OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 5, n.º 2 (novembro 2014-Abril 2015)
Artigos
Patrícia Galvão Teles - O Tribunal Penal Internacional e a evolução da ideia do combate à
impunidade: uma avaliação 15 anos após a Conferência de Roma - pp 1-15
Sofia Santos - O Tribunal Penal Internacional e a construção de uma ordem pública
internacional - pp 16-45
Alexandre Fonseca - “War is a racket!” A emergência do discurso libertário sobre a 1ª
Guerra Mundial nos Estados Unidos - pp 46-61
João Paulo Vicente - A Guerra como a continuação da política por outros meios… não
tripulados - pp 62-77
Pedro Miguel Duarte da Graça Da guerra à paz: o contributo dos corpos militares com
funções de polícia. A GNR no Iraque - pp 78-98
José Rebelo - Sobre a dupla e paradoxal função dos media - pp 99-113
Notas e Reflexões
Helena Curto, Luís Moita, Brígida Brito, Célia Quintas, Maria Sousa Galito - Cidades
e Regiões: a paradiplomacia em Portugal - pp 114-122
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Vol. 5, n2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 1-15
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A EVOLUÇÃO DA IDEIA DO
COMBATE À IMPUNIDADE: UMA AVALIAÇÃO 15 ANOS APÓS A
CONFERÊNCIA DE ROMA
Patrícia Galvão Teles
pgalvaoteles@gmail.com.
Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Mestre e Doutora em
Direito Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra,
Suíça; Investigadora e Membro do Conselho Científico do Observare e do Conselho Editorial da
Janus.Net; Conselheira Jurídica da Representação Permanente de Portugal junto da União
Europeia, em Bruxelas (Bélgica).
Resumo
O presente artigo
1
avalia os primeiros anos de funcionamento do Tribunal Penal
Internacional, fazendo um balanço da sua actividade. Descreve e analisa os principais
desafios com os quais esta Instituão se confronta, em torno dos seguintes temas: a)
universalidade, complementaridade e cooperação; e b) paz e justiça. A partir do caso do
Quénia, onde são suspeitos de ter cometido crimes contra a humanidade o seu Presidente
da República e Vice-Presidente, e das posições tomadas pela União Africana, debate se a
introdução de uma imunidade de jurisdição penal, ainda que temporária, para Chefes de
Estado e Governo em exercício poderá, ou não, vir a representar um retrocesso na ideia do
combate à impunidade relativamente aos mais graves crimes internacionais.
Palavras chave:
Tribunal Penal Internacional; Justiça Penal Internacional; Impunidade; Imunidade; União
Africana
Como citar este artigo
Teles, Patrícia Galvão (2014). "O Tribunal Penal Internacional e a evolução da ideia do
combate à impunidade: uma avaliação 15 anos depois a Conferência de Roma". JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 5, N.º 2, novembro 2014-abril 2015. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art1
Artigo recebido em 21 de abril de 2014 e aceite para publicação em 9 de outubro de
2014
1
Artigo elaborado no contexto do projecto de investigação “A Justiça Penal Internacional: Um Diálogo entre
Duas Culturas”, em curso no Observatório das Relações Exteriores Observare / UAL, coordenado por
Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles. O presente artigo reflete exclusivamente as opiniões pessoais da
autora.
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O Tribunal Penal Internacional e a evolução da ideia do combate à impunidade:
uma avaliação 15 anos após a Conferência de Roma
Patrícia Galvão Teles
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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A EVOLUÇÃO DA IDEIA DO
COMBATE À IMPUNIDADE: UMA AVALIAÇÃO 15 ANOS APÓS A
CONFERÊNCIA DE ROMA
Patrícia Galvão Teles
Introdução
Em 17 de Julho de 1998, foi assinado em Roma o Estatuto do Tribunal Penal
Internacional (TPI)
2
O Tribunal Penal Internacional encontra-se hoje plenamente operacional, ocupando-se
de cerca de 20 casos em oito países diferentes: Uganda, República Democrática do
Congo, Sudão/Darfur, República Centro-Africana, Qnia, Líbia, Costa do Marfim e Mali.
, que entrou em vigor em 1 de Julho de 2002. São hoje parte deste
Estatuto 122 Estados, o que corresponde a cerca de dois terços dos membros da
comunidade internacional. 34 Estados Parte são Africanos, 27 da América Latina e
Caraíbas, 25 da Europa Ocidental e Outros, 18 da Europa de Leste e 18 Asiáticos.
Quatro casos foram introduzidos pelos próprios Estados: República Democrática do
Congo, Uganda, República Centro-Africana e Mali. Dois foram submetidos pelo
Conselho de Segurança: Darfur e Líbia. E os outros dois na sequência do exercício dos
poderes de investigação proprio motu do Procurador: Quénia e Costa do Marfim.
Trata-se do primeiro tribunal penal internacional permanente, com competência para
julgar os principais responsáveis pelos mais graves crimes internacionais: agressão
3
O Estatuto do TPI foi, semvida, um dos principais tratados assinados no período
pós-guerra fria, num momento em que o direito internacional conheceu uma fase
positiva, sendo colocado no centro do discurso político, designadamente em reacção às
mais graves atrocidades cometidas no mundo depois da II Guerra Mundial, como foi o
caso do Ruanda e na Ex-Jugoslávia, de que se assinala agora o vigésimo aniversário e
que justificaram a criação de tribunais ad hoc para as julgar.
,
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. É hoje o principal fórum
para a justiça penal internacional, apesar de se manterem em existência alguns
tribunais ad hoc e do instituto da jurisdição universal.
Na génese da criação do TPI e nos seus primeiros anos, a ideia do combate à
impunidade foi um elemento constante, tanto no que toca à prevenção das atrocidades
como à sua repressão. Mas como evoluiu a ideia do combate à impunidade neste
últimos 15 anos e quais os principais desafios que enfrenta o TPI?
2
Para informação detalhada sobre o TPI, seus casos, órgãos, etc., ver: www.icc-cpi.int
3
Apesar das emendas adoptadas na Conferência de Revisão de Kampala em 2010, a definição do crime de
agressão e as condições para o exercício da jurisdição ainda não entraram em vigor.
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Se a criação do TPI foi sem dúvida um enorme (e, para alguns, inesperado) sucesso, a
justiça penal internacional está hoje sobre pressão. A expectativa quanto ao seu
trabalho era grande, pelo que poderá ser justificada alguma frustração com o facto de
o Tribunal ter demorado cerca de 10 anos para o seu primeiro julgamento
4
e o seu
orçamento ser muito avultado
5
Mas os principais desafios, para além da questão da morosidade da justiça ou do peso
financeiro da Instituição, são antes de natureza política. O facto de o TPI se ter
debruçado sobretudo sobre situações envolvendo Estados Africanos, tem suscitado
críticas de selectividade. E, na ausência de uma ratificação por todos os Estados que
compõem a comunidade internacional, haverá sempre double standards” no combate
à impunidade, mesmo que tal possa ser colmatado pelo Conselho de Segurança das
Nações Unidas (pelo menos parcialmente, pois os “P5” estarão sempre "a salvo", dado
o seu direito de veto).
, sobretudo num período de crise económica e de
medidas de austeridade em vários pontos do globo.
A não adoção de legislação nacional criminalizando os mesmos actos fragiliza também
um sistema baseado na complementaridade. A questão da não cooperação e o facto de
vários arguidos não estarem ainda sob custódia do Tribunal, sobretudo nas situações
do Uganda e Sudão, tem também enfraquecido a reputação e credibilidade do Tribunal.
Por outro lado, o facto de algumas situações serem objecto de tratamento pelo Tribunal
na pendência de um conflito e de Chefes de Estado em funções serem objecto de
processos criminais, tem avivado o debate entre “paz” e “justiça” e qual dos objectivos
deve ser promovido e alcançado primeiro.
Vamos, assim, examinar dois principais desafios, que podemos agrupar em torno dos
seguintes temas: a) Universalidade, Complementaridade e Cooperação; e b) Paz vs.
Justiça ou Paz e Justiça.
Depois analisaremos o caso concreto e recente das tensões em torno do TPI suscitadas
pela União Africana, sobretudo a propósito do caso do Quénia, que conheceram o seu
momento alto na passada Assembleia de Estados Parte, no Outono de 2013, mas que
não desapareceram ainda e poderão vir a deixar marcas na ideia do combate à
impunidade.
Desafios actuais que enfrenta o TPI
a) Universalidade, Complementaridade e Cooperação
Universalidade
6
Apesar de baseado num instrumento de direito internacional clássico, um tratado
internacional, cuja ratificação ou adesão é uma decisão soberana e voluntária dos
Estados, é evidente que o Estatuto de Roma é um daqueles acordos multilaterais que,
tal como a Carta das Nações Unidas ou os principais tratados de direitos humanos e
4
Condenação, em 2012, de Thomas Lubanga Dyilo, a 14 anos de prisão por recrutamento de crianças
soldado no conflito da República Democrática do Congo. A segunda condenação do TPI foi também
relativa a esta situação, no caso de Germain Katanga. A decisão foi tomada em Março de 2014 e
encontra-se ainda sujeita a recurso.
5
Cerca de 120 milhões de Euros por ano.
6
Ver, p.e., X. Philippe, “The principles of Universal Jurisdiction and Complementarity: how do the two
principles intermesh?”.
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direito internacional humanitário, aspira à universalidade. Para tal, é feita
permanentemente (por parte de alguns Estados, da União Europeia e das ONG) uma
campanha para a ratificação universal, que tem eco também em resoluções
anualmente adoptadas pela Assembleia de Estados Parte do TPI (ASP)
7
Idealmente, o TPI teria jurisdição para julgar os crimes mais graves cometidos em
todos os países do mundo, mas nos primeiros dez anos de existência a sua atenção
tem sido dedicada a situações de conflito em países africanos. Tal explica-se, claro,
pelo facto de vários Estados onde foram cometidas atrocidades não serem parte do
Estatuto (ainda cerca de um terço da comunidade internacional), pelos critérios de
actuação do Conselho de Segurança (que apenas remeteu os casos do Darfur
, o órgão político
onde têm assento todos os Estados Parte, bem como os Estados observadores, e que
reúne pelo menos uma vez anualmente, sendo responsável pela gestão e também
órgão legislativo do TPI.
8
e Líbia
9
No entanto, há informação de que foram ou estão a ser conduzidas investigações
preliminares em várias outras situações, como Afeganistão, Colômbia, Geórgia, Guiné
Equatorial, Honduras, Coreia do Norte e Nigéria. Mas, por ora, tais investigações não
deram fruto.
)
ou devido a metade das situações terem sido submetidas pelos próprios Estados, por
coincidência do continente africano.
Por outro lado, Comissões de Inquérito mandatadas pelo Conselho de Direitos Humanos
da ONU sobre a Síria e Coreia do Norte recomendaram em 2013 e 2014,
respectivamente, a submissão das atrocidades aí cometidas ao TPI.
10
No primeiro caso,
a Síria não é Estado Parte do TPI e o Conselho de Segurança, apesar de uma posição
favorável de alguns dos seus Membros, não se decidiu pelo envio ao TPI.
11
Como disse Navi Pillay, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
No caso da
Coreia do Norte, que também o é parte do TPI, não é, para já, conhecido o desfecho.
"broadening the reach of the ICC is necessary so as to turn the
ICC into a universal court and close the loopholes of accountability
at the international leve"
12
.
Enquanto o TPI não for um Tribunal verdadeiramente universal (se é que algum dia o
poderá vir a ser), a sua jurisdição “parcial” ou “incompleta” continuará sempre a ser
um desafio, pois manter-se-ão abertos os tais “loopholes of accountability”.
7
Cf. a mais recente Resolução ICC-ASP/12/Res. 8, de 27 de Novembro de 2013.
8
Resolução 1593 (2008).
9
Resolução 1970 (2011).
10
Tinha sido o caso também em relação ao Darfur e à Líbia, cujos relatórios das Comissões de Inquérito da
ONU levaram o Conselho de Segurança a referir esses casos ao TPI em 2005 e 2011, respetivamente.
11
Cf. Resolução 2118 (2013).
12
Opening Remarks at the Side-Event at the 24th Session of the UN Human Rights Council, “The
International Criminal Court 15 years after the Rome Statute: Prospects for the Future”, 10 de Setembro
de 2012.
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Complementaridade
O TPI foi desenhado como um Tribunal de ultimo recurso (“Court of last resort”), uma
vez que é a cada Estado que compete, em primeiro lugar, proteger a sua população dos
mais graves crimes internacionais previstos no Estatuto de Roma, através da
prevenção e repressão de acordo com o seu sistema penal nacional.
O Estatuto é bem claro, no seu preâmbulo, ao referir que o TPI se destina a julgar os
crimes de maior gravidade e, designadamente no seu Artigo 17º, ao estabelecer o
princípio da complementaridade, segundo o qual o TPI só possui competência para
julgar os crimes quando o Estado que tenha jurisdição sobre os mesmos não queira ou
não tenha capacidade para a exercer.
Nesta medida, a nível nacional é necessária a legislação apropriada, bem como uma
capacidade de investigação e procedimento judicial efectiva, o que tem sido encorajado
e apoiado pelo próprio TPI e a ASP (cf. Resolução ICC-ASP/12/Res. 4), por forma a
evitar o chamado “impunity gap”, ou seja, situações de crimes não são julgados nem a
nível nacional, nem internacional
13
Contudo, nem todos os 122 Estados Parte do Estatuto de Roma terão a legislação
apropriada ou a capacidade judicial efectiva para julgar os crimes que o TPI não
entender abarcar na sua jurisdição. Uma análise minuciosa de todas as legislações
nacionais para garantir o seu carácter apropriado estará ainda por fazer e
provavelmente seria benéfica uma maior possibilidade de assistência técnica para
ajudar a adoptar a legislação interna necessária ou aperfeiçoá-la.
.
Por outro lado, nem sempre será evidente determinar as situações em que um Estado,
nos termos do Artigo 17º do Estatuto, não quer ou não tem capacidade para a exercer
a jurisdição nacional sobre os crimes. Só no caso de uma apreciação negativa, pode o
Tribunal declarar o caso admissível. Não há ainda jurisprudência consolidada para se
poder determinar com certeza o que significa em Estado “não querer” ou “não ter
capacidade”, nem uma prática dos Estados sobre quando invocar tal excepção de
inadmissibilidade ou do Procurador para a não prossecução de investigações.
aqui, também, algum caminho a percorrer para evitar o “impunity gap”.
Cooperação
A não cooperação com o Tribunal é um fenómeno que afecta fortemente a credibilidade
do TPI. Os Estados Parte têm obrigação de cooperar nos termos da Parte IX do
Estatuto, designadamente no que toca à implementação das decisões do Tribunal e
execução dos mandatos de detenção. Na circunstância de casos referidos pelo Conselho
de Segurança ao abrigo do Capítulo VII da Carta, poderá dizer-se que mesmo os
Estados não Parte ficarão obrigados a cooperar com o Tribunal, nos termos (pelo
menos) do referido na resolução em causa.
13
Cf. Informal Summary by the Focal Points, “Stocktaking of international criminal justice - Taking stock of
the principle of complementarity: bridging the impunity gap”, Review Conference of the Rome Statute,
Kampala, 31 May-11 June 2010.
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O caso mais grave de não cooperação prende-se, evidentemente, com a não execução
de mandatos de detenção ou pedidos de entrega. Recentemente, encontravam-se por
executar mandatos de detenção ou pedidos de entrega de mais de metade dos
arguidos, o que foi criticado na Resolução ICC-ASP/12/Res. 3 da ASP. Em particular,
nenhum acusado nas situações submetidas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do
Capítulo VII (Darfur, incluindo o Presidente Bashir
14
Uma vez que, nos termos do Artigo 63º do Estatuto, o arguido deve estar presente
durante o julgamento, não sendo previstos julgamentos in absentia, o Tribunal verá a
sua função em muito diminuída caso não possa proceder aos julgamentos por
impossibilidade da presença dos acusados.
, e Líbia), em que todos os
membros da comunidade internacional têm obrigação de cooperar, foram detidos ou
entregues ao TPI e no caso mais antigo, iniciado em 2005 pelo próprio Uganda,
nenhum dos suspeitos se encontra sob custódia do Tribunal.
b) Paz vs. Justiça ou Paz e Justiça
15
A questão da paz e justiça, e de saber se se tratam de conceitos antagónicos ou
complementares, é uma questão relativamente nova, que a criação do TPI, em
particular, evidenciou. Na verdade, todas as anteriores instâncias de criação de uma
jurisdição penal internacional tiveram lugar no final do conflito em que os crimes foram
praticados, como foi o caso do Tribunal Militar de Nuremberga ou dos Tribunais ad hoc
para a Ex-Jugoslávia e o Ruanda.
No caso do TPI, um tribunal permanente, a sua jurisdição pode ser desencadeada a
qualquer momento do conflito, desde que haja suspeita de que crimes sob a sua alçada
tenham sido cometidos e que a situação seja referida pelo Estado em cujo território os
crimes são cometidos, pelo Conselho de Segurança ou de acordo com os poderes
proprio motu do Procurador do Tribunal.
E, sendo a maior parte dos conflitos de hoje intra-estatais, do tipo guerra civil no
interior das fronteiras de um Estado, a sua solução dependerá de um processo de paz
interno e negociado, onde frequentemente é necessário sentar à mesa das negociações
todas as partes no conflito, sendo também frequente que algumas dessas partes
governo ou rebeldes tenham cometido crimes, p. e., crimes de guerra ou contra a
humanidade.
No caso destas negociações de paz, há quem defenda que primeiro é necessário levar a
cabo o processo de paz e só depois então seria a vez de promover a luta contra a
impunidade e a justiça,
16
14
Ver G. P. Barnes, “The International Criminal Court’s Ineffective Enforcement Mechanisms: the Indictment
of President Omar Al Bashir”.
através de um processo designado de “sequencing”. Tal tem
sido exemplificado pelo caso do Uganda, onde a situação foi levada ao Tribunal pelo
Governo na tentativa de enfraquecer os rebeldes do “Lord Resistance Army”, mas estes
15
Para um resumo breve, mas interessante, deste debate, sua história e diferentes posições, ver Draft
Moderator Summary, “Stocktaking of international criminal justice Peace and Justice”, Review
Conference of the Rome Statute, Kampala, 31 May-11 June 2010. Ver também a “Nuremberg Declaration
on Peace and Justice”, Annex to the letter dated 13 June 2008 from the Permanent Representatives of
Finland, Germany and Jordan to the United Nations addressed to the Secretary-General (A/62/885).
16
Ver a opinião de algumas destacadas figuras políticas africanas, como Thabo Mbeki, co-autor de um artigo
no New York Times, publicado em 5 de Fevereiro de 2014, com o sugestivo título de “Courts can’t end
civil wars.
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só aceitam sentar-se à mesa das negociações caso o acordo de paz lhes confira
imunidade das acusações do TPI
17
O Estatuto de Roma, tal como o direito internacional geral, parece, no entanto,
incompatível com amnistias para os mais graves crimes internacionais. O Estatuto de
Roma admite, contudo, que investigações ou julgamentos sejam suspensos em casos
em que esteja em causa a manutenção da paz e segurança internacionais (Artigo 16º),
quando os crimes sejam objecto de processos a nível nacional (Artigo 17º) ou quando o
Procurador entenda que tal serve melhor os interesses da justiça (Artigo 53º).
.
Para o TPI e para a ASP, estes conceitos são complementares: “There can be no lasting
peace without justice and (…) peace and justice are thus complimentary requirements
(Resolução ICC-ASP/12/Res. 8).
18
E só assim se poderá potenciar o efeito dissuasor,
19
quanto à comissão dos mais graves crimes internacional, objectivo que também
presidiu à criação do primeiro tribunal penal permanente.
O TPI, o caso do Quénia, a União Africana (UA) e o futuro da ideia do
combate à impunidade
Como se disse, as tensões em torno do TPI suscitadas pela União Africana,
20
A União Africana tem tomado várias posições fortes sobre a questão da jurisdição
universal, o combate à impunidade
sobretudo
a propósito do caso do Quénia, conheceram o seu momento alto na Assembleia de
Estados Parte no Outono de 2013, não desapareceram ainda e poderão vir a deixar
marcas na ideia do combate à impunidade.
21
Quanto à situação do Quénia, esta não foi remetida ao TPI pelo próprio país, apesar de
este ser parte do Estatuto de Roma, mas sim desencadeada por uma investigação
proprio motu do Procurador, após ter recebido informações sobre a violência cometida
na sequência das eleições nacionais de 2007 que apontam para que tenham sido
cometidos crimes contra a humanidade, em particular assassinatos, violações e outras
formas de violência sexual, deportações ou outras formas de transferência forçada de
e sobre o Tribunal Penal Internacional,
designadamente a propósito dos casos do Sudão e do Quénia.
17
Cf. L. M. Keller, “Achieving peace without justice: the International Criminal Court and Ugandan
alternative justice mechanisms” e L. M. Keller, “The false dichotomy of Peace versus Justice and the
International Criminal Court”.
18
Ver também o artigo da Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, no New York Times de 19 de Março de
2013, intitulado “International Justice and Diplomacy.”
19
K. Cronin-Furman, “Managing expectations: International criminal trials and the prospects for deterrence
of mass atrocity”.
20
Para uma evolução das relações entre o TPI e África ver N. Waddell e P. Clark, Courting Conflict? Justice,
Peace and the ICC in Africa; A. Arieff et al, International Criminal Court Cases in Africa: Status and policy
issues; E. Keppler, “Managing setbacks for the International Criminal Court in Africa”; A. Guerreiro, A
resistência dos Estados Africanos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional; F. M. Benvenuto, “La Cour
Pénale Internationale en accusation”; e C. C. Jalloh, “Reflections on the indictment of sitting Heads of
State and Government and its consequences for peace and stability and reconciliation in Africa”.
21
Sobre este tema ver “The AU-EU Expert Report on the Principal of Universal Jurisdiction” (Doc. do
Conselho da União Europeia 8672/1/09, de 16 de Abril de 2009). O tema da jurisdição universal e do
Tribunal Penal Internacional tem causado ampla fricção entre a União Africana e a União Europeia, o que
motivou o relatório referido supra. Na Declaração da mais recente Cimeira UE-África, que teve lugar em
Bruxelas em 2 e 3 de Abril de 2014, o parágrafo 10, com total ausência de referência ao TPI, refere: “We
confirm our rejection pf, and reiterate our committement to, fight impunity at the national and
international level. We undertake to enhance political dialogue on international criminal justice, including
the issue of universal jurisdiction, in the agreed fora between the parties.”
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populações e outros actos desumanos. A investigação do Procurador levou à acusação,
em 2010, por prática de crimes contra a humanidade de três suspeitos, dois dos quais
entretanto eleitos, em 2013, Presidente e Vice Presidente da República, respetivamente
Uhuru Kenyatta (julgamento sucessivamente adiado) e William Ruto (julgamento
iniciado em 2013).
Numa Resolução de Maio de 2013 (Assembly/AU/13 (XXI), a União Africana reiterou a
sua
"strong conviction that the search for justice should be pursued in
a way that does not impede or jeopardize efforts at promoting
lasting peace” e o “AU’s concern with the misuse of indictments
against African leaders".
Na sequência dessa decisão, tomada na 21ª Sessão da Assembleia da UA, foi
endereçada uma carta
22
Em resposta, o TPI negou qualquer estatuto processual à referida carta ou à Decisão de
Maio da União Africana, uma vez que não se inseriam no âmbito do processo a pedido
das partes, nem num pedido do Conselho de Segurança, pelo que respondeu
negativamente à pretensão de suspensão do processo
em 10 de Setembro coincidente com o previsto início do
julgamento do Vice-Presidente Ruto - ao Presidente do TPI, solicitando que seja criado
um mecanismo nacional para investigar e julgar os crimes cometidos no âmbito da
violência pós-eleitoral no Quénia, em 2007. A mesma carta refere que os processos no
Tribunal estão a afectar a capacidade dos líderes quenianos que, apesar das suas
eventuais responsabilidades na crise de 2007, foram entretanto democraticamente
eleitos, de cumprirem as suas responsabilidades constitucionais, uma vez que
implicarão uma presença física em Haia do Presidente e do Vice-Presidente, iniciados os
julgamentos. Nos termos da Constituição do Quénia, quando o Presidente se ausenta
para o estrangeiro, o Vice-Presidente o o pode fazer, e vice-versa.
23
Em Outubro de 2013, numa sessão Extraordinária da Assembleia da UA, foi adoptada
nova resolução, desta feita intitulada: “Decision on Africa’s relationship with the
International Criminal Court [cf. Ext/Assembly/AU/Dec.1 (Oct. 2013)], em que a UA
reiterou a sua preocupação com a politização e má utilização de acusações contra
líderes Africanos pelo TPI. No que toca á questão do Quénia, qualifica de grave e sem
precedentes a situação em que ambos os Presidente e Vice-Presidente em exercício de
funções de um país são alvo de um processo criminal internacional, o que afecta a
soberania, estabilidade e paz nesse país, bem como a reconciliação nacional e o normal
funcionamento das instituições constitucionais. E decidiu, inter alia, o seguinte:
.
- Para a salvaguarda da ordem constitucional, estabilidade e integridade dos Estados-
membros, nenhuma acusação deve ser iniciada ou continuada perante qualquer
tribunal internacional contra qualquer Chefe de Estado ou de Governo em funções ou
algm que atue ou com o direito de atuar nessa capacidade durante o seu
mandato;
22
Cf. Doc. BC/U/1657.10.13.
23
Cf. 2013/PRES/00295-4/VPT/MH, carta de 13 de Setembro de 2013.
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- Que os julgamentos do Presidente Uhuru Kenyatta e do Vice-presidente William
Samoei Ruto, que são os atuaisderes em funções da República do Quénia, devem
ser suspensos até que completem os seus mandatos;
- Criar um Grupo de Contacto do Conselho Executivo, a ser liderado pelo Presidente
do Conselho, composto por cinco (5) membros (um (1) por região) para realizar
consultas com os Membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU),
em particular os seus cinco (5) Membros Permanentes, com vista a colaborar com o
CSNU em todas as preocupações da UA sobre o seu relacionamento com o TPI,
incluindo o adiamento dos casos contra o Quénia e o Sudão, a fim de obter a sua
resposta antes do início do julgamento, a 12 de Novembro de 2013;
- Acelerar o processo de alargamento do mandato do Tribunal Africano dos Direitos
do Homem e dos Povos (TADHP) para julgar crimes internacionais, tais como
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra;
- Que os Estados Africanos Partes ao Estatuto de Roma, proponham relevantes
alterações ao Estatuto de Roma no, em conformidade com o Artigo 121º do
Estatuto;
- Solicitar aos Estados Africanos Partes ao Estatuto de Roma do TPI, em particular os
membros da Mesa da Assembleia dos Estados Partes para incluir na Agenda da
próxima sessão do ASP a questão da acusação de um Chefe de Estado e de
Governo africano em funções pelo TPI e as suas consequências para a paz,
estabilidade e reconciliação nos Estados-membros da União Africana;
- Que qualquer Estado-membro da UA que pretenda remeter um caso ao TPI deve
informar e obter a aprovação da União Africana;
- Que o Qnia deve enviar uma carta para o Conselho de Segurança das Nações
Unidas, solicitando o adiamento, em conformidade com o Artigo 16º do Estatuto
de Roma, do processo contra o Presidente e o Vice-Presidente do Quénia, que
seria apoiada por todos os Estados Africanos Partes;
- Em conformidade com a presente Decisão, solicitar ao TPI a adiar o
julgamento do Presidente Uhuru Kenyatta, marcado para 12 de Novembro de 2013
e a suspender o processo contra o Vice-presidente William Samoei Ruto até o
momento em que o Conselho de Segurança da ONU considere o pedido do Quénia
para diferimento, apoiado pela UA;
- Que o Presidente Uhuru Kenyatta não comparecerá perante o TPI até o momento
que as preocupações levantadas pela UA e pelos seus Estados-membros
tenham sido devidamente consideradas pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas e pelo TPI.
No dia 15 de Novembro de 2013 o Conselho de Segurança “chumbou”, mas
extremamente dividido (sete votos a favor e oito abstenções), um projecto de
Resolução (doc. S/2013/660) que visava, nos termos do Artigo 16º do Estatuto de
Roma e do Capítulo VII da Carta, diferir a investigação e julgamento do Presidente e
Vice-Presidente quenianos, por um período de um ano. Votaram a favor: Azerbaijão,
China, Marrocos, Paquistão, Rússia, Ruanda e Togo. Abstiveram-se Argentina,
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Austlia, França, Guatemala, Luxemburgo, República da Coreia, Reino Unido e EUA.
Para as (diferentes) razões que levaram ao voto de cada delegação ver S/PV. 7060.
Mas a 12ª Sessão da ASP integrou, a pedido da União Africana, um segmento especial
intitulado “Indictment of sitting Heads of State and Government and its consequences
on peace and stability and reconciliation.”
Na intervenção em nome da UA na ASP de Novembro de 2013 foi dito:
"(…) I would like to turn now to the situation in Kenya and to
highlight the inescapable link between peace and justice. We at
the AU would like to see an intelligent interaction between justice
and peace because it is only in this way that we can succeed in
promoting democratic governance with strong institutions, the rule
of Law and constitutionalism.
The African Union believes that if Kenya does not qualify for use of
Article 16 of the Rome Statute and subsequently the principle of
complementarity then no other State Party will. If this turns out to
be the case, then not only Article 16 would be deemed to be
redundant for the United Nations Security Council to legitimately
and constructively resort to it, but the irresistible conclusion will
also be that the ICC, whose establishment Africa and the
Organization of African Unity strongly supported and advocated for
is no longer a Court for all but only to deal with Africans in the
most rigid way"
24
.
Em função da proposta submetida pelos Estados Africanos, foram adoptadas - por
consenso - algumas alterações importantes às Regras de Processo e Prova do TPI
(designadamente à Regra 134), que permitem a escusa de presença ou que a presença
física no julgamento seja substituída por uma participação através de tecnologia vídeo.
De acordo com a Resolução ICC-ASP/12/Res. 7, foram inseridas após a Regra 134 das
Regras de Processo, as seguintes regras:
Regra 134bis
Presença através da utilização de vídeo-tecnologia
1. Um arguido que tenha recebido uma ordem para comparecer presencialmente pode
apresentar à Secção do Tribunal um pedido por escrito para que a sua presença seja
feita através da vídeo-tecnologia, durante uma parte ou partes do seu julgamento.
2. A Secção do Tribunal decidirá numa base casuística, tendo em conta as questões a
tratar nas audiências em questão.
24
http://www.icc-cpi.int/iccdocs/asp_docs/ASP12/GenDeba/ICC-ASP12-GenDeba-AU-Uganda-ENG.pdf.
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Regra 134ter
Escusa de comparecimento no julgamento
1. Um arguido que tenha recebido uma ordem para comparecer presencialmente pode
apresentar à Secção do Tribunal um pedido por escrito de escusa e para se fazer
representar pelo seu advogado apenas durante parte ou partes do seu julgamento.
2. A Seção do Tribunal apenas atenderá ao pedido se as seguintes condições se
encontrarem preenchidas:
(a) a ausência é justificada por circunstâncias excecionais;
(b) medidas alternativas, tais como a alteração do calendário ou breve adiamento
do julgamento, não seriam adequadas;
(c) o arguido renunciou expressamente ao seu direito de estar presente no
julgamento; e
(d) os direitos do arguido serão plenamente assegurados na sua ausência.
3. A Secção do Tribunal decidirá numa base casuística, tendo em conta as questões a
tratar nas audiências em questão. Qualquer ausência deve ser limitada ao
estritamente necessário e não pode tornar-se regra.
Regra 134quater
Escusa da presença no julgamento devido a obrigações públicas
extraordinárias
1. Um arguido que tenha recebido uma ordem para comparecer presencialmente, sobre
quem recaia um mandato para exercer obrigações públicas extraordinárias ao mais
altovel nacional, pode apresentar à Secção do Tribunal um pedido por escrito de
escusa e para se fazer representar pelo seu advogado; o pedido deve especificar que
o arguido renuncia expressamente ao seu direito de estar presente no julgamento.
2. A Secção do Tribunal analisará o pedido de forma expedita e, se não forem
adequadas medidas alternativas, concederá a escusa, quando considerar que tal é
no interesse da justiça e desde que os direitos do arguido se encontrem plenamente
assegurados. A decisão será tomada tendo em conta as questões a tratar nas
audiências em questão e pode ser revista a todo o momento.”
Haverá quem questione a compatibilidade destas alterações com o Artigo 27º do
Estatuto de Roma e o com princípio de igualdade de tratamento. O próprio Tribunal,
numa decisão de 26 de Novembro de 2013 no processo Kenyatta, sustentou que a
escusa deveria ocorrer apenas em circunstâncias excepcionais e limitada ao
estritamente necessário. Apesar dos julgamentos in absentia terem sido permitidos no
Tribunal de Nuremberga, foram afastados, como regra geral, nos Tribunais da Ex-
Jugoslávia, Ruanda e também pelo Estatuto do TPI.
O Artigo 27º do Estatuto do TPI confirmou, para além disso, a capacidade oficial de um
arguido irrelevante para efeitos de um julgamento perante este Tribunal, dispondo que
as imunidades ou regras processuais especiais que podem ser inerentes às funções
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oficiais de uma pessoa, de acordo com o direito internacional ou nacional,o
impedem o TPI de exercer a sua jurisdição sobre essa pessoa. Igualmente, o Artigo 98º
do Estatuto não refere as imunidades pessoais dos Chefes de Estado, Governo ou
Ministros dos Negócios Estrangeiros em absoluto, mas refere-se antes às imunidades
diplomáticas entre Estados e a possível necessidade de obter um consentimento prévio
para a entrega de um suspeito ao Tribunal
As propostas apresentadas na ASP de alteração das Regras de Processo, a sua
aceitação política e a estratégia de aí as conter, não impediu, contudo, o Governo do
Quénia de notificar, em 22 de Novembro de 2013, ao Secretário-Geral das Nações
Unidas,
25
enquanto depositário do Estatuto de Roma, as seguintes propostas de
alteração do Estatuto nos termos do seu Artigo 121º, designadamente quanto aos
artigos 6 (Presença do arguido em julgamento), 27º (Irrelevância da capacidade
oficial) e para o parágrafo do Preâmbulo sobre a complementaridade:
Artigo 63(2) - Presença do arguido em julgamento
"Sem prejuízo do número 1, um arguido pode ser dispensado de uma presença
continua no Tribunal, caso a Secção considere existirem circunstâncias excecionais,
sejam tomadas medidas alternativas, incluindo, entre outras, alterações ao calendário
do julgamento ou o seu adiamento temporário, a representação através de meios
técnicos de comunicação ou através da representação através de advogado.
(2) Qualquer ausência acima referida será analisada casuisticamente e limitada ao
estritamente necesrio.
(3) A Secção do Tribunal concederá a dispensa, apenas quando considerar existirem
circunstâncias excecionais e desde que os direitos do arguido se encontrem
plenamente assegurados na sua auncia, em particular através da representação
por meio de advogado, e o arguido renunciou expressamente ao seu direito de
estar presente no julgamento."
Artigo 27 (3)- Irrelevância da qualidade oficial
“Sem prejuízo dos números 1 e 2 do presente artigo, os Chefes de Estado, os Vice-
Chefes de Estado e quaisquer outras pessoas a quem sejam atribuídos poderes
idênticos, enquanto se encontrarem no exercício de funções e no decurso do seu
mandato, podem ser isentas da jurisdição do Tribunal. Tal isenção poderá ser renovada
pelo Tribunal, verificadas as mesmas condições.”
Parágrafo Preambular sobre a Complementaridade
“Sublinhando que o Tribunal Penal Internacional criado pelo presente Estatuto será
complementar das jurisdições penais nacionais e regionais.”
25
Circuladas oficialmente apenas em 14 de Março de 2014 (C.N.1026.2013.TREATIES-XVIII.10 - Depositary
Notification).
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Se a alteração proposta para o Artigo 63º, em alguma medida já aceite pelas novas
regras introduzidas na ASP de 2013, poderá vir a representar um retrocesso de 60 anos
aos julgamentos in absentia do Tribunal de Nuremberga, a alteração proposta ao Artigo
27º vai contra um princípio fundamental acolhido em Nuremberga e desde aí
“intocável” e retomado no estatuto de todos os tribunais criminais: o direito penal
internacional aplica-se a todos, independentemente da capacidade oficial. O Artigo 7º
da Carta do Tribunal Militar Internacional referia quethe official position of defendants,
whether as Heads of State or responsible officials in Government Departments, shall
not be considered as freeing them from responsibility or mitigating punishment.”
