OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol.6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 150-168
Notas e Reflexões
O PROCURADOR COMO MAGISTRADO INTERNACIONAL
1
Almiro Rodrigues
2
orimla50@hotmail.com
Procurador-Geral-Adjunto jubilado. Ex-juiz do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e
juiz internacional da Secção Crimes de Guerra do Tribunal da Bósnia-Herzegovina. Actualmente
juiz internacional no Tribunal Constitucional da República do Kosovo.
A justiça é um ingrediente indispensável do processo de reconciliação nacional.
É essencial para a restauração das relações normais e pacíficas entre as pessoas que viveram
sob um regime de terror. Quebra o ciclo de violência, ódio e vingança extrajudicial.
Assim, paz e justiça andam de mãos dadas.
Antonio Cassese, ex-presidente do TPIJ
As atribuições e competências do Procurador como magistrado internacional, em certa
medida, equiparam-se nominalmente às do Procurador como magistrado nacional. No
entanto, elas diferem substancialmente e metodologicamente no quadro da justiça
penal internacional. Os desafios face à investigação e acusação de crimes em larga
escala ou violações criminais massivas cometidos há anos num país soberano
estrangeiro são únicos e de caracter verdadeiramente singular. Assim, é ao mesmo
tempo notável e surpreendente em muitos aspectos que as ferramentas legais de
investigação à disposição do Procurador tenham mesmo assim produzido os resultados
que é possível observar e quantificar. Embora os desafios continuem, o trabalho do
Procurador como magistrado internacional representa já uma realização considerável
na luta contra a impunidade das violações graves dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional Humanitário.
1
Artigo elaborado no contexto do projeto de investigação “A Justiça Penal Internacional: Um Diálogo entre
Duas Culturas”, em curso no Observatório das Relações Exteriores Observare / UAL, coordenado por
Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles.
2
As opiniões expressas neste artigo refletem apenas o ponto de vista do autor.
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O procurador como magistrado internacional
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1. Introdução
O tema “o Procurador como magistrado internacional” insere-se no projeto “justiça
penal internacional” que pretende ser um espaço de investigação que reúna
investigadores, experiências e metodologias que conceptualmente se situem nos ramos
do saber das Relações Internacionais e do Direito Internacional.
Algumas pessoas conhecem as atribuições, competências e funções do Minisrio
Público (MP) a nível nacional; poucas conseguem entender bem o que é o Procurador
como magistrado internacional. A própria nomenclatura do cargo provoca alguma
confusão: o procurador de justiça, o promotor de justiça, o procurador da República, o
procurador, o procurador adjunto, o procurador do Ministério Publico, o Procurador-
Geral... No mundo contemporâneo, o termo magistrado normalmente remete para o
exercício do poder judiciário, com a capacidade e a prerrogativa de julgar, de acordo
com as regras constitucionais e leis criadas pelo poder legislativo. A noção de
magistratura, que em alguns países inclui juízes e procuradores, é desconhecida como
tal nos países que pertencem à common law, que estendem estas garantias
constitucionais apenas aos seus juízes e em que o termo magistrate tem um sentido
diferente. Os magistrados (juízes e magistrados do Ministério Público) gozam das
garantias constitucionais de vitaliciedade e inamovibilidade.
2. O quadro constitucional nacional
Uma melhor compreensão das atribuições, competências e funções do MP no
enquadramento nacional poderá ajudar a um melhor entendimento da identidade
institucional do Procurador como magistrado internacional.
Toda a matéria de organização e competência do MP cabe à Assembleia da Republica.
O Artigo 163º da Constituição estabelece:
“Compete à Assembleia da República, relativamente a outros
órgãos: (...)
g) Eleger, segundo o sistema de representação proporcional, (…)
os membros do Conselho Superior do Ministério Público que lhe
competir designar.
Por outro lado, o Artigo 165º determina:
“1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar
sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (...)
p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público
e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades
não jurisdicionais de composição de conflitos”.
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Compete ao MP
3
,
nos termos do Artigo 219 (1) da Constituição,
representar o Estado e defender os interesses que a lei
determinar, (...)exercer a acção penal orientada pelo princípio da
legalidade e defender a legalidade democrática.
O mesmo Artigo 219 (2) confere ao MP o gozo de estatuto próprio e de autonomia.
Finalmente, o Artigo 219 (4) dispõe que
“os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis,
hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos,
suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos
na lei.
O Artigo 219 (5) prevê que
“a nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do
Ministério Público e o exercício da acção disciplinar competem à
Procuradoria-Geral da República.
Por outro lado, o Artigo 220ºda Constituição apresenta a Procuradoria-Geral da
República como sendo “o órgão superior do Ministério Público”. A Procuradoria-Geral da
República
é presidida pelo Procurador-Geral da República e compreende o
Conselho Superior do Ministério Público, que inclui membros
eleitos pela Assembleia da República e membros de entre si eleitos
pelos magistrados do Ministério Público.
Os preceitos constitucionais referidos permitem derivar algumas regras e princípios
fundamentais que sustentam a orgânica e funcionamento do MP. São eles o princípio da
autonomia do MP, o princípio da independência e o princípio da legalidade da acção
penal.
O Artigo 2 (2) do Estatuto do MP
4
dispôe que
3
Dispositivo intico está contido no Artigo 1 do Estatuto do Ministério Público.
4
Aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, republicado pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, e
alterado pelas leis n.os 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de
Agosto, 37/2009, de 20 de Julho, 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 9/2011, de 12 de Abril.
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“a autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua
vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva
sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas,
ordens e instruções previstas nesta lei”.
De facto, o MP goza de autonomia o só em relação aos órgãos do poder central,
regional e local mas também em relação à magistratura judicial. Na sua primeira
vertente, a autonomia do MP significa que nenhum órgão do poder central, regional e
local pode dirigir ordens ou instruções ao MP, nem influir no respectivo governo e
admininstração. Na segunda dimensão, a autonomia do MP significa que os
magistrados do MP estão orgânica e funcionalmente separados dos magistrados
judiciais e confere à magistratura do MP uma prerrogativa de estabilidade idêntica à
dos juízes.
Assim, o MP é um órgão constitucional de justiça organizado como magistratura
processualmente autónoma em dois sentidos: o da independência do poder político no
exercício concreto da acção penal; o da separação e paralelismo relativamente à
magistratura judicial
5
Consequentemente, o MP é autónomo e independente no exercício das suas
atribuições, competências
.
6
O princípio da legalidade da acção penal traduz-se na obrigatoriedade de o MP
proseguir a ação penal, desde que tenha notícia do crime e não existam obstáculos que
o impeçam de agir. Este princípio tem feição democrática e satisfaz as exigências de
defesa social, na medida em que submete a actuação do órgão público ao direito
constituído. Desta forma, a actuação impõe-se ao Estado não como uma simples
faculdade, mas como obrigação de realizar um dos seus fins essenciais, que é a
manutenção e reintegração da ordem jurídica. Portanto, o dever de promover a ação
penal impõe-se ao MP, sem se inspirar em critérios políticos de oportunidade ou de
utilidade social.
e funções. Este princípio funda-se na idéia de que nenhum
crime deve ficar impune e, portanto, o MP é legalmente obrigado a agir.
