OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
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NOTAS E REFLEXÕES
MIKHAIL GORBATCHOV, O FATOR HUMANO E A IMPLOSÃO DA
UNIÃO SOVIÉTICA
DANIELA PEREIRA NUNES
daniela_pn12@hotmail.com
Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa (Portugal) e licenciada em Ciência Política e Relações
Internacionais. As principais áreas de interesse são a Guerra Fria, a história da União Soviética e
a liderança política.
Introdução
A contribuição singular de Mikhail Gorbatchov para o saldo final da Guerra Fria e para o
processo que culminou simultaneamente na implosão da União Soviética e no fracasso
do comunismo soviético motivou e continua a motivar os estudiosos a pensar acerca do
impacto que um homem pode ter no decurso de determinados processos políticos. No
caso da União Soviética e do seu processo disruptivo, parece ser evidente a influência
decisiva do líder político, Gorbatchov, no desfecho trágico da tentativa de reforma
económica, social e política. É claro que um conjunto de outros fatores, designadamente
de domínio estrutural, influenciaram os acontecimentos de 1985-1991, tanto dentro
como fora da União Soviética. Porém, esta reflexão centrar-se no papel de Gorbatchov,
nas suas escolhas e nos limites que lhe foram impostos pela própria natureza do regime
que ele tentara reformar a partir de 1985.
Assinala-se em 2021 o trigésimo aniversário da extinção da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). Volvidas três cadas sobre a implosão deste império
septuagenário, Mikhail Gorbatchov continua a espelhar o debate dual que logo após o
ano de 1991 dividiu os historiadores e analistas no que respeita ao impacto que o último
der soviético teve neste processo disruptivo. Este debate opõe essencialmente duas
posições, que encontram expressão na terminologia de William Taubman: “[Gorbatchov]
é um herói trágico” (Taubman, 2018: 693) que, para libertar os soviéticos e os Leste-
europeus do medo, deixou fracassar um país e uma ideologia. Todavia, e apesar desta
dicotomia, parece haver entre os estudiosos algum consenso acerca da importância e do
protagonismo desempenhado por Gorbatchov para que a Guerra Fria terminasse quando
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e como terminou. Comparativamente com qualquer outro líder soviético, ele foi o
primeiro e único grande interessado em incentivar o fim deste conflito, quer tal se
interprete como um grande feito, quer como um sinal da sua fraqueza.
A contribuição singular de Gorbatchov para o saldo final da Guerra Fria é especialmente
apreciada no Mundo Ocidental, que consegue ver nele um visionário, alguém que
procurou transformar um país e sistema enormes, mas demasiados pequenos para a sua
mundivisão e mentalidade inovadora. Na sua terra natal, porém, Gorbatchov é antes
visto como um utopista presumido, atraiçoado pelo seu próprio excesso de confiança, e
responsável pelo extermínio de um povo e de uma nação com setenta anos.
O Fator Humano como Elemento Explicativo
Antes de quaisquer outras considerações acerca do papel deste líder no processo que
culminou simultaneamente na desagregação da União Soviética, na demonstração do
fracasso de uma ideologia e no fim da Guerra Fria, é preciso sublinhar a pertinência
associada ao exercício de olhar para o fator humano como um dos elementos explicativos
destes acontecimentos. As narrativas dos principais eventos históricos e das grandes
transies polticas do mundo da modernidade parecem traduzir uma tendncia para
vincular a estes eventos explicaes sobretudo inseridas no domnio dos fatores
estruturais. Ao contrário dos fatores contingentes, os fatores estruturais estão
normalmente na base de interpretações mais abrangentes, de nível sistémico, por
oposição a interpretações muito focadas num determinado elemento explicativo, como é
o caso de um líder político.
No caso da União Soviética e do seu processo de implosão, os principais elementos
explicativos de ordem estrutural prendem-se, por um lado, com os constrangimentos
inerentes à Guerra Fria e, por outro, com as caraterísticas do próprio regime soviético.
