OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 5, n.º 2 (Novembro 2014-Abril 2015), pp. 62-77

A GUERRA COMO A CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS…

NÃO TRIPULADOS

João Paulo Vicente

joao.vicente.6@gmail.com Tenente-Coronel Piloto Aviador. Desempenha funções na Divisão de Planeamento do Estado- Maior da Força Aérea (Portugal). Investigador do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do Instituto de Estudos Superiores Militares. Licenciatura em Ciências Militares e Aeronáuticas pela Academia da Força Aérea (1995), Mestrado em Estudos da Paz e da guerra nas Novas Relações Internacionais, pela Universidade Autónoma de Lisboa (2007), Master of Military Operational Art and Science, pela Air University, Alabama, EUA (2009). Doutor em Relações Internacionais, Especialidade de Estudos de Segurança e Estratégia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (2013).

Resumo

Nenhum outro sistema de armas transformou de forma mais significativa a capacidade americana de combate nas últimas décadas do que a introdução operacional dos drones. Isto é, a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo durante mais de 24 horas, executando atividades de vigilância, mas transportando mais de uma tonelada de armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de oportunidade. Ao abrigo deste novo modelo operacional, os drones proliferam no espaço de batalha, numa miríade de atividades essenciais, aliviando o homem de missões monótonas ou demasiado perigosas, sem qualquer risco para o piloto, que permanece a milhares de quilómetros de distância num cubículo refrigerado, visionando a Guerra num monitor de alta definição.

Ao analisar a realidade atual, tendo como prisma a conduta da potência dominante, os Estados Unidos, pretendemos encontrar algumas pistas que revelem possíveis alterações na natureza do debate político em virtude do emprego generalizado dos drones. Isto é, aquilatar de que forma é que os drones afetam a cultura estratégica dos Estados em recorrer à força coerciva para alcançar objetivos políticos e em particular a sedução política, quase irresistível, de empregar o Poder Aéreo como resposta militar primordial. Neste âmbito procuramos também indagar se a Guerra Aérea Remota contribui para reforçar a capacidade de dissuasão e compulsão de futuros adversários, ou se em contrapartida baixa a fasquia para o uso da força, tornando a conflitualidade hostil mais frequente. Importa também questionar se ao remover os custos humanos para o ofensor, o emprego recorrente de drones armados se torna uma expressão suficiente da vontade política de fazer a Guerra. Iremos centrar a discussão tendo como argumento que os drones oferecem a possibilidade de empregar capacidades militares num conflito, sem necessidade de construir um amplo consenso político e público, tornando o processo de decisão política mais facilitado e impulsivo no sentido de usar a força, dificultando por outro lado, o planeamento e execução da estratégia militar.

Palavras chave:

Guerra; Drones; Guerra Aérea Remota; Execuções Seletivas; Poder Aéreo

Como citar este artigo

Vicente, João Paulo (2014). "A guerra como a continuação da política por outros meios...

não tripulados". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 5, N.º 2, novembro

2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art4

Artigo recebido em 29 de julho de 2014 e aceite para publicação em 9 de outubro de 2014

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A guerra como a continuação da política por outros meios--- não tripulados

João Paulo Vicente

A GUERRA COMO A CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS…

NÃO TRIPULADOS

João Paulo Vicente

1. Introdução

Quando em novembro de 2001, algures no deserto do Afeganistão, Muhammad Atef foi alvo do primeiro bombardeamento aéreo da história americana a partir de uma aeronave não tripulada – um drone Predator – assistimos ao nascimento de um novo e avassalador capítulo na curta história do Poder Aéreo. A partir desse momento, uma nova tecnologia e um novo conceito de operações proliferaram e fizeram eclodir efeitos tanto impressionantes quanto desproporcionados, indiciando uma sedução quase irreversível dos decisores políticos para o recurso primordial à Guerra Aérea Remota.

Nenhum outro sistema de armas transformou de forma mais significativa a capacidade americana de combate nas últimas décadas do que a introdução operacional dos drones. Isto é, a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo durante mais de 24 horas, executando atividades de vigilância, mas transportando mais de uma tonelada de armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de oportunidade. Ao abrigo deste novo modelo operacional, os drones proliferam no espaço de batalha, numa miríade de atividades essenciais, aliviando o homem de missões monótonas ou demasiado perigosas, sem qualquer risco para o piloto, que permanece a milhares de quilómetros de distância num cubículo refrigerado, visionando a Guerra num monitor de alta definição.

Àmedida que aumenta a imprescindibilidade operacional, somos confrontados com uma proliferação tridimensional da Guerra Aérea Remota. Ou seja, na diversidade de formas e tamanhos, no alargamento do espetro de missões e de base de utilizadores, e nos níveis crescentes de autonomia a par com a perspetiva de armamentização. É exatamente a irresistibilidade do carácter cirúrgico, não apocalíptico, a custos reduzidos, que poderá tornar irreversível a sua proliferação, com efeitos desestabilizadores para as Relações Internacionais.

Ao analisar a realidade atual, tendo como prisma a conduta da potência dominante, os Estados Unidos da América (EUA), pretendemos encontrar algumas pistas que revelem possíveis alterações na natureza do debate político em virtude do emprego generalizado dos drones. Isto é, aquilatar de que forma é que os drones afetam a cultura estratégica dos Estados no recurso à força coerciva para alcançar objetivos políticos e em particular a sedução política, quase irresistível, de empregar o Poder Aéreo como resposta militar primordial. Neste âmbito procuramos também indagar se a Guerra Aérea Remota contribui para reforçar a capacidade de dissuasão e compulsão de futuros adversários, ou se em contrapartida baixa a fasquia para o uso da força, tornando a conflitualidade hostil mais frequente. Importa também questionar se ao

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remover os custos humanos para o ofensor, o emprego recorrente de drones armados se torna uma expressão suficiente da vontade política de fazer a Guerra.

