OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 21-32
OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS COMO ILUSTRAÇÃO
DA AUSÊNCIA DE ANARQUIA INTERNACIONAL
António Horta Fernandes
ahf@fcsh.unl.pt
Docente do Departamento de Estudos Polítcos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(FCSH), Investigador do Centro de Histótia d'Aquém e d'Além-Mar (CHAM/FCSH) da Universidade
Nova de Lisboa. Estrategista da Escola Estratégica Portuguesa.
Resumo
A Grande Guerra, as décadas conturbadas que se lhe seguem, nomeadamente a década de
trinta do século XX, culminando na Segunda Guerra Mundial, e, posteriormente, a Guerra
Fria, a seu modo, são momentos históricos privilegiados para se comprovar da
impossibilidade de sustentar uma das imagens mais famosas das Relações Internacionais, a
de anarquia internacional. A ideia de um estado de guerra ontologicamente permanente,
que não fenomenologicamente, é incompatível com um mundo pejado de soberanias. Ora,
estas soberanias nunca perderam o controlo político-estratégico das guerras, nem mesmo
no caso dos principais conflitos do século XX. Todos esses conflitos foram estrategicamente
mediados e nunca deram lugar ao reinado da guerra absoluta.
Palavras chave:
Anarquia; Guerra, Estratégia; Soberania
Como citar este artigo
Fernandes, António Horta (2015). "Os dois conflitos mundiais como ilustração da ausência
de anarquia internacional". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1,
Maio-Outubro 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art2
Artigo recebido em 18 de Julho de 2014 e aceite para publicação em 16 de Abril de
2015
JANUS.NET, e-journal of International Relations
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Os dois conflitos mundiais como ilustração da ausência de anarquia internacional
António Horta Fernandes
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OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS COMO ILUSTRAÇÃO
DA AUSÊNCIA DE ANARQUIA INTERNACIONAL
António Horta Fernandes
A Grande Guerra, as décadas conturbadas que se lhe seguem, nomeadamente a
década de trinta do século XX, culminando na Segunda Guerra Mundial, e
posteriormente a Guerra Fria, a seu modo, são momentos históricos privilegiados para
se comprovar a impossibilidade de sustentar uma das imagens mais famosas das
Relações Internacionais. Referimo-nos à ideia de anarquia internacional.
Naturalmente é mister colocar de antemão os termos da questão. Obviamente que não
nos iremos debruçar aqui, num espaço tão curto, sobre todas as nuances acerca dos
conceitos de guerra e de anarquia internacional, nem escorar ponto a ponto as
justificações para a apresentação definitória dos conceitos que fazemos. As respectivas
definições servem apenas para moldar o discurso, para que o leitor saiba do que
estamos a falar quando argumentamos em torno da guerra e da anarquia internacional.
1. Guerra e Soberania: a normalização soberana da guerra e a guerra
absoluta
Assim, abrindo com o conceito de guerra, o mesmo pode ser definido como “violência
(enquanto luta, duelo em escala) entre grupos políticos (ou grupos com objectivos
político-sacrais), em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma
possibilidade potencial, visando um determinado fim nos limites (de preferência
exteriores) da política (ou fins políticos em grande parte, mas não na totalidade, a
partir da modernidade), dirigida contra as fontes do poder adversário e desenrolando-
se segundo um jogo contínuo de probabilidades e acasos”
1
Naturalmente que aqui os parênteses são fundamentais, pois a internalização de jure
da guerra na acção política, na constituição do próprio ser da política, é algo que se vai
firmando apenas na Idade Moderna, e paulatinamente, por intermédio de uma força
todo-poderosa que irá adquirir meios para isso, a saber: a soberania. Deve-se ao
soberano, esse poder absoluto, perpétuo e indivisível, definido pela excepção, pela
faculdade de proclamar o estado de excepção, a normalização da guerra.
.
1
Para quem está familiarizado com os meios da estratégia, terá verificado que a presente definição é
inspirada naquela outra de Abel Cabral Couto. A definição do estrategista português foi originalmente
publicada por este em (Couto, 1989: 148), que a apresenta da seguinte forma: “violência organizada
entre grupos políticos, em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma possibilidade
potencial, visando um determinado fim político, dirigida contra as fontes do poder adversário e
desenrolando-se segundo um jogo contínuo de probabilidades e acasos”.