A proposta de alteração do Artigo 27º, que para já não estará abandonada pelos
Estados Africanos e que gostariam de a discutir numa ASP extraordinária, alteraria
assim um princípio fundamental do Estatuto e do direito penal internacional
consuetudinário, reconhecido pelo TIJ no Caso Arrest Warrant de 2000. Seria “a
shameful retreat in the global fight against immunity”.
26
Na nossa opinião, e como acima referido, o Estatuto de Roma já possui as salvaguardas
adequadas para casos complexos como o caso do Quénia, e não necessita por isso de
ser alterado. Configuram essas salvaguardas, o Artigo 17º (Complementaridade e
Admissibilidade), o Artigo 53º (Poderes discricionários do Procurador) e os Artigos 61º
e 63ª (Presença do arguido no julgamento). É certo que estas salvaguardas só foram
a agora exploradas de forma tímida e nem sempre consistente. Mas, em todo o caso,
e para circunstâncias extremas, resta sempre o poder de recurso, em última instância
e em casos em que esteja verdadeiramente em causa uma situação de paz ou ameaça
à paz, ao Conselho de Segurança, nos termos do Artigo 16º do Estatuto, para
suspender por períodos de 12 meses o processo perante o TPI. O facto de este
órgão não ter aceite recorrer a esta prerrogativa nos casos do Darfur (em que não
chegou a deliberar formalmente) ou do Quénia (em que negou pedido por uma escassa
margem), não quer dizer que este salvaguarda não tenha a sua utilidade.
E, de acordo com o mesmo
autor, poderia até ser forte incentivo para tomada de poder (por meios democráticos
ou não) para escapar a um julgamento em Haia. Contrariaria também o princípio de
uma justiça célere para as vítimas, uma vez que o Tribunal ficaria impedido de exercer
a sua jurisdição enquanto tais pessoas ocupassem elevados cargos políticos.
27
Algumas conclusões
Alguns verão a situação actual como um declínio da ideia do combate à impunidade e
da justiça penal internacional. Outros apenas como uma fase de normalização do TPI,
após o que foi a concretização de uma ideia revolucionária que, apesar de em
maturação durante muito tempo se materializou num período relativamente curto.
Mas a tentativa africana de introduzir uma imunidade de jurisdição penal mesmo que
temporária - relativamente aos mais graves crimes internacional para Chefes de Estado
e de Governo é um rude golpe na ideia da luta contra a impunidade.
26
C. C. Jalloh, “Reflections on the indictment of sitting Heads of State and Government and its
consequences for peace and stability and reconciliation in Africa”, p. 15.
27
Sobre as relações entre o TPI e o Conselho de Segurança da ONU ver H. Mistry e D. Ruiz Verduzco
(Relatores), “The UN Security Council and the International Criminal Court, International Law Meeting
Summary”; D. Kaye et al, “The Council and the Court: Improving Security Council Support for the
International Criminal Court”; e J. Trahan. “The relationship between the International Criminal Court and
the UN Security Council: Parameters and best practices”.
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Veremos até quando e como esta ideia será prosseguida, e tamm outras ideias que
enfraqueceriam o papel do TPI, como a proposta de um Tribunal Penal para África
(sugerida, conforme supra, pela União Africana e nas propostas de emenda ao Estatuto
de Roma do Quénia) e a retirada do Estatuto do TPI (autorizada, mas com efeitos
limitados sobre casos em curso, pelo Artigo 127º), que alguns Estados Africanos já
ameaçaram mas nenhum ainda concretizou.
Mas, como disse Kofi Annan,
"it is the culture of impunity and individuals who are on trial at the
ICC, not Africa"
28
.
Esperemos que toda a comunidade internacional venha a compreender estas sábias
palavras e que o combate à “impunidade” não venha a perder o seu “p” e tornar-se, de
facto e pelos menos para alguns, uma “imunidade”.
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Vol. 5, n2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 16-45
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
E A CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Sofia Santos
sofiasantos@ymail.com
Doutorada em Direito Internacional Público pela Universidade de Saarland, Alemanha, tendo sido
bolseira do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). Mestre em Direito Europeu e
Direito Internacional Público (Universidade de Saarland). Licenciada em Estudos Europeus
(Faculdade de Letras, Universidade do Porto). Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Investigadora integrada no Centro de
Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) na área do Direito
Internacional da Segurança. Investigadora associada do OBSERVARE nas áreas da justiça penal
internacional e da política de segurança e defesa europeia. Auditora do Curso de Defesa Nacional
do Instituto da Defesa Nacional entre outros cursos organizados pelo Instituto. Autora de
publicações e comunicações sobre Direito Internacional, Direito Europeu, Organizações
Internacionais, Defesa e Segurança Internacional.
Resumo
Pensar uma ordem pública internacional significa pensar uma ordem sustentada por um
quadro jurídico-institucional que assegura de modo eficaz a ação coletiva com vista a
defender valores fundamentais da comunidade internacional e a solucionar problemas
globais comuns, na linha da visão universalista do Direito Internacional. Pensar a construção
de uma ordem pública internacional significa pensar que este quadro que abarca e promove
o respeito pelos direitos humanos com particular enfoque na dignidade da pessoa humana
se vai alicerçando e evoluindo esteiado no Tribunal Penal Internacional (TPI). A sua
instituição permitiu adicionar uma faceta punitiva internacional perene ao Direito
Internacional Humanitário e ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e aliar a justiça à
paz, à segurança e ao bem-estar da Humanidade, reafirmando os princípios e objetivos da
Carta das Nações Unidas. Porém, o processo de afirmação de uma justiça penal
internacional escorada na punição dos responsáveis pelos crimes mais graves que afetam a
comunidade no seu conjunto pelo Tribunal depara-se com um conjunto de obstáculos de
caráter político e normativo.
O artigo identifica os principais méritos do Estatuto de Roma e da prática do TPI e, em
seguida, indica os seus limites, aos quais se encontram subjacentes tensões jurídico-
políticas e questões interpretativas respeitantes ao crime de agressão e aos crimes contra a
humanidade. Por fim, o artigo argumenta no sentido da indispensabilidade de um repensar
da jurisdição do TPI, sustentando a categorização do terrorismo como crime internacional, e
da articulação da sua missão com a “responsabilidade de proteger”, o que poderá contribuir
para a consolidação do TPI e do Direito Penal Internacional e reforçar o seu papel na
construção de uma ordem pública internacional efetiva.
.
Palavras chave:
Tribunal Penal Internacional; Ordem Pública Internacional; Estatuto de Roma; Direito Penal
Internacional; Crimes Internacionais; Terrorismo; Responsabilidade de Proteger
Como citar este artigo
Santos, Sofia (2014). "O Tribunal Penal Internacional e a constrão de uma ordem pública
internacional". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 5, N2, novembro
2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art2
Artigo recebido em 24 de setembro de 2014 e aceite para publicação em 29 de outubro
2014
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O Tribunal penal Internacional e a construção de uma ordem pública internacional
Sofia Santos
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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
E A CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
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Sofia Santos
The ICC will not be a panacea for all the ills of humankind. It will not eliminate conflicts, nor
return victims to life, nor restore survivors to their prior conditions of well-being and it will not
bring all perpetrators of major crimes to justice. But it can help avoid some conflicts, prevent
some victimisation and bring to justice some of the perpetrators of these crimes. In doing so, the
ICC will strengthen world order and contribute to world peace and security.
M. Cherif Bassiouni, Ceremony for the Opening for Signature of the Convention
on the Establishment of an International Criminal Court, Rome, 18 July 1998
…justice is a fundamental building block of sustainable peace
Kampala Declaration, 11 June 2010
1. Introdução
Pensar uma ordem pública internacional significa pensar uma ordem sustentada por um
quadro jurídico-institucional que assegura de modo eficaz a ação coletiva com vista a
defender valores fundamentais da comunidade internacional, na linha da visão
universalista do Direito Internacional. Significa pensar em instituições, procedimentos e
instrumentos internacionais que possibilitam a concretização de objetivos comuns
(Bogdandy; Delavalle, 2008: 1-2).
Pensar a construção de uma ordem pública internacional significa pensar que este
quadro que abarca e promove o respeito pelos direitos humanos com particular
enfoque na dignidade da pessoa humana e que pretende salvaguardar a paz, a
seguraa e o bem-estar da Humanidade, se vai alicerçando e evoluindo esteiado num
órgão jurisdicional permanente e independente, o Tribunal Penal Internacional (TPI).
Os prelúdios de um tribunal penal internacional protetor e impulsionador de uma ordem
pública remontam à elaboração da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime
de Genocídio de 1948 sob os auspícios da Organização das Nações Unidas
2
1
Artigo elaborado no contexto do projeto de investigação “A Justiça Penal Internacional: Um Diálogo entre
Duas Culturas”, em curso no Observatório das Relações Exteriores Observare / UAL, coordenado por
Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles
. Com efeito,
a Assembleia Geral, tendo em consideração a questão suscitada no debate sobre a
punição por crimes de genocídio e a crescente necessidade de um órgão competente
2
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, Diário da República, 1ª série-A, nº 160,
14.07.1998.
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Vol. 5, n2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 16-45
O Tribunal penal Internacional e a construção de uma ordem pública internacional
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para julgar determinados crimes de Direito Internacional no percurso de
desenvolvimento da comunidade internacional, convidou a Comissão de Direito
Internacional a estudar a conveniência e a possibilidade do seu estabelecimento
3
. A
resposta afirmativa da Comissão
4
resultou num projeto de estatuto, elaborado ao longo
de várias décadas e submetido à aprovação da Assembleia Geral em 1994, que
preconizava a relevância da criação de um tribunal penal internacional
5
Armin von Bogdandy e Sergio Dellavalle salientam que o progresso de uma ordem
pública internacional e de um Direito Internacional efetivos dependerá em grande
medida do destino do Direito Penal Internacional e do sucesso do projeto de regulação
do Estatuto (2008: 2). Contudo, de que forma se manifesta essa dependência? De que
modo poderá o projeto de regulação e, mais concretamente, o TPI ser mais bem-
sucedido e influir mais eficazmente nesta construção?
. Neste sentido,
a Assembleia instituiu um comité preparatório em 1996 com o propósito de produzir
um texto, que serviu de base de negociação na Conferência de Roma em 1998,
culminando com a assinatura do Estatuto.
O artigo analisa os méritos do Estatuto de Roma e da prática do TPI para em seguida
explicitar os seus limites. Por último, o artigo argumenta no sentido da
indispensabilidade de um processo de aquisição de novas dimensões e de
aprofundamento de facetas existentes, formulando algumas propostas.
2. O Estatuto de Roma e a recente praxis do TPI: considerações
principais
O Estatuto de Roma de 1998 reafirmou a relencia dos objetivos e princípios da Carta
das Nações Unidas
6
O Estatuto consagrou a noção de “crimes mais graves” que afetam a comunidade
internacional no seu conjunto e que se encontram enunciados no artigo 5º: o crime de
genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o crime de agressão.
Neste contexto, pode-se falar no acrescento de uma faceta punitiva ao Direito
Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário, dado que
e reconheceu a existência de valores comuns como a paz, a
segurança e o bem-estar da Humanidade que deveriam ser salvaguardados pelo
Tribunal.
3
U.N. Doc. A/RES/3/260 B (III), Study by the International Law Commission of the Question of an
International Criminal Court, 09.12.1948.
4
U.N. Doc. A/CN.4/34, Report of the International Law Commission on its Second Session, 5 June to 29
July 1950, Official Records of the General Assembly, Fifth session, Supplement No.12 (A/1316), Yearbook
of the International Law Commission, vol. II, 1950, §140, p. 379. Ricardo J. Alfaro, Relator Especial, tinha
salientado no seu relatório apresentado à Comissão que The community of States is entitled to prevent
crimes against the peace and security of mankind and crimes against the dictates of the human
conscience, including therein the hideous crime of genocide. If the rule of law is to govern the community
of States and protect it against violations of the international public order, it can only be satisfactorily
established by the promulgation of an international penal code and by the permanent functioning of an
international criminal jurisdiction”, UN. Doc. A/CN.4/15 and Corr.1, Report on the Question of
International Criminal Jurisdiction, Question of international criminal jurisdiction, Yearbook of the
International Law Commission, vol. II, 1950, §136, p. 17.
5
U.N. Doc. A/49/10, Draft Statute for an International Criminal Court, Report of International Law
Commission on the work of its forty-sixth session, 2 May-22 July 1994, Official Records of the General
Assembly, Forty-ninth session, Supplement No.10, Yearbook of the International Law Commission, 1994,
vol. II(2), pp. 26 e ss.
6
V. artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas.
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até então a punição da sua inobservância dependia exclusivamente das jurisdições
penais nacionais.
Mais concretamente no que se refere ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, o
Estatuto integrou no artigo 6º, a definição de crime de genocídio estabelecida no artigo
II da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Assim,
genocídio trata-se de qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou
parcialmente, um grupo nacional, étnico,cico ou religioso: homicídio e ofensas
graves à integridade física ou mental dos membros, sujeição intencional do grupo a
condições de vida pensadas com a finalidade de provocar a sua destruição física, total
ou parcial, imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio desse
grupo e a transferência, forçada, de crianças para um outro grupo.
A faceta punitiva do Direito Internacional Humanitário consubstanciou-se no artigo 8º
referente aos crimes de guerra prescritos nas Convenções de Genebra de 1949. Ao
Tribunal incumbe julgar este tipo de crimes, particularmente “quando cometidos como
parte integrante de um plano ou de uma potica ou como parte de uma prática em
larga escala”. Este artigo engloba as graves violações a estas convenções, ou seja, atos
dirigidos contra pessoas ou bens protegidos e violações graves das leis e costumes
aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do Direito Internacional. No
caso de conflitos armados que não sejam de caráter internacional, entende-se por
crimes de guerra as violações graves contidas no artigo 3º comum às diferentes
Convenções de Genebra, isto é, atos cometidos contra indivíduos que não participem
diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham
deposto armas e os que tenham ficado impossibilitados de continuar a combater, tais
como atos de violência contra a vida e contra a pessoa, ultrajes à dignidade da pessoa,
a tomada de reféns, as condenações proferidas e execuções efetuadas sem julgamento
prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias
judiciais indispensáveis bem como outras violações graves das leis e costumes
aplicáveis a este tipo de conflitos no quadro jusinternacionalista.
Nos termos do Estatuto, os crimes contra a humanidade encontram-se definidos como
qualquer ato cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra a
população civil com conhecimento desse ataque, como por exemplo, homicídio,
extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada, prisão em violação das
normas fundamentais do Direito Internacional, tortura, violação, escravatura sexual,
perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos
políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo ou em função de
outros critérios aceites universalmente, desaparecimento forçado de pessoas, crime de
apartheid e outros atos desumanos de natureza semelhante que provoquem
intencionalmente considerável sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental
ou física (artigo 7º).
Contrariamente aos crimes de genocídio e crimes de guerra, os crimes contra a
humanidade não se encontram codificados numa convenção internacional e uma
análise da jurisprudência dos diferentes tribunais penais internacionais ad hoc permite
observar entendimentos distintos. A sistematização contida no Estatuto engloba atos
que não tinham sido especificados previamente como crimes contra a humanidade,
tratando-se, assim, da listagem mais abrangente nesta matéria.
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Os méritos do Estatuto não se circunscrevem simplesmente à codificação dos crimes
mais graves, à exceção do crime de agressão com a procrastinação da sua definição e
da determinação das condições para o exercício da jurisdição pelo TPI para uma
conferência de revisão (artigo 5º, nº 2). Ao prescrever a observância dos princípios
gerais de direito penal (Capítulo III) e dos princípios da presunção de inoncia do
arguido (artigo 66º) e da proibição de dupla condenação ne bis in idem (artigo 20º)
por parte do Tribunal, o Estatuto contribui significativamente para a consolidação e
evolução do Direito Penal Internacional (Stein; von Buttlar, 2012: 438).
Este sistema punitivo assenta no princípio de complementaridade (artigo 1º), o qual
ainda que constrangendo o poder do Tribunal, lhe permite exercer influência na esfera
estatal, facto que se insere num processo gradual de erosão da visão vestefaliana da
intocabilidade da soberania e dos assuntos internos. Como argumenta Miguel de Serpa
Soares:
"qualquer forma de justiça internacional representa sempre uma
forma de limitação das soberanias estatais. No caso do Direito
Penal Internacional esta limitação torna-se ainda mais evidente ao
colocar em causa elementos essenciais do paradigma clássico do
Direito Internacional, como por exemplo o monopólio punitivo dos
Estados ou a noção de soberania estatal quase-absoluta" (Soares,
2014: 9).
Efetivamente, o Tribunal é competente para determinar a inexisncia de vontade de
agir por parte de um Estado: situações em que se comprove que o processo em outro
Tribunal foi instaurado ou se encontra pendente ou a decisão foi proferida com o
propósito de subtrair a pessoa à responsabilidade por crimes da sua competência, ter
havido demora injustificada no processamento ou o processo não ter sido ou não estar
a ser conduzido de modo independente ou imparcial, e ter estado ou se encontrar a ser
conduzido de uma maneira incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa
em causa perante a justiça (artigo 17º, nº 2).
Além disso, o Estatuto preceitua a obrigação de todos os Estados Parte cooperarem
com o Tribunal no inquérito e no procedimento criminal (artigo 86º) e de adotarem no
Direito Interno procedimentos que permitam responder a todas as formas de
cooperação internacional e auxílio judiciário previstas (artigo 88º).
A praxis do Tribunal permite constatar uma atividade crescente, demonstrando um
órgão judiciário empenhado em pôr fim à impunidade.
Em 2012, Thomas Lubanga Dyilo foi considerado culpado e condenado a 14 anos de
prisão por crimes de guerra: alistamento e recrutamento de crianças com menos de 15
anos para participarem ativamente no conflito armado de caráter não internacional na
República Democrática do Congo de 1 de Setembro de 2002 a 13 de Agosto de 2003
7
7
V. ICC-01/04-01/06-2901, Trial Chamber I, Situation in the Democratic Republic of the Congo in the Case
of the Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute,
10.07.2012.
.
Este ano, Germain Katanga foi considerado culpado e condenado a 12 anos de prisão
por um crime contra a humanidade (homicídio) e quatro de crimes de guerra
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(homicídio, ataque a população civil, destruição de propriedade e pilhagem) cometidos
a 24 de Fevereiro de 2003 durante um ataque à aldeia de Bogoro na República
Democrática do Congo
8
Presentemente, o Gabinete do Procurador encontra-se a conduzir inquéritos em várias
situações por submissão dos Estados Partes Uganda (em 2004), República
Democrática do Congo (em 2004), Mali (em 2012), Comoros (em 2013) República
Centro-Africana (em 2005 e em 2014) e por ação proprio motu do Procurador
Quénia (pedido em 2009, autorização do juízo de instrução em 2010) e Costa do
Marfim (pedido e autorização do juízo de instrução em 2011) bem como
investigações preliminares concernentes a vários Estados, designadamente a Ucrânia,
Estado não parte que aceitou a jurisdição do TPI (2014). Mais importante ainda é a
submissão por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas das situações na
região de Darfur, no Sudão, em 2005 e na Líbia em 2011 pela existência de indícios da
prática de crimes internacionais
.
9
. Pode-se considerar que estas submissões se inserem
no âmbito da afirmação da perspetiva do universalismo de esta competência do
Conselho possibilitar o alargamento da jurisdição do Tribunal a Estados que não são
parte do Estatuto e, assim, constituir uma “evolução na conformação da ordem pública
internacional” (Kowalski, 2011: 124).
3. Limites do TPI e implicações na aplicabilidade do Direito Penal
Internacional
Os limites do TPI resultam, em primeiro lugar, de tensões jurídico-políticas decorrentes
da relação com o Conselho de Segurança e do caráter complementar da sua jurisdição
e, em segundo lugar, da ambiguidade de determinadas formulações contidas nas
disposições concernentes ao “crime de agressão” e aos “crimes contra a humanidade”,
suscitando problemas interpretativos que o direito aplicável pelo Tribunal nos termos
do artigo 21º do Estatuto
10
não permite esclarecer categoricamente.
3.1. As tensões jurídico-políticas e o problema da implementação
das decisões
8
V. ICC-01/04-01/07-3484, La Chambre de Première Instance II, Situation en République Démocratique
du Congo, Affaire Le Procureur c. Germain Katanga, Décision relative à la peine (article 76 du Statut),
23.05.2014.
9
A resolução 1593 (2005) que submete a situação em Darfur (desde 1 de Julho de 2002) ao TPI não
especifica os possíveis crimes internacionais ocorridos nessa região. Contudo, o Conselho de Segurança
refere na resolução que tomou nota do relatório da International Commission of Inquiry on Darfur
comissão estabelecida pelo antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, com base na
resolução 1564 (2004) com o mandato de investigar denúncias de violações do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário na região que considerou que os crimes
cometidos poderiam prefigurar crimes de guerra e crimes contra a humanidade (U.N. Doc. S/2005/60). A
resolução 1970 (2011) que submete a situação da Líbia menciona que os ataques generalizados e
sistemáticos a ocorrer contra a população civil líbia poderiam constituir crimes contra a humanidade.
10
Segundo o artigo 21º, n
os
1 e 2, as bases do direito aplicável são, em primeiro lugar, o Estatuto, os
elementos constitutivos e o Regulamento Processual, em segundo lugar, se for o caso, os tratados e os
princípios e normas de Direito Internacional aplicáveis, incluindo os princípios estabelecidos no Direito
Internacional dos Conflitos Armados, na falta destes, os princípios gerais do Direito retirados pelo Tribunal
dos diferentes sistemas jurídicos nacionais e princípios e normas de Direito tal como já tenham sido
interpretados pelo Tribunal em decisões anteriores.
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O artigo 13º, alínea b) do Estatuto consagra a possibilidade de o Conselho de
Segurança submeter ao Procurador uma situação ao abrigo do Capítulo VII, o que
significa que o consentimento do Estado no qual os atos foram cometidos ou da
nacionalidade da pessoa sobre quem existam indícios de responsabilidade por crimes
internacionais não é requerido. As submissões deste órgão referentes à situação na
região de Darfur, Sudão, em 2005 e à situação na Líbia em 2011 foram consideradas
históricas. Contudo, no tocante à primeira, o Conselho de Segurança não tem apoiado
ativamente o TPI com respeito à detenção e à obrigação de cooperação por parte dos
Estados; relativamente à segunda, apesar da rapidez da reação do Conselho a
resolução revelava deficiências à semelhança da resolução respeitante ao Darfur, como
por exemplo, a exclusão da jurisdição relativamente a nacionais de Estados não parte
do Estatuto (Stahn, 2012: 328).
Mas é sobretudo o artigo 1, de acordo com o qual um inquérito ou um procedimento
criminal não poderão ter início ou prosseguir por um período de 12 meses se o
Conselho assim o tiver solicitado numa resolução nos termos do Capítulo VII, pedido
que poderá ser renovado, que suscita críticas mais incisivas com base no argumento de
esta possibilidade minar a independência do Tribunal
11
. Jorge Bacelar Gouveia qualifica
este mecanismo de “esdrúxulo” e sublinha que:
"É muito dificil aceitar a interferência de um orgão político no
coração do exercício do poder público de uma instância que se
quer jurisdicional, numa intervenção que, além do mais, não só
pode acontecer em qualquer momento processual como pode
inclusivamente repetir-se, se bem que tenha a favor a sua
temporariedade e o contexto adstringente do Capítulo VII da CNU"
(2013: 792-793).
A ação do Tribunal em complemento às jurisdões penais nacionais significa, tal como
referiu o juiz Philippe Kirsch, que o Estatuto é um sistema de dois pilares: um pilar
judicial representado pelo Tribunal e um pilar de execução representado pelos
Estados
12
Na verdade, o processo de execução dos mandatos de detenção tem sido em certa
medida conturbado. Não se pode considerar, por isso, uma casualidade que as
primeiras palavras dos Estados-Membros na declaração da primeira Conferência de
Revisão do Estatuto a Declaração da Kampala de 2010, tenham sido no sentido de
. Todavia, a inexistência de um mecanismo permanente que assegure a
observância das suas decisões dificulta a implementação deste pilar e,
consequentemente, o combate à impunidade.
11
A definição do crime de agressão implicou a prescrição de procedimentos que sublinham esta dependência
no caso de uma submissão por parte de um Estado Parte ou ação proprio motu do Procurador, embora o
nº 9 do artigo 15º bis sublinhe que tal determinação por um órgão externo não é vinculativa para o
Tribunal. Segundo os n
os
6 e 8 deste artigo respetivamente, quando o Procurador concluir que existe
fundamento suficiente para prosseguir com o inquérito, este deve primeiro averiguar se o Conselho de
Segurança efetuou tal determinação relativamente ao Estado em causa e notificar o Secretário-Geral das
Nações Unidas da situação no Tribunal; se nenhuma determinação for efetuada num período de seis
meses após a data da notificação, o Procurador pode prosseguir com o inquérito desde que o juízo de
instrução tenha autorizado a abertura deste e o Conselho de Segurança não tenha decidido em contrário
nos termos do artigo 16º.
12
ICC, Philippe Kirsch, Opening remarks at the fifth session of the Assembly of State Parties, 23.11.2006.
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um renovado espírito de cooperação e solidariedade, enfatizando o compromisso dos
Estados Partes para combater a impunidade e assegurar o respeito duradouro pela
implementação da justiça penal internacional.
O caso do presidente sudanês, Omar Al-Bashir, é representativo desta problemática. As
origens deste caso remontam a 2005 quando o Conselho de Segurança decidiu na
resolução 1593 submeter a situação de Darfur ao Tribunal. O antigo Procurador do TPI,
Luís Moreno-Ocampo, abriu um inquérito ainda nesse ano e, em 2008, solicitou ao juízo
de instrução a emissão de um mandato de detenção contra o presidente sudanês
(primeiro mandato emitido a 4 de Março de 2009 e segundo mandato emitido a 12 de
Julho de 2010, por responsabilidade indireta na prática de crimes de guerra, crimes
contra a humanidade e crime de genocídio)
13
. Trata-se do primeiro caso de emissão de
mandatos contra um Chefe de Estado em exercício. Subsequentemente, a União
Africana (UA) solicitou, com base no artigo 16º do Estatuto, ao Conselho que aprovasse
uma resolução abrigo do Capítulo VII no sentido do adiamento desta decisão, pedido ao
qual este órgão não acedeu. A reação da UA traduziu-se no apelo reiterado aos seus
Estados-Membros para não cooperarem com o TPI na detenção de Omar Al-Bashir
14
Em várias situações, o TPI apelou, sem sucesso, a Estados Partes e Estados não parte
do Estatuto para executarem os mandatos de detenção emitidos contra Al-Bashir em
virtude da deslocão deste ao seu território. Em Abril deste ano, o juízo de instrução
determinou que a República Democrática do Congo não observou a decisão do Tribunal
de detenção e entrega de Omar al Bashir aquando da sua deslocação ao território.
Consequentemente, o jzo informou a Assembleia dos Estados Parte e o Conselho de
Segurança nos termos do artigo 87, nº 7
.
Como afirmou David Luban, a fraqueza do Tribunal, ou seja, a disparidade entre a
aspiração de justa penal e a sua concretização ficou patente quando a maioria dos
Estados africanos e árabes se uniram para apoiar o presidente sudanês face à decisão
do Tribunal (2013: 508).
15
Um outro caso de relevo é o referente ao atual presidente do Qnia, Uhuru Muigai
Kenyatta, que é alvo de acusações do TPI por responsabilidade indireta por crimes
contra a humanidade. Este caso reporta-se à violência ocorrida após as eleições
presidenciais de 2007 que causou inúmeras vítimas. Em 2009, Luís Moreno-Ocampo
pediu autorização ao juízo de instrução para abrir um inquérito, do qual resultou, a
pedido do Procurador, a emissão de um mandato de detenção para seis oficiais
quenianos pelo juízo em 2011, os designados “Ocampo six”. Nesse ano, a UA apoiou o
governo queniano no pedido ao Conselho de Segurança para que adotasse uma
resolução com vista à suspensão dos processos referentes ao presidente queniano e ao
. O facto de este último poder tomar
igualmente as medidas necessárias nesta maria permite constatar que o poder de
executar as decisões do TPI também reside neste órgão.
13
ICC-02/05-01/09-1, Pre-Trial Chamber I, The Prosecutor v. Omar al Bashir, Warrant of Arrest for Omar
Hassan Ahmad Al Bashir, 04.03.2009 e ICC-02/05-01/09-95, Pre-Trial Chamber I, The Prosecutor v.
Omar al Bashir, Second Warrant of Arrest for Omar Hassan Ahmad Al Bashir,12.07.2010.
14
V. Theresa Reinold (2012), Constitutionalization? Whose constitutionalization? Africa’s ambivalent
engagement with the International Criminal Court, International Journal of Constitutional Law, 10(4):
1076-1105, Ken Obura (2011), The Security Council’s Power to Defer ICC Cases under Article 16 of the
Rome Statute, Journal of African and International Law, 4(3) 581-583 e Stella Nyana (2011), The ICC at a
Crossroads: Between Prosecution and Peace in Africa, Journal of African and International Law, 4(1): 1-
74.
15
ICC-02/05-01/09-195, Pre-Trial Chamber II, The Prosecutor v. Omar al Bashir, Decision on the
Cooperation of the Democratic Republic of the Congo Regarding Omar Al Bashir’s Arrest and Surrender to
the Court, 09.04.2014.
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vice-presidente, William Ruto, nos termos do artigo 16º, tendo a organização renovado
o pedido em 2013, novamente recusado pelo Conselho de Segurança
16
Já em Junho deste ano, a UA aprovou uma emenda ao protocolo do futuro Tribunal
Africano de Justiça e Direitos Humanos com jurisdição sobre crimes internacionais que
preceitua a imunidade a Chefes de Estado e altos funcionários do Estado, por oposição
ao que estabelece o Estatuto de Roma no artigo 2
.
17
, o que permite prospetivar a
persistência das tensões judico-políticas entre esta organização e o TPI.
3.2. Insuficiências na interpretação do Estatuto de Roma
3.2.1. “Crime de Agressão e “Ato de Agressão
Da impossibilidade de alcançar um acordo sobre uma definição de “crime de agressão”
e respetivos elementos na Conferência de Roma resultou a inclusão no Estatuto de uma
cláusula adicional à prescrição deste crime, a qual previa o exercício da jurisdição se
numa Conferência de Revisão, conforme previsto nos artigos 121º e 123º, fosse
aprovada uma disposição definindo este crime e as condições para esse efeito (artigo
5º, nº 2). Nesse sentido, a resolução F do Anexo I da Ata Final da Conferência de Roma
estabeleceu uma comissão preparatória com várias funções entre as quais a elaboração
de propostas concernentes a este crime
18
A definição de crime de agressão adotada na Conferência de Kampala representa um
desenvolvimento significativo no Direito Penal Internacional
, missão posteriormente atribuída ao Special
Working Group on the Crime of Agression.
19
No que toca aos condicionalismos formais, o Tribunal somente poderá exercer
jurisdição sobre os crimes cometidos um ano após a aceitação ou ratificação mínima de
é inegável que a
entrada em vigor de uma jurisdição punindo o crime de agressão constituirá uma
evolução, dado que será a primeira vez que um sistema permanente de justiça penal
impõe uma responsabilidade criminal pelo uso ilegal da força porém, inclui
condicionalismos formais e materiais, suscitando estes últimos questões interpretativas
que poderão dificultar a determinação da existência deste crime.
16
V. Theresa Reinold (2012), Constitutionalization? Whose constitutionalization? Africa’s ambivalent
engagement with the International Criminal Court, International Journal of Constitutional Law, 10(4):
1076-1105, Ken Obura (2011), The Security Council’s Power to Defer ICC Cases under Article 16 of the
Rome Statute, Journal of African and International Law, 4(3) 581-583 e Stella Nyana (2011), The ICC at a
Crossroads: Between Prosecution and Peace in Africa, Journal of African and International Law, 4(1): 1-
74.
17
O artigo 27º, nº 1 determina que “o Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas, sem
distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de
Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público em
caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal, nos termos do presente Estatuto,
nem constituirá de per si motivo de redução da pena. O nº 2 do mesmo artigo preceitua que “as
imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos
termos do Direito Interno ou do Direito Internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua
jurisdição sobre essa pessoa”.
18
U.N. Doc. A/CONF.183/13 (Vol. I), United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the
Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United
Nations, 2002, §7, p. 72 e s.
19
V., entre outros, Niels Blokker; Claus Kress (2010), A Consensus Agreement on the Crime of Aggression:
Impressions from Kampala, Leiden Journal of International Law, 23(4): 889-895.
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trinta Estados
20
A nível dos pressupostos materiais, o novo artigo 8º bis, nº 1 preceitua o crime de
agressão como:
e de uma decisão somente após 1 de Janeiro de 2017 na Assembleia
dos Estados Partes de ativar a jurisdição do TPI (artigos 15º bis e 15º ter, n
os
2 e 3).
Estes condicionalismos têm sido alvo de críticas por parte de certos autores, como por
exemplo, Mary Ellen O’Connell e Mirakmal Niyazmatov que qualificam este processo de
“bizantino” (2012: 191).
planning, preparation, initiation or execution, by a person in a
position effectively to exercise control over or to direct the political
or military action of a State, of an act of aggression which, by its
character, gravity and scale, constitutes a manifest violation of the
Charter of the United Nations".
A responsabilidade criminal é somente atribuída a indivíduos que se encontrem numa
posição de efetivamente exercer controlo e dirigir uma ação política ou militar de um
Estado, por outras palavras, a posição de liderança é um fator determinante.
A noção de “ato de agressão” encontra-se precisada no nº 2 deste artigo. Trata-se do
uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou
independência política de um outro Estado ou de outro modo incompatível com os
princípios da Carta. Esta disposição absorveu o artigo 1º da Definição de Agressão da
Assembleia Geral das Nações Unidas de 1974 resolução 3314 (XXIX), ao mesmo
tempo que enumera vários atos que poderão qualificar como um ato de agressão,
patentes no artigo 3º da Definição
tais como a invasão, a ocupação militar e o
bombardeamento pelas forças armadas de um Estado contra outro Estado. De notar,
ainda, que o ato de agressão tem que ser analisado no contexto do seu “caráter”,
“escala” e “gravidade”. Isto significa que somente se pode verificar um crime de
agressão quando um ato de agressão constitui uma manifesta violação da Carta.
Assim, embora o ato de agressão possa ser cometido apenas por um Estado, a
responsabilidade por tais atos ilícitos reside no indivíduo que é responsável por tal ação
estatal.
Os procedimentos segundo os quais o Tribunal pode exercer a jurisdição encontram-se
estabelecidos nos artigos 15º bis e 15º ter. O primeiro prevê a possibilidade de
submissão por parte dos Estados Partes e de impulso processual por parte do
Procurador. O artigo 15º ter prescreve a possibilidade de submissão por parte do
Conselho de Segurança, o que significa que neste caso o Tribunal será igualmente
competente para investigar e julgar os crimes de agressão independentemente de os
Estados em questão terem aceitado a sua jurisdão.
A Conferência de Kampala definiu o crime de agressão e as condições de exercício da
jurisdição cujo objetivo é clarificar e auxiliar na interpretação e aplicação das emendas
ao Estatuto. No entanto, as disposições enunciadas e as próprias clarificações contêm
alguns aspetos ambíguos.
20
Atualmente, 15 Estados vincularam-se às emendas adotadas referentes ao crime de agreso: Andorra,
Áustria, Bélgica, Botsuana, Croácia, Chipre, Estónia, Alemanha, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa,
Eslováquia, Eslovénia, Trindade e Tobago e Uruguai.
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No que concerne ao “ato de agressão”, os critérios de “gravidade” e “escala” foram
incluídos com o propósito de não sobrecarregar o Tribunal com casos de menor
dimensão enquanto que o critério de “caráter” pretendia excluir casos de emprego da
força cuja licitude era controversa. (Mancini, 2012: 236). Contudo, os critérios
“caráter”, “gravidade” e “escala” que possibilitam avaliar se um ato constitui uma
violação manifesta da Carta não se encontram definidos estes últimos à semelhança
do que se verifica com a determinação da existência de um ataque armado nos termos
do artigo 51º da Carta das Nações Unidas, o que poderá ser problemático
nomeadamente devido às divergências existentes sobre o recurso lícito ao uso da força
em legítima de defesa ou no caso da ingerência humanitária (Santos, 2012). Os
elementos constitutivos referem que a qualificação de violação “manifesta” da Carta é
objetiva, porém este processo no seio das Nações Unidas não é pacífico.
