra”,
explicando que o mar pode bloquear estrategicamente a terra, cortando-lhe os meios de
aprovisionamento.
Interessante também a referência ao Almirante Mahan (1840-1914), um norte-
americano, que desenvolvera a teoria de que a “grande ilha” não é a Inglaterra, mas
os EUA, a verdadeira potência mundial
(op. cit.: 107). Estamos perante o ocaso do
11
Vide ainda “O Conceito do Político” (Schmitt, 2015: 54).
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poderio europeu. Àquilo que era um pluriversum de potências europeias, sucede um
universum dominado pela potência global, os EUA.
Mas, também em “Terra e Mar”, Schmitt fala-nos de uma nova revolução espacial: o
surgimento do espaço aéreo como espaço estratégico, com características semelhantes
ao mar. Acredita que “o avião mudou a natureza da guerra e da estratégia militar ao
desafiar os conceitos espaciais tradicionais da guerra, especialmente a ideia de teatro
de guerra’ e de ‘frente’, e até a distinção entre guerra terrestre e guerra naval, bem
como as regras que as regem” (Dean, 2007: 253).
Uma revolução planetária: O fim do sistema de Estados vestefaliano e os
Grandes Espaços (Grossraum)
Uma das suas obras mais relevantes para as relações internacionais é “O Nomos da Terra
no Direito de Gentes do Jus Publicum Europaeum” (1950). Muito marcada pela
geopolítica, teoriza o fim do sistema de Estados vestefaliano
12
, anunciando o
aparecimento de uma nova ordem internacional norte-americana, que considera poderia
ser contrariada através do conceito de grandes espaços (Grossraum). Estas conclusões
fundamentam-se na análise histórica da ordem internacional desde o fim da Respublica
Christiana, passando pelo advento do Estado-nação, sua generalização e decadência, até
ao atual sistema internacional, o que conduz a uma proposta para o reequilíbrio de
poderes e a restauração de um pluriversum de potências na ordem internacional.
O Estado-nação vestefaliano, caracterizando-se pela soberania, é uma entidade política
independente, que interage com os outros Estados no plano internacional em condições
de igualdade definidas pelo direito (o Jus Publicum Europaeum). Este é o seu quadro de
referência, sendo Schmitt, defensor do Estado soberano, um realista convicto do ponto
de vista ontológico (Odysseos, 2007a: 124).
Contudo, com o fim da I Guerra Mundial, a Sociedade das Nações e a criminalização do
vencido
13
, o Estado-nação deixa de conseguir responder aos grandes desafios da
modernidade. Surge, então, um novo direito internacional, no qual “Schmitt o Pacto
Briand-Kellog de 1928 como representando um passo mais na tentativa de Washington
para estabelecer a sua hegemonia global” (Mouffe, 2007: 149), que se concretizará no
pós-II Guerra Mundial. Este estará na base do novo sistema internacional, fundado na
ideologia humanitária liberal e tendo como instrumento de salvaguarda o conceito de
“guerra justa”.
Perante um Estado-nação em mutação, Schmitt considera que este vai evoluir através
da cedência de soberania a favor do grande espaço (Grossraum), que englobará os
Estados pertencentes a uma determinada cultura ou civilização e assegurará as principais
funções que aquele detinha. O sistema internacional deixaria de ser um universum
marcado pela hegemonia norte-americana e retomaria a sua condição de pluriversum,
tendo como atores principais os diversos grandes espaços, cada um deles dirigido por
um Estado-diretor. Para a teorização deste novo conceito, inspira-se na Teoria Monroe
12
Que se inicia com a Sociedade das Nações (que limita a soberania dos Estados), bem como com o Pacto
Briand-Kellog e a proibição do recurso à guerra.
13
O Tratado de Versailles, no artigo 227, procede à criminalização do Kaiser Guilherme II, que terá de abdicar
do Trono.
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(1823), que tem os EUA como potência dominante. Na Europa, esse papel de centro
geopolítico caberia à Alemanha como principal potência europeia
14
, assim como a União
Soviética teria no centro a Rússia. Pretende-se, desta forma, acabar com a ingerência
das outras potências no continente europeu.
Schmitt recupera, aliás, o conceito de império (Reich) como alternativa aos modelos
federal e confederal, mas sublinhando que “o Grossraum não se deverá confundir com o
Reich, cuja missão é apenas a de organizar o ‘grande espaçoe de o proteger de qualquer
intervenção exterior. Em definitivo, admite que os ‘impérios’, e não as nações, poderão
tornar-se nos principais atores das relações internacionais, ao mesmo tempo que avisa
contra uma simples exteno mecânica da ideia de soberania nacional à dimeno do
Grossraum(Benoist, op. cit.: 146). Os Estados não vão necessariamente desaparecer,
pois uma certa organização territorial é preservada; mas, sobre a questão política
essencial, a que define a soberania política, propriamente dita, ou seja a faculdade de
decidir quem é o inimigo, a competência é deslocada para um nível superior, o do Reich.
A linha de partilha entre amigo e inimigo passa a ser entre grandes espaços e não entre
Estados” (Pasquier, 2018: 62).
Paralelamente, Schmitt refere a importância geopolítica do surgimento de “novos
espaços” e da corrida aos mesmos pelas grandes potências. A corrida dos físicos,
técnicos e cosmonautas modernos está determinada pela questão sobre quem dominará
os novos espaços incomensuráveis”, em primeiro lugar a fronteira aérea, do cosmos, e
depois todas as outras por explorar sob os oceanos (Schmitt, 1962: 57). Prevê o
reaparecimento da figura do pirata, hoje uma realidade, e podemos até conceber o
surgimento do pirata espacial (que poderá não tardar a aparecer). Novo domínio
particularmente importante é o ciberespaço, onde vamos encontrar um inimigo irregular
o pirata informático que frequentemente não tem um carácter telúrico e não obedece
a quaisquer regras.
Com a teoria dos grandes espaços, Schmitt afasta-se dos pressupostos do realismo
clássico e aproxima-se do realismo sistémico. O estudo das relações internacionais,
depois da I Guerra Mundial, deixa de se centrar nos Estados, passando a atender a
realidades mais vastas ao nível dos sistemas, e à apropriação do político por atores não-
estatais, que se aproveitam da fraqueza do Estado. Aqui Schmitt mostra a sua
originalidade, quando fala nas novas instituições e atores políticos, e se dedica a uma
análise histórica das relações internacionais que vai identificar o Estado-nação como uma
entidade em profunda transformação.
Em suma, “ao Nomos de Schmitt tem de ser atribuído o seu lugar de direito, lado a lado
com outros grandes clássicos, como um dos textos fundadores das Relações
Internacionais, corrigindo a não historicidade da disciplina” (Odysseos, 2007b: 8).
14
É um conceito que nada tem a ver com as propostas de Karl Haushofer (1869-1946) sobre as Pan-regiões
e os Estados-Diretores, muito tributárias das teorizações do Lebensraum.
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Polemologia: as novas formas de guerra, a figura do Partisan e do
terceiro excluído
No antigo Direito das Gentes (o jus publicum europaeum), os Estados tinham intico
estatuto jurídico, sendo a guerra concebida como uma atividade em que estes se
digladiavam soberanamente em defesa dos seus direitos. O inimigo era visto como um
justus hostis, tendo direito a defender os seus interesses
15
.
A paz de Versailles, pondo fim ao jus publicum europaeum, inaugura um novo direito
internacional ditado pelos EUA, que terá graves implicações no respeitante à guerra:
determinando as relações entre os Estados, o antigo direito das gentes (jus publicum
europaeum) que, na época do tratado de Vestefália, pôs fim às guerras religiosas,
concebia a guerra como uma guerra em que cada beligerante era autorizado a fazer valer
o seu direito: justus hostis (inimigo justo, isto é, legítimo), e não justa causa (causa
justa). Foi isso que permitiu conter a guerra dentro de certos limites, donde a importância
do jus in bello. A guerra discriminatória, ressuscitando a «guerra justa» da Idade Média,
é uma guerra em que o jus ad bellum prevalece, pelo contrário, sobre o jus in bello. O
inimigo não é mais um adversário que, noutras circunstâncias, poderia muito bem tornar-
se um aliado. Ele é agora um inimigo absoluto. Demonizado, criminalizado, considerado
uma figura do mal, é um inimigo da humanidade, que deve não apenas ser derrotado,
mas erradicado (Benoist, 2011: s/p).
Esta evolução da guerra produz conceitos novos. Lembra Schmitt que as partes
intervenientes nas “guerras humanitárias” do século XX e XXI, consideram-se defensoras
de uma “justa causa” e, portanto, de forma maniqueísta, veem no adversário um
representante do mal, um inimicus existencial que urge destruir. “A tentativa de ver a
intervenção militar internacional como uma ação de pocia está […] ligada a uma
remoralização fundamental da guerra e à emergência de uma nova espécie de guerra
total discriminatória” (Dean, 2007: 254).
A tentativa de impor aos Estados a renúncia à guerra (como pretendido pela SDN e pela
ONU) acabou com o conceito de guerra em forma (regulada pelo Direito) e fez surgir
uma realidade onde o conflito se encontra desregulado, sendo tendencialmente mais
perigoso e letal. A “guerra justa” transforma-se numa guerra contra causas “injustas”,
desumanas, maléficas e que têm, portanto, de ser eliminadas
16
.
Em A Teoria do Partisan” (1963), analisa algumas características desta nova forma de
guerra, nomeadamente a figura do partisan, que contesta o monopólio estatal da
violência legítima e constitui-se como combatente irregular (mas dotado de caráter
telúrico, o que o diferencia do terrorista internacional)
17
. É muito importante esta
caracterização do partisan, dotado de natureza política e lutando, de forma irregular e
15
Afirma Bohdana Kurylo que, “contrariamente a encorajar a guerra entre estados, Schmitt defende que a
violência política não pode ser justificada senão quando for em resposta a uma ameaça ao way of lifede
um grupo” (2016: 4).
16
Para uma defesa do modelo de “guerra justa” e uma crítica a Schmitt, vide Chris Brown, op. cit.
17
Para Schmitt (1966: 34), o partisan identifica-se segundo “quatro critérios irregularidade, mobilidade
acentuada, intensidade do engagement político e caráter telúrico”.
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assimétrica
18
, por um território, o que o distingue do revolucionário e do terrorista,
ambos desterritorializados, tendo o mundo como campo de ação e não aceitando a
existência de limites à violência. Entre os partisans, encontramos os membros das
guerrilhas contra Napoleão, mas também os combatentes das “guerras de libertação”
como a de Cuba ou Argélia, sendo que Schmitt cita ainda o caso da OAS
19
e do General
Salan; já os terroristas internacionais, como a al Qaeda ou o Daesh, entram no domínio
da inimizade absoluta
20
.
No entanto, Schmitt não os considera meros criminosos, dado terem um caráter político
e a convicção de travarem uma guerra de resistência face a um inimigo mais poderoso.
O resultado da sua ação constitui um crime, mas um crime político (Benoist, op.cit.: 99).
O partisan atua frequentemente em guerras por procuração, a favor de terceiros. Schmitt
traz, assim, à colação a obra de Rolf Schroers (1919-1981), Der Partisan”
21
e a figura
do “terceiro interessado”, justificando aqui uma citação mais longa:
No seu livro sobre o Partisan, Rolf Schroers […] fala do terceiro interessado. É um termo
exato. Este terceiro interessado não é uma qualquer figura banal […]. Pertence antes,
essencialmente, à situação do partisan e, por conseguinte, também à sua teoria. O
terceiro poderoso não fornece apenas as armas e as munições, o dinheiro, a ajuda
material e os medicamentos necessários, mas procura também uma espécie de
reconhecimento político, necessário ao partisan que luta de maneira irregular para não
se desqualificar como o assaltante ou o pirata e para não cair no apolítico, que é idêntico
neste caso ao criminoso. A longo prazo, o irregular tem de legitimar-se com o regular.
Para que isto aconteça não há senão duas possibilidades: o reconhecimento por parte de
uma força regular existente ou a conquista de uma nova regularidade pela própria
força. É uma alternativa dura.
O partisan perde o seu terreno na medida em que se motoriza. Ao mesmo tempo
aumenta a sua dependência dos meios técnico-industriais de que necessita para a sua
luta. O poder do terceiro interessado cresce cada vez mais, até que chega a alcançar
dimensões planetárias. Parece, pois, que todos os aspetos do partisanismo que
considerámos até agora estão subjugados pelo todo-poderoso aspeto técnico (Schmitt,
1966: 105).
Nesta obra, resultante de um encontro com Schmitt em 1955 (Müller, 2006, s/p), Rolf
Schroers “faz do partisan a última incarnação da autonomia num mundo que está
crescentemente regulado pela burocracia e pela tecnologia”, embora o autor avise que o
envolvimento do terceiro interessado pode instrumentalizá-lo, levando, assim, à moral
death’ do partisan (idem). Assistimos a isso em diversos conflitos em África e no Médio
Oriente e, hoje em dia, com as proxy wars e a utilização crescente das Companhias
Militares Privadas.
18
A “assimetria reside na oposição de dois adversários que dispõem de meios e capacidades totalmente
desequilibrados” (Tomé, 2004: 165).
19
Organisation Armée Secrète.
20
Gary L. Ulmen, in “Partisan warfare, terrorism and the problem of a new nomos of the earth”, advoga que,
havendo uma distinção entre o partisan e o terrorista, torna-se necessária uma “Teoria do Terrorista".
21
Rolf Schroers, 1961, Der Partisan; ein Beitrag zur politischen Anthropologie”, Colónia, Kiepenheuer &
Witsch (citado por Schmitt em Teoria del Partisano: 105).
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Conclusão: o regresso de Schmitt
Carl Schmitt deu um grande contributo para a teorização das relações internacionais. O
conceito do Político identificou a relação existencial amigo/inimigo como seu critério.
Contudo, está longe de ser um defensor da guerra e da violência na política. Pelo
contrário, Schmitt é um amante da ordem e, como tal, espera sempre que ao estado de
exceção suceda um regresso à normalidade constitucional. Mas é importante ter presente
que, por muito pacifistas que sejamos, podemos sempre ser designados unilateralmente
como inimigos e, nesse caso, não há como o evitar.
Os que o acusam de defender a ditadura, porque escreveu um livro com esse título,
decerto não o leram. O seu modelo é claro e inspirado na ditadura comissarial romana,
em que, em caso de exceção, é nomeado um decisor com poderes alargados destinados
a repor a ordem e que, uma vez concretizado esse objetivo, devolve esses poderes para
o regresso à normalidade.
Fundamental, também, a sua explicação do fim do predomínio estatal baseado no Jus
Publicum Europaeum e sua substituição por um novo sistema internacional democrático-
liberal tendo como ideal a futura unidade do mundo. A substituição do pluriversum
anterior por um universum centrado na única superpotência: os EUA. Este ideal, que teve
uma grande aceitação a seguir à guerra, parecia ter sido adotado por todo o mundo no
pós-Guerra Fria. Contudo, diversas potências começam agora a pôr em causa esse ideal,
que consideram beneficiar apenas o Ocidente e, em particular, os EUA.
Schmitt, face a essa realidade, propunha a edificação de uma ordem internacional
baseada nos grandes espaços e inspirada na Doutrina Monroe. O regresso a um
pluriversum gerador de estabilidade no sistema internacional. Uma nova ordem mundial.
Aliás, nessa linha, algo de novo está a surgir em países como a China, Rússia, Índia ou
Turquia, que clamam por um novo sistema multipolar baseado em grandes espaços, onde
a matriz liberal não terá já validade universal
22
. A própria construção europeia obedece
de alguma forma a esta lógica embora, à semelhança dos EUA, no respeito pela matriz
democrática liberal.
Schmitt faz-nos perceber que a globalização, embora centrando-se no livre comércio
internacional, não traz o fim da guerra. Bem pelo contrário, o ideal de unidade do mundo
leva à neutralização do Estado, criando outro tipo de divisões suscetíveis de alcançar um
grau de inimizade em que, não existindo o Direito das Gentes europeu, poderão
conduzir a confrontações muito mais violentas, semelhantes à guerra civil. As guerras
não têm, de facto, desaparecido e temos, aliás, assistido à sistemática criminalização do
vencido e à criação de tribunais penais internacionais de legitimidade bastante duvidosa.
No domínio da Polemologia, Schmitt deixa-nos também conceitos fundamentais: o de
partisan, e a ideia do regresso à “guerra justa”. Importante também a referência ao
terceiro interessado, ajudando-nos a perceber as guerras por procuração e os novos tipos
de guerra irregular moderna, e a entender fenómenos como o 11 de setembro e o
conceito de “Eixo do Mal”. Compreendemos melhor o estado de exceção permanente em
22
Exemplificado pelo caso russo, onde “o entendimento iliberal da democracia está claramente articulado na
noção de ‘Democracia Soberana’ de Vladislav Surkov” (Lewis, 2017: 14).
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que vivemos e que se vai eternizando, com as missões militares a assumirem
características de operações de polícia. Finalmente, a teorização sobre os novos espaços
estratégicos dá-nos uma espantosa análise prospetiva sobre a atual corrida à
militarização do espaço seja o sideral ou o cibernético e à exploração das profundezas
marinhas.
O contributo de Schmitt para o estudo das relações internacionais é enorme. Concorde-
se ou discorde-se do seu pensamento, não é mais possível continuar a ignorar o papel
de primeiro plano que lhe cabe na produção teórica desta ciência.
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JURISDIÇÃO PENAL UNIVERSAL:
NOVA ABORDAGEM NOS PAÍSES DA EUROPA OCIDENTAL
SAFWAN MAQSOOD
safwan.maqsood@gmail.com
Professor Auxiliar de Direito Internacional Público, Universidade de Sharjah- College of Law
(Emirados Árabes Unidos). É doutorado em Direito Internacional. Tem leccionado noutras
Universidades, tais como no Dubai e em Mossul. É autor de numerosos artigos científicos em
árabe, francês e inglês.
Resumo
O presente artigo analisa a jurisdição penal universal nos países da Europa Ocidental. Embora
o Tribunal Penal Internacional tenha facilitado o cumprimento do Estatuto de Roma de 1998,
alguns países europeus têm sido criticados por colocarem condições restritivas ao exercício
dessa jurisdição. No entanto, com o conflito sírio e a emergência de grupos terroristas, a
jurisdição universal foi novamente utilizada para julgar crimes de guerra e crimes contra a
humanidade cometidos por perpetradores que procuraram asilo na Europa.
Palavras-chave
Direito penal internacional, tortura, jurisdição penal universal, extradição
Como citar este artigo
Maqsood, Safwan (2021). Jurisdição Penal Universal: nova abordagem nos países da Europa
Ocidental. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021.
Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.12.1.11
Artigo recebido em 8 Outubro 2020 e aceite para publicação em 17 Março 2021
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Jurisdição Penal Universal: nova abordagem nos países da Europa Ocidental
Safwan Maqsood
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JURISDIÇÃO PENAL UNIVERSAL:
NOVA ABORDAGEM NOS PAÍSES DA EUROPA OCIDENTAL
1
SAFWAN MAQSOOD
Introdução
O julgamento de perpetradores de crimes internacionais é uma regra do direito penal
internacional, pois, caso contrário, o perpetrador escapa à punição e o sistema de justiça
penal falha. Este processo pode ser conduzido através de tribunais penais internacionais
permanentes ou ad hoc, ou por jurisdição penal normal exercida por tribunais nacionais.
Muitas vezes, no entanto, somos confrontados com a impossibilidade de aplicar qualquer
uma dessas jurisdições penais e, para fazer justiça às vítimas de crimes internacionais e
evitar a impunidade de seus perpetradores, é necessário aceitar a jurisdição penal
universal. Atualmente, deparamo-nos com crimes de natureza especial que ameaçam a
paz internacional e a segurança da humanidade
2
.
Por esta razão, a jurisdição penal universal (JPU) foi recentemente adotada como solução
prática e realista para lidar com a perigosa e extensa disseminação de crimes
internacionais. O primeiro exercício desta jurisdição surgiu com textos jurídicos
promulgados há setenta anos, nas quatro Convenções de Genebra de 1949 e no seu
primeiro protocolo adicional
3
.
Posteriormente, a importância dessa jurisdição pode ser identificada nas Comissões da
ONU. A este respeito, mencionamos a Comissão de Direito Internacional e a Sexta
Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGUN), que adotaram a jurisdição
universal em 2010
4
.
Diferentes países em todo o mundo, especialmente na Europa, têm leis punitivas que
empregam esta jurisdição para processar os autores de crimes muito graves. Essas leis
são utilizadas independentemente da nacionalidade do acusado ou da vítima e do local
onde esses crimes são cometidos, visto que afetam toda a comunidade internacional
5
.
Por outras palavras, os Estados são obrigados a respeitar o compromisso internacional
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
2
Klip, André (2008). «Universal Juridiction: Report for Europe», 79 Revue International de Droit Pénal, 180;
Langer, Máximo (2015). «Universal Jurisdiction is Not Disappearing», 13:2 Journal of International Criminal
Justice 249.
3
Kontorovich, Eugene (2008). «The Inefficiency of Universal Jurisdiction», 1 University of Illinois Law Review
408.
4
Vide: GAUN-6th Commission, 73 Session, GA/3571, 10-10-2018. Vide: GAUN, Res. 64/117 (janeiro
/15/20210).
5
Shaghaji Danial Rezai (2015). «L’exercice de la compétence universelle en tant qu’obligation Erga Omnes
afin de réprimer les crimes de Jus Cognes», Revue International de Droit Comparé 8.
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de extraditar ou processar
6
. Como vários países alteraram as suas leis nacionais para
incorporar a jurisdição universal nos seus sistemas jurídicos, facilitam assim a sua
utilização pelos seus tribunais nacionais na repressão de crimes internacionais
7
. Essa
prática é necessária, apesar das dificuldades relacionadas com leis nacionais de amnistia
da pena e da imunidade que os deres políticos e militares de vários países gozam
8
. A
ausência de consenso internacional - especialmente por parte de grandes países como
os Estados Unidos, Rússia e China - sobre a legitimidade e importância do Tribunal Penal
Internacional (TPI) enquanto órgão judicial internacional principal para o julgamento dos
perpetradores de crimes internacionais, significa que a JPU se tornou um fator essencial
na campanha internacional contra a supressão de crimes internacionais
9
. Contudo,
muitos Estados membros da Sexta Comissão da AGUN, na reunião 73 emitiram
declarações a justificar a sua recusa em adotar a JPU nas suas leis nacionais devido à
falta de âmbito e definição da JPU
10
. Outros estados, como o Grupo Africano, Grupo
Caribenho, Grupo Latino-Americano e o Grupo Não Alinhado consideraram que esta
jurisdição visava apenas os estados menos poderosos
11
.
No entanto, as "grandes potências", além de sua postura negativa em relação ao TPI,
adotaram uma postura ainda mais rígida contra a JPU, vendo a sua prática como uma
séria ameaça por parte de um país à soberania de outro. Além disso, a integração
territorial, especialmente no exercício da JPU, está condicionada ao não exercício da JPU
à revelia
12
. Apesar da rejeição das grandes potências, a prática europeia baseia-se
geralmente na transparência jurídica e judicial na aceitação ou rejeição da jurisdição, ao
contrário do que prevalece noutros países. Esses países estão atrasados na incorporação
da JPU nas suas legislações nacionais ou no seu exercício pelos seus tribunais nacionais
caso tal se encontre estipulado na legislação nacional. A atitude positiva europeia em
relação à JPU justifica a nossa seleção de países específicos com experiência nesta forma
de jurisdição. Por exemplo, analisamos se um determinado país considera ter o
compromisso de exercer a JPU com base num tratado do qual é parte, ou se a sua prática
da JPU assenta numa uma lei nacional em vez de numa obrigação internacional
13
. Uma
outra questão que se coloca é se atualmente a Europa está a tentar redefinir o princípio
da JPU após esta ter perdido significado real em muitos países na última cada, ou se
estamos perante um novo tipo de JPU com especificações diferentes das anteriormente
conhecidas.
6
Jalloh Charles (2018). Universal Criminal Jurisdiction, ILC, Doc. A/73/10, p. 310.
7
Pradelle, Geraud (2000). La compétence universelle, (dir) Ascensio, Hervé droit international pénal, Paris :
Editions A-Pédone, p.906.
8
Kontorovich, Eugene, nota supra 2, 413.
9
Heller, Kevin Joe (2017). «What Is an International Crime? A Revisionist History», 58 :2 Harvard
International Law Journal 401.
10
Vide: 6ª Comissão da AGNU, 73ª Sessão, GA/3571, 10-10-2018.
11
Jalloh Charles, nota supra 5, p. 309.
12
Garrod, Matthew (2018). «Unraveling the Confused Relationship between Treaty Obligations to Extradite or
Prosecute and universal Jurisdiction in the Light of the Habre Case, 59:1, Harvard International Law Journal
150.
13
Pradelle, Geraud, nota supra 3, 906. De notar que a UE denota uma posição progressista ao encorajar os
seus Estados membros a adotarem a Jurisdição Universal nas suas legislações nacionais. Para o efeito, a
UE organizou vários workshops e publicou muitos projetos de Códigos de JU- Informação adicional em:
Garrod, Matthew (2019). «The Emergence of Universal jurisdiction in Response to Somali Piracy: An
Empirically Informed Critique of International Law’s Paradigmatic Universal Jurisdiction», 18 Chines Journal
of International Law 560.
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1. Jurisdição universal: uma grande deceção
A inclusão da jurisdição universal nas leis nacionais dos países europeus na década de
1990 teve um efeito positivo ao reavivar a esperança entre as vítimas de crimes
internacionais de ver os autores desses crimes julgados e punidos
14
. Nos últimos trinta
anos, os países europeus testemunharam grandes mudanças positivas e negativas
ligadas a tensões políticas em países onde ocorreram crimes de guerra, genocídio ou
crimes contra a humanidade. A Bélgica foi o primeiro país a promulgar uma lei nacional
sobre a JPU em 1993, que alterou em 1999. Posteriormente, os tribunais belgas emitiram
vários mandados de detenção de chefes de Estados estrangeiros, governos, ministros de
negócios estrangeiros e líderes militares, com base na prática de crimes graves, seja nos
seus próprios países ou noutro lugar, contra vítimas da mesma nacionalidade ou de outra.
Esses mandados de detenção foram emitidos em países como Espanha, França e
Alemanha
15
. No entanto, devido à pressão política e económica exercida pelas grandes
potências, especialmente os Estados Unidos, muitos países europeus que haviam
adotado a JPU nas suas leis nacionais, modificaram essas leis para tornar a prática desta
jurisdição muito restrita, senão quase abolida. Assim como a Bélgica foi a primeira a
promulgar a JPU, também foi o primeiro país europeu a emendar as suas leis nacionais
para restringir sua prática. Restringiu a movimentação da denúncia ao Ministério Público
Federal, que é um novo cargo criado para esse fim e especificou a necessidade da
presença da vítima na Bélgica e nela residir legalmente, além da presença do acusado
em território belga. A Bélgica, portanto, aboliu o elemento da revelia da JPU, no qual a
maioria das queixas assentava
16
.
À Bélgica seguiu-se a Espanha, que em 2009 restringiu severamente a prática da JPU.
Quatro anos após o Tribunal Constitucional espanhol ter aprovado a JPU em 2005 como
um princípio jurídico pelo qual as vítimas obtêm justiça penal, qualquer que seja a sua
nacionalidade e quem quer que tenha cometido um crime contra as mesmas, o
Parlamento espanhol, sob pressão dos EUA e da China, acabou por restringir a aplicação
da JPU e modificar o artigo 23.º, n.º 4 da Ley organica del poder judicial. Esta modificação
torna difícil, senão impossível, a aplicação da JPU
17
.
1.1. Vítimas e torturadores nas ruas de Amsterdão
Embora o Tribunal de Apelação de Amsterdão tenha reconhecido a aplicação parcial da
JPU, particularmente no caso do Desire em 2000, posteriormente rejeitou várias queixas
com base na JPU, talvez por causa da situação que viu no país vizinho, a Bélgica
18
.
14
Cassese, Antonio (2002). Crimes internationaux et juridictions internationales. Paris: PUF, p. 19.
15
Vandermeersch, Damien (2003). «La fiabilité de la règle de la compétence universelle», (dir) Fronza,
Emanuela et Manacorda, Stefano, La justice pénale internationale dans les décisions des tribunaux ad hoc-
Etudes Law Clinics en droit pénal international, Milano, GiuffEditoire, p .221. Leia-se também: Langer,
Máximo, nota supra 1, 254.
16
Kalek, Wolfgang (2009). «From Pinochet to Rumsfeld: Universal Jurisdiction in Europe 1998-2008», 30:3
Michigan Journal of International Law 934.
17
Massé, Michel (2008). «Chronique de droit pénal international», 3 Revue de Science Criminelle et de Droit
Pénal Comparé, 447. Leia-se também: The application of Universal Jurisdiction in the fight against impunity-
Relatório publicado pela União Europeia em 2016, p. 18.
18
Para mais detalhes sobre este caso, leia.se: Amsterdam Appeal Court, Decisão de 20 de novembro de 2000,
R 97/163/12 e R 97/176/12.
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Referimo-nos aqui ao caso Nazbali da República Democrática do Congo e ao caso dos
três afegãos, também conhecido como o caso Gallozi, todos acusados de cometer tortura
nos seus países antes de fugirem para a Holanda. A Holanda justificou o facto de não os
extraditar devido à preocupação que pudessem ser sujeitos a tortura. No entanto, não
levou as pessoas em nenhum dos casos a julgamento nos tribunais nacionais e, de fato,
a Convenção contra a Tortura de 1984 não obriga a Holanda a fazê-lo.
19
Outro caso na
Holanda diz respeito a um refugiado ruandês, Joseph Mumbara, acusado de genocídio no
Ruanda. O Tribunal Penal de Haia rejeitou todas as acusações contra ele e justificou a
sua decisão dizendo que não tinha competência para levá-lo a julgamento por genocídio
cometido no estrangeiro, uma vez que o Código Penal holandês o permite processos
ao abrigo da JPU
20
.
Conforme observado, o aut dedere aut judicare é um princípio judico acordado que
alguns Estados que adotaram a JPU na sua legislação nacional aplicam para processar
quem cometeu violação grave do direito penal internacional
21
. Assim, as pessoas
acusadas de cometer tortura movimentam-se livremente em Amsterdão, apesar do
conhecimento geral de que cometeram tortura nos seus países. Neste caso, acreditamos
que a alegação do Supremo Tribunal holandês sobre a ausência de uma obrigação
internacional de investigar crimes cometidos, ou mesmo a extradição de pessoas
acusadas de acordo com as Convenções, constitui uma violação dos princípios
reconhecidos no direito internacional.
22
Apesar disso, a Holanda também pode ser
classificada como um país cujos tribunais reconhecem a JPU. Por exemplo, permite a
falta de condenação criminal contra o acusado ao conceder à vítima o direito a uma
compensação financeira.
É inaceitável afirmar que é impossível aplicar qualquer uma das jurisdições penais
habituais, ou mesmo a JPU, uma vez que as pessoas acusadas de violações graves não
devem ficar sem acusação seja qual for a justificação. A prova da existência legítima da
JPU no sistema jurídico holandês reside no reconhecimento holandês de permitir que os
tribunais a pratiquem. Além disso, este reconhecimento confirma a preocupação
holandesa que levantamos anteriormente em relação à prática da JPU nos seus tribunais.
1.2. Hesitação suíça mais perto da rejeição
A Justiça Federal Suíça não tomou posição sobre a implementação da JPU relativamente
a crimes internacionais, embora a Suíça inicialmente tenha encontrado uma maneira fácil
de aplicar a JPU nos seus tribunais nacionais
23
. O Código Penal Suíço não previa essa
jurisdição e o era parte da Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio até
19
Garrod, Matthew (2018). «Unraveling the Confused Relationship between Treaty Obligations to Extradite or
Prosecute and universal Jurisdiction in the Light of the Habre Case», 59:1 Harvard International Law Journal
189.
20
Veja-se: District Court of the Hague, Caso nº. 09/750009-06 e 09/750007-07, Public Prosecutor v. Joseph
Mpambara, Interlocutory Decision (24 de julho de 2007. Leia-se também: Hovell, Devika, «The Authority
of Universal Jurisdiction», (2018) 29:2 European Journal of International Law 434.
21
Jalloh Charles, nota supra 5, p. 309.
22
La Fontaine, Fannie (2014). «L’Afrique face à la justice pénale internationale», 45: 1 Etudes Internationales
135.
23
De acordo com o artigo 35 da Loi Federal sur L’ órganization des Autorittés Pénales (LOAP) do Tribunal
Penal Federal, te competência em primeira instância e recurso para os crimes contra a humanidade,
genocídio e crimes de guerra. Universal Jurisdiction Law and Practice in Switzerland, Trail International-
Open Society, junho de 2019, p. 27.
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2000. No entanto, isso não impediu o tribunal militar de Lausanne de julgar um refugiado
do Ruanda e condená-lo por genocídio no Ruanda durante o conflito armado na década
de 1990
24
. Este julgamento foi encarado como uma posição progressista da justiça suíça
em relação à adoção da JPU. De fato, em 2011, a Suíça emitiu uma nova lei que alterou
o seu Código Penal Federal, transferindo a acusação de crimes internacionais da justiça
penal militar para a justiça penal civil e, ao fazê-lo, previu a prática da JPU pelos tribunais
civis suíços
25
. No entanto, a lei de 2011 restringiu essa prática a certas condições:
1) estabelecimento de uma Unidade de Investigação de Crimes de Guerra (WCIU) como
um órgão federal de acordo com a alteração;
2) o acusado encontrava-se presente na Suíça no momento em que a queixa foi
registada;
3) julgamento de crimes de guerra cometidos num país onde haja conflito armado interno
ou internacional
26
.
Ao aplicar essas condições restritas, entre 20112019, a WCIU rejeitou mais de sessenta
queixas relacionadas com alegações de graves violações do direito penal e humanitário
internacional em várias regiões do mundo. A WCIU baseou as suas recusas no facto das
queixas o cumprirem uma das condições da lei de 2011, especialmente a segunda e a
terceira acima referidas
27
. Neste contexto, referimo-nos a um caso que durou anos e foi
continuamente recusado pela Suíça, o do general Khaled Nizar, ex-comandante do
exército argelino nos anos noventa. As autoridades suíças prenderam o General em 2011
sob a acusação de cometer graves violações contra civis na Argélia. Libertaram-no depois
de se comprometer a comparecer perante o tribunal numa data posterior, mas tal não
aconteceu
28
. O seu caso foi posteriormente apresentado em 20172018, mas o Ministério
Público Federal Suíço rejeitou a denúncia apresentada por ONGs, com a justificação de
falta de provas de uma situação de conflito armado interno ou internacional na Argélia
entre 19901999. Como tal, não tinham sido cometidos crimes de guerra
29
.