O exercício da acção penal é hoje a função mais importante da magistratura do MP
7
Ja foi dito que a Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério
Público e que o MP é ogânica e funcionalmente independente. A independência do MP
repousa num esquema organizativo-institucional através do qual se neutralizam
.
Por outro lado, a gradual democratização do processo penal foi impondo o princípio
acusatório que confere ao MP uma posição de quase monopólio do exercicio da acção
penal.
5
Esta concepção é reafirmada em vários passos pelo Código de Processo Penal: ao elaborar o princípio de
objectividade (artigo 53º), na aplicação aos magistrados do Ministério Público das disposições relativas a
impedimentos, recusas e escusas do juiz (artigo 54º), na obrigação do Ministério Público investigar à
charge e à décharge (artigo 262º), na exclusão do Ministério Público das regras sobre conduta de
advogados e defensores (artigo 326º) e no reconhecimento de legitimidade para recorrer no exclusivo
interesse do arguido (artigo 401º).
6
Artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público especifica as compencias do Ministério Público e, no seu
parágrafo 3 prevê que “no exercício das suas funções, o Ministério Público é coadjuvado por funcionários
de justiça e por órgãos de polícia criminal e dispõe de serviços de assessoria e de consultadoria”.
7
O magistrado é a lei que fala; a lei é um magistrado mudo(Cicero).
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interferências, dependências ou condicionamentos perante os outros poderes do
Estado, tais como o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo.
Acresce que o Artigo 219 (4) da Constituição estabelece que
“os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis,
hierarquicamente subordinados (...)”.
A subordinação hierárquica supôe, pelo menos, que os agentes do MP
8
De facto, os agentes que integram o MP estão sob a égide de um único órgão superior,
a Procuradoria-Geral da República
recebam ordens
e intruções da Procuradoria Geral. Aparentemente, a subordinação hierárquica parece
contradizer o princípio da independência do MP. È necessario ter em conta que a
independência que caracteriza a estrutura e funcionamento do MP, e de que beneficia
cada agente do MP, é uma independência funcional que tem que ser vista à luz da
unidade e indivisibilidade do MP.
9
A indivisibilidade do MP surge como conseqncia directa da sua unidade. Assim, um
agente do MP pode ser substituído por outro, sem qualquer implicação prática, já que
os actos devem ser considerados como prataticados pelo MP e não pela pessoa do seu
agente. Quem está presente em qualquer processo é o MP, ainda que seja por
intermédio de um determinado agente individual. Por isso, a expressão "representante
do Minisrio Público"
, de forma a que o MP seja visto como instituição
única e sendo a divisão essencialmente funcional. Assim, o princípio da unidade tem
natureza administrativa. A organização do MP em diversos sectores apenas visa uma
divisão racional do trabalho; mas todos os agentes atuam nos diversos sectores
guiados pelos mesmos princípios e com os mesmos objectivos, constituindo assim um
único corpo institucional.
10
Este princípio permite que os agentes do MP possam ser substituídos uns por outros no
processo. No entanto, a substituição não pode ser feita de maneira arbitrária. A
substituição pode ser feita nos casos e termos legalmente previstos (nos casos de
promoção, transferência, suspensão, exoneração, aposentação, morte, etc.), sem que
não é tecnicamente adequada para se referir aos agentes do
MP.
8
O Artigo 8.º(Agentes do Ministério Público) do Estatuto do Ministério Público dispôe:
1 São agentes do Ministério Público:
a) O Procurador-Geral da República;
b) O Vice-Procurador-Geral da República;
c) Os procuradores-gerais-adjuntos;
d) Os procuradores da República;
e) Os procuradores-adjuntos.
9
Artigo 7.º(Órgãos) do Estatuto do Ministério Público
São órgãos do Ministério Público:
a) A Procuradoria-Geral da República;
b) As Procuradorias-Gerais Distritais;
c) As Procuradorias da República.
10
O Artigo 4 do Estatuto do Ministério Público (Representação do Ministério Público):
1 O Ministério Público é representado junto dos tribunais:
a) No Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo,
no Supremo Tribunal Militar e no Tribunal de Contas, pelo Procurador-Geral da República;
b) Nos tribunais de relação e no Tribunal Central Administrativo, por procuradores-gerais-adjuntos;
c) Nos tribunais de 1.ª instância, por procuradores da República e por procuradores-adjuntos.
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isso constitua ou implique qualquer alteração processual. Aliás, o Artigo 4 do Estatuto
prevê que “os magistrados do Ministério Público fazem-se substituir nos termos
previstos nesta lei”.
Assim, o princípio da independência funcional significa que os agentes do MP actuam de
modo independente no exercício das suas funções, pautando a sua conduta funcional
pela lei e suas convicções, podendo recusar o cumprimento de directivas, ordens e
instruções ilegais e podem recu-lo com fundamento em grave violação da sua
consciência jurídica. Nestes termos, a subordinação hierárquica dos agentes do MP
existe no plano administrativo; não no plano funcional.
Em resumo, a autonomia do MP caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de
legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do MP
às directivas, ordens e instruções previstas na lei.
3. O quadro institucional internacional
A apresentação e revisão do quadro constitucional nacional do MP podem facilitar a
abordagem e compreensão do Procurador como magistrado internacional, que a
percepção do nível internacional é normalmente precedida e influenciada pelo quadro
perceptivo e matriz de compreensão do nível nacional. Analisemos, agora, o quadro
institucional em que se encontra o Procurador a nível internacional, tentando a sua
identidade não tanto pelo que é, mas mais pelo processo evolutivo e circunstâncias
históricas em que se tornou e se afirmou.
O Procurador no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia
Em 1993, o Conselho de Segurança da Nações Unidas criou o Tribunal Penal
Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ)
11
. A enorme dimensão das violações em
massa na Bósnia e Herzegovina, acompanhada de imagens de cidades destruídas e de
pessoas com ar cadavérico detidas nos “campos de concentração” de Omarska,
Keraterm e Trnopolje
12
O Artigo 16 do Estatuto do TPIJ determina que
, gerou um enorme clamor internacional e levou a comunidade
internacional a tentar a primeira experiência de justa penal internacional desde os
julgamentos de Nuremberga e de Tóquio.
“o procurador será responsável pelas investigações e pelo exercício
da acção penal contra os [presumidos] autores de violações graves
ao direito internacional do direito internacional humanitário (…), é
um órgão distinto no seio do Tribunal Internacional, agirá com
11
Em 25 de maio de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou formalmente a resolução
827, que institui o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, conhecida como o TPIJ. Esta
resolução continha Estatuto do TPIJ que determinava jurisdição do Tribunal e estrutura organizacional,
bem como o processo penal em termos gerais. Este foi o primeiro tribunal de crimes de guerra,
estabelecido pela ONU e o primeiro tribunal internacional de crimes de guerra desde os tribunais de
Nuremberga e Tóquio. Esta data marcaría o início do fim da impunidade para crimes de guerra na antiga
Jugoslávia.
