OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 5, n.º 2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 16-45

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

E A CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL

Sofia Santos

sofiasantos@ymail.com Doutorada em Direito Internacional Público pela Universidade de Saarland, Alemanha, tendo sido bolseira do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). Mestre em Direito Europeu e Direito Internacional Público (Universidade de Saarland). Licenciada em Estudos Europeus (Faculdade de Letras, Universidade do Porto). Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Investigadora integrada no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) na área do Direito Internacional da Segurança. Investigadora associada do OBSERVARE nas áreas da justiça penal internacional e da política de segurança e defesa europeia. Auditora do Curso de Defesa Nacional do Instituto da Defesa Nacional entre outros cursos organizados pelo Instituto. Autora de publicações e comunicações sobre Direito Internacional, Direito Europeu, Organizações Internacionais, Defesa e Segurança Internacional.

Resumo

Pensar uma ordem pública internacional significa pensar uma ordem sustentada por um quadro jurídico-institucional que assegura de modo eficaz a ação coletiva com vista a defender valores fundamentais da comunidade internacional e a solucionar problemas globais comuns, na linha da visão universalista do Direito Internacional. Pensar a construção de uma ordem pública internacional significa pensar que este quadro que abarca e promove o respeito pelos direitos humanos com particular enfoque na dignidade da pessoa humana se vai alicerçando e evoluindo esteiado no Tribunal Penal Internacional (TPI). A sua instituição permitiu adicionar uma faceta punitiva internacional perene ao Direito Internacional Humanitário e ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e aliar a justiça à paz, à segurança e ao bem-estar da Humanidade, reafirmando os princípios e objetivos da Carta das Nações Unidas. Porém, o processo de afirmação de uma justiça penal internacional escorada na punição dos responsáveis pelos crimes mais graves que afetam a comunidade no seu conjunto pelo Tribunal depara-se com um conjunto de obstáculos de caráter político e normativo.

O artigo identifica os principais méritos do Estatuto de Roma e da prática do TPI e, em seguida, indica os seus limites, aos quais se encontram subjacentes tensões jurídico- políticas e questões interpretativas respeitantes ao crime de agressão e aos crimes contra a humanidade. Por fim, o artigo argumenta no sentido da indispensabilidade de um repensar da jurisdição do TPI, sustentando a categorização do terrorismo como crime internacional, e da articulação da sua missão com a “responsabilidade de proteger”, o que poderá contribuir para a consolidação do TPI e do Direito Penal Internacional e reforçar o seu papel na construção de uma ordem pública internacional efetiva.

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Palavras chave:

Tribunal Penal Internacional; Ordem Pública Internacional; Estatuto de Roma; Direito Penal Internacional; Crimes Internacionais; Terrorismo; Responsabilidade de Proteger

Como citar este artigo

Santos, Sofia (2014). "O Tribunal Penal Internacional e a construção de uma ordem pública internacional". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 5, N.º 2, novembro 2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art2

Artigo recebido em 24 de setembro de 2014 e aceite para publicação em 29 de outubro 2014

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O Tribunal penal Internacional e a construção de uma ordem pública internacional

Sofia Santos

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

E A CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL1

Sofia Santos

The ICC will not be a panacea for all the ills of humankind. It will not eliminate conflicts, nor return victims to life, nor restore survivors to their prior conditions of well-being and it will not bring all perpetrators of major crimes to justice. But it can help avoid some conflicts, prevent some victimisation and bring to justice some of the perpetrators of these crimes. In doing so, the ICC will strengthen world order and contribute to world peace and security.

M. Cherif Bassiouni, Ceremony for the Opening for Signature of the Convention on the Establishment of an International Criminal Court, Rome, 18 July 1998

…justice is a fundamental building block of sustainable peace

Kampala Declaration, 11 June 2010

1. Introdução

Pensar uma ordem pública internacional significa pensar uma ordem sustentada por um quadro jurídico-institucional que assegura de modo eficaz a ação coletiva com vista a defender valores fundamentais da comunidade internacional, na linha da visão universalista do Direito Internacional. Significa pensar em instituições, procedimentos e instrumentos internacionais que possibilitam a concretização de objetivos comuns (Bogdandy; Delavalle, 2008: 1-2).

Pensar a construção de uma ordem pública internacional significa pensar que este quadro que abarca e promove o respeito pelos direitos humanos com particular enfoque na dignidade da pessoa humana e que pretende salvaguardar a paz, a segurança e o bem-estar da Humanidade, se vai alicerçando e evoluindo esteiado num órgão jurisdicional permanente e independente, o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Os prelúdios de um tribunal penal internacional protetor e impulsionador de uma ordem pública remontam à elaboração da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948 sob os auspícios da Organização das Nações Unidas2. Com efeito, a Assembleia Geral, tendo em consideração a questão suscitada no debate sobre a punição por crimes de genocídio e a crescente necessidade de um órgão competente

1Artigo elaborado no contexto do projeto de investigação “A Justiça Penal Internacional: Um Diálogo entre Duas Culturas”, em curso no Observatório das Relações Exteriores – Observare / UAL, coordenado por Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles

2Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, Diário da República, 1ª série-A, nº 160, 14.07.1998.

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para julgar determinados crimes de Direito Internacional no percurso de desenvolvimento da comunidade internacional, convidou a Comissão de Direito Internacional a estudar a conveniência e a possibilidade do seu estabelecimento3. A resposta afirmativa da Comissão4 resultou num projeto de estatuto, elaborado ao longo de várias décadas e submetido à aprovação da Assembleia Geral em 1994, que preconizava a relevância da criação de um tribunal penal internacional5. Neste sentido, a Assembleia instituiu um comité preparatório em 1996 com o propósito de produzir um texto, que serviu de base de negociação na Conferência de Roma em 1998, culminando com a assinatura do Estatuto.

Armin von Bogdandy e Sergio Dellavalle salientam que o progresso de uma ordem pública internacional e de um Direito Internacional efetivos dependerá em grande medida do destino do Direito Penal Internacional e do sucesso do projeto de regulação do Estatuto (2008: 2). Contudo, de que forma se manifesta essa dependência? De que modo poderá o projeto de regulação e, mais concretamente, o TPI ser mais bem- sucedido e influir mais eficazmente nesta construção?

O artigo analisa os méritos do Estatuto de Roma e da prática do TPI para em seguida explicitar os seus limites. Por último, o artigo argumenta no sentido da indispensabilidade de um processo de aquisição de novas dimensões e de aprofundamento de facetas existentes, formulando algumas propostas.

2.O Estatuto de Roma e a recente praxis do TPI: considerações principais

O Estatuto de Roma de 1998 reafirmou a relevância dos objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas6 e reconheceu a existência de valores comuns como a paz, a segurança e o bem-estar da Humanidade que deveriam ser salvaguardados pelo Tribunal.

O Estatuto consagrou a noção de “crimes mais graves” que afetam a comunidade internacional no seu conjunto e que se encontram enunciados no artigo 5º: o crime de genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o crime de agressão. Neste contexto, pode-se falar no acrescento de uma faceta punitiva ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário, dado que

3U.N. Doc. A/RES/3/260 B (III), Study by the International Law Commission of the Question of an International Criminal Court, 09.12.1948.

4U.N. Doc. A/CN.4/34, Report of the International Law Commission on its Second Session, 5 June to 29 July 1950, Official Records of the General Assembly, Fifth session, Supplement No.12 (A/1316), Yearbook of the International Law Commission, vol. II, 1950, §140, p. 379. Ricardo J. Alfaro, Relator Especial, tinha salientado no seu relatório apresentado à Comissão que “The community of States is entitled to prevent crimes against the peace and security of mankind and crimes against the dictates of the human conscience, including therein the hideous crime of genocide. If the rule of law is to govern the community of States and protect it against violations of the international public order, it can only be satisfactorily established by the promulgation of an international penal code and by the permanent functioning of an international criminal jurisdiction”, UN. Doc. A/CN.4/15 and Corr.1, Report on the Question of International Criminal Jurisdiction, Question of international criminal jurisdiction, Yearbook of the International Law Commission, vol. II, 1950, §136, p. 17.

5U.N. Doc. A/49/10, Draft Statute for an International Criminal Court, Report of International Law Commission on the work of its forty-sixth session, 2 May-22 July 1994, Official Records of the General Assembly, Forty-ninth session, Supplement No.10, Yearbook of the International Law Commission, 1994, vol. II(2), pp. 26 e ss.

6V. artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas.

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até então a punição da sua inobservância dependia exclusivamente das jurisdições penais nacionais.

Mais concretamente no que se refere ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Estatuto integrou no artigo 6º, a definição de crime de genocídio estabelecida no artigo

IIda Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Assim, genocídio trata-se de qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso: homicídio e ofensas graves à integridade física ou mental dos membros, sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas com a finalidade de provocar a sua destruição física, total ou parcial, imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio desse grupo e a transferência, forçada, de crianças para um outro grupo.

A faceta punitiva do Direito Internacional Humanitário consubstanciou-se no artigo 8º referente aos crimes de guerra prescritos nas Convenções de Genebra de 1949. Ao Tribunal incumbe julgar este tipo de crimes, particularmente “quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala”. Este artigo engloba as graves violações a estas convenções, ou seja, atos dirigidos contra pessoas ou bens protegidos e violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do Direito Internacional. No caso de conflitos armados que não sejam de caráter internacional, entende-se por crimes de guerra as violações graves contidas no artigo 3º comum às diferentes Convenções de Genebra, isto é, atos cometidos contra indivíduos que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impossibilitados de continuar a combater, tais como atos de violência contra a vida e contra a pessoa, ultrajes à dignidade da pessoa, a tomada de reféns, as condenações proferidas e execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais indispensáveis bem como outras violações graves das leis e costumes aplicáveis a este tipo de conflitos no quadro jusinternacionalista.