Outro caso está pendente na Justiça suíça há mais de seis anos, o de um senhor da
guerra civil da Libéria chamado Ali Kousiah, que foi acusado de crimes de guerra no seu
país durante o conflito armado interno na década de noventa. Após as investigações da
WCIU, incluindo a audição e documentação do depoimento de 25 testemunhas e muitas
vítimas, o veredicto estava previsto para abril de 2020, mas, devido à COVID-19, foi
adiado. No momento da redação deste artigo, o acusado ainda se encontra detido
30
. A
mesma situação ocorreu com o ex-Ministro do Interior da Gâmbia, Ousman Sonka, que
é acusado por ONGs e testemunhas de tortura e violação da esposa de um oponente
24
Leia-se o artigo 116 do Código Penal Militar Sço. www.parlement.ch. Para informação adicional sobre o
assunto veja-se: Garapan, Antonio (2002). «Des crimes qu’on ne peut ni punir ni pardonner», Paris: Odile
Jacob, p. 33. Bassiouni, Cherif (2001). «Universal Jurisdiction for International crimes: Historical
perspective and Contemporary Practice», 42:1 Virginia Journal of International Law 145.
25
La Fontaine, Fannie, nota supra 16, 135.
26
Para informação adicional sobre a alteração da lei penal suíça, veja-se: Universal Jurisdiction Law and
Practice in Switzerland, Trail International-Open Society, junho de 2019, p.14.
27
Garrod, Matthew, nota supra 11, 193.
28
Tribunal Criminal Federal, Sentença de 25 de julho de 2012, TPF BB.2011.140, para. 3.1.
29
Universal Jurisdiction Law and Practice in Switzerland, Trail International-Open Society, junho de 2019, pp.
17-37.
30
La Fontaine, Fannie, nota supra 16, 145. Nota infra 22, 36.
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político, para além do assassinato de 54 refugiados guineenses na mbia. Desde o início
do seu asilo na Suíça, o julgamento está em curso e o Tribunal Federal aprovou a sua
detenção contínua
31
.
A posição suíça sobre a JPU pode, portanto, ser resumida de forma sucinta. Apesar da
promulgação de uma nova lei que autoriza os tribunais civis suíços a exercerem a JPU
em vez dos tribunais militares, até à data não foi emitida uma única decisão judicial de
acordo com esta lei. Esta situação é verdadeiramente lamentável, pois os países vizinhos
da Suíça emitiram leis que permitem o exercício da JPU de forma restrita e muitos
veredictos de acordo com as suas leis nacionais
32
.
Em suma, apesar da frustração dos defensores dos direitos humanos e das vítimas nas
últimas duas décadas, o assunto avançou de forma limitada. O primeiro passo é que os
tribunais nacionais de vários países europeus emitiram sentenças de condenação e
inocência contra os acusados de crimes internacionais e, o mais importante, essas
sentenças basearam-se no princípio da jurisdição penal universal. Ou seja, atualmente o
princípio está a ser aplicado em novas condições que diferem das praticadas há duas
décadas.
2. Reino Unido: novos processos criminais com base na jurisdição
universal
Embora o exercício da JPU por parte dos tribunais britânicos tenha sofrido um grande
revés após o veredicto da mara dos Lordes sobre o caso Pinochet no final da década
de 1990, esse facto não silenciou as ONGs, os defensores dos direitos humanos e os
advogados de exigir a abolição das leis de amnistia para os acusados de crimes
internacionais, especialmente tortura ou crimes de guerra. Assim, procuraram a
utilização da JPU para enfrentar criminosos independente de sua posição política ou
militar no seu país, ou da nacionalidade das suas vítimas
33
. Aqui, observamos que um
grupo de ONGs na Grã-Bretanha entrou com uma queixa no Tribunal Central Criminal
(CCC) em Londres contra um refugiado afegão chamado Zardad Faryadi, que foi acusado
pela justiça britânica de ser um senhor da guerra
34
. Ele foi julgado pelo CCC, que o
absolveu de crimes de guerra, mas o considerou culpado de tortura no Afeganistão com
base nas declarações de algumas das suas vítimas e depoimentos de testemunhas. Foi
condenado a prisão perpétua com base na JPU de acordo com o Artigo 134 da Lei da
Justiça Penal Modificada de 1988
35
.
O veredicto no caso Zardad Faryadi encorajou as ONGs e as próprias vítimas a agirem
contra outro suspeito na Grã-Bretanha, um ex-coronel da polícia nepalesa chamado
Kumar Lama, que, enquanto trabalhava no Nepal antes do seu asilo no Reino Unido, foi
acusado de cometer tortura contra opositores civis do governo nepalês. Após apresentar
31
Para obter mais informações sobre sua detenção: www.swissinfo.ch/eng/ acedido pela última vez em 7 de
agosto de 2020.
32
Para mais informações sobre a rejeição do tribunal federal da queixa apresentada pelo Sr. Nait-Liman desde
1994. Veja-se: The Case of Nait-Liman V. Swiss, Federal Criminal Court, n 51357/07 Sentença de 15 de
março de 2018, p. 11.
33
Aplicação da Jurisdição Universal, nota supra 12, 16.
34
Garrod, Matthew, nota supra 5, 170: Treacy J R. v. Zardad, Processo nº T2203-7676, 7 de abril de 2004.
35
https://www.justiceinfo.net/fr/tribunaux/ acedido por última vez em 13-6-2020; Hovell, Devika, nota supra
12, 428.
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uma queixa contra ele em 2015 com base no artigo 134 da Lei da Justiça Penal
Modificada, a Unidade de Investigação de Crimes Terroristas da Polícia (PTCIU)
investigou a validade das alegações contra o Sr. Lama e levou as investigações ao CCC,
que não ficou convencido da validade das mesmas e o absolveu das acusações de
tortura
36
.
Num terceiro caso relativo a Reev Taylor, a ex-esposa liberiana do ex-presidente Charles
Taylor, que foi acusada em 2017 de tortura na Libéria entre 19902003, o CCC
condenou-a e sentenciou-a a prisão perpétua com base na JPU. Mais tarde, o Tribunal
de Apelação aceitou o recurso de Taylor e negou a decisão do tribunal inferior. O Tribunal
de Apelação justificou a sua decisão com base no fato de que o caso não tinha provas
suficientes de que o governo liberiano, liderado por Charles Taylor, tinha controlo real
das regiões que alegavam que ela tinha cometido tortura. Podemos também acrescentar
que ela não tinha posição oficial no governo do marido, e o Artigo 1 da Convenção sobre
Tortura de 1984 estipula que o autor deste crime deve estar numa posição oficial. De
acordo com o artigo 135 da Lei de Justiça Penal de 1988, o Procurador-Geral deveria ter
dado luz verde à acusação de Reev Taylor e, como não houve acordo, o Tribunal de
Apelação absolveu-a em julho de 2020
37
.
Apesar da deceção que decorreu da decisão do Tribunal, consideramos que o que é
importante é a mudança significativa que ocorreu na posição tradicional do sistema
judiciário britânico, ao rejeitar a JPU para confiar na JPU para indiciar,
independentemente de qualquer condenação ou absolvição. Esta nova abordagem no
Reino Unido permite que as organizações de direitos humanos apresentem mais queixas,
em particular de crimes de tortura cometidos fora da Grã-Bretanha, de acordo com a JPU
e o Artigo 134. A Grã-Bretanha é um dos países que requerem:
1) luz verde do Ministério Público;
2) a existência de uma obrigação legal internacional sobre o Reino Unido. Esta última
deu-se com a alteração da Lei de Justiça Penal de 1988, emitida para implementar
a Convenção sobre a Proibição da Tortura de 1984.
3. Suécia: uma nova experiência na aplicação da jurisdição universal
A Suécia conduziu julgamentos de pessoas acusadas de crimes internacionais de acordo
com a JPU com base na Lei de Crimes Globais de 2013. Esta lei abrange os crimes básicos
estipulados no Estatuto de Roma, do qual a Suécia é parte. O Código Penal Sueco foi
alterado para incluir a JPU contra autores de crimes internacionais e a sua aplicação não
exige a presença do acusado ou da vítima em território sueco, nem que o ato seja
considerado crime nos países dos quais a vítima ou acusado sejam nacionais.
36
R v. Kumar Lama, Case no. 2013/05698 (Tribunal Central Penal, Londres, agosto de 2016). Note-se que o
artigo 134/1 da Lei de Justiça Penal de 1988 estipulou (Um funcionário público ou pessoa agindo numa
capacidade oficial, qualquer que seja a sua nacionalidade, comete o delito de tortura se no Reino Unido ou
em outro lugar intencionalmente infligir dor severa ou sofrimento em alguém no desempenho ou suposto
desempenho das suas funções oficiais). Leia-se:
https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1988/33/section/134. Acedido por última vez em 6 de agosto de
2020. Shaghaji, Danial-Rezai, «Les crimes de Jus Cognes, le refus de l’immunité des hauts représentants
des Etats étrangers et l'exercice de la compétence universelle », (2015) 28 :2 Revue québécoise de droit
international 152.
37
Julgamento R v Reeves Taylor (Recorrente) no Supremo Tribunal - EWCA/Crime 2843, Julgamento de 13
de novembro de 2019, p. 6/49.
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Infelizmente, há países, especialmente no Oriente Médio e na África, que não cobrem
crimes internacionais nas suas leis penais, para evitar acusar os seus próprios
funcionários ou líderes. Ao fazê-lo, dá-se a necessidade de as autoridades concordarem
em apresentar uma queixa. Assim, a JPU está limitada pelas autoridades suecas
38
. Menos
de um ano após a implementação da Lei de Crimes Globais, queixas assentes na JPU
foram apresentadas aos tribunais suecos sobre o genocídio no Ruanda
39
. Em junho de
2014, o Tribunal Penal de Estocolmo condenou o ruandês Mbandida a prisão perpétua
pelo seu papel no genocídio ruandês durante o conflito armado naquele país. O Sr.
Mbandida liderou um grupo de pessoas para perpetrar o assassinato e sequestro étnico
da tribo tutsi. Mais tarde, o caso Taboro foi arquivado e também envolveu um cidadão
ruandês refugiado na Suécia. As ONGs apresentaram uma queixa acusando-o de
genocídio, violação e assassinato de civis no Ruanda em 1993, e exigiram que fosse
julgado com base na JPU. Após um julgamento de dois anos no Tribunal Penal de
Estocolmo, foi considerado culpado em junho de 2018 e condenado a prisão perpétua
por genocídio, mas absolvido das outras acusações
40
.
Também é possível observar uma posição mais progressista por parte da Justiça sueca
no julgamento de fevereiro de 2017 de um refugiado sírio que é ex-membro do Exército
Sírio Livre. As ONGs apresentaram alegações de crimes de guerra no conflito sírio, e ele
foi condenado pelo Tribunal Penal a prisão perpétua por matar sete soldados do exército
sírio em maio de 2012, no norte da Síria
41
.
4. França: a ampliação do exercício de jurisdição universal
Nos últimos vinte e cinco anos, a França assistiu a inúmeras denúncias contra acusados
de graves crimes internacionais na Antiga Jugoslávia e no Ruanda, durante as respetivas
guerras, além de graves violações de direitos humanos cometidas no Médio Oriente e no
Norte de África, bem como nos países subsaarianos. Algumas dessas queixas foram
encerradas pelo Procurador-Geral, enquanto outras foram examinadas por vários
tribunais penais franceses. Os crimes internacionais em questão o crimes de guerra,
crimes contra a humanidade, genocídio e tortura, que são as formas mais comuns
42
.
4.1. Leis específicas e restritas com inúmeras aplicações
A jurisdição universal foi regulamentada em França, começando pelas leis que ratificaram
certas convenções e duas leis emitidas em 1995 e 1996, respetivamente, em relação à
cooperação com o Tribunal Internacional para a Antiga Jugoslávia (TPIJ) e o Tribunal
38
Leia-se o e Report of Open Society (2020). «Universal Jurisdiction Law and Practice in Sweden», p.12,
acedido pela última vez em 13 de maio de 2020.
39
Ibid, p.11.
40
Bruggiamosca, Claire (2015). «Le génocide, une notion de droit international pénal dans le Code nal
Français: L’application au cas du procès de Pascal Simbikangwa» Revue International de Droit Pénal 12.
41
Han, Yuna (2017). «Rebirth of Universal Jurisdiction». Maio Ethics International affairs 1.
42
Hovell, Devika nota supra 12, 431. Garrod, Matthew, nota supra 6, 558 ; Aktypis, Spyridon, « L’adoption
du droit pénal français au statut e la CPI : État des lieux», (2008) 7 Revue de droits fondamentaux 24.
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Penal Internacional para o Ruanda (TPIR), e jurisdição para lidar com essas violações
noutras circunstâncias
43
.
Na aplicação da lei de 1996, os tribunais franceses emitiram decisões penais mistas em
três casos famosos relacionados com ex-funcionários ruandeses, Sampikanaawa, Barhari
e Naganzi, que foram condenados por genocídio durante o conflito armado no Ruanda.
Com exceção das decisões sobre os três casos acima referidos, a tendência judicial que
prevalece em França, infelizmente, tende a interromper a aplicação da JPU, apesar do
ruído dos órgãos de comunicação social que acompanham todas as reclamações
apresentadas ao Procurador-Geral da República Francesa
44
. É verdade que a França
ratificou uma lei em 1986, relativa à Convenção sobre a Proibição da Tortura de 1984,
no Artigo 5 (2), dando-lhe o mecanismo para o exercício da JPU. Infelizmente, a França
não a estendeu de forma a ser aplicada às leis de ratificação de outras convenções não
menos importantes do que a Convenção sobre a Tortura, como as quatro Convenções de
Genebra de 1949 e os seus protocolos de 1977
45
. Consequentemente, os tribunais
parecem ser incapazes de processar os acusados das graves violações estipuladas nas
referidas convenções
46
.
A intensidade das críticas à posição dos tribunais franceses não diminuiu o número de
queixas apresentadas. Durante muitos anos, a aplicação da JPU em França foi associada
a práticas negativas por parte dos órgãos do poder executivo, que procuraram impedir a
aplicação da JPU em várias queixas contra pessoas para as quais foram emitidos
mandados de detenção. Aqui, notamos a cumplicidade do governo com os acusados dos
crimes de tortura e assassinato de civis ao pedir-lhes que abandonassem o território
francês imediatamente. Foi o caso do general Khaled Nizar, ex-ministro da Defesa
argelino, acusado em mais de um país europeu de torturar civis. Da mesma forma, o
caso de Ould Day, que deixou França a conselho do governo francês e retornou ao seu
país, a Mauritânia, prometendo retornar no início de seu julgamento, mas que não o
fez
47
. O parlamento francês tem tentado, como resultado das sérias críticas que lhe são
apontadas, lidar com o aparente fracasso na sua abordagem legislativa, emitindo leis
que cooperam com o ICTJ em 1995, e o ICTR em 1996, em harmonia com a Convenção
sobre Tortura. No entanto, o acusado deve estar presente em território francês quando
uma queixa é apresentada
48
. Acreditamos que seja normal, especialmente no caso de
acusados de genocídio e crimes de guerra no Ruanda, receberem asilo humanitário na
Bélgica e em França e serem vistos pelas suas vítimas ou parentes nas ruas de Paris,
Bruxelas e outras cidades europeias.
Depois da França se tornar um dos primeiros países a ratificar o Estatuto de Roma
vinte anos, tomou medidas legislativas para acomodar as suas leis nacionais e os
estatutos dos tribunais. Na linha de frente encontrava-se a imunidade penal do
43
A aplicação da Jurisdição Universal na luta contra a impunidade. Relatório publicado pela União Europeia
em 2016, p. 16-17.
44
Bassiouni, Cherif, nota supra 14, 139.
45
Gallie Martin e Dumont Helene (2005). «La Poursuite de Dirigeants en exercice devant une juridiction
nationale pour des crimes internationaux: Le cas de la France», 18: 2 Revue québécoise de droit
international 52.
46
Kalek, Wolfgang, nota supra 11, 936.
47
Ibid, 937.
48
Florence Bellivier (2014). «Compétence universelle: De quoi nos gouvernants ont-ils peur?» 5 Observatoire
justice et sécurité 5.
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Presidente da República perante o tribunal, que a Constituição francesa modificou para
se adequar aos artigos 25 e 27 do Estatuto do TPI
49
.
4.2. Nova lei para exercer a jurisdição universal restrita
O parlamento francês promulgou uma nova lei que altera o Código Penal e os
procedimentos, adicionando novas cláusulas às duas leis. A Assembleia Nacional abordou
incidentalmente a JPU e as condições para o seu exercício em França. De acordo com a
alteração à lei de 2010, que inclui o aditamento do parágrafo 11 ao Artigo 689 da Lei de
Processo Penal, o artigo foi originalmente dedicado às condições para o exercício pelos
tribunais franceses da sua jurisdição de acordo com o estatuto do TPI. Quando estas
condições não se aplicam, os tribunais franceses têm duas opções: extraditar o acusado
para o seu país ou julgá-lo nos tribunais franceses de acordo com a JPU
50
. O artigo 689
(11) alterado especifica as condições para o exercio da JPU pelos tribunais franceses, a
principal das quais é que o acusado resida na República Francesa no momento da
apresentação da queixa
51
.
Este requisito é estritamente cumprido pelos tribunais franceses, que exigem que a
vítima confirme a presença do acusado em território francês, com base nas leis do TPIJ
e do TPIR acima referidas. Esta condição foi fortemente criticada em França e, com a
promulgação da lei de 2010, tem havido debate sobre a interpretação do que se entende
por "território francês" e se isso significa residência habitual ou em trânsito. Ao extrapolar
a posição do Procurador-Geral francês em numerosas queixas dirigidas contra
estrangeiros acusados de crimes estipulados no Estatuto de Roma, observa-se que não
foram emitidos mandados de detenção com base no facto de o arguido não residir
realmente na República e encontrar-se apenas de passagem ou de visita.
Por outro lado, para os perpetradores de tortura, genocídio e outras violações graves da
Convenção de Genebra ou crimes contra a humanidade, de acordo com as leis de 1995-
1996, ou mesmo de acordo com a lei que ratifica a Convenção sobre a Tortura, a mera
passagem por territórios franceses confere o direito de emitir um mandado de detenção.
O resultado é que os franceses estão a empregar duas medidas diferentes para combater
os crimes
52
. Alguns arguidos foram julgados em tribunais franceses e condenados, por
vezes, a prio perpétua, enquanto outros conseguiram escapar à justiça. A tendência
49
Bassiouni, Cherif, nota supra 14, 84.
50
A aplicação da Jurisdição Universal na luta contra a impunidade - Relatório publicado pela União Europeia
em 2016, p. 18.
51
Ascensio, Hervé (2010). «Une entrée mesurée dans la modernité du droit international pénal: À propos de
la loi du 9 août 2010», 13 La Semaine Juridique 7. Veja-se o caso do oficial tunisiano Khalid bin Saeed
acusado pela justiça francesa de cometer crime de tortura contra uma mulher tunisiana quando ela visitou
Túnis em 1996. Posteriormente trabalhou em França no Consulado em Lyon. As ONGs denunciaram-no mas
ele infelizmente voltou para o seu país. Em 2008, o Tribunal de Estrasburgo emitiu uma sentença acusando-
o de cometer tortura e condenando-o a 8 anos de prisão à revelia. A sentença do tribunal baseou-se no
artigo 689/2. Portanto, quando a denúncia de ONGs foi apresentada, ele encontrava-se em França e tinha
residência legal nesse país, o que significa que a prática da jurisdição universal neste caso se baseou na
condição de residência real para o autor do crime, independentemente da sua imunidade diplomática, de
acordo com a Convenção Viena de 1960. Veja-se Khaled Ben Saïd, Cour d’assises de Meurthe et Moselle
(Nancy), 24 de setembro 2010, 73/2010. Veja-se igualmente o caso the Disappeared of Brazzaville Beach
Case in 2002, onde o processo criminal foi iniciado contra suspeitos que se encontravam em França. Kalek,
Wolfgang, nota supra 11, 936-937.
52
Mathe, Francoise (2014). «la défense devant les juridictions françaises saisies au titre de la compétence
universelle», 4 :4 Les cahiers de la droit, 594 ss.
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geral em França naquela época era a aceitação do exercício da JPU. A França não exige
que a implementação da JPU se baseie na existência de um crime internacional, mas sim
numa lei nacional não dependente de uma obrigação internacional. O exercício da JPU
por tribunais franceses exigiu, portanto, várias alterações ao sistema jurídico francês,
em particular, a alteração do Código de Processo Penal e do Código Penal, a fim de
considerar os desenvolvimentos rápidos associados aos tribunais ad hoc para a Antiga
Jugoslávia e Ruanda, e adesão ao TPI. Além de expandir a aplicação da JPU nos tribunais
franceses
53
. O Artigo 689 (11) estipula uma nova condição: para que o arguido possa ser
processado em França, não pode ter sido julgado pelo ato fora de França. Esta condição
é classificada como processual e o objetiva. O objetivo da aplicação da JPU é que o
acusado seja julgado e punido. É natural que não sejam punidos duas vezes pelo mesmo
ato por beneficiarem das leis de amnistia que muitos países têm promulgado em relação
aos crimes internacionais, especialmente os de líderes militares e políticos
54
.
A última condição para a aplicação da JPU diz respeito à decisão do Ministério Público de
iniciar procedimentos penais apenas em relação aos crimes previstos no Estatuto de
Roma. Exclui crimes abrangidos pelo princípio da JPU de acordo com as leis de 1995-
1996 ou as convenções das quais a França é parte, de acordo com a lei de ratificação
55
.
4.3. O conflito na Síria: uma oportunidade valiosa para uma prática
importante
A UE impôs sanções a funcionários políticos e militares do regime sírio e foram formados
comités internacionais para verificar graves violações do direito humanitário na Síria. A
Lei Caeser, emitida pela mara dos Representantes dos Estados Unidos, é baseada no
consenso de ONGs europeias e americanas para os direitos humanos. Descreve atos
cometidos na Síria desde 2011, como crimes de guerra e crimes contra a humanidade
levados a cabo pelo regime de Assad, grupos de oposição e o ISIS. Esses fatores
incentivaram as ONGs francesas a apresentar queixas, acusando funcionários políticos,
de segurança e militares do regime de tortura e crimes de guerra contra civis sírios,
enquanto membros dos grupos de oposição foram acusados de crimes contra o exército
sírio e milícias associadas
56
. Desde 2016, as organizações de direitos humanos
apresentaram inúmeras queixas contra personalidades do regime sírio. Após
investigações ordenadas pelo Procurador-Geral francês, mandados de prisão
internacionais foram emitidos em novembro de 201 pelo juiz de instrução em Paris contra
três figuras importantes de instituições de segurança sírias. Estes são os primeiros
mandados em França relativos a violações graves na Síria. O primeiro mandado dizia
respeito a Ali Mamlouk, diretor dos serviços secreto sírios e chefe do Conselho de
Segurança Nacional da Síria, que incorpora todos os serviços de segurança desse país.
Mamlouk foi acusado de tortura e de crimes de desaparecimento forçado contra cidadãos
53
A aplicação da Jurisdição Universal nota supra 12, 18. Para informação adicional sobre Tribunais franceses,
veja-se: Universal Jurisdiction Law and Practice in France, Trail International-Open Society, fevereiro de
2019, p. 4.
54
Ibid p.19.
55
Scharf, Michael (2012). «Universal Jurisdiction and the Crime of Aggression», 53:2 Harvard Journal of
International Law 364. Leia-se Mathe, Francoise, nota supra 44, 595.
56
Universal Jurisdiction Law and Practice in France, Trail International-Open Society, fevereiro de 2019, p. 9.
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europeus, como os alemães Mazen e Patrick Dabbagh em novembro de 2013
57
. O
segundo foi um mandado de detenção internacional emitido contra Jamil Hassan, Diretor
da Força Aérea da Síria, acusado de crimes contra a humanidade, principalmente tortura
contra civis sírios, com base numa denúncia apresentada por refugiados sírios residentes
no Reno francês. O terceiro mandado acusava o general Abd al-Salam Mahmoud, diretor
dos Serviços Secretos da Força Aérea em Bab Touma, perto de Damasco, de torturar
civis sírios durante manifestações pacíficas naquele local. Apesar da importância dos três
mandados, é dececionante que os acusados estejam na Síria e, portanto, será quase
impossível que se desloquem a França. A presença deles num país da União Europeia é
mais provel, pois Ali Mamlouk esteve em Roma para se encontrar com autoridades de
segurança italianas, mas depois regressou à Síria. Neste caso, as críticas dirigiram-se à
Itália por permitir que ele partisse, apesar do mandado de prisão francês, que todos os
países da UE se comprometeram a respeitar
58
. No entanto, permanece a questão de
saber se as decisões judiciais dos tribunais franceses pode ser baseadas na PJU à revelia,
e de fato ainda nenhuma foi aplicada. Os tribunais franceses sublinharam a condição de
residência efetiva em França do acusado para poder implementar a PJU.
Consequentemente, acreditamos que não é suficiente emitir mandados de prisão com
base no depoimento das timas e queixas das timas e das suas famílias. Em vez disso,
o que é necessário é prosseguir com os procedimentos para um julgamento à revelia, e
assim fazer cumprir a lei de 2010 que estabelece a PJU, especialmente considerando que
a Síria não é membro do TPI e não se espera que o seja num futuro próximo.
5. Jurisdição universal: prática alemã em curso
Ao contrário da abordagem neutra, senão passiva, da política externa alemã em relação
às questões internacionais, o legislador e o sistema judiciário alemães têm uma
abordagem muito positiva e liberal em relação à adoção legislativa e ao exercício da JPU.
Essa tendência está relacionada com a emissão de decisões judiciais pelo sistema
judiciário alemão com base na JPU, seguida pela promulgação de uma lei que transfere
os crimes estipulados no Estatuto de Roma para o sistema jurídico interno. Esta
transferência justifica a aplicação da JPU em relação aos autores de tais crimes. Os
conflitos armados no Médio Oriente e as vagas associadas de requerentes de asilo na
Alemanha alertaram as autoridades alemãs para o fato de muitos desses requerentes de
asilo serem acusados de tortura, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Esta
constatação fez aumentar a eficácia da adoção judicial da jurisdição universal
59
.
5.1. Comparência de perpetradores de crimes internacionais perante
os tribunais alemães
O reconhecimento alemão da JPU data da década de noventa, quando os tribunais
alemães fizeram acusações de genocídio e crimes contra a humanidade contra pessoas
que fugiam do conflito na ex-Jugoslávia e no Ruanda. Nessa época, o número de
57
Vincent, Elise (2016). Une plainte contre Damas déposée à Paris pour crimes contre l’humanité, le monde,
24 de outubro. www.lemonde.fr, acedido por última vez em 10 de agosto de 2020. Nota infra 50, 22.
58
Vincent, Elise (2018). Trois dignitaires syriens visés par des mandats d’arrêt émis par la justice française,
le monde, 5 de novembro. www.lemonde.fr, l acedido por última vez em 12 de agosto de 2020.
59
Aplicação da Jurisdição Universal nota supra 12, 18.
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julgamentos foi de apenas quatro. Os tribunais alemães aplicaram a JPU de acordo com
o Artigo 6 (1-8) do Código Penal Alemão, que estipula a existência de uma convenção
internacional da qual a Alemanha é parte, e inclui a criminalização dos atos acima
mencionados. No entanto, o sistema judiciário alemão acrescentou uma nova condição
relacionada com a existência de um vínculo entre o crime e a Alemanha; posteriormente,
o Supremo Tribunal Federal anulou essa exigência no caso Sokolovic, afirmando que a
obrigação internacional da convenção é suficiente para obrigar os tribunais alemães a
acusar os perpetradores de crimes internacionais
60
.
A primeira convenção amplamente aceite da JPU durante este período foi a Convenção
para o Genocídio de 1948, embora nenhum julgamento tenha sido feito em relação a
crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Entre os casos mais proeminentes, o
tribunal alemão em Dusseldorf em 1997 considerou o caso Nikola Jorgic, um sérvio
bósnio que residia em Dusseldorf com a família e acusado de genocídio contra civis
muçulmanos na Bósnia e Herzegovina durante o conflito armado nesse país. O tribunal
alemão estabeleceu a JPU de acordo com o Artigo 220a do Código Penal Alemão sobre a
Criminalização do Genocídio, que citou o texto do Artigo 2 da Convenção de Genocídio
de 1948. Além do Artigo 6 (1) do Código Penal Alemão, o Tribunal presumiu que havia
vários vínculos entre os crimes cometidos e a Alemanha, principalmente: a intervenção
humanitária e militar alena Bósnia e o fato de o acusado e a família residirem na
Alemanha. Ele foi condenado a prisão perpétua e morreu em 2014 na prisão
61
.
O segundo caso é o de Đajić, um soldado sérvio-bósnio acusado de assassinar vinte e
dois muçulmanos bósnios em junho de 1992. Depois de fugir para a Alemanha e pedir
asilo, as ONGs apresentaram uma queixa em nome das vítimas e ele foi julgado no
Tribunal Criminal da Baviera, que o condenou a cinco anos de prio pelo assassinato de
civis bósnios. No entanto, o tribunal não conseguiu estabelecer a intenção especial (dolo
especial) exigida para o crime de genocídio, que é a intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo protegido (ou seja, por motivos étnicos, religiosos, nacionais, raciais ou
linguísticos). A condenação de Đajić foi baseada na JPU e no Artigo 2 da Quarta
Convenção de Genebra de 1949, que protege civis durante um conflito armado
internacional, e é uma descrição dada ao conflito entre as Repúblicas da Bósnia e
Herzegovina e da Sérvia
62
.
O mesmo Tribunal Penal da Baviera também conseguiu condenar outro líder sérvio,
Kušljić, por cometer crimes de limpeza étnica contra muçulmanos na Bósnia, com base
na JPU, conforme estipulado no Artigo 6 do Código Penal Alemão. A Alemanha está
internacionalmente comprometida com a Convenção sobre o Genocídio. Kušljić foi
condenado a prisão perpétua. É importante sublinhar que o Supremo Tribunal Federal
rejeitou o seu recurso a contestar a JPU do tribunal
63
.
Por fim, referimos o caso de Sokolovic, um sérvio bósnio condenado pelo Tribunal de
Dusseldorf a nove anos de prisão por genocídio contra muçulmanos bósnios em 1992. A
60
Bassiouni, Cherif, nota supra 14, 143.
61
Ryngaert, Cedric (2008). «Universal Criminal Jurisdiction », (2008) Criminal Law Forum 354. Informação
adicional: Gurda Veded (2015). «The Prosecution of Genocide in Bosnia before International Domestic and
National Courts of other Jurisdictions», julho Research Gate 39.
62
Stegmiller, Ignaz (2008). «German Research on International Criminal Law», 19 Criminal Law Forum 186.
63
Shaghaji, Danial (2015). «L’exercice de la compétence universelle en tant qu’obligation Erga Omnes a fin
de réprimer les crimes de Jus Cognes», Research Gate 3.
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importância deste caso transparece na decisão do Tribunal Federal Alemão, que
modificou a tendência do sistema judiciário alemão de recusar a condição de presença
de vínculo entre o autor do crime e a Alemanha
64
. Posteriormente, esta decio teve um
impacto positivo no curso das queixas apresentadas aos tribunais alemães, embora nem
todas tenham sido aplicadas, como a queixa contra o ex-secretário de Defesa dos Estados
Unidos, Donald Rumsfeld, e outra contra o ex-ministro do Interior do Uzbequistão
Almatov
65
.
5.2. Jurisdição universal na lei sobre crimes contra o direito
internacional
Como parte do seu compromisso com o Estatuto de Roma estabelecido pelo TPI, o
parlamento federal alemão promulgou a chamada Lei de Crimes contra o Direito
Internacional em 2002. Sob esta lei, os crimes estipulados no Estatuto de Roma foram
combinados com numerosas alterações na distribuição de tipos de crimes: genocídio,
crimes contra a humanidade, crimes de guerra, agressão e violações graves estipuladas
nas quatro Convenções de Genebra e nos seus dois protocolos opcionais de 1977. O
artigo 1 da Lei de Crimes contra o Direito Internacional estipula a jurisdição do sistema
judiciário alemão para processar esses crimes, descritos como sendo cometidos fora da
Alemanha e sem conexão com o país
66
.
A aplicação aledesta lei coincidiu com o conflito no Afeganistão e no Iraque e, em
2006, organizações alemãs de direitos humanos apresentaram queixas em nome de
vítimas civis contra oficiais políticos e militares americanos, incluindo uma queixa em
nome de onze detidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, vítimas de tortura. O ex-
secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, foi acusado de cometer
crimes de tortura. A denúncia foi baseada no princípio da JPU estipulado na lei de 2002,
pois a tortura de civis detidos durante a ocupação americana do Iraque é classificada
como crime contra o direito internacional
67
.
Porém, em abril de 2007, o Ministério Público Federal indeferiu a queixa contra Rumsfeld,
afirmando que não havia vínculo entre a Alemanha e o crime cometido e que o acusado
não havia entrado em solo alemão no momento em que a queixa foi apresentada. Aqui,
notamos que o Supremo Tribunal Federal, na sua decisão judicial no caso Sokolovic,
aboliu a condição de associação acima referida, portanto, acreditamos que o fundamento
para a decisão judicial estava incorreto. Gostaríamos também de salientar que os
tribunais alemães examinaram muitas queixas relacionadas com a aplicação da JPU e
emitiram decisões à revelia contra os perpetradores acusados
68
. A mesma recusa repetiu-
se noutro caso apresentado em 2005 contra outro político estrangeiro, o ex-ministro do
Interior uzbeque Almatov, que foi acusado por refugiados uzbeques na Alemanha de
cometer crimes contra a humanidade (tortura) contra civis no Uzbequistão. Infelizmente,
64
Gurda Veded, nota supra 53, 38.
65
Masse, Michel, nota supra 11, 446.
66
Gurda Veded, nota supra 53, 39.
67
Ambos, Kai (2007). «International Core Crimes, Universal Jurisdiction and § 153F of the German Procedure
Code: A Commentary on the Decision of the Federal Prosecutor General and the Stuttgart Higher Regional
Court in the Abu Gharib/Rumsfeld Case», 58 Criminal Law Forum 44. Also read: The Legal Framework for
Universal Jurisdiction in Germany. Relatório publicado pela HRW em 2014, pp. 5-7.
68
La Fontaine, Fannie, nota supra 16, 136.
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o Procurador alemão rejeitou as queixas por duas razões: os atos de tortura em questão
foram cometidos antes da entrada em vigor da lei de 2002 na Alemanha; e não havia
conexão entre o crime e a Alemanha.
Acreditamos que a posição do sistema judiciário alemão sobre essas duas queixas
assentou em razões políticas não declaradas (ou seja, pressão por parte de grandes
potências, como os Estados Unidos, e o desenvolvimento de relações com o
Uzbequistão), bem como em razões legais declaradas. Noutro caso, o Tribunal de
Frankfurt emitiu um veredicto de culpado contra um ruandês residente na Alemanha
chamado Unsevor [sic], um ex-prefeito do Ruanda acusado de exterminar mais de 3.700
civis da minoria tutsi em 1993. Foi condenado em 2015 e condenado a prisão perpétua.