12
Situação objecto de julgamento no TPIJ, Kvočka et al. (IT-98-30/1) "Omarska, Keraterm & Trnopolje
Camps"; no Tribunal da Bósnia e Herzegovina, Mejakić et al. (IT-02-65) "Omarska and Keraterm Camps"
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toda a independência. Não solicitará nem receberá instruções de
qualquer governo ou de qualquer outra proveniência.
Semelhante determinação foi também aplicada ao Procurador do Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda (TPIR), conforme Artigo 15 do estatuto do TPIR.
Acrescente-se que o paragrafo 3 deste Artigo estabelece que
“o Procurador do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia
exerce também as funções de Procurador do Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda (…)
13
.
Como se vê dos Artigos 16 e 15, respectivamente dos Estatutos dos TPIJ e TPIR, o
Procurador é independente e não solicita nem recebe instruções de qualquer governo
ou organização internacional, ou de qualquer um dos outros dois órgãos do Tribunal. O
Gabinete do Procurador do TPIJ é mandatado para investigar e processar criminalmente
os presumidos responsáveis por violações graves do Direito Internacional Humanirio
(DIH) cometidas no território da ex-Jugoslávia
14
No início de 1994,
.
“o gabinete do Procurador teve de se inventar a si mesmo. A partir
do nada (…) foi formulado um plano de pessoal e foram recrutados
funcionários qualificados e experientes. Então, foi desenvolvido um
sistema de gestão de informação e de apoio contencioso. (…) Após
o trabalho dos investigadores, a fase final da tarefa do Procurador
começará com o enquadramento das acusações e todo o processo
de julgamento que se segue
15
.
De facto, o Gabinete do Procurador do TPIJ investigou muitas das piores atrocidades
que tiveram lugar na Europa desde a segunda guerra mundial, tais como o genocídio
de Srebrenica de 1995 e processou deres civis, militares e paramilitares pela sua
responsabilidade por tais crimes e atrocidades. Em 2011, os dois últimos acusados pelo
Procurador do TPIJ Ratko Mlad e Goran Hadž foram detidos e transferidos para o
Centro de Detenção das Nações Unidas em Haia, depois de muitos anos em fuga,
garantindo assim que nenhum dos 161 indivíduos acusados ficaria impune
16
O Gabinete do Procurador é chefiado por um procurador, nomeado pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas para um mandato de quatro anos renovável e por um
procurador-adjunto, nomeado pelo Secretário Geral das Nações Unidas.
.
13
Por esta razão, referimo-nos apenas ao Procurador do TPIJ.
14
Desde 1 de janeiro de 1991.
15
Relatório Anual ICTY, A/49/342, S/1994/1007, de 29 Agosto 1994.
16
Em conformidade com a estratégia de encerramento do Tribunal, as acusações finais foram emitidas no
final de 2004.
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Em conformidade com as Resoluções do Conselho de Segurança e com o Estatuto do
Tribunal, e designadamente nos termos to Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, os
Estados-Membros da ONU são obrigados a cooperar com o Gabinete do Procurador nas
investigações e procedimentos penais.
O Gabinete do Procurador organizava-se em duas divisões: uma divisão de
investigações e uma divisão de acusações. Esta última com três secções: de
julgamento, de recurso, e de informações e provas. O Gabinete do Procurador
empregava funcionários de cerca de 80 países, cuja experiência em sistemas nacionais
como polícias, investigadores, peritos forenses, analistas, advogados, advogados de
julgamento e consultores jurídicos foi caldeada num sistema único de procedimento
criminal internacional.
Quando o TPIJ começou seu trabalho pioneiro de investigar e processar os acusados de
violações graves do DIH, o estatuto apenas deu ao Procurador o poder de iniciar
investigaçõese de questionar os suspeitos, vítimas e testemunhas, coligir provas e a
realizar investigações no local
17
A situação que o Procurador do TPIJ enfrentou no cumprimento da sua missão é
completamente diferente daquela que o Procurador Robert Jackson encontrou no
tribunal de Nuremberga. Aqui, os arguidos estão ao alcance, os arquivos abertos e as
testemunhas disponíveis; na ex-Jugoslávia, tudo se passa bem à distância (entre Haia
e Belgrado, Sarajevo, e Zagreb) e dentro de países soberanos hostis ao Tribunal e
fechados á cooperação com o Procurador na sua função de investigação criminal e
detenção dos suspeitos.
. Ao contrário dos códigos de processo penal dos
sistemas jurídicos nacionais, o Estatuto do TPIJ contém um conjunto bastante limitado
de ferramentas legais com vista a investigar e processar crimes abrangidos pela
jurisdição do Tribunal Internacional.
No início, em 1994, mesmo aqueles que encorajaram e apoiaram a criação do TPIJ
duvidaram de que o Tribunal teria algum impacto e qualquer êxito. Quase vinte anos
mais tarde, o seu legado jurisprudencial e o seu efeito na paz e reconciliação
permanecem um tópico de debate popular e académico vibrante, mas é geralmente
aceite que há um antes e um depois do TPIJ para o direito internacional, para a justiça
penal internacional e para o direito internacional humanitário, entre outros.
O Tribunal mudou irreversivelmente a paisagem do direito
internacional humanitário”
18
.
De facto, com a criação do TPIJ, o Conselho de Segurança esperava poder dissuadir os
funcionários civis e militares da antiga Jugoslávia de cometerem mais atrocidades e, ao
mesmo tempo, enviar um sinal claro de que os responsáveis pelas atrocidades
cometidas seriam levados perante a justiça. Infelizmente, a criação do TPIJ pouco ou
nenhum efeito dissuasor produziu: o genocídio de Srebrenica em Julho de 1995, o
17
O Estatuto é silencioso quanto ao modo de realizar essas tarefas e com que meios. Na verdade, existem
mais parágrafos no Estatuto em matéria de nomeação e de qualificação dos juízes do que em matéria de
competências e de ferramentas de investigação.
18
http://www.icty.org/sections/AbouttheICTY.
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maior crime de todo o conflito armado da Bósnia, ocorreu já depois de o tribunal ter
sido criado.
Na sequência de Srebrenica, o Procurador deduziu acusação e mandados de captura
foram emitidos contra o presidente sérvio-
bósnio Radovan Karadžić e seu chefe de
estado-maior, general Ratko Mladić. Novamente, muitos duvidaram que eles algum dia
enfrentariam a justiça. De facto, eles foram detidos e transferidos para o Centro de
Detenção em Haia em 2008 e 2011, respectivamente.
Como já foi dito, o TPIJ foi criado em Maio de 1993. O conflito começou em 1991 e
terminou em Dezembro de 1995 com os acordos de paz de Dayton. Mesmo antes desta
data e no decurso do conflito, o Procurador enviou várias equipas de investigação à
Bósnia.