Nos termos do Estatuto, os crimes contra a humanidade encontram-se definidos como qualquer ato cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil com conhecimento desse ataque, como por exemplo, homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada, prisão em violação das normas fundamentais do Direito Internacional, tortura, violação, escravatura sexual, perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo ou em função de outros critérios aceites universalmente, desaparecimento forçado de pessoas, crime de apartheid e outros atos desumanos de natureza semelhante que provoquem intencionalmente considerável sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental ou física (artigo 7º).

Contrariamente aos crimes de genocídio e crimes de guerra, os crimes contra a humanidade não se encontram codificados numa convenção internacional e uma análise da jurisprudência dos diferentes tribunais penais internacionais ad hoc permite observar entendimentos distintos. A sistematização contida no Estatuto engloba atos que não tinham sido especificados previamente como crimes contra a humanidade, tratando-se, assim, da listagem mais abrangente nesta matéria.

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Os méritos do Estatuto não se circunscrevem simplesmente à codificação dos crimes mais graves, à exceção do crime de agressão com a procrastinação da sua definição e da determinação das condições para o exercício da jurisdição pelo TPI para uma conferência de revisão (artigo 5º, nº 2). Ao prescrever a observância dos princípios gerais de direito penal (Capítulo III) e dos princípios da presunção de inocência do arguido (artigo 66º) e da proibição de dupla condenação − ne bis in idem (artigo 20º)

por parte do Tribunal, o Estatuto contribui significativamente para a consolidação e evolução do Direito Penal Internacional (Stein; von Buttlar, 2012: 438).

Este sistema punitivo assenta no princípio de complementaridade (artigo 1º), o qual ainda que constrangendo o poder do Tribunal, lhe permite exercer influência na esfera estatal, facto que se insere num processo gradual de erosão da visão vestefaliana da intocabilidade da soberania e dos assuntos internos. Como argumenta Miguel de Serpa Soares:

"qualquer forma de justiça internacional representa sempre uma forma de limitação das soberanias estatais. No caso do Direito Penal Internacional esta limitação torna-se ainda mais evidente ao colocar em causa elementos essenciais do paradigma clássico do Direito Internacional, como por exemplo o monopólio punitivo dos Estados ou a noção de soberania estatal quase-absoluta" (Soares, 2014: 9).

Efetivamente, o Tribunal é competente para determinar a inexistência de vontade de agir por parte de um Estado: situações em que se comprove que o processo em outro Tribunal foi instaurado ou se encontra pendente ou a decisão foi proferida com o propósito de subtrair a pessoa à responsabilidade por crimes da sua competência, ter havido demora injustificada no processamento ou o processo não ter sido ou não estar a ser conduzido de modo independente ou imparcial, e ter estado ou se encontrar a ser conduzido de uma maneira incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça (artigo 17º, nº 2).

Além disso, o Estatuto preceitua a obrigação de todos os Estados Parte cooperarem com o Tribunal no inquérito e no procedimento criminal (artigo 86º) e de adotarem no Direito Interno procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação internacional e auxílio judiciário previstas (artigo 88º).

A praxis do Tribunal permite constatar uma atividade crescente, demonstrando um órgão judiciário empenhado em pôr fim à impunidade.

Em 2012, Thomas Lubanga Dyilo foi considerado culpado e condenado a 14 anos de prisão por crimes de guerra: alistamento e recrutamento de crianças com menos de 15 anos para participarem ativamente no conflito armado de caráter não internacional na República Democrática do Congo de 1 de Setembro de 2002 a 13 de Agosto de 20037. Este ano, Germain Katanga foi considerado culpado e condenado a 12 anos de prisão por um crime contra a humanidade (homicídio) e quatro de crimes de guerra

7V. ICC-01/04-01/06-2901, Trial Chamber I, Situation in the Democratic Republic of the Congo in the Case of the Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 10.07.2012.

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(homicídio, ataque a população civil, destruição de propriedade e pilhagem) cometidos a 24 de Fevereiro de 2003 durante um ataque à aldeia de Bogoro na República Democrática do Congo8.

Presentemente, o Gabinete do Procurador encontra-se a conduzir inquéritos em várias situações por submissão dos Estados Partes− Uganda (em 2004), República Democrática do Congo (em 2004), Mali (em 2012), Comoros (em 2013) República Centro-Africana (em 2005 e em 2014)− e por ação proprio motu do Procurador − Quénia (pedido em 2009, autorização do juízo de instrução em 2010) e Costa do Marfim (pedido e autorização do juízo de instrução em 2011) – bem como investigações preliminares concernentes a vários Estados, designadamente a Ucrânia, Estado não parte que aceitou a jurisdição do TPI (2014). Mais importante ainda é a submissão por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas das situações na região de Darfur, no Sudão, em 2005 e na Líbia em 2011 pela existência de indícios da prática de crimes internacionais9. Pode-se considerar que estas submissões se inserem no âmbito da afirmação da perspetiva do universalismo de esta competência do Conselho possibilitar o alargamento da jurisdição do Tribunal a Estados que não são parte do Estatuto e, assim, constituir uma “evolução na conformação da ordem pública internacional” (Kowalski, 2011: 124).

3.Limites do TPI e implicações na aplicabilidade do Direito Penal Internacional

Os limites do TPI resultam, em primeiro lugar, de tensões jurídico-políticas decorrentes da relação com o Conselho de Segurança e do caráter complementar da sua jurisdição e, em segundo lugar, da ambiguidade de determinadas formulações contidas nas disposições concernentes ao “crime de agressão” e aos “crimes contra a humanidade”, suscitando problemas interpretativos que o direito aplicável pelo Tribunal nos termos do artigo 21º do Estatuto10 não permite esclarecer categoricamente.

3.1.As tensões jurídico-políticas e o problema da implementação das decisões

8V. ICC-01/04-01/07-3484, La Chambre de Première Instance II, Situation en République Démocratique du Congo, Affaire Le Procureur c. Germain Katanga, Décision relative à la peine (article 76 du Statut), 23.05.2014.

9A resolução 1593 (2005) que submete a situação em Darfur (desde 1 de Julho de 2002) ao TPI não especifica os possíveis crimes internacionais ocorridos nessa região. Contudo, o Conselho de Segurança refere na resolução que tomou nota do relatório da International Commission of Inquiry on Darfur – comissão estabelecida pelo antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, com base na resolução 1564 (2004) com o mandato de investigar denúncias de violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário na região− que considerou que os crimes cometidos poderiam prefigurar crimes de guerra e crimes contra a humanidade (U.N. Doc. S/2005/60). A resolução 1970 (2011) que submete a situação da Líbia menciona que os ataques generalizados e sistemáticos a ocorrer contra a população civil líbia poderiam constituir crimes contra a humanidade.

10Segundo o artigo 21º, nos 1 e 2, as bases do direito aplicável são, em primeiro lugar, o Estatuto, os elementos constitutivos e o Regulamento Processual, em segundo lugar, se for o caso, os tratados e os princípios e normas de Direito Internacional aplicáveis, incluindo os princípios estabelecidos no Direito Internacional dos Conflitos Armados, na falta destes, os princípios gerais do Direito retirados pelo Tribunal dos diferentes sistemas jurídicos nacionais e princípios e normas de Direito tal como já tenham sido interpretados pelo Tribunal em decisões anteriores.

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O artigo 13º, alínea b) do Estatuto consagra a possibilidade de o Conselho de Segurança submeter ao Procurador uma situação ao abrigo do Capítulo VII, o que significa que o consentimento do Estado no qual os atos foram cometidos ou da nacionalidade da pessoa sobre quem existam indícios de responsabilidade por crimes internacionais não é requerido. As submissões deste órgão referentes à situação na região de Darfur, Sudão, em 2005 e à situação na Líbia em 2011 foram consideradas históricas. Contudo, no tocante à primeira, o Conselho de Segurança não tem apoiado ativamente o TPI com respeito à detenção e à obrigação de cooperação por parte dos Estados; relativamente à segunda, apesar da rapidez da reação do Conselho a resolução revelava deficiências à semelhança da resolução respeitante ao Darfur, como por exemplo, a exclusão da jurisdição relativamente a nacionais de Estados não parte do Estatuto (Stahn, 2012: 328).

Mas é sobretudo o artigo 16º, de acordo com o qual um inquérito ou um procedimento criminal não poderão ter início ou prosseguir por um período de 12 meses se o Conselho assim o tiver solicitado numa resolução nos termos do Capítulo VII, pedido que poderá ser renovado, que suscita críticas mais incisivas com base no argumento de esta possibilidade minar a independência do Tribunal11. Jorge Bacelar Gouveia qualifica este mecanismo de “esdrúxulo” e sublinha que:

"É muito dificil aceitar a interferência de um orgão político no coração do exercício do poder público de uma instância que se quer jurisdicional, numa intervenção que, além do mais, não só pode acontecer em qualquer momento processual como pode inclusivamente repetir-se, se bem que tenha a favor a sua temporariedade e o contexto adstringente do Capítulo VII da CNU" (2013: 792-793).

A ação do Tribunal em complemento às jurisdições penais nacionais significa, tal como referiu o juiz Philippe Kirsch, que o Estatuto é um sistema de dois pilares: um pilar judicial representado pelo Tribunal e um pilar de execução representado pelos Estados12. Todavia, a inexistência de um mecanismo permanente que assegure a observância das suas decisões dificulta a implementação deste pilar e, consequentemente, o combate à impunidade.

