OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
OS TRIBUNAIS DE OPINIÃO E O TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS
Luís Moita
lmoita@autonoma.pt
Professor Catedrático, Diretor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador do
Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e
membro do Conselho Científico. Diretor do OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores,
integra o projeto "Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal". Foi Vice-Reitor (1992-
2009) e coordenou o Instituto Sócrates para a Formação Contínua. Conferencista regular no
Instituto de Defesa Nacional, leciona no Instituto de Estudos Superiores Militares.
Resumo
Há uma relação dialéctica entre a opinião pública e a aplicação da justiça pelas instâncias
competentes. A história encerra numerosos exemplos em que movimentos internacionais de
opinião se manifestam contra decisões judiciais, já que, por acção ou por omissão, as
jurisdições estabelecidas pronunciam por vezes veredictos discutíveis ou deixam na
impunidade crimes cometidos. Estas manifestações assumem grande diversidade de formas,
desde as comissões internacionais de inquérito até às comissões de verdade e reconciliação.
Entre tais exercícios de cidadania, oriundos da sociedade civil, distinguem-se os chamados
“tribunais de opinião”, cuja primeira grande iniciativa se deve a Lorde Bertrand Russell nos
anos 1960. Seguindo essa tradição, o Tribunal Permanente dos Povos tem um percurso de
intensa actividade, entre 1979 e 2014, realizando assembleias deliberativas e pronunciando
decisões num quadro “parajudicial”. Os seus críticos censuram a aparência de justiça para
fins ideológicos, mas é defensável a legitimidade destas iniciativas enquanto sobressaltos
das consciências, referenciadas ao direito internacional vigente e também à inovação
jurídica, ao serviço do direito dos povos.
.
Palavras chave:
Direito internacional; opinião pública; tribunais de opinião; direitos dos povos;
construtivismo jurídico
Como citar este artigo
Moita, Luís (2015). "Os Tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N 1, Maio-Outubro 2015.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art3
Artigo recebido em 5 de Fevereiro de 2015 e aceite para publicação em 6 de Abril de
2015
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
34
OS TRIBUNAIS DE OPINIÃO E O TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS
Luís Moita
Apesar de nem sempre conhecida de modo alargado, a existência de “tribunais de
opinião” tem sido uma realidade nas últimas décadas. Em regra, eles actuam no
domínio do internacional. Mesmo que tratem de temas da vida interna de tal ou tal
país, tocam questões globais e os ecos das suas deliberações ultrapassam as fronteiras
nacionais. O objectivo destas páginas é o de reflectir criticamente a natureza e as
funções dos tribunais de opinião, em particular o caso do Tribunal Permanente dos
Povos, criado na cidade italiana de Bolonha no ano de 1979. Tal reflexão enquadra-se
no âmbito de um projecto de investigação acerca das jurisdições internacionais
promovido pelo OBSERVARE, unidade de investigação em relações internacionais da
Universidade Autónoma de Lisboa
1
Nos seus próprios termos, a expressão “tribunal de opinião” abriga dois conceitos: a
ideia de “tribunal” associa-se de imediato à de aplicação de justiça com base numa
norma jurídica; a ideia de “opinião” reporta-se a essa realidade algo difusa da opinião
pública, na qual se manifestam sentimentos colectivos, correntes de juízos largamente
partilhados ou convicções persistentemente evidenciadas no espaço público. Existe uma
diactica peculiar entre direito e opiniãoblica no nosso caso, entre o direito tanto
nacional como internacional e a opinião pública internacionalizada. As normas de direito
aplicadas pelas instâncias de jurisdição, pelos seus imperativos mas também nas suas
lacunas, repercutem a sua influência nas opiniões públicas, projectam nelas valores,
difundem regras de conduta, promovem consensos em torno de princípios
comummente aceites, quando não deixam em aberto questões por resolver;
inversamente, a sensibilidade das manifestações de opinião pública interfere na
formulação das leis, exige a sua aplicação ou contesta o seu incumprimento. Como diz
sabiamente um sociólogo francês das relações internacionais:
.
1
Para a elaboração deste texto recebi preciosas indicações e sugestões de Gianni Tognoni (Secretário geral
do TPP) e Piero Basso, antigos companheiros de causas mobilizadoras, assim como de Simona Fraudatario
(da Fundação Internacional Lelio Basso). Os meus colegas Mario Losano, da Universidade do Piemonte
Oriental, e Miguel Santos Neves, da Universidade Autónoma de Lisboa, enriqueceram o original com
comentários e sugestões relevantes e outros colegas juristas Patrícia Galvão Teles, Constança Urbano
de Sousa, Mateus Kowalski e Pedro Trovão do Rosário ajudaram a suprir as minhas limitações nessa
área. Da parte de Brígida Brito tive um apoio meticuloso para os aspectos metodológicos. A todos é
devido um agradecimento especial.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
35
A opinião pública e o direito internacional não se confundem e não
ganhariam em ser confundidos. É da tensão inevitável e necessária
entre eles que pode surgir um pouco mais de justiça no mundo. Se
os juristas se libertassem da pressão da opinião pública, arriscar-
se-iam a transformar-se em puros técnicos da ordem estabelecida.
Se a opinião fosse entregue a si própria, arriscar-se-ia a vaguear
sem fim em busca dos seus projectos: só o direito a pode ajudar a
realizar o seu ideal proporcionando-lhe os quadros e as instituições
de um novo mundo. Por isso é do interesse da comunidade dos
homens que nunca cesse o diálogo entre o direito internacional e a
opinião pública. (Merle, 1985: 97).
Dando esta perspectiva por adquirida, um esclarecimento prévio todavia se impõe: não
se deve entender “tribunal de opinião” como se assim se designasse um julgamento
praticado pela opinião pública. O conceito de opinião pública é excessivamente volátil
para se admitir que sustente a consistência de um juízo fundado, desapaixonado,
ponderado. A justiça não pode estar ao sabor das emoções da voz corrente ou das
vicissitudes das opiniões publicadas. Os procedimentos judiciais, no seu rigor e na sua
complexidade técnica, na sua correspondência à legislação vigente, no seu respeito
pelas garantias dos acusados, não são equiparáveis às percepções e preferências
flutuantes, por mais generalizadas que elas sejam. Mas isso não impede, bem pelo
contrário, que se formem consensos em torno de determinados princípios, de modo a
antecipar normas ainda não legisladas que mais tarde venham a ser juridicamente
consagradas, ou a protestar contra a insuficiente aplicação das leis internacionais, ou a
preencher os vazios legais ou as omises institucionais que arrastam consigo a
impunidade de criminosos.
Movimentos de opinião e decisões judiciais
A história do século XX está pontuada por exemplos de movimentos de opinião que
desempenharam o papel de consciência crítica em relação a actos controversos de
aplicação da justiça. Por vezes, o seu impacto circunscreveu-se a meios limitados de
elites informadas. Noutros casos, foram grandes os ecos na opinião pública. Vale a
pena recuperarmos aqui a memória de alguns casos emblemáticos, sabendo de
antemão que não se trata de esboçar um inventário completo, mas apenas recordar
momentos simlicos da referida diactica entre aplicão do direito e opinião pública
internacional.
Ainda nos finais do séc. XIX, o célebre Affaire Dreyfus agitou a opinião pública tanto
francesa como internacional, com a particularidade de desvendar perversas reacções de
anti-semitismo e de ter desencadeado veementes protestos que levaram mais tarde a
repor a justiça. Alfred Dreyfus, oficial de origem judaica, integrou postos de
responsabilidade no exército francês e em 1895 foi acusado de espionagem em favor
da Alemanha, quando ainda se faziam sentir os ressentimentos relativos à guerra
franco-prussiana. Destituído de militar, deportado para uma ilha longínqua, Dreyfus
sempre alegou inocência e o seu processo suscitou uma onda de indignação que veio a
determinar a sua reabilitação.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
36
Umas décadas mais tarde, são os Estados Unidos abalados por um tremendo erro
judiciário que levou à condenação à morte de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti.
Estes dois imigrantes italianos, anarquistas, portadores de arma ilegal, suspeitos de um
crime de assassinato e roubo, foram presos em 1920 e condenados em tribunal por
homicídio, não obstante a ausência de provas e o imenso clamor contra a sua
condenação: comités de solidariedade são criados, grandes manifestações convocadas
em vários pses e eminentes personalidades internacionais clamam pela sua
libertação. Em vão. Saco e Vanzetti são electrocutados sete anos depois. Foi preciso
esperar pelo ano de 1973 para que a verdade fosse oficialmente reposta e reabilitada
postumamente a memória dos dois anarquistas.
Entretanto, o ascenso do nacional-socialismo na Alemanha tem um episódio dramático
que assinala a um tempo a escalada da tomada do poder por Hitler e o ódio anti-
comunista do seu regime: o incêndio do Reichstag, o palácio do Parlamento de Berlim,
em Fevereiro de 1933. O inquérito nazi identifica um suspeito, um jovem esquerdista
holandês que acabou condenado à morte, mas as culpas são atribuídas aos comunistas,
o que levou nos dias seguintes à prisão de milhares e milhares de resistentes ao
nazismo. Mas em Setembro desse ano é criada em Londres a “Comissão de inquérito
internacional ao incêndio do Reichstag” que organiza um contra-processo que conclui
pela provável culpabilidade dos responsáveis nazis
2
Por sua vez, entre 1936 e 1938o os Processos de Moscovo a desencadear grande
repercussão internacional. Sob as ordens de Estaline, é levada a efeito uma gigantesca
purga que liquida fisicamente a maior parte da elite soviética. Após denúncias forjadas
ou “confissões” de conveniência, os tribunais pronunciam sentenças implacáveis contra
a classe dirigente, em especial contra Trotsky e os seus seguidores. A esquerda
europeia reage com ambiguidade aos acontecimentos, apesar das severas críticas de
homens como o poeta surrealista André Breton ou o marxista Victor Serge; mas nos
Estados Unidos é criada uma Comissão internacional de inquérito, presidida pelo
prestigiado filósofo moralista John Dewey, que conclui pela inocência de Trotsky,
apesar da generalidade da Comissão se distanciar das suas ideias
.