O Tribunal de Frankfurt aplicou o Artigo 220a do Código Penal Alemão relativamente ao
genocídio, visto que o ato cometido ocorreu antes da promulgação da lei de 2002
69
.
5.3. Os novos refugiados da Alemanha: uma lista incontável de
pessoas acusadas
O conflito no Médio Oriente na última década fez com que milhões de refugiados fugissem
para a Europa, geralmente para a Alemanha. Entre os refugiados, classificados como um
dos grupos mais vulneráveis do mundo, encontramos vítimas de crimes de guerra e
crimes contra a humanidade cometidos nos seus países pelos regimes políticos que os
governam, ou por outros grupos armados e/ou terroristas como o Al Qaeda, ISIS ou
Hezbollah
70
. Entre o grupo mais amplo de refugiados, encontram-se oficiais e militares
desses últimos grupos que cometeram crimes de guerra, crimes contra a humanidade e
até extermínio. A rao da sua fuga para a Alemanha é por temerem pelas suas vidas ou
têm esperança de uma nova vida sem pensar nos crimes que cometeram. Em resposta
a esses novos desenvolvimentos, o governo alemão estabeleceu uma Unidade de
Investigação sobre crimes de guerra cometidos na Síria, Iraque e Líbia. A partir de 2011,
esta unidade obteve informações sobre 2.800 crimes de guerra e crimes contra a
humanidade, e depoimentos de mais de 200 testemunhas dessas violações
71
.
As ONGs na Alemanha e na Síria ajudaram a documentar as informações e testemunhos
das vítimas e dos seus parentes. Mais de dez queixas foram apresentadas ao Ministério
Público Federal na Alemanha, com acusações de tortura, crimes contra a humanidade e
crimes de guerra na Síria, principalmente por membros do regime sírio e, em menor
grau, pela oposição ria e o ISIS. Essas queixas referem-se a dois réus que já estão em
solo alemão, que têm ou obterão o estatuto de refugiados. Outras queixas foram
apresentadas contra funcionários do regime na Síria sob o princípio da JPU à revelia.
Doze dessas queixas foram arquivadas
72
.
No topo dos casos que estão a ser considerados pelo sistema judicial criminal alemão
encontra-se o do refugiado Muhammad Khalaf, que obteve o estatuto de refugiado em
2015. As organizações de direitos humanos acusaram-no da prática de crimes de guerra
na Síria em 2012-2013, através da sua adesão ao Exército Sírio Livre, contra membros
69
Hovell, Devika, nota supra 15, 448.
70
Kroker, Patrick (2018). «Syrian Torture Investigations in Germany and Beyond», 16 Journal of International
Criminal Justice, 167.
71
Han, Yuna, nota supra 30, 1.
72
Hovell, Devika, nota supra 15, 448.
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da milícia leais ao regime sírio em Idleb. Foi preso em junho de 2018, e o caso foi
encaminhado ao Tribunal Criminal de Estugarda. O tribunal assentou as acusações contra
ele no Artigo 8 (13) dos Crimes contra o Direito Internacional de 2002, que se baseia
no Artigo 1 da mesma lei que permite ao judiciário alemão exercer a JPU no caso do
crime de guerra, crime contra a humanidade, ou genocídio ter sido cometido fora da
Alemanha por não-alemães. A presença do arguido na Alemanha e a sua residência legal
nesse país impediram a defesa de alegar inexistência de vínculo entre o crime e a
Alemanha. Além disso, a presença da WCIU na ria, Iraque e Líbia estabeleceu uma
associação entre a Alemanha e esses três países
73
.
O Tribunal de Estugarda considerou-o culpado e condenou-o a quatro anos e meio de
prisão em abril de 2019, justificando a redução da sentença porque ele se tinha integrado
na sociedade alemã e fora submetido a grande pressão psicológica por causa da guerra
na Síria. Além disso, ele não tinha cometido qualquer violação legal ou penal na Alemanha
desde sua chegada em 2015. Recentemente, em 25 de fevereiro de 2021, o Tribunal
Regional Superior de Koblenz condenou à prisão de quatro anos e meio Iyad Al-Ghareib,
um ex-oficial rio da polícia secreta que foi preso pela polícia alemã com base num
mandado de detenção. O Tribunal de Koblenz considerou-o culpado de atos de tortura
cometidos como crime contra a humanidade contra mais de quatro mil pessoas e pela
morte de 58 detidos na sua unidade militar na Síria
74
.
Relativamente às queixas que ainda estão a ser analisadas pelo Procurador Federal
alemão, estão relacionadas com alguns funcionários sírios acusados de tortura de
cidadãos sírio-alemães ou sírios que procuraram refúgio na Alemanha. Aqui, referimo-
nos ao mandado de detenção de 2009 emitido pelo Ministério Público alemão contra
Jamil Al-Hassan, Diretor dos Serviços Secretos da Força Aérea (o pior Gabinete de
Serviços Secretos da Síria em termos de cometer violações, mesmo antes do início dos
distúrbios na Síria em 2011). Desde 2011, Jamil Al-Hassan foi acusado pelo pelos EUA e
pela Europa de graves violações contra civis sírios. Em março de 2017, organizações
europeias de direitos humanos apresentaram queixas ao Ministério blico alemão em
nome de sete vítimas sírias que acusaram Jamil Al-Hassan de tortura entre 20112015.
Destes sete, três vítimas alemãs de origem síria são Mazen Dabbagh, o seu filho Patrick
e Abdel Moneim Hamdo. Num desenvolvimento significativo, o Procurador alemão emitiu
um mandado de detenção internacional contra Jamil Al-Hassan, com base na JPU e em
conformidade com os Crimes contra o Direito Internacional de 2002, em particular o
Artigo 7 (1-5), e o Artigo 1 dos Crimes contra o Direito Internacional
75
. Aentão, o
sistema judiciário alemão não tinha feito um julgamento à revelia, e não se sabe o que
causou esse atraso, uma vez que as investigações da WCIU alemã e do Ministério Público
tinham sido concluídas. No entanto, enquanto Jamil Hassan e outros permanecerem no
poder no seu país, a justiça penal continuará a ser adiada. É certo que a Síria não o
extraditará para a Alemanha ou França, os dois países que emitiram mandados de
detenção internacionais contra ele e outros, e assim aos parentes das suas vítimas só
lhes resta esperar.
73
Kroker, Patrick, nota supra 64, 168.
74
www.lemonde.fr, acedido por última vez em 25 de março de 2021.
75
Weider, Thomas (2019). Le monde, crimes contre l’humanité: trois Syriens arrêtés en France et en
Allemagne, 14 de fevereiro de 2019. www.lemonde.fr, último acesso em 20 de agosto de 2020.
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Conclusão
Existem 113 países no mundo que reconhecem a JPU nas suas leis nacionais, mas são
poucos os que realmente aplicaram essa jurisdição. A JPU não é aplicada na Ásia e foi
rejeitada em África pela União Africana porque, de acordo com a União, visa apenas
deres africanos
76
. Na América Central e do Sul, até o momento não se sabe se foi
aplicada em algum lugar desses continentes, apesar das tentativas limitadas em países
como Argentina e México. Além disso, nos EUA tem sido aplicado de forma igualmente
limitada e seletiva, não tendo, portanto, sido estabelecido como um princípio jurídico
nesses países. Quanto à Europa, observamos que os países da Europa Ocidental foram
os primeiros a aplicar essa jurisdição mais de vinte e cinco anos. No entanto, este
pedido era mais semelhante ao que pode ser chamado de jurisdição complementar, pois
todos os réus condenados perante os tribunais europeus sob a JPU durante os anos
noventa e no início deste século eram de países específicos: Ruanda, a Antiga Jugoslávia
e a República Democrática do Congo. Além da criminalização internacional dos atos do
perpetrador, podemos dizer que também houve alguma demonização dos acusados
nesses países. Dois fatores principais forneceram cobertura política aos governos e,
posteriormente, aos tribunais europeus para emitir sentenças penais, algumas severas e
outras moderadas, contra os autores de crimes de guerra, crimes contra a humanidade
e genocídio. Pedidos subsequentes para a aplicação da JPU nos próprios países da Europa
Ocidental foram, no entanto, destinadas a altos funcionários políticos e militares dos
principais países, colidindo assim com o veto governamental tácito e resultando em
mandados de detenção limitados que serão depois cancelados, e incapacidade de levar
qualquer um desses funcionários a julgamento, mesmo à revelia. Insatisfeitos com os
procedimentos anteriores, os governos, em vez disso, alteraram as leis nacionais
relacionadas com a aplicação da JPU de forma a torná-la mais restritiva, senão ineficaz,
em alguns países. É verdade que certas justificações jurídicas para suspender a aplicação
da JPU plena permanecem válidas eo podem ser negligenciadas. Por exemplo, no que
diz respeito à soberania do Estado, a imunidade dos chefes de estado e funcionários de
topo constitui um obstáculo que o Tribunal Internacional de Justiça ainda não superou
no seu compromisso entre a JPU e a imunidade de um ministro dos negócios estrangeiros
de um país africano. Além disso, as leis de isenção de punições também são legisladas
para proteger funcionários seniores e líderes acusados de crimes internacionais. No
entanto, essas justificações não foram consideradas nem na posição da lgica sobre o
mandado de detenção de um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da República
Democrática do Congo, e a questão chegou ao Tribunal Internacional de Justiça, nem na
primeira fase do caso de Hissène Habré. Atualmente, alguns países continuam a ir além
dessas justificações legais e emitem mandados de detenção de funcionários seniores que
ainda estão no poder nos seus países. O exemplo óbvio é a Síria. É verdade que punir
um criminoso é melhor do que deixá-lo ficar impune e, portanto, as graves violações na
Síria não podem ser toleradas, independentemente da identidade ou posição política ou
militar do perpetrador. Por outro lado, alguns países europeus alteraram as suas
legislações nacionais para revogar o princípio da JPU à revelia, pelo que a questão que
se coloca é como o seu regresso pode ser legalmente explicado quando um dos acusados
76
Garrod, Matthew, nota supra 6, 559.
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é entregue. Acreditamos que a retomada do que chamamos jurisdição complementar é
o que justifica a emissão de mandados internacionais contra membros do regime sírio,
principalmente porque esses funcionários estão sujeitos a sanções da UE e dos EUA. São
também alvo de clara denúncia de crimes de guerra por parte das comissões de
investigação das Nações Unidas constituídas para o efeito. No entanto, poderíamos
argumentar que os julgamentos em países europeus de réus sírios e outros refugiados
são um passo positivo e importante para obter justiça para as vítimas de graves violações
na Síria e noutros lugares.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
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LES PRATIQUES DE L'ÉTAT D'URGENCE ET LES DROITS DE L'HOMME:
LE CAS D'EXPULSIONS MASSIVES DES FONCTIONNAIRES PUBLIQUES
EN TURQUIE
ÖMER BEDIR
omerbedir@yahoo.com
Il est titulaire d'un diplôme de maitrise en Administration Publique de l'Université de Marmara,
Istanbul. Il a obtenu un Diplôme d'Etudes Approfondies (Master) en UE et Science Politique de
l'IEP de Strasbourg. Il a éadmis à l'E.N.A. (Ecole Nationale d'Administration) où il a suivi le
programme de "Cycle International Longue". Il a fait son doctorat en Histoire Moderne de Turquie
à l'Université de Hacettepe, Ankara. Il a travaillé entre 2005 et 2016 en tant que diplomate de
carrière au Ministère des Affaires Etrangères de Turquie. Il a servi dans plusieurs missions
diplomatiques à l'étranger. Il est actuellement un chercheur indépendant spécialisé dans les
relations internationales et les questions des droits de l'homme (Turquie).
Résumé
La déclaration d'état d'urgence est un moyen juridique utilipar les États pour surmonter
des situations extraordinaires. Dans le cadre d'état d'urgence, d'un part, les compétences des
gouvernements sont accrues et, d'autre part, les droits et libertés des individus sont limités
ou bien suspendus temporairement. L'objectif principal de l'état d'urgence est de fournir, pour
mettre fin aux situations extraordinaires dans les plus brefs délais possibles, les moyens
nécessaires au gouvernement et à la bureaucratie. Les gouvernements devraient utiliser les
compétences extraordinaires d'une manière juste et équitable. Les compétences reconnues
par l'état d'urgence ne devraient pas être utilisées à des fins politiques tel qu'intimider les
opposants. me si certains droits et libertés peuvent être limités ou bien suspendus, les
droits fondamentaux ne peuvent pas être violés sous prétexte de l'état d'urgence. En plus,
les pratiques d'état d'urgence devraient se limiter aux faits et aux cas qui l'ont engendré. Cet
article étudie l'équilibre entre l'état d'urgence et le respect des droits de l'homme dans le cas
particulier de la Turquie qui a déclaré l'état d'urgence juste après la tentative de coup d'État
avorté de juillet 2016. À cet égard, une attention particulière sera consacrée aux licenciements
massifs des fonctionnaires publiques par des décrets-lois extraordinaires pendant l'état
d'urgence et à la conformité de ces licenciements avec la Convention Européenne des Droits
de l'Homme.
Mots-clés
Droits de l'homme, état d'urgence, Turquie, Cour Européenne des Droits de l'Homme,
Expulsion des fonctionnaires publiques
Comment citer cet article
Bedir, Ömer (2021). Les pratiques de l'état d'urgence et les droits de l'Homme: Le cas
d'expulsions massives des fonctionnaires publiques en Turquie. Janus.net, e-journal of
international relations. Vol12, Nº. 1, Mai-Octobre 2021. Consulté [en ligne] à la date de la
dernière consultation, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.12
Article reçu le 22 Décembre 2020 et accepté pour publication le 10 Mars 2021
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Mai-Octobre 2021), pp. 218-246
Les pratiques de l’état d’urgence et les droits de l’Homme: le cas d’expulsions massives des
fonctionnaires publiques en Turquie
Ömer Bedir
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LES PRATIQUES DE L'ÉTAT D'URGENCE ET LES DROITS DE
L'HOMME: LE CAS D'EXPULSIONS MASSIVES DES
FONCTIONNAIRES PUBLIQUES EN TURQUIE
ÖMER BEDIR
Introduction
L'état d'urgence a été déclaré en Turquie après la tentative de coup d'état du 15 juillet
2016 et a duré pendant deux années sans interruption, jusqu'à 19 juillet 2018. L'objectif
de l'état d'urgence, donc de la limitation de l'utilisation de certains droits pour une période
déterminée, est de faciliter et d'accélérer le processus de retour au normal. Mais s'il n'est
pas employé d'une façon juste, l'état d'urgence risque de servir comme un moyen pour
suspendre les libertés et les droits, donc d'empêcher le retour au "normal".
Cet article a pour objectif d'étudier l'équilibre entre les pratiques de l'état d'urgence et le
respect des droits de l'homme dans le cas particulier d'expulsions massives des
fonctionnaires publiques en Turquie. Dans la première partie de cet article, la tentative
de coup d'état et le processus de la claration d'état d'urgence seront expliqués. Dans
la deuxième partie, la cision de la Cour Constitutionnelle turque relative aux décrets-
lois extraordinaires (DLE) issus dans la période d'état d'urgence et les conséquences de
cette décision seront traitées. Dans la troisième partie, les expulsions massives des
fonctionnaires publiques par les DLE sous le régime d'état d'urgence et la compatibilité
de ces pratiques avec la Convention Européenne des Droits de l'Homme (CEDH) seront
discutées. Dans la quatrième partie, les positions des acteurs internes et externes face
aux pratiques de l'état d'urgence et aux expulsions massives des fonctionnaires seront
examinées. Dernièrement, d'un part les conséquences des pratiques de ltat d'urgence
sur les droits de l'homme et la démocratie, et d'autre part les effets de cette période
d'état d'urgence au niveau individuel, social et systémique seront analysés.
1. La tentative de coup d'État et la déclaration de l'état d'urgence
Dans les temps et des circonstances extraordinaires, des règles juridiques "ordinaires"
peuvent rester insuffisantes pour répondre aux problèmes pressants et urgents. Dans
ces situations exceptionnelles, des règles juridiques moins contraignantes pour le pouvoir
exécutif, le gouvernement et la bureaucratie dan son ensemble, sont considérées comme
une nécessité, voire une exigence (Robert, 1990: 751-752). Dans ce sens, la déclaration
d'état d'urgence est l'une des pratiques juridiques la plus employée par les
gouvernements pour surmonter les moments difficiles dans lequel se trouve un pays.
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L'état d'urgence permet aux gouvernements de limiter et parfois de suspendre, pour une
certaine période bien définie, l'utilisation de certains droits au nom du bientre de la
nation. L'intérêt néral remporte sur l'intérêt des particuliers et les cas extraordinaires
rendent légitime la limitation de jouissance de certains droits
1
.
Les adeptes de FETÖ (Organisation Terroriste Fethullahiste)
2
infiltrés dans l'armée turque
depuis des décennies ont essayé de réaliser un coup d'état le 15 juillet 2016. A la suite
de ce coup raté, le gouvernement d'AKP (Parti de Justice et de Développement) a déclaré
"l'état d'urgence" (Conseil des Ministres, Décision no. 9064, 20 juillet 2016)
conformément à l'article 120 de la Constitution turque
3
, en vue de combattre cette
organisation terroriste. C'est ainsi que l'état d'urgence est entré en vigueur dans tout le
pays à partir de 21 juillet 2016.
Comme il y avait une menace directe contre la démocratie et que 251 personnes ont é
tuées lors de la tentative de coup d'état, l'opinion publique turque était favorable pour la
mise en œuvre des mesures rapides et efficaces envers cette organisation terroriste.
Donc, dans cette atmosphère politique et avec une approche sécuritaire, la déclaration
1
Pour une analyse approfondie sur l'état d'urgence voir, Halpérin, Jean-Louis; Hennette-Vauchez, Stéphanie;
Millard, Eric (2017). L'état d'urgence: De l'exception à la Banalisation. Paris: Presse Paris Nanterre; Morand-
Deviller, Jacqueline (2016). "Réflexions sur l'état d'urgence". Revista de Investigações Constitucionais.
Curitiba. Vol. 3, n. 2: pp. 51-64. Accessible sur DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v3i2.46476
2
Les origines de FETÖ remontent aux années 1970. FE est apparu comme un mouvement religieux
pacifique et s'appelait le "mouvement de service". Le but affiché de ce mouvement était de servir et de
transformer la société par l'éducation, l'action civique et le média. Dans ce cadre, les partisans de ce
mouvement ont ouvert des milliers d'écoles, centres d'éducation et des foyers d'étudiants qui ont servi pour
recruter des adeptes s très jeunes âges. Ils ont fondé des chaines de tv et publié des journaux pour
diffuser leurs idées et faire leur propagande. Ce mouvement religieux maîtrisait également des ressources
financières importantes. Ils se sont organisés aussi à l'étranger et ont ouvert des centaines d'écoles dans
des pays divers. Ce mouvement religieux s'inspirait des missionnaires chrétiens.
Sous l'orientation des dirigeants de ce mouvement, les jeunes adeptes sont incités à devenir des
fonctionnaires publiques et surtout à s'organiser dans l'armée et la police. Les questions des examens
d'entrée aux écoles d'armées et de police étaient systématiquement volées grâce à l'aide des collaborateurs
infiltrés dans ces institutions. Avec le temps, les fidèles de ce mouvement ont augmenté et sont devenus
puissant dans la bureaucratie.
Quand le parti d'AKP est arrivé au pouvoir en 2002, il a préféré faire une alliance avec ce mouvement
religieux et a profité de ses cadres dans la bureaucratie contre le "Kémaliste establishment", leur ennemi
commun. Sous la protection de l'autorité politique, ce mouvement religieux est devenu plus fort que jamais.
L'alliance officieuse entre l'AKP et ce mouvement religieux a marché bien pendant dix années. Mais à partir
de 2012, cette alliance a commencé à être ébranlée et le combat pour accaparer le pouvoir tout seul s'est
intensifié. Les tentatives de réconcilier les anciens partenaires sont restées sans résultat. En décembre
2013, les adeptes de FETÖ dans la police et dans la justice ont mené deux opérations d'anti-corruption
contre certains ministres et leurs proches. A partir de ce moment, la lutte entre ces deux parties est devenue
publique. L'AKP a qualifié ces opérations d'anti-corruption comme "coup d'état" et le mouvement religieux
comme "FETÖ/PDY", acronyme qui signifie "Organisation Terroriste Fethullahiste/Structure Étatique
Parallèle". Pour plus d'information voir; Mert, Ali Osman (2016). 15 July Coup Attempt and the Parallel State
Structure. Ankara: Publications of the Presidency of the Republic of Turkey. Accessible sur
https://www.tccb.gov.tr/assets/dosya/15Temmuz/15temmuz_en2.pdf; Le Point (21 juillet 2016). "Qui sont
les Gulenistes, accus d'avoir instal un "État parallèle" ?". [Consul le: 04.04.2020]. Accessible sur
https://www.lepoint.fr/monde/qui-sont-les-gulenistes-accuses-d-avoir-installe-un-etat-parallele-21-07-
2016-2056000_24.php
3
Article 120 de la Constitution turque: "En cas d'apparition d'indices sérieux d'extension d'actions violentes
visant à renverser l'ordre démocratique libre instauré par la Constitution ou à supprimer les droits et libertés
fondamentaux ou en cas de perturbation sérieuse de l'ordre public en raison d'actes de violence, le Conseil
des ministres réuni sous la présidence du Président de la publique peut, après avoir consulté le Conseil
de sécurité nationale, proclamer l'état d'urgence dans une ou plusieurs régions du pays ou sur l'ensemble
du territoire, pour une durée ne dépassant pas six mois." [Consulté le: 10.03.2020]. Le texte intégral en
français de la Constitution turque est accessible sur https://mjp.univ-perp.fr/constit/tr1982.htm et
https://mjp.univ-perp.fr/constit/tr1982-2.htm
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d'état d'urgence était perçue comme une nécessité pour pouvoir surmonter cette
situation extraordinaire.
Les membres du gouvernement, dans des divers reportages télévisés, ont déclaré à
plusieurs reprises que
"l'état d'urgence ne va durer que trois mois et peut-être moins. Parce que le
gouvernement est conscient que l'état d'urgence n'est pas quelque chose de
souhaitable. Il ne faut pas oublier que c'était ce gouvernement qui avait mis
fin à l'état d'urgence en vigueur depuis des années dans la région sud-est du
pays. Une fois que les institutions publiques sont nettoyées finitivement
des terroristes de FETÖ, l'état d'urgence sera le le plus vite possible
(Milliyet, 22 juillet 2016).
Mais dans la pratique, à l'envers des déclarations indiquée ci-dessus, le gouvernement,
en prétendant la gravité de la menace et la complexité de la structure terroriste, a opté
de prolonger successivement l'état d'urgence tous les trois mois
4
. C'est ainsi que l'état
d'urgence a duré d'une manière ininterrompue deux années, entre 21 juillet 2016 et 19
juillet 2018. Malgré les appels réguliers faits dès le début au gouvernement par les partis
d'opposition pour mettre fin immédiatement à l'état d'urgence (Grande Assemblée
Nationale de Turquie, Procès-verbal de la 117ème Session: 21 juillet 2016), le
gouvernement a préféré rester indifférent à ces appels.
2. Les DLE sous le régime d'état d'urgence: des compétences sans
contrôle
Quand le gouvernement a adopté, le 25 juillet 2016, le "décret-loi extraordinaire no. 668
relatif aux mesures requises dans le cadre d'état d'urgence et à la régulation de certaines
institutions", le principal parti d'opposition, le CHP (Parti Populaire Républicain) a fait un
recours le 23 septembre 2016 à la Cour Constitutionnelle pour l'anti-constitutionnalité de
ce DLE et en même temps a deman sursis d'exécution pour ce DLE avec le motif
d'empêcher des conséquences irréparables en cas de mis en œuvre
5
.
4
L'état d'urgence a été prolongé 7 fois par le parlement. Les décisions de la Grande Assemblée Nationale de
Turquie (TBMM) relatives à la prolongation de l'état d'urgence: Décision no. 1182 (18.04.2018); Décision
no. 1178 (18.01.2018); Décision no. 1165 (17.10.2017); Décision no. 1154 (17.07.2017); Décision no.
1139 (18.04.2017); Décision no. 1134 (03.01.2017); cision no. 1130 (11.10.2016). [Consulté le:
11.03.2021]. Accessible sur
https://www.tbmm.gov.tr/develop/owa/tbmm_kararlari_gd.sorgu_yonlendirme
5
Le CHP, dans son recours, a souligné les points suivants: l'état d'urgence est une période provisoire où des
mesures exceptionnelles peuvent être mises en œuvre. Ces mesures doivent être relatives aux événements
et aux sujets qui ont nécessité la déclaration d'état d'urgence. Ces mesures ne devraient être valables que
pendant la période d'état d'urgence. Ceci dit, avec la fin de l'état d'urgence, des mesures exceptionnelles
aussi devraient disparaitre. La déclaration d'état d'urgence ne suspend en aucun cas le droit et la
constitution. L'état d'urgence n'est pas un régime arbitraire et le pouvoir exécutif doit se conformer aux
principes de l'État de droit. Selon le CHP, "Le décret-loi extraordinaire no. 668 relatif aux mesures requises
dans le cadre d'état d'urgence et à la gulation de certaines institutions" contenait des mesures sans
rapport avec les cas qui ont causé la déclaration d'état d'urgence et apportait des modifications qui passent
au delà de la riode de l'état d'urgence. Pour les raisons indiquées ci-dessus, le CHP a prétendu que le
DLE en question était contraire aux articles 2, 6, 7, 8, 11 et 121 de la Constitution et devrait être annulé
(Cour Constitutionnelle,12.10.2016: para. 2).
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La Cour Constitutionnelle turque a décidé le 12 octobre 2016 avec unanimité que selon
l'article 148 de la constitution
6
, l'anti-constitutionalité des DLE des périodes d'état
d'urgence ne peuvent pas être évoquées et par conséquent s'est considérée
incompétente pour le contrôler (Cour Constitutionnelle, 12.10.2016: paras. 25-27). En
fait, avec cette décision, la Cour Constitutionnelle changeait sa jurisprudence antérieure
elle se considérait compétente pour contrôler et annuler les DLE pour motif
d'inconstitutionnalité, y compris pendant les périodes d'état d'urgence (Cour
Constitutionnelle, 10.01.1991: Section IV et V). Dans ses décisions précédentes, la Cour
Constitutionnelle affirmait qu'elle devrait examiner la vraie nature juridique des DLE sans
être l par son appellation et sa forme (Ibid., Section IV: para. A-3-(a) et (c)). Elle
ajoutait aussi que dans les régimes démocratiques, l'état d'urgence ne correspond pas à
un régime arbitraire et ne suspend pas l'État de droit (Ibid., Section IV: para. A-1); que
les régulations mises en place par les DLE ne devraient pas dépasser les limites et
l'objectif de l'état d'urgence (Ibid., Section IV: para. A-2) et ne pouvaient pas s'étendre
aux régions et aux provinces qui tombent en dehors de l'état d'urgence (Ibid., Section
IV: para. A-3-(b)). Avec les considérations susmentionnées, la Cour Constitutionnelle
avaient annulé, dans le passé, plusieurs DLE par vote majoritaire (Cour Constitutionnelle,
10.01.1991; 03.07.1991; 26.05.1992 et 22.05.2003).
Avec le changement de la jurisprudence de la Cour Constitutionnelle, une "compétence
sans limite et sans contrôle" a été reconnue au pouvoir exécutif par le pouvoir judiciaire.
Le pouvoir politique avait obtenu un "chèque en blanc" de la Cour Constitutionnelle
(Adadağ, 2019: 147). Théoriquement, l'autorité politique, s'il le souhaitait, par un simple
DLE, pouvait suspendre, voire abroger toute la Constitution et dissoudre quelconque
institution, y compris la Cour Constitutionnelle. Le pouvoir exécutif était exempté de tout
contrôle juridique et légal pendant la période d'état d'urgence. Les compétences
reconnues par l'état d'urgence avaient déjà permis au pouvoir exécutif d'utiliser aisément
le pouvoir législatif via des DLE. Et en plus, grâce à la décision de la Cour
Constitutionnelle, le pouvoir politique était doté d'une irresponsabilité exceptionnelle
pour ses actes. Cette nouvelle jurisprudence de la Cour Constitutionnelle a aidé en même
temps le parti au pouvoir de rester indifférent aux critiques d'abus de compétences de
l'opposition.
D'autre part, la bureaucratie sécuritaire s'est rapidement adaptée à ce processus d'état
d'urgence et, grâce à l'encouragement du pouvoir politique, a accru ses actions
arbitraires. Les décisions des instances juridiques qui privilégiaient la sécurité de l'État
sur les droits et les libertés individuels ont davantage incité la bureaucratie sécuritaire à
sous-estimer les droits fondamentaux. L'assurance implicite et ensuite légale
7
conférée
6
Article 148 de la Constitution turque: "La Cour constitutionnelle contrôle la conformià la Constitution,
quant à la forme et quant au fond, des lois, des décrets-lois et du Règlement intérieur de la Grande
Assemblée nationale de Turquie. En ce qui concerne les amendements constitutionnels, son examen et son
contrôle portent exclusivement sur la forme. Toutefois, les crets-lois édictés, en période d'état d'urgence,
d'état de siège ou de guerre ne peuvent pas faire l'objet d'un recours en inconstitutionnalité devant la Cour
constitutionnelle, ni quant à la forme, ni quant au fond." [Consulté le: 10.03.2020]. Le texte intégral en
français de la Constitution turque est accessible sur https://mjp.univ-perp.fr/constit/tr1982.htm et
https://mjp.univ-perp.fr/constit/tr1982-2.htm
7
"Loi no. 6755 relative à l'adoption avec des modifications du DLE concernant les mesures prises dans le
cadre d'état d'urgence et des régulations apportées à des institutions publiques" a été adoptée le 08
novembre 2016. L'article 37 de cette loi est relatif à l'impunité juridique, administrative, pénale et financière
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aux forces de sécurité et à la bureaucratie en générale (Commission de Venise, 12
décembre 2016: paras. 95-97; OHCHR, 2018: paras. 5 et 45; OHCHR,
A/HRC/WG.6/35/TUR/2, 20-31 Janvier 2020: para. 23) a facilité et multiplié les violations
des droits de l'homme pendant l'état d'urgence.
La psychologie d'impunité dans l'administration publique était vite répandue. Les lois qui
étaient appliquées soigneusement auparavant étaient maintenant ignorées. Par exemple,
au début de l'état d'urgence, les personnes affectées par les DLE ont voulu bénéficier du
droit à l'information. Les personnes expulsées de leurs fonctions publiques ne pouvaient
obtenir aucune information sur les raisons de leurs expulsions. Or, selon la loi no. 4982
relative au droit à l'information
8
, chaque personne, qu'il soit citoyen turc ou bien
étranger, a le droit de demander d'information sur les actes administratifs concernant
lui-même; et l'administration intéressé doit, dans un délai de 15 jours de travail, fournir
par écrit les informations et les documents demandés (Loi relative au Droit à
l'Information, 2003: articles 4 et 11). Malgré cette loi très nette, les demandes
d'information restaient sans réponse. Le Conseil de l'Évaluation de Droit à l'Information,
autorité publique chargée de la mise en œuvre de la loi en question, a décidé
unanimement que les demandes d'information concernant les actes émanant des DLE et
surtout ceux relatifs à l'expulsion des fonctionnaires restent en dehors du droit à
l'information et donc ne seront pas répondues (Conseil de l'Évaluation de Droit à
l'Information, 04 août 2016).
L'autorité politique et la bureaucratie s'étaient accoutumées au confort et à
l'irresponsabilité de cette période exceptionnelle relativement longue. Quand l'état
d'urgence a été finalement levé le 19 juillet 2018, le parti au pouvoir avait déjà décidé
de passer une loi
9
qui lui permettrait d'employer les pratiques de la période d'état
d'urgence dans les périodes dites "normales" (OHCHR, A/HRC/WG.6/35/TUR/3, 20-31
janvier 2020: paras. 8 et 29). En fait, d'un part "l'état d'urgence temporaire" était
terminé, mais d'autre part "l'état d'urgence permanent", sans le nommer d'état
d'urgence, était entré en vigueur. L'approche sécuritaire avait continué à régner sur
l'approche juridique et libertaire même après la fin de ltat d'urgence, et ce grâce à
l'aide de la majorité parlementaire d'AKP et de son allié MHP (Parti d'Action Nationaliste),
et malgré les vives objections de l'opposition.
des "bureaucrates" qui ont mis en œuvre les ordres dans le cadre d'état d'urgence. Voir, Journal Officiel de
la République de Turquie no. 29898 (24.11.2016). Ankara.
D'autre part, l'article 121 du DLE no. 696 est relatif à l'impunité pénale et financière des "civils" qui ont
assisté à empêcher la tentative de coup d'état du 15 juillet 2016. Voir, DLE no. 696 (24 décembre 2017).
Journal Officiel de la République de Turquie no. 30280 (24.12.2017). Ankara.
8
La loi relative au Droit à l'Information a été adoptée le 09 octobre 2003 en vue de l'harmonisation de la
législation turque avec l'acquis communautaire, dans le processus de la candidature de la Turquie à l'Union
Européenne.
9
"Loi no. 7145 relative à la Modification de Certains Lois et Décrets-Lois" a été adoptée juste après la fin de
l'état d'urgence, le 25 juillet 2018. Avec cette loi, plusieurs limitations apportées aux droits et aux libertés
des individus pendant la période de l'état d'urgence ont été prolongées pour les prochaines 3 années. Par
exemple, les Ministres étaient dotés de la compétence d'expulser les fonctionnaires sans enquête
disciplinaire pour les prochaines 3 années. La livrance de passeport à ceux qui sont soupçonnés d'actes
de terrorisme pourrait être refusée pour les prochaines 3 années. Les manifestations et les protestations
pendant les soirs ont été interdites. Voir, Journal Officiel de la République de Turquie no. 30495
(31.07.2018). Ankara.
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3. Les expulsions massives des fonctionnaires par les DLE et la
compatibilité de ces DLE avec la CEDH
A partir de 21 juillet 2016, dans le cadre de l'état d'urgence, le gouvernement d'AKP a
adopté successivement plusieurs DLE
10
. Mais certains de ces DLE étaient sans rapport
11
avec les cas qui ont entrainé ltat d'urgence (OHCHR, 2018: paras. 6 et 46). L'article
121 de la Constitution turque
12
relatif à la déclaration d'état d'urgence prévoyait
13
que
les DLE ne peuvent régler que des questions urgentes concernant la situation qui ont
entrainé les conditions de ltat d'urgence et ceci dit, ces régulations extraordinaires ne
peuvent être valable que pendant la période de l'état d'urgence. Il y avait donc deux
types de limitations essentielles, le contenu et la durée, pour les DLE.