Na verdade, o processo de execução dos mandatos de detenção tem sido em certa medida conturbado. Não se pode considerar, por isso, uma casualidade que as primeiras palavras dos Estados-Membros na declaração da primeira Conferência de Revisão do Estatuto − a Declaração da Kampala de 2010, tenham sido no sentido de

11A definição do crime de agressão implicou a prescrição de procedimentos que sublinham esta dependência no caso de uma submissão por parte de um Estado Parte ou ação proprio motu do Procurador, embora o nº 9 do artigo 15º bis sublinhe que tal determinação por um órgão externo não é vinculativa para o Tribunal. Segundo os nos 6 e 8 deste artigo respetivamente, quando o Procurador concluir que existe fundamento suficiente para prosseguir com o inquérito, este deve primeiro averiguar se o Conselho de Segurança efetuou tal determinação relativamente ao Estado em causa e notificar o Secretário-Geral das Nações Unidas da situação no Tribunal; se nenhuma determinação for efetuada num período de seis meses após a data da notificação, o Procurador pode prosseguir com o inquérito desde que o juízo de instrução tenha autorizado a abertura deste e o Conselho de Segurança não tenha decidido em contrário nos termos do artigo 16º.

12ICC, Philippe Kirsch, Opening remarks at the fifth session of the Assembly of State Parties, 23.11.2006.

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um renovado espírito de cooperação e solidariedade, enfatizando o compromisso dos Estados Partes para combater a impunidade e assegurar o respeito duradouro pela implementação da justiça penal internacional.

O caso do presidente sudanês, Omar Al-Bashir, é representativo desta problemática. As origens deste caso remontam a 2005 quando o Conselho de Segurança decidiu na resolução 1593 submeter a situação de Darfur ao Tribunal. O antigo Procurador do TPI, Luís Moreno-Ocampo, abriu um inquérito ainda nesse ano e, em 2008, solicitou ao juízo de instrução a emissão de um mandato de detenção contra o presidente sudanês (primeiro mandato emitido a 4 de Março de 2009 e segundo mandato emitido a 12 de Julho de 2010, por responsabilidade indireta na prática de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de genocídio)13. Trata-se do primeiro caso de emissão de mandatos contra um Chefe de Estado em exercício. Subsequentemente, a União Africana (UA) solicitou, com base no artigo 16º do Estatuto, ao Conselho que aprovasse uma resolução abrigo do Capítulo VII no sentido do adiamento desta decisão, pedido ao qual este órgão não acedeu. A reação da UA traduziu-se no apelo reiterado aos seus Estados-Membros para não cooperarem com o TPI na detenção de Omar Al-Bashir14. Como afirmou David Luban, a fraqueza do Tribunal, ou seja, a disparidade entre a aspiração de justiça penal e a sua concretização ficou patente quando a maioria dos Estados africanos e árabes se uniram para apoiar o presidente sudanês face à decisão do Tribunal (2013: 508).

Em várias situações, o TPI apelou, sem sucesso, a Estados Partes e Estados não parte do Estatuto para executarem os mandatos de detenção emitidos contra Al-Bashir em virtude da deslocação deste ao seu território. Em Abril deste ano, o juízo de instrução determinou que a República Democrática do Congo não observou a decisão do Tribunal de detenção e entrega de Omar al Bashir aquando da sua deslocação ao território. Consequentemente, o juízo informou a Assembleia dos Estados Parte e o Conselho de Segurança nos termos do artigo 87, nº 715. O facto de este último poder tomar igualmente as medidas necessárias nesta matéria permite constatar que o poder de executar as decisões do TPI também reside neste órgão.

Um outro caso de relevo é o referente ao atual presidente do Quénia, Uhuru Muigai Kenyatta, que é alvo de acusações do TPI por responsabilidade indireta por crimes contra a humanidade. Este caso reporta-se à violência ocorrida após as eleições presidenciais de 2007 que causou inúmeras vítimas. Em 2009, Luís Moreno-Ocampo pediu autorização ao juízo de instrução para abrir um inquérito, do qual resultou, a pedido do Procurador, a emissão de um mandato de detenção para seis oficiais quenianos pelo juízo em 2011, os designados “Ocampo six”. Nesse ano, a UA apoiou o governo queniano no pedido ao Conselho de Segurança para que adotasse uma resolução com vista à suspensão dos processos referentes ao presidente queniano e ao

13ICC-02/05-01/09-1, Pre-Trial Chamber I, The Prosecutor v. Omar al Bashir, Warrant of Arrest for Omar Hassan Ahmad Al Bashir, 04.03.2009 e ICC-02/05-01/09-95, Pre-Trial Chamber I, The Prosecutor v. Omar al Bashir, Second Warrant of Arrest for Omar Hassan Ahmad Al Bashir,12.07.2010.

14V. Theresa Reinold (2012), Constitutionalization? Whose constitutionalization? Africa’s ambivalent engagement with the International Criminal Court, International Journal of Constitutional Law, 10(4): 1076-1105, Ken Obura (2011), The Security Council’s Power to Defer ICC Cases under Article 16 of the Rome Statute, Journal of African and International Law, 4(3) 581-583 e Stella Nyana (2011), The ICC at a Crossroads: Between Prosecution and Peace in Africa, Journal of African and International Law, 4(1): 1- 74.

15ICC-02/05-01/09-195, Pre-Trial Chamber II, The Prosecutor v. Omar al Bashir, Decision on the Cooperation of the Democratic Republic of the Congo Regarding Omar Al Bashir’s Arrest and Surrender to the Court, 09.04.2014.

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vice-presidente, William Ruto, nos termos do artigo 16º, tendo a organização renovado o pedido em 2013, novamente recusado pelo Conselho de Segurança16.

Já em Junho deste ano, a UA aprovou uma emenda ao protocolo do futuro Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos com jurisdição sobre crimes internacionais que preceitua a imunidade a Chefes de Estado e altos funcionários do Estado, por oposição ao que estabelece o Estatuto de Roma no artigo 27º17, o que permite prospetivar a persistência das tensões jurídico-políticas entre esta organização e o TPI.

3.2. Insuficiências na interpretação do Estatuto de Roma

3.2.1. “Crime de Agressão” e “Ato de Agressão”

Da impossibilidade de alcançar um acordo sobre uma definição de “crime de agressão” e respetivos elementos na Conferência de Roma resultou a inclusão no Estatuto de uma cláusula adicional à prescrição deste crime, a qual previa o exercício da jurisdição se numa Conferência de Revisão, conforme previsto nos artigos 121º e 123º, fosse aprovada uma disposição definindo este crime e as condições para esse efeito (artigo 5º, nº 2). Nesse sentido, a resolução F do Anexo I da Ata Final da Conferência de Roma estabeleceu uma comissão preparatória com várias funções entre as quais a elaboração de propostas concernentes a este crime18, missão posteriormente atribuída ao Special Working Group on the Crime of Agression.

A definição de crime de agressão adotada na Conferência de Kampala representa um desenvolvimento significativo no Direito Penal Internacional19 − é inegável que a entrada em vigor de uma jurisdição punindo o crime de agressão constituirá uma evolução, dado que será a primeira vez que um sistema permanente de justiça penal impõe uma responsabilidade criminal pelo uso ilegal da−forçaporém, inclui condicionalismos formais e materiais, suscitando estes últimos questões interpretativas que poderão dificultar a determinação da existência deste crime.

No que toca aos condicionalismos formais, o Tribunal somente poderá exercer jurisdição sobre os crimes cometidos um ano após a aceitação ou ratificação mínima de

16 V. Theresa Reinold (2012), Constitutionalization? Whose constitutionalization? Africa’s ambivalent engagement with the International Criminal Court, International Journal of Constitutional Law, 10(4): 1076-1105, Ken Obura (2011), The Security Council’s Power to Defer ICC Cases under Article 16 of the Rome Statute, Journal of African and International Law, 4(3) 581-583 e Stella Nyana (2011), The ICC at a Crossroads: Between Prosecution and Peace in Africa, Journal of African and International Law, 4(1): 1- 74.

17O artigo 27º, nº 1 determina que “o Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal, nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per si motivo de redução da pena. O nº 2 do mesmo artigo preceitua que “as imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do Direito Interno ou do Direito Internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”.

18U.N. Doc. A/CONF.183/13 (Vol. I), United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United Nations, 2002, §7, p. 72 e s.

19V., entre outros, Niels Blokker; Claus Kress (2010), A Consensus Agreement on the Crime of Aggression: Impressions from Kampala, Leiden Journal of International Law, 23(4): 889-895.

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trinta Estados20 e de uma decisão somente após 1 de Janeiro de 2017 na Assembleia dos Estados Partes de ativar a jurisdição do TPI (artigos 15º bis e 15º ter, nos 2 e 3). Estes condicionalismos têm sido alvo de críticas por parte de certos autores, como por exemplo, Mary Ellen O’Connell e Mirakmal Niyazmatov que qualificam este processo de “bizantino” (2012: 191).

A nível dos pressupostos materiais, o novo artigo 8º bis, nº 1 preceitua o crime de agressão como:

planning, preparation, initiation or execution, by a person in a position effectively to exercise control over or to direct the political or military action of a State, of an act of aggression which, by its character, gravity and scale, constitutes a manifest violation of the Charter of the United Nations".

A responsabilidade criminal é somente atribuída a indivíduos que se encontrem numa posição de efetivamente exercer controlo e dirigir uma ação política ou militar de um Estado, por outras palavras, a posição de liderança é um fator determinante.

A noção de “ato de agressão” encontra-se precisada no nº 2 deste artigo. Trata-se do uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou independência política de um outro Estado ou de outro modo incompatível com os princípios da Carta. Esta disposição absorveu o artigo 1º da Definição de Agressão da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1974− resolução 3314 (XXIX), ao mesmo tempo que enumera vários atos que poderão qualificar como um ato de agressão, patentes no artigo 3º da Definição − tais como a invasão, a ocupação militar e o bombardeamento pelas forças armadas de um Estado contra outro Estado. De notar, ainda, que o ato de agressão tem que ser analisado no contexto do seu “caráter”, “escala” e “gravidade”. Isto significa que somente se pode verificar um crime de agressão quando um ato de agressão constitui uma manifesta violação da Carta. Assim, embora o ato de agressão possa ser cometido apenas por um Estado, a responsabilidade por tais atos ilícitos reside no indivíduo que é responsável por tal ação estatal.