3
Um outro processo que provoca intenso clamor internacional é o que tem lugar de novo
nos Estados Unidos, já depois do final de II Guerra Mundial, contra o casal Rosenberg,
acusado de ter feito espionagem sobre o programa nuclear em favor da URSS, o que
teria permitido à União Soviética acelerar a fabricação da bomba atómica. Julgados em
1951 e executados em 1953, Julius e Ethel Rosenberg eram judeus e simpatizantes
comunistas e ainda hoje há controvérsia sobre a sua culpabilidade, designadamente a
da mulher Ethel. Contra a sua execução levantaram-se inúmeras vozes de presgio
mundial, desde Einstein a Pio XII, passando por Sartre e Brecht, denunciando o anti-
comunismo primário e o anti-semitismo latente e pedindo clemência para um casal que
foi condenado sem provas concludentes.
.
Na sua força simbólica, o conjunto destes casos agora exemplificados manifesta a
tensão entre aplicação das normas jurídicas e opinião pública internacional, bem como
entre as instâncias formais dotadas de autoridade judicial e as instâncias informais que
as contestam. Como uma espécie de diálogo ou confronto entre poderes e contra-
2
Uma análise pormenorizada deste processo pode ser consultada em Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A.
(2002: 11-50).
3
Para maior desenvolvimento ver igualmente Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. (2002: 51-101).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
37
poderes, desenha-se uma dialéctica de oposição e complementaridade entre as
sentenças jurídicas e as correntes de opinião. A aplicação da justiça, falível como é,
vulnerável a toda a sorte de abusos, não se esgota na jurisdição dos tribunais mas
prolonga-se na capacidade social de protesto, o que não significa que esta última tenha
qualquer garantia de acerto ou qualquer prerrogativa de “superioridade moral”. Por
acção ou por omissão, seja por deficiência interpretativa, seja por vazio legal, o direito,
e especialmente o direito internacional, nem sempre responde às exigências das
complexas situações humanas. Daí esta aparente necessidade histórica de criação de
momentos de rectificação, de reabilitação, de contestação, como antídoto à possível
deturpação da justiça provocada pelos seus próprios agentes.
Talvez seja esta mesma necessidade de fazer justiça fora dos quadros convencionais
que leva à criação de instâncias especiais, naquelas circunstâncias onde os tribunais
regulares não parecem ser os lugares mais apropriados para ajuizarem os
comportamentos colectivos ou individuais, como é o caso das comissões de verdade e
reconciliação. São conhecidas as iniciativas neste campo, em situações como as da
África do Sul pós-apartheid ou das sociedades latino-americanas após as ditaduras
militares. Procurando evitar os ajustes de contas susceptíveis de reabrir feridas do
passado, mas também tendo por inadmissível a impunidade dos responsáveis pelos
crimes cometidos, tais comissões têm tido o papel de conservar a memória dos factos e
estabelecer a responsabilidade dos actores políticos, visando não tanto a punição como
antes o reconhecimento, a desocultação, o perdão e a reconciliação. Nestes casos
prevalece a prudência das fases de transição com vista à consolidação da democracia,
mais que a aplicação mecânica das leis penais.
Encontramos um processo análogo no Ruanda como terapia face à memória da tragédia
do genocídio dos tutsis pelas milícias hutus perpetrado entre Abril e Junho de 1994,
provocando a morte de mais de 800.000 ruandeses e a fuga de quase dois milhões de
pessoas. Internacionalmente foi criado um Tribunal especial para julgar os responsáveis
pelos crimes, mas no próprio país permanecia um grande número de prisioneiros,
acima dos 100.000, pelo que os tribunais oficiais não tinham capacidade para julgar
todos os casos. O governo local encorajou o recurso à instituição tradicional de
resolução de conflitos designada Gacaca como forma de mobilizar a população para
o cumprimento da justiça, com relevo para o papel dos anciãos e para a função de
integração social, de acordo com as melhores tradições africanas.
Estamos a ver a variedade de modos como se têm encontrado soluções para contestar
ou complementar o papel dos sistemas judiciais estabelecidos, seja por movimentos de
opinião, seja por comissões internacionais de inquérito, seja por comissões de verdade
e reconciliação, seja por práticas costumeiras, na referida tensão entre direito e opinião
pública. No limite, esta acção pode até ser individual, como demonstra o caso especial
do blogue do grande jurista norte-americano Richard Falk, um dos nomes mais
influentes no campo do direito internacional
4
, blogue que ele lançou no dia em que
completou 80 anos e que constitui um impressionante repositório do pensamento
independente e ctico do autor sobre as questões jurídicas e políticas, com um título
que é em si mesmo um programa: Global Justice in the 21st Century.
4
Ver http://richardfalk.wordpress.com/, consultado em 29/12/2014.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
38
As jurisdições internacionais e os tribunais de opinião
O direito internacional foi durante séculos regulado por tratados celebrados entre dois
ou mais Estados, os quais, apesar da natureza jurídica do vínculo estabelecido, ficavam
apenas moralmente obrigados a acatar as suas disposições, sem que existisse em rigor
uma jurisdição internacional dotada de instrumentos para garantir o respeito das
mesmas, se necessário de modo coercitivo. Todavia, já em 1899 é criado um Tribunal
Permanente de Arbitragem no seguimento de uma Conferência internacional de Haia e,
embora já existisse um Tribunal Permanente de Justiça Internacional criado ao abrigo
do Pacto da Sociedade das Nações, só em 1946, já no quadro multilateral das Nações
Unidas, começa a funcionar o Tribunal Internacional de Justiça, sedeado em Haia. A sua
vocação é claramente delimitada: dirimir os conflitos entre Estados. De natureza
diferente é o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, criado
em 1959 pelo Conselho da Europa. Bem mais tarde, em 2002, após a adopção do seu
estatuto em Roma, tem início o Tribunal Penal Internacional, por coincidência também
instalado na capital da Holanda, que se distingue do TIJ pela capacidade de julgar
pessoas individuais acusadas de praticarem agressão, genocídio, crimes de guerra e
crimes contra a humanidade.
Entretanto, por iniciativa do Conselho de Segurança das Nações Unidas, foram criados
três outros tribunais para julgamento pontual de situações concretas: o Tribunal Penal
Internacional para a ex-Jugoslávia, criado em Maio de 1993, o Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda, criado em Novembro de 1994 e o Tribunal Especial para a
Serra Leoa, criado em 2000
5
Temos assim duas espécies de jurisdições internacionais: os tribunais de excepção,
com funções ad hoc e competências delimitadas a situações específicas (Nuremberga,
Tóquio, ex-Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa, …) e os tribunais, digamos, regulares ou
permanentes os dois de Haia, TIJ e TPI , mais o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos que constituem elementos estáveis da arquitectura judica internacional.
, destinados a julgar os crimes de genocídio, os crimes de
guerra e os crimes contra a humanidade praticados nesses países. De algum modo, são
réplicas actuais dos tribunais especiais estabelecidos no imediato após guerra de 1939-
45 para julgar os crimes de alemães e japoneses, respectivamente o Tribunal de
Nuremberga e o Tribunal de Tóquio. Estes últimos, é certo, tiveram características
muito particulares, já que eram tribunais militares organizados pelos vencedores da
guerra; criaram jurisprudência pois deliberaram com base em normas que não estavam
anteriormente legisladas, o que punha em causa o princípio da não retroactividade da
lei penal; tiveram todavia o mérito de julgar as responsabilidades individuais dos
deres políticos o abrigados por detrás do regime do qual cumpririam ordens e
condenar crimes até então não explicitados, como o crime contra a paz, o crime de
guerra, o crime de genodio e o crime contra a humanidade.
Numa esfera totalmente diferente, surgem os tribunais de opinião. Pode duvidar-se da
pertinência desta designação, conforme mais à frente será referido. Seja como for,
5
Sobre este caso verdadeiramente especial, pois se trata de um tribunal híbrido, nacional e internacional,
ver Paula, Thais e Mont’Alverne, Tarin “A evolução do direito internacional penal e o Tribunal Especial para
Serra Leoa: análise da natureza jurídica e considerações sobre sua jurisprudência”, Nomos: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, disponível em
http://mdf.secrel.com.br/dmdocuments/THAISeTARIN.pdf, consultado em 30/1/2015.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
39
numerosas iniciativas de cidadãos, sem qualquer mandato oficial, têm assumido a
forma de processo judicial para enunciarem pronunciamentos relativos a questões onde
estão em causa direitos humanos fundamentais. Eles constituem assim uma espécie de
jurisdições internacionais informais, oriundas da sociedade civil e não dos poderes
estabelecidos, desprovidas de força coercitiva, mas ambicionando sensibilizar a opinião
internacional e os poderes públicos graças ao valor moral das suas sentenças, aliás
fundadas elas próprias no direito internacional vigente.