Iremos centrar a discussão tendo como argumento que os drones oferecem a possibilidade de empregar capacidades militares num conflito, sem necessidade de construir um amplo consenso político e público, tornando o processo de decisão política mais facilitado e impulsivo no sentido de usar a força. Contudo, uma análise estratégica da campanha de “execuções seletivas” permitirá identificar alguns “efeitos boomerang” que ameaçam a eficácia operacional da Guerra Aérea Remota, fazendo prospetivar um aumento da hostilidade e perigosidade do ambiente futuro, por natureza complexo e adverso.

2. A sedução política pela Guerra Aérea Remota

A capacidade dos militares encontrarem e destruírem coisas à distância nunca deixou de admirar os políticos americanos (Zenko, 2010a). Contudo, a tendência política americana de recorrer a contingentes militares limitados sempre que confrontada com desafios que ameacem os interesses nacionais está a ser levada aos limites com o recurso a ataques de drones. A isso não é alheio o facto de estes sistemas serem uma opção de baixo custo, sempre disponível e com eficácia operacional elevada.

Neste prisma, o Predator é para a Administração Obama uma evolução tecnológica análoga ao que os mísseis de cruzeiro foram para o presidente Clinton na década de 90 do século passado: uma forma de exercer uma política externa musculada, mas sem os custos inerentes ao emprego de forças terrestres. Esta ambição política é um dos catalisadores para a preeminência futura dos drones e acima de tudo para impulsionar o desenvolvimento de sistemas mais capazes, nomeadamente em termos de alcance, persistência e autonomia.

A atualidade da preferência política pela Guerra Aérea Remota pode ser verificada, constatando que em finais de 2011 os EUA empregavam drones de ataque, de forma simultânea e contínua, em seis teatros distintos, para além de conduzirem missões de vigilância em pelo menos uma dezena de países, incluindo a nível doméstico. Neste contexto, a operação em ambientes aéreos permissivos, em que a ameaça para os drones é mínima, em alguns casos com apoio tácito ou explícito dos governos locais, permite maximizar a capacidade de persistência na recolha de intelligence e eventual ataque a alvos emergentes.

O emprego de drones traduz-se numa menor “footprint” militar que pode ser politicamente atrativa. Isto porque o conceito de operação remota e as características associadas a estes sistemas para executarem ataques de longo alcance, permitem uma redução da necessidade de bases avançadas para a projeção de poder. Sem a necessidade deste requisito estratégico, reduz-se também a interferência internacional e a obrigação de reunir consensos alargados e mesmo coligações que apoiem o uso da força, e até a necessidade de consultar o Congresso para obtenção de legitimidade política para levar a cabo ações de Guerra Aérea Remota.

Para além disso, esta tecnologia é extremamente sedutora, tanto do ponto de vista político como militar, na medida em que transmite uma falsa impressão de que a Guerra deixou de ter custos. A decisão de iniciar uma Guerra teve sempre consequências gravosas. Contudo, agora é possível travar uma Guerra sem ter que

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lidar com algumas das implicações mais severas, como enviar soldados para o terreno. Isto porque, um dos fatores de dissuasão da Guerra diz respeito aos custos elevados traduzidos em “sangue e tesouro”. Ao reduzirmos o derramamento do nosso “sangue”, estamos a tornar a Guerra menos dura, menos exigente e socialmente mais aceitável, limitando o seu ónus apenas ao “tesouro”. Assim, a Guerra Aérea Remota enquadra-se numa longa tradição ocidental de encontrar formas relativamente seguras de empregar a força letal, como a artilharia e o bombardeamento aéreo, levando a crer que as baixas militares amigas evitadas são mais valorizadas do que as baixas causadas entre a população civil adversária (Olsthoorn et al., 2011).

A par com a redução da exigência individual do combatente, a Guerra à distância exige cada vez menos das sociedades, tornando-a uma opção política primordial. O emprego de mísseis de cruzeiro sobre a Somália e o Sudão durante o mandato de Clinton comprovam esta observação. Também a intervenção terrestre americana no Kosovo só terá ocorrido quando as “garantias de impunidade” foram reunidas (Ignatieff, 2000: 179). Assim, ao retirar o perigo de perdas humanas, o emprego de drones maximiza este conceito de operação com impunidade.

A perceção de uma Guerra sem custos, como apontado por Andrew Callam (2010), poderá ficar-se a dever, em primeiro lugar, ao facto de se tratar de um conflito que está a ser combatido de forma encoberta, longe da vista da sociedade. Apesar da sociedade de informação, é difícil aceder às áreas remotas ou obter imagens acerca dos ataques, o que contribui para isolar o público dos danos provocados, impedindo no entanto uma avaliação transparente e imparcial de tal conduta, nomeadamente da tipologia de alvos e dos danos causados à população cívil. Em segundo lugar, a eliminação do risco humano para os EUA torna a Guerra mais aceitável, diminuindo as objeções públicas à sua ocorrência e prolongamento.

