OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021)
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“NATO 2030”: A SOBREVIVÊNCIA NUMA NOVA ERA
MARCO ANTÓNIO FERREIRA DA CRUZ
cruz.maf@ium.pt
Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar (Portugal)
Resumo
A NATO atravessa um momento de elevada complexidade, resultante em grande parte das
profundas divisões internas e que limitam a sua capacidade de atuação para lidar com os
diversos desafios estratégicos. Tendo por base o recém-publicado documento “NATO 2030:
United for a new era”, que analisa o ambiente estratégico e recomenda um conjunto de linhas
de atuação da organização para os pximos dez anos, o presente artigo argumenta que
grande parte das medidas propostas, para reforço da coesão política da Aliança, podem
ser implementadas com sucesso se forem tomadas duas medidas essenciais: aproximação à
Turquia e reforço da cooperação com a UE. A sobrevivência da NATO está de igual modo
dependente da identificação de uma ameaça comum, fundamental para esta tipologia de
comunidade, condição que é atualmente inexistente, sobretudo em relação aos dois
adversários sistémicos apresentados (Rússia e China).
Palavras-chave
NATO 2030, União Europeia, Turquia, rivais sistémicos, coesão política, ambiente estratégico
Como citar este artigo
Cruz, Marco António Ferreira da (2021). NATO 2030”: A sobrevivência numa nova era.
Janus.net, e-journal of international relations. Vol12, Nº. 1, Maio-Outubro 2021. Consultado
[online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.12.1.2
Artigo recebido em 18 Janeiro 2021 e aceite para publicação em 7 Março 2021
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Vol. 12, Nº. 1 (Maio-Outubro 2021), pp. 13-32
“NATO 2030”: a sobrevivência numa nova era
Marco António Ferreira da Cruz
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“NATO 2030”: A SOBREVIVÊNCIA NUMA NOVA ERA
MARCO ANTÓNIO FERREIRA DA CRUZ
Introdução
Foi apresentado, no dia 25 de novembro de 2020, um relatório com as principais linhas
estratégicas da NATO (North Atlantic Treaty Organization) para os próximos 10 anos. O
documento, com o título “NATO 2030: United for a new era” (NATO, 2020) foi elaborado
por um conjunto de dez especialistas
1
, de diferentes proveniências, de académicos a
políticos, convidados e nomeados pelo próprio Secretário-geral da NATO, Jens
Stoltenberg. Apesar de não terem sido apresentadas as razões da escolha de cada um
dos membros, importa sublinhar as ausências de Portugal e de Espanha deste fórum de
reflexão.
Apesar do grupo trabalhar de forma autónoma da estrutura da NATO, Jens Stoltenberg
deixou três recomendações orientadoras para as reflexões produzidas, designadamente:
i) reforço da unidade da aliança, da solidariedade e da coesão, incluindo a centralidade
das ligações transatlânticas;
ii) aumento da consulta e da coordenação política entre os membros da NATO;
iii) e reforço do papel político da NATO e dos seus principais instrumentos para lidar com
as atuais e futuras ameaças e desafios à segurança da aliança, com origem em todas
as direções estratégicas (NATO, 2020: 3)
Da análise ao documento, destacam-se duas ideias principais. A primeira diz respeito ao
reposicionamento global da NATO. É reconhecido que no contexto atual os desafios e
ameaças o de natureza e dimensão globais. Para lhes responder é necessário, portanto
uma abordagem alargada. Conceptualmente, porém, o conceito expresso no documento
é de que a NATO se deve manter uma Organização Regional, mas que se insira de forma
mais conexa com a rede de parceiros globais indispensáveis (a exemplo da Austrália, do
Japão e da Coreia do Sul e da India) para, em conjunto, se possam esconjurar desafios
que afetam todos e que ultrapassam as capacidades isoladas de um único, mesmo as da
maior potência mundial, os Estados Unidos da América (EUA). A cooperação com os
aliados passou a ser uma assim um pressuposto fundamental do documento.
1
Greta Bossenmaier (Canadá), Anja Dalgaard-Nielsen (Dinamarca), Hubert Védrine (França), Thomas de
Maizière (Alemanha), Marta Dassù (Itália), Herna Verhagen (Holanda), Anna Fotyga (Polónia), Tacan Ildem
(Turquia), John Bew (Reino Unido) e Wess Mitchell (Estados Unidos da América). Tal como foi sublinhado
pelo próprio Secretário-geral, as recomendações e as conclusões deste documento, em nada vinculam a
própria NATO ou os Estados aos quais os peritos convidados pertencem.
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Um segundo ponto diz respeito à intenção de ser reforçada a sua capacidade política. Os
últimos anos deixaram bem patente a permanência dos riscos e desafios e o aumento da
sua complexidade. Mostraram um desajuste, público, na parceria transatlântica e o
surgimento de questões internas do foro democrático em relação a países da Aliança,
bem como de atitudes estratégicas e posturas militares impensáveis como no caso da
Turquia, nomeadamente da sua intervenção militar no Mediterrâneo ocidental, na Líbia
ou na Síria. O que leva a que o documento se foque na apresentação de medidas
passíveis de gerar a capacidade política necessária para ultrapassar esta situação
conjuntural.
É sobre estes dois pontos que pretendemos fazer a nossa reflexão, pois embora se
reconheça que existe uma necessidade de ser elaborado um novo conceito estratégico
para a NATO que traduza este novo contexto internacional, com outra tipologia de
ameaças, decorrentes das alterações climáticas, da proliferação nuclear, das disputas no
espaço, dos ciberataques, apenas para referir algumas, é também marcado por atores
que (re)emergiram e que disputam o poder à escala global. A Rússia passou a ser
considerada uma “ameaça para a segurança individual de Aliados NATO e para a
estabilidade e coesão da Aliança como um todo” (NATO, 2020: 25) e a China “um rival
sistémico” de amplo espectro que, embora não represente uma ameaça militar imediata
para a área euro-atlântica na escala da Rússia, “está a expandir o seu alcance militar
para o Atlântico, Mediterrâneo e Ártico”.
Julgamos, porém, que sendo entendíveis as medidas propostas, a adoção consensual das
mesmas pela Aliança es dependente de fatores complexos, mas particularmente da
atitude da nova administração americana, da Turquia e do quadro das relações com a
UE, que se configuram como fatores críticos de sucesso ou insucesso
O estabelecimento da NATO, em 1949, e as sucessivas adaptações que protagonizou
tiveram quase sempre a unanimidade como garantida, nomeadamente em relação à
tipologia de ameaças que pretendia combater. Na sua fase original, era aceite por todos
a necessidade de dissuasão e de defesa de um ataque soviético e mais tarde do Pacto de
Varsóvia. Depois da queda do muro de Berlim e do colapso do pacto de Varsóvia, foi
unânime a resposta às crises que imediatamente irromperam na sua periferia e que
levaram às primeiras operações, fora de área, com as intervenções nos Balcãs
Ocidentais, em resposta às atrocidades cometidas por forças militares sérvias na Bósnia
e no Kosovo. Na sequência do ataque terrorista do 11 de Setembro, a NATO declarou o
artigo V para apoiar os EUA e em 2003 projetou forças sob a sua bandeira para o
Afeganistão, alargando ainda mais a área externa de intervenção para combater o
terrorismo internacional, liderado então por Osama Bin Laden.