Simultaneamente, a remissão do nº 2 do artigo 8º para a resolução 3314 da
Assembleia Geral no sentido de clarificar a noção de “ato de agressão” suscita algumas
questões. Em primeiro lugar, algumas formulações contidas na resolução revelam um
caráter vago e a lista enunciada não é exaustiva, o que poderá originar situações
controversas. Em segundo lugar, o artigo não esclarece se e, em que medida, outros
artigos da resolução seriam aplicáveis ou relevantes para o Tribunal (Surendran Koran:
252).
Para além da Definição de Agressão deter um caráter político, relembre-se que a
Assembleia Geral apenas pode emitir recomendações, desprovidas, portanto, de efeito
vinculativo, os n
os
6, 7 e 8 do artigo 15º bis confirmam o poder do Conselho de
Segurança. Efetivamente, o artigo 3 da Carta preceitua o poder exclusivo do
Conselho para determinar a existência de ato de agressão, podendo aludir a um caso
distinto dos enunciados. A prática, todavia, não se revela uniforme e recorrentemente
as decisões ao abrigo do Capítulo VII empregam uma linguagem distinta.
A este propósito cabe referir outros aspetos que têm sido criticados tais como a
completa exclusão de atos de nacionais de Estados não parte ao contrário do que se
verifica com os outros “crimes de maior gravidade e a retrograde opt-out clause”
(Alam, 2010: 179-180) que prevê a possibilidade de exclusão voluntária da jurisdição
do Tribunal (artigo 15º bis, nº 4). Alguns críticos consideram a resolução uma
orientação política para a determinação da responsabilidade estatal e que, por isso, não
previa a sua aplicação relativamente a uma responsabilidade penal individual (Alam,
2010: 170).
Mas uma crítica essencial pode ser apontada ao facto de a definição de agressão
adotada em Kampala não contemplar uma possível agressão por parte de atores não
estatais. Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 demonstraram a
possibilidade de tal ato poder ser cometido por entidades não estatais bem como a
magnitude que tal ato pode assumir, comparável a um ato perpetrado por um Estado.
Efetivamente, considera-se que a solução apresentada revela problemas que não
poderão ser subestimados sob pena de poderem obstar ao bom funcionamento do TPI.
Discorda-se, no entanto, da visão pessimista de alguns autores mais críticos como Mary
Ellen O’Connell e Mirakmal Niyazmatov que defendem que the substantive provision
leaves experts unclear as to what the prosecutable crime even is”. Estes autores
duvidam da exequibilidade de um processo penal e lamentam que a solução
apresentada seja diferente da definição de crime de agressão preceituada no Direito
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Internacional, afirmando a imprescindibilidade de esta proibição de agressão não ser
minada pelo compromisso político de Kampala (O’Connell; Niyazmatov, 2012: 191,
207).
3.2.2. “Crimes contra a Humanidade”
O artigo 7º carateriza-se por algumas formulações que denotam uma certa
ambiguidade.
As dificuldades interpretativas e as suas consequências têm sido sublinhadas por vários
autores. Jordan J. Paust considera as formulações demasiado restritivas e pouco claras:
Article 7 contains a limiting definition of ‘attack’ that is lacking in common sense.
Instead of recognizing that one attack can constitute an ‘attack’, Article 7(2)(a)
requires that an ‘attack’ involve ‘a course of conduct involving the multiple commission
of acts’” (2010: 691). O autor argumenta ainda que o emprego da palavra “ataque” em
vez de, por exemplo, ato(s) cometido(s) (contra) é problemático, uma vez que pode
ter como consequência a impossibilidade de abranger certas situações que têm sido
associadas a crimes desta tipologia e que aparecem enunciadas na listagem. De igual
modo, de acordo com este autor, as expressões “qualquer conduta que envolva” e
“prática múltipla de atos” são discutíveis, dadoo incluirem atos de tortura, violação,
perseguição entre outros (Ibid., 692-693).
Uma crítica que também se pode apontar prende-se com a expressão “no quadro de
um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo
conhecimento desse ataque”. Porém onde reside a linha delimitativa do patamar
“sistemático e generalizado”?
Um outro problema interpretativo prende-se com o entendimento da expressão “outros
atos desumanos de cater semelhante que causem intencionalmente grande
sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental ou física” (nº 1, alínea k)). A
sua interpretação tornou-se relevante pela primeira vez na acusação conjunta de
Germain Katanga e de Mathieu Ngudjolo Chui em 2008. O Gabinete do Procurador
acusou ambos da perpetração deste tipo de atos e o juízo de instrução considerou que
deveriam ser interpretados de forma estrita. Contudo, alguns autores como Bernhard
Kuschnik defendem uma interpretação em sentido amplo (2010: 524-530).
Segundo Cameron Russell, um dos problemas interpretativos prende-se com a noção
de “civil”. O autor advoga que os parâmetros não são claros, o que é parcialmente
resultado da dissociação destes crimes com o requisito da existência de um conflito
armado, no âmbito do qual este conceito era empregue para diferenciar de
“combatentes”; mas o facto de estes crimes poderem ser cometidos em tempos de paz
gera problemas interpretativos (2011: 60-61). Além disso, um “ataque contra a
população civilimplica uma conduta “de acordo com a política de um Estado ou de
uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política
(nº 2, alínea a)), no entanto o conceito “organização” é impreciso, o que resulta
igualmente da dissociação com a exisncia de um conflito armado. Assim, torna-se
necessário definir “organizão” para diferenciá-la da entidade estatal (Ibid.: 63). Na
opinião do autor, o requisito de “política” parece criar alguma incompatibilidade no seio
do Estatuto (Ibid.: 70). Leila Nadya Sadat observa que os juízos de instrução têm
demonstrado diferentes posições na interpretação do artigo, designadamente no que
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respeita à expressão “política de um Estado ou de uma organização” (2013: 335). Esta
condição para a persecução destes crimes permanece controversa (Ibid.: 352) e
deveria ser intepretada em sentido amplo sob pena de resultar na fragmentação do
Direito Penal Internacional (Ibid.: 375). A opino dissidente de Hans-Peter Kaul na
sequência do pedido do Procurador ao juízo de instrução para abrir um inquérito
referente à violência após as eleições no Quénia apresentou um entendimento em
sentido oposto. De acordo com o juiz somente os Estados ou organizações com
caraterísticas semelhantes a um Estado seguindo políticas criminosas podem perpetrar
crimes contra a humanidade. Esta posição tem reunido algum apoio na doutrina e no
seio do Tribunal (Sadat, 2013: 336).
Merece ainda referência a opinião minoritária de Christine Van den Wyngaert em Março
deste ano respeitante ao caso de Germain Katanga por ilustrar a problemática e poder
ter repercussões em futuros julgamentos. A juíza discordou da condenação de Germain
Katanga por considerar que não ficou provada a responsabilidade criminal de contribuir
intencionalmente para prática de crimes por um grupo de pessoas com o conhecimento
de que este grupo tinha a intenção de cometer tais crimes (artigo 25º, nº 3, alínea d),
vii) e que a interpretação das provas poderia ter sido efetuada de uma forma diferente
e mais convincente. Mas no que se refere à acusação de crimes contra a humanidade, a
juíza formulou várias linhas de argumentação. Na sua opinião, em primeiro lugar, o
número de vítimas não permitiu qualificar os atos como crimes contra a humanidade e,
consequentemente, não se poderia considerar que se verificou a prática múltipla de
atos; em segundo lugar, não ficou provado de forma incontestável que a população civil
era o principal alvo; em terceiro lugar, não ficou provada a existência de uma política e
de uma organização e, por último, o ataque ocorrido não poderia ser considerado
sistemático
21
Neste contexto, é de saudar que a Comissão de Direito Internacional, em Junho de
2013 na sequência da recomendação do Working Group on the Long-term
Programme of Work com base na proposta elaborada pelo membro do grupo de
trabalho, Sean Murphy tenha adicionado ao seu programa o tópico “crimes contra a
humanidade”. Como o autor da proposta observa:
.
“For example, the mass murder of civilians perpetrated as part of
an international armed conflict would fall within the grave breaches
regime of the 1949 Geneva Conventions, but the same conduct
arising as part of an internal armed conflict (as well as internal
action below the threshold of armed conflict) would not (…). A
global convention on crimes against humanity appears to be a key
missing piece in the current framework of international
humanitarian law, international criminal law, and international
human rights law”
22
.
Sean Murphy salienta a relevância da elaboração de uma convenção internacional
relativa à prevenção e punição de tais atos. Na proposta chama a atenção para aspetos
21
ICC-01/04-01/07-3436-Anxl, Minority Opinion of Judge Christine Van den Wyngaert, 07.03.2014.
22
U.N. Doc. A/68/10, Sean D. Murphy, Annex B, Report of the International Law Commission, Sixty-fifth
session, General Assembly, Official Records, Sixty-eighth session, 2013, §2 e §3, pp. 140-141.
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que deveriam ser tidos em conta pela Comiso tais como definir a ofensa de “crimes
contra a humanidade” para os propósitos da Convenção como se encontra definida no
artigo 7º.
No que se refere à articulação entre a Convenção e o TPI, Sean Murphy afirma que a
elaboração da Convenção iria beneficiar consideravelmente da linguagem do Estatuto e
instrumentos associados assim como da jurisprudência. Por sua vez, a adoção da
Convenção poderia colmatar aspetos que não foram abordados pelo Estatuto e apoiar a
missão do TPI
23
. Isto porque sobretudo, entre outros aspetos enunciados pelo autor, o
Estatuto regula assuntos entre Estados Partes e o TPI, mas não entre Estados Parte e
entre estes e Estados não parte. A parte IX, epigrafada “cooperação internacional e
auxílio judiciário” reconhece implicitamente que a cooperação interestatal relativamente
a crimes sob jurisdição do Tribunal poderá ocorrer para além do Estatuto de Roma. A
Convenção poderia auxiliar na promoção da cooperação interestatal no que se refere à
investigação, detenção, persecução e punição de indivíduos que pratiquem este tipo de
crimes, o que seria compatível com o objeto e o fim do Estatuto; a convenção iria
requerer a promulgação de legislação nacional que proíba e puna estes crimes, o que
na opinião do autor ainda não foi efetuado por vários Estados, ajudando no
preenchimento de uma lacuna e, assim, poderia encorajar todos os Estados a ratificar
ou aderir ao Estatuto; no caso de Estados que já adotaram legislação, frequentemente
esta apenas permite a persecução de crimes cometidos por nacionais desse Estado ou
no seu território. A Convenção iria requerer ao Estado Parte que ampliasse a sua
legislação para abranger outros indivíduos que se encontrem no seu território
nacionais de outros Estados que cometam uma ofensa no território de um outro Estado
Parte da Convenção. Acautelando a eventualidade de um Estado Parte receber um
pedido de entrega de uma pessoa formulado pelo Tribunal e, ao mesmo tempo, um
pedido de qualquer outro Estado para a sua extradição de acordo com a Convenção,
Sean Murphy propõe que a Convenção seja delineada de modo a garantir que os
Estados que sejam parte do Estatuto e da Convenção possam continuar a seguir o
procedimento previsto no artigo 90º do Estatuto perante pedidos concorrentes
24
.
4. Multifacetando o TPI
Certos desafios como o terrorismo em todas as suas formas e manifestações, a
profusão de conflitos intraestatais com diferentes nuances e complexidades e o
fenómeno dos Estados frágeis, falhados ou colapsados evidenciam o número crescente
de situações distintas e intricadas em que um Estado não está disposto, não possui
capacidade efetiva para conduzir um inquérito ou um procedimento criminal ou se
revela incapaz de proteger a sua população de crimes internacionais.
Deste modo, estes desafios justificam a indispensabilidade de repensar o TPI através
de um processo de atribuição de novas facetas e de exploração mais aprofundada de
facetas já previstas no Estatuto. Mais concretamente, um repensar da competência
deste órgão com a sua ampliação ao crime internacional de terrorismo ou seja, atos
terroristas em grande escala, os quais “constituem uma ameaça à paz, à segurança e
ao bem-estar da Humanidade”, dos quais resultam atrocidades “que chocam
profundamente a consciência da Humanidade” e que afetam “a comunidade
23
Ibid., §8, §9, p. 142 e s.
24
Ibid., §10 e §12. V., artigo 90º do Estatuto de Roma.
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internacional no seu conjunto” parafraseando o preâmbulo, similarmente ao que se
verifica com os crimes de maior gravidade sob a alçada do Tribunal e um repensar
da sua atuação com vista à proteção das populações desses crimes que se deverá
inscrever no âmbito da conceção da “responsabilidade de proteger”.
4.1. A categorização do terrorismo como “crime internacional”
Os atos, os métodos e as práticas terroristas podem assumir inúmeras formas e
manifestações e constituem atividades que visam a destruição dos direitos humanos e
das liberdades fundamentais
25
A ideia de incluir o terrorismo como um dos crimes mais graves que afetam a
comunidade internacional encontra-se patente no projeto de Estatuto do TPI da
Comissão de Direito Internacional de 1994. A proposta da Comissão consistiu na
integração de um artigo o artigo 20º que contemplava, a par dos crimes de
genocídio, de agressão, de violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos
armados e de crimes contra a humanidade, uma alínea específica, a alínea e), relativa
aos “treaty crimes” nos quais se inseria o terrorismo: “Crimes, established under or
pursuant to the treaty provisions listed in the Annex, which, having regard to the
conduct alleged, constitute exceptionally serious crimes of international concern
. A disseminação de um novo tipo de terrorismo de
natureza transnacional e a multiplicação de grupos terroristas em diferentes partes do
globo, incluindo territórios de Estados Partes do Estatuto, grupos nos quais poderão
estar envolvidos nacionais destes Estados implicam retomar a questão sobre a eventual
competência do Tribunal nesta matéria.
26
De modo idêntico, o Comité Preparatório para a criação de um Tribunal Penal
Internacional estabelecido em 1996 pela Assembleia Geral das Nações Unidas com o
objetivo de preparar um projeto de texto consolidado e amplamente aceite, servindo de
base de negociação para o estabelecimento de um tribunal penal internacional
propôs a inclusão de crimes de terrorismo entre outros (artigo 5º, alínea e))
.
27
como
uma ofensa prevista nas convenções mencionadas pelo projeto da Comissão (nº 2),
mas foi mais além precisando estes crimes da seguinte forma:
Undertaking, organizing, sponsoring, ordering, facilitating,
financing, encouraging or tolerating acts of violence against
another State directed at persons or property and of such a nature
as to create terror, fear or insecurity in the minds of public figures,
groups of persons, the general public or populations, for whatever
considerations and purposes of a political, philosophical,
25
U.N. Doc. A/RES/60/288, The United Nations Global Counter-Terrorism Strategy, 20.09.2006, p. 2.
26
U.N. Doc. A/49/10, Draft Statute for an International Criminal Court, Report of International Law
Commission on the work of its forty-sixth session, 2 May-22 July 1994, Official Records of the General
Assembly, Forty-ninth session, Supplement No.10, Yearbook of the International Law Commission, 1994,
vol. II (2), p. 38. O anexo refere, por exemplo, a Convenção para a Repressão da Captura Ilícita de
Aeronaves de 1970, a Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil de
1971, a Convenção Internacional contra a Tomada de Réfens de 1979 e a Convenção para a Supressão de
Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima de 1988, pp. 67 e ss.
27
U.N. Doc. A/CONF.183/13(Vol. III), Report of the Preparatory Committee on the Establishment of an
International Criminal Court, United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the
Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United
Nations, 2002, p. 5.
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ideological, racial, ethnic, religious or such other nature that may
be invoked to justify them (nº 1).
An offense involving use of firearms, weapons, explosives and
dangerous substances when used as a means to perpetrate
indiscriminate violence involving death or serious bodily injury to
persons or groups of persons or populations or serious damage to
property (nº 3).
O dissenso entre Estados Partes patente na Conferência de Roma impossibilitou a sua
incorporação no Estatuto, porém os Estados na resolução E do Anexo I da Ata Final da
Conferência reconheceram que “terrorist acts, by whomever and wherever perpetrated
and whatever their forms, methods or motives, are serious crimes of concern to the
international community” e profundamente apreensivos com a persistência desta grave
ameaça à paz e segurança internacionais recomendaram que uma Conferência de
Revisão realizada nos termos do artigo 123º do Estatuto
28
tivesse em consideração os
crimes de terrorismo com vista a alcançar uma definição consensual e a sua inclusão na
lista dos crimes mais graves
29
Vários autores frisam que atos de terrorismo internacional como os ataques de 11 de
Setembro de 2001 poderiam ser considerados como crimes contra a humanidade de
acordo com o artigo 7º do Estatuto e julgados pelo TPI. Mireille Delmas-Marty defende
que o nº 2 deste artigo que define a noção de ataque contra a população civil como um
elemento de crimes contra a Humanidade poderia ter sido aplicado a estes atos
terroristas (2013: 561). A este respeito Vincent-Joël Proux acrescenta: “other acts of
international terrorism, which do not compare in magnitude to the events of September
11
th
, yet still constitute an affront to the principles of humanity, should be prosecuted
under this mechanism (2004: 1085). Lucy Martinez admite a possibilidade de atos
individuais de terrorismo internacional serem abrangidos pelas definições de crimes
contra a humanidade ou de crimes de guerra, mediante o requisito da existência de um
conflito armado (2002: 50). Por sua vez, Surendra Kumar ainda que defenda que
crimes com a magnitude dos atos terroristas de 2001 possam prefigurar crimes contra
a humanidade, atos terroristas de menor dimensão o poderão cumprir os requisitos
estabelecidos e, portanto, não serão abrangidos pela jurisdição do TPI. A autora
. Esta temática não foi, contudo, abordada na
Conferência de Revisão de Kampala de 2010. Indubitavelmente, a principal dificuldade
prende-se com a ausência de uma definição jurídico-política universal consagrada numa
convenção global sobre o terrorismo internacional, prescrevendo que os atos terroristas
em grande escala constituem um crime internacional.
28
O artigo 123º, nº 1 prescreve que “sete anos após a entrada em vigor do presente Estatuto, o Secretário-
Geral da Organização das Nações Unidas convocará uma conferência de revisão para examinar qualquer
alteração ao presente Estatuto. A revisão poderá incidir nomeadamente, mas não exclusivamente, sobre a
lista de crimes que figura no artigo 5º”.
29
U.N. Doc. A/CONF.183/13 (Vol. I), United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the
Establishment of an International Criminal Court, Official Records, Rome 15 June-17 July 1998, United
Nations, 2002, pp. 71 e s. Na Conferência de Roma, vários Estados defenderam a jurisdição do tribunal
sobre os crimes de terrorismo, Ibid., vol. II (por exemplo, Argélia, §18, p. 73, Quirguistão, §71, p. 77,
Costa Rica, §74, p. 77, Arménia, §83, p. 78, Albânia, “institutionalized State terrorism”, §12, p. 82, Índia,
§52, p. 86 e s., Tajiquistão, §17, p. 92, Federação Russa,most serious terrorist crimes”, §20, p. 115,
Congo, §49, p. 117, Sri Lanka, §35, p. 123, Turquia, “Terrorism should have been included among crimes
against humanity, since it was often the root cause of such crimes”, §41, p. 124).
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sustenta, ainda, que embora alguns atos de terrorismo possam em certa medida ser
considerados como um crime de genocídio
mas a condenação por tais atos
dependerá da suficiência da prova para preencher os elementos da definição de
genocídio, ou crime de guerra quando cometidos em conflitos armados, os atos
terroristas nem sempre possuirão essas caraterísticas (2008: 200-202). Nesse sentido,
propõe uma emenda ao Estatuto: “the need of the hour is that crimes of terrorism,
inducing suicide terrorism should be incorporated as a separate category and deserves
separate contemplation and prosecution” (2008: 202).
Os argumentos esgrimidos a favor do crime de terrorismo recair sob a alçada do
Tribunal prendem-se com as limitações dos sistemas judiciários nacionais e as
caraterísticas comuns deste tipo de atos com os crimes de maior gravidade
contemplados no Estatuto.
Os Países Baixos propuseram uma emenda à lista destes crimes em 2009 e
explicitaram a problemática:
We have all committed ourselves to cooperate fully in the fight
against terrorism, in accordance with our obligations under
international law, in order to find, deny safe haven and bring to
justice, on the basis of the principle of extradite or prosecute, any
person who supports, facilitates, participates or attempts to
participate in the financing, planning, preparation or perpetration
of terrorist acts or provides safe havens. Yet, at the same time,
there is all too often impunity for acts of terrorism in cases where
states appear unwilling or unable to investigate and prosecute
such crimes. (…) In the light of the absence of a generally
acceptable definition of terrorism, the Netherlands proposes to use
the same approach as has been accepted for the crime of
aggression, i.e. the inclusion of the crime of terrorism in the list of
crimes laid down in article 5, paragraph 1, of the Statute (…)”
30
.
De acordo com esta proposta, o crime de terrorismo estaria previsto numa nova alínea
(a alínea e)) do nº 1 do artigo 5º. Além disso, este artigo passaria a incluir um terceiro
parágrafo que transporia ipsis verbis o conteúdo do segundo parágrafo consagrado no
Estatuto concernente ao crime de agressão:
The Court shall exercise jurisdiction over the crime of terrorism
once a provision is adopted in accordance with articles 121 and
123 defining the crime and setting out the conditions under which
the Court shall exercise jurisdiction with respect to this crime.
Such a provision shall be consistent with the relevant provisions of
the Charter of the United Nations(nº 3 do artigo 5º).
30
ICC-ASP/8/43/Add. 1, Report of the Bureau on the Review Conference, Annex IV, 10.11.2009, pp. 12 e s.
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A proposta previa, ainda, o estabelecimento de um grupo de trabalho informal sobre o
crime de terrorismo na Conferência de Kampala cuja missão seria a de analisar em que
medida o Estatuto requeriria alterações na sequência da introdução do crime de
terrorismo bem como outras questões relevantes decorrentes da ampliação do alcance
jurisdicional.
Se os ataques de 11 de Setembro de 2001 relaaram a questão sobre atos terroristas
em grande escala poderem constituir “crimes internacionais” e recair sob a alçada do
TPI, presentemente podem-se enunciar diversos argumentos que fundamentam a
consagração do terrorismo como crime da competência do Tribunal.
Os ataques supracitados foram considerados pelo Conselho de Segurança como uma
ameaça à paz e segurança internacionais (resolução 1368 (2001)). Em várias
resoluções, este órgão reafirmou que o terrorismo em todas as suas formas e
manifestações constitui uma das ameaças mais graves à paz e segurança
internacionais, tendo a Estratégia Global de Combate ao Terrorismo da Assembleia
Geral das Nações Unidas de 2006 se referido a este fenómeno nos mesmos termos
31
A sua gravidade é acentuada pelas diferentes e múltiplas formas e manifestações que
assume perpetrado também por atores não estatais, grupos que recorrem a diferentes
métodos e detêm diferentes motivações.
.
Sublinhando o facto de o terrorismo não dever e não poder ser associado a nenhuma
religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico tal como o faz o Conselho de
Segurança em decisões ao abrigo do Capítulo VII e a Estratégia das Nações Unidas
supracitada
32
É indubitavelmente significativo que a Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, tenha
aberto um inquérito (em Janeiro de 2013) devido à existência de fundamentos que
permitiram considerar que foram cometidos crimes de guerra desde Janeiro de 2012
atribuídos maioritariamente ao Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA),
ao grupo Defensores do Islão (Ansar Dine), à Organização da Al-Qaida no Magrebe
Islâmico (AQIM) e ao Movimento para a Unidade e a Jihad na África do Oeste
(MUJAO)
atualmente as ações de diversos grupos extremistas, na sua maioria
considerados grupos terroristas, nos quais poderão participar nacionais de Estados
Partes e cujos atos poderão ocorrer nos seus territórios constituem um argumento
neste sentido.
33
estes três últimos grupos terroristas, ideologicamente inspirados e com
ligações à organização terrorista al-Qaida
34
. De igual modo, é significativo que
Procuradora conduza uma investigação preliminar concernente às atividades do grupo
jihadista Boko Haram, grupo terrorista com ligações à Al-Qaida
35
, que terá segundo o
relatório cometido crimes contra a humanidade desde Julho de 2009
36
31
U.N. Doc. A/RES/60/288, The United Nations Global Counter-Terrorism Strategy, 20.09.2006, p. 1.
. Contudo, se a
32
Ibid., p. 2.
33
ICC, The Office of the Prosecutor, Situation in Mali, Article 53 (1) Report, 16.01.2013, pp. 13-28. Este
inquérito surge na sequência de uma investigação preliminar com base na submissão do governo do Mali
datada de 13 de Julho de 2012 com base no artigo 14º perante a impossibilidade de persecução ou
julgamento dos responsáveis por crimes contra a humanidade e crimes de guerra perpetrados sobretudo
na parte norte do território. V. Referral Letter, Republique du Mali, Ministère de la Justice, 13.07.2012.
34
O Conselho de Segurança associou o grupo Ansar Dine em 20 de Março de 2013 e o MUJAO em 5 de
Dezembro de 2012 à Al-Qaida. A AQIM tinha sido associada originariamente com o nome Grupo Salafista
de Prédica e Combate a 6 de Outubro de 2001.
35
Em 22 de Maio de 2014, o Conselho de Segurança colocou Boko Haram na lista de entidades associadas
com a Al-Qaida.
36
ICC, The Office of the Prosecutor, Report on Preliminary Examination Activities, 2013, §206 e §209-§219.
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34
Procuradora decidir proceder criminalmente, formulando uma acusação, caberá ainda
ao juízo de instrução criminal e, eventualmente, ao juízo de julgamento em 1ª
instância corroborar estas avaliações.
Os atos cometidos pelo grupo jihadista “Estado Islâmico
37
, grupo dissidente da Al-
Qaida, contra forças de segurança e civis iraquianos foram condenados pelo Conselho
de Segurança que se referiu a estes como ataques/atos terroristas
38
A este respeito importa mencionar a resolução 2170 (2014) na qual o Conselho de
Segurança:
, assim como
rios Estados Partes do Estatuto. A proclamação de um califado transnacional por
parte deste grupo que engloba o norte do território sírio e o leste do território
iraquiano, com tendências expansionistas, ameaçando os países vizinhos entre os quais
a Jordânia, Estado Parte poderá incrementar a execução e a magnitude e diversificar
as caraterísticas dos atos terroristas.
Deplores and condemns in the strongest terms the terrorist acts
of ISIL and its violent extremist ideology, and its continued gross,
systematic and widespread abuses of human rights and violations
of international humanitarian law”.
Recalls that widespread or systematic attacks directed against
any civilian populations because of their ethnic or political
background, religion or belief may constitute a crime against
humanity, emphasizes the need to ensure that ISIL, ANF [Al Nusra
Front] and all other individuals, groups, undertakings and entitites
associated with Al-Qaida are held accountable for abuses of human
rights and violations of international humanitarian law (…)”.
É igualmente relevante o facto de este órgão aludir à possibilidade de certos atos
poderem ser enquadrados como crimes contra a humanidade e, ao mesmo tempo,
indiciar a existência de outros tipos de crimes internacionais, reafirmando
simultaneamente, contudo, que os atos do ISIL não podem e não devem ser associados
a nenhuma religião, nacionalidade e civilização.
No entanto, nem todos os atos terroristas poderão ser enquadrados nas disposições e
respetivos elementos constitutivos referentes aos crimes de maior gravidade com
alcance internacional.
Enquanto que a qualificação como crimes de guerra implica a existência de um conflito
armado, o crime de genocídio, embora faça alusão à “intenção de destruir”, presente
em atos terroristas, implica que esta seja com vista a destruir em parte ou no todo um
grupo nacional, étnico, rácico ou religioso nos termos do artigo 6º, o que em
determinados atos poderá não se verificar ou não ser possível provar inequivocamente.
37
Desde Junho, esta designação substituiu a autodenominação anterior do grupo de “Estado Islâmico do
Iraque e do Levante”, também conhecido pelos acrónimos ISIS (Islamic State of Iraq and Syria) ou ISIL
(Islamic State of Iraq and the Levant).
38
U.N. Doc. SC/11437, Security Council Press Statement on Iraq, 11.06.2014. Em 30 de Maio de 2013, o
Conselho de Segurança incluiu este grupo e a Frente de al-Nusra na lista de entidades terroristas ligadas
à Al-Qaida.
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No tocante aos crimes contra a humanidade, o Estatuto determina que se trata de um
ataque generalizado e sistemático - o que impede que um ataque de grande
magnitude, mas que não detenha essas caraterísticas possa ser subsumido neste artigo
- e prescreve que um ataque contra a população civil significa a prática de atos de
acordo com a política de um Estado ou de uma organização, mas poderá ser difícil
estabelecer um elo de ligação com uma política estatal ou de uma organização, uma
vez que o terrorismo podeser cometido de modo individualizado. O crime de
agressão circunscreve-se a indivíduos numa posição de liderança e que cometam um
ato de agressão, indissociando a premissa da existência de um crime desta natureza de
um ato de agressão por parte de um Estado, o que dificulta a sua aplicação a entidades
não estatais.
Além disso, o princípio nullum crimen sine lege ao prever que nenhuma pessoa pode
ser criminalmente responsabilizada pela sua conduta quando esta não constitua, no
momento que tiver lugar, um crime de competência do Tribunal (artigo 22º), poderia
significar que os autores de atos terroristas, a coberto deste princípio, permaneceriam
impunes.
Ao terrorismo encontram-se subjacentes as ideias de criação de um sentimento de
terror, medo e insegurança nos indivíduos e de perpetração de violência indiscriminada
com recurso a diferentes tipos de armas, daí que a proposta do Comité Preparatório se
afigure como a solução mais adequada, ainda que se proponha no presente texto a
extensão da definição consagrada no nº 1 a entidades não estatais. Atos terroristas
como o emprego de um explosivo convencional em combinação com material radioativo
com o propósito de o propagar numa área ampla de modo a expor as vítimas a
radiação nuclear (designado de “bomba suja”) ou a libertação intencional de
microrganismos patogénicos poderão ser inscritos no nº 3 da proposta do Comité.
Simultaneamente, na linha da Comissão e do Comité, o acrescento da referência a
tratados concernentes ao terrorismo permitirá contornar a lacuna existente respeitante
a uma convenção internacional sobre terrorismo e a uma definição consensual e
vinculativa. Propõe-se, no entanto, a previsão de um mecanismo que permita incluir
futuras convenções, o que se justifica pelo incremento registado nos últimos anos.
Em alternativa, embora a proposta dos Países Baixos o tenha reunido o apoio
suficiente para ser discutida na Conferência de Kampala e apesar de este Estado ter
retirado a sua proposta em Junho de 2013, no seio do grupo de trabalho Working
Group on Amendments criado pela Assembleia dos Estados Partes para servir como
mecanismo para debater as propostas apresentadas
39
, considera-se que a proposta
apresentada poderia constituir uma solução intermédia para resolver este impasse à
semelhança do que se verificou com o crime de agressão.
4.2. O TPI e a Responsabilidade de Proteger
O repensar da atuação do Tribunal com vista à proteção das populações de crimes
internacionais efetuada no presente artigo deve inscrever-se no âmbito de uma
“responsabilidade de proteger” da comunidade internacional.
39
ICC-ASP/12/44, Report of the Working Group on Amendments, 24.10.2013, §4.
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À semelhança do TPI, esta responsabilidade centra-se nos crimes de genocídio, limpeza
étnica, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Esta conceção foi desenvolvida
pela “International Commission on Intervention and State Sovereignty” (ICISS) e
apresentada no relatório The Responsibility to Protect de 2001. A sua relevância foi
reconhecida pelos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas no documento
final da Cimeira de 2005 que integrou os seus traços gerais: a responsabilidade de
proteger reside primeiramente no Estado e abarca a prevenção de tais crimes incluindo
a sua instigação com base em meios adequados e necessários. Se apropriado, a
comunidade internacional deve encorajá-lo e prestar-lhe assistência para que possa
cumprir essa responsabilidade; se as entidades nacionais não estiverem dispostas ou
não forem capazes de proteger a sua população, a comunidade internacional deverá
tomar as medidas coletivas adequadas a fim de proteger a população de crimes de
genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade de uma
forma atempada e decisiva com base nos Capítulos VI, VII e VIII da Carta das Nações
Unidas
40
O Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, tem precisado a conceção de
responsabilidade de proteger e tal como a Procuradora do TPI, Fatou Bensouda, tem
defendido esta interligação. O Secretário-Geral afirmou, no relatório “Implementing the
Responsibility to Protect” de 2009, que uma medida importante no âmbito do pilar
referente à responsabilidade de proteger pelo Estado que engloba a prevenç ão de
tais crimes e a sua instigação consiste primeiramente em os Estados se tornarem
partes do Estatuto e de instrumentos jurídicos internacionais relevantes e na integração
das orientações internacionais na legislação nacional para que os crimes e o seu
incitamento sejam criminalizados no Direito e na prática internos
.
41
. Ban Ki-moon
salientou que a ameaça de submissões ao TPI poderá ter um efeito preventivo
42
A exploração mais aprofundada da prevista faceta de prevenção por parte do Tribunal
torna-se imprescindível, tirando partido do seu caráter permanente contrariamente
ao que se verificava com os tribunais penais internacionais ad hoc, implementando,
assim, um sistema de justiça preventivo que se pode expressar igualmente atras do
encorajamento e da prestação de assistência aos Estados Partes no sentido de criar
capacidade para proteger as suas populações, quando exista essa necessidade.
.
Por outras palavras, a “prevenção” aplica-se como medida dissuasora e de contenção.
Como sublinha Ban Ki-moon:
by seeking to end impunity, the International Criminal Court and
the United Nations-assisted tribunals have added an essential tool
for implementing the responsability to protect, one that is already
reinforcing efforts at dissuasion and deterrence
43
.
40
U.N. Doc. A/Res/60/1, World Summit Outcome, 24.10.2005, §138 e §139.
41
U.N. Doc. A/63/677, Implementing the responsibility to protect, Report of the Secretary-General,
12.01.2009, §17.
42
U.N. Doc. A/66/874, Responsibility to protect: timely and decisive response, Report of the Secretary-
General, 25.07.2012, §29.
43
U.N. Doc. A/63/677, Implementing the responsibility to protect, Report of the Secretary-General,
12.01.2009, §18.
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No mesmo sentido, Phakiso Mochochoko, Diretor da Divisão de Jurisdição,
Complementaridade e Cooperação do TPI, refere:
Prevention is key to all our efforts. For the Office, this preventive
role is foreseen in the Rome Statute Preamble and reinforced in
the Office’s prosecutorial strategies. In fact, the Preamble makes
clear that prevention is a shared responsibility in writing that State
Parties are “determined to put an end to impunity for the
perpetrators of these crimes and thus to contribute to the
prevention of such crimes”. The Office of the Prosecutor will make
public statements referring to its mandate when violence escalates
in situations under its jurisdiction; it will visit situation countries to
remind leaders of the Court’s jurisdiction; it will also use its
preliminary examinations activities to encourage genuine national
proceedings and thereby attempt to prevent the recurrence of
violence. Given that the commission of massive crimes can
threaten international peace and security, the Security Council can
complement the OTP’s [Office of the Prosecutor’s] preventive
efforts
44
.
Neste contexto, o Procurador poderá desempenhar um papel importante nos esforços
de prevenção, uma vez que por sua própria iniciativa poderá dar início a um inquérito
com base em informações sobre a prática de crimes (artigo 15º). O Gabinete do
Procurador, órgão autónomo e independente, poderá “recolher comunicações e
qualquer outro tipo de informação, devidamente fundamentada (…), a fim de as
examinar e investigar e de exercer a ação penal junto do Tribunal” (artigo 42º,1).
Note-se, porém, que uma maior rapidez e agilidade por parte destes tornam-se
necessárias com vista à prevenção na fase pré-violência ou quando se encontra a
decorrer, portanto, com o propósito de evitar a continuação da ocorrência de crimes no
sentido de contenção num curto espaço de tempo.
A instituição de um conselho científico consultivo (Scientific Advisory Board) em 25 de
Junho de 2014 pelo Gabinete do Procurador representa uma alteração de relevo. Este
conselho reunir-se-á anualmente e efetuará recomendações ao Procurador
relativamente aos desenvolvimentos tecnológicos mais recentes bem como novos
métodos e procedimentos científicos que possam reforçar a capacidade do Gabinete na
recolha, gestão e análise dos dados científicos respeitantes às investigações e à
persecução dos crimes
45
44
ICC, The Office of the Prosecutor, Phakiso Mochochoko, Address on behalf of the Prosecutor, Open Debate
of the United Nations Security Council on “Peace and Justice, with a special focus on the role of the
International Criminal Court”, 17.10.2012.