Os procedimentos segundo os quais o Tribunal pode exercer a jurisdição encontram-se estabelecidos nos artigos 15º bis e 15º ter. O primeiro prevê a possibilidade de submissão por parte dos Estados Partes e de impulso processual por parte do Procurador. O artigo 15º ter prescreve a possibilidade de submissão por parte do Conselho de Segurança, o que significa que neste caso o Tribunal será igualmente competente para investigar e julgar os crimes de agressão independentemente de os Estados em questão terem aceitado a sua jurisdição.

A Conferência de Kampala definiu o crime de agressão e as condições de exercício da jurisdição cujo objetivo é clarificar e auxiliar na interpretação e aplicação das emendas ao Estatuto. No entanto, as disposições enunciadas e as próprias clarificações contêm alguns aspetos ambíguos.

20Atualmente, 15 Estados vincularam-se às emendas adotadas referentes ao crime de agressão: Andorra, Áustria, Bélgica, Botsuana, Croácia, Chipre, Estónia, Alemanha, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa, Eslováquia, Eslovénia, Trindade e Tobago e Uruguai.

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No que concerne ao “ato de agressão”, os critérios de “gravidade” e “escala” foram incluídos com o propósito de não sobrecarregar o Tribunal com casos de menor dimensão enquanto que o critério de “caráter” pretendia excluir casos de emprego da força cuja licitude era controversa. (Mancini, 2012: 236). Contudo, os critérios “caráter”, “gravidade” e “escala” que possibilitam avaliar se um ato constitui uma violação manifesta da Carta não se encontram definidos – estes últimos à semelhança do que se verifica com a determinação da existência de um ataque armado nos termos do artigo 51º da Carta das Nações Unidas, o que poderá ser problemático nomeadamente devido às divergências existentes sobre o recurso lícito ao uso da força em legítima de defesa ou no caso da ingerência humanitária (Santos, 2012). Os elementos constitutivos referem que a qualificação de violação “manifesta” da Carta é objetiva, porém este processo no seio das Nações Unidas não é pacífico.

Simultaneamente, a remissão do nº 2 do artigo 8º para a resolução 3314 da Assembleia Geral no sentido de clarificar a noção de “ato de agressão” suscita algumas questões. Em primeiro lugar, algumas formulações contidas na resolução revelam um caráter vago e a lista enunciada não é exaustiva, o que poderá originar situações controversas. Em segundo lugar, o artigo não esclarece se e, em que medida, outros artigos da resolução seriam aplicáveis ou relevantes para o Tribunal (Surendran Koran: 252).

Para além da Definição de Agressão deter um caráter político, relembre-se que a Assembleia Geral apenas pode emitir recomendações, desprovidas, portanto, de efeito vinculativo, os nos 6, 7 e 8 do artigo 15º bis confirmam o poder do Conselho de Segurança. Efetivamente, o artigo 39º da Carta preceitua o poder exclusivo do Conselho para determinar a existência de ato de agressão, podendo aludir a um caso distinto dos enunciados. A prática, todavia, não se revela uniforme e recorrentemente as decisões ao abrigo do Capítulo VII empregam uma linguagem distinta.

A este propósito cabe referir outros aspetos que têm sido criticados tais como a completa exclusão de atos de nacionais de Estados não parte − ao contrário do que se verifica com os outros “crimes de maior gravidade” − e a “retrograde opt-out clause” (Alam, 2010: 179-180) que prevê a possibilidade de exclusão voluntária da jurisdição do Tribunal (artigo 15º bis, nº 4). Alguns críticos consideram a resolução uma orientação política para a determinação da responsabilidade estatal e que, por isso, não previa a sua aplicação relativamente a uma responsabilidade penal individual (Alam, 2010: 170).

Mas uma crítica essencial pode ser apontada ao facto de a definição de agressão adotada em Kampala não contemplar uma possível agressão por parte de atores não estatais. Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 demonstraram a possibilidade de tal ato poder ser cometido por entidades não estatais bem como a magnitude que tal ato pode assumir, comparável a um ato perpetrado por um Estado.

Efetivamente, considera-se que a solução apresentada revela problemas que não poderão ser subestimados sob pena de poderem obstar ao bom funcionamento do TPI. Discorda-se, no entanto, da visão pessimista de alguns autores mais críticos como Mary Ellen O’Connell e Mirakmal Niyazmatov que defendem que “the substantive provision leaves experts unclear as to what the prosecutable crime even is”. Estes autores duvidam da exequibilidade de um processo penal e lamentam que a solução apresentada seja diferente da definição de crime de agressão preceituada no Direito

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Internacional, afirmando a imprescindibilidade de esta proibição de agressão não ser minada pelo compromisso político de Kampala (O’Connell; Niyazmatov, 2012: 191, 207).

3.2.2. “Crimes contra a Humanidade”

O artigo 7º carateriza-se por algumas formulações que denotam uma certa ambiguidade.

As dificuldades interpretativas e as suas consequências têm sido sublinhadas por vários autores. Jordan J. Paust considera as formulações demasiado restritivas e pouco claras: “Article 7 contains a limiting definition of ‘attack’ that is lacking in common sense. Instead of recognizing that one attack can constitute an ‘attack’, Article 7(2)(a) requires that an ‘attack’ involve ‘a course of conduct involving the multiple commission of acts’” (2010: 691). O autor argumenta ainda que o emprego da palavra “ataque” em vez de, por exemplo, ato(s) cometido(s) (contra) é problemático, uma vez que poderá ter como consequência a impossibilidade de abranger certas situações que têm sido associadas a crimes desta tipologia e que aparecem enunciadas na listagem. De igual modo, de acordo com este autor, as expressões “qualquer conduta que envolva” e “prática múltipla de atos” são discutíveis, dado não incluirem atos de tortura, violação, perseguição entre outros (Ibid., 692-693).

Uma crítica que também se pode apontar prende-se com a expressão “no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Porém onde reside a linha delimitativa do patamar “sistemático e generalizado”?

Um outro problema interpretativo prende-se com o entendimento da expressão “outros atos desumanos de caráter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental ou física” (nº 1, alínea k)). A sua interpretação tornou-se relevante pela primeira vez na acusação conjunta de Germain Katanga e de Mathieu Ngudjolo Chui em 2008. O Gabinete do Procurador acusou ambos da perpetração deste tipo de atos e o juízo de instrução considerou que deveriam ser interpretados de forma estrita. Contudo, alguns autores como Bernhard Kuschnik defendem uma interpretação em sentido amplo (2010: 524-530).

Segundo Cameron Russell, um dos problemas interpretativos prende-se com a noção de “civil”. O autor advoga que os parâmetros não são claros, o que é parcialmente resultado da dissociação destes crimes com o requisito da existência de um conflito armado, no âmbito do qual este conceito era empregue para diferenciar de “combatentes”; mas o facto de estes crimes poderem ser cometidos em tempos de paz gera problemas interpretativos (2011: 60-61). Além disso, um “ataque contra a população civil” implica uma conduta “de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política” (nº 2, alínea a)), no entanto o conceito “organização” é impreciso, o que resulta igualmente da dissociação com a existência de um conflito armado. Assim, torna-se necessário definir “organização” para diferenciá-la da entidade estatal (Ibid.: 63). Na opinião do autor, o requisito de “política” parece criar alguma incompatibilidade no seio do Estatuto (Ibid.: 70). Leila Nadya Sadat observa que os juízos de instrução têm demonstrado diferentes posições na interpretação do artigo 7º, designadamente no que

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respeita à expressão “política de um Estado ou de uma organização” (2013: 335). Esta

condição para a persecução destes crimes permanece controversa (Ibid.: 352) e deveria ser intepretada em sentido amplo sob pena de resultar na fragmentação do Direito Penal Internacional (Ibid.: 375). A opinião dissidente de Hans-Peter Kaul na sequência do pedido do Procurador ao juízo de instrução para abrir um inquérito referente à violência após as eleições no Quénia apresentou um entendimento em sentido oposto. De acordo com o juiz somente os Estados ou organizações com caraterísticas semelhantes a um Estado seguindo políticas criminosas podem perpetrar crimes contra a humanidade. Esta posição tem reunido algum apoio na doutrina e no seio do Tribunal (Sadat, 2013: 336).

Merece ainda referência a opinião minoritária de Christine Van den Wyngaert em Março deste ano respeitante ao caso de Germain Katanga por ilustrar a problemática e poder ter repercussões em futuros julgamentos. A juíza discordou da condenação de Germain Katanga por considerar que não ficou provada a responsabilidade criminal de contribuir intencionalmente para prática de crimes por um grupo de pessoas com o conhecimento de que este grupo tinha a intenção de cometer tais crimes (artigo 25º, nº 3, alínea d),

vii)e que a interpretação das provas poderia ter sido efetuada de uma forma diferente e mais convincente. Mas no que se refere à acusação de crimes contra a humanidade, a juíza formulou várias linhas de argumentação. Na sua opinião, em primeiro lugar, o número de vítimas não permitiu qualificar os atos como crimes contra a humanidade e, consequentemente, não se poderia considerar que se verificou a prática múltipla de atos; em segundo lugar, não ficou provado de forma incontestável que a população civil era o principal alvo; em terceiro lugar, não ficou provada a existência de uma política e de uma organização e, por último, o ataque ocorrido não poderia ser considerado sistemático21.

Neste contexto, é de saudar que a Comissão de Direito Internacional, em Junho de 2013 − na sequência da recomendação do Working Group on the Long-term Programme of Work com base na proposta elaborada pelo membro do grupo de trabalho, Sean Murphy – tenha adicionado ao seu programa o tópico “crimes contra a humanidade”. Como o autor da proposta observa:

“For example, the mass murder of civilians perpetrated as part of an international armed conflict would fall within the grave breaches regime of the 1949 Geneva Conventions, but the same conduct arising as part of an internal armed conflict (as well as internal action below the threshold of armed conflict) would not (…). A global convention on crimes against humanity appears to be a key missing piece in the current framework of international humanitarian law, international criminal law, and international human rights law”22.