Hoje, todavia, a situação é bem mais complexa tanto externa como internamente. A
definição das ameaças ou desafios é menos consensual e o afastamento transatlântico
dos EUA, iniciado com a administração Obama
2
, deixou um rasto de dúvida sobre a
perenidade da Aliança e mesmo sobre a partilha de valores, de princípios e de
envolvimento efetivo na causa comum. Talvez esteja a raiz do sentimento de que a
2
No início do seu mandato, o presidente Barack Obama declarou que os EUA necessitavam de olhar mais
para a região Ásia-Pacífico, onde os interesses norte-americanos teriam de ser defendidos. Isso veio
refletido na Estratégia Nacional de Segurança (National Security Strategy) assinada então por Obama,
naquilo que ficou conhecido como o “pivot” para a Ásia. Trump não mudou esta redefinição de prioridades
estratégicas, ou, pelo menos, tal não ficou refletido na sua Estratégia de Segurança Nacional.
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NATO pode estar em “morte cerebral”, como recentemente afirmou o Presidente Francês
Emmanuel Macron (The Economist, 2019).
De igual modo, a partilha de valores, nomeadamente a validade da democracia,
apresentados como “cimento” da unidade política entre os Estados-membros da
organização, em contraponto aos valores distintos de outras regiões e atores, demonstra
ser bastante frágil, tendo em conta o passado de alargamentos da NATO a países que
tinham estado largos anos na órbita e dependência soviética, ou se encaminham por
princípios políticos controversos sendo atualmente discutíveis esses mesmos valores no
seio dos seus membros, como é o caso da Turquia, mas não só.
Além da presente introdução e das notas finais, este artigo está dividido em três partes
principais. Na primeira procuramos identificar os elementos que serviram para a criação
e para a manutenção da comunidade NATO e para as questões das adaptações ao
contexto estratégico internacional. Na segunda é abordado o tema central do documento
que serve de base para a nossa análise, o reforço do papel político da organização,
focando-se com maior relevância a dimensão interna dessa ambição. No sentido de
apresentar linhas de reforço dos mecanismos de coesão interna, na última parte, damos
conta de duas medidas essenciais, designadamente da reaproximação da NATO à Turquia
e do reforço de cooperação, em diferentes domínios, com a UE.
1. Uma comunidade de (in)segurança
Sem querermos aqui dissecar todas as questões relativamente à criação da NATO,
importa, no entanto, identificar os elementos que ajudam a entender a organização, o
seu estabelecimento e a sua evolução decorrente do contexto internacional, em particular
depois da queda do muro de Berlim e do colapso da União Soviética. No plano teórico
importa reter os elementos identificados por Karl Deutsch, em 1957, relativamente à
criação das designadas comunidades de segurança. O autor ajuda-nos a perceber, em
primeiro lugar, que a integração nesta comunidade pretende tornar a guerra improvável
entre os seus membros (Deutsch, 1957: 5), desenvolvendo-se um sentido de segurança
cooperativa e coletiva. O trabalho de Adler e Barnett (1998: 55-57), publicado 40 anos
depois, dá, igualmente, indicações importantes relativamente às comunidades de
segurança. Reforçando os princípios identificados por Deutsch, os dois autores sublinham
que a criação deste tipo de comunidade tem como pilar principal a identificação e o
reconhecimento comum de uma ameaça com origem externa.
Além da intenção de criação de uma comunidade de segurança, o estabelecimento da
NATO pretendeu responder a questões de natureza geopolítica, cujos princípios podem
ser encontrados na teoria proposta por Mackinder (1919, 1943), que defende que apenas
uma união das potências marítimas (atlânticas) pode conter o sentido (natural) de
expansão da potência continental (União Soviética). Também o discurso do primeiro
Secretário-geral da NATO, Lord Hastings Lionel Ismay, nos elementos que reforçam
este sentido geopolítico da NATO, tendo afirmado que o objetivo principal da NATO é
“manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo” (NATO, s.d). Na
verdade, grande parte dos esforços da NATO, desde a sua criação até o final da Guerra
Fria (1991), procuraram cumprir este desígnio proposto por Ismay, senão vejamos.
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A relação com os russos durante este período foi sempre tensa, por vezes dramática,
não apenas no espaço euro-atlântico, e em particular nas fronteiras entre o espaço
soviético e a Europa Ocidental, mas também nas regiões periféricas onde as potências
europeias e os Estados Unidos procuravam manter a sua influência. Nesta altura, o
mundo estava dividido em dois grandes blocos (para além da existência de países não
alinhados). De um lado, o bloco ocidental, tendo como referência a democracia e a
economia de mercado, e a NATO como organização de defesa coletiva. Do outro lado,
encontrava-se a aliança da URSS com os países que tinham passado ao seu controlo
após a II GGM caraterizada por partilharem um regime de partido único e uma economia
de planeamento central, tendo como estrutura militar o Pacto de Varsóvia. Eram, pois,
dois blocos de antagonismo absoluto: filosófico, político, económico e militar. A ameaça
de uma guerra nuclear catastrófica levou, na década de 1950, ao estabelecimento no XX
Congresso do Partido Comunista da União Soviética da “coexistência pacífica” e à decisão
de atacar os regimes capitalistas” fora da área europeia, pelo apoio à libertação das
colónias. Nas décadas seguintes o apoio aos movimentos de libertação passou a constituir
o foco central da sua política externa soviética. No campo ocidental, o perigo de um
cataclismo nuclear foi também tido em conta e, no quadro de Harmel Report, da década
de 1960 estabelecida a postura de “dual track” em que sustentando sempre uma defesa
sem tergiversações, a NATO abriu espaço a negociações com o Pacto de Varsóvia e a
URSS. Embora militarmente nunca tenham ocorrido confrontos diretos entre estes dois
blocos, existiram, porém, diversos conflitos por procuração (proxy conflicts), onde cada
uma das partes apoiou de alguma forma os grupos insurgentes em países sob a influência
da outra parte. São exemplos deste âmbito os conflitos no Vietname, na Península da
Coreia, no Afeganistão, e em grande parte das antigas colónias portuguesas (Hobsbawm,
1996: 241-243).
As diferenças políticas e a ameaça de expano do comunismo para a Europa, em
particular, e para o mundo em geral, constituíram as bases para o reconhecimento
comum da ameaça soviética e para “alimentar” o esforço que todos os Estados-membros
dedicaram à estrutura política e militar da NATO. Para os países da UE o pilar da
Segurança estava por completo entregue à garantia de segurança da Aliança Atlântica.
No atinente à Alemanha, durante a Guerra Fria, a NATO procurou sempre manter, em
primeiro lugar, “sob vigilância” o instrumento militar alemão (Hobsbawm, 1996: 240),
em face do contexto das I e II Guerras Mundiais. Apesar de dividida, nas Repúblicas
Federal e Democrática, a NATO, a par da UE, deu garantias para a estabilidade europeia,
através da integração pacífica alemã com as restantes potências europeias,
especialmente com França. A manutenção de um substantivo contingente militar
americano na Alemanha durante a Guerra-fria foi certamente uma garantia de
estabilidade interna e de afirmação da partilha de responsabilidades perante um eventual
ataque do Pacto de Varsóvia.