Em 1996, o sérvio-bósnio Duško Tadić tornou-se o primeiro acusado a ser julgado por
crimes de guerra e crimes contra a humanidade no TPIJ. Este processo e julgamento
forneceu um importante sinal de que o Tribunal processaria os responveis por graves
crimes internacionais. As provas e testemunhos recolhidos para o julgamento de Duško
Tadić mostrou-se muito útil na orientação do Procurador para outros casos, numa
estratégia ascendente que culminou em 28 de Junho de 2001 com a detenção do
antigo presidente Slobodan Milošević.
O TPIJ criou um grande e rico corpo de jurisprudência que influenciadecisivamente a
justiça penal internacional e que, em grande medida, tem sido adoptado pelo Tribunal
Penal Internacional (TPI). Durante cerca de dois anos (1996-1997), o Procurador
investigou os massacres de Srebrenica de Julho de 1995. Em 2 Novembro 1998, o
Procurador deduziu a acusação. Em 13 Março 2000, foi aberto o julgamento que
encerrou em 2 Agosto 2001. Em termos úteis, o julgamento durou 98 dias, com cinco
horas de audiência por dia. Os massacres de Srebrenica de Julho de 1995 foram
julgados pelo Tribunal como sendo um genocídio, o primeiro em toda a história da
Europa.
O objectivo mais imediato do TPIJ era acabar com impunidade e julgar os presumidos
responsáveis pelos crimes mais graves na ex-Jugoslávia; outra meta mais ambiciosa e
de longo prazo era contribuir para a paz e reconciliação na região, e proporcionar avio
às vítimas e seus familiares.
O Procurador no Tribunal Penal Internacional
Entretanto, em 17 de julho de 1998, a comunidade internacional alcançou um marco
histórico, quando 120 Estados adoptaram o Tratado de Roma, pelo qual foi aprovado o
Estatuto do TPI. O Tratado de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002, após
ratificação por 60 países, entre eles Portugal.
Um dos órgãos do TPI é o Gabinete do Procurador a quem compete receber
participações sobre os crimes que cabem na competência do Tribunal, exami-las e
eventualmente proceder criminalmente junto do Tribunal.
As raízes do Estatuto do TPI podem ser encontradas mais proximamente no Estatutos
do ICTY e do TPIR, embora com diferenças em várias características legais e
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estruturais. De facto, o TPI é um órgão judicial permanente e com alcance universal
19
;
a actividade judicial do TPI destina-se a complementar os tribunais nacionais
20
. Além
disto, o TPIJ e o TPIR são órgãos subsidiários do Conselho de segurança; o TPI foi
criado e é mantido pela Assembleia dos Estados partes no Tratado de Roma. O
Procurador do TPIJ e do TPIR é nomeado pelo Conselho de segurança; no caso do TPI,
o Procurador é eleito pelos Estados parte no Tratado de Roma. Uma das grandes
diferenças em relação aos dois tribunais ad hoc é a possibilidade de as vítimas
comparecerem no TPI para exprimir as suas opiniões e para reivindicar reparação pelas
as injustiças que sofreram
21
O exercício da jurisdição do Tribunal depende da denúncia ao procurador por um
Estado Parte ou pelo Conselho de Segurança de situação em que haja indícios de ter
ocorrido a prática de um ou vários crimes da sua competência (Artigo 13 do Estatuto
do TPI). As informações recebidas pelo Procurador sobre a prática de crimes da
competência do Tribunal poderão levar a, por sua própria iniciativa, abrir um inquérito
se concluir que para tanto existe fundamento suficiente e obtiver autorização do jzo
de instrução para abertura do inquérito (Artigo 15 do Estatuto do TPI). No
desenvolvimento das suas iniciativas de inquérito, o Procurador terá que desencadear
algumas decisões preliminares sobre admissibilidade com vista a garantir o
funcionamento do princípio da complementaridade da intervenção jurisdicional do TPI
(Artigo 18 do Estatuto do TPI). Isto é,
.
“é dever de todo o Estado exercer a respectiva jurisdição penal
sobre os responsáveis por crimes internacionais” (Preâmbulo do
Estatuto do TPI);
o Procurador pode instaurar o procedimento criminal apenas no caso de o Estado
genuinamente não poder ou não querer proceder criminalmente.
O Procurador poderá, em regra por uma única vez e antes do julgamento ou no seu
início, solicitar ao Tribunal que se pronuncie sobre questões de jurisdição ou
admissibilidade. Se for decidido transferir um inquérito para um Estado, o Procurador
poderá pedir ao Estado em questão que o mantenha informado do seguimento do
processo. Esta informação deverá ser mantida confidencial se o Estado assim solicitar.
Se o Procurador decidir, posteriormente, abrir um inquérito, comunicará a sua decisão
ao Estado para o qual foi transferido o processo (Artigo 19 do Estatuto do TPI).
19
O TPIJ E TPIR são tribunais ad hoc, com jurisdição territorial e temporal limitada. Pode dizer-se que o TPI
é para todos e para sempre. A diferença entre justiça ad hoc e permanente constituiu e ainda constituti
um dos grandes obstáculos a ratificação do Tratado de Roma por alguns paises que, tendo apoiado as
soluçoes de justica ad hoc (para alguns e se conveniente) são reticentes em apoiar uma solução de
justica permanente (para todos e sempre que).
20
A jurisdição dos TPIJ E TPIR é concorrente com a dos tribunais nacionais e têm primazia sobre os
tribunais nacionais; o TPI actua segundo o principio da complementaridade, isto é, exerce a jurisdição
apenas quando os tribunais nacionais são relutantes ou incapazes de genuinamente proceder
criminalmente..
21
Nos tribunais da ex-Jugoslávia e do Ruanda, as vítimas compareciam no Tribunal sobretudo como
testemunhas. No entanto, no estatuto do TPI, as vítimas foram elevadas à categoria de participantes
processuais por direito próprio. De facto, várias disposições no estatuto de Roma estipulam o
envolvimento das vítimas durante todas as fases do processo. Mais importante ainda é o facto de as
vítimas de crimes internacionais poderem reivindicar reparação por violação dos seus direitos.
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O Artigo 42 do Estatuto TPI, nos seus nove parágrafos, apresenta o Gabinete do
Procurador do TPI como actuando de forma independente enquanto órgão autónomo do
Tribunal; presidido pelo Procurador coadjuvado por Procuradores-adjuntos todos de
elevada idoneidade moral; o Procurador será eleito por escrunio secreto e por maioria
absoluta de votos dos membros da Assembleia dos Estados-Parte; o Procurador e os
Procuradores-adjuntos estão sujeitos à regra da exclusividade; podem ser sujeitos a
recusa se a sua imparcialidade estiver em causa.