O equilíbrio de poder bipolar da segunda metade da década de 1980, como um destes
grandes elementos estruturais, foi responsável pelo estrangulamento gradual das
capacidades soviéticas, principalmente as económicas. Na medição de forças com a
superpotência rival, o esvaziamento destas capacidades acabaria por conduzir o sistema
soviético a deixar de conseguir responder à competição militar, tecnogica e espacial.
Ao mesmo tempo, a rigidez e o centralismo típicos deste regime totalitário, assim como
a sua condição de Estado multinacional e a sua ineficiência crónica, também contribuíram
em larga medida para o desfecho trágico que se seguiu à implementação de um plano
para reformar o país.
Alternativamente, e embora não possamos reduzir a problemática do colapso de um
qualquer regime ou sistema político a uma análise unidimensional, esta reflexão
concentrar-se num fator explicativo contingente muito concreto: Mikhail Gorbatchov,
seus erros e triunfos, nos sete anos da sua liderança (1985-1991). A história da Rússia
fornece exemplos particularmente ilustrativos, que ajudam a compreender a importância
do fator humano no desenrolar de determinados processos políticos. O sociólogo Andrus
Park recorda que
uma das tarefas [desta histria] parece ser a de relembrar a humanidade uma
e outra vez o quo importantes os indivduos so na Histria. Ivan o Terrvel,
Pedro o Grande, Vladimir Lenine, Joseph Estaline, e muitos outros provaram
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de maneiras diferentes que as açes dos lderes polticos podem influenciar
significativamente o curso dos acontecimentos. (Park, 1992: 47)
O objetivo desta reflexão não é, contudo, o de comparar o legado de Gorbatchov com o
dos indivíduos elencados por Park. Também não se pretende demonstrar que todos os
processos políticos são igualmente influenciados pelos líderes que os protagonizam.
Antes, trata-se de demonstrar como um líder pode ter um impacto crucial num
determinado processo político e, em particular, como Gorbatchov foi tão importante,
mesmo decisivo, no processo histórico-político que reflete simultaneamente a sua
coragem e estratégica invulgares, para uns, e o esgotamento de todas.as suas forças,
para outros.
O primeiro sinal de que este líder viria a significar alguma mudança para o seu país
embora fosse impossível prever que tipo de mudança foi a sua nomeação, a 11 de
março de 1985, para o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS). Em vez da continuidade do poderio das figuras da ala geriátrica do
partido, esta nomeação traduziu o reconhecimento da necessidade de eleger uma mente
jovem, aberta e enérgica. Ainda assim, este no foi o mais importante dos sinais da
mudança que Gorbatchov viria a implementar na União Soviética (e no mundo): o mais
importante foi o modo como ele tentou implementar essa mudança, os caminhos que
escolheu trilhar, e os que não escolheu, para viabilizar essa mudança. Ao contrário dos
seus antecessores, no procurou transformar o sistema soviético de um dia para o outro,
assim como também no procurou dar continuidade à velha prática da uniformizao
total da sociedade soviética em busca de um “povo soviético único” Sovetskii Narod
(Smith, 1992: 9-10).
Tanto ou mais do que pelas suas ideias, Gorbatchov distinguiu-se pela forma como
procurou implementá-las, pela maneira, algo estranha para um líder soviético, como
provou colocar-se sempre no lugar do outro. Estas ideias, aliadas ao modo como se
concretizaram, fazem de Gorbatchov o tipo de líder que Robert Tucker to fielmente
sumarizou:
(...) algum que procura tornar a ordem vigente bem-sucedida ao introduzir-
lhe mudanças e que reconhece que essas mudanças devem ser graduais, uma
vez que implicam o afastamento de formas de pensar e agir culturalmente
padronizadas ao longo de dcadas. (Tucker, 1995: 159-160)
As grandes transformaçes possibilitadas por este lder tornaram-se históricas no
apenas porque reorientaram o rumo da História no final do século XX, mas principalmente
pela forma pacfica e gradual como foram feitas. Nem todos os lderes so responsáveis
por este tipo de transformaçes; alguns no so responsáveis por quaisquer
transformaçes. Todos os lderes tm, por isso, o que Joseph Nye classificou como
“diferentes graus de impacto na História” (Nye, 2008: 8). Quando se trabalha sob a
cúpula de um regime totalitário, como o soviético, o peso que uma determinada liderança
política pode ter é ainda mais potencializado. Como observou o especialista britânico
Archie Brown, “o estmulo para que um lder seja o grande decisor é ainda maior, e as
suas consequncias ainda mais perigosas, dentro de regimes autoritários e totalitários”
(Brown, 2014: 22).