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Entendendo-se por normalização da guerra a dessacralização, a secularização operada
pelo soberano nessa força até aí mitificada, sacralizada de forma distópica e posta fora
do comércio normal dos homens. Aquilo que o soberano faz é concatenar os mundos da
paz e da guerra apartados até à modernidade, encaixar ordem e desordem uma na
outra num novo estado, que exprime a possibilidade, a eventualidade ontológica e
fenomenológica da guerra permanente, porque doravante a guerra é considerada como
acção política ordinária. Um estado que, à falta de melhor designação, se poderia
denominar um estado de paz mediante condicionalidades soberanas.
Como está bom de ver, é essencial ao soberano, ou se quisermos concretizar, aos
vários soberanos da cena internacional, uma quota-parte de controlo última de que não
podem abdicar, porquanto alguém só se pode ser suserano daquilo que não se lhe
escapa. É que o estado de excepção não é o caos que precede a ordem ou sucede ao
seu fim, mas aquele onde a ordem vigora sob a forma (peculiar) de suspensão dos
comandos legais propriamente ditos, onde a informulabilidade da lei, e a dificuldade em
saber se estamos a observar ou a transgredir, a norma é máxima; um estado em que
se está completamente dependente da discricionariedade do soberano, ou dos
mecanismos soberano-governamentais, que não da sua arbitrariedade, em sentido
próprio, já que isso remeteria para o anárquico, na qualidade de puro desordenado
2
Acontece que se a guerra é, em parte, um estado de excepção, em que se pode matar
sem que tal seja considerado homidio, é igualmente uma excepção que excede esse
mesmo estado de excepção, por assim dizer. Não podemos esquecer que o valor de
utilidade marginal, aquele núcleo que estabelece o “preço”, o sentido ou des-sentido
último da guerra enquanto fenómeno com consistência interna, autónoma, quer dizer,
com a sua própria gramática, é aquilo que Clausewitz designou por guerra absoluta.
Isto é, o cerne irredento da guerra, a caótica abissal, o cilindro estanque da pura
vioncia, o núcleo mais íntimo do conflito bélico, que emborao perfazendo todas as
manifestações de guerra, está presente e municia cada uma das guerras que
deflagram, promovendo sempre a ascensão aos extremos, porque o que é próprio do
extremo é extremar-se, materializar-se por completo. Significa isto que uma guerra
alimentada no essencial pelas suas próprias fontes perfaz um estado politicamente
incontrolável, até para um poder soberano. Dito de outro modo: tendo a guerra sua
própria gramática, a sua própria consistência interna, ou para di-lo com maior
propriedade, o seu próprio motor de corrosão, de dissimetrias abismais, de
desagregação, há nela um núcleo que nunca se rende, nem à mão-de-ferro do
soberano. Infelizmente, é esse núcleo que lhe dá vida, que abala todos os alicerces da
normalidade, inclusive dessa temível “normalidade” em forma de suspensão
característica da lógica soberana. Por mais que seja controlada, a guerra comporta em
si esse caos que constantemente elide a ordem e se desenfia, inclusive da
discricionariedade soberana. Deixá-lo à solta é arriscar a perdição, e é verdade que a
lógica soberana criou condições, mais que nenhum outro aparato político, para que a
guerra se aproximasse da ascensão aos extremos, como bem viu Clausewitz
.
3
2
Acerca das características do estado de excepção, tal como as apresentamos, somos devedores de
Agamben (Agamben, 2006: 105-106).
.
3
(Clausewitz, 1986: livro VIII, cap.IIIB, 593 e livro VIII, cap.VIB, 606), respectivamente, para a
constatação de que no período napoleónico a guerra se aproxima da ascensão aos extremos, da sua
forma absoluta conspicuamente libertada, mediante actos soberanos, e para a ideia de que uma política
poderosa, e a política soberana é-o, Clausewitz está consciente disso, pode ajudar a libertar a guerra
absoluta dos freios fenoménicos que geralmente a aperram.
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2. Anarquia Internacional como Estado de Guerra: a impossibilidade da
guerra permanente num mundo pejado de soberanias
Importa agora debruçar-nos sobre o conceito de anarquia internacional, indo de
imediato à linha definidora que subjaz à estrutura do pensamento realista, aquela que
caucionou a imagem de anarquia internacional. Ora, a nosso ver, o mais consequente
dos pensadores realistas sobre o tema é Kenneth Waltz, porque é aquele que
verdadeiramente coloca o problema de forma franca, embora de maneira mais ou
menos tácita, em todos os outros internacionalistas de pender realista se possa
depreender o sentido que está claro na sua formulação:
among men as among states, anarchy, or the absence of
government, is asociated with occurrence of violence (Waltz,
1979: 102).