Uma Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas será criada no âmbito da Secretaria
com vista a adoptar medidas de protecção e dispositivos de segurança, a prestar
assessoria e outro tipo de assistência às testemunhas e vítimas que compareçam
perante o Tribunal e a outras pessoas ameaçadas em virtude do testemunho prestado
por aquelas (Artigo 43 do Estatuto do TPI).
O Procurador nomeará
“o pessoal qualificado necessário aos respectivos serviços,
nomeadamente, (…) o pessoal encarregue de efectuar diligências
no âmbito do inquérito”.
No tocante ao recrutamento de pessoal, o procurador assegurará “os mais altos
padrões de eficiência, competência e integridade”. O Procurador poderá, em
circunstâncias excepcionais, recorrer à utilização de pessoal disponibilizado a título
gratuito, pelos Estados Partes, organizações intergovernamentais e organizações não-
governamentais (Artigo 44 do Estatuto do TPI).
O Procurador, os Procuradores-adjuntos e o pessoal do Gabinete do Procurador gozam,
no exercio das suas funções ou em relação a estas, de privilégios e imunidades e das
facilidades necessárias ao cumprimento das respectivas funções (Artigo 48 do Estatuto
do TPI).
A função primordial do Procurador é investigar e proceder criminalmente contra os
autores de violações massivas dos direitos humanos e do DIH.
É possível vislumbrar algumas semelhanças entre o procedimento penal por crimes em
grande escala ou violações massivas avel internacional e o procedimento penal por
crime organizado a nível nacional. Há, no entanto, um número de importantes
diferenças que fazem com que os dois tipos de procedimento dificilmente sejam
comparáveis. Salientam-se, pelo menos duas diferenças do procedimento penal
internacional. A primeira tem a ver com a falta de uma organização executiva que
obrigue as autoridades nacionais a realizar investigações no território de um Estado
sem sua ajuda, e a ausência de uma força para proceder a detenções, o que confere
primordial importância à cooperação do estado. A segunda é o facto de o modelo
processual dos tribunais penais internacionais ser uma mistura de elementos do
processo acusatório (common law) com elementos do processo inquisitório (civil law).
De facto, vários conceitos e procedimentos adoptados de ambas as tradições jurídicas
podem ser encontrados nos Estatutos dos Tribunais, nas Regras de Procedimento e de
Prova, bem como na abordagem ao Procurador, aos juízes, aos advogados de defesa e
à introdução de provas e, em geral, à maneira por que o processo é conduzido.
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Um dos principais exemplos disso é a aceitação da prova dos factos por meios que não
sejam a prova presencial como resultado da influência da tradição do direito civil.
Mesmo assim, alguns métodos normalmente usados em processo penal nacional podem
vir a ser úteis a nível internacional, tais como recorrer a testemunhas “insiders”.
Embora seja conhecida pelos sistemas nacionais, tal prática pode ter um significado
particular no contexto da acusação dos crimes internacionais, designadamente em que
os acusados são de elevado nível hierárquico. Também pode ser relevante em certas
formas de participação criminal (tais como a noção de empresa penal conjunta, joint
criminal entreprise). O testemunho de um insider num caso de empresa criminal
conjunta é uma das melhores maneiras de provar o propósito da empresa criminosa e
dos seus membros. Insiders podem e devem ser usados em casos criminais complexos,
porque a prova de uma complexa organização criminosa e dos seus dirigentes pode ser
extremamente dicil e consumir tempo ou recursos.
Apesar de ferramentas de investigação semelhantes poderem ser utilizadas ou
semelhantes conceitos jurídicos aplicados a nível nacional, desafios únicos surgem
quando investigando e processando criminalmente a nível internacional. Algumas são
óbvias, como a falta de uma força de polícia ou agentes de execução e outras menos
óbvias, como o impacto do processo combinado de common law/civil law.
Tais desafios têm impacto no tipo de métodos de investigação, no recrutamento de
pessoal e ferramentas jurídicas usadas e sua eficácia. Apenas uma mistura de
ferramentas tradicionais e inovadoras de investigação criminal e o equilíbrio das
diferentes culturas jurídicas nacionais podem assegurar uma eficaz repressão dos
crimes internacionais.
À semelhança do que já havia acontecido com o TPIJ, o TPI adoptou o modelo
acusatório, um dos pilares fundamentais em que assenta toda a função e actividade do
Procurador. Assim, cabe ao Procurador investigar, à charge et à dècharge, as suspeitas
de existência de crimes e, se for caso disso, acusar os suspeitos. No entanto, existem
pelo menos três importantes excepções o modelo acusatório.
A primeira é que, como em Nuremberga e Tóquio, não existem regras técnicas para a
admissibilidade de provas. Consequentemente, todos os elementos de prova
pertinentes podem ser admitidos ao processo, a menos que o seu valor probatório seja
substancialmente compensado pela necessidade de garantir um julgamento justo ou a
prova foi obtida por uma grave violação dos direitos humanos.
Em segundo lugar, enquanto normalmente no sistema acusatório o tribunal deve
contentar-se com as provas produzidas pelas partes, o Tribunal pode ordenar a
produção de provas adicionais proprio motu. Isso permitirá ao Tribunal ficar
plenamente satisfeito com as provas em que baseia as suas decisões finais. Foi
considerado que, na esfera internacional, os interesses da justiça são mais bem
servidos por essa disposição e que a diminuição, se for o caso, dos direitos das partes é
mínima por comparação.
Em terceiro lugar, a concessão de imunidade e a prática da plea-bargaining não
encontra nenhum lugar nas Regras de Procedimento e de Prova. Continua a ser
inteiramente uma questão para o Procurador determinar contra quem proceder
criminalmente. A cooperação de um acusado também será tida em conta como
circunstância atenuante, bem como para efeitos de concessão de indulto ou comutação
da sentença.
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O gabinete do Procurador opera independentemente dos juízes do Tribunal. Há, no
entanto, uma relação estreita e cooperativa entre o gabinete do Procurador e o resto
do Tribunal em assuntos administrativos, pessoal e outros assuntos relevantes sobre o
funcionamento do Tribunal como um todo.
A seleção de pessoal para o Procurador é um exercício exigente e demorado. Não é
exagero salientar que o sucesso do Tribunal como um todo depende muito do calibre do
pessoal de investigação do gabinete do Procurador. Ter procuradores experientes e
qualificados é importante: se as provas da acusação não são exaustivas e completas,
ou é insuficientemente preparada, o risco de falha da acusação é elevado, face ao
princípio in dubio pro reo.
O Procurador do TPI, como nos outros casos, rege a sua actuação pelo princípio da
obrigatoridade da acção penal: deve exercer a acção sempre que se verifiquem os
elementos constitutivos da conduta penalmente típica, não lhe cabendo a opção de a
exercer ou não.
O Procurador não dispôe de forças policiais ao nível internacional. Assim, o Procurador
terá que se socorrer dos agentes policiais dos Estados se necessitar de apoio policial no
cumprimento das suas funções de investigação, de acusação e de procedimento
criminal. Não há um quadro internacional denominado “polícia judiciária”, mas o
Procurador pode contar com inúmeros outros mecanismos governamentais ou não de
investigações.