Or, le changement de la jurisprudence de la Cour Constitutionnelle a permis à l'autorité
politique d'adopter des DLE qui auront des effets même après la fin de ltat d'urgence.
L'expulsion des fonctionnaires publiques par des DLE constitue un exemple typique de
cette pratique. Au lieu d'adopter une mesure provisoire, telle qu'éloigner les
fonctionnaires publiques de leurs positions pendant la période d'état d'urgence, le pouvoir
politique a choisi de les écarter définitivement de la fonction publique.
3.1. Expulsion massive des fonctionnaires publiques: des mesures
démesurées de l'état d'urgence
107.944 (Cent sept mille neuf cent quarante-quatre) fonctionnaires publiques
14
ont été
expulsés par les DLE entre juillet 2016 et décembre 2017 (OHCHR, 2018: para. 61). Ces
10
Au total 32 DLE ont été mis en œuvre entre 2016 et 2018, sous le régime d'état d'urgence. Pour les textes
des DLE, voir le site internet du Journal Officiel de la République de Turquie, accessible sur
https://www.resmigazete.gov.tr
11
Certains de ces DLE étaient sans rapport avec les faits qui ont entrainé la déclaration d'état d'urgence, tels
que l'expulsion des fonctionnaires; la fermeture des écoles; la fermeture des chaines de tv, des stations de
radio et des journaux; les modifications dans le code pénal; les règles d'utilisation des pneus d'hiver; le
changement de la procédure de nomination des recteurs d'université etc. (Adadağ, 2019: 148).
12
Article 121 de la Constitution turque: "…réglemente … les procédés de limitation ou de suspension des droits
et libertés fondamentaux, conformément aux principes énoncés à l'article 15 de la Constitution, détermine
comment et de quelle manière seront arrêtées les mesures requises par la situation, quel genre
d'attributions seront conférées aux agents des services publics et quel type de modifications seront
apportées à leur statut, et fixe les procédures exceptionnelles d'administration.
Pendant toute la durée de l'état d'urgence, le Conseil des ministres réuni sous la présidence du Président
de la République peut édicter des crets-lois dans les matières qui rendent l'état d'urgence cessaire.
Ces décrets-lois sont publiés au Journal officiel et soumis le jour même à l'approbation de la Grande
Assemblée nationale de Turquie…". [Consulté le: 10.03.2020]. Le texte intégral en français de la
Constitution turque est accessible sur https://mjp.univ-perp.fr/constit/tr1982.htm et https://mjp.univ-
perp.fr/constit/tr1982-2.htm
13
Avec le referendum tenu le 16 avril 2017 sur la modification de certains articles de la constitution, l'article
121 de la constitution turque est abrogé.
14
Selon les autorités turques, le nombre total des fonctionnaires expulsés par les DLE entre 2016 et 2018 est
de 125.678 (cent vingt-cinq mille six cent soixante-dix-huit). Voir, Commission chargée d'examiner les
dossiers d'état d'urgence. [Consulté le: 14.03.2020]. Accessible sur https://ohalkomisyonu.tccb.gov.tr
Selon les données recueillies par OHCHR, le nombre total des fonctionnaires expulsés dépasse 150.000
(Cent cinquante mille) (OHCHR, 2018: para. 61; OHCHR, A/HRC/WG.6/35/TUR/2, 20-31 Janvier 2020:
para. 37).
Cette différence s'explique par le fait que certaines catégories des fonctionnaires, tels que les juges et les
procureurs, ne sont pas expulsés par des DLE mais par des décisions de leurs institutions respectives.
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225
DLE
15
comprenaient les listes des fonctionnaires expulsées dans leurs annexes. Les listes
étaient classées selon les institutions publiques. Les prénoms-noms, numéros d'identité
particulier des fonctionnaires, le dernier statut ou la position des fonctionnaires, les lieux
de travail (ville-arrondissement) des fonctionnaires figuraient sur ces listes. Et toutes ces
informations privées étaient affichées publiquement par les DLE sur le site internet du
journal officiel.
L'article 2, alinéa 1 de ces DLE stipulait que
"… les personnes citées dans les listes annexées …ceux qui sont considérés
membres, ceux qui sont considérés avoir une appartenance, une relation, une
connexion ou bien une affiliation avec les organisations terroristes, avec des
structures, des formations ou bien des groupes ayant des activités contre la
sécurité nationale de l'État… sont expulsés de leurs fonctions publiques…"
L'article 2, alinéa 2 des DLE prévoyait que "… les personnes expulsées de la fonction
publique ne peuvent plus redevenir fonctionnaire… ne peuvent pas être embauchées
directement ou indirectement pour les fonctions publiques… et leurs passeports sont
annulés…".
Des termes vagues et flous (appartenance, relation, connexion, affiliation et structure,
formation, groupe) étaient employés dans le texte des DLE (Commission de Venise, 12
décembre 2016: para. 129). En fait, toutes les personnes énumérées dans les listes
annexées aux DLE étaient considérés comme des "terroristes", sans aucune décision
juridique.
Le pouvoir politique avait décidé d'expulser ces fonctionnaires sans notification préalable,
sans explication et sans reconnaître le droit de défendre eux-mêmes (Günday, 2017:
35). L'administration, avec l'avantage procuré par l'état d'urgence, n'a pas senti la
nécessité de fournir des preuves concrètes pour les expulsions et a considéré une simple
suspicion suffisante pour cet acte administratif mis en œuvre à travers d'un acte législatif.
Une différenciation dans la sanction à infliger n'était non plus préférée pour les distinctes
catégories (membre, appartenance, relation, connexion ou bien affiliation) énumérées
dans le texte des DLE. Alors que la Convention de Genève interdit la nalisation
collective (Convention de Genève, 1949: art. 33), toutes ces catégories étaient acceptées
comme des "terroristes égaux" et, dans la "guerre sainte" contre le terrorisme, étaient
pénalisées collectivement.
Pendant les deux années qui ont passé sous les conditions d'état d'urgence, plus de 6.000
académiciens, 4.240 juges et procureurs (ça fait un tiers des juges et des procureurs) et
des dizaines de milliers de personnes de professions diverses tels que médecins,
enseignants, soldats, police, ouvrier etc., au total plus de 150 mille personnes, étaient
expulsées de leurs fonctions publiques (OHCHR, 2018: paras. 49 et 61).
15
Pour la liste complète des DLE relative aux expulsions des fonctionnaires, voir le site d'internet de la
Commission chargée d'examiner les dossiers d'état d'urgence. [Consulté le: 14.03.2020]. Accessible sur
https://ohalkomisyonu.tcbb.gov.tr/khklar
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3.2. Les critères retenus pour l'expulsion des fonctionnaires
Au début de l'état d'urgence, au nom de la confidentialiabsolue, aucune information
n'était partagée avec le public sur les critères d'expulsions. Suivant les premières
expulsions massives des fonctionnaires, l'opinion publique et le média ont cherché à
apprendre les critères pris en compte pour ces sanctions draconiennes. Les hommes
politiques ont ainsi explicité les critères et les dates sous-mentionnés.
Selon le pouvoir politique, les dates de 17 et 25 décembre 2013 étaient déterminantes
pour les décisions d'expulsion. Ces dates étaient considérées comme le début du
caractère terroriste de la communauté religieuse, devenue organisation terroriste armée
après la tentative de coup d'état.
D'après l'autoripolitique, les principaux critères d'expulsion, donc indice de relation,
connexion, affiliation avec l'organisation terroriste, étaient:
- avoir un compte auprès de "Bank Asya"
16
- utiliser le programme de messagerie "Bylock"
17
- envoyer ses enfants aux écoles
18
en liaison avec ce groupe religieux
- être membre du syndicat d"Aktif-Sen"
19
- être membre des ONG liées à ce groupe religieux et faire des dons à ces ONG
- analyse taillée des comptes de media social des fonctionnaires.
Pour l'autorité politique, les fonctionnaires qui avaient l'un des critères ci-dessus après
les dates de 17-25 décembre 2013 étaient en relation, forte ou faible, avec l'organisation
terroriste et donc devraient être éloignés définitivement du service public. Mais la date
16
"Bank Asya" était inaugurée le 24 octobre 1996 avec la participation de plusieurs hommes politiques qui
ont occupé dans un temps ultérieur les postes de ministre, premier ministre, voire président (Hürriyet, 04
février 2015). Au fur et à mesure que l'alliance entre cette communauté religieuse et l'AKP marchait bien,
plusieurs institutions publiques avaient orienté leurs fonctionnaires à ouvrir des comptes de salaires chez
les succursales de Bank Asya (Kamu Haber Merkezi, 27 novembre 2016).
17
Il s'agit d'une application de messagerie utilisé majoritairement par les sympathisants de cette organisation.
Le programme de Bylock a été téléchargé par plus de 500.000 (cinq cent mille) utilisateurs et était
accessible au public sur Playstore et Applestore (The Guardian, 11 septembre 2017).
18
En raison de leurs qualités éducatives, des centaines de milliers de parents ont envoyé leurs enfants aux
écoles de ce groupe religieux. Ces écoles fonctionnaient galement selon le droit turc et étaient, comme
toutes les autres écoles, sous l'inspection du Ministère de l'Education Nationale. En plus, le gouvernement,
dans le cadre du financement des écoles privées, avait continué à financer les écoles de ce groupe jusqu
15 juillet 2016, c'est-à-dire jusqu'à la date du coup d'état.
Avec l'état d'urgence, 934 écoles en liaison avec ce groupe étaient fermées (Commission de Venise, 12
décembre 2016: para. 81).
Il y avait des ministres, des députés, des fonctionnaires de haut niveau qui étaient diplômés de ces écoles.
Compte tenu du nombre très éledes personnes influenes par le critère d'école, l'AKP s'est vu obligé
d'assouplir ce critère d'expulsion et a annoncé que ce critère tout seul ne sera plus considéré suffisant pour
les expulsions, mais sera pris en compte en cas d'existence d'autres indices et critères. Voir, Commission
chargée d'examiner les dossiers d'état d'urgence. OHAL Komisyonu Çalışmaları Hakkında Bilgi Notu
(26.12.2019). [Consulté le: 13.03.2021]. Accessible sur https://ohalkomisyonu.tcbb.gov.tr/
19
Le syndicat d'Aktif-Sen opérait dans le domaine d'éducation. Lorsque l'alliance entre ce groupe religieux et
le parti d'AKP fonctionnait bien, ce dernier a encouragé les enseignants à devenir membre du syndicat
"Aktif-Sen". Les cotisations syndicales ont épayées régulièrement par les institutions publiques au lieu
des fonctionnaires jusqu'à 15 juillet 2016 (Kamu Haber Merkezi, 27 novembre 2016).
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227
retenue pour les expulsions contenait une simple paradoxe (Commission de Venise, 12
décembre 2016: paras. 119, 121 et 125): ceux qui avaient l'un de ces critères, avant les
dates choisies, étaient considérés innocents et éligibles pour continuer à travailler dans
le service publique. Par contre, ceux qui avaient l'un de ces critères, après les dates
choisies, étaient considérés des "terroristes" et ainsi éloignés de leurs fonctions
publiques.
En fait, les dates choisies par le pouvoir politique avaient un sens politique. L'AKP
considérait ces dates comme le début "officiel" d'une "guerre" entre lui et cette
communauté religieuse. Le 17 et 25 décembre 2013, les adeptes de FETÖ infiltrés dans
la police turque ont dirigé deux grandes opérations d'anti-corruption. Les ministres, les
enfants de ministres et beaucoup d'autres politiciens étaient impliqués dans cette affaire
de corruption. Le gouvernement a qualifié ces opérations policières comme mensonge et
tentative de coup civil et juridique contre lui (Anatolian Agency, 14 juillet 2017).
Donc, les critères et les dates annoncés par le pouvoir politique comme fondement pour
les expulsions n'étaient pas "juridiques" mais plut "subjectifs" et "politiques". Du point
de vue juridique, avoir un compte dans une banque qui fonctionne conformément au
droit turc, utiliser un programme de messagerie accessible au public sur internet, envoyer
ses enfants aux écoles qui fonctionnent selon le droit turc et qui sont inspectées par le
Ministère de l'Education Nationale, être membre d'un syndicat fondé selon le droit turc,
devenir membre d'une ONG établie conformément au droit turc ne constituent pas une
infraction en soi (Commission de Venise, 12 cembre 2016: paras. 103 et 112). Mais
sous les conditions de l'état d'urgence, les institutions et les actes qui étaient auparavant
légales étaient qualifiés d'illégale avec le changement de la conjoncture politique
20
.
En outre, parmi les fonctionnaires expulsés, il y avait aussi des milliers de personnes qui
ne satisfaisaient aucun de ces critères énoncés
21
. La particularité commune de ces
personnes était leur caractère dissident et leur opposition au pouvoir politique. Les DLE
étaient devenus également, aux mains de l'autorité politique, des instruments pour
éloigner les dissidents et les opposants du service public (OHCHR, 2018: para. 42). A
part les sanctions d'expulsion, une grande partie de ces fonctionnaires devraient aussi
faire face à des procès criminels initiés contre eux, avec l'accusation d"être membre à
une organisation terroriste armée" (OHCHR, 2018: paras. 10 et 82).
20
Dans le cadre d'une demande d'extradition, le Ministère de la Justice a présenté le 08 novembre 2018, via
son conseillère juridique à l'Ambassade de Turquie à Londres, un document au tribunal de Westminster en
Grande Bretagne. Dans ce document, il était indiqué qu'avoir un compte auprès de Bank-Asya n'était pas
un crime en soi et que l'utilisation du programme de Bylock n'était pas un crime s'il n'y avait pas de contenu
criminel. Donc, les autorités turques avaient réfuté les deux critères d'expulsions avec ce document. Quand
ce document était publié dans les journaux, le Ministère de la Justice a déclaré que le document ne reflétait
pas la position officielle du Ministère et qu'il était digé par l'initiative du Conseillère juridique lui-même
sans consulter le Ministère (Odatv.com, 01 décembre 2018).
21
1.128 académiciens de 89 universités turques ont signé, en janvier 2016, une pétition commune disant non
à la violence dans le sud-est du pays. Après la déclaration d'état d'urgence, les signataires étaient expulsés
de leurs positions académiques par les DLE et des procès criminels avec l'accusation de terrorisme étaient
initiés contre eux (OHCHR, 2018: para. 74).
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3.3. La conformité des DLE avec la CEDH
Par les DLE expliqués ci-dessus, plusieurs articles de la CEDH ont été violés
22
:
Article 6 de la CEDH "Droit à un procès équitable"
Les actes légaux comme envoyer ses enfants aux écoles opérant conformément au droit
turc, avoir un compte auprès d'une banque opérant conformément au droit turc etc.,
sont déclarés des actes illégaux, contrairement aux principes universels de l'État de droit
et de la prévisibilité de droit.
Les fonctionnaires expulsés étaient accusés publiquement d'être "terroriste" et donc ont
subi une diffamation sans équivoque. Ils étaient déclarés coupables sans aucune décision
juridique. Ces personnes étaient condamnées par une décision politique et à travers d'un
acte législatif adopté par le Conseil des Ministres (Commission de Venise, 12 décembre
2016: para. 132).
Les personnes concernées n'ont pas eu la possibilité d'apprendre les raisons et les
preuves des accusations dirigées contre eux. Aucun document, information, dossier
n'était transmis aux personnes intéressées et toutes leurs demandes d'information sont
laissées sans réponse.
Des termes vagues et flous (contact, relation, appartenance, membre; structure,
formation, groupe) sont employés dans les DLE. En fait, toutes les personnes énumérées
dans les listes annexées aux DLE sont soupçonnées, sans distinction, d'être "terroriste"
et sont pénalisées collectivement. La présomption d'innocence était intentionnellement
négligée par les DLE.
Les informations personnelles des ex-fonctionnaires ont été publiées sur le site internet
du journal officiel. Non seulement les ex-fonctionnaires mais aussi leurs familles étaient
stigmatisées et ciblées délibérément par cet acte de publication. En plus, les passeports
des membres de famille des ex-fonctionnaires, y compris ceux des mineurs, ont été
annulés. Dans ce sens, il s'agit d'une pénalisation collective mise en œuvre contre les
membres de famille des ex-fonctionnaires.
[k1]
Article 8 de la CEDH "Droit au respect de la vie privée et familiale"
Les fonctionnaires expulsés étaient accusés d'un crime grave, le "terrorisme". Les
informations personnelles (nom-prénom, titre, institution, numéro de fonctionnaire, lieu
de travail) de ces personnes étaient publiées sur le site internet du journal officiel. En
publiant ces informations personnelles, on a voulu pénaliser psychologiquement non
seulement les ex-fonctionnaires eux-mêmes mais aussi les membres de leurs familles
collectivement. Afficher publiquement les informations privées de ces personnes entraine
22
En fait, le pouvoir politique était bien conscient que les DLE n'étaient pas conforme au droit et aux droits
de l'homme et que si les dossiers relatifs aux DLE et aux pratiques de l'état d'urgence arrivaient devant la
CtEDH, cette dernière condamnerait, fort probablement, les actes en question. Dans ce cadre, juste après
la fin de l'état d'urgence, le 25 juillet 2018, la loi no. 7145 permettant la "déclaration unilatérale" a été
adoptée. La "déclaration unilatérale" qui n'existait pas jusqu'à cette date dans la législation turque était
ainsi incluse dans le code pénal et le code administratif. Le système judiciaire s'était doté maintenant d'une
seconde arme, à part le règlement amiable, en cas de constat des violations des droits de l'homme par la
CtEDH. Voir, "Loi no. 7145 relative à la Modification de Certaines Lois et Décrets-Lois" (25 juillet 2018).
Journal Officiel de la République de Turquie no. 30495 (31.07.2018). Ankara.
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aussi leurs exclusions de la vie sociale et de la vie de travail. Il s'agit non seulement
d'une atteinte au respect de la vie privée et familiale mais aussi d'une discrimination.
Article 13 de la CEDH "Droit à un recours effectif"
Les expulsions ont été réalisées par des DLE et, selon la Cour Constitutionnelle turque,
les DLE des périodes d'état d'urgence étaient hors contrôle juridique
23
. A la suite de cette
décision de la Cour Constitutionnelle, les tribunaux administratifs et le Conseil d`État se
sont aussi déclarés incompétents pour examiner les DLE. Donc, toutes les voies juridiques
internes étaient devenues inaccessibles pour renverser les décisions d'expulsions.
Comme toutes les voies juridiques internes étaient rendues ineffectives, il n'y avait
qu'une option à recourir: la Cour Européenne des Droits de l'Homme (CtEDH). Dans un
peu de temps, dizaines de milliers de recours ont été envoyés par les ex-fonctionnaires
turcs à la CtEDH
24
.
Article 14 de la CEDH "Interdiction de discrimination" et Protocole 12, Article 1
"Interdiction Générale de la Discrimination"
Suivant les expulsions par les DLE, une "note explicative"
25
pour chaque personne
expulsée était inscrite à son dossier personnel auprès de l'Institution de la Sécurité
Sociale turque: quand une personne cherche un emploi, les employeurs peuvent
consulter le dossier personnel de l'intéressé sur le site internet de l'Institution de la
Sécurité Sociale pour confirmer certaines informations fournies (ancien lieu de travail,
durée de travail etc.) par le demandeur d'emploi et voient directement les notes
explicatives. A cause de ces notes explicatives, la plupart des employeurs refusent
d'embaucher les fonctionnaires expulsés par peur d'avoir des problèmes avec les
autorités publiques (T24, 25 septembre 2017).
Cette pratique de "note explicative" montre que l'autorité politique a voulu rendre
presque impossible pour ces personnes de trouver un emploi même dans le secteur
privé
26
. Cette pratique entraine l'exclusion des ex-fonctionnaires de la vie de travail et
social, et constitue une discrimination. L'autorité politique a voulu pénaliser les ex-
fonctionnaires et leurs proches non seulement politiquement mais aussi économiquement
et socialement (mort civile), et ceci dit d'une manière permanente.
Un autre acte de discrimination est relatif aux enfants des fonctionnaires expulsés: les
enfants de ces personnes étaient devenus sujets de suivi et de fichage à cause des écoles
où ils ont étudié. Or, ces écoles fonctionnaient conformément au droit turc et recevaient
des aides financiers du Ministère de l'Education jusqu15 juillet 2016. Ce fichage contre
les mineurs porte le risque d'ouvrir la voie pour des nouvelles pratiques discriminatoires
à l'encontre d'eux dans l'avenir.
Les appels faits par des politiciens pour la re-adoption de la peine capitale constituent un
autre acte de discrimination. Certains partis politiques ont fait campagne en faveur de la
23
Voir p. 5-6
24
Voir p. 17
25
La note explicative est comme le suit: "(Nom-Prénom) est expulsé de la fonction publique par le décret-loi
extraordinaire no...".
26
Les licences de travail de certaines catégories des fonctionnaires expulsés, tel que les avocats, les pilots
d'avion et les enseignants etc., étaient annulées par les DLE. Ceci équivalait dans la pratique à l'invalidation
de leurs diplômes universitaires et donc rendait impossible de pratiquer leurs tiers dans le secteur privé.
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re-adoption de la peine capitale et ont promis de l'appliquer aux "terroristes" (Hürriyet,
19 juillet 2016). Compte tenu de la simplicité de l'accusation de terrorisme, les ex-
fonctionnaires étaient devenus cibles d'une chasse aux sorcières
27
. Dans ce sens, il s'agit
d'un crime de haine et de discrimination.
[k2]
Protocole additionnel 1, Article 1 "Protection de la propriété"
Aucune indemnité n'était payée aux personnes licenciées par les DLE. Or, selon la
législation turque, les autorités concernées devraient payer l'indemnité méritée aux
fonctionnaires conformément à la durée de leur travail. Dans ce sens, le droit de propriété
a été violé.
Protocol Additionnel 4, Article 2 "Liberté de Circulation"
Conformément aux dispositions des DLE, les passeports des fonctionnaires expulsés et
les passeports de leurs membres de famille, y compris ceux des mineurs, étaient annulés.
Pendant ltat d'urgence, les ex-fonctionnaires et les membres de leurs familles étaient
interdits de voyager à l'étranger (OHCHR, 2018: para. 14). Le principe de responsabilité
juridique individuelle est une valeur universelle reconnue par tous les systèmes juridiques
modernes. Ce principe universel de l'état de droit a été profondément négligé. Les
membres de famille des ex-fonctionnaires étaient pénalisés justement à cause de leurs
proches (OHCHR, A/HRC/WG.6/35/TUR/2, 20-31 Janvier 2020: para. 12).
Après la fin de l'état d'urgence, l'interdiction de voyage à l'étranger était partiellement
levée, surtout pour les mineurs. Mais cette interdiction continue toujours pour les ex-
fonctionnaires même si l'état d'urgence est officiellement terminé. Le Ministère de
l'Intérieur, après les examens nécessaires du point de vue de la sécurité nationale, peut
exceptionnellement décider la délivrance de passeport aux fonctionnaires expulsés. Dans
la pratique, les recours de passeport sont refusés par le Ministère de l'Intérieur, sauf pour
les personnes qui ont besoin d'un traitement médical urgent à l'étranger. Et ces
personnes doivent prouver l'urgence de leur maladie avec des documents médicaux.
4. La position des acteurs internes et externes face aux pratiques de
l'état d'urgence
Face aux pratiques de l'état d'urgence et les expulsions massives des fonctionnaires, des
principaux acteurs internes et externes ont exprimé leurs inquiétudes et ont demandé au
gouvernement de respecter les droits de l'homme et de veiller l'indépendance judiciaire.
4.1. La Position des Principaux Acteurs Internes
La simplicité et la massivité des expulsions, l'absence de recours juridique contre les DLE,
les détentions et les emprisonnements généralisés
28
, l'interdiction des manifestations et
27
Le pouvoir politique a appelé publiquement les citoyens à dénoncer à la police ou bien à des procureurs les
personnes qui ont des liens avec l'organisation terroriste (cnnturk.com, 10 août 2016). Ensuite, les autorités
politiques ont du admettre que des gens innocents étaient aussi devenus victimes de ces nonciations
(T24, 07 septembre 2016).
28
Des enquêtes judiciaires avec l'accusation de terrorisme étaient initiées pour plus de 500.000 (cinq cent
mille) personnes pendant la période d'état d'urgence (Cumhuriyet, 03 mars 2019).
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des protestations
29
ont produit un climat de peur et de méfiance. Les nonciations, les
pétitions sans signatures, les diffamations, voire les rumeurs effrayaient non seulement
les fonctionnaires publiques mais aussi les citoyens ordinaires
30
.
4.1.1. Les Juristes
Les juges et les procureurs avaient témoigné l'expulsion et l'arrestation de milliers de
leurs collègues. Cette situation a eu un effet psychologique non-négligeable sur
l'indépendance et l'impartialité du corps judiciaire. Tout de même, les juges qui osaient
donner des décisions ne plaisant pas l'autorité politique étaient soit limogés soit exilés
(T24, 27 mai 2017). Donc, la pression politique et les sanctions potentielles du "Conseil
des Juges et des Procureurs"
31
, restructuré après la tentative de coup d'état et hautement
politisé à la suite de cette restructuration, ont eu des effets néfastes sur l'indépendance
judiciaire (Human Rights Watch, 4 avril 2017).
Il y avait aussi des juges et des procureurs tatistes" qui croyaient que les mesures
prises par le pouvoir politique étaient justes et dans des circonstances extraordinaires
l'État de droit pourrait être suspendu (GazeteDuvar, 13 mars 2020). Cette typologie de
juristes décourageait davantage les juges et les procureurs qui ne voulaient pas céder
devant l'autorité politique.
D'autre part, tout au début de la proclamation d'état d'urgence, une grande partie des
avocats, par peur d'être ciblé par l'autorité politique, ont refusé de défendre les
personnes arrêtées avec l'accusation de terrorisme (OHCHR, 2018: para. 57; OHCHR,
A/HRC/WG.6/35/TUR/2, 20-31 Janvier 2020: para. 25). Cette situation atypique était en
fait l'indicateur de la peur généralisée même au niveau des avocats dont les métiers
essentiels sont de défendre leurs clients.
En outre, pour la première fois dans l'histoire juridique turque, il y a eu des cas les
tribunaux de la première instance n'ont pas respecté les cisions de la Cour
Constitutionnelle et de la CtEDH (Amnesty International, 2020; T24, 14 janvier 2018).
Cette résistance incompréhensible et chaotique de certains tribunaux mettait en cause la
hiérarchie indispensable entre les instances juridiques et diminuait la confiance au
système judiciaire. Ces actes de certains tribunaux étaient aussi la preuve de la
politisation de la justice.
Dans ces conditions d'état d'urgence, le pouvoir judiciaire était d'un part impuissant face
au pouvoir exécutif pour empêcher les violations des droits de l'homme et d'autre part,
compte tenu de la décision de la plus haute instance judiciaire sur la constitutionnalité
Plus de 55.000 (cinquante cinq mille) personnes étaient emprisonnées avec l'accusation d'être membre à
l'organisation terroriste FETÖ (OHCHR, 2018: para. 82).
En 2002, le nombre des prisonniers était 59.429 et en 2019 le nombre des prisonniers avait dépassé
282.000. Le nombre des prisonniers avait augmenté 470 % en 17 années (GazeteDuvar, 06 avril 2020).
29
Les préfets de 81 villes étaient ordonnés, dans le cadre de l'état d'urgence, d'interdire les meetings et les
rassemblements, s'ils le considéraient nécessaire (Tombuloglu & Kolay, 2017: 1).
30
Plusieurs personnes effrayées que leurs noms ou leurs comptes bancaires sont utilisés par le groupe
terroriste, étaient fraudées par des criminels qui se présentaient comme police ou procureur (cnnturk.com,
18 mars 2020).
31
L'autorité supérieure habilitée de mener des enquêtes disciplinaires pour les juges et les procureurs en vue
de les suspendre ou de les expulser.
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des DLE, manquait la volonté nécessaire pour confronter l'autorité politique pour
défendre les droits de l'homme.
4.1.2. Les Partis Politiques d'Opposition
Le gouvernement d'AKP est au pouvoir depuis 2002. Il a remporté toutes les élections
générales et présidentielles depuis cette date et jouit d'un soutien électoral élevé. Les
partis politiques d'opposition demeurent faibles face à l'AKP, et ce dernier, en employant
des manœuvres politiques, réussit à déjouer une alliance des partis d'opposition
susceptibles de le renverser.
La tentative de coup d'état a fourni à l'AKP une légitimité démocratique accrue et a
renforcé, aux yeux du peuple, son image de victime et en même temps héroïque vis-à-
vis des forces non-démocratiques. En tant que champion de démocratie, il profite sur la
scène politique d'un avantage psychologique et morale par rapport à ses adversaires. En
plus, la tentative de coup d'état a donl'opportunité de mettre en place des mesures
radicales ignorant les droits fondamentaux et de réaliser des changements systémiques
qui n'étaient pas possible dans les temps normaux
32
. L'AKP usait jusqula fin l'argument
le plus fort des temps modernes, la lutte contre le terrorisme, contre ses opposants
33
.
Même si les partis politiques d'opposition ont objecté aux pratiques non-démocratiques
du pouvoir politique et ont critiqué sévèrement les violations des droits de l'homme, ils
sont restés insuffisants, au sens du nombre des parlementaires, pour contrarier l'AKP
dans ses actes législatifs
34
. En outre, ils n'étaient pas capables de mobiliser les masses
et d'être une source d'espoir pour les électeurs, ce qui facilitait à son tour la position
d'AKP pour poursuivre ses politiques d'état d'urgence.
4.1.3. Média
En Turquie, actuellement 90 % du média est pro-gouvernementale
35
(Reporters Sans
Frontières, Turkey: Press Freedom Figures). Les dissidents ont des difficultés énormes
pour faire entendre leurs voix sur le média conventionnel. A cause de l'atmosphère
politique tendue pendant la période de l'état d'urgence, même le média à caractère
opposant s'est senti obligé de pratiquer autocensure (OHCHR, 2018: para. 92).
Les dissidents ne peuvent non plus utiliser effectivement le média social et les
plateformes d'internet
36
, car les comptes sociaux critiques sont souvent suivis par la
32
En avril 2017, sous les conditions d'état d'urgence, l'AKP a proposé des modifications constitutionnelles
avec le soutien de MHP.
OHCHR et la Commission de Venise ont constaté que les modifications proposées étaient de nature anti-
démocratique et autoritaire (OHCHR, 2018: paras. 31, 35, 36 et 93; Commission de Venise, 13 Mars 2017).
33
Lors de la campagne électorale pour le referendum constitutionnel d'avril 2017, l'alliance d'AKP et de MHP
accusait publiquement les gens disant non au referendum de s'allier avec les putschistes et des terroristes
(Tombuloglu & Kolay, 2017: 3).
34
Dans les élections générales organisées le 24 juin 2018, sous les conditions d'état d'urgence, l'AKP a obtenu
42,56% des votes et 295 députés sur 600 (haberler.com, 24 juin 2018).
35
Le média pro-AKP est baptisé comme "media de piscine", un terme faisant référence à une "piscine" remplie
(financée) par les fonds publics et utilisée selon les besoins de ses maîtres (Yeniçağ, 05 mars 2019).
36
L'accès au plus de 114.000 sites web, y compris le Wikipédia, était interdit (Parlement européen, Résolution
2018/2150 (INI): para. 8; OHCHR, 2018: para. 13). L'accès à Wikipédia était interdit le 29 avril 2017 et
cette interdiction a duré plus de 2 années. La Cour Constitutionnelle turque a décidé le 26 décembre 2019
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Les pratiques de l’état d’urgence et les droits de l’Homme: le cas d’expulsions massives des
fonctionnaires publiques en Turquie
Ömer Bedir
233
police d'internet et les partages de messages deviennent souvent un procès contre les
émetteurs. Le risque d'emprisonnement constitue une source de dissuasion non-
négligeable pour l'indépendance du média (OHCHR, A/HRC/WG.6/35/TUR/2, 20-31
Janvier 2020: para. 30; Reporters Sans Frontières, 2018)
37
.
Lorsqu'une personne ou bien quelconque institution (journal, site d'internet etc.) devient
une cible politique, d'abord les "trolls"
38
commencent à insulter et à intimider la personne
ou l'institution concernée. Ensuite, les journalistes du "média de piscine" continuent à
faire des nouvelles dénonciatrices ou légèrement menaçante. Dans la dernière phase, la
justice ouvre des enquêtes et décide à l'emprisonnement. Ce cycle se répète pour les
dissidents et les opposants qui ne plaisent pas aux forces dominantes.
Comme une grande partie du media était pro-gouvernementale et que les journalistes
avec la tendance d'opposition risquaient des peines d'emprisonnement et des attaques
physiques (Human Rights Watch, 2016: 33), le média ne pouvait pas remplir
suffisamment ses fonctions prévues dans une mocratie et conséquemment les
violations des droits de l'homme ne trouvaient pas suffisamment de place dans les
nouvelles et les journaux.
4.2. La position des principaux acteurs externes
Le 21 juillet 2016, le Secrétaire Général du Conseil de l'Europe a été informé par les
autorités turques, conformément à l'article 15 de la CEDH, que les mesures adoptées
après la tentative de coup d'État peuvent inclure une dérogation aux obligations énoncées
par la Convention
39
. Dans les semaines suivantes, plusieurs autres notifications ont suivi
après la promulgation des décrets-lois d'urgence postérieurs (Commission de Venise, 12
décembre 2016: paras. 31 et 55). Le 21 juillet 2016, le gouvernement turc a notifié
également le Secrétariat General des Nations Unies sur les dérogations de ses certaines
obligations émanant de la Pacte International des Droits Civils et Politiques
40
.
que l'interdiction d'accès à Wikipédia violait la liberté d'expression et donc n'était pas conforme à l'article
26 de la Constitution turque (Cour Constitutionnelle, 26.12.2019: paras. 103-104).
37
Le rapport du "Reporters Sans Frontières" sur le classement mondial de la liberté de la presse en 2018
classait la Turquie au 157
e
rang sur 180 pays; en 2019 de nouveau au 157
e
rang sur 180 pays et en 2020
au 154
e
rang sur 180 pays (Reporters Sans Frontières, World Press Freedom Index). "Human Rights Watch"
estime que 119 journalistes sont emprisonnés avec l'accusation de terrorisme (Human Rights Watch, 2020).
38
"Troll" est un terme péjoratif utilisé pour décrire les personnes qui insultent, désinforment, attaquent sous
l'anonymat depuis leurs comptes sociaux. Ces personnes cachent leurs vraies identités, emploient des
pseudonymes et des fausses photos sur leurs comptes sociaux. Il est allégé qu'il y a une "armée de troll"
orientée selon les fin politiques et que les trolls sont payés d'une façon régulière (Yeniçağ, 05 mars 2019;
Doran, ABC News, 11 juin 2020).
39
Council of Europe. Declaration of State of Emergency in Turkey (English translation). [Consulté le:
19.06.2020]. Accessible sur
https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016806
9538b
40
Les dérogations concernaient les articles 2, 3, 9, 10, 12, 13, 14, 17, 19, 21, 22, 25, 26 et 27. Voir, United
Nations. Turkey: Notification Under Article 4(3), Transmittal of the Secretary General (21 juillet 2016).