Quer eno dizer que o conceito de anarquia (no senso de desordem) pressupõe uma
unidade inextrincável com o conceito de guerra. Obviamente, não há sequer um único
internacionalista afim ao conceito de anarquia internacional a interpretar a anarquia
internacional como um permanente e generalizado estado fáctico de guerra ou de
desordem. A guerra não tem, na vida internacional corrente, um carácter de
necessidade fáctica. O conceito de anarquia internacional significa antes que, em última
análise, cada actor internacional não pode depender senão das suas capacidades
impositivas, do seu poder sem mais. Ou seja, mesmo não havendo guerra nem
desordem efectiva (fenomenologia), esta pende permanentemente sobre os actores,
mais que como possibilidade, como a razão de ser última (ontologia) do seu
comportamento. Daí poder afirmar-se ser a anarquia um estado de desordem
inapelavelmente ligado à violência bélica, o mesmo é dizer, que o sentido ou (des)-
sentido da violência fundamenta a política internacional, é o seu pano de fundo, a sua
seiva ontológica, a sua alma nutriz. Em suma, o estado de guerra é ontologicamente
patente e, por vezes, também fenomenologicamente efectivo.
A distinção é franca e Hobbes já percebera muito bem no Leviatã quando afirma que
“a guerra não consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas
naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar
batalha é suficientemente conhecida.[…] a natureza da guerra não
consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal,
durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o
tempo restante é de paz. Portanto, tudo aquilo que é válido para
um tempo de guerra, em que todo o homem é inimigo de todo o
homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual
os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser
oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Numa
tal situação não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é
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incerto,; consequentemente não há cultivo da terra, nem
navegação, nem uso de mercadorias[…]”,
e por aí fora, continua Hobbes. Curiosamente, argui pouco depois que, embora os
soberanos vivam em constante rivalidade, de armas assestadas, quais gladiadores
vigiando-se mutuamente, o que para ele constitui uma atitude de guerra, conclui, no
entanto, que
“como através disso protegem a indústria dos seus súbditos, daí
não vem como consequência aquela miséria que acompanha a
liberdade dos indivíduos isolados” (Hobbes, 2002: cap.XIII, 111-
112).
Aquilo para que Hobbes nos está a chamar a atenção é que a atitude dos soberanos
configura uma predisposição estrutural para a guerra, mas não mais do que isso (o que
já não é pouco, saliente-se), porque se fosse mais do que isso, nem sequer indústria
haveria para proteger, tudo se resumiria à indigência que acima o próprio descreveu.
Bastava somente a esta precisa argumentação de Hobbes para confutar qualquer
tentativa apressada de firmar no filósofo inglês a ideia de anarquia internacional.
Contudo, isso já são contas de outro rosário
4
Porém, se a anarquia internacional concerne a um estado endémico de violência bélica,
temos um verdadeiro problema de incompatibilidade de raiz para encarar. Um estado
de guerra estrutural relativo tanto à pré-compreensão como à compreensão ontológicas
dos actores políticos do seu próprio ser não é de todo compatível com a vigência do
modo de ser ordenador da soberania. O problema não está na passagem de hostis a
inimicus, porque o soberano franqueia com facilidade as portas. O grau qualitativo com
que os adversários se encaram não é a este propósito decisivo, porque os soberanos,
fruto da sua necessidade ordenadora, mesmo só brigando sob determinados eixos,
podem muito bem diabolizar o oponente, mesmo que essa escolha seja mais arriscada,
porquanto facilita (não implica necessariamente) a ascensão aos extremos e o possível
governo da guerra. O problema reside na extensão da desordem, ou na sua
“estabilização” nuclear, precisamente no governo da guerra como pano de fundo,
enquanto princípio ontológico que balize os comportamentos e na qualidade de
princípio epistemogico de explicação dos mesmos, pois isso sim seria a morte do
soberano, porque, por definição, o que se subtrai à ordem escapa à suserania do poder
absoluto de dar e quebrar a lei. O estado de guerra tornado regra liquidaria as
pretensões soberanas. Se o fundo operativo das relações internacionais fosse a guerra
a soberania nunca teria existido, e como a soberania existe e os racionais soberanos
ainda são dominantes, o estado de guerra não pode ser determinante. O lorde
protector de Hobbes não protegeria nada, o leviatã não seria tal, o que parece uma
contradição nos termos, já que é aos soberanos que se fica a dever essa predisposição
(normalizada) para a guerra, dado o enorme potencial de conflito gerado pela presença
contígua de poderes por natureza excludentes. Além do mais, não se trata somente da
.