O Gabinete do Procurador é um dos órgãos que comem o Tribunal (Artigo 34 do
Estatuto do TPI). O Artigo 42 do Estatuto do TPI garante a autonomia funcional,
dispondo que o Procurador actuará de forma independente, em separado doTPI. O
Procurador está encarregado de receber, por qualquer forma idónea, notitia criminis
acerca de crimes da competência do TPI e investigar e exercer a ação penal.
O Procurador pode também propor alterações aos elementos constitutivos dos crimes
(Artigo 9 (2) do Estatuto do TPI) e emendas às Regras de Procedimento e de Prova
(Artigo 51 (2) c) do Estatuto do TPI). Para a consecução de um TPI independente e
imparcial, o Procurador gozará de privilégios e imunidades para o cumprimento das
suas funções no território de cada Estado-parte (Artigo 48 do Estatuto do TPI).
O gabinete do Procurador é dirigido por um Procurador, com plenos poderes de
direcção e administração e poderá ser coadjuvado por procuradores adjuntos, de
nacionalidades diferentes e com regime de dedicação total e exclusiva. O Procurador,
bem como os procuradores adjuntos, devem gozar de alta consideração moral e
elevada competência técnica, além de extensa experiência prática no exercício da
acção penal e da sustentação em julgamento. O Procurador será eleito por votação
secreta e por maioria absoluta de votos dos membros da Assembleia dos Estados-
partes para um mandato de nove anos, sem reeleição. O Gabinete atuará de forma
independente, enquanto órgão autónomo do Tribunal, cabendo-lhe receber
participações e quaisquer outros tipos de informações devidamente fundamentadas
sobre crimes da competência do Tribunal, com o objetivo de as examinar e investigr e,
se disso for caso, exercer a ação penal junto do Tribunal.
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4. O Procurador e o processo penal internacional
O processo penal internacional é diferente dos processos nacionais em vários aspectos.
Uma das diferenças mais salientes é a função simbólica do processo penal
internacional, que é considerada essencial para o processo de paz numa sociedade pós-
conflito armado; em outras palavras, em que não pode haver paz sem justiça.
No entanto, isto só será possível quando a legitimidade desses processos é conferida
pelas comunidades envolvidas, e as mensagens dos processos são recebidas e aceites
pelas respectivas comunidades. Assim, se os tribunais devem contribuir para os
esforços de reconciliação e de paz nas comunidades atingidas, eles precisam de
comunicar com as populações interessadas. Apesar de muito progresso ter sido feito na
última década, planos de outreach continuam a ser um desafio significativo para os
tribunais ad-hoc e para o TPI.
Além de obstáculos externos a esta comunicação, existem também barreiras internas.
Por um lado, há quem repetidamente peça mais recursos para as acções de divulgação
para que os tribunais atinjam os seus ambiciosos objectivos. Por outro lado, há que se
questione se é apropriado para os procuradores e juízes envolverem-se em ações de
divulgação. Afinal de contas, os tribunais penais internacionais são modelados nos
tribunais nacionais que, por regra, não assumem esse papel.
Os procuradores e os juízes, formados nas jurisdições domésticas, focam-se
essencialmente nos elementos técnicos dos crimes e nos aspectos processuais do caso.
Além da aplicação do direito, qualquer outra actividade é considerada política e o
políticoé um termo tabu. Apesar disso, deve ser salientado que as funções retóricas
do direito penal internacional são fundamentalmente diferentes da legislação nacional:
há razões pertinentes para os tribunais internacionais gerirem cuidadosamente sua
imagem e avaliação pública, o que aliás deveria ser feito também a nível nacional.
Em primeiro lugar, o direito penal internacional está ainda na sua infância. O TPIJ,
como primeiro tribunal ad hoc na história recente, foi estabelecido apenas há duas
décadas. Ao contrário do direito penal interno que pode ter séculos de história e de
jurisprudência, ainda há uma falta de compreensão sobre o que são os tribunais penais
internacionais e que objectivo servem; o TPI ainda permanece desconhecido em muitas
partes do mundo.
Em segundo lugar, além deste alheamento e desconhecimento, o direito penal
internacional destina-se normalmente a comunidades com pouca experiência prévia de
um poder judicial imparcial e independente; caso contrário, eles estariam dispostos e
seriam eles próprios capazes de investigarem e processarem os crimes. Portanto, é
importante para o direito penal internacional estabelecer um novo começo para estas
comunidades e ser um exemplo para os tribunais nacionais. Isto só será possível se o
blico receber uma imagem positiva e justa dos tribunais penais internacionais.
Em terceiro lugar, o direito penal internacional cuida essencialmente dos crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Naturalmente, as
comunidades devastadas por estes crimes estão traumatizadas, cheias de receio e
desejosas de encontrar um culpado de quem se vingar. Por sua vez, na maioria dos
casos, os políticos locais e os seus meios de comunicação agitam estes sentimentos, o
que e em risco o processo de paz e de reconciliação e nenhum outro tipo de ajuda
está disponível, a não ser a intervenção dos tribunais internacionais. O direito penal
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nacional visa punir e prevenir os crimes; o direito penal internacional destina-se
também a contribuir para paz, segurança e bem-estar da comunidade internacional.
Como caso de violação em massa dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário, o genocídio de Srebrenica apresentou desafios legais e logísticos únicos
excepcionais, devido ao grande número de vítimas, testemunhas, perícias médico-
legais, incidentes e documentos probatórios envolvidos
22
, bem como as complexidades
jurídicas originais dos vários crimes em questão
23
O TPIJ e o TPIR foram criados como órgãos das Nações Unidas, que até então nunca
tinha administrado justiça penal internacional. Por conseguinte, a necessidade de
estabelecer um equilíbrio entre as prioridades das operações de investigação criminal e
a detenção de suspeitos e observância de outros princípios das Nações Unidas criou
desafios legais, institucionais e operacionais específicos para o Procurador no
cumprimento do seu mandato para investigar os crimes e iniciar o procedimento
criminal no Tribunal. Tais desafios foram aumentados com a complexidade dos crimes,
sua magnitude pura, os desafios colocados pelo ambiente físico na ex-Jugoslávia, as
preocupações de segurança das potenciais testemunhas e o facto de que nos primeiros
anos as detenções dos suspeitos frequentemente precederam as investigações.
.
24
5. Algumas questões
Os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra (em geral, crimes de guerra)
são, por definição, de caráter massivo. Os crimes internacionais têm carácter
sistemático ou generalizado. Assim, pode inferir-se que as ações dos autores foram
coordenadas e organizadas por militares e/ou funcionários civis de alto escalão. Por
outro lado, o seu caráter massivo implica uma abordagem diferente da do nível
nacional em "selecionar", investigar, indiciar, provar, julgar, definir responsabilidades,
punir, reparar e executar sanções.