. Mas considera-se que a criação de uma capacidade de alerta
precoce e de avaliação da situação que se poderia consubstanciar num órgão específico
estabelecido pelo Procurador ou pela Assembleia dos Estados Partes com
competência para o estabelecimento de órgãos subsidiários seria imprescindível. Este
órgão prestaria particular atenção, mas não exclusiva, ao fenómeno dos Estados
frágeis, falhados ou colapsados que revelam incapacidade em cumprir os seus
45
ICC, Press Release, The Office of the Prosecutor of the International Criminal Court Establishes a Scientific
Advisory Board, 27.06.2014.
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compromissos internacionais; poderia auxiliar na deteção, chamando a atenção para
situações relevantes e apoiando o Procurador e o seu Gabinete bem como auxiliar o
Tribunal na verificação se o Estado, por colapso total ou substancial da respetiva
administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não se encontra em condições
de conduzir um inquérito ou um processo criminal (artigo 17º, nº 3).
Um estudo conjunto de peritos da Universidade de Oxford e do governo australiano
propõe que a vertente preventiva do Tribunal seja implementada através do
encorajamento da ratificação do Estatuto, do reforço das capacidades a nível nacional,
de atividades de sensibilização de modo a consciencializar as populações sobre os
crimes que se encontram sob jurisdão do Tribunal, do desenvolvimento de critérios
mais objetivos e claros para as submissões do Conselho de Segurança e da garantia de
um alinhamento mais consolidado entre instrumentos de prevenção como medidas
coercitivas não militares e a mediação com mecanismos da justiça penal
46
No que se refere à objetivação desta interligação, a submissão do Conselho de
Segurança
. Estas
medidas poderiam ser implementadas na articulação do TPI com a responsabilidade de
proteger.
47
Apesar de a resolução não aludir expressamente a uma responsabilidade de proteger
por parte da comunidade internacional, esta refere no preâmbulo recalling the Libyan
authorities’ responsibility to protect its population”. Esta decisão impôs a obrigação de
as autoridades líbias cooperarem e prestarem o apoio necessário ao Tribunal e ao
Procurador. Na resolão 1973 (2011), o Conselho reiterou a responsabilidade das
autoridades de proteger a sua população e, paralelamente à autorização de medidas
coercitivas militares, relembrou a decisão de submeter a situação ao TPI, enfatizando
que os responsáveis ou cúmplices pelos ataques contra a população civil, incluindo
ataques aéreos e navais, teriam que ser responsabilizados.
da situação na Líbia em 2011 assumiu um significado paradigmático por
duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a resolução 1970 associou o papel do
Tribunal à responsabilidade de proteger e, em segundo lugar, ao ser adotada de forma
unânime apesar das reticências dos Estados Unidos, da Federação Russa e da China
membros permanentes do Conselho
relativamente ao TPI parece revelar uma
mudança de perceção.
Carsten Stahn (2011) afirmou a respeito da resolução 1970 que:
This resolution marked the first incident in which the ICC was
expressly recognized in Council practice as a core element of
preventing and adjudicating atrocities in line with the ‘R2P’
[responsibility to protect] concept (…) With the Security Council
referral, international justice has become one of the primary
means of constraining violence and securing accountability, not
only in the context of hostilities, but also in ensuring justice after
conflict”.
46
Oxford Institute for Ethics, Law and Armed Conflict, Australian Government, Australian Civil-Military
Centre, The Prevention Toolbox: Systematising Policy Tools for the Prevention of Mass Atrocities, The
International Criminal Court, Policy Brief Series No.5, September 2013, p. 3.
47
A importância da “responsabilidade de proteger” tinha sido salientada, pela primeira vez, pelo Conselho
de Segurança na resolução 1674 (2006).
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Contudo, este advertiu que o caso da Líbia se transformou num teste para a gestão da
noção de “shared responsibility”, após a detenção de Saif Al-Islam Kadhafi pelas
autoridades líbias (Stahn, 2012)
o qual ainda não se encontra sob a custódia do
Tribunal, apesar das várias tentativas infrutíferas de impugnação da sua jurisdição.
A articulação entre o TPI e a responsabilidade de proteger, mais concretamente, o
papel deste óro jurisdicional será inevitavelmente condicionada pela atuação do
Conselho de Segurança. Ou seja, pela decisão deste em submeter situações referentes
a Estados que não são parte ao abrigo do Capítulo VII se houver indícios de ter ocorrido
a prática de crimes da competência do Tribunal, após determinar a existência de uma
ameaça à paz nos termos do artigo 39º da Carta. O facto de o Conselho de Segurança
nunca o ter feito no que respeita ao caso de Estados falhados e as divergências entre
os membros permanentes sobre a interpretação de “ameaça à paz” dificultarão
certamente a submissão de determinadas situações.
Com efeito, o Conselho de Seguraa o possui critérios objetivos e vinculativos para
a determinação de uma ameaça a paz e acaba por ficar refém da discricionariedade
política. O estabelecimento de critérios a este respeito e a introdução de alterações
respeitantes ao direito de veto (Santos, 2012: 560-561) evitaria situações em que o
Conselho fica impossibilitado de submeter o caso ao TPI em virtude da ameaça ou
exercício do direito de veto como se tem verificado relativamente à situação na Síria
refira-se que ainda recentemente, em Maio deste ano, os vetos da Federação Russa e
da China impediram a aprovação de uma resolução neste sentido.
O processo teria, assim, que estar aliado a uma aplicação uniforme a situações
semelhantes por parte dos membros permanentes e a alterações prévias no sistema de
veto para evitar tais situações. De notar que a ICISS no relatório “The Responsibility to
Protect” declarou:
“(…) the Commission supports the proposal put to us in an
exploratory way by a senior representative of one of the
Permanent Five countries, that there be agreed by the Permanent
Five a “code of conduct” for the use of the veto with respect to
actions that are needed to stop or avert a significant humanitarian
crisis. The idea essentially is that a permanent member, in matters
where its vital national interests were not claimed to be involved,
would not use its veto to obstruct the passage of what would
otherwise be a majority resolution. The expression “constructive
abstention” has been used in this context in the past (…)”
48
.
Entre as propostas de reforma do Conselho de Segurança são de notar a introdução de
uma conduta voluntária de limitação do exercício deste direito a situações de genocídio,
crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou limpeza étnica, a eliminação do
direito de veto, o que se não afigura exequível, ou a necessidade de justificação do
48
International Commission on Intervention and State Sovereignty (2001), The Responsibility to Protect,
§6.21, p. 51.
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recurso a este direito pelos atuais membros permanentes e eventuais novos membros
permanentes.
A defesa desta articulação escora-se na observância da existência de denominadores
comuns, no início de uma tímida prática que deverá ser explorada e aprofundada
e na possibilidade de esta interligação contribuir para a consolidação e permitir a
exploração do papel do Tribunal numa maior amplitude e o incremento da proteção dos
direitos humanos.
Este órgão poderia ser relevante na prevenção antes da ocorrência de violência ou
durante como mecanismo de reação que poderia ocorrer a par de uma interven ção
com recurso ao uso da força por parte da comunidade internacional − para pôr termo à
violência através da sua intervenção, colocando os responsáveis sob a sua custódia, o
que se justificaria pelo facto de sistema judiciário de um Estado poder ter dificuldades
de funcionamento em tempos de conflito ou mesmo na fase de reconstrução, após a
intervenção internacional com recurso ao uso da força, isto é, no processo de
reconciliação e retribuição penal. De referir que no tocante à justiça e reconciliação, a
ICISS advertiu para a possibilidade de em muitas situações o Estado em cujo território
ocorreu a intervenção militar nunca ter tido um sistema judicial incorrupto ou que
tenha funcionado adequadamente
49
Os efeitos da responsabilidade de proteger e da missão do TPI deterão uma maior
dimensão se esta conceção se estabelecer como uma norma jurídico-internacional
(Santos, 2012: 562). Embora a relação com o Conselho de Segurança seja vista com
ceticismo e com receio, em certa medida justificável por se tratar de um órgão de
natureza política, uma cooperação tripartida neste contexto poderá ser benéfica.
.
5. Conclusões
Uma ordem pública internacional efetiva é desejável. A sustentabilidade de uma ordem
com tais caraterísticas, porém, requer um processo de construção permanente de
modo a enfrentar eficazmente os crescentes e distintos desafios e ultrapassar
vulnerabilidades emergentes. O Direito Penal Internacional personificado no TPI será
determinante para a concretização dessa aspiração.
Ainda que recorrendo auma representação gráfica” se possa concluir “que o Direito
substantivo que o TPI aplica é um círculo concêntrico menor dentro de um círculo
maior, que representa o Direito Internacional Penal total” (Bacelar Gouveia, 2013: 784)
e se lhe possa apontar incontornáveis limitações como a possibilidade de
condicionamento da sua atividade pelo Conselho de Segurança, tensões resultantes da
natureza complementar da sua jurisdição e problemas interpretativos suscitados por
algumas disposições do Estatuto, enfocar somente nesses factos, encerra o risco de se
obter uma avaliação redutora dos méritos e potencialidades do TPI.
O projeto de regulação do Estatuto e, mais concretamente, do Tribunal poderá ser mais
bem-sucedido e influir com mais eficácia na construção de uma ordem pública
internacional se o processo de permanente construção deste órgão tiver em
consideração a necessidade de colmatar lacunas e os desafios do mundo
contemporâneo.
49
Ibid., §5.13, p. 41.
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Neste sentido, propõe-se a clarificação de aspetos ambíguos pelo Tribunal referentes ao
crime de agressão e crimes contra a humanidade, os quais não poderão ser
subestimados sob pena de obstarem ao funcionamento eficiente e célere da justiça.
Enquanto que no caso do crime de agressão o processo evolutivo não poderá alhear-se
das determinações do Conselho de Segurança, no caso dos crimes contra a
humanidade, o Tribunal deverá precisar o teor do artigo 7º, tarefa que será facilitada
com a vincia de uma futura convenção internacional sobre a prevenção e punição
deste tipo de crimes.
O Tribunal deverá ainda explorar novas facetas e aprofundar as previstas no Estatuto,
tirando partido do seu caráter independente e permanente, o qual lhe permitiu
distanciar-se da conotação de uma justiça dos vencedores atribuída aos tribunais
penais internacionais ad hoc.
As distintas e intricadas situações de passividade, inação ou impunidade por parte dos
Estados e que exigem a proteção da pessoa humana decorrentes de novos desafios
implicam um maior envolvimento do TPI. Assim, propõe-se um repensar da jurisdição,
alargando o seu alcance ao crime de terrorismo, sujeitando, assim, os responsáveis por
atos terroristas à justiça internacional. Esta inclusão justifica-se pela crescente
disseminação do terrorismo avel global e pelas suas diferentes formas e
manifestações poderem impossibilitar o seu enquadramento nas disposições e
elementos constitutivos referentes aos crimes prescritos no Estatuto. Simultaneamente,
propõe-se uma articulação da missão do TPI com a “responsabilidade de proteger” por
parte da comunidade internacional e que se deverá expressar nas diferentes dimensões
desta responsabilidade: a prevenção, a reação e a reconstrução de uma paz duradoura.
Não obstante a jurisprudência ser ainda escassa, designadamente no que se refere a
condenações, não se pode ignorar que o limiar da primeira década do século XXI marca
um ponto de viragem na atividade do TPI. A paulatina conflncia em torno do Tribunal
pelos Estados Partes, Estados que não são parte e pelo Conselho de Segurança
evidencia o crescente reconhecimento por parte da comunidade internacional da sua
relencia bem como a aplicação do sistema previsto no Estatuto.
Estas razões aliadas às potencialidades do TPI permitem prospetivar uma passagem da
atual adolescência (Soares, 2014: 10) à idade adulta caraterizada por passos cada vez
mais confiantes, um processo de amadurecimento que desembocará numa justiça penal
consolidada e mais efetiva.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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“WAR IS A RACKET!”
A EMERGÊNCIA DO DISCURSO LIBERTÁRIO SOBRE A 1ª GUERRA
MUNDIAL NOS ESTADOS UNIDOS
Alexandre M. da Fonseca
alexandremarquesfonseca@gmail.com
Licenciado em Línguas e Relações Internacionais pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. Completou o ano do Mestrado em Línguas Aplicadas ao Comércio Internacional na
Universidade de Rouen e o 2º ano de Mestrado em História do Pensamento Político na ENS de
Lyon. É doutorando no programa Democracia no século XXI do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra (Portugal).
Resumo
"Não é por coincidência que oculo da guerra total coincidiu com o século dos bancos
centrais", escreve Ron Paul, candidato libertário “sensação” à presidência dos EUA em 2008
e 2012, no seu livro End the FED. Explorando brevemente o curto, mas poderoso panfleto
do Major General Smedley Butler, "War Is A Racket", onde este oficial demonstra
especificamente quem lucrou economicamente e quem, por sua vez, arcou com o peso e a
violência da 1ª Guerra Mundial, assumiremos que uma guerra nunca é travada com a
aquiescência da população. No entanto, pretenderemos ir mais longe, procurando uma
releitura da história oficial da 1ª Guerra nos Estados Unidos, através da lente do discurso
libertário. O objectivo é, desta forma, compreender, de uma outra perspectiva, a mudança
fundamental do paradigma de não intervenção dos Estados Unidos que decorre nesta
guerra, ligando-a ao projeto que levaria à criação da Sociedade da Nações e à crescente
relevância dos EUA no mundo. Por fim, estabeleceremos, explorando as teses lançadas no
livro A Foreign Policy of Freedom, uma conexão fundadora entre as políticas de Woodrow
Wilson e a potica externa dos Estados Unidos ao longo do séc. XX e início do séc. XXI.
Palavras chave:
Ron Paul; 1ª Guerra Mundial; Woodrow Wilson; Libertarianismo; Política Externa
Como citar este artigo
Fonseca, Alexandre M. da (2014). "«War is a rackett». A emergência do discurso libertário
sobre a 1ª Guerra Mundial nos Estados Unidos". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 5, N.º 2, novembro 2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art3
Artigo recebido em 14 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de
2014
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«War is a rackett!». A emergência do discurso libertário sobre a 1ª Guerra Mundial nos Estados Unidos
Alexandre M. da Fonseca
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“WAR IS A RACKET!”
A EMERGÊNCIA DO DISCURSO LIBERTÁRIO SOBRE A 1ª GUERRA
MUNDIAL NOS ESTADOS UNIDOS
Alexandre M. da Fonseca
Possibly a war can be fought for democracy;
it cannot be fought democratically
Walter Lippman
No centenário do início da 1ª Guerra Mundial, muitas iniciativas e
“comemorações” foram realizadas com o intuito de lembrar (ou de não deixar
esquecer) os horrores desta guerra. Contudo, poucas procuraram ou procuram
questionar os fundamentos da “Guerra” e deste conflito em particular. Ron
Paul, ex-congressista e candidato Republicano libertário à presidência dos
Estados Unidos em 2008 e 2012, é um dos agentes políticos que coloca em
causa o discurso, mais ou menos oficial, sobre esta guerra, tida como a
“guerra para acabar com todas as guerras” (Butler, 1935:13; Paul, 2007:
367).
No entanto, já em 1935, o General Smedley Butler, que havia participado na
campanha da 1ª Guerra entre muitas outras campanhas
1
- publicou o
pequeno panfleto “War is a Racket
2
Longe de procurarmos classificar o General Butler como um libertário, o
objectivo deste texto é perceber o que é que se pode identificar como discurso
. Nele, além de descrever as baterias de
guerra daquela que seria a 2ª Grande Guerra Mundial (Ibid. :2-3), faz uma
das primeiras e principais denúncias ao complexo industrial-militar”, acusando
aqueles que “durante 33 anos o enganaram de modo a servir os interesses das
corporações americanas” e que lucra(ra)m com o negócio da guerra (Paul,
2011: 82; Fleming, 2003: 42; Keene, 2010: 513).
1
O general participou em muitas ações militares, em Cuba durante a Guerra Hispano-
Americana, nas Filipinas durante a Guerra Filipino-Americana, na China, contra a Rebelião dos
Boxers, durante as Guerras das Bananas na América Central (Honduras e Nicarágua), na
tomada de Veracruz no México (onde recebeu a sua primeira Medalha de Honra do Congresso
dos Estados Unidos), na ocupação do Haiti, onde ganhou a sua segunda Medalha de Honra do
Congresso. Participou ainda na Primeira Guerra Mundial e novamente na China.
2
É interessante comparar esta acusação de Butler, com a dos “Indignados” franceses, para
quem “la dette c’est du racket”. Ambas acusações poderiam ser rapidamente lidas como
“populistas”, no entanto, elas lançam sementes de discussão importantes no que à
“Democracia” diz respeito.
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libertário sobre a 1ª Guerra Mundial. Assim, numa primeira parte,
procuraremos estudar as influências intelectuais de Ron Paul, confrontando-as
com as suas posições públicas, a nível doméstico e externo: uma política
baseada numa leitura restritiva da Constituição, num governo minimalista, na
rejeição de qualquer manipulação do mercado e na defesa de uma “moeda
lida”.
Numa segunda parte, procuraremos analisar o discurso de Ron Paul (2007:
267, 347) sobre a 1ª Guerra, bem como as razões porque é que este afirma
que Wilson foi o primeiro presidente norte-americano “neo-conservador”.
Segundo Paul (2011: 50; 2007: 75), foi a 1ª intervenção norte-americana que
fez o país “descarrilarde uma política não-intervencionista, de acordo com a
visão dos “País Fundadores”, para a função de “polícia do mundo”.
Para o ex-candidato, a verdade é que, desde esse momento, não existiram, na
política externa dos EUA, muitas diferenças entre o partido Republicano e
Democrata
3
. Talvez por esta honestidade intelectual e pela sua resiliência (ou
teimosia)
4
, mas sobretudo pela sua política externa, tenha sido o candidato
presidencial que mais apoio e fundos recebeu das Forças Armadas norte-
americanas, nas duas campanhas realizadas (Egan, 2011). E, mesmo que se
possa rejeitar algumas das suas posições mais “radicais”, os seus argumentos
sobre a política externa norte-americana merecem atenção e colocam
questões pertinentes sobre os mecanismos “democráticos” que levam um país
para a guerra.
As influências intelectuais de Ron Paul
O ex-congressista foi identificado regularmente como fundador ou inspirador
do controverso movimento “Tea Party” (Botelho, 2010: 107). A realidade é, no
entanto, bem mais complexa e, apesar de algumas ideias comuns, existem
certas questões que fazem Ron Paul divergir fundamentalmente deste
movimento
5
Paul sempre foi, sobretudo, um “animal raro” na política norte-americana,
procurando manter uma linha de independência do “establishment” do partido
Republicano, votando inclusivamente contra a linha-guia deste em assuntos
fundamentais, como o chamado “Patriot Act” ou a guerra no Iraque e no
Afeganistão (Botelho, 2011: 108). Porquê?
uma delas é, inquestionavelmente, a visão sobre a política
externa dos EUA (Ibid.: 108; Mead, 2011: 6,7; Benton, 2012; Paul, 2011: 49).
3
Embora seja preciso realçar que, após a 1ª Guerra, os EUA reverteram para o tradicional
isolacionismo. Entre os factores desta mudança, estiveram a depressão de 1930, “a memória
das perdas trágicas da 1ª Guerra”, mas também o inquérito do senador Nye sobre os lucros da
Guerra, a publicação do livro Merchants of Death e o referido “War Is a Racket” (Fleming,
2003:488). Assim, a posição de Paul não é inteiramente correcta, dado que o “wilsonianismo”
não sobreviria ao Presidente Wilson, que viu a Liga das Nações ser rejeitada pela opinião
pública (Fleming, 2003: 477-9; Bagby, 1955: 575; Keene, 2010: 520). Só após a 2ª Guerra,
os EUA assumiram então, em pleno, o seu novo papel no Mundo e o bipartidarismo na política
externa tornar-se-ia regra.
4
Paul é mesmo conhecido como o “Dr. No” por votar contra todas as propostas de lei que não
sejam explicitamente autorizadas pela Constituição, mas também por manter uma incrível
consistência de posições, durante mais de 3 décadas no Congresso (Botelho, 2010: 108).
5
Apesar do seu filho, Rand Paul, senador pelo Kentucky, ser apontado como a grande figura
actual do Tea Party.
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Talvez seja útil compreender que intelectuais e políticos influenciaram o
pensamento político e económico de Ron para melhor interpretar esta sua
independência. Um exercício que o próprio Ron Paul contempla, no livro End
the Fed, onde descreve as suas influências, relacionando o seu percurso
biográfico com as leituras e momentos que moldaram a sua visão do mundo,
na qual, ao contrário da doutrina liberal, economia e política são
absolutamente inseparáveis.
A Escola Austríaca de economia, da qual von Mises e Hayek são os expoentes
maiores, é reconhecida pelo político como a escola dos autores que lhe
proporcionaram “as respostas pelas quais ansiava”. Aliás, como o próprio
admite, “mesmo os especialistas demoraram literalmente séculos para
perceber a natureza do dinheiro” (Paul, 2009: 37). E numa altura em que os
EUA se desfizeram do padrão ouro-lar e sistema de Bretton Woods
terminava oficialmente, compreender a natureza do dinheiro e da economia
revelava-se mais importante do que nunca
6
Outro dos economistas que inspiraram Paul foi Murray Rothbard, autor de
vários livros sobre a Reserva Federal norte-americana e o papel do Governo na
desvalorização do dólar, na criação da depressão de 29 e das bolhas
económicas (Paul, 2009: 47). Enfim, a rejeição de qualquer tipo de
intervenção do governo é uma das principais questões que une estes
economistas, como Mises, que considerava que o “socialismo falha sempre por
causa da ausência de um mercado livre que estruture o preço dos bens”
(Ibid.: 42)
.
7
Contudo, tanto Paul, como a maioria dos economistas da Escola Austríaca,
rejeitam a intervenção governamental também no plano político. O essencial,
afirma Ruthbard (2011: 11), é o “direito de estar livre de agressão...e de não
ser roubado por impostos e regulações governamentais”. Ou, como o próprio
Paul afirma, a única filosofia que ele considera correcta é a defesa da
“liberdade individual, da propriedade privada e de uma moeda sólida” (Ibid.:
49).
.
A política externa de Paul
Embora muitas das teorias libertárias possam ser vistas como problemáticas -
por exemplo, ao colocar irremediavelmente o Estado como “mau da fita”
8
6
Como o próprio afirma, foi este acontecimento que o levou a concorrer ao Congresso. (Paul,
2009:38)
,
negando desta forma séculos da tradição do contracto social - estas podem ser
vistos como desafios ao modelo hegemónico de pensar a relação entre Estado
e cidadãos.
7
No entanto, ao contrário do consenso majoritário actual em torno do funcionamento do
chamado “mercado livre”, Paul (2007: 275) critica profundamente o “lip service...given to the
free market and free trade, [while] the entire economy is run by special-interest legislation
favoring big business, big labor and, especially, big money.”
8
Paul era conhecido por ter um cartaz no seu escritório onde se podia ler “Don’t steal. The
government hates competition”.
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Não pretendemos, nem podermos neste contexto proceder a uma análise
crítica do libertarianismo. O que não podemos deixar de notar é a coerência
entre o discurso a nível interno e a política externa de Paul. Como nota H.
Rockwell, no prefácio ao livro do ex-congressista, que incluí as suas
intervenções no Congresso, A Foreign Policy of Freedom, Ron Paul “vincula os
assuntos nacionais e internacionais sob o ponto de vista libertário”.
E, de acordo com este último (2008: 28), esta era também a visão dos “Pais
Fundadores” que “reconheciam que o Governo não é mais honesto ou
competente na política externa do que na política nacional” visto que, “em
ambas as instâncias são as mesmas pessoas a operar com os mesmos
incentivos”. No entanto, reduzir a suspeição de Paul ao Governo, não seria
justo, nem com o próprio político, nem com todas as outras instituições que
merecem a sua desconfiança.
Antes de nos adiantarmos, contudo, é importante perceber que o argumento
fundamental do ex-congressista é a rejeição do direito do Estado fazer aquilo
que os seus cidadãos não podem fazer (Paul, 2013), o que implica
necessariamente a rejeição daquilo que Weber apelou “o monopólio legítimo
da violência” violência para taxar ou retirar propriedade, para imprimir
dinheiro, para agredir fisicamente ou para iniciar guerras (Ibid.).
É assim que a filosofia libertária se totaliza, tanto a nível político internacional
e interno, como política- e economicamente (Paul, 2012). É necessário, no
entanto, não esquecer igualmente a leitura restritiva que Ron Paul faz da
Constituição norte-americana e que, segundo este, tem sido desrespeitada,
durante quase todo o século XX e XXI, em especial no que às declarações de
guerra diz respeito:
"Instead of seeking congressional approval of the use of
the US Armed Forces in service of the UN, presidents from
Truman to Clinton have used the UNSC as a substitute for
congressional authorization of the deployment of…armed
forces" (Paul, 2007: 145).
"Citing NATO agreements or UN resolutions as authority for
moving troops into war zones should alert us…to the
degree to which the rule of law has been undermined. The
president has no war power; only the Congress has...When
one person can initiate war, by its definition, a republic no
longer exists" (Ibid.: 117).
A cruzada não-intervencionista contra o “governo mundial
Quid então processo democrático? Paul foi descrito como um “isolacionista
(Botelho, 2010: 108; Mead, 2011: 6) que rejeita todas as instituições
multilaterais nas quais os EUA participam e que procura “evitar contacto com o
mundo” (Mead, 2011: 6). Ora, se a rejeição destas instituições é confirmada
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pelo próprio (Paul, 2007: 126), a acusação de rejeição de contacto com o
mundo, não.
O que Paul defende é aquilo que, mais uma vez, os “Pais Fundadores”
pretendiam: “paz, comércio, amizade honesta com todas as nações, alianças
com nenhuma”. A recuperação do alerta de Adams: “ela [a América] não vai à
procura de monstros para destruir. Ela comandará... pelo simpatia do seu
exemplo” (Paul, 2008: 15). Ou, como o próprio conclui: “sou a favor do oposto
total do isolacionismo: diplomacia, comércio livre e liberdade de viajar” (Ibid.:
14).
Se Paul é um “exemplarista
9
(Edwards, 2011: 255) que acredita na missão
excepcional dos Estados Unidos, não está - ao contrário de muitos políticos -
disposto a entrar em guerra por ela. E rejeita, sobretudo, a transferência de
soberania nacional para o que Robert Cox apelidou de “nébuleuse” e o ex-
congressista apelida de “One-World Government” (Paul, 2007: 222). Afinal, se
Paul rejeita, por princípio, o governo, porque é que não rejeitaria “o maior
governo de todos, as Nações Unidas, que constantemente ameaça as nossas
liberdades e a soberania dos EUA?” (Ibid.: 210)
10
A oposição de Ron Paul não se limita às Nações Unidas, mas a todas as
instituições que “ameaçam a independência nacional dos EUA” e cujo apoio
provém sempre das “elites e nunca dos cidadãos comuns”, acabando por
beneficiar “as corporações internacionais bem conectadas e os banqueiros”
(Paul, 2007: 143, 155, 302)
11
Contudo, a transferência de soberania e o envolvimento em alianças
económicas, políticas e militares, contrárias à letra da Constituição, não
constituem a sua única objecção à política externa norte-americana. O
problema, crê Paul, é que os EUA, concomitantemente ao seu envolvimento na
construção do dito “Governo Mundial, prosseguem uma política de unilateral
imperialista, com presença em “140 países e 900 bases” (Paul, 2012) e
“ditando...a outras nações soberanas quem deveriam ter como líder... e que
forma de governo deveriam estabelecer” (Paul, 2007: 124):
. Cumprindo a prédica dos founding fathers, Paul
opõe-se a todas as alianças complexas “com as Nações Unidas, FMI, Banco
Mundial e OMC” (Ibid.: 222).
"Unilateralism within a globalist approach to government is
the worst of all choices. It ignores national sovereignty,
9
Quer se concorde ou não com a tese do excepcionalismo (dos EUA ou de qualquer outra
nação), e apesar de Ron Paul parecer não por em causa esse principio, a opção por uma
missão “exemplarista” (mas não intervencionista) evita a “necessidade” dos EUA se
envolverem militarmente noutros países.
10
Botelho (2010:108) afirma que “O seu (de Paul) liberalismo económico leva-o a advogar a
saída dos Estados Unidos não só da Organização Mundial do Comércio como, paradoxalmente,
da NAFTA” Contudo para Paul, o que é paradoxal é a existência destas agências que
regulamentam o suposto “mercado livre”. Como o próprio afirma: “One-world government
goals are anathema to non-intervention and free trade.” (Paul, 2007:222)
11
Uma crítica semelhante é apontada à ajuda externa. Para Paul (2007:47), por trás de ideais e
objectivos nobres são os “ditadores estrangeiros, os banqueiros internacionais e alguns
industriais americanos que enriquecem”. Da mesma forma, e em conformidade com os
princípios libertários, “ajudar aqueles que procuram ser livres ao expropriar fundos de
Americanos inocentes é injustificável” (Ibid.: 57).
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dignifies one-world government, and places us in the
position of demanding dictatorial powers over the world
community… An announced policy of support for globalist
government, assuming the…role of world policeman,
maintaining an American world empire, while flaunting
unilateralism, is a recipe for disaster" (Paul, 2007: 241).
A esta política Paul dá o nome de “keynesianismo militar” (Ibid.: 81),
justificado pela presença constante noutros países, pela política de ocupação,
de “nation building” e de guerra preventiva. Contudo, como o ex-congressista
afirma, “fabricar e explodir mísseis e bombas não pode aumentar o nível de
vida dos cidadãos americanos” (Ibid.: 81). Apesar de poder aumentar o PIB
além de todas as razões morais para se lhe opor
12
- esta política “imperial”
cria uma forma de imposto sob todos os cidadãos americanos
13
e, ao tornar
omnipresente a guerra, restringe a “possibilidade de viver numa sociedade
livre” (Paul, 2011: 49).
“The enemy within” - A Reserva Federal e o Complexo
industrial-militar
Quem beneficia afinal com esta política? Porquê e como é que os EUA
conseguiram invadir e estar presentes em tantos outros países durante a
maior parte do século XX e início do século XXI? Deixando de lado as
justificações políticas, tidas como hipócritas pelo ex-congressista (Paul, 2007:
58, 157; 261), que “logística” ou poder permitiu esta construção de um
“Império”? Os “culpados”, para o político norte-americano são fáceis de
encontrar: a Reserva Federal e o “complexo industrial-militar”.
a) A Reserva Federal
Comecemos pela primeira, a Reserva Federal, criada em 1913, com o
“Federal Reserve Act”, assinado pelo Presidente Wilson. De acordo com Ron
Paul, “após a criação da Reserva Federal, o governo...descobriu outros usos
para a massa monetária elástica
14
Sem o medo ou a responsabilidade de bancarrota ou ruína fiscal e com a
possibilidade de expandir o dinheiro existente, através de inflação e criação
...(que) provaria ser útil para financiar a
guerra” (Paul, 2009: 52). Tendo a possibilidade de “imprimir dinheiro...os
limites fiscais à guerra foram removidos” (Ibid.: 52), ou seja, a escolha da
teoria económica clássica, entre produzir armas ou manteiga, “deixou de
ser necessária” (Ibid.: 55; Lewis, 2014).
12
Para Paul (2007: 82) esta política resulta apenas em que: “Innocent people die, property is
destroyed, and the world is made a more dangerous place.”
13
E mundiais, como poderemos posteriormente verificar.
14
Em inglês, “money supply”, isto é, a quantidade de dinheiro disponível na economia. Com a
criação da Reserva Federal, foi-lhe outorgada o poder de decidir que quantidade de dinheiro
poderia ser disponibilizada na economia, quer encurtando ou aumentando a massa monetária,
sem estar condicionado a qualquer forma de “lastro”. Daí a sua “elasticidade”.
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de dívida, “cada special interest têm a possibilidade de ter aquilo que quer”.
Como discutiremos posteriormente, Paul identifica o presidente Wilson
como o grande responsável desta mudança e pela criação de um “welfare-
warfare state” (Paul, 2007: 103). No entanto, existe outro monstro que se
alimenta deste poder de criar dinheiro a partir de nada.
b) O complexo industrial-militar
Como verificámos anteriormente, é o próprio Gen. Butler (1935: 1-5) que
identifica o “complexo industrial-militar”. Para Paul, no entanto, a ligação entre
a política externa, com apoio bipartidário (Paul, 2007:13; Cox, 2000: 220;
Anderson, 2008: 4) e esta verdadeira indústria, é mais clara. Como o próprio
afirma, ao contrário de rejeitar a “procura de monstros no estrangeiro”, “a
cada semana, os EUA têm de encontrar um infiel para assassinar...e (assim)
manter o complexo industrial-militar a cantarolar” (Ibid.: 92; Eland, 2007: 3)
Como com as alianças externas e a Reserva Federal, são os cidadãos comuns
que perdem, acredita o libertário, pois também a indústria militar “beneficia de
um standard de vida melhor à custa dos contribuintes, devido à política
intervencionista e de preparação constante para a guerra” (Ibid.: 225). Uma
indústria na qual até Hollywood está envolvida em “mostrar o lado bom do
exército” com dinheiros públicos (Paul, 2007: 155; Wolf, 2012; Giambrone,
2013).
Se para o ex-congressista é claro que a Guerra, como Goebbels avisou, não é
lutada com o consentimento do povo, a pergunta a que Paul procura
responder é porquê e sobretudo quando é que a política aconselhada pelos
“Pais Fundadores” mudou e se permitiu que fosse a “influência corporativa e
bancária sobre a política externa a substituir a sabedoria de Washington e
Jefferson” (Paul, 2007: 217). Esse momento foi, para o norte-americano, a 1ª
Guerra Mundial e a presidência de Woodrow Wilson.
E tudo Wilson mudou?
No livro A Century of War, Denson (2006: 11) afirma que, em relação à
guerra, “o revisionismo se torna necessário porque a verdade é quase sempre
a primeira vítima da guerra”. Na comemoração do centenário da 1ª Guerra
Mundial, qual a importância de olhar de outra forma para a primeira “guerra
total”? O que mudou com a Presidência Wilson e a participação norte-
americana? Quem foi afinal o presidente Wilson? E quais as razões para a
entrada na guerra dos EUA?
Através da lente libertária, procuraremos compreender porque é que Ron Paul
acusa Wilson de ser o primeiro presidente intervencionista e “neo-
conservador” e porque é que, ao contrário do que se acredita
convencionalmente, Wilson não é tido como um idealista ingénuo e as
aventuras militares norte-americanas guiadas não por princípios morais, mas
interesses económicos. Para o libertário, foi também Wilson, com certas
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decisões fundamentais, que restringiu as liberdades dos norte-americanos e
levou o Estado a crescer a níveis insuportáveis.
A verdade é que, até 1917, o público norte-americano não pretendia uma
entrada do país na 1ª Guerra (Keene, 2010: 509; Fleming, 2003: 33). Afinal,
essa sempre havia sido a posição americana, desde a doutrina Monroe:
evitar a intervenção nos conflitos europeus
15
Oficialmente, a razão para a entrada na guerra, seria o afundamento do navio
Lusitânia em 1915 e a subsequente decisão alemã de guerra submarina contra
navios beligerantes e neutrais, em 1917, a gota de água que esgotaria, por
fim, a paciência de Wilson. Mas será que esta é toda a história? De que forma
pode uma leitura libertária poderá iluminar os buracos negros sobre a 1ª
Guerra?
. O próprio Presidente Wilson,
concorrendo às eleições de 1916 com o slogan de “manter o país fora da
guerra”, hesitou longamente antes de levar os EUA para uma guerra distante
(Keene, 2010: 508; Cooper, 2011: 420-2).
Wilson - interesses idealistas ou idealismo interesseiro?
Kissinger, no livro Diplomacy, revela-se contra o “impulso neo-wilsoniano de
moldar a política externa norte-americana mais por valores do que interesses”
(Ikenberry, 1999: 56). Ora, para Paul, não há realmente nada de “neo-“ nesse
impulso, como não foram também os “valores” ou a moral que dominaram a
política externa (intervencionista) norte-americana (Paul, 2007: 218). Aliás, o
próprio presidente Wilson é, na óptica de Paul, bem mais pragmático do que
poderia inicialmente parecer (Ibid.: 250, 339; Cox, 2000: 235-6)
16
Para o libertário, a visão de Wilson era clara: “orquestrar a entrada dos EUA
na 1ª Guerra Mundial...para concretizar a sua estratégia de governo mundial
sob a Liga das Nações” (Paul, 2007: 283; Cox, 2000: 237; Anderson, 2008:
4). Paul rejeita a narrativa segundo a qual haveria algo de moralista na sua
conduta. A própria “missãode espalhar a democracia pelo mundo pela
força, se necessário - é classificada, no mínimo, como hipócrita (Ibid.:339;
Denson, 2006: 24-5)
.
