JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 21-32
Os dois conflitos mundiais como ilustração da ausência de anarquia internacional
António Horta Fernandes
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da Idade Moderna até hoje
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O primeiro conflito mundial vê erguer-se com pujança um intermediário, de que ainda
não falámos, na divisão social do trabalho político, integrada que foi a guerra na
arquitectura da política: referimo-nos à estratégia.
. Todavia, poder-se-ia contrapor que durante a guerra
talvez os soberanos tivessem perdido o controlo e posteriormente o reganhassem.
Coisa estranha, dada a virulência das duas guerras e as alterações históricas ocorridas
por via delas. De qualquer maneira não seguiremos por essa senda, antes introduzindo
um elemento adicional.
Antes de continuar, e tal como para os conceitos de guerra e de anarquia internacional,
não desenvolveremos aqui os pressupostos justificatórios da definição de estratégia
que apresentaremos de seguida. Tomamos a liberdade de registar uma definição
branda, o mesmo é dizer, consensual e de acordo com os melhores cânones clássicos
da teoria da estratégia desde há 50 anos, no mundo continental, aquele onde a
disciplina tem sido cultivada sem as insuficiências que a caracterizam no mundo anglo-
saxónico. Assim, podemos definir a estratégia como a sabedoria prática desenvolvida
pelos actores políticos, com expressão colectiva, a fim de preparem e conduzirem a
conflitualidade hostil uns face aos outros.
Pois bem, retomando o evolver, quando se desencadeia a Grande Guerra, embora a
estratégia continue a ser, no essencial, estratégia militar (e irá continuar a sê-lo até ao
fim da Segunda Guerra Mundial)
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Se atentarmos à importante obra de Christopher Clark sobre as origens da Grande Guerra, facilmente se
pode depreender que, embora nos anos imediatamente antecedentes à conflagração houvesse cada vez
mais vozes disponíveis para aceitar uma possível guerra, a concebê-la como uma certeza imposta pela
índole das relações internacionais, que poderia até ser terapêutica, (279-281), distava de ser geral a ideia
de que a cena internacional era no essencial e em si mesma uma arena. Era sim um terreiro de possível
confrontação, fruto do choque de interesses das soberanias e das lutas pelo poder em que estas se
implicavam (Clark, 2013: 237-239). O que obviamente aponta para as lógicas soberanas, no limite, para
o frenesim sempre díscolo da cinética soberana (difícil de controlar até para os próprios soberanos que
iniciam o movimento, como se pôde verificar com o desenlace da Grande Guerra), e não para o vazio
soberano e da sua peculiar ordem.
, e apesar de se notar já o desabrochar dos alicerces
para outras estratégias, então recolhidos no conceito em voga, o de defesa, uma
espécie de albergue espanhol que acolhe tudo o que ainda não possui um lugar
conceptual preciso, o certo é que, fruto das novas condições da guerra industrial e da
noção de nação em guerra, se percebe que à estratégia não é possível acantoná-la
mais enquanto conduta operativa da guerra, de alguma forma nesta imersa. À
estratégia é requerida a preparação do conflito e o vislumbrar objectivos de saída dele.
Na prática, a topologização horizontal da estratégia em relação à política e à táctica,
isto é a sua diferenciação das mesmas pela natureza social das acções e dos
protagonistas, tende a ser substituída por um critério vertical, em que o que interessa
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Na verdade, para utilizar uma metáfora cara ao refundador da escola estratégica portuguesa, Abel Cabral
Couto, o último dos grandes mestres clássicos da estratégia ainda, felizmente, vivo e em ebulição
conceptual, a Grande Guerra lança as primícias decisivas para a passagem de uma estratégia ainda
aperrada em exclusivo à servidão militar, a estratégia como recital de um instrumento a solo, nas
palavras do Mestre, para uma estratégia em que o instrumento particular ainda é determinante, mas que
está já envolvido por todo um conjunto de dimensões de apoio, mobilizadas entretanto, e que serão o
embrião das futuras estratégias económica, diplomática (talvez esta seja logo, muito precocemente, a
primeira a despontar), ideológica, cultural, comunicacional, entre outras possíveis. É a estratégia como
concerto para um determinado instrumento. A versão a que chegámos, como é sabido, é a da estratégia
integral, onde se procura que os diversos naipes de instrumentos, as diversas estratégias gerais,
promovam harmoniosamente a manobra conjunta. Trata-se da estratégia na sua versão sinfónica, no
dizer de Abel Cabral Couto. Naturalmente que se na música não se deve colocar estra tríade em termos
de progresso qualitativo, já na estratégia sim. Resta acrescentar que ao desenvolvimento de diversas
formas de estratégia que não só a militar, correspondeu igual desenvolvimento de diversas modalidades
de guerra que não só a luta armada.