Sean Murphy salienta a relevância da elaboração de uma convenção internacional relativa à prevenção e punição de tais atos. Na proposta chama a atenção para aspetos

21ICC-01/04-01/07-3436-Anxl, Minority Opinion of Judge Christine Van den Wyngaert, 07.03.2014.

22U.N. Doc. A/68/10, Sean D. Murphy, Annex B, Report of the International Law Commission, Sixty-fifth session, General Assembly, Official Records, Sixty-eighth session, 2013, §2 e §3, pp. 140-141.

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que deveriam ser tidos em conta pela Comissão tais como definir a ofensa de “crimes contra a humanidade” para os propósitos da Convenção como se encontra definida no artigo 7º.

No que se refere à articulação entre a Convenção e o TPI, Sean Murphy afirma que a elaboração da Convenção iria beneficiar consideravelmente da linguagem do Estatuto e instrumentos associados assim como da jurisprudência. Por sua vez, a adoção da Convenção poderia colmatar aspetos que não foram abordados pelo Estatuto e apoiar a missão do TPI23. Isto porque sobretudo, entre outros aspetos enunciados pelo autor, o Estatuto regula assuntos entre Estados Partes e o TPI, mas não entre Estados Parte e entre estes e Estados não parte. A parte IX, epigrafada “cooperação internacional e auxílio judiciário” reconhece implicitamente que a cooperação interestatal relativamente a crimes sob jurisdição do Tribunal poderá ocorrer para além do Estatuto de Roma. A Convenção poderia auxiliar na promoção da cooperação interestatal no que se refere à investigação, detenção, persecução e punição de indivíduos que pratiquem este tipo de crimes, o que seria compatível com o objeto e o fim do Estatuto; a convenção iria requerer a promulgação de legislação nacional que proíba e puna estes crimes, o que na opinião do autor ainda não foi efetuado por vários Estados, ajudando no preenchimento de uma lacuna e, assim, poderia encorajar todos os Estados a ratificar ou aderir ao Estatuto; no caso de Estados que já adotaram legislação, frequentemente esta apenas permite a persecução de crimes cometidos por nacionais desse Estado ou no seu território. A Convenção iria requerer ao Estado Parte que ampliasse a sua legislação para abranger outros indivíduos que se encontrem no seu território – nacionais de outros Estados que cometam uma ofensa no território de um outro Estado Parte da Convenção. Acautelando a eventualidade de um Estado Parte receber um pedido de entrega de uma pessoa formulado pelo Tribunal e, ao mesmo tempo, um pedido de qualquer outro Estado para a sua extradição de acordo com a Convenção, Sean Murphy propõe que a Convenção seja delineada de modo a garantir que os Estados que sejam parte do Estatuto e da Convenção possam continuar a seguir o procedimento previsto no artigo 90º do Estatuto perante pedidos concorrentes24.

4. Multifacetando o TPI

Certos desafios como o terrorismo em todas as suas formas e manifestações, a profusão de conflitos intraestatais com diferentes nuances e complexidades e o fenómeno dos Estados frágeis, falhados ou colapsados evidenciam o número crescente de situações distintas e intricadas em que um Estado não está disposto, não possui capacidade efetiva para conduzir um inquérito ou um procedimento criminal ou se revela incapaz de proteger a sua população de crimes internacionais.

Deste modo, estes desafios justificam a indispensabilidade de repensar o TPI através de um processo de atribuição de novas facetas e de exploração mais aprofundada de facetas já previstas no Estatuto. Mais concretamente, um repensar da competência deste órgão com a sua ampliação ao crime internacional de terrorismo – ou seja, atos terroristas em grande escala, os quais “constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da Humanidade”, dos quais resultam atrocidades “que chocam profundamente a consciência da Humanidade” e que afetam “a comunidade

23Ibid., §8, §9, p. 142 e s.

24Ibid., §10 e §12. V., artigo 90º do Estatuto de Roma.

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internacional no seu conjunto” parafraseando o preâmbulo, similarmente ao que se verifica com os crimes de maior gravidade sob a alçada do Tribunal− e um repensar da sua atuação com vista à proteção das populações desses crimes que se deverá inscrever no âmbito da conceção da “responsabilidade de proteger”.

4.1. A categorização do terrorismo como “crime internacional”

Os atos, os métodos e as práticas terroristas podem assumir inúmeras formas e manifestações e constituem atividades que visam a destruição dos direitos humanos e das liberdades fundamentais25. A disseminação de um novo tipo de terrorismo de natureza transnacional e a multiplicação de grupos terroristas em diferentes partes do globo, incluindo territórios de Estados Partes do Estatuto, grupos nos quais poderão estar envolvidos nacionais destes Estados implicam retomar a questão sobre a eventual competência do Tribunal nesta matéria.

A ideia de incluir o terrorismo como um dos crimes mais graves que afetam a comunidade internacional encontra-se patente no projeto de Estatuto do TPI da Comissão de Direito Internacional de 1994. A proposta da Comissão consistiu na integração de um artigo− o artigo 20º − que contemplava, a par dos crimes de genocídio, de agressão, de violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados e de crimes contra a humanidade, uma alínea específica, a alínea e), relativa aos “treaty crimes” nos quais se inseria o terrorismo: “Crimes, established under or pursuant to the treaty provisions listed in the Annex, which, having regard to the conduct alleged, constitute exceptionally serious crimes of international concern26.

De modo idêntico, o Comité Preparatório para a criação de um Tribunal Penal Internacional estabelecido em 1996 pela Assembleia Geral das Nações Unidas − com o objetivo de preparar um projeto de texto consolidado e amplamente aceite, servindo de base de negociação para o estabelecimento de um tribunal penal internacional− propôs a inclusão de crimes de terrorismo entre outros (artigo 5º, alínea e))27 como uma ofensa prevista nas convenções mencionadas pelo projeto da Comissão (nº 2), mas foi mais além precisando estes crimes da seguinte forma:

Undertaking, organizing, sponsoring, ordering, facilitating, financing, encouraging or tolerating acts of violence against another State directed at persons or property and of such a nature as to create terror, fear or insecurity in the minds of public figures, groups of persons, the general public or populations, for whatever considerations and purposes of a political, philosophical,

25U.N. Doc. A/RES/60/288, The United Nations Global Counter-Terrorism Strategy, 20.09.2006, p. 2.

26U.N. Doc. A/49/10, Draft Statute for an International Criminal Court, Report of International Law Commission on the work of its forty-sixth session, 2 May-22 July 1994, Official Records of the General Assembly, Forty-ninth session, Supplement No.10, Yearbook of the International Law Commission, 1994, vol. II (2), p. 38. O anexo refere, por exemplo, a Convenção para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves de 1970, a Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil de 1971, a Convenção Internacional contra a Tomada de Réfens de 1979 e a Convenção para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima de 1988, pp. 67 e ss.

27U.N. Doc. A/CONF.183/13(Vol. III), Report of the Preparatory Committee on the Establishment of an International Criminal Court, United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United Nations, 2002, p. 5.

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ideological, racial, ethnic, religious or such other nature that may be invoked to justify them” (nº 1).

An offense involving use of firearms, weapons, explosives and dangerous substances when used as a means to perpetrate indiscriminate violence involving death or serious bodily injury to persons or groups of persons or populations or serious damage to property” (nº 3).

O dissenso entre Estados Partes patente na Conferência de Roma impossibilitou a sua incorporação no Estatuto, porém os Estados na resolução E do Anexo I da Ata Final da Conferência reconheceram que “terrorist acts, by whomever and wherever perpetrated and whatever their forms, methods or motives, are serious crimes of concern to the international community” e profundamente apreensivos com a persistência desta grave ameaça à paz e segurança internacionais recomendaram que uma Conferência de Revisão realizada nos termos do artigo 123º do Estatuto28 tivesse em consideração os crimes de terrorismo com vista a alcançar uma definição consensual e a sua inclusão na lista dos crimes mais graves29. Esta temática não foi, contudo, abordada na Conferência de Revisão de Kampala de 2010. Indubitavelmente, a principal dificuldade prende-se com a ausência de uma definição jurídico-política universal consagrada numa convenção global sobre o terrorismo internacional, prescrevendo que os atos terroristas em grande escala constituem um crime internacional.

Vários autores frisam que atos de terrorismo internacional como os ataques de 11 de Setembro de 2001 poderiam ser considerados como crimes contra a humanidade de acordo com o artigo 7º do Estatuto e julgados pelo TPI. Mireille Delmas-Marty defende que o nº 2 deste artigo que define a noção de ataque contra a população civil como um elemento de crimes contra a Humanidade poderia ter sido aplicado a estes atos terroristas (2013: 561). A este respeito Vincent-Joël Proux acrescenta: “other acts of international terrorism, which do not compare in magnitude to the events of September 11th, yet still constitute an affront to the principles of humanity, should be prosecuted under this mechanism” (2004: 1085). Lucy Martinez admite a possibilidade de atos individuais de terrorismo internacional serem abrangidos pelas definições de crimes contra a humanidade ou de crimes de guerra, mediante o requisito da existência de um conflito armado (2002: 50). Por sua vez, Surendra Kumar ainda que defenda que crimes com a magnitude dos atos terroristas de 2001 possam prefigurar crimes contra a humanidade, atos terroristas de menor dimensão não poderão cumprir os requisitos estabelecidos e, portanto, não serão abrangidos pela jurisdição do TPI. A autora

28O artigo 123º, nº 1 prescreve que “sete anos após a entrada em vigor do presente Estatuto, o Secretário- Geral da Organização das Nações Unidas convocará uma conferência de revisão para examinar qualquer alteração ao presente Estatuto. A revisão poderá incidir nomeadamente, mas não exclusivamente, sobre a lista de crimes que figura no artigo 5º”.