Por último, nas palavras de Ismay, a NATO servia para “manter os americanos dentro”.
A criação da NATO, para as diversas administrações norte americanas, pode ser vista em
modo similar ao plano Marshall, que apoiou economicamente uma Europa devastada pela
II Guerra Mundial. Apesar desse apoio, que foi vital para a recuperação económica
europeia, desde essa altura que a influência americana se fez sentir com maior dimensão,
não apenas à escala europeia, mas também em termos globais. De igual modo, a NATO,
para além de ter permitido aos europeus redirecionaram todo o seu esforço para a
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recuperação das economias e para a construção da UE
3
(Gaddis, 2007: 45) tornando os
investimentos no setor militar pouco expressivos, dadas as garantias “oferecidas” pela
aliança com os norte americanos. Não é, por isso, de estranhar que as capacidades da
NATO, sobretudo em termos nucleares, tenham dependido (e ainda hoje dependam)
quase exclusivamente dos EUA. No entanto, tal como no Plano Marshall, também a NATO
permitiu que as diversas administrações norte americanas influenciassem em termos
políticos e militares os Estados europeus, tornando-se a fonte principal de aquisição
armamento militar, instalando bases militares e disponibilizando a sua doutrina militar,
incluindo no domínio informacional.
Depois da Guerra Fria e sensivelmente até ao ano de 2007, parte dos pressupostos
assumidos por Ismay no seu discurso assumiram menor relevância, apesar de não terem
desaparecido. A Alemanha continuou a estar muito dependente em termos militares da
NATO, receando sempre a forma como interna e internacionalmente poderiam ser vistos
esses desenvolvimentos (Kaplan, 1961; Daehnhardt, 2011). Para os Estados Unidos, a
NATO e nomeadamente as bases instaladas nos países europeus constituíram uma
importante plataforma de projeção de poder, incluindo para o Médio Oriente, através da
Turquia. No caso da Rússia, o estabelecimento de parcerias para o diálogo com a NATO
e a assinatura de acordos de cooperação, a exemplo do tratado Open Skies, tiraram
tensão à relação entre as duas partes. A distensão desta relação influenciou, no entanto,
um dos pilares centrais da Aliança, o reconhecimento de uma ameaça comum. Apesar
dos países a Leste, outrora pertencentes ao Bloco Soviético durante a Guerra Fria,
considerarem a ameaça de invasão militar russa uma realidade sempre presente, grande
parte dos países da UE, especialmente os do Sul e do Centro europeus, que mantêm
profundas dependências em termos económicos, relacionadas com a importação de
energia (gás e petróleo) da ssia, apresentaram visões bastante distintas. Não é por
isso de estranhar que, nesta altura, se tenham “levantado algumas vozes que
questionavam a manutenção da NATO, dada a ausência da ameaça que esteve na sua
base, a União Soviética, o Pacto de Varsóvia e seu exército vermelho.
A readaptação da NATO ao novo contexto internacional foi alcançada com a intervenção,
na cada de 1990, nos conflitos dos Balcãs Ocidentais (Gaspar, 2017: 110), e mais
tarde, no combate ao terrorismo, decorrente dos ataques do 11 de setembro, liderados
pela Al-Qaeda e dirigidos por Bin Laden. Se, no caso da primeira intervenção a NATO fez
despertar as atenções dos europeus para os riscos de contágio dos conflitos da sua
periferia, continuando a dar a garantia de segurança ao espaço europeu, o combate ao
terrorismo reuniu um consenso à escala global relativamente a esta tipologia de ameaça.
Também aqui a NATO desempenhou um papel central, ao ponto de ter sido invocado,
pela primeira vez na sua história, o artigo 5.º da Aliança (Defesa Coletiva)
4
. O conceito
3
Na altura organizadas em três comunidades: a Comunidade do Carvão e do Aço (CECA), a Comunidade
Europeia da Energia Atómica (EURATOM) e a Comunidade Económica Europeia (CEE).
4
As partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do
Norte será considerado um ataque a todas e, consequentemente concordam em que, se um tal ataque
armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido
pelo art.º 51º da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à parte ou partes atacadas, praticando sem
demora, individualmente e de acordo com as restantes partes, a ação que considerar necessária, inclusive
o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte. Qualquer
ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque são
imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho
de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança
internacionais.
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estratégico da NATO atualmente em vigor, aprovado em 2010, enfatiza em grande
medida os objetivos da organização no combate ao terrorismo.
O ano de 2007 marca uma nova viragem na relação entre a Rússia e os EUA, e
consequentemente, com a NATO. Durante um encontro anual sobre segurança, realizado
na cidade alemã de Munique, o convidado de honra Vladimir Putin, além de ter sublinhado
que a implosão da União Soviética foi o principal erro geopolítico do Século XX, contestou
as políticas de alargamento para Leste das organizações ocidentais (NATO e UE), e
reclamou um novo papel para a Rússia na Ordem Internacional. Adivinha-se, então, um
agravamento nas relações entre a NATO e a Rússia. Em 2008, deu-se a invasão da
Geórgia pela Rússia. Em 2014, e depois do presidente norte americano Barack Obama
se ter referido à Rússia como uma potência regional, contrariando desse modo a narrativa
de Putin em Munique anos antes, Moscovo ordena a invasão da península ucraniana da
Crimeia
5
.
Para além desta mudança na postura da Rússia, durante este período, novos ataques
terroristas foram concretizados em solo europeu, em particular no Reino Unido,
Dinamarca, Suécia, França, Espanha, Bélgica e Alemanha. A UE reagiu, de forma
unânime, na sequência dos ataques em Paris, invocando, a pedido de França, a cláusula
de “defesa ou assistência mútua” da UE, introduzida pelo Tratado de Lisboa, em 2009
(art.º 42º/7)
6
. Além dos atentados terroristas, começam a chegar à Europa milhares de
migrantes e refugiados, que fogem das zonas de conflito junto à fronteira externa da UE.
Os conflitos da ria, da Líbia, do Líbano, do Iraque, do Afeganistão, apenas para
mencionar alguns, são algumas das causas dessa vaga migratória em direção à Europa.
É neste contexto internacional, marcado pela postura mais assertiva da Rússia, do
aumento dos atentados terroristas em solo europeu e dos movimentos em massa de
populações em direção à Europa que a NATO procura responder, através das ações do
reforço de patrulhamento, terrestre, aéreo e marítimo, nas zonas dos Mares Báltico e
Negro e na continuação da projeção de operações para o Médio Oriente (Iraque e
Afeganistão) e para o Mar Mediterrâneo (Operation Sea Guardian). Este alargamento da
tipologia das ameaças que a NATO passou a combater, procurando responder às ameaças
a Leste (belicoso) e a Sul (frágil e instável), levou a que dentro da comunidade deixasse
de existir um reconhecimento comum, e claro, da principal ameaça. Para os países da
fronteira Leste, a Rússia deveria ser a principal prioridade, para os Estados do Sul
(mediterrânicos), a NATO deveria estar mais concentrada nas questões das migrações e
procurar estabilizar a região MENA (Middle East and North Africa). Para além disso, foi
marcante, negativamente, para a NATO a eleição do Presidente norte americano Donald
Trump, que reforçou as divergências com os aliados europeus, sobretudo com a
Alemanha e a França, e mesmo com a Turquia (assunto que retomaremos mais adiante).