17
Aliás, antes da 1ª Guerra Mundial, este era o presidente que já tinha “rompido
pela América Latina”, invadido o Haiti, o México, a República Dominicana e as
Filipinas e iniciado a Guerra Hispano-Americana (Eland, 2007: 14; Hallward,
2004: 27; Paul, 1987: 50; Butler, 1935: 3; Fleming, 2003: 22;469). Podem
todas estas incures ser realmente justificadas pelo idealismo? Ou existiam
outros interesses “bem menos idealistas” (Cox, 2000: 222) que moldaram, a
partir de Wilson, a política externa dos EUA?
.
15
Mantendo, no entanto, uma “supervisão paternalista” da América Latina (Gilderhus, 2006:6).
16
Existem, no entanto, interpretações diferentes, mesmo no sector libertário, do carácter de
Wilson. Veja-se, por exemplo, Anderson, 2008:3 e Denson, 2006:25.
17
Tome-se como exemplo a Bélgica que, como afirma Fleming (2003:60), “era tão democrática
como a Alemanha, [pois] tinha um parlamento que...atribuía aos ricos três votos...um sistema
similar ao da Prússia”. Por outro lado, o mesmo Fleming (Ibid.:58) nota que, na visão dos
países colonizados, como o Congo, a Bélgica (e outras potências coloniais), face às atrocidades
cometidas, dificilmente pareceriam democráticas.
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E seria próprio Wilson, exponente do liberalismo internacional, visto como
fervoroso democrata e internacionalista, afinal um aristocrata elitista com
posições racistas e contra a determinação nacional de certos povos (Cooper,
2011: 433, 474; Fleming, 2003: 74)? É esta, baseada também nos relatos do
seu biógrafo, a leitura que Michael Cox (2000:235-7) faz do presidente norte-
americano:
"We should not forget that Wilson did nothing for
the Irish or the Chinese at Versailles; that 20 years
earlier he had endorsed the brutal American
takeover of the Philippines; and that he was not in
favour of independence for all peoples, especially if
they were brown or black.
Wilson had far more in common with the patrician
views of…Hamilton and…Madisonneither of whom
could…be regarded as genuine democratsthan he
did with the populist Jefferson…If Wilson had a
restricted concept of democracy…he had forthright
views about race".
A economia da guerra
O que motivou afinal Wilson na sua cruzada, depois de ter sido reeleito,
prometendo não entrar na 1ª Guerra Mundial? A resposta do General Butler é
clara: “money”. Como refere Denson (2006: 25), corroborado por outros
autores (Fleming, 2003: 80-1,84; Cooper, 2011: 421, 426; Keene, 2010:
510), quando os “aliados se recusaram a pagar a sua dívida [de guerra], os
EUA estiveram à beira de um desastre económico”. Um episódio relado por
Butler (1935: 13), no panfleto a que já aludimos, “War is a Racket”:
"The President summoned a group of advisers. The head of
the commission spoke. Stripped of its diplomatic
language… he told the President and his group:
There is no use kidding ourselves any longer. The cause of
the allies is lost. We now owe you (American bankers,
American munitions makers, American manufacturers,
American speculators, American exporters) five or six
billion dollars. If we lose (and without the help of the
United States we must lose) we, England, France and Italy,
cannot pay back this money... and Germany won’t."
Uma Guerra para salvar a democracia ou os banqueiros? Mas os interesses
financeiros não foram os únicos a serem privilegiados durante aGuerra
Mundial. C. J. Anderson (2006: 1) e Fleming (2003: 53-4) consideram que,
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por exemplo, “a Grã-Bretanha envolveu-se na 1ª Guerra por razões
económicas e navais” visto que “a indústria alemã tinha ultrapassado a
inglesa, e a armada alemã constituía-se como uma verdadeira ameaça à
Armada Real, a última esperança do país de domínio mundial”.
Ron Paul traça igualmente a “obsessão” norte-americana por petróleo à 1ª
Guerra Mundial. Para Paul (2007: 218), foi a partir daí, que começou o
“envolvimento gradual no panorama internacional com o objectivo de controlar
os interesses económicos mundiais, com enfâse especial no petróleo”.
Para o ex-congressista, o “caos” que se verifica no “Médio-Oriente tem muito a
ver com segurar os campos de petróleo para o benefício das nações
ocidentais” (Ibid.: 325). Aliás, numa ironia da história, quando a G-Bretanha
se apoderou dos campos de petróleo, declarando-se como “libertadora”, “uma
jihad foi declarada contra estes, forçando-os a sair” (Ibid.: 334).
A primeira guerra da propaganda?
Como foi possível convencer os cidadãos e, em particular, os jovens norte-
americanos a combater uma guerra na Europa, longe das suas margens?
Como é que uma guerra lutada por interesses económicos que, no final,
beneficiou apenas os grandes industrialistas e banqueiros, foivendida” aos
norte-americanos? Que ameaças ou eventos foram usados para fazer bater as
“baterias de guerra” mais forte?
A 1ª Guerra Mundial foi talvez a primeira guerra da propaganda total, na qual
agentes como Lippman e Bernay, contratados por Wilson, se revelaram
fundamentais em persuadir o grande público do “perigo alemão” (Redfern,
2004: 3; Anse Patrick e Thrall, 2004: 2; Keene, 2010: 510; Fleming, 2003:
55, 90). Outros identificam igualmente os mass media emergentes como
responsáveis pela campanha de criação desse medo e da “necessidade” dos
EUA entrarem em guerra (Anderson, 2008: 2).
No entanto, aqueles que não estavam convencidos da ameaça alemã foram
persuadidos pelo afundamento do submarino Lusitânia, o “evento especial,
sem o qual seria difícil vender a política de guerra preventiva onde os
membros do ‘nosso’ exército seriam mortos”. Eventos que “serviram para
promover uma guerra que os nossos líderes pretendiam” (Paul, 2007: 274).
E, se ainda houvesse quem não estivesse convencido, como refere Butler
(1935: 9), “bonitos ideais foram pintados aos nossos rapazes enviados para
morrer. Esta era ‘a guerra para a acabar com todas as guerras’”. Butler
menciona igualmente as condecorações de guerra inexistentes até à guerra
Hispano-Americana “que facilitavam o recrutamento”. Se, porventura, tudo
isto não fosse suficiente, os recrutas foram forçados a “sentirem-se
envergonhados caso não se alistassem no exército”.
Mas esta foi igualmente a guerra onde o serviço militar obrigatório foi
introduzido, pela primeira vez, como “dever patriótico” (Paul, 2011: 34; Paul,
2007: 285). Um serviço que é, aos olhos de Paul, intolerável e um dos maiores
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exemplos daquilo que o ex-político nomeia de “ataque devastador de Wilson”
(Ibid.: 30) às liberdades individuais dos norte-americanos.
A guerra, “o big government” e a erosão de liberdades capítulo I
Paul, como outros libertários (Eland, 2007: 5-6,8; Denson, 2006: 25, 99;
Anderson, 2008: 4), apontam a presidência de Wilson e, em especial, a
Guerra Mundial, como o primeiro grande momento de crescimento do governo
nos Estados Unidos. Foi este o capítulo inicial daquilo que os libertários
consideram como o “advento do ‘big government’ permanente” e a sua
intruo nas vidas dos cidadãos norte-americanos.
Pois esta guerra, embora lutada no exterior, levou a uma grande concentração
de poder nas mãos de Wilson e governo, que controlou “quase toda a
produção de guerra” e “assumiu novos poderes...para controlar a dissidência”
(Eland, 2007: 8; Keene, 2010: 508; Cooper, 2011: 451-2, 459-62). Aliás,
como o mesmo autor acrescenta, a guerra “reforçou a sua presidência” e que,
regra geral, “qualquer guerra centraliza o poder”. Uma consideração partilhada
por Denson (2006: 30), que relembra o aviso de Tocqueville sobre os custos
da guerra:
"No protracted war can fail to endanger the freedom of a
democratic country…War does not always give over
democratic communities to military government, but it
must invariably and immeasurably increase the powers of
civil government".
Imagine-se agora em quantas “guerras não-militares” estão os EUA envolvidos
contra o terrorismo, a droga, a pobreza? Isto não contando obviamente as
incursões militares, a preparação de guerra constante e o clima de medo,
fomentado por governos e meios de comunicação. Como afirma Paul (1987:
51), “em tempos de guerra, as liberdades individuais encontram-se
ameaçadas em casa”.
Embora o termo “liberdades individuais” possa ser considerado como vago, o
discurso libertário tem um mérito fundamental. Ao identificar claramente o
primeiro passo daquilo que viria a desembocar na guerra com drones, nos
programas de vigilância massiva, alianças militares e no “Imrio” americano,
e ao pregar uma desconfiança instinctiva do governo, relembra-nos qual é o
preço da nossa segurança, mas também qual o preço daquilo que tomamos
como “liberdades”.
O desafio do libertarianismo
Neste artigo procurámos assim dar conta de dois fenómenos distintos que se
interligam, todavia, na figura do Dr. Ron Paul a sua candidatura a presidente
norte-americano em 2008 e 2012, bem como a imensa campanha que liderou
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e desembocou na emergência do libertarianismo como movimento e discurso
significativo na política norte-americana.
Se, numa primeira parte, identificámos as linhas teóricas que guiaram a acção
e o discurso “pauliano”, na segunda parte deste artigo analisámos a narrativa
libertária sobre as políticas de Wilson, com especial atenção à 1ª Guerra
Mundial, identificada como o momento em que “a República se tornou num
Império” e as “sábias” políticas dos founding fathers foram ignoradas e
repelidas.
Se a retórica libertária pode ser desprezada como populista contra a Reserva
Federal e os banqueiros -, egoísta ou até cínica por desprezar a ajuda
externa e os problemas de outras nações (ou inversamente, até como algo
naïve, por imaginar que o desaparecimento do Estado implicaria uma
“diluição” do Poder e, por isso, uma maior “liberdade”), ela não deixa de ter os
seus méritos, sobretudo no que aos direitos civis e, em especial, à política
externa diz respeito.
Aliás, se o movimento libertário nos EUA foi identificado com uma certa
“Direita”, a verdade é que, na política externa, ela se une a toda aquela
Esquerda que rejeita o papel de polícia do Mundo dos Estados Unidos
(Edwards, 2011: 266). Apesar de não concordarem necessariamente com qual
deveria ser o papel dos EUA no Mundo (e vice-versa), ambos concordam que a
missão actual dos EUA é inaceitável e prejudica não apenas os cidadãos norte-
americanos, como todos os outros.
É para o movimento global contra a guerra, afinal, que a maior lição de Ron
Paul pode ser retirada. Nas suas próprias palavras (2007: 326-7),
"quem quiser limitar as despesas de Guerra e o
militarismo... tem de estudar o sistema monetário, através
do qual o(s) governo(s)... financia(m) as suas aventuras
no estrangeiro sem a responsabilidade de informar o
público dos seus custos ou de recolher os fundos
necessários para financiar esse esforço”
Se para muitos é agora mais fácil compreender as ligações entre os bancos, o
governo e a guerra e também as crises financeiras - uma pequena parte do
mérito deve-se a Ron Paul e ao movimento libertário.
Foram também eles que ajudaram a expor o “círculo vicioso” do dólar como
moeda-reserva mundial. Dólar que detém a confiança mundial sobretudo
devido ao poderio militar dos EUA, ao mesmo tempo que serve para amplificar
esse poderio, manipulado pela Reserva Federal, e prejudicando a grande
maioria dos cidadãos, criando um “imposto” através da inflação (Paul, 2007:
328), mas especialmente retirando qualquer poder decisório sobre decisões
essenciais na vida de todos.
Apesar de Paul rejeitar o modelo democrático e lhe preferir o da República e
mesmo rejeitando o cosmopolitismo de um governo mundial, os seus
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conselhos podem ser entendidos como uma chamada para uma política mais
transparente, feita de ideias e coerência um modelo que o ex-congressista e
ex-candidato presidencial sempre seguiu enfim, por uma política mais
“democrática”, no sentido mais pleno da palavra.
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A GUERRA COMO A CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS…
NÃO TRIPULADOS
João Paulo Vicente
joao.vicente.6@gmail.com
Tenente-Coronel Piloto Aviador. Desempenha funções na Divisão de Planeamento do Estado-
Maior da Força Aérea (Portugal). Investigador do Centro de Investigação de Segurança e Defesa
do Instituto de Estudos Superiores Militares. Licenciatura em Ciências Militares e Aeronáuticas
pela Academia da Força Aérea (1995), Mestrado em Estudos da Paz e da guerra nas Novas
Relações Internacionais, pela Universidade Autónoma de Lisboa (2007), Master of Military
Operational Art and Science, pela Air University, Alabama, EUA (2009). Doutor em Relações
Internacionais, Especialidade de Estudos de Segurança e Estratégia, na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (2013).
Resumo
Nenhum outro sistema de armas transformou de forma mais significativa a capacidade
americana de combate nas últimas décadas do que a introdução operacional dos drones.
Isto é, a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo durante mais de
24 horas, executando atividades de vigilância, mas transportando mais de uma tonelada de
armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de oportunidade. Ao abrigo deste
novo modelo operacional, os drones proliferam no espaço de batalha, numa miríade de
atividades essenciais, aliviando o homem de missões monótonas ou demasiado perigosas,
sem qualquer risco para o piloto, que permanece a milhares de quilómetros de distância
num cubículo refrigerado, visionando a Guerra num monitor de alta definição.
Ao analisar a realidade atual, tendo como prisma a conduta da potência dominante, os
Estados Unidos, pretendemos encontrar algumas pistas que revelem possíveis alterações na
natureza do debate político em virtude do emprego generalizado dos drones. Isto é,
aquilatar de que forma é que os drones afetam a cultura estratégica dos Estados em
recorrer à força coerciva para alcançar objetivos políticos e em particular a sedução política,
quase irresistível, de empregar o Poder Aéreo como resposta militar primordial. Neste
âmbito procuramos também indagar se a Guerra Aérea Remota contribui para reforçar a
capacidade de dissuasão e compulsão de futuros adversários, ou se em contrapartida baixa
a fasquia para o uso da força, tornando a conflitualidade hostil mais frequente. Importa
também questionar se ao remover os custos humanos para o ofensor, o emprego recorrente
de drones armados se torna uma expressão suficiente da vontade política de fazer a Guerra.
Iremos centrar a discussão tendo como argumento que os drones oferecem a possibilidade
de empregar capacidades militares num conflito, sem necessidade de construir um amplo
consenso político e público, tornando o processo de decisão política mais facilitado e
impulsivo no sentido de usar a força, dificultando por outro lado, o planeamento e execução
da estratégia militar.
Palavras chave:
Guerra; Drones; Guerra Aérea Remota; Execuções Seletivas; Poder Aéreo
Como citar este artigo
Vicente, João Paulo (2014). "A guerra como a continuação da política por outros meios...
não tripulados". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 5, N2, novembro
2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art4
Artigo recebido em 29 de julho de 2014 e aceite para publicação em 9 de outubro de
2014
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A guerra como a continuação da política por outros meios--- não tripulados
João Paulo Vicente
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A GUERRA COMO A CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS…
NÃO TRIPULADOS
João Paulo Vicente
1. Introdução
Quando em novembro de 2001, algures no deserto do Afeganistão, Muhammad Atef foi
alvo do primeiro bombardeamento aéreo da história americana a partir de uma
aeronave não tripulada um drone Predator assistimos ao nascimento de um novo e
avassalador capítulo na curta história do Poder Aéreo. A partir desse momento, uma
nova tecnologia e um novo conceito de operações proliferaram e fizeram eclodir efeitos
tanto impressionantes quanto desproporcionados, indiciando uma sedução quase
irreversível dos decisores políticos para o recurso primordial à Guerra Aérea Remota.
Nenhum outro sistema de armas transformou de forma mais significativa a capacidade
americana de combate nas últimas décadas do que a introdução operacional dos
drones. Isto é, a capacidade de manter aeronaves sobre um determinado objetivo
durante mais de 24 horas, executando atividades de vigilância, mas transportando
mais de uma tonelada de armamento de precisão, pronto a ser largado sobre alvos de
oportunidade. Ao abrigo deste novo modelo operacional, os drones proliferam no
espaço de batalha, numa miríade de atividades essenciais, aliviando o homem de
missões monótonas ou demasiado perigosas, sem qualquer risco para o piloto, que
permanece a milhares de quilómetros de distância num cubículo refrigerado, visionando
a Guerra num monitor de alta definição.
À medida que aumenta a imprescindibilidade operacional, somos confrontados com
uma proliferação tridimensional da Guerra Aérea Remota. Ou seja, na diversidade de
formas e tamanhos, no alargamento do espetro de missões e de base de utilizadores, e
nos níveis crescentes de autonomia a par com a perspetiva de armamentização. É
exatamente a irresistibilidade do carácter cirúrgico, não apocalíptico, a custos
reduzidos, que poderá tornar irreversível a sua proliferação, com efeitos
desestabilizadores para as Relações Internacionais.
Ao analisar a realidade atual, tendo como prisma a conduta da potência dominante, os
Estados Unidos da América (EUA), pretendemos encontrar algumas pistas que revelem
possíveis alterações na natureza do debate político em virtude do emprego
generalizado dos drones. Isto é, aquilatar de que forma é que os drones afetam a
cultura estratégica dos Estados no recurso à força coerciva para alcançar objetivos
políticos e em particular a sedução política, quase irresistível, de empregar o Poder
reo como resposta militar primordial. Neste âmbito procuramos também indagar se a
Guerra Aérea Remota contribui para reforçar a capacidade de dissuasão e compulsão
de futuros adversários, ou se em contrapartida baixa a fasquia para o uso da força,
tornando a conflitualidade hostil mais frequente. Importa tamm questionar se ao
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remover os custos humanos para o ofensor, o emprego recorrente de drones armados
se torna uma expressão suficiente da vontade política de fazer a Guerra.
Iremos centrar a discussão tendo como argumento que os drones oferecem a
possibilidade de empregar capacidades militares num conflito, sem necessidade de
construir um amplo consenso político e público, tornando o processo de decisão política
mais facilitado e impulsivo no sentido de usar a força. Contudo, uma análise estratégica
da campanha de “execuções seletivas” permitirá identificar alguns “efeitos boomerang
que ameaçam a eficácia operacional da Guerra Aérea Remota, fazendo prospetivar um
aumento da hostilidade e perigosidade do ambiente futuro, por natureza complexo e
adverso.
2. A sedução política pela Guerra Aérea Remota
A capacidade dos militares encontrarem e destruírem coisas à distância nunca deixou
de admirar os políticos americanos (Zenko, 2010a). Contudo, a tendência política
americana de recorrer a contingentes militares limitados sempre que confrontada com
desafios que ameacem os interesses nacionais está a ser levada aos limites com o
recurso a ataques de drones. A isso não é alheio o facto de estes sistemas serem uma
opção de baixo custo, sempre disponível e com eficácia operacional elevada.
Neste prisma, o Predator é para a Administração Obama uma evolução tecnológica
análoga ao que ossseis de cruzeiro foram para o presidente Clinton na década de 90
do século passado: uma forma de exercer uma política externa musculada, mas sem os
custos inerentes ao emprego de forças terrestres. Esta ambição política é um dos
catalisadores para a preeminência futura dos drones e acima de tudo para impulsionar
o desenvolvimento de sistemas mais capazes, nomeadamente em termos de alcance,
persistência e autonomia.
A atualidade da preferência política pela Guerra Aérea Remota pode ser verificada,
constatando que em finais de 2011 os EUA empregavam drones de ataque, de forma
simultânea e contínua, em seis teatros distintos, para além de conduzirem missões de
vigilância em pelo menos uma dezena de países, incluindo a nível doméstico. Neste
contexto, a operação em ambientes aéreos permissivos, em que a ameaça para os
drones é mínima, em alguns casos com apoio tácito ou explícito dos governos locais,
permite maximizar a capacidade de persistência na recolha de intelligence e eventual
ataque a alvos emergentes.
O emprego de drones traduz-se numa menorfootprint” militar que pode ser
politicamente atrativa. Isto porque o conceito de operação remota e as características
associadas a estes sistemas para executarem ataques de longo alcance, permitem uma
redução da necessidade de bases avançadas para a projeção de poder. Sem a
necessidade deste requisito estratégico, reduz-se também a interferência internacional
e a obrigação de reunir consensos alargados e mesmo coligações que apoiem o uso da
força, e até a necessidade de consultar o Congresso para obtenção de legitimidade
política para levar a caboões de Guerra Aérea Remota.
Para além disso, esta tecnologia é extremamente sedutora, tanto do ponto de vista
político como militar, na medida em que transmite uma falsa impressão de que a
Guerra deixou de ter custos. A decisão de iniciar uma Guerra teve sempre
consequências gravosas. Contudo, agora é possível travar uma Guerra sem ter que
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lidar com algumas das implicações mais severas, como enviar soldados para o terreno.
Isto porque, um dos fatores de dissuasão da Guerra diz respeito aos custos elevados
traduzidos em “sangue e tesouro”. Ao reduzirmos o derramamento do nosso “sangue”,
estamos a tornar a Guerra menos dura, menos exigente e socialmente mais aceitável,
limitando o seu ónus apenas ao “tesouro”. Assim, a Guerra Aérea Remota enquadra-se
numa longa tradição ocidental de encontrar formas relativamente seguras de empregar
a força letal, como a artilharia e o bombardeamento aéreo, levando a crer que as
baixas militares amigas evitadas são mais valorizadas do que as baixas causadas entre
a população civil adversária (Olsthoorn et al., 2011).
A par com a redução da exigência individual do combatente, a Guerra à distância exige
cada vez menos das sociedades, tornando-a uma opção política primordial. O emprego
de mísseis de cruzeiro sobre a Somália e o Sudão durante o mandato de Clinton
comprovam esta observação. Também a intervenção terrestre americana no Kosovo só
terá ocorrido quando as “garantias de impunidade” foram reunidas (Ignatieff, 2000:
179). Assim, ao retirar o perigo de perdas humanas, o emprego de drones maximiza
este conceito de operação com impunidade.
A perceção de uma Guerra sem custos, como apontado por Andrew Callam (2010),
poderá ficar-se a dever, em primeiro lugar, ao facto de se tratar de um conflito que
está a ser combatido de forma encoberta, longe da vista da sociedade. Apesar da
sociedade de informação, é difícil aceder às áreas remotas ou obter imagens acerca dos
ataques, o que contribui para isolar o público dos danos provocados, impedindo no
entanto uma avaliação transparente e imparcial de tal conduta, nomeadamente da
tipologia de alvos e dos danos causados à população cívil. Em segundo lugar, a
eliminação do risco humano para os EUA torna a Guerra mais aceitável, diminuindo as
objeções públicas à sua ocorrência e prolongamento.
Por outro lado, a interação político-militar que precede a Guerra poderá também ser
afetada. Até aqui, esta interação procurava determinar a estratégia mais adequada aos
objetivos políticos de forma a minimizar o custo em “sangue e tesouro”. Enquanto os
militares procuram os recursos humanos necessários para alcançar os objetivos
estabelecidos, os políticos tentam minimizar as repercussões associadas à mobilização
maciça de exércitos. No entanto, a remoção da variável humana da equação
transforma o cálculo político-militar num juízo cada vez mais racional e menos
subjetivo. Esta alteração da natureza do debate político, do cálculo de risco humano
para o custo económico da intervenção, poderá relegar para segundo plano a
necessidade de consulta militar antes da decisão do uso da força.
Em virtude da disponibilização de uma imagem operacional comum, em tempo real aos
decisores, é possível que as decisões sejam eticamente mais consensuais (Cummings,
2010). Isto porque, a maior granularidade da informação significará maior precisão,
aumentando dessa forma a compreensão do ambiente operacional. Esta faculdade,
resultante da aplicação de instrumentos analíticos automatizados, permite uma
avaliação mais rápida do risco operacional e estratégico de uma missão,
nomeadamente no processo de nomeação de alvos, facilitando a decisão política para o
emprego da força. Esta propensão para a Guerra Aérea Remota pode, no entanto,
afetar a coerência da estratégia aérea. O conflito do Kosovo espelha o condicionamento
típico imposto à estratégia aérea, de extrema discriminação e proporcionalidade, para
justificar moralmente um combate com risco reduzido. Contudo, a condução dos
ataques acima dos 15.000 pés, fora do envelope das ameaças antiaéreas, revelou uma
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maior preocupação pela segurança dos pilotos do que pela discriminação dos
bombardeamentos.
Por outro lado, os danos colaterais irão continuar a existir, contudo, a capacidade de
“humanizar” os erros irá decrescer. Concetualmente, será mais fácil aceitar danos
colaterais causados por uma aeronave tripulada, cujo piloto toma decisões em frações
de segundo enquanto se sujeita aos rigores e ameaças de combate, do que admitir
erros provocados pelo uso de drones. Essa preocupação extrema em limitar os danos
colaterais, leva ao estabelecimento de protocolos complexos de seleção e ataque de
alvos. Porém, a precisão inerente aos drones associada a uma tipologia de alvos cada
vez de menores dimensões e mais difusos, provocam uma maior assunção de risco,
nomeadamente em ataques em zonas urbanas, contribuindo para uma maior
probabilidade de efeitos indesejados.
Desta forma, a realidade apresentada em apreço contribuirá para isolar cada vez mais
a sociedade das ações militares, reduzindo a supervisão da ação política. Esta erosão
da verificação e responsabilização da ação política, pilares essenciais do modo de fazer
a Guerra numa sociedade democrática, poderá fomentar a vontade para o uso da força
letal.
Uma indicação do abrandamento do controlo político acerca do consentimento e da
autoridade para o uso da força foi demonstrada no conflito da Líbia em 2011, em que
Obama defendeu que não seria necessária autorização do Congresso para empregar
forças americanas no conflito. Um dos instrumentos disponíveis para garantir uma
maior ponderação política no uso da força entre o Presidente e o Congresso americano
é a “War Powers Resolution” de 1973, que obriga a Administração a consultar o
Congresso antes de empregar as Forças Armadas americanas em hostilidades. Existem,
no entanto, situações em que o Presidente pode empregar força militar sem
autorização prévia do Congresso. Por exemplo quando o país foi ou está em vias de ser
atacado, quando um acordo obriga a defender terceiros, em casos de extração de
cidadãos em risco, em ataques punitivos isolados, ou em operações em que a surpresa
impeça um debate público alargado (Lugar, 2011: 5).
Durante a fase inicial da operação na Líbia (Operação Odyssey Dawn), as ações das
forças americanas foram significativamente mais intensivas, sustentadas e perigosas do
que na fase posterior, Operação Unified Protector, comandada pela NATO, em que os
EUA desempenharam uma função de apoio. Nesta fase, e segundo a perspetiva da
Administração Obama, a participação americana foi limitada por três fatores: meios
militares empregues, natureza da missão e risco de escalada. Em declarações perante o
Congresso, Harold Koh (2011) defendeu a posição da Administração em como a
operação na Líbia não podia ser qualificada de “hostilidades” perante a Resolução de
War Powers”. Em primeiro lugar porque era uma missão com objetivos limitados.
Segundo, porque a exposição das forças americanas era limitada e não envolvia risco
de baixas. Terceiro, o risco de escalada era reduzido dado que as forças terrestres não
seriam empregues. E finalmente, o emprego dos meios militares era limitado à
supressão de defesas aéreas inimigas para garantir a zona de exclusão de voo, e a
ataques de Predator contra alvos em apoio da missão de proteção de civis.
Nesta perspetiva, os drones influenciam dois destes fatores na medida em que limitam
a exposição das forças e do risco de escalada do conflito. No entanto, estaremos a
alargar substancialmente o âmbito para empregar a força, facilitando perigosamente a
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frequência da Guerra Aérea Remota. A reserva introduzida nesta resolução acerca da
“introdução de forças americanas nas hostilidades” poderá ser redutora para o caso de
emprego de drones, na medida em que elimina a preocupação de perdas humanas.
Apesar de isentarem as forças de risco físico, o número e a natureza dos ataques de
drones podem contribuir significativamente para aumentar a fasquia de hostilidades.
O cálculo político acerca da definição de hostilidades incidiu essencialmente na
probabilidade de ocorrência de baixas de forças americanas, minimizando outras
considerações relevantes para uso da força (Lugar, 2011: 6). Nesta perspetiva, o
conflito da Líbia não configura nenhuma das exceções mencionadas, sendo que
aeronaves americanas participaram nos ataques e o apoio americano às forças da
NATO foi crucial, nomeadamente ao nível das capacidades logísticas e de comando e
controlo, assim como em áreas operacionais deficitárias como informações e vigilância,
reabastecimento aéreo ou capacidades espaciais.
Como instrumentos de diplomacia coerciva, isto é, no âmbito da dissuasão e
compulsão, o emprego de drones de combate, ao reduzir os custos potenciais da
ameaça e uso da força, pode ter implicações substanciais (Nolin, 2012: 13). Em
particular nas situações de maior assimetria entre os atores em disputa e considerando
que os custos humanos se afiguram praticamente nulos, a credibilidade de tais
ameaças sairá reforçada, uma vez que o emprego da força ocorrerá com maior
facilidade, e sem o demorado escrutínio político e público associado ao uso da força por
meios tradicionais. Da mesma forma, será de esperar que os Estados possuidores de
drones de combate se tornem mais audaciosos e recorram mais frequentemente à
Guerra Aérea Remota, de forma preventiva e como instrumento primordial de resolução
de conflitos. Ao combater de forma simultânea em seis locais distintos no planeta, sem
qualquer risco direto para as suas forças, os EUA parecem confirmar a hipótese de que
a Guerra Aérea se tornou mais profícua com a emergência dos drones, confirmando
uma maior inclinação para empregar o instrumento militar para alcançar objetivos
nacionais limitados.
Neste sentido, os drones fornecem aos políticos um aumento de controlo que se
estende a três níveis (Dawkins, 2005: 21-24). O controlo da oportunidade e ritmo das
operações na medida em que minimizam as interferências externas. O controlo sobre o
debate político referente ao uso da força. E por fim, a perceção do controlo preciso
desde o nível estratégico até ao emprego tático das forças, instigando a uma maior
interferência em todos os detalhes da condução da Guerra. Assim, a Guerra torna-se
uma solução política, ainda mais proeminente, porque menos exigente, facilmente
justifivel e aceitável. Isto é ainda mais verdade para a opção de uso exclusivo do
Poder Aéreo. Ao limitarem as baixas e eliminarem a possibilidade de prisioneiros de
Guerra, os drones permitem que as missões possam ser planeadas e executadas de
forma mais discreta e em áreas remotas. A possibilidade de executar uma operação de
ataque sem a exploração mediática prévia maximiza também a surpresa operacional.
Para aferirmos em maior detalhe acerca da sedução política do emprego da Guerra
Aérea Remota teremos de nos debruçar sobre um caso de estudo particular: a
campanha contraterrorista americana.
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3. Um novo conceito de operações: "The only game in town"
No dia 3 de novembro de 2002, algures no deserto do men, um Predator controlado
pela Central Intelligence Agency (CIA) seguia um carro com seis passageiros. Um dos
ocupantes, Qaed Salim Sinan al-Harethi, estava na lista presidencial dos mais
procurados da Al-Qaeda, como responsável pelo ataque ao navio USS Cole. Numa zona
desabitada, o disparo de um ssil Hellfire contra o veículo matou os seis ocupantes.
Esta foi a primeira ação de “targeted killing” (“execução seletiva”) da história com
recurso a drones. Em agosto de 2009, um líder Taliban paquistanês, Baitullah Mehsud,
descansava no terraço de uma habitação, juntamente com a sua mulher. Sem anúncio
prévio, um míssil lançado de um Predator destruiu a casa matando o terrorista, a
mulher e guarda-costas. A execução em 30 de setembro de 2011 de Anwar al-Awlaki,
no Iémen, um dos mais influentes operacionais da Al-Qaeda, elevou a fasquia desta
modalidade, uma vez que se tratou da primeira morte intencional de um cidadão
americano.
Estes três exemplos, de mais de quatro centenas de ataques executados pelos EUA
desde 2002, fora de teatros de operações ativos, como o Paquistão, o Iémen ou a
Somália, na sua maioria por drones operados pela CIA, espelham o alastramento
geográfico e a frequência dos ataques, fazendo emergir o estatuto primordial da
modalidade de “execuções seletivas” na estratégia americana de Guerra Aérea Remota.
Desde junho de 2004, a Administração Bush autorizou 45 ataques na zona noroeste do
Paquistão. Apenas durante o seu primeiro mandato, a Administração Obama
quintuplicou esse número, permitindo preservar capital político comparativamente com
o risco e custo associados a estratégias militares alternativas assentes no emprego
massivo de forças terrestres.
A necessidade dos EUA serem “ágeis e precisos” no uso do poder militar é concretizada
com o emprego de drones e forças especiais (Obama, 2009). Da perspetiva da
Administração, os ataques seletivos são estrategicamente sensatos. Isto porque, os
drones fornecem uma ubiquidade e persistência inigualáveis, que em conjunto com o
armamento de precisão permitem aproveitar as janelas de oportunidade para agir.
Comparativamente com outras alternativas militares, a eliminação do risco para as
forças americanas torna estas capacidades especialmente indicadas. Adicionalmente,
reduz o perigo para os civis em comparação com alternativas tradicionais de
bombardeamentos, uma vez que uma melhor visualização do alvo permite decisões
mais acertadas, com precisão cirúrgica.
Poder-se-á afirmar que esta estratégia ofensiva contraterrorista tem tido resultados
imediatos na eliminação de terroristas. A pressão contínua sobre os refúgios dos
terroristas, até agora impunes, torna a sua ação, movimentos e contactos com aliados
mais difíceis, forçando-os a despender mais recursos na sua sobrevivência. Também o
efeito psicológico causado no inimigo pela incerteza acerca do ataque e da sua
sobrevivência, constringe as suas operações. Empiricamente, os resultados
operacionais resultantes do emprego de drones indicam que a sua obtenção por meios
alternativos exigiria uma força militar de larga escala, com os inconvenientes políticos,
económicos e sociais associados. Desta forma, as consequências estratégicas que
advêm do uso da força são menores do que as resultantes da projeção de exércitos,
normalmente percecionados como forças estrangeiras de ocupação. Para além disso, as
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guerras de ocupação tendem a ser dispendiosas e a inflamar o ressentimento contra os
EUA.
Existem também opiniões de que os drones reduzem a escalada do conflito, tornando-
os uma ferramenta essencial na estratégia contraterrorista (Anderson, 2010). A lógica
é simples: ao dizimar a liderança de topo com maior experiência na organização
obtém-se uma degradação na capacidade de comando e controlo da Al-Qaeda. O
momento mais alto deste programa ocorreu com a morte de Bin Laden, com recurso a
uma ação de “execução seletiva”, desta vez empregando forças especiais para garantir
a identificação positiva do alvo e a sua extração. A atrição provocada sobre os líderes
da Al-Qaeda tem dificultado a reconstituição da organização e como tal, diminuído a
sua eficácia operacional. Por exemplo, dos 30 membros de topo da Al-Qaeda na região
Afeganistão-Paquistão, 20 deles foram mortos por drones desde 2010 (Nolin, 2011:19).
Contrariamente à convicção popular, o número de terroristas experientes é bastante
limitado (Byman, 2006). Quando um terrorista experiente é morto isso tem um impacto
direto nas operações, porque são necessários vários meses até treinar um substituto
com experiência suficiente para ser eficaz. Apesar das organizações continuarem a ser
capazes de recrutar terroristas, estes não têm experiência e supervisão adequadas
para constituírem ameaça assinalável.
Outros académicos, considerando testemunhos de elementos da Al-Qaeda, vão mesmo
mais longe ao avançarem com a hipótese de que sem esta modalidade estaríamos mais
perto do terrorismo nuclear (Zenko, 2010b). Nesta ótica, os ataques dos drones são
uma ferramenta essencial para matar terroristas que dirigem e fornecem apoio
operacional ao terrorismo internacional, sendo esta opção moralmente justificada para
prevenir futuros ataques terroristas. Parece ser consensual que matar os insurgentes
o conduz automaticamente à vitória, mas como Steven Metz (2000:55) salienta, “a
resolução das causas profundas é mais fácil com os líderes insurgentes fora de cena”.
4. Efeitos “boomerang da campanha de “execuções seletivas”
Estas visões otimistas encaram o uso de drones como a forma mais eficaz e precisa de
empregar a força militar contra insurgentes. Contudo, a sustentação oficial americana
para a condução desta modalidade de operação enferma de alguns paradoxos. Em
primeiro lugar, transmite uma interpretação expansiva do enquadramento legal
enquanto simultaneamente sustenta critérios limitados. Em segundo lugar, procura
justificar legalmente uma modalidade de ação que se desenrola de forma secreta.