[Consulté le: 19.06.2020]. Accessible sur https://treaties.un.org/doc/Publication/CN/2016/CN.580.2016-
Eng.pdf
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4.2.1. Le Conseil de l'Europe
La Turquie est membre du Conseil de l'Europe depuis 1949 et un pays candidat à
l'adhésion à l'Union Européenne (UE) depuis 1999. Elle a reconnu le droit de recours
individuel à la CtEDH en 1987 et la juridiction obligatoire de cette dernière en 1990
41
. En
tant qu'un membre du Conseil de l'Europe qui a ratifié la CEDH et qu'un pays qui a
entamé les négociations d'adhésion avec l'UE en 2005, la Turquie devrait veiller aux
droits de l'homme et satisfaire les critères de Copenhague.
Les institutions européennes qui ont accueilli avec compréhension la claration d'état
d'urgence à la suite de la tentative de coup d'état ont exprimé leurs inquiétudes et
critiques face aux violations des droits de l'homme. Le Secrétaire General du Conseil de
l'Europe, M. Thorbjorn Jagland, a fait un appel aux autorités turques de faire une
distinction nette entre ceux qui ont essayé de réaliser le coup d'état et les autres
personnes qui ne sont pas impliquées dans cette affaire. Il a souligné que si les autorités
turques ne veillent pas à cette distinction, la Turquie peut être défiée devant la CtEDH
pour les violations des droits de l'homme (Council of Europe, 31 octobre 2016).
L'Assemblée Parlementaire du Conseil de l'Europe a exprimé aussi ses inquiétudes sur
les conséquences sociales des mesures mises en place dans le cadre de l'état d'urgence
et a souligné que les mesures étaient de caractère à entrainer la "mort civile" des
fonctionnaires expulsés. Elle a ajouté que ces mesures auront des effets dramatiques à
long terme sur la société turque (PACE, 2017: Rés. 2156).
La Commission de Venise, organe consultatif du Conseil de l'Europe sur les questions
constitutionnelles, à son tour a aussi appelé le gouvernement turc à respecter les droits
de l'homme (Commission de Venise, 12 décembre 2016: para. 155) et à s'abstenir de
faire des modifications constitutionnelles sous les conditions d'état d'urgence
(Commission de Venise, 13 mars 2017: para. 133). Par contre, le referendum
constitutionnel a été organisé en avril 2017 et a profondément nuit le principe de la
séparation des pouvoirs et la démocratie (OHCHR, 2018: paras. 35, 36 et 93).
Quant à l'organe judiciaire du Conseil de l'Europe, dans un peu de temps, la CtEDH a
reçu des milliers de recours des fonctionnaires expulsés dans la période d'état d'urgence.
Comme toutes les voies juridiques internes étaient inaccessibles pour les fonctionnaires
expulsés, le recours à la CtEDH était le seul moyen pour chercher la justice. L'arrivée
d'un grand nombre de recours, les difficultés pratiques et surtout politiques d'examiner
ces dossiers ont conduit les autorités du Conseil de l'Europe et de la CtEDH à négocier le
sujet avec les autorités turques.
Les responsables du Conseil de l'Europe et de la CtEDH ont conseillé au gouvernement
turc d'établir une commission ad hoc chargée d'examiner les dossiers d'expulsion et de
connaitre des voies de recours juridiques internes contre les décisions de ladite
Commission (Commission de Venise, 12 décembre 2016: paras. 221-222). A la suite des
négociations, le gouvernement turc a accepté d'établir une "Commission chargée
d'examiner les décisions prises sous ltat d'urgence" et de connaître "voie juridique
41
Ministère des Affaires Étrangères de Turquie. İnsan Hakları ve Avrupa Konseyi. [Consulté le: 26.04.2020].
Accessible sur https://www.mfa.gov.tr/insan-haklari-ve-avrupa-konseyi-tr.mfa
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interne" contre les décisions de la "Commission"
42
. Finalement, cette solution de
"Commission" n'a servi qu'à retarder
43
les recours à la CtEDH et a aidé implicitement la
prolongation des pratiques de l'état d'urgence et de leurs conséquences
44
.
4.2.2. L'Union Européenne
Les organes de l'UE et surtout le Parlement européenne (PE) étaient critiques face aux
pratiques de l'état d'urgence et à plusieurs reprises avaient demandé la levée de l'état
d'urgence (Parlement européen, 08 février 2018). Compte tenu des mesures
disproportionnées prévues par l'état d'urgence, le PE a demandé, en novembre 2016, à
la Commission et aux États membres de geler temporairement les négociations
d'adhésion en cours avec la Turquie (Parlement européen, Résolution 2018/2150 (INI):
Considérant D). En juillet 2017, le PE a invité de nouveau la Commission et les États
membres à suspendre formellement et sans délai les négociations d'adhésion avec la
Turquie si le train de réformes constitutionnelles était mis en œuvre sans modification et
s'il n y avait pas d'amélioration dans le domaine des droits de l'homme (Ibid.:
Considérant E).
Quand l'état d'urgence a été levé le 19 juillet 2018, le PE avait accueilli avec satisfaction
cette décision mais regrettait toutefois que la nouvelle législation introduite le 25 juillet
2018, plus précisément loi no. 7145, préservait de nombreux pouvoirs conférés à
l'exécutif en vertu de l'état d'urgence et permettait, en substance, que ce dernier se
poursuive, avec toutes les limitations que cela implique pour les libertés et les droits de
l'homme fondamentaux (Ibid.: para. 1).
Face à la continuation de la térioration des droits de l'homme, le PE a voté, le 2 octobre
2018, pour l'annulation d'une aide de 70 million d'euros dans le cadre de l'IAP II
(instrument d'aide de préadhésion) alloués à la Turquie. La décision du PE était prise par
544 voix pour, 28 voix contre et 74 abstentions (Parlement européen, 02 octobre 2018).
D'autre part, comparé avec le PE, les réactions de la Commission étaient relativement
faibles et réticentes
45
. Dans ce cadre, la Cour des Comptes Européen dans un rapport
42
"La Commission chargée d'examiner les dossiers d'état d'urgence" a éétablie le 23 janvier 2017 et a
commencé à fonctionner le 22 mai 2017. Il s'agit d'une seule Commission chargée d'examiner 125.678
(cent vingt-cinq mille six cent soixante-dix-huit) dossiers d'expulsions. Jusqu'à maintenant 98.300 dossiers
sont examinés par la Commission. 88.700 dossiers sur 98.300 (ça fait 90% des dossiers examinés) sont
rejetés. Voir, Commission chargée d'examiner les dossiers d'état d'urgence. [Consulté le: 14.03.2020].
Accessible sur https://ohalkomisyonu.tccb.gov.tr
Seulement deux tribunaux administratifs localisés à Ankara sont habilités pour examiner les décisions de la
Commission. Il est pratiquement impossible pour la Commission et les deux tribunaux administratifs
d'examiner plus de cent mille contentieux dans une durée raisonnable (Günday, 2017: 38).
43
La Commission rend ses cisions en moyenne dans une durée de 2 ans. Quant à deux tribunaux
administratifs, ils rendent aussi leurs décisions approximativement dans une durée de 2 ans. En cas d'une
décision négative du tribunal administratif, il faut recourir d'abord à la Tribunal d'Appel Administratif, ensuite
au Conseil d'État et ensuite à la Cour Constitutionnelle. Après cette dernière instance, la voie de recours à
la CtEDH s'ouvre. Le temps nécessaire pour un fonctionnaire expulsé d'accéder à la CtEDH est donc, en
moyenne, 10 années (Arslan, BBC Türkçe, 13 juin 2017).
44
En fait, comme la nature juridique et le contenu des plaintes étaient largement semblables, la CtEDH pouvait
examiner les dossiers à partir d'un "cas pilot" et ainsi aider à accélérer la livrance de la justice et à
atténuer les dommages subis. Il semble que, pour des raisons politiques, cette option n'a pas été préférée.
45
Cette approche de la Commission s'explique par la question brûlante des refugiées syriennes. La Turquie
héberge le nombre le plus élevé au monde de réfugiés et de migrants, soit plus de 4 millions de personnes,
dont 3,6 millions de réfugiés syriens. La Turquie continue de fournir des efforts louables en termes d'accueil,
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spécial a souligné que la conditionnalité prévue dans le cadre de l'IAP pouvait contribuer
à stimuler le processus deforme en Turquie et a critiqué la Commission de ne pas avoir
fait suffisamment l'usage de la conditionnalité attachée à l'IAP. La Cour a constaté
également que la possibilité de suspendre les financements en cas de non-respect des
principes de la démocratie et de l'état de droit, qui existait pour l'IAP I, n'était pas
explicitement prévue dans les règlements régissant l'IAP II et a critiqué la Commission
pour cette lacune (Cour des Comptes Européenne, 2018: paras. 18, 29 et 62).
4.2.3. Les Nations Unies
Les mécanismes des droits de l'homme des Nations Unies ont régulièrement exprimé
leurs inquiétudes concernant les violations des droits de l'homme, à travers des
communications confidentielles, des rapports et des communiqués de presse (OHCHR,
2018: para. 20). Le Conseil des Droits de l'Homme et le Haut-Commissariat des Nations
Unies aux Droits de l'Homme ont exprimé leurs soucis sur la tenue du referendum
constitutionnel d'avril 2017 sous les conditions de l'état d'urgence et ont critiqué la
concentration des pouvoirs dans la main de l'organe exécutif avec le referendum en
question (OHCHR, 2018: paras. 31, 35 et 36). Les experts de l'ONU, à leurs tours, ont
attiré l'attention aux pratiques de ltat d'urgence et aux violations des droits
fondamentaux. Ils ont également souligné que les modifications proposées par le
referendum constitutionnel pourraient avoir des conséquences graves sur les droits
économiques, sociaux et culturels (United Nations, 13 avril 2017).
5. Les conséquences de l'état d'urgence sur les Droits de l'Homme et la
démocratie
L'état d'urgence qui a duré pendant deux années avait résulté avec la térioration des
libertés fondamentales et de l'État de droit en Turquie. Les expulsions massives des
fonctionnaires; l'interdiction de voyage à l'étranger pour les fonctionnaires expulsés; le
recours à la détention arbitraire; la durée excessivement longue des détentions
provisoires et des procédures judiciaires; l'absence d'acte d'accusation dans plusieurs
affaires et la sévérité des conditions de détention; les allégations de mauvais traitements
et de torture de détenus; l'application à grande échelle de l'isolement cellulaire de longue
durée, ce qui équivaut à une seconde peine pour les détenus; le recours abusif à des
mesures antiterroristes pour légitimer la répression des droits de l'homme telles que
rapportées par plusieurs organisations de fense des droits de l'homme et par le bureau
du Haut-Commissariat des Nations Unies aux droits de l'homme, étaient parmi les
principales conséquences des pratiques de l'état d'urgence au niveau des individus
(OHCHR, 2018; Commission de Venise,13 Mars 2017; Parlement européen, Résolution
(2018/2150 (INI)).
Quant au niveau social, la brutalité des sanctions infligées, la faiblesse des individus et
des groupes face au pouvoir systémique et le mal fonctionnement des mécanismes
juridiques ont aidé à la néralisation d'une peur collective. Dans cette atmosphère de
de soutien et d'hébergement d'un nombre important de réfugiés et de migrants (Commission européenne,
COM (2019) 174: 3)
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crainte, souvent l'égoïsme se régnait. Ceux qui n'étaient pas touchés directement par les
mesures d'état d'urgence n'attachaient pas grande importance aux violations des droits
de l'homme. Malgré l'aggravation des droits et des libertés fondamentaux sous l'état
d'urgence, une bonne majorité des électeurs n'ont pas cherché à envoyer un
avertissement à l'autoripolitique par leurs votes
46
. Cette situation paradoxale peut être
expliquée d'un part par l'échec de l'opposition et de l'autre part par l'indifférence d'une
certaine partie des électeurs aux droits de l'homme et aux libertés fondamentales.
Concernant le niveau systémique, l'autorité politique a considéré nécessaire, à la suite
de l'expérience de la tentative de coup d'état, de concentrer le pouvoir en son sein et de
limiter les marges de manœuvres de toutes sortes d'opposition. Dans cet objectif, sous
les conditions de ltat d'urgence, les modifications constitutionnelles ont été mises en
place par le referendum de 2017. Ces modifications constitutionnelles ont profondément
changé le système politique turc (OHCHR, 2018: paras. 32-33). Le régime parlementaire
a laissé sa place à un "régime présidentiel de type turc"
47
, dans lequel le pouvoir était
concentmassivement dans les mains du président. Par conséquent, l'équilibre rompu
entre les pouvoirs exécutif, législatif et judiciaire a eu des effets négatifs sur la nature
démocratique et pluraliste du système politique. Les termes de parti politique au pouvoir,
de gouvernement et d'État se sont confondus d'une telle manière que la moindre critique
à l'égard de l'autoripolitique était perçue et montrée comme une attaque contre la
sainte existence de l'État.
En outre, la lutte interne entre les Islamistes, d'un coté l'AKP en tant que représentant
de l'Islamisme politique et de l'autre coté la communauté religieuse putschiste devenue
organisation terroriste, a perturbé les équilibres du système politique en Turquie et a
entrainé l'affaiblissement des institutions démocratiques et des droits de l'homme. Il est
confirmé encore une fois que le combat pour accaparer le pouvoir est souvent plus fort
que la proximité religieuse. En plus, les Islamistes politiques qui prônaient, quand ils
étaient dans l'opposition, les libertés fondamentales et les droits de l'homme, y compris
les libertés religieuses, se sont contredits
48
, avec leurs pratiques, lorsqu'ils étaient au
pouvoir.
Une autre particularide cette période d'état d'urgence est l'utilisation extensive de la
technologie d'informatique dans les processus de violations des droits de l'homme
49
.
Dans ce sens, les listes comprenant les informations personnelles des fonctionnaires
expulsés étaient publiées sur le site internet du journal officiel. En plus, ces listes
digitalisées ont été communiquées au Ministère de l'Intérieur pour l'annulation des
passeports et aux autres institutions concernées, telles que l'Institution de la curité
Sociale, le Ministère de l'Education etc., pour la mise en place des autres sanctions
46
Pendant l'état d'urgence, l'AKP a remporté le referendum constitutionnel d'avril 2017 et les élections
générales de juin 2018.
47
Face aux critiques relatives à l'extrême concentration du pouvoir dans les mains d'une seule personne, les
supporteurs des modifications constitutionnelles ont prôné le nouveau système d'être un "système
présidentiel à la turque". Cette qualification cherchait à assurer plus de légitimité à ce nouveau système
aux yeux des électeurs nationalistes et des indécis.
48
La contradiction évoquée en haut entre les discours et les pratiques des Islamistes politiques a entrainé une
érosion dans les croyances religieuses, surtout chez les jeunes. (Diken, 16 mars 2019).
49
Pour plus d'information sur le fichage informatique et la technologie de surveillance voir, Sainati, Gilles
(2007). "De l'État de droit à l'État d'Urgence". La couverte «Mouvements». 2007/4 52: pp. 82-89.
[Consulté le: 03.04.2020]. Accessible sur https://www.cairn.info/revue-mouvements-2007-4-page-82.htm
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prévues. Voire, ces listes digitalisées ont été communiquées via des circulaires
confidentielles aux entreprises privées telles que les banques et les compagnies
d'assurance
50
(GazeteDuvar, 27 décembre 2019 et 31 décembre 2019). Les sanctions
infligées contre les fonctionnaires expulsés ne se limitaient donc pas seulement au
secteur public mais aussi s'étendaient au secteur privé. Donc, les moyens technologiques
faisaient presque impossible d'échapper les sanctions de l'autorité politique même dans
le secteur privé.
Conclusion
La déclaration d'état d'urgence ne suspend ni le droit ni ltat de droit. C'est une période
temporaire certains droits et libertés peuvent être limités, d'une manière raisonnée,
pour permettre de surmonter aisément une situation extraordinaire. Il ne s'agit en aucun
cas d'un régime arbitraire. Donc, me s'ils peuvent être limités dans la période de l'état
d'urgence, les droits de l'homme ne devraient pas être violés.
Dans le cas d'état d'urgence mis en place en Turquie, on observe que l'atmosphère
politique tendue après la tentative du coup d'état, la légitimité accrue du pouvoir politique
et l'argument fort de lutte contre le terrorisme ont "politiquement" facilité la mise en
place des mesures draconiennes ignorant les droits de l'homme.
Le changement de la jurisprudence de la Cour Constitutionnelle concernant les DLE, plus
précisément sa décision qui a rendu impossible d'examiner l'anti-constitutionnalité des
DLE des périodes d'état d'urgence, a donun pouvoir et un confort immense à l'autorité
politique. Avec cette décision de la Cour Constitutionnelle, le pouvoir exécutif était
exempté de tout contrôle juridique dans ses actes mis en œuvre par les DLE, ce qui a
permis "juridiquement" la possibilité de négliger les droits de l'homme.
On observe la paralysie des acteurs internes face aux violations massives des droits de
l'homme: les juristes, les partis politiques, le média, la société civile, les citoyens
ordinaires, en bref toutes les composantes de la vie mocratique, se sont restés
largement insuffisants pour remplir leurs fonctions mocratiques et pour protéger les
droits fondamentaux. Pendant toute cette période, les valeurs démocratiques, les droits
de l'homme, les défendeurs des droits de l'homme étaient publiquement dévalorisés par
la classe dirigeante et par certains groups partageant les mêmes intérêts avec cette
classe
51
. Conséquemment, les droits de l'homme et les valeurs mocratiques ont
considérablement régressé sous ltat d'urgence, ce qui est devenu un moyen non
seulement pour lutter contre le terrorisme mais aussi pour intimider les opposants. Le
pouvoir politique était bien conscient que ses actes ntaient pas conformes au droit et
aux droits de l'homme. Mais quand-même, grâce à l'impuissance et la division des partis
50
Certaines banques privées ont refusé d'ouvrir des comptes bancaires et de payer l'argent transféré aux ex-
fonctionnaires du fait qu'ils étaient expulsés par les DLE. Certaines compagnies d'assurance ont refude
payer une indemnité pour les accidents de voiture aux ex-fonctionnaires expulsés.
51
Les paroles du Ministre de l'Intérieur sont importantes pour comprendre la perception des droits de l'homme
au niveau politique: "nous combattons avec le terrorisme culturel…les soi-disant droits des femmes, les soi-
disant droits de l'homme, la soi-disant paix, le soi-disant environnement, écologie… Ce sont tous des voiles,
des masques. Qui utilisent ça? Les organisations terroristes…" Türmen, Rıza (Ancien juge turc auprès de la
CEDH) (09 mars 2020). zgürlükler Ülkesi Türkiye". T24. [Consulté le: 09.03.2020]. Accessible sur
https://t24.com.tr/yazarlar/riza-turmen/ozgurlukler-ulkesi-turkiye,25795
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d'opposition, il a préféré poursuivre cette approche contestable pour des raisons et des
fins politiques.
Les diverses autorités européennes et internationales ont régulièrement fait des appels
au gouvernement pour lever l'état d'urgence le plus vite possible et respecter les droits
de l'homme. Mais, l'autorité politique a préféré rester indifférent à ces appels et critiques.
Dans ce sens, la capacité d'influence des acteurs externes était particulièrement limitée.
L'expulsions massives des fonctionnaires publiques et plusieurs d'autres actes mis en
place par les DLE étaient en plein contradiction avec la CEDH. Bien que toutes les voies
juridiques internes étaient ineffectives, la CtEDH a préféré, pour des raisons politiques,
ne pas examiner les recours des fonctionnaires expulsés. Le Conseil de l'Europe a
conseillé des méthodes alternatives, tel que l'établissement d'une commission nationale
pour examiner les dossiers d'expulsions. En fait, cette approche du Conseil de l'Europe
et de la CtEDH a davantage encouragé la classe dirigeante pour prolonger l'état d'urgence
et ses pratiques.
Finalement, il faut souligner que toute campagne de lutte contre le terrorisme doit être
menée dans le plein respect des droits de l'homme et de l'État de droit, deux éléments
indispensables à son succès sur le long terme. Le respect de l'État de droit n'enlève rien,
mais au contraire rajoute, à l'efficacité des efforts de lutte contre le terrorisme. Pour le
bon fonctionnement du système démocratique, il est crucial de préserver un juste
équilibre entre les mesures de sécurité, lesquelles sont par nature restrictives, et la
protection des droits fondamentaux (Conseil de l'Europe, CODEXTER, 2013: 1).
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Les pratiques de l’état d’urgence et les droits de l’Homme: le cas d’expulsions massives des
fonctionnaires publiques en Turquie
Ömer Bedir
246
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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247
OS REFUGIADOS ROHINGYA NO BANGLADESH: UM CAMINHO DIFÍCIL PARA A
INTEGRAÇÃO, ENTRE PREOCUPAÇÕES HUMANITÁRIAS E DE SEGURANÇA
SHAHANAZ PARVEN
arfin.cu29@gmail.com
Doutoranda do Departamento de Processos Políticos e Análise, na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanitárias da Universidade da Amizade Popular da Rússia, Moscovo (Rússia). Está a escrever
uma dissertação sobre o tema "Gestão Política da Migração do Bangladesh em Condições
Modernas". Os seus interesses científicos incluem a avaliação das políticas públicas demográficas
e sociais e o seu impacto previsto sobre a população. Obteve um Bacharelato e um Mestrado em
Administração Pública pela Universidade de Chittagong, e tem um segundo Mestrado em Cncia
Política pela Universidade Popular da Amizade da Rússia, Moscovo. Fala bangla, inglês, e russo.
Resumo
Neste artigo, analisamos as tensões entre a promoção dos direitos humanos para os
refugiados Rohingya no Bangladesh e a segurança do país contra o risco de guerra civil. No
quadro teórico dos conflitos etnopolíticos, e da metodologia do modelo de quatro fatores,
desenvolvemos uma avaliação de risco para um conflito civil no Bangladesh com base em
observáveis comportamentais. A avaliação sugere que alguns direitos humanos, se
promovidos, aumentariam os fatores de risco de guerra civil no país anfitrião. Em particular,
a resolução do problema da apatridia dos refugiados através da sua integração política no
país de acolhimento está ligada a um aumento do risco de conflito civil. A promoção de outros
direitos, tais como o acesso à saúde e o direito ao repatriamento, parece diminuir o nível de
risco de conflito. Isto permite-nos formular as características desejáveis de uma política de
integração que não agrava a instabilidade política do país. As implicações deste estudo à luz
da aquisição ilegal de passaportes do Bangladesh por alguns refugiados Rohingya são também
discutidas.
Palavras-chave
Instabilidade política, conflito étnico, crise dos refugiados Rohingya, modelo de quatro fatores,
direitos dos refugiados
Como citar este artigo
Parven, Shahanaz (2021). Os Refugiados Rohingya no Bangladesh: um caminho difícil para a
integração, entre preocupações humanitárias e de segurança. Janus.net, e-journal of
international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.13
Artigo recebido em 16 Maio 2020 e aceite para publicação em 30 Outubro 2020
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Os refugiados Rohingya no Bangladesh:
um caminho difícil para a integração, entre preocupações humanitárias e de segurança
Shahanaz Parven
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OS REFUGIADOS ROHINGYA NO BANGLADESH: UM CAMINHO
DIFÍCIL PARA A INTEGRAÇÃO, ENTRE PREOCUPAÇÕES
HUMANITÁRIAS E DE SEGURANÇA
1
SHAHANAZ PARVEN
1. Introdução. A tensão entre a proteção dos direitos humanos dos
refugiados Rohingya e a prevenção de conflitos civis no Bangladesh
O Bangladesh é um país que é afetado por um risco significativo de violência política
(Chawdhury, 2016). Nos últimos anos, tem havido ataques terroristas frequentes em
Dhaka (Mehra, 2016), juntamente com protestos violentos conhecidos como hartals
(Hossain, 2011); as eleições parlamentares m sido sistematicamente acompanhadas
de violência (Akond et al., 2019), e as alterações climáticas têm tido efeitos desastrosos
na terra e na agricultura do país (Islam & van Amstel, 2018). Todos estes são indicadores
que sugerem um futuro incerto para a estabilidade da constituição política do Bangladesh
(Hassan & Nazneen, 2017). Os fatores endógenos que contribuem para o risco de
instabilidade política no país são ainda agravados pela presença de uma crise maciça de
refugiados, com origem na reinstalação nas regiões orientais do país por centenas de
milhares de Rohingyas que fugiram de Mianmar, e que ascendem agora a cerca de um
milhão de indivíduos (IOM, 2018). Desde o início da crise, surgiu uma tensão na
discussão científica entre a necessidade de proteger os direitos humanos dos refugiados
e o imperativo de preservar a estabilidade de uma região frágil e sobrepovoada (Lim,
2015). Neste contexto, estudamos a relação entre os direitos humanos dos refugiados
Rohingya instalados no Bangladesh, e as necessidades de segurança da população
residente na região, contra a ameaça iminente de um conflito civil.
A discussão científica sobre os direitos humanos dos Rohingyas teve início muito antes
do mais recente genocídio (Brinham, 2012), e continua ahoje (Haar et al., 2019). Esta
discussão incidiu, em particular, sobre o direito dos refugiados a serem repatriados na
Birmânia e a regressarem às suas casas (Faulkner & Schiffer, 2019). Mas também, o seu
direito de acesso à saúde (Mahmood et al., 2017) e estruturas educativas (Prodip, 2017),
a proteção contra a discriminação racial (Cheesman, 2017), a sua apatridia tanto em
Mianmar (Ahsan Ullah, 2016) como no Bangladesh (Milton et al., 2017), e também a
interação entre múltiplos destes direitos em simultâneo (Balazo, 2015). Uma ideia
comum na teoria dos direitos humanos (Harvey, 2001) é que deveria ser desejável
proteger todos os direitos humanos dos refugiados, uma vez que isso conduziria a um
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Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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aumento da sua segurança humana (Ogata & Cels, 2003). Esta ideia foi também sugerida
para aplicação no caso dos refugiados Rohingya (Adams, 2019). No entanto,
argumentamos neste artigo que uma abordagem indiscriminada queo distingue entre
classes de direitos humanos e o seu impacto na estabilidade política pode,
inadvertidamente, levar a causar mais danos do que benefícios. A determinação sobre
se a promoção de qualquer direito humano específico afeta a segurança deve, de facto,
ser feita em conformidade com os prognósticos conhecidos de instabilidade política, e
considerando então se a melhoria de qualquer direito humano aumenta ou diminui o risco
de conflito civil. Embora o raciocínio teórico de Thiessen (2019) sugira que deveria ser
possível prevenir o extremismo violento através da promoção dos direitos humanos,
veremos contudo que tal ser possível depende, em última análise, dos fatores que afetam
a segurança e de que forma.
Para prosseguir a nossa tarefa de pesquisa, vamos primeiro discutir a teoria dos conflitos
etnopolíticos, no âmbito da qual foi desenvolvido o modelo que selecionámos para prever
conflitos futuros. Em seguida, descreveremos o funcionamento do próprio modelo e como
pode ser aplicado para estudar a presença de Rohingyas no Bangladesh. Posteriormente,
designaremos quais os indicadores de futuros conflitos civis que seriam modificados pela
promoção de direitos humanos específicos. E por último, identificaremos os direitos
humanos que podem ser promovidos com segurança sem aumentar o risco de conflitos
civis, e os que não podem. Note-se que, no contexto deste artigo, estamos à procura de
uma compreensão causal e explicativa do assunto, não seguimos uma abordagem
interpretativa ou de Verstehen (Parsons, 1978). A implicação para isto é que ignoraremos
todas as características não-comportamentais dos conflitos, e nomeadamente todos os
seus aspetos simbólicos, ideológicos, culturais ou de valor (Harrison, 1995). Se
aceitarmos esta limitação teórica e este pressuposto metodológico, então podemos tirar
algumas conclusões interessantes sobre a relação entre os direitos humanos e a
segurança dos Rohingyas e do Bangladesh, como veremos nas próximas secções, pelo
que, neste caso, a confiança em métodos comportamentais é justificada.
2. A instabilidade política como a probabilidade de guerra intra-estatal
A diversidade étnica num país pode ser um fator de enriquecimento e pode contribuir
para a diversificação cultural da população, mas também pode influenciar negativamente
a paz e a unidade política desse mesmo país. A ausência de paz e de unidade política
num país corresponde a uma situação de conflito internacional ou civil e está
frequentemente associada à ausência de estabilidade política. Na literatura sobre estudos
de conflitos, a estabilidade política é normalmente definida como a estabilidade do
governo de um determinado país (Raval & Salvi, 2017). No entanto, nem todos
concordam com esta definição, tendo sido sugerido que a estabilidade política deve ser
considerada como a perceção pela população de "a probabilidade de o governo ser
desestabilizado ou derrubado por meios inconstitucionais ou violentos, incluindo a
violência doméstica e o terrorismo" (Radu, 2015). Embora concordemos com a utilidade
operacional desta declaração, argumentamos que a definição dada acima descreve o
otimismo ou confiança da população em relação à continuação do governo e, portanto,
uma crença, em vez de um fenómeno físico e social mensurável, como a guerra. Ao
equacionar a estabilidade política com a ausência de guerra, deve contudo notar-se que
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a paz, a ausência de conflito, é a condição mais comum num Estado, e não a guerra
(Levi, 1960). A teoria da paz nos assuntos internacionais sugeriu inicialmente que a paz
não é uma coisa, ou a ausência de algo, mas sim um objetivo que deve ser procurado
com luta e esforço (Galtung, 2007). A definição de paz entre Estados como uma "guerra
negativa", ou a ausência de guerra, veio mais tarde (Martín, 2005), e levou à
consideração teórica de que a estabilidade política, também, é um conceito negativo, no
sentido de que representa a ausência de instabilidade política, sem ter qualquer
significado em si. Foi subsequentemente proposto abandonar o conceito de estabilidade
política da disciplina dos estudos de conflito, e concentrar-se antes na análise do seu
conceito oposto; isto é, o conceito de instabilidade política (Alesina et al., 1996). Outros
propuseram, em vez disso, que a estabilidade política exista efetivamente, e que não
seja simplesmente uma condição negativa relacionada com a ausência de conflitos intra-
estatais (Margolis, 2010); mas acreditamos que as duas palavras, "estabilidade" e
"instabilidade", devem referir-se a conceitos que são de natureza oposta, para que a
produção científica sobre o assunto não corra o risco de perder consistência interna. No
estudo por Alesina et al. (1996) a instabilidade política foi definida simplesmente como
a propensão para o colapso de um governo, e nesse contexto a estabilidade política seria
o seu oposto; ou seja, seria a probabilidade de um governo sobreviver até ao próximo
período de tempo. Por outras palavras, a estabilidade política seria definida como a
situação normal de "business-as-usual".
Para o nosso artigo tomamos uma definição ligeiramente diferente da acima sugerida:
instabilidade política de um país é o risco de uma futura guerra civil, ou seja, um conflito
intra-estatal, em oposição ao colapso genérico de um governo devido a causas externas.
Uma vez que sabemos que a guerra civil é o estatuto menos comum para um Estado, é
importante determinar quais o as características associadas ao seu surgimento num
determinado país. Estas características são também chamadas de "preditores" de
conflitos civis na literatura associada (Couttenier & Soubeyran, 2015), e o modelo que
selecionámos para determinar esses preditores, como veremos mais adiante, sugere que
muitos deles têm algo a ver com etnia e discriminação.
3. Fatores étnicos que afetam a instabilidade política no Bangladesh
Os Rohingyas no Bangladesh não tiram a sua filiação étnica da diferenciação da sua
língua, cultura e valores, dos dos outros grupos étnicos do Bangladesh. Como a
população Rohingya no Bangladesh é composta pela maioria dos refugiados, e não pela
população histórica residente, só pode ser definida como um grupo étnico em relação às
etnias do país do qual se deslocaram nos últimos tempos. Esse país é Mianmar; e nele,
a afiliação étnica dos Rohingyas desenvolveu-se e tornou-se uma construção socialmente
aceite (Alam, 2018). Acredita-se que a religião desempenhou um papel inicial na
formação da identidade étnica dos Rohingyas, que constituiu então a base para a
diferenciação linguística e genética da população (Leider, 2018). Contudo, um papel
ainda mais importante foi desempenhado pela revogação da cidadania ex autoritate do
governo de Myanmar, numa tentativa deste último de consolidar a unidade política dos
restantes componentes étnicos do país (Alam, 2018). Ao deslocar-se de Mianmar para o
Bangladesh nos últimos tempos, a população Rohingya, juntamente com a sua
compreeno da sua própria identidade étnica, juntou-se a um sistema étnico pré-
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existente como o seu novo membro. Um grupo étnico que teve origem num país
diferente, num sistema étnico diferente, foi assim forçosamente importado para o
sistema étnico do Bangladesh (Storai, 2018). No Bangladesh, os Rohingyas são um grupo
étnico que se distingue da maioria étnica do país, os bangladeshis, porque falam uma
língua diferente e porque os seus papéis e regras são diferentes dos das outras
componentes étnicas da sociedade (Kipgen, 2019).
Ao fazer a consideração anterior, determinámos portanto que os Rohingyas existem hoje
como um grupo étnico no sistema étnico do Bangladesh. Após definirmos a instabilidade
política como a probabilidade de um conflito civil num Estado, podemos agora discutir os
fatores étnicos que contribuem para a variação dessa probabilidade. A ideia subjacente
é que, se existem fatores étnicos que prevêem conflitos civis, estes devem ser aplicados
para estudar o impacto da presença dos Rohingyas na probabilidade de conflito civil no
Bangladesh. A literatura sugere que a sua presença é uma ameaça potencial para a
segurança interna do país (Rahman, 2010), mas não é claro de acordo com que
indicadores ou fatores particulares tal julgamento deve ser feito.
