JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 5, n.º 2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 99-113
Sobre a dupla e paradoxal função dos media:
portadores da ideologia dominante e veículos do discurso disruptivo
José Rebelo
Os telemóveis de 3ª geração, que apareceram no mercado em finais da década de
noventa, acentuaram a tendência. Constituíram, sem dúvida, o dispositivo catalizador
da Primavera Árabe, campo de tantas reportagens jornalísticas. Seguiram-se o
movimento das “Indignadas”, em Madrid; o movimento “Occupy Wall Street”, em Nova
Iorque; o movimento “Junho Furioso”, no Brasil.
Vejamos com algum detalhe este último caso cuja dimensão, tão extraordinária quão
surpreendente não é alheia à importância que os grandes órgãos de comunicação social
brasileiros lhe conferiram.
Tudo começou a 3 de Junho de 2013 quando, respondendo a um apelo lançado através
das redes sociais, escassas centenas de pessoas se reuniram em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Razão imediata do protesto: o previsto aumento do preço dos transportes
públicos. Razão profunda: o mal estar provocado pela somas gigantescas dispendidas
com a organização, no Brasil, do Campeonato do Mundo de Futebol. Duas semanas
mais tarde, precisamente a 20 de Junho, elevava-se a 100.000 o número de
manifestantes concentrados na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e outros tantos
na Avenida Paulista.
Entretanto, 24 jornalistas eram feridos ou detidos pelas forças policiais de São Paulo.
Um dos feridos é uma repórter do influente jornal Folha de São Paulo. A imagem do
rosto ensanguentado da repórter passa nos principais blocos informativos das
televisões brasileiras e leva a que o seu jornal opere uma singular inversão de discurso.
Com efeito, o mesmo órgão de comunicação social que, dias antes, exortara a polícia a
pôr fim à violência nas ruas acusava, agora, essa mesma polícia, de ser fautora de
violência gratuita. E, para cúmulo, outra imagem, não menos impressiva, de uma
jovem manifestante atingida com gás pimenta, é estampada na primeira página do
New York Times.
Como salienta Eduardo Santos, professor de Relações Internacionais na Universidade
Federal Fluminense, num artigo publicado na Revista Liinc sobre “Crise de
representação política no Brasil e os protestos de Junho de 2013”, paralelamente à
informação dos jornais, rádio e televisão “(…) vários grupos, de maneira difusa, já
estavam, desde as primeiras manifestações, difundindo informações, algumas em
tempo real e sem qualquer apuração, sobre o que ocorria nas ruas em ferramentas
como o serviço de vídeo youtube, ou de mensagens como o twitter e o facebook. O
público interessado noticiado e noticiava, com um surpreendente acervo coletivo de
fotos, textos e imagens atualizado e disponível no celular” (2014: pp. 86-95).
A emoção, provocada pela mediatização da intervenção policial, fez o resto. Como
reconhece Eduardo Santos, em menos de um mês “houve manifestações em 438
cidades do país, com uma participação estimada de dois milhões de pessoas e ampla
cobertura jornalística”
Último exemplo desta dupla e paradoxal função dos meios de comunicação social –
como voz do poder e do contra poder – acentuada, ainda, pela actual competição entre
media tradicionais e novos media: a cerimónia de execução de Saddam Hussein. A 31
de Dezembro de 2006, os canais de televisão generalista transmitem as imagens
oficiais: tudo se teria passado, a crer nessas transmissões televisivas, com a maior das
dignidades. Em silêncio absoluto. Alguém, fazendo uso de um pudor levado ao
extremo, colocaria, mesmo, um lenço em redor do pescoço do condenado. Não fosse a
corda, enlaçada, feri-lo.