Por outro lado, a interação político-militar que precede a Guerra poderá também ser afetada. Até aqui, esta interação procurava determinar a estratégia mais adequada aos objetivos políticos de forma a minimizar o custo em “sangue e tesouro”. Enquanto os militares procuram os recursos humanos necessários para alcançar os objetivos estabelecidos, os políticos tentam minimizar as repercussões associadas à mobilização maciça de exércitos. No entanto, a remoção da variável humana da equação transforma o cálculo político-militar num juízo cada vez mais racional e menos subjetivo. Esta alteração da natureza do debate político, do cálculo de risco humano para o custo económico da intervenção, poderá relegar para segundo plano a necessidade de consulta militar antes da decisão do uso da força.

Em virtude da disponibilização de uma imagem operacional comum, em tempo real aos decisores, é possível que as decisões sejam eticamente mais consensuais (Cummings, 2010). Isto porque, a maior granularidade da informação significará maior precisão, aumentando dessa forma a compreensão do ambiente operacional. Esta faculdade, resultante da aplicação de instrumentos analíticos automatizados, permite uma avaliação mais rápida do risco operacional e estratégico de uma missão, nomeadamente no processo de nomeação de alvos, facilitando a decisão política para o emprego da força. Esta propensão para a Guerra Aérea Remota pode, no entanto, afetar a coerência da estratégia aérea. O conflito do Kosovo espelha o condicionamento típico imposto à estratégia aérea, de extrema discriminação e proporcionalidade, para justificar moralmente um combate com risco reduzido. Contudo, a condução dos ataques acima dos 15.000 pés, fora do envelope das ameaças antiaéreas, revelou uma

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maior preocupação pela segurança dos pilotos do que pela discriminação dos bombardeamentos.

Por outro lado, os danos colaterais irão continuar a existir, contudo, a capacidade de “humanizar” os erros irá decrescer. Concetualmente, será mais fácil aceitar danos colaterais causados por uma aeronave tripulada, cujo piloto toma decisões em frações de segundo enquanto se sujeita aos rigores e ameaças de combate, do que admitir erros provocados pelo uso de drones. Essa preocupação extrema em limitar os danos colaterais, leva ao estabelecimento de protocolos complexos de seleção e ataque de alvos. Porém, a precisão inerente aos drones associada a uma tipologia de alvos cada vez de menores dimensões e mais difusos, provocam uma maior assunção de risco, nomeadamente em ataques em zonas urbanas, contribuindo para uma maior probabilidade de efeitos indesejados.

Desta forma, a realidade apresentada em apreço contribuirá para isolar cada vez mais a sociedade das ações militares, reduzindo a supervisão da ação política. Esta erosão da verificação e responsabilização da ação política, pilares essenciais do modo de fazer a Guerra numa sociedade democrática, poderá fomentar a vontade para o uso da força letal.

Uma indicação do abrandamento do controlo político acerca do consentimento e da autoridade para o uso da força foi demonstrada no conflito da Líbia em 2011, em que Obama defendeu que não seria necessária autorização do Congresso para empregar forças americanas no conflito. Um dos instrumentos disponíveis para garantir uma maior ponderação política no uso da força entre o Presidente e o Congresso americano

éa “War Powers Resolution” de 1973, que obriga a Administração a consultar o Congresso antes de empregar as Forças Armadas americanas em hostilidades. Existem, no entanto, situações em que o Presidente pode empregar força militar sem autorização prévia do Congresso. Por exemplo quando o país foi ou está em vias de ser atacado, quando um acordo obriga a defender terceiros, em casos de extração de cidadãos em risco, em ataques punitivos isolados, ou em operações em que a surpresa impeça um debate público alargado (Lugar, 2011: 5).

Durante a fase inicial da operação na Líbia (Operação Odyssey Dawn), as ações das forças americanas foram significativamente mais intensivas, sustentadas e perigosas do que na fase posterior, Operação Unified Protector, comandada pela NATO, em que os EUA desempenharam uma função de apoio. Nesta fase, e segundo a perspetiva da Administração Obama, a participação americana foi limitada por três fatores: meios militares empregues, natureza da missão e risco de escalada. Em declarações perante o Congresso, Harold Koh (2011) defendeu a posição da Administração em como a operação na Líbia não podia ser qualificada de “hostilidades” perante a Resolução de “War Powers”. Em primeiro lugar porque era uma missão com objetivos limitados. Segundo, porque a exposição das forças americanas era limitada e não envolvia risco de baixas. Terceiro, o risco de escalada era reduzido dado que as forças terrestres não seriam empregues. E finalmente, o emprego dos meios militares era limitado à supressão de defesas aéreas inimigas para garantir a zona de exclusão de voo, e a ataques de Predator contra alvos em apoio da missão de proteção de civis.

Nesta perspetiva, os drones influenciam dois destes fatores na medida em que limitam a exposição das forças e do risco de escalada do conflito. No entanto, estaremos a alargar substancialmente o âmbito para empregar a força, facilitando perigosamente a

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frequência da Guerra Aérea Remota. A reserva introduzida nesta resolução acerca da “introdução de forças americanas nas hostilidades” poderá ser redutora para o caso de emprego de drones, na medida em que elimina a preocupação de perdas humanas. Apesar de isentarem as forças de risco físico, o número e a natureza dos ataques de drones podem contribuir significativamente para aumentar a fasquia de hostilidades.