O mais representativo destes tribunais de opinião será porventura o Tribunal
Permanente dos Povos (TPP), activo desde 1979 até ao presente e objecto central
deste estudo. A sua criação, porém, está situada num contexto que importa recordar.
O TPP tem origem numa experiência antecedente, verdadeiramente “fundadora”, que é
o Tribunal internacional contra os crimes de guerra cometidos no Vietname, conhecido
simplesmente como Tribunal Russell I
6
, o qual constitui a fonte de inspiração para
todas as acções posteriores do mesmo tipo. A iniciativa pertenceu a Lorde Bertrand
Russell, filósofo e matemático, prémio Nobel da Literatura em 1950, que se distinguiu
também pela acção cívica nomeadamente como activista da causa da paz e pelo
desarmamento. A ele se juntou um prestigiadíssimo grupo de membros, incluindo outro
grande nome do pensamento do século XX, Jean-Paul Sartre, de início reticente mas
depois convencido por influência de Simone de Beauvoir, aceitando presidir às sessões
do Tribunal em Londres no ano de 1966. Os trabalhos foram retomados em Estocolmo
(1967) e finalmente em Roskilde, na Dinamarca, no mesmo ano. Esteve prevista a sua
realização em Paris, mas o General De Gaulle, então presidente da França, não
consentiu, embora ele próprio se opusesse à politica norte-americana para o Vietname.
Na carta dirigida a Sartre explica que a sua decisão em nada limita a liberdade de
expressão, mas argumenta: “não é a si que ensinarei que qualquer justiça, no seu
princípio como na sua execução, pertence exclusivamente ao Estado”
7
. Eis um tema de
primeira importância ao qual será necessário regressar. E na resposta, Sartre
estabelece o fundamento da sua legitimidade:
Porque nos designámos a nós próprios? Precisamente porque
ninguém o fez. Só os governos ou os povos o poderiam ter feito.
Ora os governos querem manter a possibilidade de cometerem
crimes sem incorrer no risco de serem julgados; não iriam por isso
criar um organismo internacional habilitado para o fazer. Quanto
aos povos, excepto em caso de revolução, eles não nomeiam
tribunais, não poderiam assim designar-nos
8
.
6
Análise muito pormenorizada em Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. (2002: 103-162).
7
A carta do General De Gaulle, com data de 19 de Abril de 1967, está disponível on line em
http://bernat.blog.lemonde.fr/2008/06/10/le-tribunal-russell-et-le-proces-du-11-septembre/ consultado
em 29/12/2014.
8
Ibidem. Muita informação sobre o Tribunal Russell, incluindo a lista completa dos membros do mesmo, as
exposições técnicas e os testemunhos pessoais, está disponível em
http://911review.org/Wiki/BertrandRussellTribunal.shtml, consultado em 29/12/2014. A versão inglesa do
discurso inaugural de Sartre pode ser lida em http://thecry.com/existentialism/sartre/crimes.html,
consultado no mesmo dia.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
40
De algum modo, este primeiro Tribunal Russell recupera o antecedente constituído pelo
Tribunal de Nuremberga (Jouve, 1981: 670-671; Merle, 1985: 56-59), reportando-se a
uma tipologia de crimes que inclui os crimes contra a paz, os crimes de guerra, os
crimes contra a humanidade e o crime de genodio
9
Já depois da morte de Bertrand Russell, um segundo Tribunal Russell com idêntica
estrutura foi convocado pelo senador italiano Lelio Basso que tinha integrado o júri do
primeiro e nele se tinha distinguido pela sua intervenção. Entre 1973 e 1976 vão
desenrolar-se três sessões, em Roma e Bruxelas, dedicadas à denúncia e condenação
dos crimes das diversas ditaduras militares latino-americanas, designadamente o Brasil
e o Chile, mas também a Bolívia e o Uruguai, bem como a Argentina e outros países
centro-americanos, com impacto importante nas opiniões públicas desse sub-
continente
. Com a fundamental diferença de
ser um tribunal que sabe não ter capacidade de coerção física nem de decretar saões
efectivas.
10
Há ainda breves alusões a um Tribunal Russell III que se reuniu em Frankfurt em 1978
sobre um tema aparentemente local as interdições profissionais na República Federal
da Alemanha bem como um Tribunal Russell IV com lugar em Roterdão, já em 1980,
para denunciar o “etnocídio” dos povos ameríndios (Jouve, 1981: 671).
. O nome de Lelio Basso reaparecerá mais à frente, ligado definitivamente
ao Tribunal Permanente dos Povos: é possível que o contacto com as atrocidades das
ditaduras latino-americanas lhe tenha permitido uma intuição, a saber, há governos
que estão em guerra contra os seus povos, a estes tem de ser dada voz, para além dos
Estados que supostamente os representam.
Neste contexto de sessões do Tribunal Russell, é em Portugal que tem lugar em 1977-
78 uma iniciativa marcante de contornos análogos: o Tribunal Cívico Humberto Delgado
(general opositor ao regime, assassinado pela PIDE polícia política de Salazar), criado
para julgar os crimes da ditadura em Portugal. Foi uma experiência breve mas intensa,
motivada pela ausência de julgamento dos responsáveis do regime ditatorial,
designadamente da policia política. Reuniu figuras prestigiadas de democratas
11
Pouco depois, no ano de 1982, reuniu-se em Roterdão o Tribunal Russell sobre o
Congo, para julgar os crimes praticados durante o regime do ditador Mobutu Sese
Seko
e
tomou uma decisão final intitulada “Julgar a PIDE, condenar o fascismo”.
12
9
A expressão “genocídio” é um neologismo usado em primeiro lugar pelo jurista judeu polaco Raphael
Lemkin para descrever a perseguição sistemática do nazismo contra os judeus: ver elementos em
, presidente do Zaire. Aparentemente a designação “Tribunal Russell” era
assumida como uma “marca” utilizada em diferentes circunstâncias.
http://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10007043, consultado em 29/12/2014.
10
O estudo mais pormenorizado sobre o Tribunal Russell II está disponível num PDF on line em
academia.edu da autoria de Julien Louvrier:
http://www.academia.edu/166082/Le_Tribunal_Russell_II_pour_l_Amérique_latine_1973-
1976_Mobiliser_les_intellectuels_pour_sensibiliser_l_opinion_publique_internationale, consultado em
29/12/2014.
11
Ver análise disponível em http://www.esquerda.net/artigo/tribunal-c%C3%ADvico-humberto-delgado-
uma-experi%C3%AAncia-breve-1977-1978/28229, consultado em 28/12/2014. A sentença completa
pode ver-se em http://ephemerajpp.com/2014/01/11/tribunal-civico-humberto-delgado/, consultado no
mesmo dia.
12
Ver breve indicação em http://fr.wikipedia.org/wiki/Tribunal_Russell_sur_le_Congo, consultado em
29/12/2014.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
41
Entretanto em 1993 foi criado o IPT Indian Independent People’s Tribunal também
designado Indian People's Tribunal on Environment and Human Rights
13
Já no ano 2000 realiza-se em Tóquio o Tribunal de opinião (em japonês designa-se
minshû hôtei, isto é, tribunal popular) sobre as “mulheres de conforto”
, situado na
tradição dos movimentos de base que atravessam a sociedade indiana, centrado nas
questões dos direitos humanos e particularmente na justiça ambiental.
14
Há também referência à sessão efectuada em Berlim em 2001 do Tribunal sobre os
Direitos Humanos na Psiquiatria
utilizadas em
bordeis militares: por iniciativa do Violence against Women in War Network, tratava-se
de julgar responsabilidades relativas ao rapto e deportação em massa de mulheres
para disponibilizarem favores sexuais aos soldados japoneses nos territórios ocupados
pelo expansionismo nipónico nos anos 1930-40, questão de há muito conhecida mas
sempre silenciada, apesar de ter afectado mulheres da Coreia, de Taiwan, da
Indonésia, de Timor Leste, da China e do Vietname.
15
Desde os anos 1998-2000 até à actualidade tem sido muito activo o Tribunal Latino-
americano da Água, também articulado com o designado Tribunal Centro-americano da
Água, com iniciativas muito diversas em certo número de países da região, em torno
das questões da contaminação e dos recursos hídricos. Reporta-se a sessões de 1983,
em Roterdão, acerca da contaminação da bacia hidrográfica do Reno, bem como de
1992, em Amesterdão, sobre os crimes ecológicos em vários continentes, e ainda ao
Tribunal Nacional da Água em Florianópolis, Brasil, em 1993, sobre a contaminação
mineira e os produtos agrotóxicos
, igualmente referenciado ao Tribunal Russell, com a
particularidade de ter concluído os seus trabalhos com um duplo veredicto: um
maioritário que considera haver sérios abusos dos direitos humanos na prática
psiquiátrica, outro minoritário limitando-se a alertar para possíveis desvios na mesma
prática.
16
A intervenção militar ocidental no Iraque foi um dos acontecimentos que suscitou mais
iniciativas do tipo tribunal de opinião. Foi assim criado um Tribunal Mundial sobre o
Iraque
. Defendendo a democratização da justiça
ambiental, estes documentos latino-americanos usam a expressão “tribunal ético”
(para assinalar a sua natureza) e a categoria de “ecocídio” (para caracterizar os crimes
ambientais).
17
13
O site respectivo tem este endereço:
a partir de 2003 em Bruxelas, por isso também designado Tribunal de
Bruxelas ou Tribunal BRussells (jogando com a proximidade fonética de Bruxelas com
Russell), confirmando que o Tribunal Russell continua a ser a referência fundamental.