A análise e as recomendações identificadas pelo grupo de reflexão, que produziu o
documento NATO 2030: United for a new era, materializam o alargamento que a NATO
5
Os conflitos da Geórgia e da Ucrânia estarão também relacionados com os convites feitos a esses dois países
pela UE e, especialmente, pela NATO, para uma futura adesão (Matsaberidze, 2015). Apesar das
divergências internas, na cimeira da NATO de 2008, que teve lugar em Bucareste, a declaração oficial refere
que estes dois países tornar-se-ão membros da NATO (NATO, 2008).
6
Esta cláusula foi inserida no Tratado de Lisboa essencialmente a pedido da Grécia, por forma a criar um
processo de defesa coletiva na União Europeia e não apenas no quadro da OTAN, uma vez que a Turquia é
membro desta última. Substituiu uma cláusula semelhante existente na União da Europa Ocidental (UEO),
organização entretanto extinta pelos seus membros em 2011 (Teles, 2017:16).
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se propõe concretizar no horizonte 2030. Além da Rússia, são identificadas medidas em
relação à China
7
(ambos rivais sistémicos), esta última potência (re)emergente que
contesta a hegemonia norte-americana e que tem feito um notável progresso de
modernização em todos os domínios, incluindo o nuclear, naval e tecnológico (que aplica
na sua projeção para o espaço (NATO, 2020: 17). Além destes dois atores, são
identificados os desafios relativos à emergência da tecnologia disruptiva, às ameaças
cibernéticas e bridas, ao controlo de armas e às ameaças nucleares, à segurança
energética, às pandemias e aos desastres naturais. Também o terrorismo é identificado,
assim como as ameaças com origem a Sul, passando pelas questões climáticas, pela
segurança humana, pelo espaço sideral, pela comunicação estratégica, diplomacia e
desinformação. De todas as recomendações, além da permanente referência à palavra
resiliência, que surge no documento em 35 diferentes ocasiões (a título de curiosidade,
também a estratégia global da UE, aprovada em 2016, enfatiza esta mesma palavra),
dirigida sobretudo para o apelo da maior capacitação das sociedades, verifica-se uma
sugestão para o alargamento do espetro de atuação da NATO, em diferentes domínios e
espaços geográficos.
Este alargamento a espaços geográficos e outros campos de atuação (cibernético e
espacial), vem acentuar as divisões dos Aliados relativamente ao reconhecimento,
comum, das ameaças. Considerando somente a Rússia e China não encontramos, pelo
menos para já, esta unanimidade em relação aos desafios que cada um dos atores
comporta para os Estados-membros da NATO. Existem neste domínio profundas divisões
internas, resultantes em boa parte das interdependências, sobretudo económicas, da
maioria dos Aliados em relação à China e à Rússia, impedindo assim que as visões
agressivas, objetivamente ou subjetivamente avaliadas, possam ter efeitos na política
interna e externas de todos os membros, a exemplo do que aconteceu durante a Guerra
Fria em relação à União Soviética, ou durante o combate ao terrorismo, mais
recentemente. As dificuldades de impor sansões à Rússia, depois da invasão da Crimeia,
assunto que permanece até hoje adormecido, e a questão da adesão à tecnologia 5G
chinesa o apenas alguns dos pontos de divisão. Os recentes acordos comerciais
celebrados entre a UE e a China vêm aprofundar, ainda mais, a possibilidade de consenso
relativamente aos desafios que Pequim representa para a ordem internacional.
O alargamento às questões climáticas, às pandemias, aos desastres naturais, às questões
de nero, ao domínio espacial e à desinformação, parece sobrepor-se a domínios
trabalhados e desenvolvidos pelos aliados europeus no contexto da UE. Apesar de ter
sido dedicado um ponto relativamente à consulta política com a UE e do Secretário-geral
ter enfatizado que a NATO pretende ser uma organização que junta outras sub-
organizações, a visão dos aliados europeus, incluindo as suas sociedades, para estes
assuntos é mais centrada nas respostas europeias, dada a natureza dos seus
7
Para o grupo de peritos, a China tem uma agenda estratégica cada vez mais global, apoiada no seu, cada
vez maior, peso económico e militar. Tem provado estar disposta a usar a força contra os seus vizinhos,
além de utilizar a coerção económica e a diplomacia intimidatória muito além da região do Indo-Pacífico.
É ainda sublinhado que, na próxima década, a China, provavelmente, também desafiará a capacidade da
NATO de construir a sua resiliência coletiva, de salvaguardar as suas infraestruturas críticas, de lidar com
tecnologias novas e emergentes, como 5G, e de proteger setores sensíveis da economia, incluindo cadeias
de abastecimento. A longo prazo, é cada vez mais provável que a China projete poder militar globalmente,
incluindo potencialmente na área euro-atlântica (NATO, 2020: 17).
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instrumentos (políticos e económicos), e não tanto na NATO. A exemplo de outras áreas,
também aqui são registados afastamentos entre as duas organizações.
Importa por isso sublinhar, e partindo dos pressupostos teóricos identificados, a par da
maior relevância em termos securitários para o espaço euro-atlântico, que o documento
produzido “NATO 2030” não favorece o seu objetivo principal, ou seja, o reforço da
coesão política da organização. A abrangência do seu escopo, multiespaços e multi-
domínios, torna difícil a concretização desta unidade política, que é agravada pelas
tensões entre os seus membros.
2. Uma identidade política
As questões políticas constituem uma parte significativa do documento “NATO 2030”. Se,
por um lado é afirmado que o instrumento militar se encontra adaptado para a
concretização das missões a cargo da Organização, em resultado dos desenvolvimentos
alcançados nos últimos anos (NATO, 2020: 6), por outro, a coesão política entre os
Aliados é apontada como a principal fragilidade. Na relação externa, uma parte
significativa das recomendações é dirigida para a necessidade de reforçar os
instrumentos políticos, através de uma maior coordenação entre os Aliados, para atribuir
mais eficácia à atuação da NATO. Internamente, essas recomendações têm aplicação aos
processos de decisão e aos mecanismos de consulta. Podemos, por isso, concluir que o
objetivo principal do documento e das suas recomendações é a promoção da dimensão
política da NATO, incluindo os seus princípios democráticos, que são a base da sua
fundação, os mecanismos de consulta, os processos de decisão e o desenvolvimento dos
instrumentos políticos, para responder às atuais e emergentes ameaças (NATO, 2020:6).
Numa declaração recente, no âmbito do debate promovido pelo think tank Carnegie sobre
o documento aqui discutido, Jens Stoltenberg enfatizou as questões da identidade política
da NATO para se referir aos desafios da China. Para o Secretário-geral, este país asiático
não partilha os mesmos valores democráticos da NATO, incluindo o respeito pelos diretos
fundamentais. O apelo à identidade política da NATO tem sido usado em diferentes
momentos da história da organização, desde a sua fundação (capitalismo vs socialismo).
Também no combate ao terrorismo, a questão dos valores e a sua defesa foi enfatizada,
através da referência feita à ameaça que os ataques terroristas produziam nos valores
democráticos (Carnegie Europe, 2020).