4
A confutação da escora da ideia de anarquia internacional em Hobbes, bem como uma crítica radical aos
fundamentos do conceito de anarquia internacional pode ler-se em (Fernandes, 2012).
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consistência lógica do ser da soberania ser afectada radicalmente pelos abismos
entrópicos da guerra em si feitos motor da política internacional, mas da realidade
primeiríssima da sororidade, incontornável até para os soberanos, o ficar igualmente,
como se procurou mostrar noutro lugar (Fernandes, 2012: 93-97). Onde grassam os
soberanos a anarquia pura e simples não faz sentido, a guerra não é a palavra
primeira, apenas a sua possibilidade o é. Contudo, como estamos a falar do domínio
ontológico e não apenas fenomenológico, a diferença entre a eventualidade de ser e o
registo de ser é abissal.
Dito de outra forma, atendo à secularização da guerra de que já fizemos menção. Se a
guerra fosse fundo ontológico permanente, não apenas ninguém aguentaria um tal
estado de coisas por muito tempo, mas sobretudo seria remitificada, ressacralizada
como potência demoníaca, e, desse modo, posta fora do alcance do soberano, que é,
na melhor das hipóteses, um deus mortal, para parafrasear Hobbes referimo-nos à
figura da soberania e não só à condição mortal de cada homem que a encarna. Pior,
como a soberania já tinha destruído antes a dicotomia ontológica entre a paz e a
guerra, esta presença sacral, incontrolada, da guerra far-se-ia sentir agora muito mais
próxima da vida comum, e, por consequência, ainda menos manejável e monitorizável
pelo homem, com inclusão da máxima figura de poder que este entretanto criara, a
soberania, tão absoluta quanto o absoluto que é permitido ao homem alcançar nos
limites do pensável do seu ser criatural.
Com a modernidade a guerra passou a pender, por dentro, sobre a cabeça dos homens,
como permanente possibilidade, e por isso se tornou tão fácil acionar o mecanismo de
abertura da Caixa de Pandora. Mas não como permanente força de ser, passiva ou
activa, porque o ser em potência também é ser. Se a guerra fosse essa permanente
força de ser, implicaria revalorizar em alta a guerra absoluta, isto é, pôr a guerra a
ditar as regras, tornar a política a continuação da guerra por outros meios, o que, como
é sabido, nunca se verificou. Embora, na aparência, nada obste a que se possa vir a
verificar
5
Seja como for, basta haver soberania enraizada para a conjugação de um estado de
anarquia internacional com essa mesma soberania ser um oximoro. Quando se julgaria
precisamente o contrário: a dimica soberana teria catalisado a anarquia. Maior erro
de análise não existe, mas também não é este o lugar para buscar as razões do erro.
.
3. Política e Estratégia nas Duas Primeiras Guerras Mundiais: a
ausência de anarquia
Afinal, como servem as duas conflagrações mundiais de comprovação do nosso
argumento, quando aparentemente até nos deveríamos livrar delas como escolhos
pontuais?
Uma primeira resposta não é difícil. A guerra foi feita por soberanos e estes
continuaram a existir, logo não há lugar sustentado para anarquia no caso vertente
pouco importa a configuração concreta que a soberania foi tomando desde do dealbar
5
Em bom rigor, temos dúvidas face a certas prevenções antropológicas em fundo metafísico. Todavia, não
é este o lugar para as desenvolver.
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da Idade Moderna até hoje
6
O primeiro conflito mundial vê erguer-se com pujança um intermediário, de que ainda
não falámos, na divisão social do trabalho político, integrada que foi a guerra na
arquitectura da política: referimo-nos à estratégia.
. Todavia, poder-se-ia contrapor que durante a guerra
talvez os soberanos tivessem perdido o controlo e posteriormente o reganhassem.
Coisa estranha, dada a virulência das duas guerras e as alterações históricas ocorridas
por via delas. De qualquer maneira não seguiremos por essa senda, antes introduzindo
um elemento adicional.
Antes de continuar, e tal como para os conceitos de guerra e de anarquia internacional,
não desenvolveremos aqui os pressupostos justificatórios da definição de estratégia
que apresentaremos de seguida. Tomamos a liberdade de registar uma definição
branda, o mesmo é dizer, consensual e de acordo com os melhores cânones clássicos
da teoria da estratégia desde há 50 anos, no mundo continental, aquele onde a
disciplina tem sido cultivada sem as insuficiências que a caracterizam no mundo anglo-
sanico. Assim, podemos definir a estragia como a sabedoria prática desenvolvida
pelos actores políticos, com expressão colectiva, a fim de preparem e conduzirem a
conflitualidade hostil uns face aos outros.