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Nestes regimes, é habitual assistir ascenso de lderes que canalizam o seu poder e
posiço supremos no sentido da imposiço da sua vontade e do culto da sua
personalidade. Pelo contrário, Gorbatchov, enquanto um destes grandes decisores,
escolheu canalizar o seu poder no para a imploso do seu próprio pas, obviamente,
mas para o final da Guerra Fria; no para o sacrfico do Pacto de Varsóvia, mas para a
autonomizaço das sociedades Leste-europeias; não para o enfraquecimento da posição
soviética no jogo da política internacional, mas para a negociação por um mundo
desnuclearizado. A principal consequncia do seu projeto reformista talvez não tenha
sido o desaparecimento da Unio Soviética, mas o desaparecimento do medo, que ele
conseguiu substituir pacificamente por um conjunto de oportunidades, outrora
pertencentes a uma esfera de coisas impossíveis, quer para os soviéticos, quer para os
Leste-europeus.
Das Reformas ao Colapso
Quando chega ao poder, Gorbatchov é um reformador, mas um reformador dentro dos
limites do próprio sistema. Por isso mesmo, não se pode confundir a sua intenção de
reformar o comunismo soviético com um plano para o substituir. Pelo mesmo motivo,
também não se deve romantizar excessivamente o projeto deste líder, cujo principal
desígnio era o de recuperar a pureza da natureza marxista-leninista do sistema soviético.
Apesar da sua admiração inequívoca por certos valores Ocidentais, como a liberdade e a
democracia (embora os devamos observar dentro do entendimento próprio de quem foi
educado nas estruturas soviéticas), Gorbatchov é um homem que cresce dentro do
comunismo e é pela sua devoço ao comunismo que sobe ao poder. Não é, portanto,
possível afirmar que o seu projeto de reformas refletiu uma tentativa de substituir o
sistema vigente na URSS. Antes, este projeto refletiu uma tentativa de regresso ao
Leninismo, o que é particularmente manifesto do ponto de vista económico a
Perestroika mais no era do que uma proposta semelhante Nova Poltica Económica de
Lenine nos anos 1920, que tinha como finalidade incentivar, acelerar e modernizar
(ligeiramente) a economia soviética.
Com Gorbatchov, somou-se à tentativa de reforma económica a ambiço de introduzir
na sociedade soviética altamente embebida na lógica da corrupço, do clientelismo e
da apatia o esprito de abertura e transparncia de que a Glasnost é símbolo. É a partir
desta e de outras ambições muito caraterísticas da liderança de Gorbatchov que se torna
claro que a vontade deste lder era simplesmente tornar a Unio Soviética um “pas
normal,” (Gaspar, 2016: 98) usando a expresso de Carlos Gaspar. É justamente por
conta destas ambições, aliadas à crença desmedida na reformabilidade do sistema
soviético, que o colapso da URSS, em parte, também é devido a Gorbatchov.