Em suma, isto significa que uma teoria criminal construída com base em casos
individuais de violação criminal não é adequada a ser aplicada como tal em casos de
violações criminais em massa. Ao todo, processar os casos de crimes de guerra não é o
mesmo, nem da mesma maneira, que processar os casos de crime comum.
22
Na primeira instância e depois de muito decantado na preparação para julgamento, o processo teve 103
testemunhas chamadas pelo Procurador; 13 testemunhas chamadas pela Defesa (incluindo, o próprio
General Radislav Krstić). O Procurador apresentou 910 documentos (alguns dos quais extensos dossiers)
e a Defesa apresentou 183 documentos.
23
Ver ICTY, KRSTIĆ (IT-98-33) "SREBRENICA DRINA CORPS" e outros casos relacionados: BLAGOJEVIĆ &
JOKIĆ (IT-02-60) “SREBRENICA; ERDEMOVIĆ (IT-96-22) “PILICA FARM”; KARADŽIĆ (IT-95-5/18)
“BOSNIA AND HERZEGOVINA” & “SREBRENICA”; MILOŠEVIĆ (IT-02-54) “KOSOVO, CROATIA AND
BOSNIA”; MLADIĆ (IT-09-92) “BOSNIA AND HERZEGOVINA” & “SREBRENICA”; NIKOLMOMIR (IT-02-
60/1) “SREBRENICA”; OBRENOV(IT-02-60/2) “SREBRENICA”; ORIĆ (IT-03-68); PERIŠIĆ (IT-04-81);
POPOVIĆ et al. (IT-05-88) “SREBRENICA”; STANIŠIĆ & SIMATOVIĆ (IT-03-69); TOLIMIR (IT-05-88/2)
“SREBRENICA”; TRBIĆ (IT-05-88/1) “SREBRENICA”.
24
Na investigação e procedimento criminal por violação massivas dos direitos humanos ou do direito
internacional humanitário, é extremamente importante trabalhar no sentido investigar primeiro as
suspeitas de violação, deduzir depois acusação conjunta dos suspeitos que participaram na mesma
operação criminal, e proceder à detenção dos acusados de forma organizada. Nas violações massivas, os
suspeitos de terem cometido crimes de guerra são heróis para a outro lado do conflito e mantêm circuitos
de comunicação e redes de relações que permitem perturbar as investigações, destruir provas, intimidar
as testemunhas e organizar a fuga à detenção
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Além disso, um tribunal nacional com competência para julgar crimes de guerra deve
considerar os processos como sendo de natureza urgente e ser tendencialmente
internacionalizado porque, devido às circunstâncias e à natureza das violações do DIH,
os crimes são internacionais e afectam toda a humanidade e comunidade internacional.
Na verdade, os julgamentos de crimes de guerra devem terminar o mais rapidamente
possível face às exigências do processo de reconciliação e por juízes completamente
independentes e imparciais. Os juízes nacionais, mesmo que não tenham pegado em
armas no conflito armado
25
É necessária uma estratégia para a acusação e julgamento de crimes de guerra? A
resposta é claramente sim. O Procurador precisa de actuar dentro de uma estratégia de
encerramento e conclusão: quando se observa que os crimes de guerra que se
destinam a ser julgadosforam cometidos há muito tempo; a maior parte das
operações criminosas foram investigadas e documentadas por diferentes entidades
públicas e privadas; a maior parte dos suspeitos estão identificados; o risco de perder
provas, de cansaço e desmotivação das testemunhas aumenta com o decurso do
tempo; as novas gerações estão mais focadas no futuro do que no passado;
julgamentos rápidos e justos é a única maneira de resolver e fechar a porta do passado
e abrir a porta do futuro
, de uma certa forma sempre tomaram partido por uma
parte no conflito. Em princípio, quem tomou parte num conflito não pode ser
completamente independente e imparcial ou, pelo menos, publicamente não pode ser
percebido como tal. Justiça deve ser feita e deve ser vista ser feita.
26
Após ter considerado estes pontos, deve perguntar-se ao Procurador quantos casos e
qual é a estratégia
; uma resposta judicial não é a única solução para fechar o
passado e abrir o futuro; a justiça é sobre o passado e reconciliação é sobre o futuro.
27
A empresa criminosa conjunta (joint criminal entreprise) é particularmente aplicável em
circunstâncias em que altos líderes compartilham a intenção de cometer um crime e
cada um contribui para atingir o propósito criminoso. A relação entre os autores pode
ou não ser hierárquica, mas isso não é determinante
(selecionar e mapear os casos, estabelecer bancos de dados
interativos e centralizados, deduzir acusação). Há ainda que ter em conta a
disponibilidade de recursos necessários (humanos, financeiros e materiais) em
interação organizada para alcançar o objectivo comum de fechar a porta do passado...
28
É a práctica do crime em conjunto com a intenção compartilhada que define a relação.
Mesmo se praticado através de outros, os crimes são fundamentalmente os crimes dos
membros da empresa, não necessariamente daqueles indivíduos que perpetraram
fisicamente o crime. O conceito reflete a realidade em que atrocidades em larga escala
são cometidas pela actuação combinada de várias forças ou agentes, e o objectivo
.
25
Como se sabe, a maioria dos conflitos armados acontecidos depois da Segunda Guerra mundial, foram
conflitos não internacionais, vulgarmente conhecidos por guerras civis. Assim, a percepção pública da
independência e imparcialidade do tribunal torna-se muito importante e decisiva. Sem esta dimensão, os
julgamentos por mais justos e rápidos que sejam serão sem efeito e impacto no processo de paz e
reconciliação das comunidades.
26
Em Sarajevo (2008) foi dito por diplomatas que a questão dos "crimes de guerra” na Bósnia foi
envenenando o ambiente político, social, econômico e o relacionamento pessoal. Era necessário limpar
este tipo de veneno e fechar a questão dos crimes de guerra tão rapidamente quanto possível.
27
Ver Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, Rule-of-Law tools for post conflict
States, Prosecution initiatives, United Nations, New York and Geneva, 2006.
28
Ao contrário, a relação hierárquica é determinante para o apuramento e estabelecimento da
responsabilidade do superior hierárquico, seja o superior civil ou militar, seja a responsabilidade de jure
ou de facto.
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criminal pode apenas ser compartilhado pelos líderes que tomam medidas para
alcançar o seu resultado.
Em Agosto de 2003, o Conselho de Segurança emitiu a Resolução 1503, exortando o
ICTY a “concentrar-se sobre a acusação e o julgamento dos altos dirigentes suspeitos
de serem responsáveis por crimes dentro jurisdição do TPIJ” e a transferir os outros
casos para os tribunais nacionais competentes.