A disciplina que é competente para o estudo dos fatores étnicos específicos associados à
emergência de conflitos violentos é denominada estudos de conflitos etnopolíticos
(Horowitz, 2000), e surgiu nos anos 80 para fundir os vários ramos da sociologia, ciência
política e etnografia, que estudavam o assunto de forma independente. Esta teoria já foi
aplicada para estudar a relação entre os Rohingyas e as outras comunidades étnicas de
Mianmar. (Rahman, 2015). Por conseguinte, podemos alargá-lo para estudar a relação
entre os refugiados rohingya e as suas comunidades de acolhimento do Bangladesh, uma
vez que a reinstalação dos primeiros com os segundos dura há vários anos no
momento da redação. De acordo com os fundamentos teóricos dessa disciplina, o sistema
de relações entre grupos étnicos pode ser dividido em duas categorias principais:
sistemas hierarquizados e não hierarquizados (Jenkins, 1987). Os sistemas de
classificação caracterizam-se pela presença de hierarquias sociais estratificadas entre as
diferentes etnias, de tal forma que a competição entre elas se realiza através da dinâmica
de poder e dominação entre grupos. Nos sistemas o hierarquizados, pelo contrário,
não existe uma relação hierárquica única entre os vários grupos étnicos presentes num
Estado. Cada grupo detém a sua estrutura de liderança, cuja legitimidade para governar
é largamente independente do apoio de outros grupos étnicos. De acordo com Horowitz
(2000), os sistemas não classificados caracterizam-se também por um nível geralmente
mais elevado de estabilidade política do que os classificados. Isto porque, em contraste
com os sistemas classificados, os não classificados têm uma competição inter-étnica que
se baseia no princípio da inclusão e exclusão, em oposição ao poder e submissão. O
sistema étnico do Bangladesh parece caracterizar-se pelo facto de um determinado grupo
étnico, o grupo da maioria da população do Bangladesh, ocupar a maior parte das
posições de liderança do país (Khan, 1976). Como consequência disto, acreditamos que
o sistema étnico do Bangladesh hoje em dia pode ser classificado como um sistema étnico
ordenado. As previsões teóricas sugerem portanto que, se reconhecermos o sistema
étnico do Bangladesh como um sistema ordenado, este tem uma probabilidade mais
elevada do que a média de sofrer conflitos civis.
Outra abordagem ao estudo dos conflitos entre etnias é enquadrar os conflitos étnicos
como acontecimentos que ocorrem no processo de formação de um Estado-nação
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(Varshney, 2007). Coloca-se então a questão de saber se, em caso de conflito civil, a
comunidade Rohingya tentaria ou o estabelecer um Estado-nação étnico, e a previsão
teórica sugere que o faria. Existe uma ideologia política que apoia fortemente a
necessidade de criar um Estado independente Rohingya, que é chamado "nacionalismo
Rakhine" (Zöllner, 2017); acreditamos que a questão da independência nacional dos
Rohingyas, e não estritamente religiosa, esteve de facto na base da crise em curso na
Birmânia. A opinião de que um nacionalismo Rohingya latente está a causar a atual crise
humanitária é também discutida por outros estudiosos, tais como McLaughlin (2015) e
Nang (2013), e apoiamos a tese de que a guerra civil em Mianmar é uma guerra pela
repressão da aspiração à independência nacional de uma componente étnica da
população birmanesa.
A última abordagem teórica e metodológica do problema dos conflitos etnopolíticos que
aqui discutimos baseia-se nos paradigmas do positivismo e do comportamentalismo.
Neste contexto, acredita-se que os conflitos civis têm causas que não podem ser
encontradas nos próprios conflitos; mas sim, que estes conflitos são o resultado de
estímulos provenientes do ambiente social, cuja reação conduz à violência. Tal como
Barbashin (2008) assinala, "os conflitos sociais são geralmente explicados ou como
reações ao estímulo social, externas ao ator ou em ligação com as necessidades
psicológicas ou materiais individuais". Aceitamos esta afirmação teórica e, portanto,
assumimos para a parte empírica deste artigo que os fatores relacionados com a futura
emergência de um conflito étnico num país têm de ser encontrados não no próprio
conflito, mas em estímulos externos aos atores do conflito. Ou seja, de estímulos
externos às fações em conflito no conflito futuro. Ao dizermos isto, podemos agora
analisar o modelo que selecionámos para extrair os preditores do conflito civil no
Bangladesh, e ver como a promoção dos direitos humanos dos refugiados Rohingya pode
afetar o risco de conflito civil.
4. A crise dos refugiados Rohingya e o aumento do risco de instabilidade
política
Depois de determinarmos que, de acordo com a nossa atual compreensão teórica da
emergência de conflitos étnicos, os fatores que os provocam devem ser encontrados no
ambiente social onde vivem os atores do conflito, a nossa tarefa é então deslocada para
a determinação dos próprios preditores. Esta determinação foi feita empiricamente por
outros, e aqui descreveremos brevemente o modelo com melhor desempenho, na sua
aplicação ao Bangladesh. Foram feitas várias tentativas no passado para encontrar as
variáveis sociais que melhor prevêem a emergência de um futuro conflito civil, tais como
as que foram conduzidas por Stewart et al. (2002) e Hegre et al. (2013). Após verificação
empírica dos dados mundiais relacionados com os recentes conflitos civis, a determinação
dos preditores mais importantes foi contudo feita e verificada empiricamente. Um certo
modelo estatístico desenvolvido por Goldstone et al. (2010) provou ser o melhor preditor
de futuros conflitos civis, e esse modelo utiliza quatro preditores. Este modelo foi
aplicado com sucesso no passado para realizar avaliações de segurança com respeito
específico aos Rohingyas (Cook et al., 2011, Hangzo & Gong, 2013), e também para o
Bangladesh (Shallcross & Ahner, 2016), independentemente. Assim, consideramos
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apropriado utilizá-lo para estimar o peso da presença dos Rohingyas no Bangladesh, no
que diz respeito ao risco de conflito civil. Os quatro preditores são:
1) Nível de mortalidade infantil.
2) Localização do regime político na tipologia "liberal democrático-autoritário”.
3) Presença de violência entre forças estatais e grupos étnicos locais.
4) Presença de conflitos nos países vizinhos.
Para determinar como a presença dos refugiados Rohingya no Bangladesh afeta a
instabilidade política do país e, portanto, a probabilidade de um futuro conflito civil,
podemos agora julgar se a promoção de alguns direitos humanos dos Rohingyas aumenta
ou não o valor de cada um dos quatro preditores. A previsão teórica que se poderia fazer,
seguindo a teoria segundo a qual os direitos humanos promovem a segurança humana
(Benedek, 2008), é que a promoção de todos os direitos humanos deve ser
correlacionada com uma diminuição do nível de risco, tal como calculado de acordo com
este modelo. Para testar esta teoria, analisaremos cada um destes fatores
individualmente, para ver se existem direitos humanos particulares dos refugiados
Rohingya que, ao serem promovidos, contribuiriam positivamente, e não negativamente,
para o aumento do risco de conflito civil no Bangladesh.
4.1. Nível de mortalidade infantil
Em primeiro lugar, deve notar-se que o nível geral de mortalidade infantil e de menores
de cinco anos entre a população do Bangladesh tem vindo a diminuir nos últimos anos
(Unicef, 2015). Isto deve-se principalmente à melhoria do sistema de saúde do país, e à
melhoria das condições higiénicas da população local (Islam & Biswas, 2014). Em
contraste com isto, os refugiados Rohingya têm um acesso significativamente pior aos
cuidados de saúde e à higiene (Islam & Nuzhath, 2018), e, por conseguinte, as suas
condições de saúde são motivo de preocupação. No contexto deste artigo, assumimos
que a população Rohingya contribui para este fator de risco se o nível de mortalidade
infantil entre eles durante um determinado ano for superior ao vel médio
correspondente da população do Bangladesh durante esse mesmo ano. A fim de verificar
esta hipótese, podemos observar os dados disponíveis sobre o nível de mortalidade
infantil dos residentes gerais do Bangladesh, e compará-los com os disponíveis para a
população Rohingya, o que representa uma amostra não aleatória dos residentes gerais
do país.
A autoridade competente para a recolha e divulgação das figuras relacionadas com este
assunto é o Cirurgião Geral de Cox's Bazar. Embora nem todo o Bazar de Cox's seja
povoado por Rohingyas, eles constituem de facto a maior parte da população local (Bhatia
et al., 2018), e, por conseguinte, todos os fenómenos médicos que afetam os Rohingyas
aí residentes são suscetíveis de ter impacto nos dados agregados relacionados com esse
distrito. conseguimos encontrar números relacionados com o nível de mortalidade
infantil para Cox's Bazar em 2015 (Chaw Nu, 2016), pois parece que os Boletins de Saúde
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Local para outros anos ou não existem ou não são acessíveis. Relatamos aqui o quadro
contido no Boletim de Saúde Local para janeiro - dezembro de 2015.
Figura 1. Mortalidade infantil no Bangladesh
Fonte: (Chaw Nu, 2016). Figura desenhada pela autora
O nível de mortalidade de menores de 5 anos em Cox's Bazar em 2015 foi de 41,4, em
cada 1000 nascidos vivos. Nesse ano, a média nacional de mortalidade infantil foi de
36,4 (Unicef, 2015), o que significa que o vel de mortalidade infantil em Cox's Bazar
foi significativamente mais elevado do que o de todo o país. A partir daqui, podemos
concluir que a presença dos Rohingyas no Bangladesh contribui para aumentar o peso
do primeiro preditor conhecido de conflitos civis. Os números estão ausentes durante
outros anos para além de 2015, pelo que será necessário aprofundar a investigação para
determinar se esta é uma ocorrência única ou uma característica longitudinal da presença
dos Rohingya no Bangladesh.
Da análise dos dados associados a este fator, conclui-se que a promoção do direito de
acesso à saúde da população Rohingya, e em particular dos seus filhos, afetaria o nível
de risco de conflito civil para o Bangladesh, no sentido de que o diminuiria. Parece assim
que a diminuição do nível de mortalidade infantil entre os Rohingyas poderia ser uma
política desejável, não em si mesma, mas também para promover a estabilidade
política da região.
4.2. Classificação do regime sobre a tipologia "democrático-
autocrático”
O segundo preditor conhecido de futuros conflitos civis é a classificação do regime político
do país no eixo "democrático-autocrático". Mais especificamente, acredita-se que quanto
776
2376
2546
2845
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
Still Births Neonatal Deaths Infant Deaths US Deaths
Nº total de nados-vivos em 2015: 68,732
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menos extrema for a posição de um país nesse eixo, maior é a probabilidade de um país
vir a sofrer uma guerra civil no futuro. Para realizar esta classificação, o conjunto de
dados Polity IV é normalmente utilizado (Marshall et al., 2011). A informação nele
relatada está disponível até 2013, pelo que não é utilizada para determinar o atual nível
de risco associado à presença dos Rohingyas, sob este indicador específico. Podemos,
contudo, estudar como é formulada a pontuação Polity, para determinar se a crise dos
refugiados pode, em princípio, influenciar a sua variação numa direção ou noutra. Embora
a discussão do procedimento completo para a atribuição da pontuação de Polity a cada
país esteja fora do âmbito do presente artigo, queremos contudo notar que nenhum dos
fatores utilizados é atualmente afetado pela presença dos Rohingyas. Isto acontece
porque, a partir de hoje, os refugiados têm uma integração política limitada no
Bangladesh (Milton et al., 2017). Embora a discussão do procedimento completo para a
atribuição da pontuação de Polity a cada país esteja fora do âmbito do presente artigo,
queremos contudo notar que nenhum dos fatores utilizados é atualmente afetado pela
presença dos Rohingyas. Isto acontece porque, a partir de hoje, os refugiados têm uma
integração política limitada no Bangladesh.
O argumento sobre como a integração política afetaria a pontuação Polity funciona desta
forma. As minorias étnicas no Bangladesh têm geralmente menos acesso a cargos
públicos do que os etnicos do Bangladesh (Barua, 2010). Caso os Rohingyas sejam
integrados no círculo eleitoral político do país, é de esperar que o recrutamento de
executivos se torne mais restritivo, no sentido de que uma fração proporcionalmente
maior da população não teria acesso a ele. Os dois indicadores Competitividade do
Recrutamento de Executivos e Competitividade da Participação Política, utilizados na
Política para determinar a pontuação do país, o suscetíveis de ser mais orientados para
o autoritarismo. Isto conduziria a um reforço global dos fatores associados ao
autoritarismo e a um subsequente afastamento dos dois polos estáveis das democracias
liberais ou sistemas autoritários, em comparação com os últimos números disponíveis. A
razão pela qual este fator afeta os direitos humanos é que uma solução para o problema
da apatridia dos Rohingyas é dar-lhes passaportes do Bangladesh, e veremos na
discussão no final deste artigo que isto já está a acontecer. Caso se integrem no círculo
eleitoral político do Bangladesh, espera-se que não possam aceder aos cargos públicos,
pelo que este indicador de risco aumentaria.
4.3. Tensões étnicas entre minorias e forças estatais
O terceiro preditor conhecido de conflitos civis é o nível de tensões entre o Estado e as
minorias étnicas do país. Por nível de tensão, entendemos aqui a perceção ou presença
de discriminação económica ou política patrocinada pelo Estado contra uma minoria
(West, 2005). Em conformidade com o conjunto de dados utilizado para dar valores a
este preditor (Gurr, 1995), a minoria Rohingya, juntamente com a Bihari, é considerada
em risco de iniciar um conflito futuro, na medida em que se apercebe de estar sujeita a
discriminação política ou económica. Em vez disso, as Tribos Chittagong Hill e os hindus,
que são as duas outras minorias reconhecidas no país, não são afetadas por esta. A razão
pela qual esta consideração é importante é que a minoria Rohingya, mas não as outras
minorias do país, tem um grupo armado capaz de apoiar a população nos confrontos com
as forças governamentais (Bashar, 2017). De acordo com este preditor em particular,
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parece, portanto, que a presença dos Rohingyas no Bangladesh está a contribuir para o
aumento do nível de risco de conflito civil, devido à discriminação real ou percebida dos
Rohingyas pelo Estado (Ullah, 2011). A razão pela qual os Rohingyas o estão incluídos
entre as minorias étnicas adequadas do Bangladesh é que não têm cidadania, mas se
isto ocorrer, então todas as outras condições para este modelo seriam satisfeitas, e este
fator aplicar-se-ia a eles.
É ainda discutível que a questão da discriminação política percebida não pode ser
resolvida facilmente, como políticas oficiais para a inclusão dos Rohingyas na comunidade
política do Bangladesh, uma vez que se espera que os Rohingyas permaneçam apátridas
no futuro próximo (Kiragu et al., 2011). Ora, afirmamos acima que se os Rohingyas não
são cidadãos do Bangladesh, então o problema da discriminação política contra eles não
se aplica. Aplicar-se-ia, contudo, se os direitos políticos fossem concedidos aos Rohingyas
através de medidas de integração, tais como a concessão de cidadania, ou a concessão
de autorizações de residência que permitissem aos refugiados votar nas eleições locais.
Porque as medidas de integração política são variadas e complexas, e porque o seu
estudo está fora do âmbito deste artigo, vamos comprimir o problema de uma forma que
o torne tratável sob o nosso raciocínio teórico. Ou seja, consideramos apenas a
integração política que se processa através da cidadania. Isto porque, de fato, os
passaportes do Bangladesh estão a ser adquiridos por um número significativo de
refugiados Rohingya, o que leva pelo menos uma parte da população refugiada a ter
acesso a direitos políticos. Mais sobre isto na última secção deste artigo, dentro das
conclusões.
No entanto, a discriminação económica pode, em princípio, ser resolúvel se forem
encontradas atividades económicas específicas, adequadas para os refugiados. De facto,
parece que, a partir de hoje, a integração económica dos Rohingyas no Bangladesh não
é possível, principalmente porque a legislação a proíbe (Crabtree, 2010). Os refugiados
Rohingya estão especialmente envolvidos em atividades a nível de sustento, e não podem
exercer atividades económicas legais devido à falta de autorizações de trabalho e vistos,
mas estes poderiam, em princípio, ser autorizados sem a concessão de direitos políticos.
4.4. Presença de outros conflitos na mesma região
O Sudeste Asiático é uma região do mundo geralmente caracterizada por conflitos
(Snitwongse & Thompson, 2005). Diferentes autores teriam, contudo, diferentes
definições de quais os países que se encontram em estado de conflito e quais os que não
se encontram, pelo que o modelo utiliza exclusivamente os dados contidos num
determinado conjunto de dados. No modelo que utilizamos, um país é considerado em
risco de conflito se quatro ou mais países da mesma vizinhança estiverem em conflito.
Esta variável binária é estimada com base na informação contida no conjunto de dados
dos Episódios Principais de Violência Política (Marshall & Cole, 2016). Os vizinhos do
Bangladesh que vivem conflitos internos são o Paquistão, a Índia, Mianmar, o
Afeganistão. Estes Estados o quatro e, portanto, de acordo com o modelo que estamos
a utilizar, têm uma probabilidade mais elevada do que a média de futuros conflitos civis
no Bangladesh. Pode ser imediatamente demonstrado que um deles, Mianmar, está
presente no conjunto de dados exatamente pela mesma razão pela qual os Rohingyas
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também estão presentes no Bangladesh: ou seja, devido ao conflito em curso naquele
país. Em consequência disto, este preditor de conflito civil será relevante enquanto o
conflito em Mianmar persistir. A questão é então se o conflito em Mianmar continuará ou
não no futuro, e se a presença dos Rohingyas no Bangladesh está ligada à continuação
do conflito naquele país. Parece ser este o caso, e foi sugerido por Parnini (2013) que o
fim da guerra pode não ser possível sem o repatriamento dos Rohingyas. Estudos
realizados por Kipgen (2015) associam a presença contínua dos Rohingyas no
Bangladesh ao processo de democratização em Mianmar, e este processo parece também
ser afetado por fatores externos (Kuok, 2014), que o podem ser reduzidos à natureza
dos assuntos internos ou das relações bilaterais entre o Bangladesh e Mianmar. Resta,
portanto, ver como este preditor irá mudar no futuro; a partir de hoje, parece que,
obviamente, a presença dos Rohingyas no Bangladesh está relacionada com o conflito
em Mianmar e, portanto, com o mero de conflitos na região. A promoção do direito
dos Rohingyas ao repatriamento em Mianmar deve ser uma política que diminua o nível
de risco de instabilidade política para o Bangladesh, embora, de acordo com este modelo
de avaliação de riscos.
4.5. Direitos humanos e instabilidade política
Podemos agora fazer a soma da análise escrita acima e determinar quais os direitos
humanos dos refugiados Rohingya que podem ser promovidos com um impacto positivo
na estabilidade política da região. Apresentamos o quadro abaixo como um resumo deste
estudo.
Tabela 1 - Características de uma política de integração que não aumenta a instabilidade política
Preditor de conflito civil
Direitos humanos associados
Pode ser promovido
sem aumentar o risco
de conflito civil?
Mortalidade infantil dos Rohingyas
Acesso à saúde
Sim
Estabilidade do regime político do Bangladesh
(democracia-autocracia)
Nacionalidade através da
cidadania do Bangladeh
Não
Tensões étnicas entre o governo e as minorias
Nacionalidade através da
cidadania do Bangladesh
Não
Presença de conflitos na região
Repatriamento dos refugiados
Sim
A análise mostra que a promoção indiscriminada de todos os direitos humanos de uma
população refugiada podeo funcionar se se incluírem considerações relacionadas com
a estabilidade política do país onde os refugiados residem.
4.6. Um caso sombra. Integração dos refugiados afegãos no Paquistão
As considerações que fizemos até agora sugerem que uma política de integração que
promova o acesso à saúde e não promova a integração política dos refugiados, deve ter
um impacto positivo na estabilidade política do país. Podemos agora estudar brevemente
como esta ideia se aplica a um caso análogo ao dos refugiados Rohingya no Bangladesh:
o dos refugiados afegãos no Paquistão. Os dois casos são suficientemente semelhantes,
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na medida em que estão ambos localizados na mesma região geográfica, e caracterizam-
se ambos por um afluxo de refugiados ao país vizinho, como consequência de um conflito
no país de origem. São também diferentes, na medida em que a composição étnica dos
refugiados afegãos é mais diversificada do que a composição étnica dos Rohingyas; além
disso, os últimos, mas o os primeiros, têm fugido de um genocídio que visou a sua
etnicidade particular, o que pode limitar a possibilidade de comparar os dois casos. Se,
no entanto, nos concentrarmos nas semelhanças e descartarmos as diferenças, podemos
ver quais são as características da política de integração para os refugiados afegãos no
Paquistão, e observar se estão em conformidade com as características que descrevemos
na secção anterior.
Relativamente à saúde, o governo paquistanês criou as chamadas unidades básicas de
saúde, responsáveis pela prestação de serviços de saúde aos refugiados afegãos (Malik
et al., 2019). Isto pode estar relacionado com o impacto negativo que a presença de
refugiados afegãos teve no perfil epidemiológico de doenças infeciosas no Paquistão, tais
como a malária (Jawaid et al., 2008). Contudo, sugere que o acesso à saúde pelos
refugiados afegãos é geralmente promovido.
Relativamente à identidade política e, por conseguinte, ao acesso aos direitos políticos
no Paquistão, um estudo de Kronenfeld (2008) sugere que "a maioria dos afegãos
atualmente residentes no Paquistão nasceram", mas que isto não lhes confere direitos
políticos, porque "os filhos dos refugiados são considerados refugiados e não têm
cidadania paquistanesa" (p.49). Isto sugere que a integração política dos refugiados
afegãos no Paquistão é limitada.
Preliminarmente, portanto, observamos no Paquistão uma política de integração dos
refugiados análoga à que, de acordo com o nosso modelo, deveria favorecer a
estabilidade política. Além disso, a literatura que contém avaliações de risco para a
estabilidade política do Paquistão (Tabassam et al., 2016) não contém menções dos
riscos decorrentes da presença de refugiados afegãos no Paquistão, se não indiretamente
como consequência das condições económicas gerais que afetam indiscriminadamente
toda a população residente. Se utilizarmos o caso dos refugiados afegãos no Paquistão
como um banco de ensaio para a hipótese que formulámos neste artigo, observamos que
foi adotada uma política de integração que possui características como a que estudámos
aqui para o Paquistão. Observamos também que as avaliações de risco para o país não
contêm menções da instabilidade política potencialmente decorrente da presença dos
refugiados. Isto sugere que a linha de raciocínio proposta neste artigo pode ser
generalivel a outros casos para além dos refugiados Rohingya no Bangladesh, desde
que sejam também adoptados outros pressupostos, nomeadamente os relativos à
composição étnica dos refugiados.
5. Conclusões. A promoção indiscriminada de todos os direitos humanos
pode não ser necessariamente boa, se as considerações sobre a
estabilidade política também forem tidas em conta
Neste artigo, analisámos os fatores de risco associados à presença da população de
refugiados Rohingya no Bangladesh. Após definir a instabilidade política como a presença
de um conflito civil, e após discutir as suas causas teóricas gerais, e também após
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analisar o modelo de melhor desempenho para a sua previsão, estudámos como os
fatores de risco conhecidos de conflito civil são afetados por medidas de promoção dos
direitos dos refugiados. Das nossas conclusões, parece que o acesso à saúde e ao
repatriamento dos refugiados poderia ser geralmente promovido, uma vez que teria um
impacto positivo na estabilidade do território; mas a concessão de direitos políticos
através da nacionalidade do Bangladesh não pode. Isto permite-nos sugerir que, embora
a promoção dos direitos humanos seja um objetivo importante, a promoção daqueles
que se espera que iniciem guerras é indesejável. Afinal de contas, os direitos humanos
não são úteis se se estiver morto.
Porque é que tudo isto é importante? A razão pela qual as considerações que aqui
fazemos são particularmente importantes é que os direitos políticos são de facto
concedidos hoje (Chakraborty, 2018; The Straits Times, 2019; The Business Standard,
2020). Os estrangeiros podem adquirir passaportes do Bangladesh por meios ilegais, e
através dos passaportes, adquirem também direitos políticos. Isto é um problema não
porque é um crime, mas também porque é uma prática que, se continuar a alastrar,
pode afetar o risco de guerra civil. De acordo com o quadro teórico acima definido, a
inclusão dos Rohingyas no círculo eleitoral político do Bangladesh irá previsivelmente
aumentar o risco de conflito civil no país. Se forem vistos no futuro sinais de mobilização
política dos refugiados Rohingya que adquiriram os passaportes do Bangladesh, isto deve
ser considerado como um forte indício de que o risco de conflito civil no país está a
aumentar, de acordo com as previsões teóricas do modelo que seguimos. Neste contexto
particular, a continuação da apatridia dos refugiados poderá ser uma opção mais
desejável do que a nacionalidade através do passaporte do Bangladesh. Por outro lado,
porém, a promoção dos direitos relacionados com a saúde pode ser prosseguida com
segurança; porque, como o modelo sugere, se a mortalidade infantil diminuir, o risco de
conflito civil também diminuiria. Uma consideração semelhante é também válida para o
repatriamento dos Rohingyas que, se as condições políticas em Mianmar o permitissem,
poderia ser prosseguida com um impacto positivo na estabilidade do Bangladesh e, por
conseguinte, da região. O desenvolvimento trico geral sobre o debate sobre direitos
humanos e segurança que propomos com este artigo é o seguinte. Quando uma dada
situação de refugiados está a ser estudada, e quando a presença dos Rohingyas no
Bangladesh está a ser estudada em particular, nem todos os direitos humanos podem
ser promovidos igualmente, e a promoção de alguns deles pode acabar por causar mais
danos do que benefícios.
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EVOLUÇÃO DA LEI SOBRE FIANÇA ANTECIPADA NA ÍNDIA
MALIKA SHAH
mgshah@jgu.edu.in
Professora na Jindal Global Law School, O.P. Universidade Global Jindal, Sonipat (Índia)
VAIBHAV CHADHA
vchadha@jgu.edu.in
Professor na Jindal Global Law School, O.P. Universidade Global Jindal, Sonipat (Índia)
Resumo
O caso Sushila Aggarwal contra o Estado (Território da Capital Nacional de Deli - NCT de Deli)
constitui uma parte importante da lei sobre fiaa antecipada na Índia. Antes do julgamento
de Sushila Aggarwal, a lei sobre fiança antecipada na Índia era ambígua devido às diferentes
interpretações da seção 438 do Código de Processo Penal de 1973 (fiança antecipada) pelo
Supremo Tribunal de Justiça. Foi apenas no ano de 2020 que a lei sobre o assunto foi resolvida
pelo Supremo Tribunal no julgamento do caso Sushila Aggarwal.
Com este artigo, os autores pretendem traçar a evolão da lei sobre fiança antecipada na
Índia. Examina os julgamentos mais marcantes do Supremo Tribunal de Justiça e as opiniões
conflituantes do Tribunal. O artigo conclui agradecendo o julgamento Sushila Aggarwal por
esclarecer finalmente a longa e ambígua lei sobre fiança antecipada na Índia. No entanto,
também destaca os assuntos que a Bancada Constitutiva (Constitution Bench) não abordou,
e que se tivesse abordado, teria libertado a lei das lacunas que atualmente afetam a lei sobre
fiança antecipada.
Palavras-chave
Sushila Aggarwal contra o Estado (NCT de Deli), Gurbaksh Singh Sibbia contra o Estado do
Punjab, Seção 438 do Código de Processo Penal de 1973, Fiança Antecipada e Fiança Regular
Como citar este artigo
Shah, Malika; Chadha, Vaibhav (2021). Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia.
Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado
[online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.14
Artigo recebido em 24 Julho 2020 e aceite para publicação em 27 Fevereiro 2021
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Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia
Malika Shah, Vabhav Chadha
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EVOLUÇÃO DA LEI SOBRE FIANÇA ANTECIPADA NA ÍNDIA
1
MALIKA SHAH
VAIBHAV CHADHA
Introdução
Um dos objetivos importantes de prender e deter o acusado é assegurar a sua presença
no julgamento no momento da sentença, se condenado
2
. Contudo, esse propósito
também pode ser alcançado por meio do sistema de fiança. Fiança significa "libertar uma
pessoa da custódia legal, e garantir que comparece na hora e local designados para se
submeter à jurisdição e julgamento do tribunal
3
.
O Código de Processo Penal de 1973 (doravante CPP) não define o termo "fiança". No
entanto, define os termos "delito passivo de fiança" e "delito não passivo de fiança".
"Delito passivo de fiança" foi definido na seção 2 (a) do CPP como um delito passivo de
fiança na primeira audiência, ou que foi tornado passivo de fiança por qualquer outra lei
vigente. Enquanto "delitoo passivo de fiança" foi definido como qualquer outro delito.
Nenhum teste ou critério foi estabelecido para determinar se um delito é passivo de
fiança ou não. Depende do fato de na primeira audiência ter sido pronunciado como
passivo de fiança ou não passivo de fiança
4
.
Desenvolvimento da lei sobre fiança antecipada na Índia
Antes do Código de 1973, não havia nenhuma disposição relacionada com fiança
antecipada no Código de Processo Penal de 1898. A posição prevalente antes de 1973
era que os tribunais não tinham autoridade para conceder fiança antecipada
5
.
No processo Amir Chand v Coroa, o Tribunal declarou que uma pessoa queo estivesse
sob qualquer tipo de restrição poderia ser colocada sob restrição mediante a concessão
de fiança. O Tribunal explicou que o havia nenhuma provisão no Código de 1898 por
meio da qual "fiança antecipada" poderia ser concedida
6
. Da mesma forma, no processo
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
2
RV Kelkar, Criminal Procedure (6
th
ed., Eastern Book Company 2014) 289.
3
Black’s Law Dictionary 3
rd
edn., 1933.
4
Código de Processo Penal 1973, s 2(a).
5
Gurbaksh Singh Sibbia v Estado de Punjab (1980) 2 SCC 565 [4].
6
ILR (1949) 1 P&H 515.
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Jubar Mal v Estado, o Tribunal Superior do Rajastão observou que, de acordo com o
Código de Processo Penal de 1898, nem o Tribunal Superior nem os tribunais
subordinados tinham o poder de conceder fiança a uma pessoa se essa pessoa não
tivesse sido presa ou detida sob custódia ou trazida perante o tribunal, ou sem que
houvesse um mandado de prisão ou qualquer ordem por escrito para a sua prio
7
.
No caso Estado de Madya Pradesh v Narayan Prasad Jaiswal, o Tribunal argumentou que
o exercício desse poder representaria um desvio para o tribunal. Ao confiar o caso King
Emperor v Khwaja Nazir Ahmado ao Conselho Privado
8
, o Tribunal afirmou que seguir tal
prática equivaleria a influenciar as questões que estão dentro da alçada da Polícia
9
. Por
fim, o tribunal no caso Estado de Madhya Pradesh v Narayan Prasad Jaiswal concluiu que,
de acordo com as disposições do Código de 1898, a fiança não poderia ser concedida a
uma pessoa que o tivesse sido presa por acusação de crime
10
.
A necessidade de introdução de uma nova disposição no CPP autorizando o Supremo
Tribunal e o Tribunal de Juízo Criminal (Tribunal de Sessões) a conceder "fiança
antecipada" foi apontada pela 41º Comissão de Direito da Índia no seu relatório no ano
de 1969. No parágrafo 39.9 do volume I, a Comissão observou que havia necessidade
de concessão de fiança antecipada porque havia a possibilidade de pessoas poderosas
tentarem implicar os seus rivais em casos falsos com o objetivo de “desonrá-los” ou com
o objetivo de fazê-los sofrer alguns dias na prisão. O Relatório também referiu que essa
prática se tinha intensificado com o aumento da rivalidade política. Também considerado
que não havia fundamento para exigir que o acusado de um crime se submetesse à
custódia, permanecesse na prisão e solicitasse fiança nos casos em que havia razões
suficientes para sustentar que o acusado não era suscetível de abusar da liberdade sob
fiança e fugir. A Comissão de Direito recomendou conferir este poder apenas ao Tribunal
Superior e Tribunal de Juízo Criminal e também afirmou que essa ordem entraria em
vigor no momento da prisão ou posteriormente. A Comissão constatou a sua
incapacidade de fixar exaustivamente as condições de concessão da fiança antecipada,
deixando-o ao critério do tribunal. No entanto, esclareceu que a atribuição de fiança
antecipada em nada poderia prejudicar um julgamento justo
11
.
O Governo Central aceitou as recomendações da Comissão de Direito e introduziu a
cláusula 447 no Projeto de Lei do Código de Processo Penal de 1970, com a intenção de
conferir autoridade ao Tribunal Superior e ao Tribunal de Juízo Criminal de concessão de
fiança antecipada
12
. A Comissão de Direito da Índia, no 48º Relatório (1972), parágrafo
31, observou que a disposição para a concessão de fiaa antecipada introduzida pelo
projeto de lei refletia as sugestões feitas pela 41ª Comissão de Direito. Embora
concordando com a disposição, a Comissão observou que esse poder deveria ser exercido
apenas em casos excecionais. Esclareceu ainda que, para evitar o uso indevido da
disposição por parte de peticionários desonestos, o despacho final de concessão da fiança
antecipada deve ser proferido após notificação ao Ministério Público, e que o despacho
inicial deve ser temporário.
7
1954 SCC OnLine Raj 24 [13].
8
1944 SCC OnLine PC 29.
9
1963 SCC OnLine MP 9 [13].
10
1963 SCC OnLine MP 9 [21].
11
Comissão de Direito, The Code of Criminal Procedure 1898 (Com Dir, Relatório nº 41, 1969).
12
Gurbaksh Singh Sibbia v Estado de Punjab (1980) 2 SCC 565 [5].
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A Comissão observou ainda que a disposição deve indicar claramente que a ordem
poderia ser proferida após registo dos motivos e se o tribunal estivesse convencido de
que tal orientação era necessária no "interesse da justiça"
13
. Com algumas modificações,
a cláusula 447 da Proposta de Lei de 1970 finalmente tornou-se a seção 438 do CPP
1973.
I. Tentativas iniciais de determinar o alcance da fiança antecipada
No caso Balchand Jain v Estado de MP, Bhagwati, J., ao examinar o alcance da seção
438, observou que lida com a questão da “fiança antecipada”, embora as palavras “fiança
antecipada” não se encontrem mencionadas na seção em si. Segundo ele, “fiança
antecipada” era uma expressão inadequada. Quando o tribunal concede "fiança
antecipada", ordena que, caso uma pessoa seja detida, seja solta sob fiança. A questão
da libertação sob fiança não se coloca a menos que a pessoa seja presa, e somente
quando a pessoa é presa é que a ordem de concessão de "fiança antecipada" se torna
efetiva
14
.
A Bancada do Supremo Tribunal da Índia proferiu a sua decisão histórica sobre a questão
da fiança antecipada no caso Gurbaksh Singh Sibbia v Estado de Punjab
15
. A questão
chegou ao ST num recurso contra a decisão do Plenário do Tribunal Superior de Punjab
e Haryana. O assunto envolvia um pedido de fiança antecipada do então Ministro da
Irrigação e Poder do governo de Punjab contra o qual foram feitas alegações de corrupção
política. O Tribunal Superior de Punjab e Haryana impôs certas limitações ao exercício
de poderes, de acordo com a Seção 438 do Código. O Tribunal Superior considerou que
os poderes ao abrigo da secção 438 não devem ser exercidos em casos graves, incluindo
certas categorias de crimes económicos ou crimes puníveis com a morte ou prisão
perpétua. O Tribunal também leu na seção 438 as limitações impostas pela seção 437 e
desencorajou o exercício de tais poderes nos casos em que o acusado foi acusado pela
seção 167 (2) do CPP ou seção 27 do Indian Evidence Act (Ato de Evidência) de 1872.
Além disso, o Tribunal decidiu que o poder deve ser exercido com moderação e apenas
em casos excecionais. Não poderia haver concessão de fiança antecipada geral e o
tribunal, antes de atribuir uma ordem de fiança antecipada nos termos da seção 438,
deve certificar-se de que quaisquer alegações de desonestidade na petição são
substanciais, e as acusações pareciam falsas e infundadas
16
.