A geraço de polticos de onde Gorbatchov surge remonta aos anos de Krushchev e a um
primeiro momento em que se institura na Unio Soviética aquilo a que se pode chamar
um paradigma pós-estalinista. O discurso secreto de Krushchev no XX Congresso do
PCUS, em fevereiro de 1956, alertou pela primeira vez uma geraço de jovens os
filhos do XX Congresso,” (Brown, 1996: 39-40) como ficou conhecida esta geração
para o regime de terror que havia sido o Estalinismo. Gorbatchov é um dos filhos desta
geraço, um smbolo incontornável do impacto que as revelaçes de Krushchev tiveram
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no processo de questionamento e instrospeção que um grupo de intelectuais viria a
protagonizar a partir da segunda metade da década de 1950.
É este processo de questionamento, associado ao sentimento de um propósito comunista
renovado pelas revelações de Khruschev, que está na base da reformista de
Gorbatchov e outros da sua geração. Mas esta crença na possibilidade de reformar o
regime soviético melhorando apenas o sistema vigente coloca e colocou desde sempre
os especialistas diante de uma situação algo paradoxal: o projeto de reformas de
Gorbatchov traduz uma tentativa louvável de transformar um sistema fechado e
decadente, mas a sua reação face às consequências imprevistas deste projeto fizeram
dele o responsável pelo desaparecimento de um país e de uma zona de influência
considerada desde a Segunda Guerra Mundial como o “quintal poltico soviético” (Brown,
2020: 276-277) a Europa de Leste. A controvérsia ligada ao nome deste líder reside
exatamente neste paradoxo: para revigorar o comunismo soviético, Gorbatchov perdera-
lhe as rédeas, permitindo que, dentro e fora da União Soviética, cada um escolhesse o
seu caminho, mesmo que isso implicasse o fracasso de todas as suas ambições e da
crença ingénua de que seria possível reformar um sistema irreformável.
Quer no processo de fragmentação, e finalmente extinção da URSS, quer no processo de
dessatelização da Europa de Leste, Gorbatchov escolheu ser um observador, em vez de
um ditador. A melhor forma de o reconhecer como tal é comparando-o com os seus
antecessores preferencialmente imaginando o que teriam feito estes últimos em seu
lugar. Como Estaline, Brezhnev ou todos os outros, Gorbatchov dispunha de armas e
poder para travar estes processos: podia ter mandado prender os primeiros a criticar
publicamente a Perestroika; podia ter dado ordens para matar todos os que tentassem
atravessar o muro de Berlim; podia ter impedido a ascensão de Boris Ieltsin; podia ter
feito uso da força para acabar com as primeiras manifestações nacionalistas nas
Repúblicas Bálticas. As decisões mais marcantes deste der foram, tal como observou
Anne Applebaum, aquelas que ele não tomou (Applebaum, 2011). O reconhecimento que
lhe é devido justifica-se principalmente por estas decisões nunca tomadas e pelo modo
como um produto autêntico do regime soviético escolheu distanciar-se do modelo de um
típico líder soviético.
Dentro da União Soviética, e estranhamente, Gorbatchov parece nunca ter sido
verdadeiramente reconhecido pelas possibilidades inéditas que ofereceu aos soviéticos,
permitindo-lhes combater a sua apatia natural e enraizada desde o Czarismo. Na história
das lideranças soviéticas, Gorbatchov foi o único que tentou dar aos soviéticos tudo aquilo
que todos os seus antecessores lhes tentaram tirar: escolhas. Mesmo que as
consequncias destas escolhas tenham atraioado os verdadeiros objetivos deste líder,
ele deve ser reconhecido pelo facto de ter optado por se distanciar do modelo tenebroso
de um tpico lder soviético. E este distanciamento no se manifestou apenas do ponto
de vista poltico. Também se manifestou de maneiras invulgares no contexto da cúpula
totalitária soviética: que outro lder soviético se mostrou to preocupado com questes
ecológicas e ambientais como Gorbatchov se mostrou? Que outro lder soviético
escolheria observar, em vez de impedir violentamente, a libertaço dos povos Leste-
europeus como Gorbatchov escolheu? Que outro lder soviético se faria acompanhar
publicamente da sua mulher como Gorbatchov o fez, com Rassa? Em parte, so estes
momentos de distanciamento e singularidade que demonstram que tudo teria sido
diferente na Unio Soviética e no mundo da segunda metade da década de 1980 se no
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fosse Gorbatchov a chegar ao poder em 1985. A sua nomeaço acelerou um processo de
imploso e libertaço que, certamente, viria a acontecer anos mais tarde. Porém, se no
fosse Gorbatchov e o aceleramento por ele provocado, é possvel que este processo no
tivesse sido to pacfico, e isso só a ele se deve.