Importa, porém, perceber a consistência que este apelo à identidade política da NATO
produz na coesão interna. Não querendo aqui detalhar a forma como é “construída”,
importa sublinhar apenas que a identidade resulta da identificação de um conjunto de
caraterísticas comuns entre os elementos de determinada comunidade, que os
distinguem de outros grupos. A manutenção destas mesmas características, sempre em
comparação com grupos externos, constitui por isso o “cimento” da integridade e da
sobrevivência destas comunidades. Em relação à identidade política da NATO,
encontramos em diferentes referências, a exemplo da declaração que antes
anteriormente do seu atual Secretário-geral, a identificação das questões e dos valores
democráticos, o respeito pela liberdade, pela justiça e pelos direitos humanos. Também
a UE tem usado estas questões como forma de europeizar as políticas dos seus Estados-
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membros, aplicando esta “receita” aos países em vias de integração, através dos
designados critérios de Copenhaga
8
.
Ao contrário da UE, as questões dos valores democráticos não foram, porém, uma
questão prioritária para a NATO nos processos de adesão dos seus membros, atendendo-
se sobretudo a questões de natureza geopolítica. A adesão de Portugal, em 1949,
constitui um exemplo desta relação entre os valores e as respostas às necessidades de
natureza geopolítica e geoestratégica (Hobsbawm, 1996: 244). A garantia da utilização
da base das Lages pelos americanos, ditou a integração de Portugal, na altura
reconhecidamente um regime autoritário, não democrático, na organização (Marcos,
2014). Decorrente destas opções, que são amplamente percecionadas pelas sociedades
que fazem parte da NATO, o apelo e a narrativa que é feita às questões dos valores é
extremamente frágil, tendo em conta o contexto atual de alguns dos países que integram
a Aliança Atlântica, em particular da Turquia e da Polónia (Petrova & Aydin-Düzgit, 2021).
Este último país encontra-se, inclusivamente, em diferendo com a UE sobre esta mesma
matéria.
As questões de natureza da política interna assumem uma relevância ainda maior quando
são analisadas as disputas entre os seus membros. Assim, às ameaças de conflito entre
a Grécia e a Turquia, relativamente à questão de Chipre e às disputas por área de
influência e acesso a recursos no Mediterrâneo Oriental, juntam-se ainda as tensões
resultantes da compra por parte de Ancara do sistema de defesa antiaérea russo S-400.
As divergências da Turquia com a NATO e com os EUA relativamente a esta aquisição
levaram a que, recentemente, Washington tenha imposto duras sansões comerciais à
Turquia
9
. O ministro dos negócios estrangeiros turco além ter classificado a decisão norte
americana como um erro grave, referiu que as sanções produziram efeitos na coesão da
NATO, prometendo que a Turquia tudo fará para retaliar, de forma e no tempo
adequados, às restrições impostas (Gumrukcu, 2020). Também o Presidente Turco,
Tayyip Erdogan, em declaração pública fez referência às sanções, sublinhando que “do
nosso Aliado da NATO, os EUA, esperamos apoio na batalha contra organizações
terroristas e não se sanções (Gumrukcu, 2020).
As divergências políticas entre alguns membros da NATO constituem um sério risco para
a organização por permitirem a intervenção de atores externos, que exploram essas
mesmas divisões. O documento NATO 2030 faz a referência à China e à Rússia que atuam
neste domínio, pondo em causa interesses e a segurança dos Aliados, em zonas
tradicionalmente prioritárias para a NATO, nomeadamente na sua coesão interna e
transatlântica, mas também se estendendo aos domínios cibernético, tecnológicos e
comercial estratégicos (5G), ameaçando, como é referido, o modo de vida democrático
(NATO, 2020: 9).
8
Os critérios de Copenhaga, formulados em 1993, pelo Conselho Europeu de Copenhaga, estabelecem os
requisitos que os Estados candidatos têm que cumprir antes da integração em três níveis distintos: ao nível
dos critérios políticos (estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os
direitos humanos e o respeito pelas minorias e a sua proteção), económicos (uma economia de mercado
que funcione efetivamente e a capacidade de fazer face à pressão concorrencial e às forças de mercado da
UE) e jurídicos e legais (capacidade para assumir as obrigações decorrentes da adesão, incluindo a
capacidade de aplicar eficazmente as regras, normas e políticas que compõem o corpo legislativo da UE (o
acervo) e a adesão aos objetivos de união política, económica e monetária).
9
As sanções incluem a proibição de exportação da principal Agência de compras militares da Turquia, bem
como congelamento de ativos e restrições de visto para os altos funcionários da organização (Barkey, 2020).
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Para além de “abrir espaço” à intervenção de atores externos, a falta de coesão política
põe em causa a capacidade de intervenção da NATO. É neste sentido que grande parte
das medidas propostas o direcionadas para os mecanismos e processos de decisão, a
exemplo do reforço dos mecanismos de consulta, entre aliados um pouco à imagem do
princípio da abstenção construtiva na UE. No atinente aos mecanismos de consulta entre
os Aliados, através do Conselho do Atlântico Norte - North Atlantic Council (NAC), é
defendido, em primeiro lugar o seu reforço entre os Aliados nas medidas relacionadas
com os dois rivais sistémicos (Rússia e China) e nas questões nucleares, no sentido de
ser alcançado um “entendimento e uma posição comuns (NATO, 2020: 37), no sentido
dessa posição ser inclusivamente identificada pelos Aliados noutras organizações
internacionais (NU e OSCE). Neste mesmo âmbito, merecem ainda destaque o reforço
de consulta entre a NATO e a UE, no sentido de incrementar a transparência entre as
partes.
Em relação aos processos de decisão política, a questão principal reside no bloqueio de
grande parte das decisões, por falta de consenso entre os Aliados. Esta matéria assume
especial relevância no relatório uma vez que, segundo é mencionado, afeta de forma
significativa a coesão da NATO. Das recomendações identificadas, cinco no total, grande
parte procura ultrapassar este tipo de constrangimentos no processo decisório. Assim, é
proposta a criação de mecanismos estruturais para estabelecer coligações dentro da
estrutura da Aliança, naquilo que poderá entender-se como uma espécie de cooperação
reforçada, prevista também pela UE para ultrapassar as dificuldades dos processos de
decisão por unanimidade, em que os Estados-membros mais “capazes” e com mais
vontade podem desenvolver projetos conjuntos, e em que vigora a decisão por maioria
qualificada. Para a NATO, estas coligações podem inclusivamente servir para concretizar
novas operações, sob o “chapéu” da organização, incluindo países Aliados e Não-Aliados,
que manifestem o desejo de participar. Sobre este aspeto, o documento identifica a
possibilidade de serem usadas as estruturas de comando e os processos de decisão da
NATO. Um último aspeto sugerido diz respeito à questão do financiamento das missões
realizadas, prevendo-se a possibilidade, para alguns casos, de deixar de ser aplicado o
princípio do pagamento por parte dos Estados que participam (de acordo com a ideia que
costs lie where they fall”, ou seja, pagam os custos os Estados-membros que
participem), para financiamento comum (“common funding”) para algumas despesas
resultantes das operações militares (NATO, 2020: 61).