Finalmente, tenta advogar uma imagem de transparência, ao mesmo tempo que se
escusa a fornecer detalhes factuais acerca do processo de decio e da conduta dos
serviços de informações.
Bergen et al. (2011) questionam se a campanha dos drones, apesar de útil a curto
prazo, possa debilitar os esforços americanos para estabilizar a região, obtendo uma
vitória a longo prazo sobre a Al-Qaeda. Peter Singer (2009: 312) interroga-se se esta
modalidade de combate não contribuirá para um aumento de revolta e de adesão à
causa terrorista, enquanto Jane Mayer (2009) sustenta que será inevivel que o
emprego global de ataques de drones cause ações de retaliação.
O debate público sobre a eficácia do emprego de drones em ações letais sobre os
terroristas ainda não provou inequivocamente o seu sucesso estratégico. Da mesma
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forma, não é transparente que os benefícios alcançados com a atrição imposta à
liderança terrorista ultrapassem o impacto que as baixas civis têm sobre o
recrutamento de novos terroristas, assim como na escalada de atentados que
desestabilizam o Paquistão. Tratando-se de ações letais ofensivas, circunscritas a áreas
limitadas, com acesso a imagens em tempo real dos resultados dos ataques, tornam os
seus efeitos diretos mensuráveis. No entanto, convém não esquecer que estas ações
têm efeitos, psicológicos e físicos, diretos e indiretos, cumulativos e interrelacionados.
Esses efeitos serão sentidos em múltiplos níveis (tático, operacional, estratégico) e em
múltiplas dimensões (política, económica, civil, militar). Até porque as intervenções
militares não podem ser vistas como um momento efémero, e muito dificilmente se
vislumbrará um conflito em que não exista necessidade de contacto no terreno entre as
partes em oposição. Por isso, o recurso exclusivo à Guerra Aérea Remota em conflitos
irregulares acrescenta dificuldades no que diz respeito aos esforços de estabilização e
reconstrução, na medida em que não permite o estabelecimento de confiança através
do contacto direto com as populações.
A falta de uma estratégia abrangente para lidar com um conflito torna mais atrativo o
emprego de força militar limitada, em detrimento dos efeitos demorados e
aparentemente ineficazes de outros instrumentos de poder nacional. O recurso ao
instrumento militar, com elevada prontidão e facilmente projetável, faz desviar a
necessidade de desenvolver os outros instrumentos de poder e dotá-los com recursos
suficientes para implementar um plano de longo prazo que solucione as causas
fundamentais do conflito. Como salientado por Robert Gates (2007), uma das lições
mais importantes das Guerras do Afeganistão e Iraque é de que o sucesso militar não é
suficiente para ganhar. Isto enquadra-se na perceção de que o instrumento militar é
adequado para derrotar Estados, particularmente para efetuar mudanças de regime,
mas é um instrumento pobre para combater as ideias.
Para alguns analistas, o recurso primordial aos drones constitui uma forma tímida de
lidar com o problema do terrorismo (Thiessen, 2010). O problema reside no facto dos
ataques de drones serem usados em substituição de outras operações para capturar os
terroristas vivos. Isto porque, a informação obtida pelo interrogatório, a mais de uma
centena de terroristas capturados após o 11 de setembro, permitiu, de acordo com
fontes da CIA impedir numerosos atentados terroristas. Contudo, não podemos
esquecer que a natureza remota da localização dos alvos torna difícil a sua captura,
sem arriscar baixas avultadas de forças americanas ou da nação hospedeira.
Por outro lado, o ataque às zonas tribais no Paquistão reforça as mesmas forças que os
EUA procuram derrotar, alienando os "corações e mentes" num Estado
maioritariamente muçulmano, instável, e com armamento nuclear. É natural que os
insurgentes explorem o ressentimento das populações, reafirmando-se como uma força
de resistência contra a injustiça de uma campanha de Guerra Aérea Remota,
aumentando ao mesmo tempo o poder de atração sobre novos recrutas. É este
equilíbrio entre a neutralização dos grupos insurgentes e o custo de fazer emergir mais
insurgentes que deve ser equacionado.
Ao mesmo tempo, crescem os relatos sobre o aumento da contestação antiamericana,
entre as populações afegãs e paquistanesas e comunidades emigrantes no Ocidente,
assim como entre os membros de elite dos serviços de segurança paquistaneses
(Gerges, 2010). Os objetivos políticos podem ser prejudicados fruto da imagem
negativa que emerge nas áreas atingidas e que se expande de forma global. Esta
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tendência poderá ser preocupante, uma vez que para alguns países, em particular
aqueles intervencionados, a imagem americana ficará irremediavelmente ligada à
Guerra Aérea Remota. O facto do Predator se tornar num epítome, para muitos
muçulmanos, da arrogância do poder americano, poderá no plano estratégico, ofuscar a
eficia operacional desta modalidade de combate.
A globalidade dos indicadores apresentados parece sustentar um fenómeno de perda de
autoridade moral de quem conduz uma Guerra Remota, em particular numa campanha
para ganhar “o coração e mente” das populações locais. Esta perceção poderá ser tanto
maior quanto as baixas civis causadas. Desta forma, sem o necessário contato direto
com as populações, os ataques aéreos podem apenas eliminar cirurgicamente os
insurgentes. Assim, um Estado que procure impor a sua vontade sobre o adversário,
sem que para isso arrisque a vida dos seus soldados, perderá o valor estratégico da
superioridade moral adquirida (“moral high ground”). Isto leva William Arkin (2008) a
concordar com a possibilidade dos drones acarretarem um risco de longo prazo: a
perceção desumana do Poder Aéreo e do seu utilizador.
Os efeitos estratégicos que decorrem do combate direto entre seres humanos
e da Guerra Aérea Remota são díspares. O emprego de aeronaves tripuladas,
expondo os recursos humanos aos rigores de combate, transmite uma perceção de
maior determinação política, disposta a aceitar o risco de baixas. Apesar da
impunidade com que as aeronaves tripuladas efetuam os seus ataques, em
resultado da superioridade aérea de que disfrutam, o risco de operação no
Afeganistão e Iraque ainda é substancial, como se pode constatar no número
de aeronaves abatidas, na possibilidade dos tripulantes serem capturados,
assim como na insegurança vivida nas Bases Aéreas, alvo de vários ataques
mortíferos. Esta interação arriscada entre combatentes contribui para que o inimigo
concentre o seu esforço na área direta do conflito (McGrath, 2010: 15). Contudo, o uso
extensivo da Guerra Aérea Remota, visto numa perspetiva absolutista, parece indicar
que enquanto um dos lados vê a Guerra como um instrumento, um meio para um fim,
o outro encara-a numa perspetiva metafísica, representada na exaltação do ato de
morrer por uma causa. Por isso, a perceção de falta de determinação política para
arriscar as vidas dos seus cidadãos em combate pode contribuir também para que o
adversário reforce a resistência, explorando nos media uma campanha de informação
que atraia novos aderentes à causa.
Outros críticos sintetizam este desequilíbrio entre os custos e benefícios dos ataques
(Kilcullen et al., 2009). Em primeiro lugar, os drones criam uma mentalidade de cerco
entre os civis. Segundo, a indignação não es apenas localizada nas regiões tribais e
estende-se por todo o Paquistão e mesmo na comunidade internacional. Por fim,
revelam o uso de uma tecnologia para substituir uma estratégia, sem uma campanha
de informação concertada dirigida ao público paquistanês. Assim, a decisão de escalar
os ataques poderá fazer despontar um maior número de ações terroristas face à
insatisfação causada, dando razão ao argumento daqueles que defendem um possível
“efeito boomerang” em que os ataques podem criar mais terroristas do que aqueles
que matam. Neste sentido, os ataques provocam o aumento do número e o radicalismo
dos paquistaneses que apoiam o extremismo, diminuindo o objetivo estratégico de
fazer do Paquistão um aliado regional mais colaborante e capaz. Assim, os danos
colaterais e a perceção da constante violação de soberania contribuem também para
um aumento do sentimento de raiva, que une a população em torno de extremistas e
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provoca o alastramento dos ataques para outras áreas do país e do globo (Kilcullen,
2009).
Perante este enquadramento, é difícil encontrar unanimidade acerca da eficácia desta
modalidade de combate. Estudos recentes mostram que o número de ataques
terroristas no Paquistão tem diminuído à medida que se verifica uma escalada no
programa de “execuções seletivas” (Qazi et al., 2012), procurando desta forma
defender uma correlação negativa entre os ataques de drones e o aumento de violência
militante (Johnston et al., 2013). Embora exista uma dificuldade em reunir consenso
acerca das causas das atitudes antiamericanas, verifica-se que essas explicações
assentam no pressuposto de que os indivíduos formam a sua opinião acerca dos EUA
primariamente como reação áquilo que os EUA são e fazem (Blaydes et al., 2010). No
entanto, estes autores advogam que os níveis observados de
antiamericanismo entre as populações muçulmanas não resultam
organicamente em resposta aos atos dos EUA. Para eles, dependem
essencialmente da intensidade das mensagens antiamericanas que são
divulgadas por elites proeminentes de um determinado país. Na sua
perspetiva, a retórica antiamericana funciona como um instrumento político
para obter o apoio de faixas da população, tornando-se mais acentuada
sempre que existe competição política entre fações seculares e islâmicas.
A campanha de “execuções seletivas” é politicamente sedutora pois os custos reduzidos
favorecem o apoio doméstico, ao mesmo tempo que demonstram vontade política. No
entanto, os efeitos indesejados apenas se revelam a longo prazo. Para além do
imprescindível valor militar, a verdade é que a Guerra Aérea Remota tornou-se no
mbolo provocativo do poder americano, sem constrangimentos com a soberania dos
Estados e longe de eliminar os danos colaterais. Esta conduta poderá oferecer a outros
atores do sistema internacional o incentivo para imitarem semelhante comportamento.
Todavia, o que está em causa não será o sistema de armas em si, mas o emprego
operacional que lhe é dado. À medida que o emprego da Guerra Aérea Remota nos é
apresentada como um produto do excecionalismo americano, afirmando-se como
judicioso, legal, eticamente correto e com precisão cirúrgica, surgem-nos dúvidas
acerca do impacto desta conduta para outros atores internacionais. Ou seja, sendo os
EUA um exemplo de liderança mundial, de que forma as justificações legais, morais e
políticas apresentadas serão igualmente aplicáveis a outros países, quando estes
recorrerem à Guerra Aérea Remota para confrontarem ameaças à sua segurança? Mais
ainda, em que medida será moralmente defensável que os EUA condenem tal conduta?
Um estudo recém-publicado pelo Stimson Center (2014) sintetiza estas preocupações e
recomenda inúmeras ações para conferir maior transparência e responsabilização à
conduta de “execuções seletivas”. Entre elas destacam-se a necessidade de efetuar
uma análise custo-benefício acerca da função dos drones letais nos ataques seletivos
contraterroristas; a importância de explicar as bases legais para a condução dos
ataques, assim como o mero aproximado, localização e afiliação dos alvos dos
ataques; as identidades dos civis mortos e o número de ataques executados por forças
militares e pela CIA. Para além disso, os EUA devem empenhar-se no desenvolvimento
de normas internacionais para o uso da força letal fora dos teatros de operações
tradicionais. Desta forma será possível estabelecer precedentes, eventualmente aceites
pela comunidade internacional, para regular o emprego futuro da Guerra aérea
Remota.
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A guerra como a continuação da política por outros meios--- não tripulados
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5. Conclusão
Considerando a Guerra como a continuação de relações políticas, com uma mistura de
outros meios, procumos demonstrar que a preeminência da Guerra Aérea Remota
poderá contribuir para alterar a cultura estratégica dos Estados em recorrer à força
coerciva, para alcançar objetivos políticos.
Na realidade, a irresistibilidade política, fruto da redução de custos associados ao uso
da força, é expressa por um lado no aumento da intensidade, ao nível da discriminação
individual dos alvos, por outro lado, na maior frequência dos ataques, e por fim numa
maior amplitude geográfica do emprego seletivo de força letal. Contudo, esta
irresistibilidade política provoca efeitos boomerang, que ao democratizarem e
civilinizarem ainda mais a Guerra, ameaçam transformar a forma como Estados,
organizações não estatais, e o próprio indivíduo, encaram a conflitualidade, alterando o
seu limiar, a sua frequência, os seus atores e os seus efeitos, fazendo aumentar a
hostilidade e perigosidade do ambiente futuro, por natureza complexo e adverso.
Enquanto outrora a Guerra estava reservada para a consecução dos interesses vitais
dos Estados, ao diminuir os constrangimentos políticos, militares e humanos, a Guerra
rea Remota promove o alargamento dos interesses dos Estados, favorecendo a
opção de resposta militar para concretizar interesses periféricos. Desta forma, e no que
diz respeito aos custos da ação política, constatamos que esta modalidade pode tornar
o processo de decisão política mais ágil, ou mesmo dispensável, uma vez que é
possível empregar capacidades militares num conflito sem necessidade de construir um
amplo consenso político e escrutínio público.
A liberdade de manobra política é também aumentada uma vez que estes sistemas
oferecem mais alternativas estratégicas e a flexibilidade de empregar o instrumento
militar sem o pesado ónus de destacamento de soldados para um território hostil. Ao
diminuírem as necessidades de bases avaadas para suportar destacamentos
militares, reduzem também o valor estratégico de certas parcerias regionais. Assim, os
incentivos estratégicos e morais para tornar esta modalidade cada vez mais precisa e
exercida de forma remota, vão aumentando à medida que a opção por guerras de larga
escala decresce em número e intensidade. É esta redução de custos da ação política
que poderá propiciar ações militares preventivas, em áreas de interesse estratégico,
fazendo perspetivar um aumento da conflitualidade regional, e com ela maiores danos
civis.
Pelos benefícios operacionais e políticos apontados, os drones constituirão uma
capacidade essencial para aumentar a consciência situacional do espaço de batalha, ao
mesmo tempo que possibilitam a aplicação letal da força de forma discreta e precisa.
Isto poderá implicar uma alteração das dinâmicas de poder regional, proporcionando às
pequenas e médias potências uma capacidade acessível para colocar em risco os
Centros de Gravidade adversários, sem os custos, tradicionalmente proibitivos,
associados à projeção de poder. Assim, poderemos assistir a uma valorização das
posturas ofensivas, em certa medida preventivas, em virtude do custo reduzido de
emprego destas capacidades. Ao invés de dissuadir potenciais agressores, parece-nos
mais verosimil, a perspetiva duma corrida aos armamentos na procura do nivelamento
da assimetria, aumentando a proliferação dos drones em modalidades de emprego
potencialmente mais gravosas. Neste caso, os efeitos adversos da vigilância persistente
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e da precisão criam uma presunção de infalibilidade que motiva decisões políticas mais
arriscadas, como os ataques em zonas urbanas.
Relativamente à eficácia estratégica da Guerra Aérea Remota contra atores não
estatais, ela estará dependente, como qualquer outro instrumento militar, da amplitude
dos objetivos dos atores. A aventura americana no Iraque e Afeganistão afastou o
apetite de invadir regiões tribais no Paquistão, ou de ocupação de países como a
Somália, Iémen ou Líbia. No entanto, a necessidade de substituir a opção convencional
por uma solução politica e publicamente mais aceitável, catapultou os drones para um
patamar de requisito operacional urgente.
Numa perspetiva de síntese estratégica, a modalidade de “execuções seletivas” induz
uma panóplia de efeitosboomerang”, que se traduzem numa maior possibilidade de
retaliação terrorista, no recrutamento de novos insurgentes, numa maior complexidade
do relacionamento político e estratégico dos EUA nas áreas geográficas dos ataques,
assim como numa maior desestabilização regional em países como o Paquistão ou
Iémen. Independentemente de se conseguir estabelecer uma relação direta de causa-
efeito, é possível antecipar uma erosão da credibilidade americana na região, que
gradualmente se vai expandindo a nível mundial.
O alastramento desta modalidade a novos teatros e a uma gama de alvos de nível
tico poderá fazer acelerar a oposão, local, nacional e internacional, contribuindo
para um maior enfraquecimento interno dos governos em cujo território ocorrem os
ataques. Assim, poderá diminuir a vontade e a capacidade desses governos em
tomarem ações efetivas contra os insurgentes. Nessa perspetiva, a focalização da
campanha nos alvos de interesse estratégico, em detrimento da eliminação
generalizada de operacionais, oferecerá menores efeitos indesejados. De igual forma, a
transferência do controlo deste programa da CIA para as Forças Armadas poderá
fornecer a tão necessária transparência e responsabilização a uma modalidade ainda
envolta em secretismo.
A armamentização dos drones, como consequência da proliferação tecnológica, é uma
das áreas que pode a médio prazo estar facilmente disponível aos pequenos poderes.
Atendendo ao número de países, e mesmo organizações, que dispõem de drones com
alcance e capacidade de carga substanciais para transportar armamento convencional
ou de destruição massiva, é possível antecipar a disseminação de riscos no panorama
internacional. Esse natural alargamento da base de utilizadores a grupos terroristas,
organizações criminosas e mesmo ao próprio individuo, poderá fazer alastrar a
perigosidade das ameaças que confrontam os Estados.
Ao contrário das armas nucleares, que pelos seus efeitos, dissuadem o seu uso, o custo
de empreender a Guerra Aérea Remota é relativamente baixo, incentivando as nações
mais desenvolvidas a coagirem e imporem a sua vontade a outras nações, com riscos
cada vez mais limitados. A confirmação da prolixidade de intervenções em locais
remotos do globo fazem vislumbrar, de forma embrionária, o esboço da estratégia
aérea do futuro, obrigando-nos a revisitar o relacionamento entre a Guerra e Paz e as
sociedades democráticas. Assim, a combinação invulgar de características como a
distância entre combatentes, a assimetria de combate, a possibilidade de autonomia no
uso da força, assim como a minimização de risco humano e político, confirmam a
modalidade de Guerra Aérea Remota como politicamente irresistível.
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Em conclusão, podemos afirmar que a Guerra Aérea Remota não é um fim em si
mesmo, mas antes de mais, um instrumento primordial para alcançar determinados
fins políticos. Por isso, esta modalidade não pode ser vista como uma solução mágica
para a exiguidade política na determinação dos objetivos de emprego do instrumento
militar.
Tal como as aeronaves foram um dos artefactos tecnológicos que permitiram equilibrar
a assimetria imposta pelo aumento do poder de fogo e do entrincheiramento
característicos da 1ª Guerra Mundial, também os drones se afiguram como uma
possível solução para os problemas táticos contemporâneos impostos pela dificuldade
de localizar, identificar e atacar alvos de reduzida assinatura em zonas remotas do
planeta. Daí a antecipar que estes sistemas se transformem na solução estratégica
para as Guerras atuais e futuras, será certamente uma falácia. E com ela, advirão
consequências profundas para acentuar a erosão da soberania dos Estados e no
consequente aumento da instabilidade das Relações Internacionais.
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OBSERVARE
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DA GUERRA À PAZ: O CONTRIBUTO DOS CORPOS MILITARES COM
FUNÇÕES DE POLÍCIA. A GNR NO IRAQUE
Pedro Miguel Duarte da Graça
duartedagraca@gmail.com
Major do Quadro Permanente do Corpo de Oficiais da Guarda Nacional Republicana (Portugal).
Foi Diretor do 1º Curso de Manutenção de Ordem Pública em Angola e Comandante de Pelotão
Operacional Força Multinacional de Estabilização do Iraque/ Multinacional Specialized Unit. É
Mestre em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais (Universidade
Autónoma de Lisboa), Pós-Graduado em Direito e Segurança e Auditor em Segurança, em
Ciências Militares e Policiais, em Criminologia e Licenciado em Ciências Militares/ GNR. Tem
várias condecorações entre as quais: Ordem Militar de Avis Grau Cavaleiro, atribuída pelo Exmº
Presidente da República, Medalha de Mérito Militar -3ª Classe, Medalha Militar de Comportamento
Exemplar - Graus Prata e Cobre, Medalha Comemorativa de Comissões de Serviço Especiais, com
passadeira “IRAQUE 2004” e “ANGOLA 2006”, Medalha de serviços distintos de Segurança
Pública - Grau Prata, Medalha de Assiduidade de Segurança Pública - uma estrela e Medalha
Militar de Ouro de Serviço Distintos com Palma - colectiva.
Resumo
Com a alteração da natureza dos conflitos, a complexidade dos teatros de operações e as
exigências operacionais, as instâncias de controlo formal internacional passaram a
empenhar Forças internacionais com capacidades militares e civis, nomeadamente de
Polícia.
A Guarda Nacional Republicana desde finais do século passado tem atuado na estabilização
de vários conflitos um pouco por todo o mundo.
Esta participação foi sempre após resolução da ONU, enquanto instância de poder
habilitativo, mas nunca enquadrada numa força multinacional da OTAN. Contudo, já atuou
sob doutrina da mesma para o emprego de forças constituídas com base em Corpos
Militares com Funções de Polícia, as Multinational Specialized Units.
A Guarda Nacional Republicana caracteriza-se como um Corpo Militar com capacidade
especializada para contribuir para a Paz. Esta competência distintiva decorre do
desempenho de todo o espetro das Funções Policiais em ambiente instável, com uma
capacidade ímpar para superar o Security Gap, através da sua projeção inicial com o
instrumento militar, com capacidade de recurso à força de forma legal promovendo um
comprehensive approach ao sistema de segurança e judiciário.
Esta capacidade holística vai para além da abordagem puramente institucional, vai ao
encontro da Função de Polícia em ambiente instável e o seu contributo para a prossecução
credível da potica externa do Estado Português nas Operações de Imposição da Paz.
.
Palavras chave:
Militar; Polícia; Ambiente instável; Paz; Security Gap
Como citar este artigo
Graça, Pedro Miguel Duarte da (2014). "Da guerra à paz: o contributo dos corpos militares
com funções de polícia. A GNR no Iraque". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 5, N.º 2, novembro 2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art5
Artigo recebido em 6 de agosto de 2014 e aceite para publicação em 2 de outubro de
2014
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Da guerra à paz: o contributo dos corpos miilitares com funções de polícia: a GNR no Iraque
Pedro Miguel Duarte da Graça
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DA GUERRA À PAZ: O CONTRIBUTO DOS CORPOS MILITARES COM
FUNÇÕES DE POLÍCIA. A GNR NO IRAQUE
Pedro Miguel Duarte da Graça
Introdução
Em 2003, no advento da guerra do Iraque, Portugal marcou uma posição política no
futuro do conflito, secundada pela disponibilidade de Forças constituídas para a
Operation Iraqi Freedom. A coligação militar foi constituída ad-hoc, fora da OTAN, mas
baseada na sua doutrina.
Neste quadro de ação da política externa portuguesa, a escolha de uma Força
constituída recaiu na Guarda Nacional Republicana (GNR).
Muito se escreveu e mais se disse relativamente ao envio deste Corpo Militar para o
Iraque, supostamente em detrimento das Forças Armadas (FFAA). O racional presente
nesta argumentação não pode ser o institucional, a lógica de análise deve ser outra, a
funcional, numa visão de comprehensive approach (NATO, 2010b: 2-11), orientada
para o statebuilding, e de criação de um jus post bellum que os conflitos modernos
requerem, salvaguardando a atuação em ambiente instável (Kaldor, 2006: 6).
Passados 10 anos da participação da GNR no conflito iraquiano, o apresente artigo
reveste-se de singular relevância científica porque vai para além da instituição, vai ao
encontro do que é a Função de Polícia em ambiente instável e o seu contributo para a
prossecução da política externa portuguesa (Guedes A. M. & Elias L., 2010).
I. Estudos para a Paz
O norueguês Johan Galtung, considerado o criador dos Estudos para a Paz, em meados
do século XX adotou conceptualmente uma visão dual da Paz, a paz negativa «(…)
absence of war (…)» e a Paz positiva «(…) integration of human society (…)» (1964: 2).
O objeto dos Estudos para a Paz é a violência/ não-violência, indo além dos estudos da
guerra (Galtung, 1969: 168-174; Boulding, 1990: 4-5).
Posteriormente, o autor enuncia como modelo idealizado o que apelida detriângulo da
violência, fazendo coincidir com o mesmo o triângulo da Paz. A cada rtice faz
coincidir um tipo de vioncia: direta, estrutural (1969) e cultural (1990), a que
contrapõe um tipo de paz. A violência direta (pessoal), enquanto ato de agressão
intencional; a violência estrutural (indireta), como reflexo da estrutura social; a
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violência cultural (simlica), constituindo-se como sustentáculo de legitimação da
violência direta e a estrutural (Galtung, 1996: 2).
Os Estudos para a Paz, enquanto disciplina socialmente produtiva, garantiram os
pressupostos teóricos para que a ONU elaborasse quanto à questão um quadro prático
com ela consentâneo. Este foi firmado através de «An Agenda for Peace. Preventive
diplomacy, peacemaking and peace-keeping» (UN, 1992), abarcando os conceitos de
peacebuilding e peace enforcement, indo ao encontro da teoria de Galtung, «Three
Approaches to Peace: Peacekeeping, Peacemaking, and Peacebuilding» (Galtung,
1975).
Ilustração 1- Triângulo da Paz
Fonte: Galtung (1990), adaptado
Kofi Annan realizou uma abordagem da segurança que entronca nos conceitos de
Galtung, ao deixar de centrar a mesma no Estado, passando a integrar o indivíduo, a
designada segurança humana (UN, 2000).
Galtung afirma que num conflito:
"[m]ilitary training is indispensable: to contain violence.
Knowledge of the means of violence and the mentality behind their
use is needed. But, for ‘crowd control police training may be
better, more based on a show of authority and minimum use of
violence (…) come active nonviolence training, also training to
train the local population, and training in conflict mediation
techniques (…)" (Galtung, 1996: 270).
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O autor identifica como sendo essencial o treino militar para lidar com a violência,
podendo ser melhor para a manutenção da ordem pública o treino policial.
O conceito de Paz positiva de Galtung foi acolhido pela ONU. Perante a necessidade de
alcançar a segurança, para garantir a Paz, releva saber: quais a ameaças atuais, de
que forma as operações de imposição da paz constituem resposta para atuar em
Ambiente Instável e como estas são enquadradas e executadas pela OTAN (ou eram, à
época).
II. Imposição da Paz O Ambiente Instável
1. As ameaças à segurança
O surgimento das “novas guerras” (Kaldor 2006), mais que a originalidade das
mesmas, identificam o risco associado ao declínio do Estado, com base em ameaças
latentes durante a Guerra Fria, que o fim da mesma veio confirmar (Rasmussen, 1999:
43).
Atualmente, a ONU define a ameaça (UN, 2004: 12) e identifica uma forte preocupação
com seis tipos desta:
(i) a guerra entre Estados;
(ii) a violência no interior dos Estados (guerras civis, violações maciças dos direitos
humanos, genocídio, etc.);
(iii) ameaças económicas e sociais, como a pobreza, as doenças infetocontagiosas e a
degradação do ambiente;
(iv) as armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas;
(v) o terrorismo;
(vi) o crime transnacional organizado (Idem: 32).
Estas “novas ameaças”, sendo uma mistura de
"(…) war, crime and human rights violations (…)» (Idem: 12),
requerem uma abordagem entre a missão do soldado e do polícia,
num contexto em que «[o] exército e a polícia parecem estar a
mudar de papel ()" (L’Heuillet, 2004: 199).
O ambiente instável e imprevivel, o crescente número de riscos transnacionais e
consequentes desafios parecem justificar a emergência de uma terceira Força. Esta tem
capacidade de atuar na segurança interna estatal, estando simultaneamente preparada
para fazer face às ameaças que sendo externas influam internamente, como sejam o
crime organizado transnacional, o tráfico de droga ou o terrorismo (Lutterbeck, 2004).
Estas Forças, são, no essencial, um produto dos séculos XIX e XX, resultantes das lutas
entre as ordens internas Westphalianas e dos internacionalismos então crescentes,
assumindo como principal objetivo amanutenção da lei e da ordem ao nível interno,
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tendo ainda a capacidade de atuar em conflitos externos as Gendarmeries.
Descendentes da Gendarmerie francesa, estas Forças, organizadas numa linha militar,
com Funções de Polícia, têm demonstrado ser um excelente instrumento para uma
intervenção eficaz no pós-conflito.
Conforme Richard H. Solomon identifica, nomeadamente no conflito Iraquiano, existe
um problema,
"(…) military peacekeepers are able to stop conflict by separating
combatants or by ousting hostile, repressive regimes; however,
they are not trained or equipped to restore self-sustaining order
and stability to a society in a post conflict environment." (Perito,
2004: ix).
O princípio base é que não basta conquistar a ordem, tarefa a cargo das FFAA. É
necessário ter capacidade de manter a mesma, respeitando a liberdade cívica, o que
exige uma abordagem holística, mais abrangente e integrada que a alcançada pela
resposta exclusivamente militar. É no pós-conflito que emergem as Gendarmeries,
titulares de uma aptidão única de recorrer à força mínima em situações de máxima
violência (Zimmermann, 2005), garantindo a ordem pública através da aplicação da lei.
Os Corpos Militares com Funções de Polícia «(…) can serve as a bridge between the
military and civil police and can handle tasks that do not clearly fall within either
camp.» (Perito, 2004: 5). Este elo, de cariz institucional e funcional, pode e deve ser
mantido nas diferentes fazes do conflito, numa conjuntura em que o mundo ocidental
necessita de uma nova abordagem relativamente ao tipo de Forças a utilizar em
operações de pós-conflito (Field & Perito, 2002-03).
2. Imposição da Paz, Ambiente Instável uma aproximação
O ordenamento jurídico nacional, através da Portaria 87/99, de 30 de dezembro de
1998, define os países cuja classifição permite identificar o tipo de ambiente
operacional. Esta classificação é gradativa de “A” a “C”, em que a última tem o
ambiente operacional mais complexo, mais instável. As operações de imposição de paz
enquadram-se na classe “C”.
«Os países ou territórios em situação de guerra, conflito armado interno ou insegurança
generalizada e ainda aqueles em que se verifiquem graves condições de
salubridade
iii
Nas Operações para a Paz, nomeadamente as de Imposição da Paz, as Forças têm
deparado com aquilo que a doutrina tem apelidado de Security Gap.
.
III. Security Gap
Os atuais conflitos requerem cada vez mais uma abordagem, que entre outros, integre
o instrumento militar e o policial, «(…) between soldiering and policing.» (Kaldor, 2006:
133). As operações para a paz são o mecanismo utilizado pela comunidade
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internacional, que nos últimos anos «(…) have increasingly required the participation of
both military personnel and civilian police(Oakley, Dziedzic, Goldberg, 1998: 6).
O autor remete-nos para o conceito de Security Gap, enquanto ausência de capacidade
para exercer a mais básica das funções do Estado, proteger os seus cidadãos. A Força
multinacional, que tenha a responsabilidade de restaurar a ordem e a lei com justiça,
depara-se objetivamente com três Security Gaps: Deployment Gap, Enforcement Gap e
Institutional Gap (Idem: 8-16).
Ilustração 2- Conceptual Framework
Fonte: Oakley, Dziedzic, Goldberg (1998: 5).
Para promover a Paz é necessário garantir a ordem, a lei e a justiça. A (i) ordem atua
ao nível violência direta, de agressão física, verbal ou psicológica, afastando os efeitos
pidos e dramáticos; (ii) a lei e a justiça ao nível da violência estrutural (indireta),
auxiliando na consolidação de uma estrutura social justa, esbatendo a assimetria entre
o real e o potencial; (iii) atuando também ao nível da violência cultural, promovendo
valores, normas e comportamentos que não legitimem socialmente a violência
estrutural e a vioncia direta.
Para restabelecer a ordem é necessária uma Força Internacional com capacidade
Militar. Subsequentemente, com a ordem deve passar a coabitar a lei, sendo essencial
uma Força com capacidade de Funções de Polícia. O lapso de tempo entre as duas
capacidades denomina-se deployment gap, devendo ser diminuído, se possível pela
integração das Forças.
Na fase seguinte, é necessário cumprir funções que não são desempenhadas nem pelo
instrumento militar puro, nem pelo instrumento policial puro, é imprescindível garantir
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a continuidade funcional e institucional em ambiente instável, superando o Enforcement
Gap.
Na terceira fase é necessário reconstruir as estruturas locais. Para tal, devem ser
empenhadas em cada área, as instituições que sejam especialistas na mesma, que seja
o seu core business. Para tal, é necessário preencher a institutional gap, recorrendo a
Forças que pelas missões que cumprem diariamente nos países de origem tenham uma
comprehensive approach, criando as condições de desenvolvimento para uma Paz
sustentável em segurança.
Estas Security Gaps apelam a Forças com capacidade de Corpo Militar e de Funções de
Polícia, podendo: ser projetadas com o instrumento militar, desempenhar Funções de
Polícia mesmo em ambiente instável, laborar no terreno em permanente ligação ao
sistema legal na promoção e construção do sistema de segurança. Estes Corpos
Militares com Fuões de Polícia são conhecidos como: Gendarmerie, Carabinieri,
Guardia ou Constabulary. (Jayamaha et al., 2010: 148; Oakley, Dziedzic, Goldberg,
1998: 519-520, 330; Perito, 2004: 5).
As Secutity Gaps podem ainda apelar para funções de Polícia pura e simples, embora
com menor eficácia nos casos mais polarizados (Elias, 2006).
Tanto num como noutro, aquilo que está em causa é o statebuilding amparado por um
jus post bellum emergente (Guedes, 2011).
IV. Corpos Militares com Função de Polícia
A origem destas instituições remonta ao século XIV francês, aquando da Guerra dos
Cem Anos, as Marechaussees. Estas tropas dos marechais tinham uma dupla função,
judiciária e de manter o equilíbrio interno. Fuões próximas do que, hoje, apelaríamos
de jurídico-policiais.
Posteriormente, estas tropas adquiriam um verdadeiro estatuto militar e uma nova
designação Gendarmerie. Este modelo deu origem a instituições semelhantes em
vários países, como a Guarda Real de Polícia em Portugal, os Carabinieri no Reino da
Sardenha, a Marechaussee na Holanda e a Guardia Civil em Espanha. Como
características comuns, identificamos a natureza militar e as funções policiais,em
ambos os casos avant la lettre.
Os países anglo-saxónicos, tantas vezes citados, apresentam uma designação
diferente: Constabulary
iii
«[t]he ambiguous and conflicting definitions of a constabulary can be clarified by
looking at the specific organizations and functions of constabulary forces in democratic
countries [, like] France, Italy, the Netherlands, Spain (…) (Perito, 2004: 37).
. Conforme o americano Robert Perito refere,
Estas definições afastam termos como: paramilitar, militarizado ou polícia militar, esta
última enquanto polícia responsável pela disciplina das FFAA (Scobell & Hammitt,
1998).
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1. Militar
A identificaçãode “Corpo Militar” é realizada enquanto grupo de militares organizados,
com uma cultura institucional própria e subordinado ao poder político, tendo por base
três elementos: deveres, pela abordagem estatutária; condicionalismos, no que
concerne à restrição de direitos; deontologia, através dos valores.
2. Função de Polícia
A doutrina tende a agrupar as Funções de Polícia em judiciária e administrativa. Esta
última é subdividida em polícia administrativa “geral” e “especial” (Correia, 1994: 407).
A função judiciária tem como principal finalidade a repressão e como objeto os ilícitos
criminais. Para exercer à investigação dos ilícitos criminais é essencial ter a qualidade
de órgão de polícia criminal (OPC), dependendo os mesmos funcionalmente da
Autoridade Judiciária.
À polícia geral cabe a prevenção de perigos à ordem e segurança pública. Enquanto a
polícia especial exerce as suas compencias relativamente a um determinado ramo do
direito. (Castro, 2003: 97)
A Guarda Nacional Republicana, no conjunto das suas capacidades, enquanto Corpo
Militar no desempenho de todas as Funções de Polícia, detêm
"(…) uma capacidade de adaptação a diversificados cenários e a
diferentes situações. Em suma, possuem uma versatilidade e
polivalência incomparavelmente superior, quer à das Forças
Armadas em sentido clássico, quer à das polícias civis" (Branco,
2010: 37).
3. Continuidade, proximidade, dualidade
Os Corpos Militares com Funções de Polícia caracterizam-se pela natureza militar e
versatilidade de funções, militares e policiais. As Gendarmeries, ao exemplo da Guarda
Nacional Republicana, são ainda caracterizadas por três princípios: continuidade,
proximidade e dualidade, (Branco, 2013). Os dois primeiros remetem-nos para a
génese funcional das Gendarmeries, enquanto a dualidade é uma consequência.