O cálculo político acerca da definição de hostilidades incidiu essencialmente na probabilidade de ocorrência de baixas de forças americanas, minimizando outras considerações relevantes para uso da força (Lugar, 2011: 6). Nesta perspetiva, o conflito da Líbia não configura nenhuma das exceções mencionadas, sendo que aeronaves americanas participaram nos ataques e o apoio americano às forças da NATO foi crucial, nomeadamente ao nível das capacidades logísticas e de comando e controlo, assim como em áreas operacionais deficitárias como informações e vigilância, reabastecimento aéreo ou capacidades espaciais.

Como instrumentos de diplomacia coerciva, isto é, no âmbito da dissuasão e compulsão, o emprego de drones de combate, ao reduzir os custos potenciais da ameaça e uso da força, pode ter implicações substanciais (Nolin, 2012: 13). Em particular nas situações de maior assimetria entre os atores em disputa e considerando que os custos humanos se afiguram praticamente nulos, a credibilidade de tais ameaças sairá reforçada, uma vez que o emprego da força ocorrerá com maior facilidade, e sem o demorado escrutínio político e público associado ao uso da força por meios tradicionais. Da mesma forma, será de esperar que os Estados possuidores de drones de combate se tornem mais audaciosos e recorram mais frequentemente à Guerra Aérea Remota, de forma preventiva e como instrumento primordial de resolução de conflitos. Ao combater de forma simultânea em seis locais distintos no planeta, sem qualquer risco direto para as suas forças, os EUA parecem confirmar a hipótese de que a Guerra Aérea se tornou mais profícua com a emergência dos drones, confirmando uma maior inclinação para empregar o instrumento militar para alcançar objetivos nacionais limitados.

Neste sentido, os drones fornecem aos políticos um aumento de controlo que se estende a três níveis (Dawkins, 2005: 21-24). O controlo da oportunidade e ritmo das operações na medida em que minimizam as interferências externas. O controlo sobre o debate político referente ao uso da força. E por fim, a perceção do controlo preciso desde o nível estratégico até ao emprego tático das forças, instigando a uma maior interferência em todos os detalhes da condução da Guerra. Assim, a Guerra torna-se uma solução política, ainda mais proeminente, porque menos exigente, facilmente justificável e aceitável. Isto é ainda mais verdade para a opção de uso exclusivo do Poder Aéreo. Ao limitarem as baixas e eliminarem a possibilidade de prisioneiros de Guerra, os drones permitem que as missões possam ser planeadas e executadas de forma mais discreta e em áreas remotas. A possibilidade de executar uma operação de ataque sem a exploração mediática prévia maximiza também a surpresa operacional.

Para aferirmos em maior detalhe acerca da sedução política do emprego da Guerra Aérea Remota teremos de nos debruçar sobre um caso de estudo particular: a campanha contraterrorista americana.

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3. Um novo conceito de operações: "The only game in town"

No dia 3 de novembro de 2002, algures no deserto do Iémen, um Predator controlado pela Central Intelligence Agency (CIA) seguia um carro com seis passageiros. Um dos ocupantes, Qaed Salim Sinan al-Harethi, estava na lista presidencial dos mais procurados da Al-Qaeda, como responsável pelo ataque ao navio USS Cole. Numa zona desabitada, o disparo de um míssil Hellfire contra o veículo matou os seis ocupantes. Esta foi a primeira ação de “targeted killing” (“execução seletiva”) da história com recurso a drones. Em agosto de 2009, um líder Taliban paquistanês, Baitullah Mehsud, descansava no terraço de uma habitação, juntamente com a sua mulher. Sem anúncio prévio, um míssil lançado de um Predator destruiu a casa matando o terrorista, a mulher e guarda-costas. A execução em 30 de setembro de 2011 de Anwar al-Awlaki, no Iémen, um dos mais influentes operacionais da Al-Qaeda, elevou a fasquia desta modalidade, uma vez que se tratou da primeira morte intencional de um cidadão americano.

Estes três exemplos, de mais de quatro centenas de ataques executados pelos EUA desde 2002, fora de teatros de operações ativos, como o Paquistão, o Iémen ou a Somália, na sua maioria por drones operados pela CIA, espelham o alastramento geográfico e a frequência dos ataques, fazendo emergir o estatuto primordial da modalidade de “execuções seletivas” na estratégia americana de Guerra Aérea Remota. Desde junho de 2004, a Administração Bush autorizou 45 ataques na zona noroeste do Paquistão. Apenas durante o seu primeiro mandato, a Administração Obama quintuplicou esse número, permitindo preservar capital político comparativamente com o risco e custo associados a estratégias militares alternativas assentes no emprego massivo de forças terrestres.

A necessidade dos EUA serem “ágeis e precisos” no uso do poder militar é concretizada com o emprego de drones e forças especiais (Obama, 2009). Da perspetiva da Administração, os ataques seletivos são estrategicamente sensatos. Isto porque, os drones fornecem uma ubiquidade e persistência inigualáveis, que em conjunto com o armamento de precisão permitem aproveitar as janelas de oportunidade para agir. Comparativamente com outras alternativas militares, a eliminação do risco para as forças americanas torna estas capacidades especialmente indicadas. Adicionalmente, reduz o perigo para os civis em comparação com alternativas tradicionais de bombardeamentos, uma vez que uma melhor visualização do alvo permite decisões mais acertadas, com precisão cirúrgica.