Ainda em relação ao processo de decisão importa identificar a atribuição de uma maior
autonomia ao Secretário-geral da NATO nas decisões consideradas de rotina (sem serem
referidas quais e em que circunstâncias). Esta medida permite, segundo é identificado,
ultrapassar as questões do consenso político e a necessidade de satisfazer condições
estratégicas, motivadas pela rapidez da decisão. Sobre este aspeto da rapidez da
decisão, é proposto um tempo limite para a resposta, sob pena de um atraso poder
colocar em causa a segurança de um Aliado e a credibilidade da NATO.
Um dos aspetos mais relevante das recomendações relativas ao processo de decio da
Aliança diz respeito ao bloqueio, ao nível ministerial, por parte de alguns dos Aliados. Se
por um lado o conjunto de medidas relativas à rapidez da decisão, atribuindo mais
poderes ao Secretário-geral, têm como objetivo as questões das ameaças a Leste, e dos
receios dos países bálticos de uma intervenção militar na região, o segundo ponto é
direcionado para as tensões criadas no interior da NATO relacionadas com os bloqueios
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à Turquia. Esta situação tem, aliás, impedido o estreitamente da cooperação entre a
NATO e a UE.
Apesar da relevância das recomendações propostas, relativas aos processos de decisão
e aos mecanismos de consulta, a sua execução torna-se, na maior parte dos casos, difícil.
Para isto concorrem dois aspetos essenciais. O primeiro diz respeito às questões de
soberania dos Estados, sobre a condução das suas próprias políticas externas e à
aplicação do instrumento militar. Tal como identificamos anteriormente, ao nível político,
não existe um consenso na NATO relativamente à tipologia das ameaças que afetam a
própria organização, razão pela qual se procurou identificar um conjunto alargado de
ameaças. A relação dos Aliados com os adversários sistémicos (Rússia e China) não é
igualmente consensual, existindo entre os Aliados políticas externas distintas, que vão
de dependências económica a “guerras” comerciais. Nesse sentido o consenso
relativamente à aplicação de medidas por parte da NATO torna-se bastante complexo,
afetando a coesão e a credibilidade da organização. As próprias disputas de interesses
entre os Aliados elevam o grau de dificuldade de ser alcançado tal consenso. Um segundo
aspeto diz respeito às questões da identidade política da NATO, fundada nos princípios e
valores da democracia, da liberdade e do estrito cumprimento da lei (rule of law). Apesar
da preocupação dos peritos em não identificar quaisquer Aliados, esta narrativa não tem
aplicação a uma parte dos seus membros, o que torna a coesão política muito difícil.
Aliás, os próprios processos de alargamento da NATO a outros Estados sempre
pretenderam dar resposta a necessidades geopolíticas e não em transformar as próprias
estruturas internas e o modelo político dos candidatos à adesão.
3. Da questão turca à responsabilidade partilhada
O ambiente estratégico atual, marcado por uma diversidade de desafios, materiais e
ideológicos, de natureza global, sistémica e com impactos em vários domínios, vem exigir
às organizações de segurança, como a NATO, uma grande capacidade de adaptação e de
resposta, no sentido de mostrar às sociedades que pretendem defender a sua capacidade
de resposta mesmo perante as dificuldades atuais. Desde a sua fundação, essa tem sido
a grande preocupação da Aliança, tendo os diferentes conceitos estratégicos refletido
uma grande capacidade de adaptação ao ambiente estratégico que vigorou durante a
Guerra Fria e no período seguinte, com destaque para as questões do terrorismo global.
Porém, as circunstâncias atuais são profundamente distintas dos momentos anteriores,
decorrentes da emergência de outra tipologia de ameaças, em que o instrumento militar
não assume a relevância de outrora, apesar da centralidade das questões nucleares e da
mudança do paradigma da utilização das capacidades militares para uso dual. Além disso,
as questões geopolíticas mudaram radicalmente, tendo em conta a emergência de novas
potências que procuram contestar a ordem internacional, assistindo-se igualmente a uma
transição acelerada dos centros de poder para outras regiões do mundo, com destaque
para a Ásia Oriental. Esta mudança exige uma readaptação profunda da NATO, incluindo
do seu próprio centro estratégico, vocacionado desde a sua origem para a Europa e para
o espaço atlântico.
Esta mudança é tão premente que pode inclusivamente pôr em causa a própria
sobrevivência da NATO, tema que assume uma relevância ainda maior quando
comparado com o final da Guerra Fria. Para concretizar esta mesma mudança, entre
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outros, existem dois aspetos profundamente essenciais. Um de carácter interno e o outro
de carácter externo. Enquanto o primeiro diz respeito à Turquia, o segundo tem a ver
com a futura relação com a UE.
Para além do que representa em termos geopolíticos para a NATO
10
, a Turquia tem uma
das maiores forças armadas entre os Aliados. Apesar de não deter armas nucleares, as
suas capacidades militares destacam-se não apenas pelo número, mas também pela
qualidade das suas capacidades. Desde o ano de 2001 que os orçamentos da Turquia
com a Defesa têm aumentado de forma contínua e significativa, em particular a partir do
ano de 2018, quando foram gatos mais de 22 mil milhões de dólares. Para efeitos de
comparação, nesse mesmo ano, França gastou cerca de 50 mil milhões, o Reino Unido
60, Espanha 13 e Portugal 3 (NATO, 2019: 7).
Figura 1 Turkey Military Expenditure (1953-2018)
Fonte: Trading Economics (s.d)
As opções políticas e estratégicas da Turquia m levado a um afastamento notório das
autoridades turcas em relação à ligação com os países e organizações do Ocidente,
incluindo a UE. Depois de anos de negociações para a integração no espaço europeu, o
esfriamento atual levou o Presidente Erdogan a demonstrar a sua desilusão em relação
a este processo, o que tem levado ao cada vez maior afastamento em relação à UE. A
gestão das migrações criou um novo ponto de clivagens entre as partes, com os líderes
europeus, em particular a diplomacia francesa, a acusarem o presidente turco de usar a
questão das migrações como arma política, para reclamar um reforço da ajuda financeira
enviada por Bruxelas para Ancara, como forma de apoiar os migrantes estacionados na
Turquia, que pretendem vir para a Europa. Apesar das instituições europeias, com
destaque para o atual responsável pela Política Externa e de Segurança, Josep Borrel, e
da própria Alemanha e Itália procurarem mediar este diferendo, as relações de tensão
10
Tal como foi referido por Tim Marshall, para a NATO, a Turquia é um país-chave, porque controla as entradas
e saídas para e do Mar Negro, através do Estreito do Bósforo, impedindo assim o acesso da frota russa do
Mar Negro de ter acesso ao Mar Mediterrâneo (Marshal, 2017: 155).
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(históricas) com outros Estados-membros, nomeadamente a Grécia e o Chipre, não tem
facilitado este processo.