29U.N. Doc. A/CONF.183/13 (Vol. I), United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United Nations, 2002, pp. 71 e s. Na Conferência de Roma, vários Estados defenderam a jurisdição do tribunal sobre os crimes de terrorismo, Ibid., vol. II (por exemplo, Argélia, §18, p. 73, Quirguistão, §71, p. 77, Costa Rica, §74, p. 77, Arménia, §83, p. 78, Albânia, “institutionalized State terrorism”, §12, p. 82, Índia, §52, p. 86 e s., Tajiquistão, §17, p. 92, Federação Russa, “most serious terrorist crimes”, §20, p. 115, Congo, §49, p. 117, Sri Lanka, §35, p. 123, Turquia, “Terrorism should have been included among crimes against humanity, since it was often the root cause of such crimes”, §41, p. 124).

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sustenta, ainda, que embora alguns atos de terrorismo possam em certa medida ser considerados como um crime de genocídio− mas a condenação por tais atos dependerá da suficiência da prova para preencher os elementos da definição de genocídio, ou crime de guerra− quando cometidos em conflitos armados, os atos terroristas nem sempre possuirão essas caraterísticas (2008: 200-202). Nesse sentido, propõe uma emenda ao Estatuto: “the need of the hour is that crimes of terrorism, inducing suicide terrorism should be incorporated as a separate category and deserves separate contemplation and prosecution” (2008: 202).

Os argumentos esgrimidos a favor do crime de terrorismo recair sob a alçada do Tribunal prendem-se com as limitações dos sistemas judiciários nacionais e as caraterísticas comuns deste tipo de atos com os crimes de maior gravidade contemplados no Estatuto.

Os Países Baixos propuseram uma emenda à lista destes crimes em 2009 e explicitaram a problemática:

“We have all committed ourselves to cooperate fully in the fight against terrorism, in accordance with our obligations under international law, in order to find, deny safe haven and bring to justice, on the basis of the principle of extradite or prosecute, any person who supports, facilitates, participates or attempts to participate in the financing, planning, preparation or perpetration of terrorist acts or provides safe havens. Yet, at the same time, there is all too often impunity for acts of terrorism in cases where states appear unwilling or unable to investigate and prosecute such crimes. (…) In the light of the absence of a generally acceptable definition of terrorism, the Netherlands proposes to use the same approach as has been accepted for the crime of aggression, i.e. the inclusion of the crime of terrorism in the list of crimes laid down in article 5, paragraph 1, of the Statute (…)”30.

De acordo com esta proposta, o crime de terrorismo estaria previsto numa nova alínea (a alínea e)) do nº 1 do artigo 5º. Além disso, este artigo passaria a incluir um terceiro parágrafo que transporia ipsis verbis o conteúdo do segundo parágrafo consagrado no Estatuto concernente ao crime de agressão:

The Court shall exercise jurisdiction over the crime of terrorism once a provision is adopted in accordance with articles 121 and 123 defining the crime and setting out the conditions under which the Court shall exercise jurisdiction with respect to this crime. Such a provision shall be consistent with the relevant provisions of the Charter of the United Nations” (nº 3 do artigo 5º).

30ICC-ASP/8/43/Add. 1, Report of the Bureau on the Review Conference, Annex IV, 10.11.2009, pp. 12 e s. 32

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A proposta previa, ainda, o estabelecimento de um grupo de trabalho informal sobre o crime de terrorismo na Conferência de Kampala cuja missão seria a de analisar em que medida o Estatuto requeriria alterações na sequência da introdução do crime de terrorismo bem como outras questões relevantes decorrentes da ampliação do alcance jurisdicional.

Se os ataques de 11 de Setembro de 2001 relançaram a questão sobre atos terroristas em grande escala poderem constituir “crimes internacionais” e recair sob a alçada do TPI, presentemente podem-se enunciar diversos argumentos que fundamentam a consagração do terrorismo como crime da competência do Tribunal.

Os ataques supracitados foram considerados pelo Conselho de Segurança como uma ameaça à paz e segurança internacionais (resolução 1368 (2001)). Em várias resoluções, este órgão reafirmou que o terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das ameaças mais graves à paz e segurança internacionais, tendo a Estratégia Global de Combate ao Terrorismo da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2006 se referido a este fenómeno nos mesmos termos31.

A sua gravidade é acentuada pelas diferentes e múltiplas formas e manifestações que assume perpetrado também por atores não estatais, grupos que recorrem a diferentes métodos e detêm diferentes motivações.

Sublinhando o facto de o terrorismo não dever e não poder ser associado a nenhuma religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico− tal como o faz o Conselho de Segurança em decisões ao abrigo do Capítulo VII e a Estratégia das Nações Unidas supracitada32 − atualmente as ações de diversos grupos extremistas, na sua maioria considerados grupos terroristas, nos quais poderão participar nacionais de Estados Partes e cujos atos poderão ocorrer nos seus territórios constituem um argumento neste sentido.

Éindubitavelmente significativo que a Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, tenha aberto um inquérito (em Janeiro de 2013) devido à existência de fundamentos que permitiram considerar que foram cometidos crimes de guerra desde Janeiro de 2012 atribuídos maioritariamente ao Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA), ao grupo Defensores do Islão (Ansar Dine), à Organização da Al-Qaida no Magrebe Islâmico (AQIM) e ao Movimento para a Unidade e a Jihad na África do Oeste (MUJAO)33 − estes três últimos grupos terroristas, ideologicamente inspirados e com ligações à organização terrorista al-Qaida34. De igual modo, é significativo que Procuradora conduza uma investigação preliminar concernente às atividades do grupo jihadista Boko Haram, grupo terrorista com ligações à Al-Qaida35, que terá segundo o relatório cometido crimes contra a humanidade desde Julho de 200936. Contudo, se a

31U.N. Doc. A/RES/60/288, The United Nations Global Counter-Terrorism Strategy, 20.09.2006, p. 1.

32Ibid., p. 2.

33ICC, The Office of the Prosecutor, Situation in Mali, Article 53 (1) Report, 16.01.2013, pp. 13-28. Este inquérito surge na sequência de uma investigação preliminar com base na submissão do governo do Mali datada de 13 de Julho de 2012 com base no artigo 14º perante a impossibilidade de persecução ou julgamento dos responsáveis por crimes contra a humanidade e crimes de guerra perpetrados sobretudo na parte norte do território. V. Referral Letter, Republique du Mali, Ministère de la Justice, 13.07.2012.

34O Conselho de Segurança associou o grupo Ansar Dine em 20 de Março de 2013 e o MUJAO em 5 de Dezembro de 2012 à Al-Qaida. A AQIM tinha sido associada originariamente com o nome Grupo Salafista de Prédica e Combate a 6 de Outubro de 2001.

35Em 22 de Maio de 2014, o Conselho de Segurança colocou Boko Haram na lista de entidades associadas com a Al-Qaida.

36ICC, The Office of the Prosecutor, Report on Preliminary Examination Activities, 2013, §206 e §209-§219.

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Procuradora decidir proceder criminalmente, formulando uma acusação, caberá ainda ao juízo de instrução criminal e, eventualmente, ao juízo de julgamento em 1ª instância corroborar estas avaliações.

Os atos cometidos pelo grupo jihadista “Estado Islâmico”37, grupo dissidente da Al- Qaida, contra forças de segurança e civis iraquianos foram condenados pelo Conselho de Segurança que se referiu a estes como ataques/atos terroristas38, assim como vários Estados Partes do Estatuto. A proclamação de um califado transnacional por parte deste grupo− que engloba o norte do território sírio e o leste do território iraquiano, com tendências expansionistas, ameaçando os países vizinhos entre os quais a Jordânia, Estado Parte − poderá incrementar a execução e a magnitude e diversificar as caraterísticas dos atos terroristas.

A este respeito importa mencionar a resolução 2170 (2014) na qual o Conselho de Segurança:

Deplores and condemns in the strongest terms the terrorist acts of ISIL and its violent extremist ideology, and its continued gross, systematic and widespread abuses of human rights and violations of international humanitarian law”.

Recalls that widespread or systematic attacks directed against any civilian populations because of their ethnic or political background, religion or belief may constitute a crime against humanity, emphasizes the need to ensure that ISIL, ANF [Al Nusra Front] and all other individuals, groups, undertakings and entitites associated with Al-Qaida are held accountable for abuses of human rights and violations of international humanitarian law (…)”.

Éigualmente relevante o facto de este órgão aludir à possibilidade de certos atos poderem ser enquadrados como crimes contra a humanidade e, ao mesmo tempo, indiciar a existência de outros tipos de crimes internacionais, reafirmando simultaneamente, contudo, que os atos do ISIL não podem e não devem ser associados a nenhuma religião, nacionalidade e civilização.

No entanto, nem todos os atos terroristas poderão ser enquadrados nas disposições e respetivos elementos constitutivos referentes aos crimes de maior gravidade com alcance internacional.

Enquanto que a qualificação como crimes de guerra implica a existência de um conflito armado, o crime de genocídio, embora faça alusão à “intenção de destruir”, presente em atos terroristas, implica que esta seja com vista a destruir em parte ou no todo um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso nos termos do artigo 6º, o que em determinados atos poderá não se verificar ou não ser possível provar inequivocamente.

37Desde Junho, esta designação substituiu a autodenominação anterior do grupo de “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”, também conhecido pelos acrónimos ISIS (Islamic State of Iraq and Syria) ou ISIL (Islamic State of Iraq and the Levant).

38U.N. Doc. SC/11437, Security Council Press Statement on Iraq, 11.06.2014. Em 30 de Maio de 2013, o Conselho de Segurança incluiu este grupo e a Frente de al-Nusra na lista de entidades terroristas ligadas à Al-Qaida.