O ST logo no início fez uma distinção entre fiança regular e fiança antecipada, observando
que, em contraste com a ordem de fiança pós-prisão, a fiança antecipada era um
procedimento legal pré-prisão. Determina que quem recebe uma ordem de fiança
antecipada relativamente a um crime específico, deve ser posteriormente preso sob as
alegações desse crime, e essa pessoa deve ser libertada sob fiança
17
.
O ST anulou a decisão do Tribunal Superior e proibiu a imposição de limitações na seção
438. O Tribunal decidiu que não pode impor limitações não pretendidas pelo legislador,
13
Comissão de Direito, Some Questions under the Code Of Criminal Procedure Bill, 1970 (Com Dir, Relatório
mº 48, 1972)
14
Balchand Jain v Estado de M.P. (1976) 4 SCC 572 [2].
15
(1980) 2 SCC 565
16
(1980) 2 SCC 565, 576-577.
17
(1980) 2 SCC 565 [7].
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especialmente num caso envolvendo um direito tão valioso quanto o direito fundamental
à vida e à liberdade pessoal. O Tribunal discutiu ainda as seções 437 e 439 do CPP de
1973 e afirmou que o legislador não tinha trabalhado a partir de um quadro em branco
ao redigir a seção 438. O Tribunal observou que o legislador poderia ter imposto
condições semelhantes na seção 438, se o quisesse. O ST baseou-se no 41º Relatório da
Comissão de Direito, em que o parágrafo 39.9 recomenda que a decio fique ao critério
dos tribunais superiores, que deveriam exercê-lo cuidadosamente. Além disso, de acordo
com o Relatório da Comissão de Direito, a enumeração de tais condições seria uma tarefa
difícil, pois cada caso precisava de ser analisado individualmente. O tribunal também
deixou claro que essas observações não significariam que a fiança antecipada seria
concedida sem impor qualquer condição e que a mesma seria contrária aos termos da
própria seção 438
18
.
No que diz respeito à opinião do Tribunal Superior de que a fiança antecipada não deve
ser concedida em caso de crimes envolvendo pena de morte ou prio perpétua ou certos
tipos de crimes económicos, o ST observou que o legislador apenas mencionou as
palavras "não passivo de fiança" na seção 438 sem colocar qualificações sobre as
mesmas e, portanto, não seria correto por parte do Tribunal interpretar as condições
estabelecidas na seção 437 (1) na seção 438
19
. Além disso, o ST considerou que a decisão
do Tribunal Superior de não conceder fiança antecipada quando o acusado a isso tinha
direito nos termos da seção 27 do Evidence Act de1872 não tinha fundamento, uma vez
que a própria seção 438 permite a imposição de condições que garantam a cooperação
por parte do acusado para fins de investigação policial. O ST também afirmou que o
tribunal poderia impor condições que considerasse adequadas no caso em causa e no
interesse da justiça
20
.
Em relação à observação do Tribunal Superior de que é necessário um "caso especial"
para que a seção 438 possa ser aplicada, o ST considerou que, embora uma justificação
deva ser dada para o exercício de tal poder pelo Tribunal, não havia nada na seção que
exija um "caso especial" para poder ser utilizada. Da mesma forma, o ST decidiu que o
poder deveria ser exercido apenas em casos excecionais. Apoiando-se em jurisprudências
anteriores
21
, o Supremo Tribunal considerou que o exercício dos poderes pelos tribunais
em questão lidaria com as consequências nocivas que pudessem estar associadas ao tal
exercício de poder
22
.
O ST acabou por anular a decisão do Tribunal Superior de Punjab e Haryana na maioria
dos pontos, impedindo a concessão de ordem de fiança antecipada geral
23
e recusou-se
a ler na seção 438 quaisquer condições e limitações não pretendidas pelo legislador,
deixando as questões ao critério do Tribunal Superior e Tribunal de Juízo Criminal.
II. Inconsistência em julgamentos subsequentes
18
(1980) 2 SCC 565, 577-580.
19
(1980) 2 SCC 565 [18].
20
(1980) 2 SCC 565 [19].
21
1923 SCC OnLine Cal 318; 1931 SCC OnLine All 60; 1931 SCC OnLine All 14.
22
(1980) 2 SCC 565 [ 21, 22]
23
(1980) 2 SCC 565 [40]
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No caso Salauddin Abdulsamad Shaikh v Estado de Maharashtra
24
, o Supremo Tribunal
desviou-se da decisão tomada no caso Sibbia sobre o prazo para a concessão de fiança
antecipada. No caso Salauddin, o Tribunal considerou que, uma vez que a fiança
antecipada é concedida durante a investigação, quando o Tribunal não é informado sobre
a natureza das provas contra o acusado, deve ser limitada no tempo. Uma vez que esse
período limitado expire, devem ser os tribunais regulares a lidar com a questão da fiança
com base nas provas apresentadas
25
.
De acordo com o caso Sibbia, uma ordem de fiança antecipada normalmente continuaria
até ao final do julgamento. No entanto, no caso Salauddin, o ST afirmou categoricamente
que é importante estabelecer um limite de tempo para os tribunais regulares lidarem
com o assunto. Posteriormente, a decisão no caso Salauddin foi adotada em vários outros
casos, como o K.L. Verma v Estado
26
, o Sunita Devi v Estado de Bihar
27
, o Nirmal Jeet
Kaur v Estado de MP
28
e o HDFC Bank Limited v J.J. Mannan
29
.
No caso do HDFC Bank Limited, o ST seguiu o raciocínio utilizado no caso Salauddin na
medida em que a fiança antecipada deveria ser concedida por um período limitado para
permitir que o acusado se entregasse e obtivesse fiança regular
30
. Embora o Tribunal
reconhecesse a necessidade de fiança antecipada para evitar a humilhação de uma
pessoa pela detenção decorrente da vingança pessoal do queixoso, o Tribunal também
considerou que a disposição não poderia ser usada como desculpa para não se entregar
ao tribunal, desde que a investigação esteja concluída e a folha de acusação arquivada.
Seria uma violação da própria seção 438
31
. O ST declarou que o objetivo da disposição
era fornecer um mecanismo para que o acusado fosse libertado sob fiança durante a
investigação e nada mais. Uma vez que a investigação esteja concluída e a folha de
acusação arquivada, o uso da seção 438 termina e o acusado precisa de se entregar ao
Tribunal e pedir fiança regular. O Tribunal manteve que a fiança antecipada não pode
fornecer uma cobertura ao acusado para evitar o comparecimento perante o tribunal
32
.
A cadeia de decisões tomadas na sequência do raciocínio utilizado no caso Salauddin foi
finalmente interrompida no caso SS Mhetre v Estado de Maharashtra
33
, em que o ST
considerou que os julgamentos menores posteriores (menos de 5 juízes) sobre a questão
não estavam em consonância com a decisão da Bancada do ST no caso Sibbia e, portanto,
foram por descuido (por incuriam). O Tribunal finalmente decidiu adotar a decisão da
Bancada do caso Sibbia. Neste caso, ST considerou que a seção 438, embora
extraordinária, não deve ser invocada apenas em casos excecionais
34
. A concessão ou
recusa da fiança é totalmente discricionária e o Tribunal tem liberdade e plena justificação
para impor condições ao conceder fiança antecipada ao abrigo da secção 438
35
. O
tribunal recusou-se a ler na secção 438 qualquer condição não expressamente prevista
24
(1996) 1 SCC 667.
25
(1996) 1 SCC 667 [2, 3]
26
(1998) 9 SCC 348
27
(2005) 1 SCC 608
28
(2004) 7 SCC 558
29
(2010) 1 SCC 679
30
(2010) 1 SCC 679 [18].
31
(2010) 1 SCC 679 [19].
32
(2010) 1 SCC 679 [20].
33
(2011) 1 SCC 694.
34
(2011) 1 SCC 694 [85]
35
(2011) 1 SCC 694 [97,98 & 100].
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na mesma
36
. O Tribunal declarou que uma vez concedida a fiança antecipada, a mesma
deveria normalmente continuar até ao final do julgamento
37
. Uma vez que libertado sob
fiança antecipada, não seria razoável obrigar o acusado a entregar-se ao tribunal de
primeira instância e novamente solicitar fiança regular
38
.
O Tribunal também decidiu que a duração da conceso de fiança ao abrigo da seção 438
não pode ser reduzida
39
, embora o Tribunal tenha o direito de cancelar a fiança
40
.
O julgamento posterior do caso Bhadresh Bipinbhai Sheth v Estado de Gujarate
41
apoiou
a decisão tomada no caso Sibbia e Mhetre. No entanto, o Tribunal afastou-se da opinião
tomada no caso Salauddin no caso Satpal Singh v Estado de Punjab
42
, deixando a lei
sobre fiança antecipada na seção 438 ambígua e incerta. No caso Satpal Singh, o ST
considerou que a fiança antecipada ao abrigo da seção 438 permanece em funcionamento
apenas até o tribunal convocar o acusado com base na folha de acusação, após a qual o
acusado deve prosseguir ao abrigo da seção 439 para a fiança regular, que deve ser
apreciada pelo Tribunal quanto ao mérito. Assim, o Tribunal limitou a duração de uma
ordem de fiança antecipada ao abrigo da seção 438
43
. Foi finalmente no caso Sushila
Aggarwal v Estado (NCT de Deli) que a ambiguidade sobre a lei da fiança antecipada foi
finalmente eliminada
44
.
III. Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli): A lei e os seus cantos
autónomos
No caso Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli), o ST eliminou a ambiguidade da lei da
fiança antecipada na Índia
45
. Face às opiniões conflituantes das diferentes Bancadas do
ST, o Tribunal formulou duas questões importantes que precisavam de ter respostas para
resolver a lei sobre esta matéria. A primeira questão era "Se a proteção concedida a uma
pessoa nos termos da Seção 438 do CPP deve ser limitada a um período fixo, de modo a
permitir que a pessoa se entregue ao Tribunal de Primeira Instância e procure fiança
regular?" A segunda questão ao Tribunal era: "Deve a duração de uma fiança antecipada
terminar no momento e na fase em que o acusado é intimado a comparecer em
tribunal?"
46
.
No que diz respeito à primeira questão, a bancada de cinco juízes do ST considerou que
a proteção prevista na seção 438 nem sempre precisa de ser concedida por um período
limitado de tempo e deve ser concedida a favor do acusado sem qualquer restrição de
tempo. As restrições normais nos termos da seção 437 (3) lidas com a seção 438 (2)
36
(2011)1 SCC 694, para 91
37
(2011)1 SCC 694, para 94
38
(2011)1 SCC 694; para 102.
39
(2011)1 SCC 694, para 123 and 138.
40
(2011)1 SCC 694, para 96
41
2016 1 SCC 152.
42
(2018) 4 SCC 303.
43
(2018) 4 SCC 303.
44
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017.
45
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017.
46
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 2.
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Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia
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não devem ser impostas, a menos que a especificidade do caso exija a imposição de
condições especiais
47
.
Relativamente à segunda questão, o tribunal considerou que a duração de uma ordem
de fiança antecipada normalmente o terminaria quando o acusado fosse citado pelo
Tribunal ou quando as acusações fossem formuladas contra ele, e normalmente
continuaria até o final do julgamento. A fiança antecipada regular continuaria após o
preenchimento da folha de acusação até ao final do julgamento
48
. No entanto, também
reconheceu o critério do Tribunal para limitar a duração com base na peculiaridade ou
especificidade do caso em questão
49
.
Com este julgamento, o ST rejeitou explicitamente Salauddin; K.L. Verma e outros
julgamentos que sustentaram a opinião de que a duração da fiança antecipada deve ser
limitada. O ST também rejeitou Mhetre na medida em que impôs uma barreira à
imposição de qualquer condição restritiva numa ordem de fiança antecipada
50
. No
presente caso, o ST fez extensivamente referência ao caso Sibbia e adotou a mesma
decisão. O Tribunal não considerou adequado limitar os poderes do Tribunal Superior e
do Tribunal de Juízo Criminal no que diz respeito à posse de uma fiança antecipada
51
.
É notável que a 41ª Comissão de Direito da Índia, no seu relatório, tenha estabelecido o
propósito e a necessidade de incluir a seção 438 no Código. De acordo com o relatório,
o objetivo básico da fiança antecipada era evitar a falsa implicação da pessoa e a sua
consequente humilhação
52
. Esse propósito também foi reiterado em diversos acórdãos
do ST. No caso Bharat Chaudhary v Estado de Bihar, o tribunal declarou que o objetivo
da seção 438 era "prevenir o assédio indevido das pessoas acusadas por meio de
detenção e prisão antes do julgamento”
53
. Posteriormente, no caso Satpal Singh v Estado
de Punjab, o Tribunal considerou que o objetivo da seção 438 era fornecer proteção
durante a investigação, após a qual o acusado precisa de solicitar fiança regular após a
entrega da folha de acusação do tribunal onde todo o material foi incluído
54
. Assim, A
seção 438 contempla a prisão em fase de investigação e oferece um mecanismo de
proteção contra a prisão durante o processo de investigação. O objetivo é não permitir
que o arguido evite comparecer perante o tribunal sob o pretexto de fiança antecipada.
O objetivo básico da seção 438 poderia ter sido mais bem atingido se a duração da fiança
antecipada fosse limitada a um certo período de tempo, em vez de alargá-la até ao final
do julgamento. Ao limitar a fiança antecipada, o Tribunal de Juízo Criminal ou o Tribunal
Superior teriam evitado a prisão do requerente e a sua respetiva humilhação até que a
investigação tivesse chegado a um fim conclusivo. Ao mesmo tempo, colocar essa
limitação também teria permitido que os tribunais regulares apreciassem
cuidadosamente a necessidade de fiança com base nos fatos e circunstâncias do caso,
dos quais o tribunal que concedeu fiança antecipada não estaria totalmente ciente.
47
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 127 [1(1)].
48
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 130 [1(5)]
49
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 128 [1(2)].
50
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 132 [1(12)].
51
Sushila Aggarwal v Estado (NCT of Delhi) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 120(c).
52
Comissão de Direito, Código de Processo Penal 1898 (Com Dir Relatório 41, 1969), para 39.9.
53
(2003) 8 SCC 77, para 7.
54
(2018) 13 SCC 813, para 13.
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Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia
Malika Shah, Vabhav Chadha
273
Assim, limitar o período de fiança antecipada da maneira sugerida serviria o duplo
propósito de salvar o requerente de humilhação indevida associada à sua prisão e, ao
mesmo tempo, permitir que os tribunais regulares decidam sobre a necessidade de prisão
ou fiança com base nos fatos e as circunstâncias do caso que lhe foi apresentado. Esta
opinião também encontra apoio no argumento apresentado pelo Solicitador Geral
Adicional da Índia (ASG), Vikramjit Banerjee, que estava correto ao afirmar que o
objetivo da seção 438 é fornecer proteção exclusivamente durante a investigação e o
acusado deve solicitar fiança regular ao tribunal em questão, uma vez que a folha de
acusação tenha sido preenchida
55
. A este respeito, a decisão do ST no caso K.L. Verma
parece relevante. Neste caso, o Tribunal declarou que o limite para uma fiança antecipada
deve ser orientado pelos fatos do caso, permitindo que o acusado tenha tempo razoável
para solicitar fiança regular. De acordo com a sentença, a fiança antecipada continuaria
até que o pedido de fiança regular seja resolvido de uma forma ou de outra, protegendo
assim o propósito da fiança antecipada nos termos da seção 438
56
. Tendo em vista o
propósito básico da seção 438, Salauddi, K.L.Verma e julgamentos semelhantes sobre a
posse da fiança antecipada parecem mais apropriados e juridicamente corretos.
As ordens de fiança antecipada até ao final do julgamento apresentam várias
desvantagens. A desvantagem mais significativa é o seu efeito prejudicial nas disposições
da fiança regular estabelecidas na seção 437 e 439 do CPP. Não impor limites à ordem
de concessão de fiança antecipada poderia tornar redundantes as disposições relativas à
fiança nas seções 437 e 439 do CPP, permitindo que o acusado contornasse os tribunais
regulares. No caso K.L. Verma v Estado, ao restringir a aplicação de fiança antecipada a
casos envolvendo apreeno em casos inafiançáveis, o Tribunal observou acertadamente
que uma ordem de fiança antecipada não pode ser usada como meio de contornar
tribunais regulares destinados a julgar o infrator
57
.
Permitir a fiança antecipada até ao final do julgamento também torna ociosa a seção 209
(b) do CPP. Num caso que pode ser julgado exclusivamente por um Tribunal de Juízo
Criminal, a seção 209 (b) do CPP autoriza o Magistrado a devolver o acusado à custódia
durante ou até à conclusão do julgamento. No caso Uday Mohanlal Acharya v Estado de
Maharashtra, o tribunal considerou que mesmo que o acusado esteja sob fiança, o
Magistrado responvel tem o poder de cancelá-la, se o consider necessário
58
. A
aplicação da seção 209 (b) torna-se difícil se seguirmos a interpretação da seção 438
conforme definido no caso Sushila Aggarwal. De acordo com este caso, a fiança
antecipada deve normalmente ser prorrogada aao final do julgamento. Em segundo
lugar, pode ser cancelada pelo Tribunal que a concede, ou seja, Tribunal Juízo Criminal
ou Tribunal Superior
59
. O efeito cumulativo de ambas as observações torna a seção 209
(b) ociosa, uma vez que retira ao Magistrado o poder de cancelar a fiança e submeter o
acusado à custódia. Esta preocupação também foi levantada por ASG Vikramjit Banerjee
perante o tribunal no caso Sushila Aggarwal, mas não foi atendida
60
. Este problema
poderia ter sido facilmente evitado pelo Tribunal se tivesse seguido a sua decisão no caso
K.L Verma. De acordo com a sentença, o Tribunal considerou que a fiança antecipada
55
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 23 [5].
56
(1998) 9 SCC 348 [3].
57
(1998) 9 SCC 348 [3].
58
(2001) 5 SCC 453, para 5.
59
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 131 [1(9)].
60
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 24 [5.1].
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Malika Shah, Vabhav Chadha
274
deve continuar até à resolução do pedido do acusado de fiança regular e não mais. Esta
decisão não encerra a proteção concedida ao acusado pela seção 438 assim que ele/ela
solicita fiança regular. No entanto, essa proteção cessa quando for tomada uma decisão
sobre o pedido do acusado de obtenção de fiança regular
61
.
A seção 438 não deve ser interpretada de forma a contrariar o propósito das outras
disposições do Código. O ST, no caso Reserve Bank of India v Peerless General Finance
and Investment Co. Ltd, declarou corretamente:
“A interpretação deve depender do texto e do contexto... Pode dizer-se que
se o texto é a textura, o contexto é o que a cor. Nenhum dos dois pode
ser ignorado. Ambos são importantes... Sob esse prisma, devemos olhar para
a Lei como um todo e descobrir o que cada seção, cada cláusula, cada frase
e cada palavra significa e se destina a dizer para se encaixar no esquema de
toda a Lei. Nenhuma parte de um estatuto e nenhuma palavra de um estatuto
podem ser interpretadas isoladamente. Os estatutos devem ser interpretados
de forma a que cada palavra tenha um lugar e tudo esteja no seu lugar
62
.
Ao não limitar o período de fiança antecipada, o tribunal também não conseguiu distinguir
entre fiança antecipada nos termos da seção 438 e fiança regular nos termos da seção
437 e 439
63
. O pedido de fiança antecipada deve apresentar fatos básicos que mostrem
a razão pela qual o requerente será preso. Estes são elementos necessários para o
tribunal avaliar a "ameaça ou apreensão, a sua gravidade ou seriedade, e a adequação
de qualquer condição que possa ter que ser imposta"
64
.
A Fiança Antecipada é concedida numa fase inicial, quando não o tribunal não dispões de
material suficiente sobre o envolvimento do acusado na prática do delito e depende
exclusivamente da ameaça ou apreensão de prio
65
. Não se pode esperar que a agência
investigadora prove a culpa do requerente acusado na fase inicial
66
. Portanto, a questão
da fiança antecipada surge numa fase rudimentar do processo de investigação e não
pode ser comparada a uma fiança regular.
Além disso, no caso Sushila Aggarwal, o ST negou as preocupações levantadas sobre os
impedimentos que tal ordem de fiança antecipada prolongada colocaria à agência
investigadora. Neste caso, o ST referiu-se à “custódia limitada ou “custódia presumida”.
No caso Sibbia, o tribunal invocou o princípio mencionado pelo ST no caso Estado de UP
v Deoman Upadhyay
67
. O ST referiu que, quando necessário, a acusação poderia
reivindicar a vantagem da seção 27 do Indian Evidence Act de 1872 no que diz respeito
à descoberta de fatos na sequência da em busca de informações fornecidas por uma
pessoa libertada sob fiança
68
.
61
(1998) 9 SCC 348 [3].
62
(1987) 1 SCC 424, p. 450 [33].
63
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 13 [3].
64
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 127 [1(1)].
65
Salauddin parag. 2
66
Sudesh Kumar Sharma, Dimensions of Judicial Discretion in Bail Matters’ (1980) 22(3) Journal of Indian
Law Institute 351, 363.
67
(1961) 1 SCR 14.
68
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 130 [1(7) & (8)].
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Malika Shah, Vabhav Chadha
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Nesta matéria, o ST não avaliou o propósito e a importância da investigação. A fiança
antecipada no limiar temporal pode interferir no processo de investigação de um caso.
Todo o propósito da seção 167 do CPP é dar uma oportunidade à agência de investigação
de interrogar a pessoa acusada em isolamento e dela extrair provas incriminatórias.
Apesar de certas limitações previstas na seção 438 (2) do CPP, permitir que o acusado
circule livremente durante o processo de investigação pode constituir uma grave ameaça
ao próprio processo. Existe toda a possibilidade de o acusado fugir da justiça, adulterar
provas, influenciar ou minar a testemunha de acusação, entre outras ameaças
69
. Essas
ameaças subsistem apesar do poder do Tribunal de Juízo Criminal ou do Supremo
Tribunal de cancelar uma ordem de fiança antecipada nos termos da seção 439 (2),
porque às vezes pode ser tarde demais para exercer esse direito.
Nesse cenário, teria sido útil se o Tribunal tivesse considerado e aceite a recomendação
do advogado Amicus Curiae Harin P. Raval. De acordo com Raval, nos casos em que uma
nota de ocorrência ou queixa tenha sido apresentada, a ordem de fiança antecipada deve
ser limitada a um período de 10 dias do período máximo de 14 dias disponível para prisão
preventiva policial nos termos do artigo 167 do CPP. Dessa forma, sobraria 4 dias, do
período total de 14 dias, para a investigação policial
70
. A concessão de fiança antecipada
até ao final do julgamento retira às agências de investigação o seu direito de investigar
os acusados sob custódia. Juntar-se à investigação enquanto está sob fiança antecipada
não pode ser substituído por uma investigação sob custódia nos casos em que tal custódia
possa ser justamente exigida
71
.
O caso Muraleedharan v Estado de Kerala também indicou que o interrogatório sob
custódia é de extrema importância e indispensável para desvendar todas as associações
entre o acusado e o crime
72
. Assim, a fiança antecipada não deve ser usada como uma
arma para "derrotar, impedir, paralisar" e inutilizar o processo de prisão preventiva nos
termos do Código para fins de investigação ou para garantir material incriminatório nos
termos da seção 27 do Indian Evidence Act de 1872
73
. Como corretamente apontado por
Amicus Curiae Harin P. Raval nas suas alegações, restringir a operação de fiança
antecipada serviria o duplo propósito de equilibrar dois interesses em conflito, a liberdade
pessoal do indivíduo e o poder de investigação soberano da polícia
74
.
Outro ponto crucial no presente caso diz respeito à imposição ou não de qualquer
condição na ordem de fiança antecipada. O tribunal observou que, como a concessão ou
recusa de fiança antecipada é uma questão que fica ao critério do tribunal, da mesma
forma, a imposição ou não imposição de condições sobre a ordem de fiança antecipada
fica ao critério do tribunal
75
. O Tribunal tem justificação para impor qualquer condição
diferente das mencionadas no artigo 438 (2), conforme julgar conveniente, com base
nos fatos e circunstâncias de cada caso. Não obrigação do tribunal de impor quaisquer
69
Sudesh Kumar Sharma, Dimensions of Judicial Discretion in Bail Matters’ (1980) 22(3) Journal of Indian
Law Institute 351, 367.
70
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 12 [3].
71
Sudesh Kumar Sharma, Dimensions of Judicial Discretion in Bail Matters’ (1980) 22(3) Journal of Indian
Law Institute 351, 367 & 369.
72
(2001) 4 SCC 638 [7].
73
Sudesh Kumar Sharma, Dimensions of Judicial Discretion in Bail Matters’ (1980) 22(3) Journal of Indian
Law Institute 351, 367 & 369.
74
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 11 [2].
75
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 129 [1(4)].
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Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia
Malika Shah, Vabhav Chadha
276
condições especiais que não sejam mencionadas na seção 438 (2) relativamente à
duração, alívio etc. como uma questão de rotina
76
.
Considerando a concessão de um amplo poder discricionário aos tribunais em causa,
tanto pelo Código quanto pelo ST, teria sido melhor se esse poder fosse restrito à sua
aplicação apenas em casos excecionais. O exercício restrito do poder de conceder fiança
antecipada apenas em casos excecionais também foi reconhecido pela Comissão de
Direito no seu 48º Relatório
77
, bem como pelo Tribunal Superior de Punjab e Haryana no
caso Gurbaksh Singh Sibbia
78
. A possibilidade de uso indevido de tal disposição exige
que certas restrições sejam colocadas no seu funcionamento e função.
No momento da discussão sobre a sua introdução, esse uso indevido não era
desconhecido. Como participante num debate sobre o Projeto de Lei do Código de
Processo Penal, o deputado Bhogendra Jha reconheceu a possibilidade de uso indevido
da cláusula de ordem de fiança antecipada e criticou a introdução da seção 438 no
Código. Segundo ele, com a introdução da seção 438, a Câmara iria fazer algo que nem
mesmo o governo colonial britânico fazia, ou seja, proteger os capitalistas,
aproveitadores e empresários-ladrões
79
.
Referiu ainda que a disposição daria oportunidade aos empresários-ladrões, agiotas e
aqueles que ganham com o trabalho árduo de outros de obter fiança antecipada antes
mesmo de serem presos. Segundo ele, a mara cometeria crime ao promulgar a
previsão de fiança antecipada
80
e reconsiderar a sua inclusão no Código, sugerindo que,
se tal disposição fosse necessária, as exceções deveriam ser criadas para o crime de
assassinato e crimes económicos, casos em que nenhuma fiança antecipada seria
concedida
81
.
Da mesma forma, o deputado Ram Ratan Sharma manifestou a sua preocupação com a
nova cláusula da seção 438 (fiança antecipada), dizendo que não beneficiaria os pobres.
Observou também que todos os comerciantes do mercado negro”, “açambarcadores” ou
pessoas poderosas que cometem crimes graves e pessoas ricas receberiam fiança
antecipada e os pobres em cujo benefício a cláusula foi introduzida, nunca teriam
nenhum. Por este motivo, solicitou que a cláusula fosse retirada
82
.
Conclusão
O ST no caso Sushila Aggarwal deve ser elogiado por pôr fim à ambiguidade de longa
data criada pelas decisões anteriores do ST sobre a lei relativa à fiança antecipada na
Índia. O Tribunal discutiu vários acórdãos do ST sobre esta matéria e eliminou as
incertezas relativas à duração da ordem de fiança antecipada. Estabeleceu a lei sobre o
assunto a ser adotada em casos posteriores e por todos os tribunais, sem qualquer
ambiguidade sobre a matéria.
76
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nos. 7281-7282/2017, p. 128 [1(3)].
77
Comissão de Direito Commission, Some Questions under the Code Of Criminal Procedure Bill, 1970
(Relatório 48, 1972).
78
1977 SCC OnLine P&H 157, p. 147 [64(1)].
79
Lok Sabha Deb (Sétima Sessão) 9 de maio de 1973, vol XXVIII, col 276 (Tradução dos Autores).
80
Lok Sabha Deb (Sétima Sessão) 9 de maio de 1973, vol XXVIII, cols 276-277 (Tradução dos Autores).
81
Lok Sabha Deb (Sétima Sessão) 9 de maio de 1973, vol XXVIII, col 277 (Tradução dos Autores).
82
Lok Sabha Deb (Oitava Sessão) 3 de setembro de 1973, vol XXXI, cols 48-49 (Tradução dos Autores).
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Evolução da lei sobre fiança antecipada na Índia
Malika Shah, Vabhav Chadha
277
Embora os seus esforços devam ser apreciados nas observações relacionadas com a não
concessão de ordem antecipada geral e informações ao Ministério Público, mesmo na
fase provisória, o Tribunal, no entanto, não entendeu algumas questões importantes
sobre a lei de fiança antecipada. Ao permitir que uma ordem de fiança antecipada
funcione normalmente a ao final do julgamento, o ST falhou em fazer justiça ao
fundamento básico e ao propósito da seção 438, conforme estabelecido pela Comissão
de Direito no 41º Relatório. Também não reconheceu as dificuldades que uma ordem de
fiança antecipada em vigor até ao final do julgamento colocaria ao funcionamento de
certas outras disposições do Código, como a seção 209 (b) ou o poder de investigar da
polícia.
Com a sua interpretação, o ST erroneamente colocou uma ordem de fiança antecipada
no mesmo pedestal que uma ordem de fiança ordinária, sem levar em conta quando
foram concedidas. Ao limitar a duração de uma ordem de fiança antecipada, o tribunal
poderia facilmente ter resolvido o problema assim criado. Nesse sistema de fiança que
opera principalmente a favor dos ricos e influentes, certas diretrizes relativamente ao
limite de tempo e imposição de condições teriam contribuído muito para conter o uso
indevido e o abuso desta importante disposição. Esta fiança antecipada alargada até ao
final do julgamento deveria ter sido tratada como uma ordem geral, vaga e injusta,
exigindo a imposição de um limite de tempo para a mesma. A lei estabelecida pelo ST
no caso Salauddin Shaikh, K.L. Verma e semelhantes parecem ser mais adequados ao
assunto.
Esta constituiu uma oportunidade para a Bancada do ST preencher as lacunas que foram
deixadas no julgamento anterior sobre o assunto. Em vez disso, decidiu seguir com as
medidas decididas no caso Sibbia e reiterar a visão apresentada naquele julgamento.
Como consequência, o ST perdeu uma oportunidade crítica de completar a lei sobre a
fiança antecipada.
Referências
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Comissão de Direito, Algumas perguntas sobre o projeto de lei do Código de Processo
Penal, 1970 (Com. Dir. Relatório nº 48, 1972)
Comissão de Direito, Algumas perguntas sobre o projeto de lei do Código de Processo
Penal, 1970, (Com. Dir. Relatório nº 48, 1972).
Comissão de Direito, Código de Processo Penal de 1898 (Com. Dir. Relatório 41,
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HDFC Bank Limited v J.J. Mannan (2010) 1 SCC 679
Jubar Mal v Estado 1954 SCC OnLine Raj 24.
K.L. Verma v Estado (1998) 9 SCC 348
Kelkar RV, Criminal Procedure (6ª ed., Eastern Book Company 2014).
King Emperor v Khwaja Nazir Ahmad 1944 SCC OnLine PC 29.
Lok Sabha Deb (Oitava Sessão) 3 de setembro de 1973, vol. XXXI (Tradução dos Autores.
Lok Sabha Deb (Sétima Sessão) 9 de maio de 1973, vol. XXVIII (Tradução dos Autores).
Madhya Pradesh v Narayan Prasad Jaiswal 1963 SCC OnLine MP 9.
Muraleedharan v Estado de Kerala (2001) 4 SCC 638.
Nagendra Nath Chakravarti, In Re 1923 SCC OnLine Cal 318.
Nirmal Jeet Kaur v Estado de MP (2004) 7 SCC 558
Reserve Bank of India v Peerless General Finance and Investment Co. Ltd (1987) 1 SCC
424.
Salauddin Abdulsamad Shaikh v Estado de Maharashtra (1996) 1 SCC 667.
Satpal Singh v Estado de Punjab (2018) 13 SCC 813.
Sharma, SK ‘Dimensions of Judicial Discretion in Bail Matters’ (1980) 22(3) Journal of
Indian Law Institute 351.
SS Mhetre v Estado de Maharashtra (2011) 1 SCC 694.
State of UP v Deoman Upadhyay (1961) 1 SCR 14.
Sunita Devi v Estado de Bihar (2005) 1 SCC 608
Sushila Aggarwal v Estado (NCT de Deli) SLP (Crl.) Nº. 7281-7282/2017.
Uday Mohanlal Acharya v Estado de Maharashtra (2001) 5 SCC 453.
OBSERVARE
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279
NOTAS E REFLEXÕES
MIKHAIL GORBATCHOV, O FATOR HUMANO E A IMPLOSÃO DA
UNIÃO SOVIÉTICA
DANIELA PEREIRA NUNES
daniela_pn12@hotmail.com
Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa (Portugal) e licenciada em Ciência Política e Relações
Internacionais. As principais áreas de interesse são a Guerra Fria, a história da União Soviética e
a liderança política.
Introdução
A contribuição singular de Mikhail Gorbatchov para o saldo final da Guerra Fria e para o
processo que culminou simultaneamente na implosão da União Soviética e no fracasso
do comunismo soviético motivou e continua a motivar os estudiosos a pensar acerca do
impacto que um homem pode ter no decurso de determinados processos políticos. No
caso da União Soviética e do seu processo disruptivo, parece ser evidente a influência
decisiva do líder político, Gorbatchov, no desfecho trágico da tentativa de reforma
económica, social e política. É claro que um conjunto de outros fatores, designadamente
de domínio estrutural, influenciaram os acontecimentos de 1985-1991, tanto dentro
como fora da União Soviética. Porém, esta reflexão centrar-se no papel de Gorbatchov,
nas suas escolhas e nos limites que lhe foram impostos pela própria natureza do regime
que ele tentara reformar a partir de 1985.
Assinala-se em 2021 o trigésimo aniversário da extinção da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). Volvidas três décadas sobre a implosão deste império
septuagenário, Mikhail Gorbatchov continua a espelhar o debate dual que logo após o
ano de 1991 dividiu os historiadores e analistas no que respeita ao impacto que o último
der soviético teve neste processo disruptivo. Este debate opõe essencialmente duas
posições, que encontram expressão na terminologia de William Taubman: “[Gorbatchov]
é um herói trágico” (Taubman, 2018: 693) que, para libertar os soviéticos e os Leste-
europeus do medo, deixou fracassar um país e uma ideologia. Todavia, e apesar desta
dicotomia, parece haver entre os estudiosos algum consenso acerca da importância e do
protagonismo desempenhado por Gorbatchov para que a Guerra Fria terminasse quando
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Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 279-285
Mikhail Gorbatchov, o fator humano e a implosão da União Soviética
Daniela Pereira Nunes
280
e como terminou. Comparativamente com qualquer outro líder soviético, ele foi o
primeiro e único grande interessado em incentivar o fim deste conflito, quer tal se
interprete como um grande feito, quer como um sinal da sua fraqueza.