Mais do que transformar o sistema soviético, Gorbatchov procurou transformar o sistema
que herdou de um conjunto de líderes muito preocupados com a manutenção do seu
poder e com o culto da sua personalidade. Dentro das suas convicções marxistas, as
prioridades deste líder eram bastante distintas das destes seus antecessores: em vez de
uma esfera de influência, procurou construir uma ordem global baseada na cooperação;
em vez da uniformização, procurou dar a cada um a sua própria voz; em vez da força,
procurou usar as palavras. Em última análise, e paradoxalmente, pode dizer-se que os
planos reformistas de Gorbatchov resultaram no no aprofundamento da legitimidade e
do poder do seu pas, mas antes na sua eroso, o que culminou finalmente no seu
desaparecimento definitivo. Conforme frisado no princípio desta reflexão, várias foras
externas contriburam ativamente para este desfecho desde logo, a perda sucessiva de
meios para manter o nvel da competio com a superpotência rival. Mas foram as forças
internas que tornaram possvel uma imploso to rápida: Gorbatchov criou mais inimigos
dentro do seu pas do que fora dele, subestimando desde sempre o ódio destes inimigos,
alguns deles figuras que lhe eram bastante próximas.
É claro que Gorbatchov é o principal responsável pelos seus erros, pelas decisões que
tomou e pelas que não tomou. Mas é preciso ver no seu percurso político uma tentativa
corajosa de assumir e tentar corrigir as falhas de um sistema incorrigível. Do mesmo
modo, é preciso compreender, como notou o especialista russo Vladislav Zubok, que
“(...) ninguém sabe como transformar um regime totalitário, e por isso é possível
fazê-lo por tentativa e erro” (Zubok, 2007: 313-314). depois de uma primeira
tentativa de reforma a Perestroika foi possível perceber que, para além de uma
transformação do seu modelo económico, a União Soviética precisava ser transformada
cultural e socialmente. A passagem do projeto reformista de Gorbatchov para uma
transformação de nível sistémico resulta não das incapacidades do líder, mas das
deficiências crónicas do próprio regime. O que isto significa é que o plano para reformar
este regime se radicalizou na medida em que o próprio regime foi demonstrando a
sua incapacidade crónica de adaptação a um conjunto de ideias inovadoras.
Só quem tenha a capacidade de ver em Gorbatchov a figura de um libertador,
responsável pelo progresso em que nenhum outro lder soviético esteve interessado,
compreende como o fator humano é fundamental para explicar o processo de implosão
da URSS e os últimos sete anos da Guerra Fria. Quem, por outro lado, vir neste líder a
figura de um traidor, tenderá a considerar que ele se limitou a ceder perante a pressão
interna e externa. Para estes últimos analistas, é difcil ver nas escolhas e cedncias de
Gorbatchov algo de heroico. Mas é preciso sublinhar que, semelhança de todos os seus
antecessores, Gorbatchov teve em mos todo o poder; ao contrário de todos eles, porém,
escolheu limitá-lo. Nenhum elemento alheio personalidade, educaço e formação de
um líder pode explicar isto é aqui que reside a relevncia do fator humano.
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Como citar esta nota
Nunes, Daniela Pereira (2021). Mikhail Gorbatchov, o Fator Humano e a Implosão da União
Soviética. Notas e Reflexões. Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1,
Maio-Outubro 2021. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.01