Pois bem, retomando o evolver, quando se desencadeia a Grande Guerra, embora a
estratégia continue a ser, no essencial, estratégia militar (e irá continuar a sê-lo até ao
fim da Segunda Guerra Mundial)
7
6
Se atentarmos à importante obra de Christopher Clark sobre as origens da Grande Guerra, facilmente se
pode depreender que, embora nos anos imediatamente antecedentes à conflagração houvesse cada vez
mais vozes disponíveis para aceitar uma possível guerra, a concebê-la como uma certeza imposta pela
índole das relações internacionais, que poderia até ser terapêutica, (279-281), distava de ser geral a ideia
de que a cena internacional era no essencial e em si mesma uma arena. Era sim um terreiro de possível
confrontação, fruto do choque de interesses das soberanias e das lutas pelo poder em que estas se
implicavam (Clark, 2013: 237-239). O que obviamente aponta para as lógicas soberanas, no limite, para
o frenesim sempre díscolo da cinética soberana (difícil de controlar até para os próprios soberanos que
iniciam o movimento, como se pôde verificar com o desenlace da Grande Guerra), e não para o vazio
soberano e da sua peculiar ordem.
, e apesar de se notar já o desabrochar dos alicerces
para outras estratégias, então recolhidos no conceito em voga, o de defesa, uma
espécie de albergue espanhol que acolhe tudo o que ainda não possui um lugar
conceptual preciso, o certo é que, fruto das novas condições da guerra industrial e da
noção de nação em guerra, se percebe que à estratégia não é possível acantoná-la
mais enquanto conduta operativa da guerra, de alguma forma nesta imersa. À
estratégia é requerida a preparação do conflito e o vislumbrar objectivos de saída dele.
Na prática, a topologização horizontal da estratégia em relação à política e à táctica,
isto é a sua diferenciação das mesmas pela natureza social das acções e dos
protagonistas, tende a ser substituída por um critério vertical, em que o que interessa
7
Na verdade, para utilizar uma metáfora cara ao refundador da escola estratégica portuguesa, Abel Cabral
Couto, o último dos grandes mestres clássicos da estratégia ainda, felizmente, vivo e em ebulição
conceptual, a Grande Guerra lança as primícias decisivas para a passagem de uma estratégia ainda
aperrada em exclusivo à servidão militar, a estratégia como recital de um instrumento a solo, nas
palavras do Mestre, para uma estratégia em que o instrumento particular ainda é determinante, mas que
está já envolvido por todo um conjunto de dimensões de apoio, mobilizadas entretanto, e que serão o
embrião das futuras estratégias económica, diplomática (talvez esta seja logo, muito precocemente, a
primeira a despontar), ideológica, cultural, comunicacional, entre outras possíveis. É a estratégia como
concerto para um determinado instrumento. A versão a que chegámos, como é sabido, é a da estratégia
integral, onde se procura que os diversos naipes de instrumentos, as diversas estratégias gerais,
promovam harmoniosamente a manobra conjunta. Trata-se da estratégia na sua versão sinfónica, no
dizer de Abel Cabral Couto. Naturalmente que se na música não se deve colocar estra tríade em termos
de progresso qualitativo, já na estratégia sim. Resta acrescentar que ao desenvolvimento de diversas
formas de estratégia que não só a militar, correspondeu igual desenvolvimento de diversas modalidades
de guerra que não só a luta armada.
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já não é tanto o que se faz adentro e imerso no conflito mas a relação do agir com o
poder político director e as consequências integrais da acção. Significa isto que as
racionalidades sociais estratégicas - a conduta específica de uma dada sociedade face
ao conflito hostil), que pela sua natureza excepcional, gera fins intermédios próprios
em correlação com os fins políticos directores - ganham uma espessura que até aí não
tinham tido.