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No tocante aos crimes contra a humanidade, o Estatuto determina que se trata de um ataque generalizado e sistemático - o que impede que um ataque de grande magnitude, mas que não detenha essas caraterísticas possa ser subsumido neste artigo

-e prescreve que um ataque contra a população civil significa a prática de atos de acordo com a política de um Estado ou de uma organização, mas poderá ser difícil estabelecer um elo de ligação com uma política estatal ou de uma organização, uma vez que o terrorismo poderá ser cometido de modo individualizado. O crime de agressão circunscreve-se a indivíduos numa posição de liderança e que cometam um ato de agressão, indissociando a premissa da existência de um crime desta natureza de um ato de agressão por parte de um Estado, o que dificulta a sua aplicação a entidades não estatais.

Além disso, o princípio nullum crimen sine lege ao prever que nenhuma pessoa poderá ser criminalmente responsabilizada pela sua conduta quando esta não constitua, no momento que tiver lugar, um crime de competência do Tribunal (artigo 22º), poderia significar que os autores de atos terroristas, a coberto deste princípio, permaneceriam impunes.

Ao terrorismo encontram-se subjacentes as ideias de criação de um sentimento de terror, medo e insegurança nos indivíduos e de perpetração de violência indiscriminada com recurso a diferentes tipos de armas, daí que a proposta do Comité Preparatório se afigure como a solução mais adequada, ainda que se proponha no presente texto a extensão da definição consagrada no nº 1 a entidades não estatais. Atos terroristas como o emprego de um explosivo convencional em combinação com material radioativo com o propósito de o propagar numa área ampla de modo a expor as vítimas a radiação nuclear (designado de “bomba suja”) ou a libertação intencional de microrganismos patogénicos poderão ser inscritos no nº 3 da proposta do Comité. Simultaneamente, na linha da Comissão e do Comité, o acrescento da referência a tratados concernentes ao terrorismo permitirá contornar a lacuna existente respeitante a uma convenção internacional sobre terrorismo e a uma definição consensual e vinculativa. Propõe-se, no entanto, a previsão de um mecanismo que permita incluir futuras convenções, o que se justifica pelo incremento registado nos últimos anos.

Em alternativa, embora a proposta dos Países Baixos não tenha reunido o apoio suficiente para ser discutida na Conferência de Kampala e apesar de este Estado ter retirado a sua proposta em Junho de 2013, no seio do grupo de trabalho Working Group on Amendments criado pela Assembleia dos Estados Partes para servir como mecanismo para debater as propostas apresentadas39, considera-se que a proposta apresentada poderia constituir uma solução intermédia para resolver este impasse à semelhança do que se verificou com o crime de agressão.

4.2. O TPI e a Responsabilidade de Proteger

O repensar da atuação do Tribunal com vista à proteção das populações de crimes internacionais efetuada no presente artigo deve inscrever-se no âmbito de uma “responsabilidade de proteger” da comunidade internacional.

39ICC-ASP/12/44, Report of the Working Group on Amendments, 24.10.2013, §4. 35

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Àsemelhança do TPI, esta responsabilidade centra-se nos crimes de genocídio, limpeza étnica, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Esta conceção foi desenvolvida pela “International Commission on Intervention and State Sovereignty” (ICISS) e apresentada no relatório “The Responsibility to Protect” de 2001. A sua relevância foi reconhecida pelos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas no documento final da Cimeira de 2005 que integrou os seus traços gerais: a responsabilidade de proteger reside primeiramente no Estado e abarca a prevenção de tais crimes incluindo a sua instigação com base em meios adequados e necessários. Se apropriado, a comunidade internacional deve encorajá-lo e prestar-lhe assistência para que possa cumprir essa responsabilidade; se as entidades nacionais não estiverem dispostas ou não forem capazes de proteger a sua população, a comunidade internacional deverá tomar as medidas coletivas adequadas a fim de proteger a população de crimes de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade de uma forma atempada e decisiva com base nos Capítulos VI, VII e VIII da Carta das Nações Unidas40.

O Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, tem precisado a conceção de responsabilidade de proteger e tal como a Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, tem defendido esta interligação. O Secretário-Geral afirmou, no relatório “Implementing the Responsibility to Protect” de 2009, que uma medida importante no âmbito do pilar referente à responsabilidade de proteger pelo Estado− que engloba a prevenç ão de tais crimes e a sua instigação− consiste primeiramente em os Estados se tornarem partes do Estatuto e de instrumentos jurídicos internacionais relevantes e na integração das orientações internacionais na legislação nacional para que os crimes e o seu incitamento sejam criminalizados no Direito e na prática internos41. Ban Ki-moon salientou que a ameaça de submissões ao TPI poderá ter um efeito preventivo42.

A exploração mais aprofundada da prevista faceta de prevenção por parte do Tribunal torna-se imprescindível, tirando partido do seu caráter permanente− contrariamente ao que se verificava com os tribunais penais internacionais ad hoc, implementando, assim, um sistema de justiça preventivo que se pode expressar igualmente através do encorajamento e da prestação de assistência aos Estados Partes no sentido de criar capacidade para proteger as suas populações, quando exista essa necessidade.

Por outras palavras, a “prevenção” aplica-se como medida dissuasora e de contenção. Como sublinha Ban Ki-moon:

by seeking to end impunity, the International Criminal Court and the United Nations-assisted tribunals have added an essential tool for implementing the responsability to protect, one that is already reinforcing efforts at dissuasion and deterrence43.

40U.N. Doc. A/Res/60/1, World Summit Outcome, 24.10.2005, §138 e §139.

41U.N. Doc. A/63/677, Implementing the responsibility to protect, Report of the Secretary-General, 12.01.2009, §17.

42U.N. Doc. A/66/874, Responsibility to protect: timely and decisive response, Report of the Secretary- General, 25.07.2012, §29.

43U.N. Doc. A/63/677, Implementing the responsibility to protect, Report of the Secretary-General, 12.01.2009, §18.

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No mesmo sentido, Phakiso Mochochoko, Diretor da Divisão de Jurisdição, Complementaridade e Cooperação do TPI, refere:

Prevention is key to all our efforts. For the Office, this preventive role is foreseen in the Rome Statute Preamble and reinforced in the Office’s prosecutorial strategies. In fact, the Preamble makes clear that prevention is a shared responsibility in writing that State Parties are “determined to put an end to impunity for the perpetrators of these crimes and thus to contribute to the prevention of such crimes”. The Office of the Prosecutor will make public statements referring to its mandate when violence escalates in situations under its jurisdiction; it will visit situation countries to remind leaders of the Court’s jurisdiction; it will also use its preliminary examinations activities to encourage genuine national proceedings and thereby attempt to prevent the recurrence of violence. Given that the commission of massive crimes can threaten international peace and security, the Security Council can complement the OTP’s [Office of the Prosecutor’s] preventive efforts44.

Neste contexto, o Procurador poderá desempenhar um papel importante nos esforços de prevenção, uma vez que por sua própria iniciativa poderá dar início a um inquérito com base em informações sobre a prática de crimes (artigo 15º). O Gabinete do Procurador, órgão autónomo e independente, poderá “recolher comunicações e qualquer outro tipo de informação, devidamente fundamentada (…), a fim de as examinar e investigar e de exercer a ação penal junto do Tribunal” (artigo 42º, nº 1). Note-se, porém, que uma maior rapidez e agilidade por parte destes tornam-se necessárias com vista à prevenção na fase pré-violência ou quando se encontra a decorrer, portanto, com o propósito de evitar a continuação da ocorrência de crimes no sentido de contenção num curto espaço de tempo.

A instituição de um conselho científico consultivo (Scientific Advisory Board) em 25 de Junho de 2014 pelo Gabinete do Procurador representa uma alteração de relevo. Este conselho reunir-se-á anualmente e efetuará recomendações ao Procurador relativamente aos desenvolvimentos tecnológicos mais recentes bem como novos métodos e procedimentos científicos que possam reforçar a capacidade do Gabinete na recolha, gestão e análise dos dados científicos respeitantes às investigações e à persecução dos crimes45. Mas considera-se que a criação de uma capacidade de alerta precoce e de avaliação da situação que se poderia consubstanciar num órgão específico estabelecido pelo Procurador ou pela Assembleia dos Estados Partes – com competência para o estabelecimento de órgãos subsidiários − seria imprescindível. Este órgão prestaria particular atenção, mas não exclusiva, ao fenómeno dos Estados frágeis, falhados ou colapsados que revelam incapacidade em cumprir os seus

44ICC, The Office of the Prosecutor, Phakiso Mochochoko, Address on behalf of the Prosecutor, Open Debate of the United Nations Security Council on “Peace and Justice, with a special focus on the role of the International Criminal Court”, 17.10.2012.

45ICC, Press Release, The Office of the Prosecutor of the International Criminal Court Establishes a Scientific Advisory Board, 27.06.2014.

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compromissos internacionais; poderia auxiliar na deteção, chamando a atenção para situações relevantes e apoiando o Procurador e o seu Gabinete bem como auxiliar o Tribunal na verificação se o Estado, por colapso total ou substancial da respetiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não se encontra em condições de conduzir um inquérito ou um processo criminal (artigo 17º, nº 3).

Um estudo conjunto de peritos da Universidade de Oxford e do governo australiano propõe que a vertente preventiva do Tribunal seja implementada através do encorajamento da ratificação do Estatuto, do reforço das capacidades a nível nacional, de atividades de sensibilização de modo a consciencializar as populações sobre os crimes que se encontram sob jurisdição do Tribunal, do desenvolvimento de critérios mais objetivos e claros para as submissões do Conselho de Segurança e da garantia de um alinhamento mais consolidado entre instrumentos de prevenção como medidas coercitivas não militares e a mediação com mecanismos da justiça penal46. Estas medidas poderiam ser implementadas na articulação do TPI com a responsabilidade de proteger.