Realizou sessões em Bruxelas e Istambul, em 2004 e 2005, tendo analisado o Project
for a New American Century dos neo-conservadores norte-americanos e a consequente
agressão ao Iraque. Uma sessão em Lisboa, também em 2005, contou com a
http://www.iptindia.org, consultado em 29/12/2014.
14
Ver Rumiko Nishino, "Le tribunal d’opinion de Tôkyô pour les «femmes de réconfort»", Droit et cultures
[on line], 58 | 2009-2, disponibilizado em 1/10/2009, consultado a 29/12/2014. URL :
http://droitcultures.revues.org/2079.
15
Ver Ian Parker, “Russell Tribunal on Human Rights in Psychiatry & “Geist Gegen Genes”, PINS (Psychology
in society), 2001, 27, 120-122 30 June-2 July 2001, Berlin, disponível em
http://www.pins.org.za/pins27/pins27_article12_Parker.pdf , consultado em 29/12/2014. Ver também
http://www.freedom-of-thought.de/rt/accusation.htm, consultado no mesmo dia.
16
Ver http://tragua.com, consultado em 29/12/2014, bem como
http://www2.inecc.gob.mx/publicaciones/libros/363/cap18.html, consultado no mesmo dia.
17
Ver o seu site http://www.brusselstribunal.org, consultado em 30/12/2014.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
42
colaboração de diversos juristas portugueses
18
Desde 2007 está activa na Malásia uma comissão para averiguar crimes de guerra,
designada Kuala Lumpur War Crimes Commission (KLWCT), também conhecida como
Kuala Lumpur War Crimes Tribunal, que se apresenta como alternativa ao Tribunal
Penal Internacional, reputado ineficaz
. Posteriormente o Tribunal Mundial
sobre o Iraque passou a ser um fórum permanente, evoluindo para uma rede
internacional de “académicos, intelectuais e activistas”.
19
Por sua vez, de novo em Bruxelas teve lugar em 2008 o Tribunal de opinião sobre a
detenção de crianças estrangeiras em centros fechados
. Preside o ex-primeiro ministro da Malásia,
Mahathir Mohamad; condenou em 2011 a intervenção no Iraque responsabilizando
pessoalmente o presidente Bush e o primeiro-ministro Blair e, em 2013, o genocídio do
povo palestiniano pelo Estado israelita.
20
Apesar da distância no tempo em relação aos acontecimentos, em 2009 reuniu em
Paris o Tribunal de opinião sobre a utilização do “herbicida laranja”
. Por iniciativa da
Coordenadora das ONG’s para os Direitos da Criança, na Bélgica, o veredicto condenou
simbolicamente o Estado belga por desrespeito das convenções internacionais
pertinentes.
21
Um dos mais representativos tribunais de opinião é porventura o Tribunal Russell sobre
a Palestina
(ou “agente
laranja”), nome por que é conhecido um potente desfolhante químico, composto pela
mistura de dois fortes herbicidas, utilizado pelos norte-americanos na guerra do
Vietname, cujos impactos ainda se fazem sentir. Enquanto arma química de efeitos
devastadores, este desfolhante está proibido pelas convenções internacionais. A
sentença do tribunal condena não apenas o governo norte-americano, como também as
firmas produtoras do herbicida, nomeadamente a Monsanto e a Dow Chemical.
22
Complementarmente foi noticiada a realização em Veneza, em Setembro de 2014, de
uma sessão do Tribunal “informal”, de natureza pouco explícita e mesmo duvidosa, que
também se reivindica da tradição de Bertrand Russell, sobre a situação na Ucrânia
, com sessões desde 2010 até 2013 em Barcelona, Londres, Cidade do
Cabo e Nova Iorque e mais recentemente uma sessão extraordinária (Setembro de
2014), em Bruxelas, sobre as violações do direito internacional por Israel na Faixa de
Gaza. Em regra, porém, o objectivo não é tanto o de condenar Israel (as violações
israelitas do direito internacional são por demais conhecidas), mas antes mostrar as
responsabilidades das instâncias que apoiam objectivamente Israel nas suas violações
do direito internacional. Qualifica a situação em Israel como análoga à do regime sul-
africano de apartheid e introduz a categoria de “sociocídio” para caracterizar o atentado
à identidade palestiniana.
23
18
Documentação disponível em
,
concluindo pela condenação do presidente norte-americano Obama, bem como do
http://tribunaliraque.info/pagina/ap_tmi/o_que_e.html, consultado em
30/12/2014.
19
Ver o site respectivo em http://criminalisewar.org, consultado em 30/12/2014.
20
Referência em http://www.lacode.be/tribunal-d-opinion-sur-la.html, consultado a 29/12/2014.
21
Sobre o Tribunal ver http://www.mondialisation.ca/agent-orange-le-tribunal-international-d-opinion-de-
paris-condamne-les-tats-unis-et-les-firmes-tasuniennes/13667?print=1, consultado em 29/12/2014. Mais
informação em
http://www.history.com/topics/vietnam-war/agent-orange, consultado no mesmo dia.
22
Bastante informação disponível em http://www.russelltribunalonpalestine.com/en/, consultado em
29/12/2014.
23
Notícia em http://rt.com/news/187584-russell-tribunal-obama-ukraine/ consultado em 29/12/2014.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
43
presidente ucraniano Poroshenko, da NATO e da Comissão Europeia, acusados de
crimes de guerra praticados no Leste do pais.
Além desta sequência de iniciativas efectivamente realizadas, têm sido noticiados
diversos apelos à constituição de tribunais de opinião, segundo o modelo Russell, em
torno de certa variedade de questões. Por exemplo, em Paris, no ano de 2010, é feito o
apelo para um tribunal mundial de opinião sobre o clima e a biodiversidade
24
, com base
na frustração das grandes conferências internacionais sobre o tema. No ano seguinte, é
tornada pública uma petição cujos signatários reclamam um tribunal de opinião que
julgue os crimes nucleares
25
Tóquio, Kuala Lumpur, Bruxelas, Roma, Paris, Florianópolis, Roterdão, Amesterdão,
Lisboa, Veneza, Cidade do Cabo, Nova Iorque, Londres, Estocolmo, Roskilde, Frankfurt,
Berlim, Istambul, Nova Deli, São José da Costa Rica, Haia cidades de três continentes
a manifestar a dispersão geográfica e cultural de eventos que os seus organizadores
designam de muitas formas como tribunais, tribunais de opinião, tribunais de cidadãos,
tribunais internacionais, tribunais éticos, tribunais de consciência
, privilegiando neste caso o nuclear civil, a partir das
tragédias de Tchernobyl e Fukushima.
26
... Para além da sua
dispersão geográfica e da variedade de designações, porém, algumas notas comuns os
caracterizam: são iniciativas da sociedade civil; são processos participados envolvendo
intelectuais e activistas; fundamentam-se tecnicamente em normas vigentes provindas
da comunidade das nações; procuram compensar insuficiências do direito internacional
ou da sua aplicação; denunciam e condenam os mais graves crimes contra seres
humanos e contra povos; têm genericamente uma evidente carga ideológica de pendor
anti-imperialista e anti-colonialista; são portadores de causas de intenção
emancipadora; utilizam analogias com os procedimentos judiciais para encenar as suas
conclusões; visam sensibilizar as opiniões públicas e através delas os poderes
estabelecidos.
O Tribunal Permanente dos Povos (1979-2014)
No contexto antes referido tem especial relevo o Tribunal Permanente dos Povos (TPP).
Em traços gerais, recapitulemos as suas principais coordenadas. Lelio Basso, senador
da esquerda independente italiana, homem de invulgar estatura politica, tinha
integrado, como vimos, o júri do Tribunal Russell I e foi a alma do Tribunal Russell II.
Falecido em 1978, deixa incompleto um projecto envolvendo três instituições: a
Fundação Lelio Basso, a Liga Internacional para os Direitos e a Libertação dos Povos e o
Tribunal Permanente dos Povos. A Fundação ainda hoje existe com sede em Roma; a
Liga, criada em 1976, foi um movimento social alargado com acção meritória mas nos
últimos anos do século XX os seus membros dispersaram-se por diversas outras
causas; o Tribunal já após a morte de Basso só foi constituído em 1979, na cidade
24
Ver notícia em http://www.lemonde.fr/idees/article/2010/10/27/pour-un-tribunal-mondial-d-opinion-
pour-le-climat-et-la-biodiversite_1431693_3232.html, consultado em 30/12/2014.
25
Como se pode ver em http://www.rene-balme.org/24h00/spip.php?article1358, consultado em
30/12/2014.
26
Muito distintos destes casos são os chamados “tribunais populares”, promotores de sentenças sumárias e
por vezes de execuções sumárias em resultado de verdadeira perversão da justiça, como os que foram
montados pelas Brigadas Vermelhas em Itália, por exemplo na condenação de Aldo Moro, ou que foram
promovidos mesmo por governos em períodos de instabilidade, como aconteceu em Angola (ver
http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04308.001.017, consultado em 27/1/2015).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
44
de Bolonha, tendo como primeiro presidente François Rigaux, eminente jurista belga,
professor da Universidade Católica de Lovaina
27
Este conjunto de instituições referenciava-se a uma espécie de “magna carta”: a
Declaração Universal dos Direitos do Povos
e como secretário geral Gianni
Tognoni, médico de Milão, profissionalmente ligado às políticas de saúde.