Qual é a importância deste facto? A respostao é dicil de antever, pelo menos para
os estrategistas. É que as conflagrações bélicas do tipo das duas guerras mundiais
tendem a inverter a pirâmide estratégica, a subordinar, ou, pelo menos, a reduzir os
objectivos políticos àqueles que têm a ver com a hostilidade e caem debaixo da alçada
da estratégia. É uma situação negativa, que põe em causa o próprio cerne da
estratégia, a assunção prudente (no sentido dianoético) do conflito, e que a estratégia
tenta contrapor como pode, retroagindo sobre uma dinâmica mais violenta da própria
política, para evitar a delapidação desbragada de recursos humanos e materiais, mas
nem sempre o conseguindo com êxito. De qualquer forma, para os nossos propósitos, o
essencial está em assinalar que nessas ocasiões, que não são meramente pontuais
tanto na Grande Guerra como na Segunda Guerra Mundial, não é a política que claudica
face à guerra, antes é a política que claudica, ou melhor, se estreita à gestão da
violência. Gestão essa que, mesmo ao percutir as membranas mais violentas da
estratégia, fazendo da estratégia uma função sobre-estratégica, está longe, e este
ponto é decisivo, de ser a violência desalmada que configura o olho da guerra. Pelo
contrário, e embora a prudência estratégica seja aí transfigurada em mero cálculo
malicioso para apurar capacidades de infligir danos ao adversário, correndo o risco de
incrementar a violência até ao descontrole, desvirtuando a própria natureza da
estratégia, que é o apaziguar do conflito, o contrafogo por dentro do incêndio, ainda
assim, nessa gestão (senão não era gestão), continua presente um ir ao leme, uma
ponderação materializada, um não estar desfeito pela procela da violência, mesmo nos
casos mais extremos de afunilamento político, de inversão da pirâmide, de
subordinação da política à estratégia.
Por que razão assim é? Por que é que a estratégia, dominante, quer dizer, em processo
ultimamente autofágico - que o que torna estratégica a estratégia é assumir o seu
lugar piramidal enquanto disciplina de fins interdios, o querer-se enquadrada pela
política num espaço organizado em torno de um controlo firme da violência - pura e
simplesmente não ateia o fogo que resta atear? Porque a natureza visceral da
estratégia, mesmo quando era apenas conduta da guerra, foi sempre a de ser esse
contraponto personalista ao descambar da violência, mais do que isso, quinta-coluna
no seio do inaudito para tentar ajudar a apagar de vez todas as ínferas chamas, criar
condições para uma paz definitiva.
Restam, não obstante, duas objecções. A primeira, tem a ver com o desenvolvimento
do conceito de guerra total e a sua aplicação prática. Todavia, o conceito de guerra
total, introduzido pelo político e jornalista francês Léon Daudet, em 1918
8
8
Daudet define a guerra total como a “extensão da luta nas fases mais agudas e crónicas aos domínios
político, económico, comercial, industrial, intelectual, jurídico e financeiro. Não são só os exércitos que se
batem, são as tradições, costumes, códigos, espíritos e sobretudo os bancos” (Daudet, 1918: 8).
, e depois
substancialmente desenvolvido e popularizado pelo general alemão Erich Ludendorff,
em 1935, na sua obra A Guerra Total, não é, como poderia parecer à partida a caução
de uma guerra de extermínio, de uma guerra sem quartel, levando a guerra até às
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últimas consequências. A obra de Ludendorff não vai nesse sentido, pelo contrário, a
guerra total, pressupondo uma política total, onde o político deve ceder ao
comandante-em-chefe, deve ser o comandante-em-chefe, submetendo, por
conseguinte, a política à estratégia, exactamente por ser totalizante nos meios e no
empenho, exige que seja fortemente controlada. As operações devem cessar
rapidamente após a realização possível do objectivo para evitar a desagregação interna
da sociedade. (Ludendorff, 1941, 36, 113, 233 e ss)
9
Na realidade, o conceito de guerra total é a expressão histórica de uma era que se abre
com o fim da Grande Guerra e cessa com o culminar da Segunda Guerra Mundial,
dominado pela ideia da utilização de todas as formas de luta, simultaneamente e com a
máxima intensidade, e caracterizando-se ainda pela redução da política aos objectivos
de hostilidade, aqueles que caem debaixo da alçada da estratégia, se não mesmo pela
subordinação da política à estratégia (que não à guerra) em razão da auto-
neutralização prudencial desta; ou melhor, transformando o seu registo dianoético, em
mero calculismo, manha, sofisticada ponderação arteira, ainda que nunca expulsando
de si, apesar da deriva, o senso primeiro de contenção.
.