Poder-se-á afirmar que esta estratégia ofensiva contraterrorista tem tido resultados imediatos na eliminação de terroristas. A pressão contínua sobre os refúgios dos terroristas, até agora impunes, torna a sua ação, movimentos e contactos com aliados mais difíceis, forçando-os a despender mais recursos na sua sobrevivência. Também o efeito psicológico causado no inimigo pela incerteza acerca do ataque e da sua sobrevivência, constringe as suas operações. Empiricamente, os resultados operacionais resultantes do emprego de drones indicam que a sua obtenção por meios alternativos exigiria uma força militar de larga escala, com os inconvenientes políticos, económicos e sociais associados. Desta forma, as consequências estratégicas que advêm do uso da força são menores do que as resultantes da projeção de exércitos, normalmente percecionados como forças estrangeiras de ocupação. Para além disso, as

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guerras de ocupação tendem a ser dispendiosas e a inflamar o ressentimento contra os EUA.

Existem também opiniões de que os drones reduzem a escalada do conflito, tornando- os uma ferramenta essencial na estratégia contraterrorista (Anderson, 2010). A lógica

ésimples: ao dizimar a liderança de topo com maior experiência na organização obtém-se uma degradação na capacidade de comando e controlo da Al-Qaeda. O momento mais alto deste programa ocorreu com a morte de Bin Laden, com recurso a uma ação de “execução seletiva”, desta vez empregando forças especiais para garantir a identificação positiva do alvo e a sua extração. A atrição provocada sobre os líderes da Al-Qaeda tem dificultado a reconstituição da organização e como tal, diminuído a sua eficácia operacional. Por exemplo, dos 30 membros de topo da Al-Qaeda na região Afeganistão-Paquistão, 20 deles foram mortos por drones desde 2010 (Nolin, 2011:19). Contrariamente à convicção popular, o número de terroristas experientes é bastante limitado (Byman, 2006). Quando um terrorista experiente é morto isso tem um impacto direto nas operações, porque são necessários vários meses até treinar um substituto com experiência suficiente para ser eficaz. Apesar das organizações continuarem a ser capazes de recrutar terroristas, estes não têm experiência e supervisão adequadas para constituírem ameaça assinalável.

Outros académicos, considerando testemunhos de elementos da Al-Qaeda, vão mesmo mais longe ao avançarem com a hipótese de que sem esta modalidade estaríamos mais perto do terrorismo nuclear (Zenko, 2010b). Nesta ótica, os ataques dos drones são uma ferramenta essencial para matar terroristas que dirigem e fornecem apoio operacional ao terrorismo internacional, sendo esta opção moralmente justificada para prevenir futuros ataques terroristas. Parece ser consensual que matar os insurgentes não conduz automaticamente à vitória, mas como Steven Metz (2000:55) salienta, “a resolução das causas profundas é mais fácil com os líderes insurgentes fora de cena”.

4. Efeitos “boomerang” da campanha de “execuções seletivas”

Estas visões otimistas encaram o uso de drones como a forma mais eficaz e precisa de empregar a força militar contra insurgentes. Contudo, a sustentação oficial americana para a condução desta modalidade de operação enferma de alguns paradoxos. Em primeiro lugar, transmite uma interpretação expansiva do enquadramento legal enquanto simultaneamente sustenta critérios limitados. Em segundo lugar, procura justificar legalmente uma modalidade de ação que se desenrola de forma secreta. Finalmente, tenta advogar uma imagem de transparência, ao mesmo tempo que se escusa a fornecer detalhes factuais acerca do processo de decisão e da conduta dos serviços de informações.

Bergen et al. (2011) questionam se a campanha dos drones, apesar de útil a curto prazo, possa debilitar os esforços americanos para estabilizar a região, obtendo uma vitória a longo prazo sobre a Al-Qaeda. Peter Singer (2009: 312) interroga-se se esta modalidade de combate não contribuirá para um aumento de revolta e de adesão à causa terrorista, enquanto Jane Mayer (2009) sustenta que será inevitável que o emprego global de ataques de drones cause ações de retaliação.

O debate público sobre a eficácia do emprego de drones em ações letais sobre os terroristas ainda não provou inequivocamente o seu sucesso estratégico. Da mesma

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forma, não é transparente que os benefícios alcançados com a atrição imposta à liderança terrorista ultrapassem o impacto que as baixas civis têm sobre o recrutamento de novos terroristas, assim como na escalada de atentados que desestabilizam o Paquistão. Tratando-se de ações letais ofensivas, circunscritas a áreas limitadas, com acesso a imagens em tempo real dos resultados dos ataques, tornam os seus efeitos diretos mensuráveis. No entanto, convém não esquecer que estas ações têm efeitos, psicológicos e físicos, diretos e indiretos, cumulativos e interrelacionados. Esses efeitos serão sentidos em múltiplos níveis (tático, operacional, estratégico) e em múltiplas dimensões (política, económica, civil, militar). Até porque as intervenções militares não podem ser vistas como um momento efémero, e muito dificilmente se vislumbrará um conflito em que não exista necessidade de contacto no terreno entre as partes em oposição. Por isso, o recurso exclusivo à Guerra Aérea Remota em conflitos irregulares acrescenta dificuldades no que diz respeito aos esforços de estabilização e reconstrução, na medida em que não permite o estabelecimento de confiança através do contacto direto com as populações.

A falta de uma estratégia abrangente para lidar com um conflito torna mais atrativo o emprego de força militar limitada, em detrimento dos efeitos demorados e aparentemente ineficazes de outros instrumentos de poder nacional. O recurso ao instrumento militar, com elevada prontidão e facilmente projetável, faz desviar a necessidade de desenvolver os outros instrumentos de poder e dotá-los com recursos suficientes para implementar um plano de longo prazo que solucione as causas fundamentais do conflito. Como salientado por Robert Gates (2007), uma das lições mais importantes das Guerras do Afeganistão e Iraque é de que o sucesso militar não é suficiente para ganhar. Isto enquadra-se na perceção de que o instrumento militar é adequado para derrotar Estados, particularmente para efetuar mudanças de regime, mas é um instrumento pobre para combater as ideias.