No atinente aos EUA, essas mesmas relações têm sido marcadas de igual modo por
grandes tensões, desde o início do conflito do Iraque, ressoando ainda na Turquia o
incidente de 4 de julho de 2003, quando forças norte americanas realizaram uma ação
na cidade de Sulaymaniyah (Nordeste do Iraque), tendo capturado 11 militares turcos,
pertencentes às operações especiais. O tratamento dado aos militares turcos, tendo-lhe
sido confiscados os seus equipamentos e tapadas as cabeças, foi visto como um grave
incidente diplomático. A par desta questão, a recusa americana de fornecer tecnologia
militar a Ancara, a exemplo dos mísseis para defesa aérea Patriot, levou à compra da
Turquia dessa capacidade à Rússia, o que tem gerado, como vimos anteriormente,
grande clivagens no seio da NATO (Johnson & Gramer, 2019). Também a condução de
uma política externa cada vez mais ativa, procurando retomar as zonas de influência
ocupadas pelo império otomano (Colborne & Edwards, 2018) (Ayoob, 2020), tem
afastado um entendimento no plano da relação com a NATO e com os restantes aliados.
A intervenção turca nos conflitos da Síria e da Líbia constituem dois dos diversos
exemplos referentes a este aspeto.
Decorrente da importância da Turquia para a NATO e das muitas relações de tensão
atuais, a materialização de grande parte das recomendações propostas pelos peritos
apenas poderá ser viável quanto se verificar uma reaproximação turca ao Ocidente.
Nesse sentido, a imposição de sansões por parte dos EUA e a falta de consenso em
relação à gestão das migrações e as disputas que ocorrem no Mediterrâneo Ocidental
que opõem a UE à Turquia nas disputas de áreas de soberania, entre outros pontos,
dificultam esse mesmo entendimento e consequentemente a coesão e a credibilidade da
NATO. Entende-se neste contexto a sugestão do relatório que temos vindo a examinar
do estabelecimento de um “Código de Conduta” que poderá definir de forma mais
detalhado o que é ou não aceite no quadro comportamental dos aliados.
Para além da questão da Turquia, a relação da NATO com a UE afigura-se de igual modo
vital para a materialização da ambição política das recomendações identificadas no
documento “NATO 2030”. Em primeiro lugar, pelo papel que a UE poderá/deverá ter
enquanto mediador nas relações com a Turquia, decorrente da proximidade geográfica,
da relação histórica e dos interesses económicos. Apesar das disputas existentes, esta
relação de aproximação foi uma realidade, a exemplo do que aconteceu em grande
parte das últimas duas décadas na região dos Balcãs Ocidentais, onde a Turquia integrou
inclusivamente o seu contingente militar na missão da UE na Bósnia e Herzegovina
(EUFOR). O reforço da cooperação entre a UE e a Turquia servirá certamente para
também aproximar politicamente Ancara da NATO. Esta estratégia de aproximar e
integrar a Turquia na UE, no sentido de promover a sua europeização, foi inclusivamente
patrocinada, durante anos, pelos EUA, com a motivação principal que essa integração
seria benéfica para “o modo de estar” da Turquia na NATO (Önis & Yilmaz, 2005) (Kivanc
et al, 2014: 1697).
Em segundo lugar, pela partilha das responsabilidades entre as duas organizações,
impedindo redundâncias na atuação, através da exploração das capacidades distintivas
de cada uma delas e da partilha de espaços geográficos. Apesar de dever ser reconhecido
que uma parte das ameaças identificadas são de carácter global e multidomínio,
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requerendo por isso o seu combate uma abordagem integral dos instrumentos, da
comparação entre o documento aqui discutido e a estratégia global da UE, aprovada em
2016 e atualizada ao longo dos últimos anos, resultam claras áreas de interesse comum,
em particular em relação às questões das migrações, do terrorismo, das ameaças a Sul,
da assertividade a Leste. A discussão em torno da autonomia estratégica da UE, em
domínios como a economia, a saúde e sobretudo na segurança e na defesa, deve, pois,
ser clarificada e, na perspetiva do documento, ser estabelecida de forma a conduzir ao
reforço mútuo das duas Organizações e não à sua competição mútua.
O estabelecimento da Cooperação Estruturada Permanente e dos programas e estruturas
a esta ligados, a exemplo da coordenação da revisão anual sobre Defesa (CARD -
Coordinated Annual Review on Defence) e da Agência de Defesa Europeia (EDA), deve
ser entendido como uma forma de contribuição dos Estados-membros da UE para a
NATO. Este ponto não é novidade, tendo em conta o esforço permanente das instituições
europeias para procurar identificar e explicar os desenvolvimentos europeus no âmbito
da Defesa. Sendo certo que, desde a sua criação, a Política Externa e de Segurança
Comum (PESC) e a correspondente Política Comum de Segurança e Defesa, a segunda
fazendo parte da primeira, têm gerado grande debates na relação com a NATO e com os
EUA. Neste ponto, importa identificar duas visões distintas que têm ocupado grande parte
dessa mesma discussão.
Tendo em conta o cada vez maior empenhamento da UE em termos externos, em
missões e operações de gestão de crises, a primeira corrente defende a autonomia da
UE, identificando como necessidade o reforço da sua capacidade de atuação em regiões
de interesse estratégico, sublinhando que a UE começará a ser levada a sério como
ator de segurança quando desenvolver novas capacidades operacionais, para
salvaguardar os interesses europeus, incluindo o emprego de forças militares europeias
(Leonard e Rottgen, 2018). Para esta corrente, a prossecução dos interesses específicos
da UE não é feito em antinomia com a NATO a as capacidades desenvolvidas servem até
o reforço das suas capacidades militares dado o compromisso dos Estados-membros com
a aliança transatlântica. A segunda corrente sublinha que uma Europa mais “musculada”
pode pôr em causa a própria NATO, se for desenvolvida em contraponto com os EUA
receando que o incremento de capacidades europeias e a autonomia estratégica possam
condicionar a relação transatlântica (Boniface, 2016:102).
A relação com os EUA e com a NATO, a par da identificação das ameaças ao espaço
europeu, constituem por isso os pontos críticos da autonomia estratégica da UE. Durante
a Guerra Fria, o desenvolvimento de capacidades europeias foi, por regra, visto pelas
diversas administrações norte-americanas como reforço das próprias capacidades da
NATO. Ou seja, para os americanos a existência de uma capacidade militar europeia
efetiva foi considerada como benigna, desde que a mesma fosse feita no quadro da NATO.
A emergência da PCSD no final da década de 1990 levantou a questão da cultura militar,
de defesa e de segurança da UE, distinta do domínio da NATO e dos EUA (Helly, 2018:
13). A criação deste novo caminho europeu foi vista por alguns como o eco das
divergências entre os EUA e alguns Estados-membros da UE, a exemplo da que ocorreu
no final de 1997, quando a administração Clinton procurava aumentar a pressão exercida
sobre Bagdad. Nesta mesma altura, a França juntou-se à Rússia e à China no veto às
propostas norte-americanas apresentadas ao Conselho de Segurança (Kagan, 2003:53).
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O ponto de viragem do ceticismo americano em relação ao desenvolvimento militar
europeu, pelo menos em termos públicos, aconteceu durante a gestão do conflito do
Iraque, em 2003, momento em que vários países europeus decidiram não acompanhar
os EUA na invasão ao Iraque de Sadam Hussein. Nessa altura, a administração de George
W. Bush tomou consciência que uma UE mais forte seria um parceiro menos colaborante,
condicionando a política externa americana e a própria NATO (Ghez e Larrabee, 2009).