28
Recordado brevemente o enquadramento circunstancial e o ambiente ideológico que
levaram à criação do Tribunal Permanente dos Povos TPP vejamos agora a sua
caracterização.
, proclamada por Lelio Basso em Argel, em
4 de Julho de 1976, dia simbólico em que se completavam 200 anos da independência
dos Estados Unidos. A Declaração de Argel, documento ancorado em valores que na
época emergiam, caracterizava-se por alguns traços fundamentais: considerava os
povos como sujeitos colectivos de direitos, em linha com as próprias abordagens das
Nações Unidas, complementando assim a visão corrente acerca dos direitos humanos;
abordava um novo tipo de direitos recentemente reconhecidos, ditos de “terceira
geração” (para além dos direitos cívico-políticos e económico-sociais), tais como o
direito dos povos à existência, à identidade cultural, à autodeterminação política e
económica, o direito ao progresso científico enquanto património comum da
humanidade, o direito à protecção ambiental e ao acesso aos recursos comuns do
planeta e os direitos das minorias. Além disso, o espírito da Declaração situava-se
plenamente em sintonia com o tema da reivindicação de uma “nova ordem política e
económica internacional”, então insistentemente presente no discurso político dos
deres do Terceiro Mundo e da esquerda europeia, aliás assumido pelas instituições
multilaterais.
Antes de mais, é um tribunal permanente. A generalidade das outras experiência
congéneres traduzia-se como se viu na iniciativa de tribunais de opinião dirigidos a
problemas específicos e a casos particulares, geograficamente delimitados e de
natureza circunscrita. Ao contrário, o TPP existe desde há 35 anos (de 1979 a 2014),
prolongando-se duradouramente no tempo e acolhendo um número muito grande de
situações, aberto como está à variedade de processos que lhe são propostos. Daí a
pertinência de se considerar “permanente”, por trabalhar no tempo longo e por ter uma
constante disponibilidade para atender o clamor dos que sofrem violações de direitos
fundamentais.
Em segundo lugar é um tribunal internacional, a muitos títulos: a) pela sua
composição (basta ver que os membros do júri são personalidades vindas de 29 países
diferentes); b) pelos seus temas que tocam múltiplas questões sensíveis da política
mundial e abordam casos que mesmo quando são locais têm impacto para além
das fronteiras; c) pela constante referência ao direito internacional, bem como aos
direitos humanos e dos povos, portadores de valores universais; e d) pela sua ambição
de influenciar a opinião pública internacional, os centros de decisão globais e as
instâncias da comunidade das nações.
Em terceiro lugar, é um tribunal dos povos (independentemente da conhecida
ambiguidade do termo "povo"). Lelio Basso teria recusado a possível designação de
27
François Rigaux faleceu em Dezembro de 2013; já lhe tinha sucedido como presidente do TPP Salvatore
Senese e mais tarde Franco Ippolito, juristas italianos.
28
Texto integral disponível em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=214, consultado em
30/12/2014.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
45
“tribunal de cidadãos”, por suposta conotação "burguesa", preferindo "tribunal dos
povos" (Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. 2002: 164). Pode dizer-se que o sujeito de
direitos que o TPP privilegia é o sujeito colectivo, tal povo, tal comunidade humana, tal
sociedade no seu conjunto. É certo que os direitos humanos estão na primeira linha da
sua agenda mas, segundo o seu estatuto, “o Tribunal não é competente a pronunciar-
se sobre casos particulares de indivíduos singulares, salvo quando exista uma relação
com a violação do direito dos povos”
29
Em quarto lugar, o TPP tem um funcionamento análogo ao de um tribunal. Guiando-se
“pelos princípios de Nuremberga
. Isto em consonância com a Declaração de Argel
(Declaração Universal dos Direitos do Povos) e com a designação da Liga Internacional
para os Direitos e a Libertação dos Povos. Num contexto onde convencionalmente os
Estados são considerados únicos sujeitos do direito internacional, o TPP rompe com
essa concepção e afirma a prerrogativa de os povos serem, eles próprios, sujeitos de
direito internacional, de tal maneira que se podem assumir como interlocutores de
jurisdições internacionais.
30
Em quinto lugar, a composição do júri está também regulada estatutariamente,
obrigando à presença de sete membros para uma sentença válida. Os membros
actuais
, os seus Estatutos e sua prática estabelecem uma
série de procedimentos inspirados nos processos judiciais: recebida uma “queixa”, ela
pode ser arquivada (em caso de inconsistência) ou aceite para ser instruído o inquérito;
um processo largamente participado leva ao aprofundamento das situações, à
identificação das violações do direito internacional, ao inventário das testemunhas, à
audição de peritos, à elaboração de relatórios; as sessões públicas são presididas por
um júri; os acusados são convidados a comparecer e a apresentar a sua versão dos
factos (o que raramente acontece); o júri reúne à porta fechada e elabora uma
sentença definitiva da qual não há apelo; a sentença é tornada pública e enviada “às
Nações Unidas, aos organismos internacionais competentes, aos governos e à
imprensa”. Todo o fundamento para a decisão é baseado com rigor no direito
internacional vigente e o formalismo das sessões públicas reproduz o modelo de uma
audiência de tribunal. Mais à frente será debatida esta analogia com o processo
judiciário.
31
Por último, em sexto lugar, uma referência ao financiamento das actividades do TPP.
As funções correntes do secretariado contam com o apoio logístico e operacional da
Fundação Internacional Lelio Basso, enquanto os encargos com a realização das
sessões públicas são suportados por sponsors, públicos e privados, contactados para o
, cooptados pela estrutura central, são ao todo 71 e, como vimos, oriundos de
29 países diferentes e são chamados caso a caso para as sessões do TPP. Ao longo dos
35 anos de actividade, numerosas outras personalidades constituíram este corpo de
juízes, muitas delas de renome mundial. Predominam os juristas e os universitários, a
par de cientistas, escritores e artistas consagrados, governantes e ex-governantes,
membros com experiência de organismos internacionais, alguns prémios Nobel e
personalidades destacadas dos movimentos sociais.
29
Artigo 1º dos Estatutos do TPP, disponíveis em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=213,
consultado em 2/1/2015.
30
Ibidem. Os pontos seguintes reportam-se sempre a estes Estatutos.
31
A lista actual pode ser vista em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=215, consultado em
3/1/2015.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
46
efeito pelo próprio secretariado do Tribunal e pelas entidades interessadas na
apresentação do processo.
As sentenças do TPP
Ao longo de quatro dezenas de sessões, localizadas em muito diferentes cidades dos
vários continentes, foram apreciadas causas propostas ao Tribunal e as respectivas
sentenças constituem um acervo importante de documentação factual, jurídica e
política
32
. Na impossibilidade de analisar aqui os conteúdos de cada uma das sentenças
emanadas do TPP, pode ensaiar-se a sistematização das áreas temáticas acolhidas
33
Uma primeira área tem a ver com situações residuais de descolonizações mal
resolvidas, nos casos do Sara Ocidental, antiga colónia espanhola anexada por
Marrocos, da Eritreia, antiga colónia italiana anexada pela Etiópia, e Timor Leste, antiga
colónia portuguesa anexada pela Indonésia, em sessões ocorridas respectivamente em
Bruxelas (1979), Milão (1980) e Lisboa (1981). Tratava-se de típicas situações onde
estava em causa o princípio da autodeterminação dos povos, de acordo com as normas
da comunidade internacional, e os processos foram introduzidos pelos movimentos de
libertação reconhecidos como tais: a Frente Polisário, a Frente Popular de Libertação da
Eritreia e a FRETILIN. Em analogia com estes casos, foi julgada a situação de Porto Rico
(em Barcelona, 1989).
.
Uma outra série de sentenças prende-se com violações dos direitos de minorias,
um dos temas já referenciados na Declaração de Argel e nos estatutos do TPP. Foi
julgado o regime das Filipinas e a violação dos direitos do povo Bangsa-Moro (em
Antuérpia, 1980); uma outra sentença condenou o histórico genocídio dos Arménios
(em Paris, 1984); os direitos das comunidades indígenas da Amazónia brasileira foram
objecto de uma sessão (em Paris, 1990); de igual modo foram julgadas as violações
dos direitos do povo do Tibete (em Estrasburgo, 1992); enquanto os do povo Tamil do
Sri Lanka, mais tarde silenciado por acção militar, foram tema de duas sessões (em
Dublin, 2010, e Bremen 2013).
O TPP assumiu ainda processos relativos a regimes opressores dos seus próprios
povos, seja no quadro de ditaduras militares, seja pela sistemática negação do Estado
de Direito. Foi o caso da sessão que condenou a Junta militar da Argentina (em
Genebra, 1980); pouco depois foi julgado o carácter repressivo do regime de El
Salvador (na Cidade do México, 1981); no ano seguinte foi condenado o regime do
presidente Mobutu do Zaire (em Roterdão, 1982); logo depois houve o julgamento do
poder na Guatemala (em Madrid, 1983); o regime das Filipinas, que já havia sido
julgado na sessão a propósito do povo Bangsa-Moro, será objecto de nova sessão
condenatória (em Haia, 2007).
Algumas sessões do Tribunal foram especialmente centradas nas violações dos
direitos humanos em diversas sociedades, a começar pela América Latina (em
Bogotá, 1991), especificamente contra “a impunidade pelos crimes de lesa
32
As sentenças relativas aos anos 1979-1998 estão compiladas em livro na sua versão italiana em Tognoni,
Gianni (org) (1998). Para as restantes ver o site
http://www.internazionaleleliobasso.it/?cat=15,
consultado em 3/1/2015.