Para alguns analistas, o recurso primordial aos drones constitui uma forma tímida de lidar com o problema do terrorismo (Thiessen, 2010). O problema reside no facto dos ataques de drones serem usados em substituição de outras operações para capturar os terroristas vivos. Isto porque, a informação obtida pelo interrogatório, a mais de uma centena de terroristas capturados após o 11 de setembro, permitiu, de acordo com fontes da CIA impedir numerosos atentados terroristas. Contudo, não podemos esquecer que a natureza remota da localização dos alvos torna difícil a sua captura, sem arriscar baixas avultadas de forças americanas ou da nação hospedeira.

Por outro lado, o ataque às zonas tribais no Paquistão reforça as mesmas forças que os EUA procuram derrotar, alienando os "corações e mentes" num Estado maioritariamente muçulmano, instável, e com armamento nuclear. É natural que os insurgentes explorem o ressentimento das populações, reafirmando-se como uma força de resistência contra a injustiça de uma campanha de Guerra Aérea Remota, aumentando ao mesmo tempo o poder de atração sobre novos recrutas. É este equilíbrio entre a neutralização dos grupos insurgentes e o custo de fazer emergir mais insurgentes que deve ser equacionado.

Ao mesmo tempo, crescem os relatos sobre o aumento da contestação antiamericana, entre as populações afegãs e paquistanesas e comunidades emigrantes no Ocidente, assim como entre os membros de elite dos serviços de segurança paquistaneses (Gerges, 2010). Os objetivos políticos podem ser prejudicados fruto da imagem negativa que emerge nas áreas atingidas e que se expande de forma global. Esta

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tendência poderá ser preocupante, uma vez que para alguns países, em particular aqueles intervencionados, a imagem americana ficará irremediavelmente ligada à Guerra Aérea Remota. O facto do Predator se tornar num epítome, para muitos muçulmanos, da arrogância do poder americano, poderá no plano estratégico, ofuscar a eficácia operacional desta modalidade de combate.

A globalidade dos indicadores apresentados parece sustentar um fenómeno de perda de autoridade moral de quem conduz uma Guerra Remota, em particular numa campanha para ganhar “o coração e mente” das populações locais. Esta perceção poderá ser tanto maior quanto as baixas civis causadas. Desta forma, sem o necessário contato direto com as populações, os ataques aéreos podem apenas eliminar cirurgicamente os insurgentes. Assim, um Estado que procure impor a sua vontade sobre o adversário, sem que para isso arrisque a vida dos seus soldados, perderá o valor estratégico da superioridade moral adquirida (“moral high ground”). Isto leva William Arkin (2008) a concordar com a possibilidade dos drones acarretarem um risco de longo prazo: a perceção desumana do Poder Aéreo e do seu utilizador.

Os efeitos estratégicos que decorrem do combate direto entre seres humanos e da Guerra Aérea Remota são díspares. O emprego de aeronaves tripuladas, expondo os recursos humanos aos rigores de combate, transmite uma perceção de maior determinação política, disposta a aceitar o risco de baixas. Apesar da impunidade com que as aeronaves tripuladas efetuam os seus ataques, em resultado da superioridade aérea de que disfrutam, o risco de operação no Afeganistão e Iraque ainda é substancial, como se pode constatar no número de aeronaves abatidas, na possibilidade dos tripulantes serem capturados, assim como na insegurança vivida nas Bases Aéreas, alvo de vários ataques mortíferos. Esta interação arriscada entre combatentes contribui para que o inimigo concentre o seu esforço na área direta do conflito (McGrath, 2010: 15). Contudo, o uso extensivo da Guerra Aérea Remota, visto numa perspetiva absolutista, parece indicar que enquanto um dos lados vê a Guerra como um instrumento, um meio para um fim, o outro encara-a numa perspetiva metafísica, representada na exaltação do ato de morrer por uma causa. Por isso, a perceção de falta de determinação política para arriscar as vidas dos seus cidadãos em combate pode contribuir também para que o adversário reforce a resistência, explorando nos media uma campanha de informação que atraia novos aderentes à causa.

Outros críticos sintetizam este desequilíbrio entre os custos e benefícios dos ataques (Kilcullen et al., 2009). Em primeiro lugar, os drones criam uma mentalidade de cerco entre os civis. Segundo, a indignação não está apenas localizada nas regiões tribais e estende-se por todo o Paquistão e mesmo na comunidade internacional. Por fim, revelam o uso de uma tecnologia para substituir uma estratégia, sem uma campanha de informação concertada dirigida ao público paquistanês. Assim, a decisão de escalar os ataques poderá fazer despontar um maior número de ações terroristas face à insatisfação causada, dando razão ao argumento daqueles que defendem um possível “efeito boomerang” em que os ataques podem criar mais terroristas do que aqueles que matam. Neste sentido, os ataques provocam o aumento do número e o radicalismo dos paquistaneses que apoiam o extremismo, diminuindo o objetivo estratégico de fazer do Paquistão um aliado regional mais colaborante e capaz. Assim, os danos colaterais e a perceção da constante violação de soberania contribuem também para um aumento do sentimento de raiva, que une a população em torno de extremistas e

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provoca o alastramento dos ataques para outras áreas do país e do globo (Kilcullen, 2009).