A continuidade acolhe pressupostos, como: (i) o posicionamento institucional, pela
permanente ligação entre as instituições militar e civil; (ii) a polivalência de funções,
pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais; (iii) a capacidade de
desempenho funcional em ambiente instável.
A proximidade resulta da dispersão pelo território nacional, através de uma malha
territorial. Esta implementação, enquanto “Força de quadrícula”, o conhecimento
efetivo do terreno, da população e das infraestruturas,
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"(…) que, aliado à disponibilidade permanente que caracteriza o
“gendarme” e conjugado com o princípio do aquartelamento, o
torna muito próximo das populações" (Idem: 207).
A dualidade é consequência dos Corpos Militares com Funções de Polícia coabitarem
com as polícias. Deste princípio advém da não concentração de todo o poder policial
numa única instituição. Bem como o reforçado do poder judiciário, quer no exercício do
controlo da atividade policial, quer no exercício da direção da ação penal. Esta última,
através da escolha do OPC a quem serão atribuídas, em concreto, as competências de
investigação criminal.
V. Multinational Specialized Unit
A complexidade dos teatros de operações e as exigências operacionais ensinaram as
instâncias de controlo formal internacional a apelar ao empenhamento de Forças
internacionais com capacidades militares e civis.
No decorrer da Stabilization Force in Bósnia (1998), a OTAN identificou a necessidade
de preencher o vazio que existia entre a componente militar e não militar, entre a
atuação das Forças militares e da polícia civil, desarmada e sem capacidade para fazer
cumprir a lei, the Security Gap (Paris: 2004).
A solução apontada foi a utilização de Corpos Militares com Função de Polícia (tipo
Gendarmeries ou Carabinieri). A ideia foi de imediato acolhida pelos italianos, tendo os
mesmos desenvolvido o conceito de Multinational Specialized Units (Carabinieri: 2003;
Paris: 2004). Genericamente, o conceito integra: (i) Unit unidades constituídas de
forma temporária, para cumprir uma missão, integrada numa Força militar, para atuar
no âmbito de uma operação para a paz; (ii) Multinationalem virtude da sua
composição ter por base Corpos Militares com Funções e Polícia de vários países; (iii)
Specialized enquanto ferramenta especializada dentro do instrumento militar que
permite ao Joint Force Commander (JFC) atuar perante a Security Gap.
A OTAN, através das MSU, integra nas suas Forças uma capacidade especializada que
lhe permite reorientar uma atuação de paz negativa para uma de Paz Positiva,
recorrendo para tal à competência distintiva dos Corpos Militares com Funções de
Polícia.
VI. A GNR na Operation Iraqi Freedom
1. Situação
Após o términus dos combates em maio de 2003, as Nações Unidas, através da
resolução n.º 1438 e posteriormente da resolução n.º 1511, criam uma Missão de
Imposição da Paz, apelando ao desenvolvimento de condições de segurança e
estabilidade que permitissem o auxílio humanitário e a reconstrução do país. O
Governo português decidiu participar na missão, mas deparou com um problema difícil,
uma vez que o Presidente da República, enquanto Comandante Supremo das Forças
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Armadas, se recusou a permitir a atuação destas no Iraque. A solução foi simples. A
decisão de um Governo que, depois da Cimeira das Lajes, estava apostado em juntar-
seà coligação liderada pelos EUA foi o envio da Guarda, uma vez que esta
organicamente dependia (tal como agora) do MAI e não da Presincia.
A 15 de julho de 2003, o Governo português, através da Port.ª n.º 1164, decide «(…)
prestar apoio às forças da coligação em manutenção da paz e ordem no Iraque (…).»,
tendo fixado a duração do mesmo em seis meses, prorrogáveis por iguais períodos. O
diploma qualificou o Iraque como um país do tipo “C”. Para o efeito foi constituída uma
Força, denominada Subagrupamento ALFA, composta por um efetivo máximo de 140
militares;
No período compreendido entre 12 de novembro de 2003 e 10 de fevereiro de 2005, a
Guarda Nacional Republicana manteve-se em solo iraquiano através de quatro
contingentes.
2. Área de operações
A área de responsabilidade correspondia a toda a província de Dhi Qar, cuja capital é
An Nassiriya. A província tem uma dimensão aproximada de 200 km por 140 km e
cerca de 1,8 milhões de habitantes, sendo as principais cidades Ash Shatrah e Suq Ash
Shuyukh.
3. As capacidades da companhia MSU da GNR
Analisando a capacidade
iv
da companhia MSU da GNR verificamos:
Doutrina
A doutrina da OTAN, de emprego de uma Força militar com Funções de Polícia.
(Carabinieri, 2003: 3-4; allegato A; NATO, 2001: 4-10, 4-11; 2010a: 3-9; 2010b: 2-8).
Organização
O Subagrupamento ALFA tinha na sua organização: comandante e 2º comandante,
quatro Pelotões, sendo um de apoio e três de intervenção, uma Secção de Operações
Especiais (SOE), uma Equipa de Inativação de Engenhos Explosivos Improvisados
(EIEEI) e uma Equipa de instrutores.
Treino
Complementarmente à formação profissional adequada às Funções de Polícia, todos os
efetivos tinham formação militar. A normalização da doutrina militar, através de
conhecimentos operacionais e táticos necessários ao cumprimento das missões
militares, foi determinante para garantir, nomeadamente, a “autotutela defensiva”
perante qualquer ataque.
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Material
O material era funcionalmente idêntico ao material italiano, quer no âmbito militar,
quer no policial. Ambos os contingentes possuíam armas não letais/ menos letais. Um
fator decisivo foi a capacidade do sistema de transmissões/ comunicações. (GNR, 2010:
36).
Liderança
A cadeia de Comando da qual, da contingente português dependia, tinha no topo o
Secretário de Defesa dos EUA, o comandante do Central Command (CENTCOM) e o
comandante do Combined Joint Task Force. O controlo Operacional era exercido pela
Multinational Division on South-East (MND-SE), através da Brigada Italiana, onde
estava inserido Regimento MSU. O comando operacional era exercido dentro da cadeia
de comando portuguesa, a que acrescia a experiência no exercício dos diferentes tipos
de autoridade, militar e policial.
Pessoal
O recrutamento foi realizado com base no voluntariado. Após os exames auxiliares de
diagnóstico foi elabora proposta de nomeação por escolha. (GNR, 2010: 14).
Todo o pessoal empenhado era militar, agrupados hierarquicamente em oficiais,
sargentos e guardas/ praças. A exceção ocorreu através da participação de um médico
no primeiro, segundo e terceiro contingentes.
Os militares detinham experncia no desempenho de Funções de Polícia em Portugal,
nomeadamente enquanto agentes da força pública e de autoridade, bem como de
órgãos de polícia criminal.
Tabela 1 – Efetivos da Guarda por contingente
Contingente Data
Efetivo
Oficiais
Sargentos
Praças
Civis
Total
Primeiro NOV03 a MAR04 6 12 110 1 129
Segundo
MAR04 a JUL04
5
14
121
1
121
Terceiro
JUL04 a NOV04
5
13
109
1
128
Quarto
NOV04 a FEV05
5
13
109
127
Total
21
52
449
3
505
Fonte: GNR (2010)
Ao nível do moral e bem-estar foi constituída uma “Comissão de Acompanhamento e
Apoio das Famílias dos Militares em serviço no Iraque”.
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Infraestruturas
O Subagrupamento ALFA ficou inicialmente na cidade de An Nassiriya, Base Libecchio e
posteriormente no quartel de Camp Mittica, em Tallil, antiga base da Força Aérea
Iraquiana. Este quartel distava da capital da província cerca de cinco quilómetros, no
qual foram atribuídas ao contingente português cinco habitações de alvenaria que
pertenciam aos Oficias da Força Aérea Iraquiana. (Cruz, 2010: 346)
Interoperabilidade
Contribuíram para a interoperabilidade, entre outros, os seguintes fatores:
(i) Emprego de Forças do mesmo tipo, Corpos Militares com Funções de Polícia;
(ii) Uniformização e normalização da doutrina militar OTAN, que permitiu a
interoperabilidade deticas, técnicas e procedimentos, operacionais e logísticos;
(iii) A organização modular e flexível (MSU), com base na orgânica típica comum aos
países da OTAN;
(iv) Formação idêntica, ao nível militar e policial;
(v) Treinos conjuntos anteriores com as Forças italianas, consolidados durante a
missão;
(vi) Material funcionalmente idêntico, de uma Força ligeira de infantaria e de Força de
segurança, dispondo de armas não letais/ menos letais e de viaturas blindadas da
mesma marca e modelo;
(vii) A clara atribuição de graus de autoridade: Comando Operacional, Controlo
Operacional e Controlotico;
(viii) Constituição da Força com efetivo militar que integra os respetivos Corpos
Militares nacionais, com experiência diária no desempenho de Funções de Polícia,
numa comprehensive approach ao sistema policial e judiciário;
(ix) A presença de oficiais de ligação portugueses aos diferentes níveis e a partilha de
informação;
(x) A interoperabilidade do sistema de transmissões português complementarmente
com o centro de comunicações comum às Forças italianas, romenas e
portuguesas, permitiu incrementar o comando e controlo, bem como a partilha de
informação.
4. Atividade Operacional Desenvolvidas no Iraque
Durante a missão, foram atribuídas ao Subagrupamento ALFA as seguintes operações/
tarefas policiais (Cruz, 2010: 347-349; Silvério, 2004: 3-5):
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Guardas
Complementarmente às outras missões, foram realizadas guardas de pocia aos locais
onde a Força portuguesa estava estacionada. Primeiro em Libeccio e posteriormente,
na Base Tallil, Camp Mittica, tendo por objetivo garantir a segurança das instalações e
das pessoas 24h por dia.
Radio On Call (ROC)/ Quick Reaction Force
Neste tipo de servo era nomeada uma Força que se constituía como reserva, podendo
aquele ser executado de forma estática ou dinâmica. A primeira consistia em manter
uma Força de prevenção, em Camp Mittica, na Base de Tallil: para responder a
situações inopinadas, normalmente relacionadas com graves alterações da ordem
blica, em reforço da policia local ou em substituição desta; ou preparado para dar
apoio a uma força que estivesse em missão no exterior. Na segunda era constituída
como apoio, nas proximidades da localização de uma Força a que fosse atribuída uma
missão. (GNR, 2004)
Manutenção e restabelecimento da ordem pública
Estas operões visam restabelecer a lei e a ordem como garante do estado de
normalidade da vida social (GNR, 2004). Foram várias as situações de intervenção da
GNR, sempre com sucesso.
Check-point/ barragem de estrada
Esta operação era realizada para garantir o controlo e fiscalização de viaturas,
indivíduos e coisas transportadas, relacionados com crimes graves (GNR, 2004), no
caso em concreto dos crimes de tráfico de armas e de obras de arte.
Escoltas
Operação executadas para garantir a segurança do deslocamento de entidadesno
exterior da Unidade, nomeadamente: altas entidades portuguesas que visitaram o
contingente portugs, o comandante e outros militares da MSU, os instrutores,
entidades do exército italiano, detidos e outras.
Segurança física
Serviço realizado para garantir a «(…) segurança, a locais, áreas, itinerários,
instalações ou entidades (… (GNR, 1996b: IX-106), o que ocorreu na província de
Dhi Qar, nomeadamente aquando dos processos eleitorais locais e nacional.
Inativão de engenhos explosivos (IEE)/ Explosive Ordnance Disposal (EOD)
No âmbito deste serviço, pela sua similitude, foi estabelecida uma forte ligação entre a
Equipa Portuguesa e a Equipa EOD (Explosive Ordnance Disposal) do exército italiano.
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Desempenharam tarefas de destruão de substâncias explosivas apreendidas em
operações policiais, inativação de engenhos explosivos, execução de reconhecimentos
preventivos de explosivos, elaboravam pareceres técnicos relacionados com o serviço.
Nesta área, o serviço mais relevante ocorreu a 10 de novembro de 2004 com a
neutralização de um veículo-bomba com cerca de 65Kg de explosivos.
Operações de risco elevado (Golpe de mão e Busca)
Operações policiais dirigidas a atividades criminosas violentas, que consistiam na
procura de objetos relacionados com a prática de crime, ou que lhe possam servir de
prova, e que devam ser apreendidos, ou de pessoas que devam ser detidas (GNR,
1996b: IX-37-59). Foram efetuadas mormente com os efetivos da Secção de
Operações Especiais. Compreenderam missões de entradas de alto risco em residências
para cumprir mandatos judiciais, segurança a altas entidades.
Revista feminina
Na cultura árabe o contacto entre um homem e uma mulher tem padrões sociais bem
definidos. Por forma a salvaguardar a segurança da Força, sem ostracizar, transmitindo
simultaneamente os valores e uma cultura policial moderna, foi criada a Equipa de
revista feminina, composta por três militares do género feminino, única em todo o
Regimento MSU. Como missão, revistavam sempre que necessário as mulheres
iraquianas. Essencialmente eram duas as situações: diariamente revistavam as
mulheres iraquianas assalariadas que trabalhavam em Tallil; sempre que necessário
em apoio às operações policiais de todo o Regimento MSU.
Serviço Auto GRILL
Consistia em garantir o regular abastecimento de combustível à população, evitando a
inflação dos preços e o contrabando. Era verificada a quantidade de combustível
existente nos depósitos, comparada a quantidade registada como saída com a
registada como vendida, o preço de venda e a forma como estava organizado o serviço
(GNR, 1996b: I-5 – I-12).
Patrulhas
Eram realizadas patrulhas apeadas e em viatura, como forma de policiamento de
proximidade, destinadas à proteção de pessoas e bens, velando pelo cumprimento do
mandato legal, com vista a garantir normal funcionamento da vida em sociedade. Foi
desenvolvido com caráter essencialmente preventivo, constituindo uma excelente
forma de obtenção de informação (GNR, 1996b: I-13). A execução do patrulhamento
tinha dois grandes objetivos: monitorizar e aconselhar a polícia local quanto às Funções
de Polícia; salvaguardada a segurança destes, bem como da província e da cidade.
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Reforma do Setor de Seguraa
Na província Dhi Qar, a polícia local e a polícia de trânsito não eram respeitadas e não
tinham formação técnica adequada. Sob a orientação e o programa definido pela
Autoridade Provisória da Coligação, a polícia foi reorganizadas, treinada e monitorizada
pela MSU. Na Reforma do Sistema de Segurança a participação portuguesa
desenvolveu-se em três áreas: criar condições materiais/ físicas para o desempenho
das Funções de Polícia, concomitante com a formação e o mentoring.
Formação/ treino
A formação era ministrada por portugueses e italianos. A Equipa de instrutores
portugueses era constituída por três militares, um sargento e dois guardas, que se
deslocava diariamente para as instalações da polícia de trânsito, em An Nassiriya, onde
era ministrada a formação. Entre os conteúdos programáticos encontravam-se: direitos
do homem, direitos dos detidos, ética policial, técnica policial, etc.;
Após a formação em sala de aulas, a polícia voltou a desempenhar Funções de Pocia.
Numa primeira fase a pocia era acompanhada pelos formadores e posteriormente
pelas patrulhas da MSU, verificando-se melhoria na qualidade do serviço policial e o
incremento do respeito da população para com a polícia.
Os portugueses colaboraram de forma ativa na formação da polícia iraquiana, tendo
atingido só no 2º contingente 1 800 polícias formados.
Mentoring
O serviço tinha como objetivo verificar as condições de trabalho, analisar as suas
carências e fazer um levantamento do número de polícias por esquadra, conferir os
respetivos cartões de identidade e o armamento existente, designadamente às
esquadras que se situavam nas localidades de Al Islah, Sayyid Dakhil, Al Fuhood, Al
Fudlija e Al Tar. Foi ainda monitorizada a entrega de uniformes e armamento. Após
criadas as condições materiais para o desempenho das Funções de Polícia, ministrada a
formação, o enfoque direcionou-se para o etos policial e os respetivos procedimentos.
Fator determinante para desenvolver esta missão foi o comprehensive approach ao
sistema policial e judiciário por parte da GNR.
Missões militares
A GNR não foi pra o Iraque «exercer tarefas militares», nem o podia seguramente ter
feito pelos motivos políticos internos atrás aduzidos. Contudo, como advém da sua
formação militar, sempre que foi atacada exerceu a “autotutela defensiva” com base
nas técnicas, táticas e procedimentos militares ou quando era atribuída uma missão
essencial à segurança da Força
v
vi
Missões de vigilância e de ligação entre forças fixas ou móveis patrulhas anti
morteiro: a partir dos incidentes de 14, 15 e 16 de Maio de 2004, foram determinadas
patrulhas anti morteiro, cujo objetivo era evitar ataques com morteiros. Este tipo de
serviço consistia em patrulhas realizadas em viatura, efetuadas no perímetro exterior
. Entre as quais cumpriu:
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da base de Tallil, num raio de 5 km. Foram detetadas por patrulhas portuguesas pelo
menos duas posições de lançamento de morteiros/ foguetes;
Missões de operações especiais: aquando dos incidentes de 14, 15 e 16 de maio de
2004 a SOE auxiliou na exfiltração de unidades sujeitas a fogo adversário,
"Under constant fire by 100 militiamen, Carabinieri parachutists
and Portuguese gendarmes arrived at Libeccio base in a column of
16 military vehicles and 2 Centauros to facilitate evacuation."
(Cappelli, 2005: 60)
sendo ainda empregue em 5, 6 e 29 de agosto de 2004;
Missões no âmbito da segurança de áreas da retaguarda: Aquando dos incidentes de 06
de abril, a 14, 15 e 16 de maio, 5 e 6 de agosto;
No quadro seguinte apresentamos uma proposta taxinómica em que conjugamos as
operações/ tarefas policiais desempenhadas pela Guarda no Iraque, com o respetivo
vértice do triângulo da violência e a correspondente Security Gap.
Tabela 2 – Conjugação das tarefas da GNR no Iraque com o triângulo da violência e a
Security Gap
Operação/ tarefa
Violência Security Gap
Direta
Estrutural
Cultural
Deployment
Enforcement
Institutional
Guardas
X
X
Radio On Call X X X X
Manutenção e restabelecimento da
ordem pública
X X X X
Check-point/ barragem de estrada
X
X
X
X
Escolta
X
X
X
X
Segurança física
X
X
X
X
Inativação de Engenhos Explosivos
(EOD)
X X X X
Operações de risco elevado
X
X
X
X
Revista feminina X X X X X
Auto GRILL
X
X
X
X
X
Patrulha
X
X
X
X
X
Formação/ treino
X
X
X
Mentoring
X
X
X
Verificamos que as tarefas que a GNR desenvolveu tinham influência no triângulo da
violência, nomeadamente nos vértices da violência estrutural e direta.o obstante se
verificarem menos tarefas relacionadas com a violência cultural, são estas que vão
perdurar no futuro pelas sementes que lançaram.
No que concerne à Security Gap verificamos que a atuação da GNR contribuiu para
debelar a institutional gap e a enforcement gap. Esta constatação resulta de dois
fatores: no auxílio da GNR à consolidação da estrutura social, como resulta do seu
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trabalho diário em Portugal, numa comprehensive approach ao sistema de segurança e
legal; a continuidade no desempenho funcional da Guarda que advém da polivalência
de funções, pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais, e do
posicionamento institucional, pela permanente ligação entre a instituição militar e a
instituição civil. Verifica-se que a GNR não foi empenhada para preencher a deployment
gap, embora estivesse preparada para o efeito.
O Subagrupamento ALFA caracterizava-se por ser uma Força de intervenção rápida
motorizada, que estava permanentemente disponível para responder às exigências
operacionais e a impor-se de uma forma proficiente às ameaças à paz, no âmbito das
missões que lhe eram atribuídas (Silvério, 2004: 5).
O contingente português, em todo o período que esteve no Iraque, manteve um alto
nível de operacionalidade e de disponibilidade. A proficiência aliada ao facto de ter sido
alvo de vários ataques mas com zero baixas, foi motivo de elogio público de várias
instâncias internacionais e nacionais, que muito dignificaram o país e a Guarda Nacional
Republicana. Esta foi a primeira unidade portuguesa condecorada com Medalha de Ouro
de Serviços Distintos com Palma, por ação em missões de apoio à paz
vii
.
"Orgulhamo-nos do papel que o Subagrupamento Alfa da GNR tem
desempenhado neste processo (…)Portugal demonstrou, uma vez
mais, que é um contribuinte relevante para a manutenção da paz e
da segurança internacionais (…)" Pedro Santana Lopes, Primeiro-
ministro
viii
.
VII. Conclusão
A Guarda Nacional Republicana nos últimos anos tem sido chamada a intervir em vários
conflitos um pouco por todo o mundo.
Esta participação foi sempre após resolução habilitante, mas nunca enquadrada numa
Força multinacional da OTAN. Contudo, já atuou sob doutrina da mesma para o
emprego de forças constituídas, com base em Corpos Militares com Fuões de Polícia,
as Multinational Specialized Units.
A Guarda quando integrada numa organização internacional habilitada, para o uso da
força, operacom capacidade no campo militar e policial e de continuidade entre os dois.
A continuidade é assegurada pela permanente ligação entre as instituições militar e
civil, pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais, bem como pelo
desempenho destas últimas em ambiente instável.
A formação assegura a integração da doutrina militar em articulação com as FFAA,
sendo o garante da preparação permanente para missões militares e missões
internacionais conjuntas, onde apenas se altera o âmbito territorial de atuação,
mantendo-se a comprehensive approach ao sistema de segurança e judicial.
Enquanto Corpo Militar, a sua capacidade permite-lhe ser uma Força especialmente
apta a ser empenhada, em permanência, em todo o tipo de conflitualidade.Desde o
tempo de paz, de normal funcionamento das instituições democráticas, até às
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operações de imposão da paz, nos países qualificados de classe “C”, no cumprimento
das Funções de Polícia.
A GNR apresenta uma capacidade única para fazer face, no desempenho todo o espetro
das Funções de Polícia, à violência direta, estrutural e cultural, com a possibilidade de o
fazer em ambiente instável, como advém da sua formação militar, conferindo-lhe uma
competência distintiva. Paradoxalmente, de alguma forma, a recusa do então
Presidente da República em ver o País envolvido no que considerava uma intrusão
ilegal, veio dar à GNR a oportunidade de mostrar a sua mais-valia no domínio militar,
bem como, claro está, no policial.
A Guarda apresenta a capacidade para auxiliar outras instituições, designadamente as
judiciais, as militares “propriamente ditas” e as de Polícia em sentido estrito e estreito,
a melhor preencher a Security Gap, contribuindo para erradicar a violência,
contribuindo para a Paz, o que decorre: (1) capacidade para ser projetada com o
instrumento militar e atuar em conjunto com o mesmo desde a primeira fase do
conflito (deployment gap); (2) capacidade para garantir a continuidade institucional
militar/ civile funcionalmilitar/ policial, em ambiente instável, sem quebras ou
sobressaltos, com recurso à força de forma legal (enforcement gap); (3) capacidade
decorrente das suas atribuições diárias no desempenho das Funções de Polícia, no
âmbito da sua missão no sistema de segurança, com a permanente ligação ao sistema
judiciário, com os diferentes níveis de autoridade, o que lhe permite possuir uma
comprehensive approach na promoção e construção do sistema de seguraa
(institutional gap).
A doutrina de atuação da OTAN para preencher a Security Gap o as Multinational
Specialized Units. A Guarda Nacional Republicana tem todas as características
necessárias para constituir ou integrar uma MSU: é um Corpo Militar e desempenha a
Função de Polícia, tem capacidade de atuar numa operação de imposição da paz
superando a Security Gap e tem experiência prática de atuação sob doutrina MSU.
A Guarda Nacional Republicana é um instrumento credível no apoio à política externa
do Estado Português nas operações de imposição da paz, orientada para o statebuilding
na criação de um jus post bellum (Silvério, 2014). Para isso contribuem a sua genética,
Corpo Militar com Função de Polícia, e no caso do Iraque, quando chamada a intervir
num dos cenários mais devastadores a nível internacional, a Guarda mostrou-se estar
ao nível das exigências. Cumpriu as Funções de Polícia que se lhe exigia e perante
vários ataques inopinados e em missões planeadas mostrou estar preparada para lidar
com elevados níveis de vioncia, tendo tido ZERO baixas. Um feito notável.
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i
Art 1º, al c) da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro
ii
Graves condições de salubridade - Art.º 2º e 3º da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro
iii
Na antiga URSS, estas Forças eram apelidadas como “tropas do Ministério do Interior”.
iv
«(...) conjunto de elementos que se articulam de forma harmoniosa e complementar e que contribuem
para a realização de um conjunto de tarefas operacionais ou efeito que é necessário atingir, englobando
componentes da doutrina, organização, treino, material, liderança, pessoal, infraestruturas,
interoperabilidade, entre outras.» (MDN, 2011: 4), (DOTMLPI).
v
Art.º 150º do RGSGNR, Despacho n.º 10393 do Comandante-geral GNR, de 05 de maio de 2010, DR,2.ª
série - n.º 119 - 22 de Junho de 2010
vi
Vale a pena, neste quadro comparar as missões da Guarda no Iraque, com as das Forças Especiais
portuguesas no Afeganistão (Pires, 2011).
vii
Diário da República de 16 de dezembro de 2005, o Aviso n.º 11 435 (2ª série)
viii
Eleições no Iraque, Público, 30 dejaneiro de 2005
OBSERVARE
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Vol. 5, n2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 99-113
SOBRE A DUPLA E PARADOXAL FUNÇÃO DOS MEDIA:
PORTADORES DA IDEOLOGIA DOMINANTE
E VEÍCULOS DO DISCURSO DISRUPTIVO
José Rebelo
joserebelo@yahoo.com
Doutorado e Agregado em Sociologia. Presidente do Conselho Científico e director do
Doutoramento em Ciências da Comunicação do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa
(Portugal). Director de TRAJECTOSRevista de Comunicação, Cultura e Educação.
Membro do Conselho de Opinião da Rádio e Televisão de Portugal (RTP, SA)
.
Resumo
Pretende-se avaliar a dupla função exercida pelos média tradicionais - Televisão, Rádio e
Imprensa -, enquanto lugar de produção ideológica, assumindo-se como dispositivo de
naturalização do discurso do poder, e enquanto lugar de confrontação, dando voz a
projectos alternativos. Ambas as funções são ilustradas. A primeira, com aspectos ligados à
cobertura mediática, nacional e internacional, da crise económica e financeira em Portugal.
A segunda, com a cobertura de manifestações de contestação em Portugal e no Brasil.
Conclui-se que, se os media tradicionais veiculam normas e hierarquias dominantes,
acabam, também, nomeadamente pela pressão das redes sociais, por assinalar o seu desvio
contribuindo, assim, mesmo se indirectamente, para uma re-significação de gentes e modos
de vida.
Palavras chave:
Naturalização; poder/contra poder; dissenso; crise; Estudos Culturais
Como citar este artigo
Rebelo, José (2014). "Sobre a dupla e paradoxal função dos media: portadores da ideologia
dominante e veículos do discurso disruptivo". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 5, N.º 2, novembro 2014-abril 2015. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n2_art6
Artigo recebido em 28 de setembro de 2014 e aceite para publicação em 24 de outubro
de 2014
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Sobre a dupla e paradoxal função dos media:
portadores da ideologia dominante e veículos do discurso disruptivo
José Rebelo
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SOBRE A DUPLA E PARADOXAL FUNÇÃO DOS MEDIA:
PORTADORES DA IDEOLOGIA DOMINANTE
E VEÍCULOS DO DISCURSO DISRUPTIVO
José Rebelo
1. Introdução
Em 16 de Dezembro de 2001, António Guterres apresentava a sua demissão de
primeiro ministro de Portugal, a pretexto de que o país “estava num pântano”.
Sucedeu-lhe Durão Barroso que não tardou em chamar a atenção da opinião pública
para as dificuldades de um país que, segundo ele, “estaria de tanga”.
A crise teria contornos nacionais e exigiria, portanto, uma solução nacional.
Posteriormente, com o 1º ministro José Sócrates, a solução encontrada passou pela
realização de grandes obras públicas suscepveis de dinamizar, a montante e a
juzante, a estrutura produtiva portuguesa.
Mas, subitamente, o sistema financeiro norte-americano abalava fortemente com a
falência do grupo Lehman-Brothers. E, rapidamente, a tempestade atingia a Europa.
Assistiu-se, então, a uma notável inversão de discurso: grandes empresários, homens
de negócios, banqueiros que, arautos de um ultraliberalismo desenfreado, apregoavam
as virtudes do mercado e se insurgiam contra um Estado entendido como obstáculo ao
desenvolvimento exigiam, agora, a intervenção desse mesmo Estado.
“O bando dos poderosos” escreve Alain Badiou num artigo publicado no jornal Le
Monde em 17 de Outubro de 2008, “os bombeiros do fogo monetário, os Sarkozi,
Paulson, Merkel, Brown e outros Trichet mergulham no buraco central dos milhares de
milhões para clamarem: ‘Salvemos os bancos’”. E Alain Badiou prossegue, em tom
irónico: “Esse nobre grito humanista e democrático jorrou de todos os peitos políticos e
mediáticos”.
Em Portugal, rapidamente o poder político aderiu à tese da origem internacional da
crise e apontou para os mesmos caminhos: salvar a banca e relaar a economia
através da aceleração do investimento público. Milhares de milhões de euros afluíram
às caixas exangues do Banco Português de Negócios (BPN). Numa aplicação extrema
da velha teoria keynesiana, multiplicaram-se os projectos de modernização das redes
de transporte: as auto-estradas que rasgam campos desertos; o comboio de alta
velocidade (TGV) que urge concretizar; o novo aeroporto cuja construção não pode
mais ser adiada.
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Sobre a dupla e paradoxal função dos media:
portadores da ideologia dominante e veículos do discurso disruptivo
José Rebelo
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A euforia não durará, contudo, mais do que dois anos. Dura, apenas, até ao momento
em que, nos areópagos europeus, se verifica que a receita não resultara: a dívida
externa dos Estados aumentara incessantemente e o endividamento das famílias tinha
ultrapassado os limites do aceitável.
E muda-se de rumo: a expansão desenfreada é substituída pela mais impiedosa
recessão que atinge, em particular, as economias mais frágeis do sul da Europa.
Em Portugal, surgem os “Programas de Estabilidade e Crescimento”: o PEC 1, o PEC2,
o PEC3, o PEC4 que significam sacrifícios e mais sacrifícios; impostos e mais impostos;
cortes e mais cortes perante uma opinião pública que assiste ao desbaratar das suas
parcas economias e perante uma classe política que, tirando proveito das medidas
impopulares, descortina a possibilidade de regressar ao poder.
E regressa, em Junho de 2011, sob a forma de uma coligação de centro-direita
PSD/CDS.
Só que, a mudança de governo não implicará mudança de políticas. Contrariamente ao
prometido, a austeridade não pára. Até vai aumentar. Porque, declaram os novos
responsáveis, o conhecimento dos dossiers mostra que o país estava ainda pior do que
se pensava. E pior porquê?
Por causa da crise internacional?
Não!
A causa internacional era subtilmente substituída pela causa nacional. A culpa já não
residia no estrangeiro mas nos erros do governo anterior e nos próprios portugueses
que, durante décadas, teriam vivido acima das suas possibilidades. Nem uma
refencia às vorazes campanhas publicitárias que ofereciam crédito para o dia
seguinte.
Não!
Os portugueses ter-se-iam deixado seduzir pelo consumismo e, agora, o momento era
chegado de pagarem a factura.
Factura pesada. Prova-o os anúncios de mais impostos, de mais cortes, de mais
desemprego.
Em Abril de 2013, os números relativos à execução orçamental ir-se-iam revelar,
contudo, desanimadores para o governo. Apesar do agravamento das medidas de
austeridade, falhavam todas as previsões: quanto à dívida pública, quanto ao défice
orçamental, quanto à evolução do produto interno bruto (PIB), etc.
Nova pirueta e regresso às razões internacionais da crise: afinal, a economia
portuguesa não melhorava, como seria de esperar, porque a crise europeia impedia a
absorção das exportações portuguesas…
Alguns meses decorridos e eis que surgem, como por magia, “sinais de melhoria”:
ligeira diminuição da taxa de desemprego, aumento das exportações, moderação da
descida do PIB. O discurso oficial releva estes “sinais” acrescentando, no entanto, que
eles devem ser interpretados com prudência. Prudência que se vai esbatendo à medida
que se aproximam as eleições para o Parlamento Europeu. Em Março de 2014, já não
há precauções a tomar. Oficialmente, a “crise” passa a ser conjugada no passado. Os
portugueses vivem cada vez pior? Que importa? O certo é que, de fonte
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Sobre a dupla e paradoxal função dos media:
portadores da ideologia dominante e veículos do discurso disruptivo
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governamental, o país “salvou-se da bancarrota”. Os portugueses estão pior mas o país
está melhor. E não faltam vozes que, do estrangeiro, saúdam o “tremendo esforço da
população portuguesa” e os “resultados assinaláveis” assim obtidos. Com o dealbar da
Primavera, soam tambores e trompetas proclamando o fim do regime de
“protectorado”. Portugal tornara a ser dono do seu destino, afirma-se nas esferas do
poder.
Esta rápida rememoração de alguns factos que marcaram a história política, económica
e financeira de Portugal nos últimos anos, permite:
1. Introduzir conceitos fundamentais, como os de problema público e de
acontecimento.
2. Avaliar o papel dos media na relação entre problema público e acontecimento assim
como a responsabilidade que detêm nos processos de massificação, de
institucionalização de problemas públicos e de acontecimentos.
2. Os media enquanto lugar de produção ideológica
Segundo Gusfield, citado por Louis Quéré numa conferência pronunciada no Porto em
Fevereiro de 1999 e publicada num número especial da revista Discurso ngua,
Cultura e Sociedade, da Universidade Aberta (Quéré, 2001: 97-113), a verificação de
um problema público implica:
1. Que ele seja assumido, enquanto problema, pela sociedade no seu conjunto.
2. Que ele suscite debate contraditório e conflitual.
3. Que ele esteja associado a uma acção pública visando a sua resolução.
Só que, a nossa contribuição para a definição de um problema é bem menor do que
seria de supor. Dito de outra forma: a instituição de um problema enquanto problema
é, em grande medida, exterior a cada um de nós. Na maioria das vezes, são-nos
exteriores, as estratégias conducentes à sua assunção colectiva e à sua colocação no
centro de debates, tal como nos são exteriores as acções, ou a simulação das acções,
que se propõem resolvê-los.
O quotidiano é feito de um eterno trilhar, em ziguezague, por entre problemas.
Desemprego. Insegurança. Falta de habitação. Crise. Problemas que são e não são
nossos problemas. São “nossos problemas” na medida em que nos afectam
directamente, em que, deles, somos vítimas. Não são “nossos problemas”, na medida
em que a sua génese nos é exterior. Trata-se de problemas que conheceram um
processo de naturalização. E é, justamente, esse processo de naturalização que nos faz
perder a ideia de exterioridade. Que faz com que não tenhamos consciência plena da
construção de um itinerário que, se não nos é imposto, nos é, pelo menos, insinuado.
Que faz, seguindo Pierre Bourdieu, com que se estabeleça uma espécie de cumplicidade
entre dominante e dominado, através da qual o dominado, negligenciando a sua
condição de dominado, “se esqueça de si e se ignore, submetendo-se [ao dominante]
da mesma maneira que contribui, ao reconhecê-lo, para fundá-lo” (Bourdieu, 1982:
119).
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Os grandes meios de comunicação social jornais, estações de rádio, canais de
televisão constituíram, desde sempre, o núcleo desses processos de naturalização.
Fabricando adesões. Forjando consensos. Não os “consensos comuns”, de inspiração
kantiana, mas os que ocultam estratégias que António Gramsci designaria por
“hegemónicas”. Consensos, ou melhor, pseudo-consensos que, para citar Jacques
Rancière, numa conferência que realizou em Março de 2010 na Universidade de Lile
com o título Y a-t-il des crises politiques?, significam acordos impostos, monopólios de
sentido exercidos por oligarquias de especialistas.
Imperceptivelmente, esses grandes meios de comunicação social convertem uma
história fragmentada, em função de interesses e de oportunidades, por vezes
inconfessáveis, numa continuidade feita de mutações tão dissimuladas quanto
incessantes, criando, assim, uma aparente “unidade indivisível”, para recorrer ao
conceito de Edmund Husserl, que se manifestaria sem interrupções, sem hiatos.
Unidade consentida e com-sentido entre “o que acaba de se passar” e “o que vai
passar-se” (Rebelo, 2006: 20).