Na prática, verificou-se que a inversão da pimide não era só uma possibilidade séria,
mas foi um facto histórico. É certo que, em teoria, o estreitamento da política aos
objectivos políticos de hostilidade pode ainda configurar uma situação de
sobredeterminação política em relação à estratégia, reduzindo a síntese política a esses
objectivos, ou tornando-os ancilares para a definição de conjunto do que se quer ser
enquanto actor político. Todavia, não deixa de ser verdade que esse estreitamento da
política tende a acicatar a estratégia, ao concentrar a sua força no espaço que é por
excelência o desta, com isso deformando a lógica prudencial do exercício estratégico. A
estratégia vê-se assim levada a limitar radicalmente a sua função prudencial e a
alcandorar-se ao ponto da política se confundir com ela, e de se enfeudar a ela, pois os
âmbitos parecem sobrepor-se, e nessa caso a estratégia parece tecnicamente mais
talhada para a tarefa, com as consequências atrás mencionadas. Escusado será dizer
que no concreto histórico rapidamente se passou à solução mais fácil, a do
enquistamento da estratégia
10
9
Jean-Ives Guiomar, historiador francês da guerra total, na obra atrás citada, acredita que a emergência
da guerra total se deu com as guerras levadas a cabo pela França revolucionária, embora reconheça que
essa mesma guerra total não se plasma na íntegra senão no século XX (Guiomar, 2004: 25, 102-105,
120, 151). Todavia, parece-nos que o historiador francês sobrepõe várias vezes guerra total e guerra
absoluta. Ainda que afirme (Idem: 302) que não pretende resolver a questão - para ele uma questão em
aberto - de saber se o conceito de guerra total designa a mesma coisa que o conceito de guerra absoluta.
Na verdade, o autor defende (Idem: 19-20) que a guerra total é uma guerra que não pode ser parada
nem interrompida por quem a declara, alargando-se constantemente no espaço e estendendo-se
incessantemente no tempo. Todavia, essa é uma característica mais consonante com a guerra absoluta,
isto é, a guerra obedecendo no essencial à sua gramática específica, que propriamente com a guerra
total.
.
10
Na realidade, a estratégia não é mera disciplina técnica, instrumento, ferramenta. O abaixamento da
política e consequente elevação da estratégia, acabando ambas por coincidir, optando-se então pela
preponderância estratégica não é fruto de um juízo neutro, antes diz respeito à razão instrumental. Sendo
da responsabilidade da política, a estratégia não se limitou a um papel passivo. Não só a estratégia veio a
ganhar um protagonismo retroactivo muito forte sobre a política, no sentido de a moderar, a partir dos
começos da era nuclear, logo quando estava mais enquadrada superiormente em termos políticos, como
tendeu a monopolizar a política na era da guerra total, quando ainda comportava uma dose ferramental
ainda muito significativa. A óbvia contradição tem de ter outra resolução. Aquilo que aconteceu foi que a
política e a guerra percutiram na estratégia as suas membranas mais violentas, e estando como estava a
estratégia ainda a caminho de um critério vertical de topologização que a colocava mais próxima da política,
mas sem ter perdido ainda o seu rasto táctico, optou por neutralizar-se (era também mais simples e mais
corrente fazê-lo de acordo com o seu enquadramento topológico tradicional) e dessa maneira responder à
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A segunda objecção parece de maior vulto. Porque não obstante aquilo que dissemos,
não é menos verdade que certas passagens dos dois conflitos mundiais pronunciam, ou
realizam mesmo um ir além da inversão piramidal, um mergulho em cheio da política e
da estratégia na guerra, um ir de si da guerra. A hecatombe alsaciana de Verdun na
Grande Guerra, ou muitos dos episódios (provavelmente mais do que isso) na Frente
Oriental, na Segunda Guerra, para já não falar dos genocídios, apontam nesse sentido.
Parece-nos inegável. E então? A única lição que podemos extrair do sucedido é o
reconhecimento de quão fácil é hoje ascender aos extremos. Porque, por contraste, o
que se constata é a diferença entre esses tramos da guerra e os restantes, e, por
maioria de razão, a diferença face aos outros tramos da história, em que a guerra é
fenomenologicamente latente, mas em que seria suposto estarmos ontologicamente
em estado de guerra. Se a guerra fosse ontologicamente activa, a situação normal
assemelhar-se-ia mais a esses momentos negros que ao resto; ou melhor, ao fim de
tanto tempo já não se assemelharia a nada.
4. A Anarquia Internacional: uma imagem fora-de-jogo
Por fim, a Guerra Fria. Neste caso seria melhor nem sequer tentar objectar por aí. A
Guerra Fria corresponde à idade adulta da estratégia como disciplina de fins
intermédios e incompletos, a completar na síntese política superior. Preparada,
portanto, como nunca, para uma perfeita (ou quase) coabitação com a política, debaixo
da ameaça nuclear, a primeira ameaça a poder verdadeiramente concretizar num ápice
o armagedom. O advento da arma nuclear e o surgimento das doutrinas subversivas e
de contra-subversão alcandoram a estratégia a uma nova época, aquela em que nós
estrategicamente ainda vivemos.