Perante este enquadramento, é difícil encontrar unanimidade acerca da eficácia desta modalidade de combate. Estudos recentes mostram que o número de ataques terroristas no Paquistão tem diminuído à medida que se verifica uma escalada no programa de “execuções seletivas” (Qazi et al., 2012), procurando desta forma defender uma correlação negativa entre os ataques de drones e o aumento de violência militante (Johnston et al., 2013). Embora exista uma dificuldade em reunir consenso acerca das causas das atitudes antiamericanas, verifica-se que essas explicações assentam no pressuposto de que os indivíduos formam a sua opinião acerca dos EUA primariamente como reação áquilo que os EUA são e fazem (Blaydes et al., 2010). No entanto, estes autores advogam que os níveis observados de antiamericanismo entre as populações muçulmanas não resultam organicamente em resposta aos atos dos EUA. Para eles, dependem essencialmente da intensidade das mensagens antiamericanas que são divulgadas por elites proeminentes de um determinado país. Na sua perspetiva, a retórica antiamericana funciona como um instrumento político para obter o apoio de faixas da população, tornando-se mais acentuada sempre que existe competição política entre fações seculares e islâmicas.

A campanha de “execuções seletivas” é politicamente sedutora pois os custos reduzidos favorecem o apoio doméstico, ao mesmo tempo que demonstram vontade política. No entanto, os efeitos indesejados apenas se revelam a longo prazo. Para além do imprescindível valor militar, a verdade é que a Guerra Aérea Remota tornou-se no símbolo provocativo do poder americano, sem constrangimentos com a soberania dos Estados e longe de eliminar os danos colaterais. Esta conduta poderá oferecer a outros atores do sistema internacional o incentivo para imitarem semelhante comportamento. Todavia, o que está em causa não será o sistema de armas em si, mas o emprego operacional que lhe é dado. À medida que o emprego da Guerra Aérea Remota nos é apresentada como um produto do excecionalismo americano, afirmando-se como judicioso, legal, eticamente correto e com precisão cirúrgica, surgem-nos dúvidas acerca do impacto desta conduta para outros atores internacionais. Ou seja, sendo os EUA um exemplo de liderança mundial, de que forma as justificações legais, morais e políticas apresentadas serão igualmente aplicáveis a outros países, quando estes recorrerem à Guerra Aérea Remota para confrontarem ameaças à sua segurança? Mais ainda, em que medida será moralmente defensável que os EUA condenem tal conduta?

Um estudo recém-publicado pelo Stimson Center (2014) sintetiza estas preocupações e recomenda inúmeras ações para conferir maior transparência e responsabilização à conduta de “execuções seletivas”. Entre elas destacam-se a necessidade de efetuar uma análise custo-benefício acerca da função dos drones letais nos ataques seletivos contraterroristas; a importância de explicar as bases legais para a condução dos ataques, assim como o número aproximado, localização e afiliação dos alvos dos ataques; as identidades dos civis mortos e o número de ataques executados por forças militares e pela CIA. Para além disso, os EUA devem empenhar-se no desenvolvimento de normas internacionais para o uso da força letal fora dos teatros de operações tradicionais. Desta forma será possível estabelecer precedentes, eventualmente aceites pela comunidade internacional, para regular o emprego futuro da Guerra aérea Remota.

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5. Conclusão

Considerando a Guerra como a continuação de relações políticas, com uma mistura de outros meios, procurámos demonstrar que a preeminência da Guerra Aérea Remota poderá contribuir para alterar a cultura estratégica dos Estados em recorrer à força coerciva, para alcançar objetivos políticos.

Na realidade, a irresistibilidade política, fruto da redução de custos associados ao uso da força, é expressa por um lado no aumento da intensidade, ao nível da discriminação individual dos alvos, por outro lado, na maior frequência dos ataques, e por fim numa maior amplitude geográfica do emprego seletivo de força letal. Contudo, esta irresistibilidade política provoca efeitos boomerang, que ao democratizarem e civilinizarem ainda mais a Guerra, ameaçam transformar a forma como Estados, organizações não estatais, e o próprio indivíduo, encaram a conflitualidade, alterando o seu limiar, a sua frequência, os seus atores e os seus efeitos, fazendo aumentar a hostilidade e perigosidade do ambiente futuro, por natureza complexo e adverso.

Enquanto outrora a Guerra estava reservada para a consecução dos interesses vitais dos Estados, ao diminuir os constrangimentos políticos, militares e humanos, a Guerra Aérea Remota promove o alargamento dos interesses dos Estados, favorecendo a opção de resposta militar para concretizar interesses periféricos. Desta forma, e no que diz respeito aos custos da ação política, constatamos que esta modalidade pode tornar o processo de decisão política mais ágil, ou mesmo dispensável, uma vez que é possível empregar capacidades militares num conflito sem necessidade de construir um amplo consenso político e escrutínio público.

A liberdade de manobra política é também aumentada uma vez que estes sistemas oferecem mais alternativas estratégicas e a flexibilidade de empregar o instrumento militar sem o pesado ónus de destacamento de soldados para um território hostil. Ao diminuírem as necessidades de bases avançadas para suportar destacamentos militares, reduzem também o valor estratégico de certas parcerias regionais. Assim, os incentivos estratégicos e morais para tornar esta modalidade cada vez mais precisa e exercida de forma remota, vão aumentando à medida que a opção por guerras de larga escala decresce em número e intensidade. É esta redução de custos da ação política que poderá propiciar ações militares preventivas, em áreas de interesse estratégico, fazendo perspetivar um aumento da conflitualidade regional, e com ela maiores danos civis.