33
Uma sistematização diferente da aqui adoptada pode ser vista em Klinghoffer, A.J. e Klinghoffer, J.A.
2002: 165-181.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
47
humanidade”; as restrições ao direito de asilo na Europa foram igualmente julgadas
(em Berlim, 1994); o caso especial das violações dos direitos das crianças e dos
menores no mundo foi tratado num processo que se desdobrou em três cidades
(Trento, Macerata, Nápoles, 1995); o mesmo tema dos direitos das crianças e
adolescentes na sociedade brasileira foi objecto de julgamento (em São Paulo, 1999);
uma sessão (em Paris, 2004) foi dedicada à violação dos direitos humanos na Argélia
no período de 1992 a 2004.
Em diversas circunstâncias o TPP pronunciou-se acerca de situações de conflito
armado nos quais eram violados direitos fundamentais do povos. Em primeiro lugar, a
intervenção soviética no Afeganistão foi caracterizada como “agressão” que contrariava
as regras da comunidade internacional e a URSS foi assim condenada como potência
agressora (objecto de duas sessões, em Estocolmo, 1981, e Paris, 1982); de igual
modo, os crimes contra a humanidade praticados nos conflitos na ex-Jugoslávia foram
tratados em duas sessões do Tribunal (em Berna, 1995, e Barcelona, no mesmo ano);
já antes tinha havido um pronunciamento condenando as agreses militares norte-
americanas contra o regime sandinista da Nicarágua (em Bruxelas, 1984); um caso
histórico especial pode ser enquadrado nesta área: o da conquista da América e da
negação dos direitos dos povos ameríndios, analisado quinhentos anos depois da
chegada de Colombo a esse continente (em Pádua e Veneza, 1992); por último, na
previsão da iminência da agressão (“guerra preventiva”) contra o Iraque em 2003, o
TPP organizou uma sessão sobre “o direito internacional e as novas guerras” (em
Roma, 2012).
Um capítulo específico das sentenças do TPP é relativo a crimes ambientais de
peculiar gravidade, que representaram atentados de grande dimeno aos direitos
humanos à vida, à saúde e ao ambiente sustentável. Foram os casos do acidente da
indústria química da firma Union Carbide em Bophal, na Índia em 1984, resultante da
fuga de gás que provocou a morte a milhares de pessoas e consequências na saúde a
centenas de milhar (sessões sobre riscos industriais e direitos humanos em Bophal,
1992, e Londres, 1994); assim como do acidente nuclear de Tchernobyl ocorrido em
1986, julgado numa sessão dez anos mais tarde (em Viena, 1996).
Mais recentemente tem tido relevo na agenda do TPP a problemática das politicas
económicas dos organismos multilaterais e da acção das grandes empresas
multinacionais na medida em que afectam os direitos dos povos, indo assim ao
encontro de causas profundas da violência estrutural que atinge as nossas sociedades.
As políticas macro-económicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial
foram objecto de duas importantes sessões (em Berlim, 1988, e Madrid, 1994), com
um julgamento severo sobre as suas práticas; as empresas produtoras de vestuário
foram condenadas pelo desrespeito dos direitos dos trabalhadores, nomeadamente
através da subcontratação de empresas nos países mais pobres (em Bruxelas, 1998); a
empresa petrolífera Elf-Aquitaine foi julgada pelas suas actividades criminosas no
continente africano (em Paris, 1999); em geral, o papel das multinacionais foi tema de
uma sessão do TPP (em Warwick, 2000); o caso específico da violação dos direitos
humanos pelas multinacionais na Colômbia foi longamente julgado (de 2006 a 2008);
por sua vez, as práticas da União Europeia e das multinacionais no conjunto da América
Latina foram escrutinadas e condenadas (em Madrid, 2010) pela sua violação de
direitos frequentemente esquecidos, como o direito à terra, o direito à soberania
alimentar, o direito à saúde pública, o direito ao ambiente e assim por diante; as
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
48
empresas multinacionais do sector agro-químico foram objecto de um julgamento
próprio (em Bangalore, 2011); por último, uma série de audiências em diversas cidades
mexicanas culminou com uma sessão final na Cidade do México, em 2014, sobre
“comércio livre, violência, impunidade e direitos dos povos no México”.
Feita a caracterização do Tribunal Permanente dos Povos e vista a sistematização dos
seus conteúdos
34
, é o momento de se avançar para a análise das questões de fundo
suscitadas pelas observações anteriores, abordando os problemas da legitimidade e das
funções do TPP, bem como da sua relação com o direito internacional.
Qual a legitimidade do TPP?
Citámos atrás a expressão de De Gaulle: “qualquer justiça, no seu princípio como na
sua execução, pertence exclusivamente ao Estado”. A teoria clássica é bem clara a este
respeito, na medida em que considera a aplicação da justiça como função de soberania,
no quadro do Estado de Direito assente na célebre divisão de poderes, onde justamente
os poderes legislativo e judicial são pilares do Estado soberano, ficando excluída da sua
esfera qualquer autoridade não pública. A este título, a iniciativa do tribunal de opinião
estaria sumariamente privada de legitimidade. Com a agravante, segundo os seus
críticos, de encenar uma simulação de justiça, sem qualquer mandato para tal, ao
serviço de um combate político conduzido ao sabor de motivações ideológicas. O já
citado sociólogo Marcel Merle usa mesmo ásperas expressões críticas, denunciando o
“simulacro de justiça para efeitos de propaganda” (Merle, 1985: 85). A composição do
tribunal seriaum tanto elitista, ao invés de democrática, por comissões
autonomeadas, (…) seleccionadas mais pelas suas preferências ideológicas que pela
sua rectidão legal” (Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. 2002: 7). Ao politizar a
suposta aplicação do direito, o tribunal de opinião subverteria a própria ideia de justiça,
pois renunciaria ao princípio da imparcialidade como p-condição para a correcção do
pronunciamento. Nesse sentido, a “sentença” estaria inevitavelmente ferida pela
ausência de isenção e o processo mais não seria que a montagem de peças que
levassem à conclusão pretendida. O “acusado” estaria previamente “condenado” e a
audiência do “tribunal” seria um mero procedimento teatral com intuitos
propagandísticos.
Estas duras interrogações críticas devem ser tomadas a sério e, pela sua própria
veemência, questionam a prática dos tribunais de opinião. Se tomadas à letra e levadas
às últimas consequências, teriam como resultado desautorizar essas iniciativas,
retirando-lhes credibilidade e até mesmo respeitabilidade.
Em contrapartida, é possível uma reflexão acerca dos tribunais de opinião e em
particular do TPP que tenha em conta a sua verdadeira configuração e que reconsidere
as fontes da sua legitimação. Neste sentido poderá defender-se que a sua natureza é
“parajudicial” e que a sua legitimidade se funda, a um tempo, em imperativos de
34
O TPP interessou-se evidentemente por outros casos e outras causas que, de uma maneira ou outra, o
interpelavam, mas que não chegaram a ser objecto de nenhuma audiência. O problema dos curdos, por
muitos considerado como uma nação sem Estado, chegou a ser considerado mas o seu tratamento foi
bloqueado devido a circunstâncias que levaram à interrupção dos contactos. Da mesma maneira, a
questão dos direitos do povo da Palestina foi insistentemente suscitada, apesar das dificuldades
provocadas pelas divisões entre os nacionalistas palestinianos e, dramaticamente, pelo assassinato de
três do seus interlocutores de alto nível.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
49
consciência, na referência ao direito internacional vigente e na participação alargada de
testemunhos relativos ao estabelecimento dos factos onde se verificam violações
flagrantes dos direitos humanos e dos direitos dos povos. Vejamos por partes.
Antes de mais, a natureza “parajudicial”. Esta expressão é aqui usada por analogia com
um outro termo que entrou no vocabulário dos estudos de relações internacionais: a
“paradiplomacia”. Tradicionalmente a acção diplomática também é considerada função
de soberania e como tal da competência exclusiva dos Estados. Todavia, na
actualidade, mais e mais entidades distintas dos poderes centrais desenvolvem
iniciativas de relacionamento externo que se aproximam do conceito de diplomacia,
como é o caso de acções de projecção de interesses e de cooperação exercidas por
cidades, regiões, empresas, fundações, organizões não governamentais, associações
diversas... O conjunto destas actividades tem sido designado por alguns autores como
“paradiplomacia”
35
No caso do TPP os procedimentos foram acima descritos, justificando a analogia agora
invocada. Da acusação à sentença, passando pela instrução do inquérito, pela admissão
do contraditório, pela audição de testemunhas e de relatórios de peritos, pela
referência às normas jurídicas em vigor, estabelece-se uma semelhança com os
processos judiciais, dando com isso força simbólica e moral aos veredictos. Como se
viu, tudo isso se passa no entendimento de que a designação de “tribunal” é
meramente analógica, quase metafórica, tanto mais quanto se sabe que a deliberação
é desprovida de poder coercitivo. Numa palavra, situa-se no campo do “parajudicial”.
. No mesmo sentido, o carácter “parajudicial” pode porventura ser
atribuído a eventos que não pertencem à esfera dos poderes públicos mas que têm um
formalismo análogo ao dos tribunais oficiais e seguem procedimentos inspirados nos
das instâncias jurídicas tanto nacionais como internacionais. Como ficou
abundantemente sublinhado logo de início, numerosas iniciativas têm utilizado este
paradigma “parajudicial”, desde as comissões internacionais de inquérito até aos
tribunais de opinião.