A contribuição singular de Gorbatchov para o saldo final da Guerra Fria é especialmente
apreciada no Mundo Ocidental, que consegue ver nele um visionário, alguém que
procurou transformar um país e sistema enormes, mas demasiados pequenos para a sua
mundivisão e mentalidade inovadora. Na sua terra natal, porém, Gorbatchov é antes
visto como um utopista presumido, atraiçoado pelo seu próprio excesso de confiança, e
responsável pelo extermínio de um povo e de uma nação com setenta anos.
O Fator Humano como Elemento Explicativo
Antes de quaisquer outras considerações acerca do papel deste der no processo que
culminou simultaneamente na desagregação da União Soviética, na demonstração do
fracasso de uma ideologia e no fim da Guerra Fria, é preciso sublinhar a pertinência
associada ao exercício de olhar para o fator humano como um dos elementos explicativos
destes acontecimentos. As narrativas dos principais eventos históricos e das grandes
transies polticas do mundo da modernidade parecem traduzir uma tendncia para
vincular a estes eventos explicaes sobretudo inseridas no domnio dos fatores
estruturais. Ao contrário dos fatores contingentes, os fatores estruturais estão
normalmente na base de interpretões mais abrangentes, de nível sistémico, por
oposição a interpretões muito focadas num determinado elemento explicativo, como é
o caso de um líder potico.
No caso da União Soviética e do seu processo de implosão, os principais elementos
explicativos de ordem estrutural prendem-se, por um lado, com os constrangimentos
inerentes à Guerra Fria e, por outro, com as caraterísticas do próprio regime soviético.
O equilíbrio de poder bipolar da segunda metade da década de 1980, como um destes
grandes elementos estruturais, foi responsável pelo estrangulamento gradual das
capacidades soviéticas, principalmente as económicas. Na medição de forças com a
superpotência rival, o esvaziamento destas capacidades acabaria por conduzir o sistema
soviético a deixar de conseguir responder à competição militar, tecnológica e espacial.
Ao mesmo tempo, a rigidez e o centralismo típicos deste regime totalitário, assim como
a sua condição de Estado multinacional e a sua ineficiência crónica, também contribuíram
em larga medida para o desfecho trágico que se seguiu à implementação de um plano
para reformar o país.
Alternativamente, e embora não possamos reduzir a problemática do colapso de um
qualquer regime ou sistema político a uma análise unidimensional, esta reflexão
concentrar-se num fator explicativo contingente muito concreto: Mikhail Gorbatchov,
seus erros e triunfos, nos sete anos da sua liderança (1985-1991). A história da Rússia
fornece exemplos particularmente ilustrativos, que ajudam a compreender a importância
do fator humano no desenrolar de determinados processos políticos. O sociólogo Andrus
Park recorda que
uma das tarefas [desta histria] parece ser a de relembrar a humanidade uma
e outra vez o quo importantes os indivduos so na Histria. Ivan o Terrvel,
Pedro o Grande, Vladimir Lenine, Joseph Estaline, e muitos outros provaram
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Mikhail Gorbatchov, o fator humano e a implosão da União Soviética
Daniela Pereira Nunes
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de maneiras diferentes que as açes dos lderes polticos podem influenciar
significativamente o curso dos acontecimentos. (Park, 1992: 47)
O objetivo desta reflexão não é, contudo, o de comparar o legado de Gorbatchov com o
dos indivíduos elencados por Park. Também não se pretende demonstrar que todos os
processos políticos são igualmente influenciados pelos líderes que os protagonizam.
Antes, trata-se de demonstrar como um líder pode ter um impacto crucial num
determinado processo político e, em particular, como Gorbatchov foi tão importante,
mesmo decisivo, no processo histórico-político que reflete simultaneamente a sua
coragem e estratégica invulgares, para uns, e o esgotamento de todas.as suas forças,
para outros.
O primeiro sinal de que este líder viria a significar alguma mudança para o seu país
embora fosse impossível prever que tipo de mudança foi a sua nomeação, a 11 de
março de 1985, para o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS). Em vez da continuidade do poderio das figuras da ala geriátrica do
partido, esta nomeação traduziu o reconhecimento da necessidade de eleger uma mente
jovem, aberta e enérgica. Ainda assim, este no foi o mais importante dos sinais da
mudança que Gorbatchov viria a implementar na União Soviética (e no mundo): o mais
importante foi o modo como ele tentou implementar essa mudança, os caminhos que
escolheu trilhar, e os que não escolheu, para viabilizar essa mudança. Ao contrário dos
seus antecessores, no procurou transformar o sistema soviético de um dia para o outro,
assim como também no procurou dar continuidade à velha prática da uniformizao
total da sociedade soviética em busca de um “povo soviético único” Sovetskii Narod
(Smith, 1992: 9-10).
Tanto ou mais do que pelas suas ideias, Gorbatchov distinguiu-se pela forma como
procurou implementá-las, pela maneira, algo estranha para um líder soviético, como
provou colocar-se sempre no lugar do outro. Estas ideias, aliadas ao modo como se
concretizaram, fazem de Gorbatchov o tipo de líder que Robert Tucker to fielmente
sumarizou:
(...) algum que procura tornar a ordem vigente bem-sucedida ao introduzir-
lhe mudanças e que reconhece que essas mudanças devem ser graduais, uma
vez que implicam o afastamento de formas de pensar e agir culturalmente
padronizadas ao longo de dcadas. (Tucker, 1995: 159-160)
As grandes transformaçes possibilitadas por este lder tornaram-se históricas no
apenas porque reorientaram o rumo da História no final do século XX, mas principalmente
pela forma pacfica e gradual como foram feitas. Nem todos os lderes so responsáveis
por este tipo de transformaçes; alguns no so responsáveis por quaisquer
transformaçes. Todos os lderes tm, por isso, o que Joseph Nye classificou como
“diferentes graus de impacto na História” (Nye, 2008: 8). Quando se trabalha sob a
cúpula de um regime totalitário, como o soviético, o peso que uma determinada liderança
política pode ter é ainda mais potencializado. Como observou o especialista britânico
Archie Brown, “o estmulo para que um lder seja o grande decisor é ainda maior, e as
suas consequncias ainda mais perigosas, dentro de regimes autoritários e totalitários”
(Brown, 2014: 22).
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Nestes regimes, é habitual assistir ascenso de lderes que canalizam o seu poder e
posiço supremos no sentido da imposiço da sua vontade e do culto da sua
personalidade. Pelo contrário, Gorbatchov, enquanto um destes grandes decisores,
escolheu canalizar o seu poder no para a imploso do seu próprio pas, obviamente,
mas para o final da Guerra Fria; no para o sacrfico do Pacto de Varsóvia, mas para a
autonomizaço das sociedades Leste-europeias; não para o enfraquecimento da posição
soviética no jogo da política internacional, mas para a negociação por um mundo
desnuclearizado. A principal consequncia do seu projeto reformista talvez não tenha
sido o desaparecimento da Unio Soviética, mas o desaparecimento do medo, que ele
conseguiu substituir pacificamente por um conjunto de oportunidades, outrora
pertencentes a uma esfera de coisas impossíveis, quer para os soviéticos, quer para os
Leste-europeus.
Das Reformas ao Colapso
Quando chega ao poder, Gorbatchov é um reformador, mas um reformador dentro dos
limites do próprio sistema. Por isso mesmo, não se pode confundir a sua intenção de
reformar o comunismo soviético com um plano para o substituir. Pelo mesmo motivo,
também não se deve romantizar excessivamente o projeto deste líder, cujo principal
desígnio era o de recuperar a pureza da natureza marxista-leninista do sistema soviético.
Apesar da sua admiração inequívoca por certos valores Ocidentais, como a liberdade e a
democracia (embora os devamos observar dentro do entendimento próprio de quem foi
educado nas estruturas soviéticas), Gorbatchov é um homem que cresce dentro do
comunismo e é pela sua devoço ao comunismo que sobe ao poder. Não é, portanto,
possível afirmar que o seu projeto de reformas refletiu uma tentativa de substituir o
sistema vigente na URSS. Antes, este projeto refletiu uma tentativa de regresso ao
Leninismo, o que é particularmente manifesto do ponto de vista económico a
Perestroika mais no era do que uma proposta semelhante Nova Poltica Económica de
Lenine nos anos 1920, que tinha como finalidade incentivar, acelerar e modernizar
(ligeiramente) a economia soviética.
Com Gorbatchov, somou-se à tentativa de reforma económica a ambiço de introduzir
na sociedade soviética altamente embebida na lógica da corrupço, do clientelismo e
da apatia o esprito de abertura e transparncia de que a Glasnost é símbolo. É a partir
desta e de outras ambições muito caraterísticas da liderança de Gorbatchov que se torna
claro que a vontade deste lder era simplesmente tornar a Unio Soviética um “pas
normal,” (Gaspar, 2016: 98) usando a expresso de Carlos Gaspar. É justamente por
conta destas ambições, aliadas à crença desmedida na reformabilidade do sistema
soviético, que o colapso da URSS, em parte, também é devido a Gorbatchov.
A geraço de polticos de onde Gorbatchov surge remonta aos anos de Krushchev e a um
primeiro momento em que se institura na Unio Soviética aquilo a que se pode chamar
um paradigma pós-estalinista. O discurso secreto de Krushchev no XX Congresso do
PCUS, em fevereiro de 1956, alertou pela primeira vez uma geraço de jovens os
filhos do XX Congresso,” (Brown, 1996: 39-40) como ficou conhecida esta geração
para o regime de terror que havia sido o Estalinismo. Gorbatchov é um dos filhos desta
geraço, um smbolo incontornável do impacto que as revelaçes de Krushchev tiveram
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no processo de questionamento e instrospeção que um grupo de intelectuais viria a
protagonizar a partir da segunda metade da década de 1950.
É este processo de questionamento, associado ao sentimento de um propósito comunista
renovado pelas revelações de Khruschev, que está na base da reformista de
Gorbatchov e outros da sua geração. Mas esta crença na possibilidade de reformar o
regime soviético melhorando apenas o sistema vigente coloca e colocou desde sempre
os especialistas diante de uma situação algo paradoxal: o projeto de reformas de
Gorbatchov traduz uma tentativa louvável de transformar um sistema fechado e
decadente, mas a sua reação face às consequências imprevistas deste projeto fizeram
dele o responsável pelo desaparecimento de um país e de uma zona de influência
considerada desde a Segunda Guerra Mundial como o “quintal poltico soviético” (Brown,
2020: 276-277) a Europa de Leste. A controvérsia ligada ao nome deste líder reside
exatamente neste paradoxo: para revigorar o comunismo soviético, Gorbatchov perdera-
lhe as rédeas, permitindo que, dentro e fora da União Soviética, cada um escolhesse o
seu caminho, mesmo que isso implicasse o fracasso de todas as suas ambições e da
crença ingénua de que seria possível reformar um sistema irreformável.
Quer no processo de fragmentação, e finalmente extinção da URSS, quer no processo de
dessatelização da Europa de Leste, Gorbatchov escolheu ser um observador, em vez de
um ditador. A melhor forma de o reconhecer como tal é comparando-o com os seus
antecessores preferencialmente imaginando o que teriam feito estes últimos em seu
lugar. Como Estaline, Brezhnev ou todos os outros, Gorbatchov dispunha de armas e
poder para travar estes processos: podia ter mandado prender os primeiros a criticar
publicamente a Perestroika; podia ter dado ordens para matar todos os que tentassem
atravessar o muro de Berlim; podia ter impedido a ascensão de Boris Ieltsin; podia ter
feito uso da força para acabar com as primeiras manifestações nacionalistas nas
Repúblicas Bálticas. As decisões mais marcantes deste líder foram, tal como observou
Anne Applebaum, aquelas que ele não tomou (Applebaum, 2011). O reconhecimento que
lhe é devido justifica-se principalmente por estas decisões nunca tomadas e pelo modo
como um produto autêntico do regime soviético escolheu distanciar-se do modelo de um
típico líder soviético.
Dentro da União Soviética, e estranhamente, Gorbatchov parece nunca ter sido
verdadeiramente reconhecido pelas possibilidades inéditas que ofereceu aos soviéticos,
permitindo-lhes combater a sua apatia natural e enraizada desde o Czarismo. Na história
das lideranças soviéticas, Gorbatchov foi o único que tentou dar aos soviéticos tudo aquilo
que todos os seus antecessores lhes tentaram tirar: escolhas. Mesmo que as
consequncias destas escolhas tenham atraioado os verdadeiros objetivos deste líder,
ele deve ser reconhecido pelo facto de ter optado por se distanciar do modelo tenebroso
de um tpico lder soviético. E este distanciamento no se manifestou apenas do ponto
de vista poltico. Também se manifestou de maneiras invulgares no contexto da cúpula
totalitária soviética: que outro lder soviético se mostrou to preocupado com questes
ecológicas e ambientais como Gorbatchov se mostrou? Que outro lder soviético
escolheria observar, em vez de impedir violentamente, a libertaço dos povos Leste-
europeus como Gorbatchov escolheu? Que outro lder soviético se faria acompanhar
publicamente da sua mulher como Gorbatchov o fez, com Rassa? Em parte, so estes
momentos de distanciamento e singularidade que demonstram que tudo teria sido
diferente na Unio Soviética e no mundo da segunda metade da década de 1980 se no
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fosse Gorbatchov a chegar ao poder em 1985. A sua nomeaço acelerou um processo de
imploso e libertaço que, certamente, viria a acontecer anos mais tarde. Porém, se no
fosse Gorbatchov e o aceleramento por ele provocado, é possvel que este processo no
tivesse sido to pacfico, e isso só a ele se deve.
Mais do que transformar o sistema soviético, Gorbatchov procurou transformar o sistema
que herdou de um conjunto de líderes muito preocupados com a manutenção do seu
poder e com o culto da sua personalidade. Dentro das suas convicções marxistas, as
prioridades deste líder eram bastante distintas das destes seus antecessores: em vez de
uma esfera de influência, procurou construir uma ordem global baseada na cooperação;
em vez da uniformização, procurou dar a cada um a sua própria voz; em vez da força,
procurou usar as palavras. Em última análise, e paradoxalmente, pode dizer-se que os
planos reformistas de Gorbatchov resultaram no no aprofundamento da legitimidade e
do poder do seu pas, mas antes na sua eroso, o que culminou finalmente no seu
desaparecimento definitivo. Conforme frisado no princípio desta reflexão, várias foras
externas contriburam ativamente para este desfecho desde logo, a perda sucessiva de
meios para manter o nvel da competio com a superpotência rival. Mas foram as forças
internas que tornaram possvel uma imploso to rápida: Gorbatchov criou mais inimigos
dentro do seu pas do que fora dele, subestimando desde sempre o ódio destes inimigos,
alguns deles figuras que lhe eram bastante próximas.
É claro que Gorbatchov é o principal responsável pelos seus erros, pelas decisões que
tomou e pelas que não tomou. Mas é preciso ver no seu percurso político uma tentativa
corajosa de assumir e tentar corrigir as falhas de um sistema incorrigível. Do mesmo
modo, é preciso compreender, como notou o especialista russo Vladislav Zubok, que
“(...) ninguém sabe como transformar um regime totalitário, e por isso é possível
fazê-lo por tentativa e erro” (Zubok, 2007: 313-314). depois de uma primeira
tentativa de reforma a Perestroika foi possível perceber que, para além de uma
transformação do seu modelo económico, a União Soviética precisava ser transformada
cultural e socialmente. A passagem do projeto reformista de Gorbatchov para uma
transformação de nível sistémico resulta não das incapacidades do líder, mas das
deficiências crónicas do próprio regime. O que isto significa é que o plano para reformar
este regime se radicalizou na medida em que o próprio regime foi demonstrando a
sua incapacidade crónica de adaptação a um conjunto de ideias inovadoras.
Só quem tenha a capacidade de ver em Gorbatchov a figura de um libertador,
responsável pelo progresso em que nenhum outro lder soviético esteve interessado,
compreende como o fator humano é fundamental para explicar o processo de implosão
da URSS e os últimos sete anos da Guerra Fria. Quem, por outro lado, vir neste líder a
figura de um traidor, tenderá a considerar que ele se limitou a ceder perante a pressão
interna e externa. Para estes últimos analistas, é difcil ver nas escolhas e cedncias de
Gorbatchov algo de heroico. Mas é preciso sublinhar que, semelhança de todos os seus
antecessores, Gorbatchov teve em mos todo o poder; ao contrário de todos eles, porém,
escolheu limitá-lo. Nenhum elemento alheio personalidade, educaço e formação de
um líder pode explicar isto é aqui que reside a relevncia do fator humano.
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Referências consultadas
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Policy. (Online). Disponível em: https://foreignpolicy.com/2011/06/20/the-long-lame-
afterlife-of-mikhail-gorbachev/ (Consultado a 30 de janeiro de 2021).
Brown, Archie (1996). The Gorbachev Factor. Oxford: Oxford University Press.
Brown, Archie (2014). The Myth of the Strong Leader: Political Leadership in the Modern
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Nye, Joseph S. (2008). The Powers to Lead. Oxford: Oxford University Press.
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Smith, Graham (1992). “Nationalities Policy from Lenin to Gorbachev.” In Graham Smith
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Zubok, Vladislav (2007). A Failed Empire: The Soviet Union in the Cold War from Stalin
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Como citar esta nota
Nunes, Daniela Pereira (2021). Mikhail Gorbatchov, o Fator Humano e a Implosão da União
Soviética. Notas e Reflexões. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1,
Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.01
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RECENSÃO CRÍTICA
Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda. Colecção Trajectos.
Lisboa: Gradiva. ISBN 978-989-616-906-0. 104 pp
JOÃO CARLOS SOUSA
joao.carlos.sousa@iscte-iul.pt
Doutorando em Ciências da Comunicação do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (Portugal) e
bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Mestre em Sociologia: exclusões e
políticas sociais (Universidade da Beira Interior) e Licenciado em Sociologia. Foi bolseiro de
Investigação (2010-2015) nos projetos Agenda dos Cidadãos: jornalismo e participação cívica
nos media portugueses e Público e privado em comunicações móveis, desenvolvidos no LabCom
da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior. Desde Junho 2016 é
investigador do OberCom.
A obra Por Um Populismo de Esquerda de Chantal Mouffe insere-se na já longa tradição
neomarxista a que habitou toda uma vasta e diversa comunidade de leitores que vai
desde a Sociologia, à Cncia Política e Filosofia. Para a autora francesa é claro que o
populismo em si pode não ser única e simplesmente sinónimo de disfuncionalidade e
patologia democrática. É deste modo que aquilo a que designa como o “momento
populista” se insere numa narrativa socio-histórica e cultural, em que diferentes
disposições das diversas estruturas sociais se vão metamorfoseando num permanente
processo dialético de tese, antítese e síntese. O registo ensaístico nada fica a dever ao
rigor conceptual e analítico aliado a uma assinalável argucia observacional e de ntese
por parte da autora francesa. Esta logo no início da obra faz uma declaração de intenes
que consideramos relevante, e que passa por declarar que este é um contributo teórico
e reflexivo para o estudo do populismo, mas que não descora o lado militante e ativista
que o momento político e comunicacional impõe, contribuindo para um programa
populista de esquerda com uma forte ancoragem cultural, promovendo a revitalização
da vida política e pública das democracias-liberais.
Em termos orgânicos a obra em estudo está organizada em sete partes, entre a
introdução, quatro capítulos, a conclusão e um apêndice teórico, este último espaço onde
a autora realiza esclarecimentos conceptuais relevantes. A obra é prefaciada por José
Neves (FCSH-Universidade Nova Lisboa).
Na Introdução Mouffe procura definir o problema de pesquisa e advoga que estamos
atualmente perante uma crise da formação hegemónica neoliberal. Neste sentido, esta é
uma oportunidade histórica de transformar as estruturas políticas e sociais em favor de
uma política de esquerda: o momento populista é aquele em que as instituições políticas
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Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda.
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e sociais que balizam o neoliberalismo atual deverão ser colocadas em causa pelo
populismo de esquerda. A hegemonia neoliberal prevalecente nas últimas três a quatro
décadas tem levado ao que designa por pós-política. Este período revela-se no crescente
desinteresse pela vida política por parte de um cada vez maior número de categorias
sociais.
Existem duas ordens de razões para a hegemonia observada. A primeira das quais, a
conceção essencialista da prática política de uma boa parte dos atores políticos de
esquerda que continuam a perspetivar a expressão política como o resultado de
configurações de classe. Por outro lado, o estabelecimento do consenso em torno da
TINA (There is not alternative), que foi abraçada pela social-democracia no governo de
Tony Blair na chamada “terceira via”. Desta forma, o “momento populista” requer a
mobilização da dimensão discursiva através da qual se constrói “(...) uma fronteira
política entre “o povo” e “a oligarquia” (...)” (2019: 19).
No primeiro capítulo, O Momento Populista, Mouffe começa por fazer uma declaração de
interesses. Esta passa por postular os horizontes programáticos e ativistas da sua
proposta, ainda que norteada teórica e conceptualmente por uma postura a que designa
como “antiessencialista”. Ao abrigo deste preambulo epistemológico argumenta que a
sociedade esdividida e é construída discursivamente através de práticas hegemónicas.
Considerando o populismo como forma de fazer política assente na discursividade,
subtrai-se a componente ideológica, a programática, bem como a sua dimensão
institucional, enquanto regime político.
Historicamente a formação hegemónica neoliberal sucedeu à do Estado-providência de
matriz social-democrata. Contudo, mais recentemente, e em face da crescente
insatisfação e exigência de largas categorias sociais, a formação hegemónica neoliberal
está sob pressão e erosão. Organicamente esta formação é constituída por:
desregulação; privatização; austeridade; limitação do papel do Estado; individualismo;
e ascendente materialista.
A pós-democracia corresponde precisamente ao auge da hegemonia neoliberal. Nesta
fase ganham protagonismo na regulação da atividade política e institucional os princípios
do liberalismo, mormente do liberalismo económico em detrimento da igualdade e
soberania popular e com eles a oclusão dos espaços agonísticos. O momento populista
constitui-se como o tempo de distinção dos populismos. Deste modo, as outras propõem
a conceção e adoção de uma nova linguagem, que tenha o poder de identificação política
de largos estratos sociais descontentes e afastados da esfera pública. Este novo código
linguístico permitiria o segundo elemento proposto, a definição da fronteira entre o
“povo” e a “oligarquia”. É neste ponto que a bifurcação se apresenta entre populismo de
esquerda e populismo de direita. O “nós” do populismo de esquerda deverá ter o condão
de articular interesses de grupos sociais como os trabalhadores, a comunidade LGBTI,
os imigrantes e a classe média precarizada.
O segundo capítulo, Aprender com o thatcherismo recua até meados da década de 1970,
onde começam a multiplicar-se os focos de tensão na hegemonia social-democrata.
Expoente desta crise, a ofensiva thatcherista passa por colocar em causa a legitimidade
do Estado-provincia. Crise de legitimidade ampliada por fatores económicos, como a
crise do petróleo de 1975, mas também o papel contestatário dos novos movimentos
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Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda.
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sociais, advogando maiores direitos e liberdades individuais. Esta fraqueza histórica do
Estado-social e da hegemonia que o legitima foi implacavelmente aproveitada para
erguer uma nova hegemonia, a neoliberal.
A estratégia passou pela construção, ao nível discursivo de umnós”, o povo esforçado,
vítima dos burocratas e um “eles” que contemplava: as forças do sistema; os burocratas
do Estado; as organizações sindicais; e os beneficiários de prestações sociais. A
estratégia hegemónica do populismo de Thatcher resultava na combinação dos temas
tradicionais do Partido Conservador, como o interesse pprio, o individualismo, a
apologia à concorrência e uma forte cultura anti Estado. A intervenção deu-se a diversos
níveis: económico; político; e ideológico de forma a sedimentar uma nova hegemonia
cultural.
A consolidação da hegemonia neoliberal passou pela adoção de cânones estéticos da
contracultura como autenticidade, autogestão e ausência de hierarquias permitindo a
neutralização dos novos movimentos sociais.
Mouffe, no terceiro capítulo, Radicalizar a Democracia começa por postular o que entende
por formação hegemónica, ao considerar que “(...) é uma configuração de práticas sociais
de diferentes naturezas: económica, cultural, política e jurídica, e a sua articulação é
assegurada em torno de alguns significantes-chave simbólicos que dão forma ao “senso
comum” e oferecem o quadro normativo de dada sociedade” (2019: 53). No fundo,
estamos perante uma estrutura social que tem a pretensão de substituir o quadro
normativo dominante. É a partir deste que são norteadas as práticas sociais, incluindo
aquelas que têm como base o senso comum.
De acordo com a autora as instâncias institucionais que suportam as sociedades
ocidentais, vêem-se a braços com uma crescente erosão não da confiança depositada
pelos cidadãos, mas também no seu próprio funcionamento, mormente ao priorizar a
liberdade, sobretudo a económica, em detrimento da igualdade, enquanto princípio
basilar da vida democrática.
Não deixa de ser paradoxal o facto de não haver uma robusta oposição/rejeição ao
projeto neoliberal de financeirização da economia e demais esferas de atividade social. É
aqui, neste ponto, que a autora “espreita” uma oportunidade para o populismo de
esquerda, captando e mobilizando o descontentamento de largas categoriais sociais
relativamente às elites do regime.
Incumbe ao populismo de esquerda radicalizar a democracia. A constituição de um ator
capaz de levar a cabo esta transformação ao nível das instituições sociais e políticas
deverá considerar e partir do contributo de três tipos de ator de esquerda: reformismo
puro; reformismo radical; e a política revolucionária. Todos eles terão necessariamente
como imperativo da sua ação o Estado como espaço agonístico. Para tal, não se trata de
uma qualquer versão da extrema-esquerda, mas de uma esquerda que promova a rutura
com o status-quo neoliberal.
Em consequência, o populismo de esquerda enquanto ator político coletivo, deverá
intensificar o confronto agonístico na sociedade e muito em particular nas estruturas do
Estado.
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Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda.
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O quarto e último capítulo, intitulado A Construção de um Povo é o espaço onde a autora
problematiza o processo de radicalização da democracia, que deverá passar pela
construção de um sujeito político que articule diferentes interesses e intensifique a
componente da igualdade, equiparando-a à liberdade. O “povo” do populismo de
esquerda deverá ser constituído por uma causa, definida de forma clara e objetiva e que
articule uma cadeia de equivalências da vontade popular. Um segundo aspeto, é a
emergência e a consolidação da figura de um líder, de preferência com contornos
carismáticos. Esta dupla dimensão da construção de um ator político populista de
esquerda remete-nos para duas importantes observações. Por um lado, o modelo de
democracia subjacente na passagem de uma hegemonia neoliberal para uma hegemonia
populista de esquerda, no qual deverá imperar um papel de cidadão em substituição da
de consumidor. Esta passagem implica um ativo envolvimento da vida coletiva e
comunitária. Por outro lado, a figura do líder populista de esquerda distancia-se do líder
populista de direita com traços autoritários e centralizadores.
Finalmente, na Conclusão, discute o “momento populista” que emerge nas sociedades
contemporâneas ocidentais como o resultado da erosão dos mecanismos institucionais
dos regimes democráticos, que assim vão acumulando tensões e clusters de conflito
social ora latente, ora mesmo em estado manifesto. Em resultado da hegemonia
neoliberal que saiu triunfante nas últimas décadas a condição pós-democrática está
presentemente, de acordo com a autora, minada pelo descontentamento crescente de
largas categorias sociais.
A eclosão do descontentamento de categoriais sociais tão diversas, dá-se de forma muito
distinta, corporizando aquilo que é concebido como momento populista”: ao nível
discursivo, com a construção de uma categoria discursiva, “o povo”, que agrega
categorias sociais tão diversas. o havendo critério geral que se aplique
transversalmente às diferentes democracias ocidentais, agregam-se os que se sentem
distantes dos circuitos decisórios e de mobilidade social. É ainda composto pela crescente
preponderância dos afetos na política.
Por isso, mais do que a definição programática de um hipotético populismo de esquerda,
a delimitação de uma fronteira política terá o seu culminar no plano discursivo. Deste
ponto de vista, interessa desmontar a conotação negativa de populismo que prolifera
pelo Ocidente, uma vez que esta não passa de uma estratégia oriunda dos grupos de
interesse da pós-política.
Antagonicamente, o populismo pode assumir-se como uma promissora estratégia de
radicalização democrática e da sua vertente da igualdade e justiça social, como critérios
distintivos do populismo de esquerda relativamente aos demais.
No Andice teórico - Uma abordagem antiessencialista, a autora leva a cabo algumas
clarificações conceptuais que, para além de reforçar os alicerces epistemológicos e
teóricos da obra em estudo, também tem o seu lado pedagógico. Começa por esclarecer
que a sua abordagem se situa naquilo que designa como perspetiva dissociativa ao
entender a estrutura política como o espaço onde se digladiam os interesses antagónicos
com potencial conflituante. A análise anti essencialista baseia-se em dois conceitos
basilares: primeiro, as “práticas hegemónicas” que compreendem “todas as ordens
sociais são a articulação temporária e precária de práticas hegemónicas cuja finalidade
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Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 286-291
Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda.
Colecção Trajectos. Lisboa: Gradiva. ISBN 978-989-616-906-0. 104 pp
João Carlos Sousa
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é estabelecer uma ordem num contexto contingente. As práticas hegemónicas são
práticas de articulação pelas quais uma dada ordem é criada e o significado das
instituições sociais é fixado (2019: 90). Um segundo conceito, de agente social “(...) é
constituído por um conjunto de “posições discursivas” que nunca podem ser totalmente
fixadas num sistema fechado de diferenças” (2019: 90). Resumindo, ao postular que não
existe qualquer determinismo estrutural, uma vez que o posicionamento de cada ator
está inscrito numa estrutura discursiva instável, constantemente reavaliada por parte de
cada ator.
Uma conceção agonística da democracia - o grande desafio contemporâneo para os
regimes liberais passa por estabelecer um espaço de confronto agonístico, que permita
o estabelecimento de critérios que levem à construção de um “nós” e um “eles”. O eles,
não é um inimigo que tenhamos objetivamente de eliminar, mas um adversário que
lugar a um combate de ideias numa clara distinção entre o “adversário” e o “inimigo”.
Ainda assim não se pode dispensar o combate aos inimigos, entendidos como aqueles
que recusam jogar o jogo democrático com as suas regras e princípios. Daqui ser também
relevante a distinção entre “antagonismo” associado aos inimigos da democracia e
“agonismo” onde se confrontam diferentes perspetivas políticas.
Reflexões e diálogo com a obra
A leitura da presente obra representa uma substantiva tentativa de revalorização do
conceito de “populismo” e reciclá-lo dos escombros sociais em que comummente é tido,
mormente no discurso político e mediático quotidiano e enquanto esta pode ser uma
oportunidade de renovação dos procedimentos democráticos (Judis, 2017;ller, 2017;
Mudde & Kaltwasser 2017). Contudo, a autora francesa contribui para este debate com
o programa para um putativo populismo de esquerda que vise a revitalização da
democracia.
No que toca à definição da causa, a autora levanta algumas pistas, que deverão passar
em primeira instância por apelar à “questão social”, denunciando e propondo-se como
alternativa às formas de exploração, dominação e discriminação. A questão ecológica
deverá ter também um lugar charneira na formação de uma nova hegemonia populista
de esquerda, advogando a favor de uma justa transição energética e o abandono do
modelo produtivista dominante.
Finalmente, a construção do populismo de esquerda, sendo ancorado geográfica e
nacionalmente, deverá: ambicionar a sua internacionalização; colaborar com os vários
populismos de esquerda nacionais; radicalizar cada uma das democracias; e invocar os
afetos polarizadores existentes entre os diferentes atores.
A autora fala num tempo “pós-política” que acaba por não definir com o pormenor
suficiente de forma a identificar dimensões e critérios que assinalem a passagem de um
período de hegemonia neoliberal para um “pós-político”. No fundo, fica-se sem perceber
em que condições e circunstâncias exatas se processa esta transformação no caso
concreto para a passagem do que define como “momento populista” atual.
Sente-se a ausência de uma abordagem, por genérica que fosse, do papel dos media nas
sociedades contemponeas e em particular no processo histórico de dialética onde se
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 286-291
Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de Esquerda.
Colecção Trajectos. Lisboa: Gradiva. ISBN 978-989-616-906-0. 104 pp
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sucedem transformações culturais nevrálgicas sem a devia acuidade, por exemplo à
apropriação e uso dos novos media sociais por atores tidos como populistas (Bolsover,
2017; Benkler, Faris & Roberts, 2018; Gopalkrishnan, 2018), que assentam a sua
estratégia numa dupla prática: o estabelecimento da comunicação e interação direta com
os potenciais eleitores, quebrando o monopólio dos meios de comunicação tradicionais
(Morais & Sousa, 2013); e, em segundo lugar, uma rutura no plano discursivo que
enfatiza a denúncia das elites corruptas ou o compdas elites liberais e cosmopolitas
relativamente aos fluxos migratórios (Eatwell & Goodwin, 2019).
Referências bibliográficas
Benkler, Y., Faris, R., & Roberts, H. (2018). Network propaganda: manipulation,
disinformation, and radicalization in American politics. New York: Oxford University Press.
Bolsover, G. (2017). “Computational Propaganda in China: An Alternative Model of a
Widespread Practice.” S. Woolley, P. N. Howard (Eds.), Working Paper, Oxford, UK,
Project on Computational Propaganda. Disponível em: http://comprop.oii.ox.ac.uk/
[consultado em 05-10-2020].
Eatwell, R. & Goodwin, M. (2019). Populismo, A Revolta Contra a Democracia Liberal.
Porto Salvo: Desassossego.
Gopalkrishnan, S. (2018). “The Trump Campaign Computational Propaganda Challenge
for the Indian Parliamentary Elections 2019”. Media Watch, Vol. IX (Nº I), pp. 79-88.
Judis, J. B. (2017). A Explosão do Populismo. Lisboa: Editorial Presença.
Morais, R. & Sousa, J. C. (2013). “As práticas jornalísticas na imprensa regional: a
selecção das fontes e a promoção de desigualdades sociais”. Observatório, 7(1), 187
204. https://doi.org/10.7458/obs712013518
Mudde, C. & Kaltwasser, C. R. (2017). Populismo: uma brevíssima introdução. Lisboa:
Gradiva.
Müller, J.W. (2017). O Que é o Populismo?. Alfragide: Texto Editora.
Como citar esta recensão
Sousa, João Carlos (2021). Recensão Crítica de Mouffe, Chantal (2019). Por Um Populismo de
Esquerda. Colecção Trajectos. Lisboa: Gradiva. ISBN 978-989-616-906-0. 104 pp. Janus.net,
e-journal of international relations. Vol12, . 1, Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.01.1