Pelos benefícios operacionais e políticos apontados, os drones constituirão uma capacidade essencial para aumentar a consciência situacional do espaço de batalha, ao mesmo tempo que possibilitam a aplicação letal da força de forma discreta e precisa. Isto poderá implicar uma alteração das dinâmicas de poder regional, proporcionando às pequenas e médias potências uma capacidade acessível para colocar em risco os Centros de Gravidade adversários, sem os custos, tradicionalmente proibitivos, associados à projeção de poder. Assim, poderemos assistir a uma valorização das posturas ofensivas, em certa medida preventivas, em virtude do custo reduzido de emprego destas capacidades. Ao invés de dissuadir potenciais agressores, parece-nos mais verosimil, a perspetiva duma corrida aos armamentos na procura do nivelamento da assimetria, aumentando a proliferação dos drones em modalidades de emprego potencialmente mais gravosas. Neste caso, os efeitos adversos da vigilância persistente

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e da precisão criam uma presunção de infalibilidade que motiva decisões políticas mais arriscadas, como os ataques em zonas urbanas.

Relativamente à eficácia estratégica da Guerra Aérea Remota contra atores não estatais, ela estará dependente, como qualquer outro instrumento militar, da amplitude dos objetivos dos atores. A aventura americana no Iraque e Afeganistão afastou o apetite de invadir regiões tribais no Paquistão, ou de ocupação de países como a Somália, Iémen ou Líbia. No entanto, a necessidade de substituir a opção convencional por uma solução politica e publicamente mais aceitável, catapultou os drones para um patamar de requisito operacional urgente.

Numa perspetiva de síntese estratégica, a modalidade de “execuções seletivas” induz uma panóplia de efeitos “boomerang”, que se traduzem numa maior possibilidade de retaliação terrorista, no recrutamento de novos insurgentes, numa maior complexidade do relacionamento político e estratégico dos EUA nas áreas geográficas dos ataques, assim como numa maior desestabilização regional em países como o Paquistão ou Iémen. Independentemente de se conseguir estabelecer uma relação direta de causa- efeito, é possível antecipar uma erosão da credibilidade americana na região, que gradualmente se vai expandindo a nível mundial.

O alastramento desta modalidade a novos teatros e a uma gama de alvos de nível tático poderá fazer acelerar a oposição, local, nacional e internacional, contribuindo para um maior enfraquecimento interno dos governos em cujo território ocorrem os ataques. Assim, poderá diminuir a vontade e a capacidade desses governos em tomarem ações efetivas contra os insurgentes. Nessa perspetiva, a focalização da campanha nos alvos de interesse estratégico, em detrimento da eliminação generalizada de operacionais, oferecerá menores efeitos indesejados. De igual forma, a transferência do controlo deste programa da CIA para as Forças Armadas poderá fornecer a tão necessária transparência e responsabilização a uma modalidade ainda envolta em secretismo.

A armamentização dos drones, como consequência da proliferação tecnológica, é uma das áreas que pode a médio prazo estar facilmente disponível aos pequenos poderes. Atendendo ao número de países, e mesmo organizações, que dispõem de drones com alcance e capacidade de carga substanciais para transportar armamento convencional ou de destruição massiva, é possível antecipar a disseminação de riscos no panorama internacional. Esse natural alargamento da base de utilizadores a grupos terroristas, organizações criminosas e mesmo ao próprio individuo, poderá fazer alastrar a perigosidade das ameaças que confrontam os Estados.

Ao contrário das armas nucleares, que pelos seus efeitos, dissuadem o seu uso, o custo de empreender a Guerra Aérea Remota é relativamente baixo, incentivando as nações mais desenvolvidas a coagirem e imporem a sua vontade a outras nações, com riscos cada vez mais limitados. A confirmação da prolixidade de intervenções em locais remotos do globo fazem vislumbrar, de forma embrionária, o esboço da estratégia aérea do futuro, obrigando-nos a revisitar o relacionamento entre a Guerra e Paz e as sociedades democráticas. Assim, a combinação invulgar de características como a distância entre combatentes, a assimetria de combate, a possibilidade de autonomia no uso da força, assim como a minimização de risco humano e político, confirmam a modalidade de Guerra Aérea Remota como politicamente irresistível.

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Em conclusão, podemos afirmar que a Guerra Aérea Remota não é um fim em si mesmo, mas antes de mais, um instrumento primordial para alcançar determinados fins políticos. Por isso, esta modalidade não pode ser vista como uma solução mágica para a exiguidade política na determinação dos objetivos de emprego do instrumento militar.

Tal como as aeronaves foram um dos artefactos tecnológicos que permitiram equilibrar a assimetria imposta pelo aumento do poder de fogo e do entrincheiramento característicos da 1ª Guerra Mundial, também os drones se afiguram como uma possível solução para os problemas táticos contemporâneos impostos pela dificuldade de localizar, identificar e atacar alvos de reduzida assinatura em zonas remotas do planeta. Daí a antecipar que estes sistemas se transformem na solução estratégica para as Guerras atuais e futuras, será certamente uma falácia. E com ela, advirão consequências profundas para acentuar a erosão da soberania dos Estados e no consequente aumento da instabilidade das Relações Internacionais.

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