Esta expressão “parajudicial” tem a vantagem de apontar implicitamente para uma
certa ambivalência presente no conceito de justiça. Justiça é, por um lado, a aplicação
da norma jurídica e nesse sentido se diz que os tribunais fazem justiça. Mas justiça
também é um valor ético e social, uma ambição de equidade nas relações entre os
humanos e nessa acepção a justiça é algo de programático em direcção ao futuro. Os
tribunais de opinião estão de algum modo na fronteira destes dois conceitos: de um
lado aproximam-se do procedimento jurídico e da referência à legislação codificada, do
outro tentam ser câmaras de eco da aspiração de justiça que atravessa positivamente
as sociedades.
Sendo esta a sua natureza específica, fica porém em aberto o problema da sua
legitimação. Sobre isso, é posvel afirmar que a legitimidade do TPP está assente no
direito democrático fundamental da liberdade de opinião e de expressão do
pensamento e se funda antes de mais no sobressalto das consciências. Face às
violações incontáveis de direitos dos povos, face à impunidade dos responsáveis, face à
omissão das instâncias jurisdicionais tanto nacionais como internacionais, é natural que
se faça ouvir, como um grito, a consciência dos que reagem com inconformismo a
essas situações. Digamos que a autoridade ética vem em socorro do incumprimento da
35
Veja-se por exemplo Miguel Santos Neves “Paradiplomacia, regiões do conhecimento e a consolidação do
‘soft power’” in JANUS.NET, e-journal of International Relations, Vol. 1, n.o 1 (Outono 2010), pp. 12-32.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
50
autoridade jurídica, visando reproduzir o seu quadro de actuação, como se situasse ao
“nível pós-convencional” (para usar a expressão divulgada por Lawrence Kohlberg
36
Semelhante legitimidade, porém, é reforçada por uma componente das sessões do TPP:
a iniciativa da sociedade civil e, mais ainda, a participação alargada de numerosas
instituições de base que colaboram no estabelecimento dos factos, no testemunho das
situações vividas, na denúncia das violações de direitos. Assim se organiza uma
comprovação factual que é antídoto contra qualquer tentação de arbitrariedade, ao
mesmo tempo que se assegura o enraizamento na realidade social, onde o clamor das
vítimas mais se faz ouvir.
),
no sentido de que o respeito pela norma é superiormente assumido e ultrapassado pela
apreeno de valores. Por alguma razão encontrámos pelo caminho expressões como
“tribunal ético” ou “tribunal de consciência”: elas traduzem este registo ambivalente
onde se cruzam o jurídico e o axiológico, à margem das “razões de Estado” ou das
conveniências das jurisdições internacionais.
Se tomarmos um exemplo entre muitos outros, a sentença do TPP relativa aos crimes
sociais e ambientais na Amazónia brasileira faz o inventário de nada menos que 26
organizações locais que estiveram na base da acusação e que sustentaram a
argumentação de todo o processo
37
O TPP beneficia ainda de um outro tipo de legitimidade que é alcançada, digamos, a
posteriori.
da sessão organizada em Paris, em 16 de Outubro
de 1990. Constrói-se assim uma espécie de legitimidade de exercício de cidadania,
oriunda de percepções colectivas, assentes em sentimentos partilhados e sobretudo
numa factualidade verificável, ao mesmo tempo que se dá voz aos que não têm voz. A
ligação aos movimentos sociais permite atribuir ao TPP uma qualidade de contrapoder
que se afirma, no âmbito dos princípios democráticos, face aos poderes estabelecidos,
o que também ajuda a legitimar as suas práticas, pois em qualquer sociedade é
saudável a existência de contrapoderes e a sua acção não deve ser considerada
abusiva, já que funcionam como factores de equilíbrio, justamente de contrapeso,
como precaução contra a patologia da “verdade oficial” ou do pensamento único.
O facto de, por via de regra, a generalidade das suas deliberações ser mais tarde
objecto de reconhecimento pela comunidade internacional pode significar uma espécie
de ratificação ela própria legitimadora. Basta ver processos dos quais o Tribunal se
ocupou, como por exemplo os do Sara Ocidental, da Eritreia e de Timor Leste, para
concluirmos que os direitos invocados vieram a ser amplamente confirmados. Esse
36
Ver Kohlberg, Lawrence (1981) Essays on Moral Development, I: The Philosophy of Moral Development:
Moral Stages and the Idea of Justice. San Francisco: Harper & Row.
37
Trata-se de: Centro dos Trabalhadores da Amazónia, Associação Brasileira de Reforma Agrária,
Associação dos Geógrafos Brasileiros, Instituto de Apoio Jurídico Popular, Instituto Vianei, Conselho
Indigenista Missionário, Comissão Pró-Índio, Campanha Nacional para a Defesa e o Desenvolvimento da
Amazónia, OIKOS, Salve a Amazónia, Fase (Nacional), Amigos da Terra (Rio Grande do Sul), IBASE
(Instituto Brasileiro de Análises Económicas e Sociais), Movimento Nacional de Defesa dos Direitos
Humanos, Sociedade Parense para a Defesa dos Direitos Humanos, UNI (União das Nações Indígenas),
CPT (Comissão Pastoral da Terra), Campanha Nacional pela Reforma Agrária, Campanha Nacional dos
Seringueiros, CEDI (Centro Ecuménico de Documentação e Informação), IAMA (Instituto de Antropologia
e Meio Ambiente), MAGUTA (Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões), NDI (Núcleo de
Direitos Indígenas), CTI (Centro de Trabalho Indigenista), INESC (Instituto de Estudos Sócio-económicos)
e CUT (Central Única dos Trabalhadores). In Tognoni (org) (1998) p.358.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
51
olhar retrospectivo lança uma nova luz sobre o conjunto das sentenças, atribuindo-lhes
pertinência, oportunidade e consistência tanto jurídica como política.
Por último, para a legitimação do TPP concorre certamente a imparcialidade das suas
decisões. Tanto condenou as agressões norte-americanas contra o regime sandinista da
Nicarágua, como a invasão do Afeganistão pelas tropas da URSS. Tanto condenou os
crimes sociais e ambientais de Bophal na Índia como os de Tchernobyl na Ucrânia
soviética. Contra a suspeita de facciosismo ideológico, a referência aos direitos dos
povos tornou-se garantia de isenção e, portanto, de credibilidade.
O TPP e o direito internacional
No quadro da perspectiva “parajudicial” acima referida, as deliberações do Tribunal
Permanente dos Povos reportam-se permanentemente, como é lógico, às normas
jurídicas adquiridas. Recorre assim à multiforme codificação das regras que
salvaguardam os direitos humanos e os direitos dos povos, e que regulam os papeis
dos agentes políticos e económicos internacionalizados, bem como as relações dos
membros da comunidade mundial. Fruto de sedimentação e maturação ao longo de
séculos, está disponível um acervo legislativo e contratual a que o TPP recorre atulo
de referência basilar.
Um exemplo é bem elucidativo: a deliberação relativa aos direitos sociais e ambientais
na Amazónia brasileira
38
Todavia, o TPP não se limita a reproduzir os processos das instâncias jurisdicionais
estabelecidas, mas tem, em relação a elas, uma função de substituição e de
complementaridade. De novo como exemplo, a decisão relativa aos crimes na ex-
Jugoslávia, na sessão em Berna no ano de 1995, declara explicitamente:
, processo apreciado em Outubro de 1990. A sentença então
proferida inventaria os documentos jurídicos em que se apoia, começando pela própria
Constituição brasileira e pela referência a mais de 40 normas da legislação nacional, às
quais se soma um total de 24 documentos do direito internacional: declarações,
convenções, pactos, resoluções e tratados internacionais pertinentes. Esta é uma regra
presente em todos os veredictos do TPP, a saber, o rigor da fundamentação no direito
positivo, emanado tanto das poderes legislativos nacionais como da comunidade
internacional ou contratualizado através de tratados entre Estados, assim como da
jurisprudência de outras instâncias.
Afirmando-se como herdeiro do Tribunal Internacional sobre os
crimes de guerra americanos no Vietname e do Tribunal Russell II
sobre a América Latina, o Tribunal Permanente dos Povos assume
para si mesmo uma função supletiva, devida à carência e à
inadequação dos actuais tribunais internacionais, e da
impossibilidade para os povos, os indivíduos e as várias ONG de
aceder a tais tribunais, exclusivamente habilitados a julgar a nível
38
Disponível em http://www.internazionaleleliobasso.it/wp-content/uploads/1990/10/Amazzonia-
brasiliana_TPP_it.pdf, consultado em13/1/2015.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
52
de conflitos entre Estados ou em seguimento a um mandato
estritamente regulamentado
39
.
Esta necessidade é particularmente sentida no domínio das políticas e das actividades
económicas, as quais estão fora da alçada das jurisdições internacionais, apesar da sua
relevância humana e social. Por tudo isso se pode afirmar que a prática do TPP tenta
preencher um vazio, exercendo uma função subsidiária: “Os tribunais de opinião
jogaram um papel relevante desde o fim da segunda Guerra Mundial na disputa para
iluminar os vazios históricos e geográficos da persistente selectividade do direito penal
internacional” (Feirstein, 2013: 118).