O advento da era atómica, ou mais propriamente, o surgimento das armas
termonucleares e a corrida aos armamentos, tornou claro que somente a dissuasão
poderia evitar a catástrofe. O estilo estratégico directo não era remunerador.
Doravante já não se podia canalizar o esforço bélico e estratégico para o militar, as
outras estratégias adquiriam assim a autonomia desejada. O que seria um patamar
mais na escalada, de acordo com a prática da guerra total, torna-se uma oportunidade
de a travar, de escolher judiciosamente e prudentemente as melhores estratégias.
Poderia a estratégia fazê-lo se não fosse intrinsecamente portadora de fins específicos?
Se é verdade que só com o surgimento do nuclear, e depois com a possibilidade de
guerra intestina, através da guerra de subversão, implicando a necessidade de maior
coordenação entre a estratégia e a política e mesmo a subordinação completa daquela à
política, é permitido à estratégia, enquanto estratégia integral, evidenciar na íntegra as
suas capacidades prudenciais, não é menos verdade que a escalada possível de
patamares de violência, oferecida pelas novas modalidades de guerra, só não levou à
violência dessas suas membranas mais intratáveis com uma saída fortemente instrumental, cega e
mecânica. No fundo, assistiu-se à estratégia a neutralizar-se a si mesma enquanto razão instrumental,
invadindo de forma aparentemente neutra outras áreas que nada tinham a ver com a hostilidade. Ou seria
alguma vez plausível pensar que essa neutralização de fins e a inversão da relação piramidal entre a
política e a estratégia, afim de um fascínio epocal, ideológico, pela razão técnica, ocorreria se a estratégia
fosse de cabo a rabo, e desde sempre, uma disciplina instrumental sem mais? Como? Se a inversão
piramidal foi mais tarde revertida, curiosamente quando a estratégia se torna mais robusta e retoma o
seu fio condutor finalista, e se essa mesma inversão própria da era da guerra total, por sua vez já inverte
um anterior contexto (aquele que desemboca na Grande Guerra) em que a estratégia está menos solta
mas também a política soberana é ainda menos incisiva do que veio a ser?
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guerra absoluta, porque a estratégia fez valer os seus recursos prudenciais. E não
devemos olvidar que, com toda a probabilidade, estaria em causa a guerra absoluta na
sua plenitude, avocada à libertação integral da sua húbris destruidora, Aquele estado em
que se a guerra fosse senhora não precisaria de tanto tempo assim para revolver as
entranhas da terra, o que sempre traz transtornos, porque homens se podem cansar de
tanto frenesim.
Mas não continuamos nós vivos? A pergunta é naturalmente a própria resposta.
Onde a política e, acima de tudo, no campo da hostilidade, a estratégia, vicejam, não
pode a guerra por si, a guerra entregue a si mesma, a anarquia internacional vicejar. O
esforço morigerador daquelas, se é efectivo, compromete a anarquia, porque a guerra,
por sua conta, tende ao solipsismo, a marchar em direcção ao nada. Contudo, nem a
política nem a estratégia, só por si, têm força para esvair a caótica bélica, para isso é
preciso uma outra razão, uma metánoia oriunda dos lados da paz pura, que, aliás,
insufla a estratégia no seu percurso. Porém, se virmos bem, já só essa insuficiência da
estratégia e da política dizem muito da impossibilidade de uma anarquia internacional,
de um estado de guerra ontologicamente materializado. É insuficiente aquele que não é
suficientemente capaz, que não é capaz só por si. Mas porventura ainda estaríamos a
falar de capacidade se a guerra reinasse, ou estaríamos tão-só acabrunhados, movidos
apenas pela mesma (hipotética) sussurrante esperança que preside ao final da
narração trágica de A Estrada, de Cormac McCarthy:
“nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram
mais antigas de que o homem e nelas ressoava um mistério”?
(McCarthy, 2007: 187).
Varrida - não se sabe como, até porque não estamos a falar de um acidente ocorrido,
ou de um efeito absolutamente inesperado resultante de uma qualquer guerra - a
indestrutível e primacial inclinação para o bem. E se a coisa fosse ainda mais obscura,
não estaríamos, se é que estaríamos, tão-somente pendentes do mais serôdio milagre
milagreiro?
Felizmente não estamos. Então por que razão nos quererão levar ao absurdo os
proponentes da tese da anarquia internacional?
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