No que se refere à objetivação desta interligação, a submissão do Conselho de Segurança47 da situação na Líbia em 2011 assumiu um significado paradigmático por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a resolução 1970 associou o papel do Tribunal à responsabilidade de proteger e, em segundo lugar, ao ser adotada de forma unânime apesar das reticências dos Estados Unidos, da Federação Russa e da China− membros permanentes do Conselho− relativamente ao TPI parece revelar uma mudança de perceção.

Apesar de a resolução não aludir expressamente a uma responsabilidade de proteger por parte da comunidade internacional, esta refere no preâmbulo “recalling the Libyan authorities’ responsibility to protect its population”. Esta decisão impôs a obrigação de as autoridades líbias cooperarem e prestarem o apoio necessário ao Tribunal e ao Procurador. Na resolução 1973 (2011), o Conselho reiterou a responsabilidade das autoridades de proteger a sua população e, paralelamente à autorização de medidas coercitivas militares, relembrou a decisão de submeter a situação ao TPI, enfatizando que os responsáveis ou cúmplices pelos ataques contra a população civil, incluindo ataques aéreos e navais, teriam que ser responsabilizados.

Carsten Stahn (2011) afirmou a respeito da resolução 1970 que:

This resolution marked the first incident in which the ICC was expressly recognized in Council practice as a core element of preventing and adjudicating atrocities in line with the ‘R2P’ [responsibility to protect] concept (…) With the Security Council referral, international justice has become one of the primary means of constraining violence and securing accountability, not only in the context of hostilities, but also in ensuring justice after conflict”.

46Oxford Institute for Ethics, Law and Armed Conflict, Australian Government, Australian Civil-Military Centre, The Prevention Toolbox: Systematising Policy Tools for the Prevention of Mass Atrocities, The International Criminal Court, Policy Brief Series No.5, September 2013, p. 3.

47A importância da “responsabilidade de proteger” tinha sido salientada, pela primeira vez, pelo Conselho de Segurança na resolução 1674 (2006).

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Contudo, este advertiu que o caso da Líbia se transformou num teste para a gestão da noção de “shared responsibility”, após a detenção de Saif Al-Islam Kadhafi pelas autoridades líbias (Stahn, 2012)− o qual ainda não se encontra sob a custódia do Tribunal, apesar das várias tentativas infrutíferas de impugnação da sua jurisdição.

A articulação entre o TPI e a responsabilidade de proteger, mais concretamente, o papel deste órgão jurisdicional será inevitavelmente condicionada pela atuação do Conselho de Segurança. Ou seja, pela decisão deste em submeter situações referentes a Estados que não são parte ao abrigo do Capítulo VII se houver indícios de ter ocorrido a prática de crimes da competência do Tribunal, após determinar a existência de uma ameaça à paz nos termos do artigo 39º da Carta. O facto de o Conselho de Segurança nunca o ter feito no que respeita ao caso de Estados falhados e as divergências entre os membros permanentes sobre a interpretação de “ameaça à paz” dificultarão certamente a submissão de determinadas situações.

Com efeito, o Conselho de Segurança não possui critérios objetivos e vinculativos para a determinação de uma ameaça a paz e acaba por ficar refém da discricionariedade política. O estabelecimento de critérios a este respeito e a introdução de alterações respeitantes ao direito de veto (Santos, 2012: 560-561) evitaria situações em que o Conselho fica impossibilitado de submeter o caso ao TPI em virtude da ameaça ou exercício do direito de veto como se tem verificado relativamente à situação na Síria – refira-se que ainda recentemente, em Maio deste ano, os vetos da Federação Russa e da China impediram a aprovação de uma resolução neste sentido.

O processo teria, assim, que estar aliado a uma aplicação uniforme a situações semelhantes por parte dos membros permanentes e a alterações prévias no sistema de veto para evitar tais situações. De notar que a ICISS no relatório “The Responsibility to Protect” declarou:

“(…) the Commission supports the proposal put to us in an exploratory way by a senior representative of one of the Permanent Five countries, that there be agreed by the Permanent Five a “code of conduct” for the use of the veto with respect to actions that are needed to stop or avert a significant humanitarian crisis. The idea essentially is that a permanent member, in matters where its vital national interests were not claimed to be involved, would not use its veto to obstruct the passage of what would otherwise be a majority resolution. The expression “constructive abstention” has been used in this context in the past (…)”48.

Entre as propostas de reforma do Conselho de Segurança são de notar a introdução de uma conduta voluntária de limitação do exercício deste direito a situações de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou limpeza étnica, a eliminação do direito de veto, o que se não afigura exequível, ou a necessidade de justificação do

48International Commission on Intervention and State Sovereignty (2001), The Responsibility to Protect, §6.21, p. 51.

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recurso a este direito pelos atuais membros permanentes e eventuais novos membros permanentes.

A defesa desta articulação escora-se na observância da existência de denominadores comuns, no início de uma tímida prática − que deverá ser explorada e aprofundada − e na possibilidade de esta interligação contribuir para a consolidação e permitir a exploração do papel do Tribunal numa maior amplitude e o incremento da proteção dos direitos humanos.

Este órgão poderia ser relevante na prevenção antes da ocorrência de violência ou durante como mecanismo de reação− que poderia ocorrer a par de uma interven ção com recurso ao uso da força por parte da comunidade internacional − para pôr termo à violência através da sua intervenção, colocando os responsáveis sob a sua custódia, o que se justificaria pelo facto de sistema judiciário de um Estado poder ter dificuldades de funcionamento em tempos de conflito ou mesmo na fase de reconstrução, após a intervenção internacional com recurso ao uso da força, isto é, no processo de reconciliação e retribuição penal. De referir que no tocante à justiça e reconciliação, a ICISS advertiu para a possibilidade de em muitas situações o Estado em cujo território ocorreu a intervenção militar nunca ter tido um sistema judicial incorrupto ou que tenha funcionado adequadamente49.

Os efeitos da responsabilidade de proteger e da missão do TPI deterão uma maior dimensão se esta conceção se estabelecer como uma norma jurídico-internacional (Santos, 2012: 562). Embora a relação com o Conselho de Segurança seja vista com ceticismo e com receio, em certa medida justificável por se tratar de um órgão de natureza política, uma cooperação tripartida neste contexto poderá ser benéfica.

5. Conclusões

Uma ordem pública internacional efetiva é desejável. A sustentabilidade de uma ordem com tais caraterísticas, porém, requer um processo de construção permanente de modo a enfrentar eficazmente os crescentes e distintos desafios e ultrapassar vulnerabilidades emergentes. O Direito Penal Internacional personificado no TPI será determinante para a concretização dessa aspiração.

Ainda que recorrendo a “uma representação gráfica” se possa concluir “que o Direito substantivo que o TPI aplica é um círculo concêntrico menor dentro de um círculo maior, que representa o Direito Internacional Penal total” (Bacelar Gouveia, 2013: 784) e se lhe possa apontar incontornáveis limitações como a possibilidade de condicionamento da sua atividade pelo Conselho de Segurança, tensões resultantes da natureza complementar da sua jurisdição e problemas interpretativos suscitados por algumas disposições do Estatuto, enfocar somente nesses factos, encerra o risco de se obter uma avaliação redutora dos méritos e potencialidades do TPI.

O projeto de regulação do Estatuto e, mais concretamente, do Tribunal poderá ser mais bem-sucedido e influir com mais eficácia na construção de uma ordem pública internacional se o processo de permanente construção deste órgão tiver em consideração a necessidade de colmatar lacunas e os desafios do mundo contemporâneo.

49Ibid., §5.13, p. 41.

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Neste sentido, propõe-se a clarificação de aspetos ambíguos pelo Tribunal referentes ao crime de agressão e crimes contra a humanidade, os quais não poderão ser subestimados sob pena de obstarem ao funcionamento eficiente e célere da justiça. Enquanto que no caso do crime de agressão o processo evolutivo não poderá alhear-se das determinações do Conselho de Segurança, no caso dos crimes contra a humanidade, o Tribunal deverá precisar o teor do artigo 7º, tarefa que será facilitada com a vigência de uma futura convenção internacional sobre a prevenção e punição deste tipo de crimes.

O Tribunal deverá ainda explorar novas facetas e aprofundar as previstas no Estatuto, tirando partido do seu caráter independente e permanente, o qual lhe permitiu distanciar-se da conotação de uma justiça dos vencedores atribuída aos tribunais penais internacionais ad hoc.

As distintas e intricadas situações de passividade, inação ou impunidade por parte dos Estados e que exigem a proteção da pessoa humana decorrentes de novos desafios implicam um maior envolvimento do TPI. Assim, propõe-se um repensar da jurisdição, alargando o seu alcance ao crime de terrorismo, sujeitando, assim, os responsáveis por atos terroristas à justiça internacional. Esta inclusão justifica-se pela crescente disseminação do terrorismo a nível global e pelas suas diferentes formas e manifestações poderem impossibilitar o seu enquadramento nas disposições e elementos constitutivos referentes aos crimes prescritos no Estatuto. Simultaneamente, propõe-se uma articulação da missão do TPI com a “responsabilidade de proteger” por parte da comunidade internacional e que se deverá expressar nas diferentes dimensões desta responsabilidade: a prevenção, a reação e a reconstrução de uma paz duradoura.

Não obstante a jurisprudência ser ainda escassa, designadamente no que se refere a condenações, não se pode ignorar que o limiar da primeira década do século XXI marca um ponto de viragem na atividade do TPI. A paulatina confluência em torno do Tribunal pelos Estados Partes, Estados que não são parte e pelo Conselho de Segurança evidencia o crescente reconhecimento por parte da comunidade internacional da sua relevância bem como a aplicação do sistema previsto no Estatuto.

Estas razões aliadas às potencialidades do TPI permitem prospetivar uma passagem da atual adolescência (Soares, 2014: 10) à idade adulta caraterizada por passos cada vez mais confiantes, um processo de amadurecimento que desembocará numa justiça penal consolidada e mais efetiva.

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