Uma outra característica diz respeito ao entendimento da função de julgar. Mais do que
punir, o que estaria fora de causa pela ausência de força de coerção, o TPP privilegia
não a função penal mas a sensibilização acerca da violação de direitos e pelo
reconhecimento do papel dos povos da capacidade das energias libertadoras. O
domínio jurídico parece assim reconduzido à sua vocação de origem:
Recupera-se o papel originário atribuído ao direito que, longe de
ser um instrumento de controlo, actua como instrumento de
libertação de todas as formas de dominação, exclusão, negação.
Também os ‘juízes’ deixam para trás o papel tradicional de
julgadores, superando a dimensão penal e punitiva do direito, para
se converterem em acompanhantes, cujo papel é o de guiar a
interpretação dos factos para a reconstrução da verdade que
legitima as denúncias e as resistências (Fraudatario e Tognoni,
2013: 5)
40
.
As iniciativas do TPP assumem assim o carácter de alerta avançado relativamente ao
esmagamento de direitos colectivos, visando colmatar lacunas e antecipar normas que
se venham a impor. O exercício de cidadania representa então um contributo para o
progresso do próprio direito positivo, à maneira de um “reservatório de ideias” (Merle,
1985: 58), que se constitui como grupo de pressão com vista à melhoria do direito
internacional, na sua normatividade e nas suas aplicações. Encontramos deste modo
uma vio dinâmica do direito, como uma codificação sempre susceptível de inovação,
não apenas para corresponder às surpreendentes vicissitudes da nossa história, como
ainda para aperfeiçoar os seus mecanismos de humanização.
Curiosamente, a este respeito é elucidativa a leitura dos textos acerca do TPP da
autoria dos seus principais responsáveis, já referidos: o primeiro, François Rigaux, que
39
Ver em http://www.internazionaleleliobasso.it/wp-content/uploads/1995/02/ExYugoslavia_I_TPP_it.pdf,
consultado em 13/1/2015.
40
Veja-se também esta passagem: “Longe de se afirmar como um produtor de condenações, o propósito
real e a missão do TPP é o de dar às vítimas o reconhecimento e a legitimidade da sua verdade nunca
correspondente à oficial para que esta se torne um instrumento de luta e de reivindicação perante as
instâncias oficiais. Por outro lado, a legitimidade do Tribunal e das suas sentenças, das suas verdades e
da sua memória depende do reconhecimento a posteriori daquelas mesmas verdades reconstruídas pelas
vítimas, o que faz do TPP um instrumento de antecipação de verdades, minimizando de facto qualquer
argumentação sobre a sua impotência.” in Fraudatario e Tognoni (2011: 3).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
53
foi seu presidente durante longos anos, o segundo, Gianni Tognoni, desde sempre seu
secretário-geral. Mais do que quaisquer outros, foram eles a teorizar sobre o TPP e a
explicitar as visões que têm sobre o mesmo. Nos seus escritos transparecem duas
atmosferas diferentes face à mesma realidade, com pontos de vista complementares
sobre a própria identidade do TPP. Rigaux é essencialmente um jurista e portanto o seu
registo é o da referência ao imperativo da lei:
O tribunal permanente dos povos não é um tribunal popular, mas
um tribunal de opinião. A sua única força está na própria
racionalidade: recolher os factos, escutar testemunhas, solicitar
esclarecimentos aos relatores, para depois verificar se os factos
que dá como estabelecidos são contrários a alguma regra do
direito. (…) O fundamento objectivo da actividade do Tribunal
Permanente dos Povos pode ser deduzido do dinamismo inerente à
regra do direito. (Rigaux, 2012: 168-169).
Aqui a insistência é posta na racionalidade do procedimento jurídico e do fundamento
legal das suas deliberações. A fonte de autoridade dos pronunciamentos do TPP está
basicamente na conformidade à ordem jurídica internacional. O pensamento de Gianni
Tognoni, por sua vez, não é certamente distante deste, mas acentua uma versatilidade
e uma criatividade que propiciam outra abordagem intelectual. As suas expressões o
significativas desse outro registo. Para ele o TPP é um “exercício de pesquisa”, que
envolve “escolher a inteligência face ao poder, ter como encargo buscar as raízes das
coisas e do seu potencial de futuro mais que os equilíbrios da gestão do presente”,
como “um exercício de escuta e de observação sem fronteiras, por respeito aos
portadores de necessidades e aos que procuram o sentido libertador”, prosseguindo
uma “lógica de pesquisa partilhada” (Tognoni, 1998: I). Noutro texto, escrito com
Simona Fraudatario referem que a documentação emanada do TPP é como uma
“agenda de trabalho” e que a sua prática configura sobretudo uma “ferramenta
permanente de exploração-experimentação” (Fraudatario e Tognoni, 2013: 2). E ao
descreverem a concepção de fundo acerca do projecto do tribunal, acrescentam:
Experimentar práticas e linguagens de restituição estrutural do
papel de protagonistas activos às vítimas de violações, as quais
foram causadas pela invisibilidade, o não reconhecimento, a
impunidade por parte do direito internacional vigente (…). A sua
missão mais profunda consiste na busca continuada de
instrumentos de observação e interpretação do real com um olhar
comparativo e crítico dirigido à capacidade do direito de
prevenção, protecção e garantia de existência dos povos, das
vítimas, dos ofendidos (Fraudatario e Tognoni, 2013: 2 e 4).
Pesquisa, observação, experimentação: palavras que manifestam uma visão
“laboratorial” da relação entre o TPP e o direito. A vitalidade das comunidades, a
imprevisibilidade da história, a complexidade dos processos colectivos, o
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
54
aprofundamento da consciência acerca dos valores em causa, obrigam a inovação
jurídica. Esta concepção “experimentalista” do direito internacional parece
especialmente interessante: a codificação das normas de conduta não é um processo
estático e acabado, mas antes um processo aberto, em busca de novas soluções, em
referência às dinâmicas sociais e às crescentes exigências éticas percepcionadas pelos
povos. Digamos que é uma perspectiva construtivista do direito, entendido como algo
in fieri, justamente em construção. A normatividade jurídica surge assim como um
dispositivo de progresso e de humanização. Os tribunais de opinião e em particular o
Tribunal Permanente dos Povos, oriundos da iniciativa privada, da cidadania, da
sociedade civil, ligados aos movimentos sociais de base, exercem porventura a
responsabilidade partilhada de contribuírem para evitar a impunidade dos crimes
cometidos e favorecer uma aplicação do direito, não tanto como norma opressiva, mas
antes como matriz libertadora.
Referências bibliográficas
AAVV (1989). Tribunal Permanente de los Pueblos. Processo a la impunidad de
crimenes de lesa humanidad, Bogotá Colombia, Noviembre 4-5-6 1989.
AAVV (2000) Lelio Basso e le culture dei diritti, Fondazione Internazionale Lelio Basso.
Roma: Carocci Editore.
Feirstein, Daniel “Los nuevos desafios del Tribunal Permanente de los Pueblos en el
siglo XXI: las luchas por la hegemonia en la creación del derecho penal internacional”
intervenção (ainda não editada) no Expert Seminar on Peoples’ Tribunals and
International Law, organizado em Roma em Setembro de 2013 por inciativa do The
Australian Human Rights Center, Faculty of Law, University of New South Wales,
Sydney, Austrália.
Fraudatario, Simona e Tognoni, Gianni (2011). “La definición jurídica y substancial del
genocídio a la prueba del encontro entre el Tribunal Permanente de los Pueblos y las
víctimas” in Genocício, verdad, memoria, justicia, elaboración 9 Conferencia anual de
la International Association of Genocide Scholars, Buenos Aires, 19-23 de julio,
disponível em
http://www.genocidescholars.org/sites/default/files/document%09%5Bcurrent-
page%3A1%5D/documents/IAGS%202011%20Simona%20Fraudatario.pdf, consultado
em 29/1/2015.
Fraudatario, Simona e Tognoni, Gianni (2013). “La participación de los pueblos en la
formulación del derecho internacional. El laboratório del Tribunal Permanente de los
Pueblos” documento ainda não editado, disponível policopiado.
Jouve, Edmond (1981). «Du tribunal de Nuremberg au Tribunal permanent des
peuples». In Politique étrangère, 3 - 1981 - 46e année pp. 669-675. doi:
10.3406/polit.1981.3070
Klinghoffer, Arthur Jay e Klinghoffer, Judith Apter
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/polit_0032-
342X_1981_num_46_3_3070, consultado em 29/12/2014.
(2002). International Citizens'
Tribunals: Mobilizing Public Opinion to Advance Human Rights, New York: Palgrave
Macmillan.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 33-55
Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
55
ISBN 10:0312293879 / ISBN 13:9780312293871
Merle, Marcel (1985). Forces et enjeux dans les relations internationales, Paris:
Economica, 2.e édition.
Rigaux, François (2000). "Lelio Basso e i tribunali di opinione" in AAVV (2000). Lelio
Basso e le culture dei diritti, Fondazione Internazionale Lelio Basso. Roma: Carocci
Editore.
Rigaux, François (2012). I diritti dei popoli e la Carta di Algeri, Torino: Edizioni Gruppo
Abele.
Tognoni, Gianni (org) (1998). "Alle radici del Progetto TPP". Tribunale Permanente dei
popoli. Le sentenze: 1979-1998, Fondazione Internazionale Lelio Basso, Lecco: Casa
Editrice Stefanoni.
Tognoni, Gianni (2008). "La storia del Tribunale Permanente dei Popoli. Premesse e
metodologia" in Bimbi, L. et Tognoni, G. (org) Speranze e inquietudini di ieri e di oggi. I
trent’anni della Dichiarazione Universale del Diritto dei Popoli, Roma: Epup.