A transferência de um processo de um tribunal internacional para um tribunal nacional
provou ser um assunto complexo e pôs uma série de questões legais e organizacionais
difíceis de resolver. Mas deve ser anotada a maneira eficiente e eficaz em que a Secção
dos Crimes de Guerra do Tribunal da Bósnia e Herzegovina, em cooperação com o
ICTY, lidou com a situação
29
Outros princípios jurídicos foram também desenvolvidos como resultado da
transferência de processo também merecem análise. Estes incluem o desenvolvimento
dos mecanismos de cooperação do Procurador do TPIJ com o Procurador do Tribunal da
Bósnia e Herzegovina, da noção de "factos provados" e o regime de "prova
documental" do processo do TPIJ. Tais desenvolvimentos contribuem para o património
do ICTY e, portanto, para deixar um legado duradouro para futuros tribunais a lidar
com crimes internacionais. Apesar da diferente natureza jurídica do ICTY e do TPI, essa
experiência pode ser vista como o complemento do princípio da complementaridade e é
uma aprendizagem decisiva para o futuro relacionamento entre tribunais penais
internacionais e nacionais.
.
Um dos objectivos do pré-projecto de investigação “A Justiça Penal Internacional” é
”suscitar novas propostas para algumas das problemáticas que atualmente se colocam
no âmbito da justiça penal internacional”.
Face ao exposto e, particularmente, tendo em conta o caráter massivo dos crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, haverá que formular
algumas questões relevantes para a acção do Procurador como magistrado
internacional, esperando que elas se traduzam em novas propostas para algumas das
problemáticas que atualmente se colocam no âmbito da justiça penal internacional.
Assim, que tipo de consequências sobre a independência e imparcialidade de um
tribunal, pelo menos ao nível da percepção pública e sobretudo nos casos de conflitos
armados não internacionais?
Quais criminosos e que crimes devem ser julgados? Como abordar a acusação de
crimes em grande escala a nível internacional? Como desenhar a selecção dos casos
que vão ser investigados e ser apresentados a julgamento, sendo impossível julgar
todos os presumidos responsáveis pelos crimes cometidos num conflito armado?
29
O processo de Radovan Stanković foi o primeiro a ser transferido do TPIJ para a Secção dos Crimes de
Guerra do Tribunal da Bósnia e Herzegovina. Em 10 de julho de 2002, ele foi colocado sob custódia na
unidade de detenção do TPIJ. Em 1 de setembro de 2005, o TPIJ decidiu a transferência do caso para o
Tribunal da Bósnia-Herzegovina e, em 29 de setembro de 2005, o acusado foi transferido para a Bósnia e
Herzegovina. Em 7 de dezembro de 2005, o Tribunal confirmou/aceitou a acusação. Este também foi o
primeiro “caso 11bis” finalizado no Tribunal da Bósnia e Herzegovina. De facto, em 14 de novembro de
2006, o julgamento de primeira instância do Tribunal da Bósnia e Herzegovina condenou Radovan
Stanković pelo crime contra a humanidade e aplicou a pena de prisão de16 anos. Em 28 de março de
2007, a instância de recurso modificou a sentença de prisão para 20 anos. Outros casos transferidos do
TPIJ para o Tribunal da Bosnia e herzegovina foram: Ljubičić (IT-00-41) ''Lašva Valley''; Mejakić et al.
(IT-02-65) "Omarska and Keraterm Camps" ; Stanković & Janković (IT-96-23/2) "Foča"; Todović &
Rašević (IT-97-25/1) "Foča"; Trb (IT-05-88/1) "Srebrenica"
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Em que forma de participação do suspeito na accão criminosa pode o Procurador
basear-se para deduzir a acusação por crimes de grande escala ou empresas criminais
conjuntas (joint criminal entreprises)?
Como coligir as provas e que provas destinadas a construir o caso de violação massiva
para julgamento, tendo em conta que nas circunstâncias não foi possível obter provas
contemporâneas (por exemplo, escutas telefónicas, registos de vídeo e áudio) e que a
investigação depende da cooperação dos Estados nem sempre disponíveis para
cooperar?
Como enquadrar as vítimas/testemunhas no processo, como conceber a reparação das
vítimas e que contributo, se algum, da jurisprudência nacional? Que conceito de
reparação tendo em conta que as violações são de caracter massivo, que nem sempre
as pessoas desalojadas pelo conflito regressam a casa e que qualquer reparação
deveria significar uma reparação colectiva e a reconstrução da vida em comum?
Como articular as investigações e procedimento criminal ao nível internacional e
nacional, tendo em conta que o tipo legal contém elementos gerais (chapeau elements,
v.g., widespread or systematic attack) e elementos mais específicos (underlying
criminal ofenses, v.g. murder)?
Como transferir do tribunal internacional para o tribunal nacional os factos dados como
provados e os respectivos meios de prova e como partilhar recursos técnicos, humanos
e materiais de investigação criminal?
Que tipo de provas se têm demonstrado ser útil para processar violações sérias do
DIH? Quais os desafios que afectam a recolha de elementos de prova relevantes? Como
optimizar a apresentação dos meios de prova, designadamente recolhendo e
estabilizando o depoimento de testemunha com vista a ser utilizado nos diferentes
processos? Por exemplo, porque sujeitar uma vítima de violação sexual a diferentes
depoimentos em diferentes processos, em diferentes lugares e datas? Será necessário
e admissível traumatizar as vítimas em nome da justiça e reconciliação?
Quais são os meios mais eficazes de lidar com os fatores externos que influenciam a
investigação e procedimento criminal em suspeita de violações do DIH?
6. Conclusão
O Procurador como magistrado internacional é um órgão que integra a composição do
Tribunal Internacional, com autonomia no exercício das suas atribuições e
competências. As suas atribuições e competências, em certa medida, equiparam-se
nominalmente às do Procurador como magistrado nacional. No entanto, tais atribuições
e competências diferem substancialmente e metodologicamente no quadro da justiça
penal internacional. A experiência requerida ao nível nacional como requisito de
recrutamento ajuda, mas claramente não chega para um eficiente e efectivo
desempenho da função. Como especial requisito exige-se uma boa compreensão da
dinâmica das violações massivas dos direitos e consequente aproximação do ponto de
vista da investigação, procedimento criminal e algumas especificidades do processo
penal internacional. Os desafios face à investigação e acusação de crimes em larga
escala ou violações criminais massivas cometidos há anos num país soberano
estrangeiro são únicos e de caracter verdadeiramente singular. Assim, é ao mesmo
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tempo notável e surpreendente em muitos aspectos que as ferramentas legais de
investigação à disposição do Procurador tenham mesmo assim produzido os resultados
que é possível observar e quantificar. É importante lembrar que essas ferramentas
legais de investigação foram desenvolvidas em um ambiente mesclado de contribuições
provenientes do sistemas de common law e civil law, e sempre orientadas no sentido
de responder à questão essencial de saber como obter um processo justo e rápido (fair
and expeditious trial). Embora os desafios continuem, o trabalho do Procurador como
magistrado internacional representa já uma realização considerável na luta contra a
impunidade das violações graves dos Direitos Humanos e do Direito Internacional
Humanitário.
Como citar esta Nota
Rodrigues, Almiro (2015). "O procurador como magistrado internacional". Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro 2015. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_not1