Em termos europeus, a França, através dos seus sucessivos presidentes (já desde o
general de Gaulle)
11
, tem mantido em geral uma linha política em apoio do reforço da
autonomia estratégica europeia. No entanto, tal como foi sublinhado por Boniface (2016:
101), a natureza mais franco-francesa que franco-europeia deste projeto contribuiu para
que fosse visto, dentro e fora da Europa, como visando mais substituir a hegemonia
americana pela influência francesa, do que desenvolver um verdadeiro projeto europeu.
Para os restantes parceiros europeus, em particular para a Alemanha, existiu sempre o
receio de alguma arrogância francesa e da vontade de substituir os americanos sem ter
os meios necessários para tal.
Para a visão francesa, que tem sido a “testa de ponte” para a autonomia estratégica, a
UE tem de se tornar uma entidade estratégica autónoma de modo a estar preparada para
a eventual retirada ou desinteresse dos Estados Unidos, mais preocupados com a Ásia,
cujas forças militares não vão permanecer para sempre no centro do continente europeu.
(Bozo, 1998). A França e outros membros da UE nunca se sentiram confortáveis com a
falta de liberdade de ação da UE, por estar substancialmente dependente da NATO (Ghez
e Larrabee, 2009).
Durante largos anos, foi o Reino Unido que liderou as resistências dentro da UE em
relação à autonomia estratégica, defendendo uma visão próxima dos EUA, preferindo
manter o status quo da Europa em relação a esta matéria. Quando, em 2003, foi proposto
(pela Bélgica, França, Alemanha e Luxemburgo) o estabelecimento de uma Europa da
Defesa e de um Comando Operacional na cidade de Tervuren, o Reino Unido considerou
que esta ação não duplicava os existentes na NATO (nomeadamente o SHAPE), mas
podia ser visto como uma duplicação desnecessária da Aliança e colocar em perigo o
papel da NATO como “pedra angular” da segurança europeia (Duke, 2018: 25-26).
Estas resistências de Londres foram acompanhadas por diversos Estados-membros, para
quem a garantia de defesa deve recair na NATO e nos EUA, a exemplo de Portugal,
Dinamarca, Holanda e Itália. Para estes Estados, a autonomia europeia e uma
reorientação da PESD duplicativa da Aliança pode desenvolver um sentido antiamericano.
Esta visão “atlantista” da Segurança e Defesa Europeia foi reforçada aquando do
alargamento da UE a leste, concretizado em 2004 e 2007, através da integração de dez
novos Estados-membros
12
, outrora sob influência do bloco soviético, para quem o reforço
11
Para a França, o projeto europeu é, em grande medida, filho de um desejo francês de conter a Alemanha
e, também de criar um contrapeso para os EUA (Bongiovanni, 2012: 22). Na incerteza em torno do fim da
Guerra Fria, a França encontrou a concorrência dos Estados Unidos para uma posição de liderança na nova
Europa. Paris cada vez mais se ressentia em relação às tentativas dos EUA para preservar ou até mesmo
aumentar a sua influência sobre a segurança europeia. Mitterrand foi hostil a qualquer expansão nas tarefas
atribuídas à NATO, que via como um instrumento para o domínio da América (Grant, 1996: 59-60). A
criação de uma identidade de segurança europeia é por isso vista como um meio para desafiar o domínio
dos Estados Unidos na Europa (Menon, 1996:5).
12
Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, Eslovénia e Eslováquia.
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da liderança da PCSD pode significar um enfraquecimento da NATO (Ghez e Larrabee,
2009) (Faleg, 2017: 137).
Além destas questões, durante os últimos anos, sobretudo a partir da administração
Clinton (apesar do assunto ter assumido uma maior visibilidade no período em que
Donald Trump esteve à frente da Casa Branca), que os americanos têm reclamado um
maior investimento por parte dos Europeus no setor da defesa, reclamando que esse
mesmo investimento atinja, no mínimo, os 2 % do Produto Interno Bruto (PIB), no
contexto da NATO. A partilha do esforço, o designado burden-sharing, tem sido por isso
um dos pontos mais centrais nas relações, de tensão, entre os dois lados do Atlântico.
Importa, por isso, que a UE demonstre uma maior disponibilidade para contribuir para o
setor da defesa, gastando de forma mais racional e procurando coerência nos seus
investimentos, e que a nova administração norte-americana um sinal dessa mesma
vontade, o que contribuiria para retomar o sentido estratégico da relação entre os dois
blocos. Dessa forma, a centralidade do discurso deixaria de estar focada em torno do
burden-sharing, para um novo conceito de responsabilidade partilhada (responsability-
sharing) entre a NATO e a UE. Esta mudança de abordagem exige a montante um
realinhamento dos documentos estratégicos e das visões das respetivas visões, no
sentido de partilhar campos de atuação e espaços geográficos consentâneos com os
instrumentos e com as respetivas capacidades. Este esforço de gerar interdependências
e relações de cooperação entre a NATO e a UE daria vantagens a ambas organizações
para combater as ameaças que afetarão os espaços europeus e norte americano.
Considerações finais
O documento NATO 2030 constitui uma importante orientação para o próximo documento
estratégico da Aliança Atlântica. Porém, deve ser enfatizada a importância que é atribuída
às questões internas, relacionadas com os mecanismos de decio interna em termos
políticos e para a procura do reforço dos fóruns de consulta entre aliados, com o intuito
de atribuir maior coesão e credibilidade à NATO. Nesse sentido, apesar de ser identificado
um leque muito alargado de desafios que a Organização deve ser capaz de enfrentar
externamente, as recomendações dependem em grande parte deste contexto interno.
A NATO, como outras organizações, atravessa hoje uma das maiores crises da sua
história, que pode inclusivamente pôr em causa a sua própria sobrevivência. As questões
transatlânticas bem expressas nos últimos anos, o afastamento de alguns aliados de
normas e atitudes políticas longo tempo interiorizadas, podem levar à ausência de
uma visão estratégica comum, ou mesmo da perceção de um destino comum,
contribuindo, pois, para esta visão pessimista em relação aos próximos tempos. O
proposto reforço do instrumento político para atuação em termos externos, assim como
a maior capacitação do instrumento militar, apenas parecem alcançáveis se a coesão
política indispensável for alcançada. Nesse sentido, o documento é (talvez demasiado)
ambicioso, tendo em conta que a aplicação das recomendações se configura, no atual
contexto, de difícil aplicação.
Para que seja ultrapassada mais esta crise, importa concretizar não uma
reaproximação à Turquia, o que no atual contexto se mostra muito difícil, atendendo ao
agravamento das sanções impostas e às disputas territoriais que mantém com alguns
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dos membros da NATO (e da UE). De igual modo, o caminho de uma maior aproximação
à UE, através da partilha de responsabilidades demonstra ser uma inevitabilidade, pois
ao mesmo tempo que não fará sentido uma Europa sem o contributo da NATO, o mesmo
é lido quando falamos da dependência (política) da NATO em relação aos europeus.
Por último, importa mudar a narrativa dos princípios democráticos, enquanto pilar
estrutural da aliança, direcionando esses mesmo discursos para as questões das ameaças
ao espaço euro-atlântico, estas sim raízes de identificação das comunidades de
segurança.
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