Ao princípio, a crise era portuguesa. Depois internacional. Mais tarde de novo
portuguesa. Tempos volvidos, outra vez internacional. Para, enfim, mergulhar no
domínio das coisas passadas, resolvidas.
E quem se aperceberá de tal variação?
É o vaivém das notícias e comentários. Ou das supostas notícias e dos supostos
comentários. Hoje, as páginas dos jornais, os tempos das emissões radiofónicas e
televisivas abundam em tal versão. Insaciavelmente repetida. Apresentada como
incontestável, como indiscutível. Amanhã, essa mesma versão começa a definhar até
desaparecer e ser substituída por outra. Igualmente incontestável. Igualmente
indiscutível. Tudo sem desenlace. Sem que a passagem, o momento da mutação
qualitativa, o momento Kairos para dizer como Louis Marin no seminário sobre
Sémantique des Systèmes Représentatifs que dirigiu na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, de Paris, no ano lectivo 1990/1991, seja captado pelo leitor, pelo
ouvinte, pelo telespectador.
Tudo se passa como se a narrativa mediática não tivesse fim. Porque,
independentemente da versão em curso, a narrativa mediática investirá
sistematicamente, como sublinha Jean-Pierre Esquenazi (2002: 78), num triplo
dispositivo:
- Num dispositivo de institucionalização que se consubstancia nas operações de
classificação, de ordenação e de tipificação das experiências que perdem, assim, a
sua originalidade para se diluírem no interior de paradigmas exteriores aos sujeitos.
- Num dispositivo de explicação racionalizante, ligada a uma visão normativa, a uma
tentativa de imposição da ordem social específica, à reprodução das hierarquias
vigentes.
- Num dispositivo de repetição. “Pela repetição”, observa Pierre Moscovici, a ideia
dissocia-se do seu autor; transforma-se numa evidência independentemente do
tempo, do lugar e da pessoa; deixa de ser a expressão de quem fala e passa a ser a
expressão da coisa de que se fala” (1981: 198-199).
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Cada meio de comunicação social, através do espaçonico que monta (Goffman,
1991: 134), constrói, pois, uma identidade discursiva, geradora, por sua vez, de um
imaginário social que ele espera transmitir à massa dos seus destinatários.
Numa dissertação de Mestrado em Relações Interculturais, apresentada na
Universidade Aberta, em 2013, com o título “Representação dos portugueses no
discurso mediático europeu: as notícias sobre a crise financeira”, Irina Fresco Veríssimo
procede a uma análise da forma pela qual alguns jornais europeus se ocuparam de
Portugal. O corpus foi constituído por 25 artigos, publicados no El País, no Le Figaro, no
The Times, no Irish Independet e na Gazeta Wyborcza, da Polónia, de 23 de Março a 10
de Julho de 2011, isto é, entre a demissão do 1º ministro José Sócrates e a
apresentação das medidas de “ajustamento orçamental” pelo então ministro das
Finanças, Vítor Gaspar.
Das categorias temáticas atribuídas ou associadas a Portugal destacam-se, por ordem
de importância: «Desespero/Desalento», «Despesismo/Endividamento», «Instabilidade
política», «Teimosia», «Falta de Rigor/Desorganização/Desonestidade», «Justiça
ineficaz/Corrupção», «Preguiça», «Mercado laboral pouco competitivo», «Má gestão dos
organismos públicos», «Mercado imobiliário inadequado».
Note-se que, raramente, o enunciar de qualquer destas categorias se apoia no relato de
um caso concreto. Apoia-se, antes, em considerações gerais, em assertividades que
dispensam fundamentação. É dito. E, por ser dito, é verdade. Como salienta a autora,
“partindo do pressuposto de que os portugueses são um povo triste, os jornalistas não
pouparam em expressões como «drama», «infeliz sina», «agonia» ou «sem
esperança»”. No entanto, em apenas dois dos artigos analisados é dada a oportunidade
aos portugueses para exprimirem os seus sentimentos relativamente à situação. “As
restantes descrições do ânimo da população portuguesa” prossegue Irina Veríssimo,
“são feitas a partir da própria percepção dos jornalistas”. Garante-se em Legaro de
25 de Março:
"Todos os olhos estão agora voltando-se para Lisboa, onde se
desenrola a continuação do drama."
O mesmo se pode dizer quanto à «Preguiça», característica que, referida em quatro dos
artigos analisados, nunca é acompanhada de um indicador socioeconómico susceptível
de a sustentar. Veja-se, a propósito, o fragmento seguinte do jornal polaco Gazeta
Wyborcza, de 16 de Abril:
"Os gregos que se manifestam nas ruas ou os membros da
oposição no parlamento português estão plenamente conscientes
do facto de que sem a pertença à UE as suas vidas serão ainda
piores. A raiva por detrás destes protestos foi causada por uma
deterioração da situação devido ao facto do financiamento europeu
o estar mais a fluir livremente, num momento em que os jovens
estão sendo chamados a trabalhar mais e pagar a preguiça da
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geração de seus pais, que ignorou a necessidade de poupar para
um futuro melhor".
Povo triste e preguiçoso que, o que não deixa de ser contraditório, se deixou enredar
nas teias do consumismo. Eis a principal razão da crise como se escreve na edição de
24 de Abril de 2011 do El País:
"Endividamento é a palavra que melhor se adapta ao enigma
socioeconómico do país. Mais de 2,4 milhões de portugueses
devem cerca de 120 mil milhões de euros em empréstimos
hipotecários, como resultado do modelo social promovido nos
últimos anos e a que todos aspiravam: casa nova, carro novo,
crédito barato, modernização tardia. A crise terminou
abruptamente com a miragem (…)".
Aspecto, este, difícil, aliás, de debelar. Espanta-se o The Times de 5 de Junho que,
apesar da crise e das medidas de austeridade, ainda se vejam pessoas “que vão ao
cinema, tomam o pequeno-almoço fora, vão ao teatro”.
Saída para a crise? Só há uma, o resgate internacional. Mas o 1º ministro português
hesita. Peremptoriamente, o Le Figaro afirma a 25 de Março.
"Dois dias de reunião da cúpula da UE em Bruxelas, sob a pressão
constante dos mercados, não foram suficientes para convencer o
primeiro-ministro José Sócrates a procurar ajuda oficial da UE e do
FMI. (…) O dinheiro está lá para ajudar Portugal, a vontade política
também, mas, por agora, a Europa só pode assistir, de braços
cruzados, à descida ao inferno de Portugal, ameaçado de falência,
se não apelar para o resgate internacional.”
De pouco valem, contudo, as hesitações perante a inexorabilidade do resgate. De facto,
e como sublinha a Gazeta Wyborcza de 11 de Abril:
“(…) os credores tiveram que lutar durante muito tempo com o
Governo Português de José Sócrates para que este aceitasse a sua
mão estendida”.
Curiosa imagem: os credores de mão estendida para ajudar, e o responsável político do
país endividado hesitante em aceitar a ajuda. Não admira, por conseguinte, o epíteto
com que é qualificado: “teimoso”.
A conclusão do processo vem no The Times de 7 de Abril:
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“Portugal, terra das canções melancólicas de fado, aceitou a sua
infeliz sina na noite passada: Vai ter que engolir seu orgulho e
aceitar um pacote de ajuda. Não havia alternativa”.
Os organismos públicos estão mal geridos? A Justiça é ineficaz? É ainda o The Times
que, em 5 de Junho, antecipa a solução: “Um governo de centro-direita será bem
recebido pelos investidores, que perderam a em Portugal. E assim se resolverá a
falta de competitividade do mercado laboral tal como a inadequação do mercado
imobiliário.
Note-se que, na maioria esmagadora das vezes, e sobretudo quando se trata de jornais
publicados em regiões menos atingidas pela crise, como a Inglaterra e a França, a
situação portuguesa, irlandesa, grega e espanhola é vista indiscriminadamente.
Apresentada como um todo. Não faltarão, até, expressões pejorativas os “PIGS-
para classificar esses países, esses povos do sul europeu que, no entender de Ângela
Merkel, como lembra a Gazeta Wyborcza de 2 de Junho, não merecem ajuda enquanto
tiverem “um monte de feriados” ou não pararem de “andar à toa
1
Naturalmente, cada um dos países incluídos na amálgama assim construída, procura
demarcar-se dos restantes. Mostrar que as origens da crise que atravessa são de
natureza diferente e que a crise, não se revestindo da mesma gravidade, é de
resolução mais simples. Assiste-se, então, a uma estratégia quase fratricida que
consiste em denunciar aqueles que se encontram, ainda, em pior estado. É o que faz o
jornal de maior circulação na Irlanda, o Irish Independent que, a 25 de Março,
considera:
.
“Portugal tem problemas significativos - altos níveis de
endividamento, crescimento anémico e um desafio de liquidez
imediata”.
Três semanas depois, o mesmo jornal volta à carga, agora de forma mais explícita e
associando Portugal e a Grécia:
“(…) que desperdiçaram milhões de dólares em projectos de
comparsas e promessas eleitorais locais.”
Mas o quadro explicativo que perpassa da cobertura internacional aqui evocada
conjuga-se, em grande medida, com o discurso que, na mesma época e sobre o
1
Num artigo publicado no Le Monde, em 12 de Novembro de 2012, Ulrich Beck refere-se assim a Ângela
Merkel: “São numerosos os que vêem na Chanceler alemã a rainha sem coroa da Europa. Quando se
coloca a questão de saber de onde lhe vem o poder, é-se remetido para uma das características que
melhor definem o seu modo de fazer: uma habilidade maquiavélica”. E o sociólogo e filósofo alemão
continua: “Merkel prefere e aqui reside toda a ironia maquiavélica da sua postura fazer depender a
disposição da Alemanha em conceder créditos, da aceitação, pelos países endividados, das condições
impostas pela política alemã de estabilidade. É o primeiro princípio de Maquiavel: tratando-se de ajudar
os países endividados com o dinheiro alemão, a posição de Ângela Merkel não é nem um sim franco nem
um não categórico, mas um nim, entre os dois”.
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mesmo tema, dominou a própria imprensa portuguesa de maior expressão. Muitos dos
estereótipos usados na imprensa internacional beneficiaram, nos meios de comunicação
social portugueses, de intico acolhimento. Em particular no que toca às causas
profundas da crise, também elas frequentemente relegadas para um sujeito colectivo
um “nós” afinal responsável pela dívida. Também nos meios de comunicação social
portugueses se desencadearam tentativas de demarcação, sobretudo relativamente aos
gregos. E não faltaram as notícias sobre novos e mais penalizadores programas de
austeridade que abalariam a sociedade grega. E não faltaram imagens sobre violência
nas ruas das principais cidades gregas, assaltos a Bancos e a supermercados. Enfim, o
contrio da atitude, mediaticamente apresentada como sendo calma e compreensiva
da população portuguesa, apostada em ultrapassar um período visto como provisório.
O discurso oficial, ampliado pelos media, não economiza esforços para fazer passar
esta ideia de provisoriedade, de vontade generalizada em corrigir erros do passado.
Daí, o investimento na criação de eufemismos que escondem medidas drásticas
dirigidas contra sectores alargados e mais pobres da população. Com efeito, termos e
expressões, no entanto carregados de ideologia, são insistentemente repetidos nos
media portugueses, numa espécie de litania mediática ou de refrão retórico (Derrida,
2004: 134). Objecto de um processo de naturalização, insinuaram-se
progressivamente, esses termos e expressões, na linguagem do quotidiano, reeditando
a novilíngua orwelliana. Exemplos:
- Chumbo do Tribunal Constitucional (que, na prática, corresponde a fazer recair sobre
o Tribunal Constitucional as consequências da decisão por este tomada
relativamente a diplomas do governo manifestamente inconstitucionais);
- Regresso aos mercados (dado como exemplo de sucesso da política do governo no
domínio financeiro);
- Ajustamentos (que significam cortes de salários de funcionários públicos e, em geral,
cortes nas despesas de educação, de saúde e de assistência social);
- Medidas de convergência (que se traduzem pelo alinhamento dos estatutos
profissionais no sector público e no sector privado, sempre no sentido do estatuto
menor);
- Gorduras do Estado (para designar os supostos gastos excessivos ou injustificados
no funcionamento do próprio aparelho de Estado, oficialmente atribuídos ao governo
anterior, obviamente de outra cor política);
- Contribuição Extraordinária de Solidariedade e taxa de sustentabilidade (para
nomear as reduções das pensões de reforma);
- Taxas moderadoras (que oneram o acesso aos serviços de urgência dos hospitais
blicos);
- Requalificação profissional (extinção de um posto de trabalho e despedimento do
respectivo trabalhador);
- Imparidades (para referir fraudes cometidas por grupos financeiros particularmente
importantes);
- Flexibilidade (alterações às leis do trabalho facilitando despedimentos e celebração
de contratos a prazo);
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- Inverdades (declarações falsas);
- Consolidação orçamental (aumento de impostos).
De Novembro de 2007 a Setembro de 2009, a palavra “crise” surgiu em 1252 notícias
inseridas no site do canal público da televisão portuguesa (Andringa, 2009: 81-88). A
“CRISE”, sempre a “CRISE” que, em toda a sua dimensão anaforizante, escapa a
qualquer questionamento sobre génese e consequências. A “CRISE” que incorporamos
e à qual nos referimos como factor explicativo de tudo quanto nos rodeia. A “CRISE”
que, retomando Jacques Rancière, “funciona, no espaço mediático, como uma máquina
interpretativa que faz parte do discurso dominante”.
Compete, a uma sociologia crítica, no sentido habermasiano da expressão, desconstruir
essa amálgama de versões mediáticas que se sucedem imperceptivelmente. Que, em
cada momento nos impõem uma “verdade”. A “verdade”. Compete-lhe desmontar esse
palimpsesto. Denunciar supostas evidências. Combater lógicas aparentemente neutras,
segundo as quais o acontecimento actualiza o problema público (o encerramento de
uma fábrica, por exemplo, reforça, em nós, a ideia da crise) e, inversamente, o
problema público constitui o quadro explicativo do acontecimento (é por causa da crise
que a fábrica encerra).
3. Os media enquanto lugar de confrontação
Desconstruir, desmontar, denunciar, combater: tudo objectivos do modelo de sociologia
crítica que se propõe. Modelo de sociologia crítica que, aplicado aos media, pode ir mais
longe, no aprofundamento da reflexão sobre o papel que estes desempenham na
estruturação da opinião pública
É que, se os media constituem um dispositivo central para a naturalização/socialização
das ideias e projectos de vocação hegemónica, como se tem vindo a defender, eles
constituem, igualmente, um factor decisivo para a propagação de ideias e de projectos
contra hegemónicos.
Na esteira dos Estudos Culturais iniciados em Birmingham nos anos oitenta do século
passado, por cientistas sociais como Hoggart e Stuart Hall, diamos que o campo dos
media não é um todo coerente, harmonioso, perfeitamente articulado. Mais do que a
expressão de uma classe dominante, o campo dos media reflecte alianças conjunturais
entre fracções de classe que se podem neutralizar ou entre as quais se podem abrir
falhas, clivagens.
Por outro lado, os media não constituem meros dispositivos tecnológicos de
transmissão de acontecimentos. Em primeiro lugar porque o acontecimento não existe
de per si. Em segundo lugar porque os media são, simultaneamente, sujeito e objecto
do ambiente que os rodeia.
Vejamos mais em pormenor cada um destes aspectos de importância fundamental para
uma sociologia dos media.
1. O acontecimento situa-se no ponto de convergência da ocorrência com a respectiva
percepção. E esta depende do olhar do jornalista, do seu Lebenswelt, para citar
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Habermas
2
2. Se é certo que os media contribuem para a hierarquização dos temas de debate no
espaço público
, assim como das estratégias editoriais do próprio órgão de comunicação
social, com o qual o jornalista tende a desenvolver mecanismos miméticos.
Protagonista de uma dupla relação com a cultura em que se inscreve e com o
colectivo de trabalho de que é parte o jornalista exerce, assim, uma função de
Gatekeeping, como lhe chamou David White numa obra célebre que publicou em
1950, filtrando os acontecimentos a mediatizar e definindo critérios que os destacam
ou os minimizam através da respectiva paginação/alinhamento.
3
, não é menos certo que os mesmos media são, em contrapartida,
penetrados por esse espaço público que influenciam. Isto é, entre a agenda
mediática e a agenda pública estabelece-se uma espécie de relação de simbiose em
que cada uma contamina e é contaminada pela outra sem que se possa determinar
com precisão qual a contaminação primeira
4
.
Daí que, no campo dos media, irrompam estratégias por vezes contraditórias. Se
afirmem autonomias de decisão. Se infiltrem subculturas. Ecoe a voz de minorias. Se
faça ouvir o clamor do dissenso.
Organizações como “Anonymous”, “Hacktivismo”, “Indignados” ou “Occupy Wall Street”
souberam captar a atenção dos grandes meios de comunicação social, à escala nacional
e transnacional. E as suas iniciativas tornaram-se conhecidas no mundo inteiro.
Tais movimentos, privilegiam estratégias discursivas e acções demonstrativas que
transgridem a norma e provocam, deliberadamente, aquele indivíduo ou grupo social
ou político que é objecto da sua contestação.
Recusam a polémica mas apostam na sátira.
Recusam a polémica na medida em que ela implicaria o reconhecimento da legitimidade
do opositor, logo convidado a contra-argumentar. Apostam na sátira porque ela, pelo
contrário, supõe a desvalorização do adversário logo relegado para um plano inferior e,
portanto, impedido de replicar. Não importa (con)vencer o adversário pela
argumentação. Importa, antes, vencê-lo pelo ridículo.
E lá estão os grandes meios de comunicação social, os jornais, as estações de rádio, os
canais de televisão, para cederem espaços e/ou tempos de emissão à descrição do
insólito. Do imprevisto. À publicização da caricatura. Do disforme. Do grotesco.
Portugal tem sido palco de situações deste nero. Na sequência do draconiano
Programa de Assistência Ecomica, celebrado entre Portugal a União Europeia, o
Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional desencadearam-se
manifestações de protesto, do tipo flash mob, contra a chamada “troika”
2
Traduzível por “mundo vivido” ou “vivência do mundo”, este conceito, associado aquele nível profundo de
uma colectividade onde se enraízam linguagens, normas e comportamentos comuns, é largamente
abordado pelo filósofo alemão em Théorie de l’agir communicationnel.
3
Se não nos dizem como pensar indicam-nos sobre o que pensar, como sublinha Bernard Cohen em The
Press and Foreign Policy, pp. 120/121.
4
Neste ponto, afastamo-nos de autores como Becker, McCombs e McLeod que atribuem a prevalência à
agenda mediática: “Existe uma relação entre a agenda dos media e a agenda pública, sendo a primeira
aquela que inicia o processo” (Becker, McCombs e McLeod, “The Development of Political Cognitions”, in
Political Communication. Issues and Strategies for Research, Sage Annual Reviews of Communication
Research, Vol. 4, p. 38; apud Enric Saperas, Os Efeitos Cognitivos da Comunicação de Massas, p. 56).
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A contestação deveu-se a pequenos grupos associados numa plataforma auto-
designada Que Se Lixe A Troika. De contornos difusos, politicamente situada numa
esquerda de difícil catalogação, tal plataforma deu o primeiro e grande sinal de si em
15 de Setembro de 2012. Através das redes sociais, começaram a circular petições
apelando a concentrações populares em Lisboa e noutras cidades do país. O apelo
espalhou-se como uma mancha de óleo e, no dia e na hora prevista, largas centenas de
milhar de pessoas aí estavam para afirmar a sua indignação. Para espanto de toda a
gente, em particular dos próprios promotores, mais de meio milhão de manifestantes
concentraram-se na capital portuguesa. Novos e velhos. De direita e de esquerda. Ou
despidos de qualquer etiqueta política. Muitos, saíam à rua pela primeira vez. Único
traço comum: gritar contra as decisões do governo, acusado de lhes retirar fatias dos
ordenados, das pensões ou das reformas, e de lançar no desemprego gente e mais
gente. Nunca visto. Espontaneamente, surgiram cartazes e soltaram-se slogans.
Cartazes improvisados, artesanais porque cada manifestante fazia o seu. Slogans bem
dispostos. Glosando a situação do país e gozando com os responsáveis desta.
É certo que o processo de mobilização se iniciara na Internet. Mas nunca atingiria
tamanha dimensão se os grandes meios de comunicação social não tivessem, também
eles, emprestado a sua ajuda. Durante dias a fio foram anunciando o evento. Dando
pormenores da organização. Fazendo previsões sobre o eventual sucesso da iniciativa.
Acabaram, finalmente, por naturalizar a contestão. E, ao naturalizá-la, acabaram por
institucionalizá-la, por lhe retirar aquela carga de risco susceptível de afastar os não
habituados.
Depois foi uma série ininterrupta de mini confrontações.
Muitos foram os membros do governo que, em cerimónias oficiais, se viram hostilizados
por grupos de jovens cantando “Grândola Vila Morena”. O objectivo não poderia ser
mais claro: confrontar esses membros do governo com a música de José Afonso que
simboliza a revolução de Abril. Tal prática ganhou até uma designação: “grandolar”.
Mas o sucesso da iniciativa ficou a dever-se aos jornais, aos canais de televisão e às
estações de rádio que reproduziram, em inúmeros textos e imagens, esse “grandolar”
constante e perturbador.
E a chacota de que foi alvo o ministro das finanças, Vítor Gaspar... Sonoras
gargalhadas de meia dúzia de elementos da assistência sublinharam cada pausa do
discurso que ele proferia na apresentação de um livro. Nos ecrãs dos diferentes canais
de televisão que, de imediato, captaram o acontecimento, surgiu a cara de um ministro
atónito, perdido. Sem saber que dizer. Nem para onde olhar.
Os exemplos de ocorrências deste tipo que, desencadeadas de forma mais ou menos
espontânea via net, conquistam, depois, vastos espaços e tempos nos grandes meios
de comunicação social tradicionais, não faltam, por esse mundo fora.
A afirmação das redes sociais como alavanca mobilizadora verificara-se, já, em
Fevereiro de 2003, quando milhões de pessoas em todo o mundo invadiram as ruas.
Assim, de repente. Sem que tal acto se devesse a convocações partidárias tradicionais
mas a mensagens, apelos e petições contra a intervenção americana no Iraque que
fervilharam em rede, essa marca distintiva e estruturante dos novos movimentos
sociais.
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Os telemóveis de 3ª geração, que apareceram no mercado em finais da década de
noventa, acentuaram a tendência. Constituíram, sem dúvida, o dispositivo catalizador
da Primavera Árabe, campo de tantas reportagens jornalísticas. Seguiram-se o
movimento das “Indignadas”, em Madrid; o movimento “Occupy Wall Street”, em Nova
Iorque; o movimento “Junho Furioso”, no Brasil.
Vejamos com algum detalhe este último caso cuja dimensão, tão extraordinária quão
surpreendente não é alheia à importância que os grandes órgãos de comunicação social
brasileiros lhe conferiram.
Tudo começou a 3 de Junho de 2013 quando, respondendo a um apelo lançado através
das redes sociais, escassas centenas de pessoas se reuniram em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Razão imediata do protesto: o previsto aumento do preço dos transportes
públicos. Razão profunda: o mal estar provocado pela somas gigantescas dispendidas
com a organização, no Brasil, do Campeonato do Mundo de Futebol. Duas semanas
mais tarde, precisamente a 20 de Junho, elevava-se a 100.000 o número de
manifestantes concentrados na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e outros tantos
na Avenida Paulista.
Entretanto, 24 jornalistas eram feridos ou detidos pelas forças policiais de São Paulo.
Um dos feridos é uma repórter do influente jornal Folha de São Paulo. A imagem do
rosto ensanguentado da repórter passa nos principais blocos informativos das
televisões brasileiras e leva a que o seu jornal opere uma singular inversão de discurso.
Com efeito, o mesmo órgão de comunicação social que, dias antes, exortara a polícia a
pôr fim à violência nas ruas acusava, agora, essa mesma polícia, de ser fautora de
violência gratuita. E, para cúmulo, outra imagem, não menos impressiva, de uma
jovem manifestante atingida com gás pimenta, é estampada na primeira página do
New York Times.
Como salienta Eduardo Santos, professor de Relações Internacionais na Universidade
Federal Fluminense, num artigo publicado na Revista Liinc sobre “Crise de
representação política no Brasil e os protestos de Junho de 2013”, paralelamente à
informação dos jornais, rádio e televisão “(…) vários grupos, de maneira difusa,
estavam, desde as primeiras manifestações, difundindo informações, algumas em
tempo real e sem qualquer apuração, sobre o que ocorria nas ruas em ferramentas
como o servo de vídeo youtube, ou de mensagens como o twitter e o facebook. O
blico interessado noticiado e noticiava, com um surpreendente acervo coletivo de
fotos, textos e imagens atualizado e disponível no celular” (2014: pp. 86-95).
A emoção, provocada pela mediatização da intervenção policial, fez o resto. Como
reconhece Eduardo Santos, em menos de um mês “houve manifestações em 438
cidades do país, com uma participação estimada de dois milhões de pessoas e ampla
cobertura jornastica
Último exemplo desta dupla e paradoxal função dos meios de comunicação social
como voz do poder e do contra poder acentuada, ainda, pela actual competição entre
media tradicionais e novos media: a cerimónia de execução de Saddam Hussein. A 31
de Dezembro de 2006, os canais de televisão generalista transmitem as imagens
oficiais: tudo se teria passado, a crer nessas transmissões televisivas, com a maior das
dignidades. Em silêncio absoluto. Alguém, fazendo uso de um pudor levado ao
extremo, colocaria, mesmo, um lenço em redor do pescoço do condenado. Não fosse a
corda, enlaçada, feri-lo.
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ISSN: 1647-7251
Vol. 5, n2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 99-113
Sobre a dupla e paradoxal função dos media:
portadores da ideologia dominante e veículos do discurso disruptivo
José Rebelo
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Só que, no grupo de algozes, houve quem registasse tudo, servindo-se de um discreto
telemóvel. Horas depois a versão clandestina circulava no youtube. Afinal nada se
passara como as televisões haviam mostrado. Tinham-se trocado insultos. Entoado
cânticos de vingança. E as mesmas televisões que, num dia, difundiram a versão oficial
não hesitaram em difundir, no dia seguinte, a contra versão, a versão clandestina.
Decididamente, tal como a sociedade, os media são terreno de luta. São lugar de
confrontação de forças com diferentes projectos e diferentes estratégias. Veiculam a
norma dominante. Mas acabam, também, por assinalar o seu desvio contribuindo
assim, mesmo se indirectamente, para uma re-significação de gentes e de modos de
vida que, da periferia, invadem o centro de prodão simlica.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol.54, n.º 2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 114-122
Notas e Reflexões
CIDADES E REGIÕES: A PARADIPLOMACIA EM PORTUGAL
Helena Santos Curto
hscurto@gmail.com
Investigadora Integrada no OBSERVARE, Observatório de Relações Exeriores.
É coordenadora do projeto "Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal".
Doutorada em Economia pela Universidade Autónoma de Lisboa e MBA em Gestão Internacional.
É Professora nas áreas da Gestão e da Economia na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal).
Luís Moita
lmoita@universidade-autonoma.pt
Professor Catedrático, Diretor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador do
Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e
membro do Conselho Científico. Diretor do OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores,
integra o projeto "Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal". Foi Vice-Reitor (1992-
2009) e coordenou o Instituto Sócrates para a Formação Contínua. Conferencista regular no
Instituto de Defesa Nacional, leciona no Instituto de Estudos Superiores Militares.
Brígida Rocha Brito
brigidarochabrito@gmail.com
Socióloga com Doutoramento e Pós Doutoramento em Estudos Africanos (ISCTE). É
investigadora integrada no OBSERVARE, integrando a equipa do projeto "Cidades e Regiões: a
paradiplomacia em Portugal". É Professora no departamento de Relações Internacionais da
Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) nas áreas de Ambiente e Relações Internacionais;
Cooperação Internacional e Mundo Contemporâneo. É subdiretora de JANUS.NET, e-journal of
International Relations e integra a equipa de direção do OBSERVARE,
Observatório de Relações Exeriores.
Célia Quintas
quintascelia@yahoo.com
Socióloga com Doutoramento em Economia de Empresa pela Universidade Autónoma de Lisboa.
É Professora na licenciatura de Ciências da Comunicação e no curso de Administração e Gestão
Desportiva da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal). É Professora Adjunta Convidada na
Escola Superior de Ciências Empresariais, no Instituto Politécnico de Setúbal. Integra a equipa de
investigação do projeto "Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal" como investigadora
associada do OBSERVARE, Observatório de Relações Exeriores.
Maria Sousa Galito
maria.sousa.galito@gmail.com
É doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Católica de Lisboa.
Foi auditora do curso de Defesa Nacional, Instituto de Defesa Nacional. É investigadora associada
do OBSERVARE, Observatório de Relações Exeriores (Portugal), integrando a equipa do projeto
"Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal”.
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Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal
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1. Um projeto de investigação em curso
Na unidade de investigação OBSERVARE constituiu-se um grupo de trabalho para um
projeto de investigação designado Cidades e Regiões: a paradiplomacia em
Portugal. Tal projeto situa-se no quadro de uma das três grandes linhas de
investigação aprovadas pelo Conselho Científico do OBSERVARE intitulada Povos e
Estados: Construções e Interações, que tem a vocação de contribuir para a
compreensão do papel dos atores internacionais, vistos na sua dimensão dinâmica e
evolutiva, na sua génese e no seu multiforme relacionamento.
Logo à partida, a utilização do conceito de paradiplomacia aponta para o estudo do
relacionamento externo de atores sociais distintos dos poderes centrais dos Estados
nacionais. A situação contemporânea tem propiciado a emergência de numerosos
agentes de internacionalização, como se a politica externa ou os "negócios
estrangeiros" deixassem de ser monopólio dos governos centrais e se assistisse a uma
pulverização ou disseminação dessa atividade por centros dispersos dotados de relativa
autonomia. Trata-se de um fenómeno com contornos razoavelmente inovadores,
merecendo atenção na área científica das Relações Internacionais, habilitando-nos a
melhorar a interpretação dos factos e a aprofundar a compreensão dos mecanismos
suscitados por essas novas práticas.
Nesse campo tem sido destacado o papel das cidades. Seja pela intensidade do
processo de urbanização das nossas sociedades, seja porque as cidades se têm
revelado crescentemente como importantes "nós" da teia da globalização, elas são hoje
um pólo fundamental da internacionalização e um agente relevante da nova
“diplomacia” não estatal, justamente a paradiplomacia. Nos domínios das redes de
transportes e de comunicações, ou nas esferas sócio-culturais, bem como no terreno
económico e mesmo na ação já propriamente "política", as interações entre os grandes
aglomerados urbanos constituem hoje uma malha com impacto na vida internacional.
Daí o interesse em averiguar as respetivas estratégias, as formas de ação
internacionalizada, assim como os meios institucionais onde se estruturam as referidas
interações.
Alem das cidades, também as regiões desempenham na atualidade papeis relevantes
enquanto agentes de internacionalização. É verdade que o termo “região” encerra
significados distintos e tanto serve para designar parcelas ou frações do tradicional
espaço nacional, como pode significar subconjuntos de Estados ou redefinições de
novos espaços que se organizam independentemente das fronteiras nacionais (como é
o caso, institucionalizado, das Euroregiões, ou o caso, não institucional, das
macroregiões informais que se multiplicam na geopolítica e na geoeconomia mundiais).
Em qualquer hipótese, as regiões também conduzem elas a sua paradiplomacia,
merecendo serem objeto de análise específica.
O estudo destes processos tem assim reconhecida utilidade para o avanço da área
científica das Relações Internacionais. Fica sublinhada a multiplicidade dos atores
sociais protagonistas da internacionalização, superando o suposto monopólio estatal da
ação externa. Identificam-se novos agentes de paradiplomacia, com a tentativa de
averiguar as suas estratégias e os seus suportes institucionais a nível local ou regional.
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Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal
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Abrem-se novos caminhos para a compreensão dos sistemas em rede que estruturam
mais e mais a configuração internacional.
O projeto de investigação Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal parte
destes pressupostos, centrando-se logicamente nas experiências portuguesas e
privilegiando estudos empíricos que possibilitem a captação das dinâmicas locais e
regionais transnacionais.
2. Objetivos
O objetivo geral do projeto centra-se na análise e avaliação do papel dos atores não
estatais nas redes de internacionalização, entre as quais as cidades e as regiões
portuguesas, tendo em conta as metodologias de intervenção adotadas, os
instrumentos de internacionalização, as parcerias ativas e os produtos resultantes por
forma a prosseguir os seguintes objetivos específicos:
Aprofundar o corpo conceptual em torno do conceito de paradiplomacia;
Estudar o grau de internacionalização dos atores público-privados portugueses, com
exceção dos poderes centrais;
Averiguar os papéis de alguns municípios urbanos e das regiões autónomas
enquanto atores de relações internacionais;
Identificar níveis de intervenção desses atores com parceiros internacionais com
base na identificação das metodologias prosseguidas: geminação de cidades,
iniciativas de “política externainfranacional, assinatura de procolos de colaboração
sectoriais, cooperação para o desenvolvimento, captação de investimentos ou fluxos
turísticos, projeção sóciocultural,…
Identificar os instrumentos institucionais da paradiplomacia: gabinetes de relações
exteriores, visitas institucionais, organização de eventos, entre outros.
3. Justificação do projeto
O presente estudo inscreve-se no campo, relativamente recente nas relações
internacionais, da paradiplomacia, identificada como a capacidade detida por atores
não estatais para estabelecer acordos de cooperação internacional, a partir dos seus
próprios interesses, independentemente da atuação do Estado.
Trata-se de um campo em crescimento, uma vez que a lógica de globalização
económica e a necessidade de potenciar a competitividade e a dinamização dos
processos de internacionalização cultural conduzem à proliferação de parcerias
internacionais e à disseminação de redes.
É neste âmbito que emergem três atores principais, cuja atuação é orientada por
objetivos específicos, resultando em práticas estruturadas: os municípios, as
euroregiões e as eurocidades. O primeiro aparece na cena internacional como um ator
convencional de cooperação, intervindo através de protocolos e estabelecendo
parcerias com atores congéneres. As euroregiões e as eurocidades resultam de acordos
de cooperação entre governos locais de áreas territoriais transfronteiras, procurando
intervir em áreas sectoriais que, do ponto de vista geográfico,o potencialmente
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Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal
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confluentes na promoção do desenvolvimento, diminuindo as disparidades sócio-
espaciais. Dado que se caracterizam pela independência em relação aos governos
centrais, seguindo princípios de identidade territorial, revestem um interesse particular
para o estudo.
Neste sentido é propósito da equipa de investigação, analisar as redes e parcerias, no
que respeita a necessidades conjuntas, estratégias partilhadas e resultados esperados.
Dada a abrangência temática em análise, é esperada uma abordagem comparativa
entre duas euroregiões, um conjunto de eurocidades, uma amostra de municípios
urbanos e duas regiões autónomas, de acordo com a sistematização que seguidamente
especificamos.
A. Euroregiões, enquanto estruturas transfronteiriças de cooperação que resultam de
acordos entre governos locais de áreas territoriais confluentes:
A.1. Euroregião AAA (Algarve-Alentejo-Andaluzia);
A.2. Eixo Atlântico (Galiza e Norte de Portugal).
B. Eurocidades, que são novos modelos de relacionamento e de cooperação
internacional:
B.1. Chaves-Verin;
B.2. Valença-Tui;
B.3. Elvas-Badajoz;
B.4. Vila Real de Santo António-Ayamonte e Castro Marim.
C. Municípios, no papel de entidades de cooperação descentralizada do Estado, que
têm vindo a adquirir uma importância crescente, considerando-se as grandes cidades e
as cidades intermédias de acordo com o critério do reconhecimento do seu papel neste
contexto:
C.1. Lisboa, enquanto Cidade Capital;
C.2. Porto, enquanto eixo central do Norte;
C.3. Guimarães, capital europeia da Cultura e do Desporto;
C.4. Braga, capital europeia da Juventude;
C.5. Aveiro, pela sua aposta em redes de desenvolvimento tecnológico,
consubstanciada largamente no conceito “Aveiro Cidade Digital”.
D. Regiões Autónomas que, por estarem geograficamente deslocalizadas em relação
ao território continental e ao poder central, adotam estratégias e modelos de
cooperação diferenciados:
D.1. Região Autónoma da Madeira;
D.2. Região Autónoma dos Açores.
As redes e as parcerias internacionais de cidades permitem aprofundar metodologias de
cooperação e partilha de experiências com o intuito do desenvolvimento sustentável. As
redes de cidades, emergindo a partir da década de 80 do século XX, assumem
configurações várias e apresentam um caráter mais global ou regional, variando
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também quanto aos seus objetivos. Destacamos, a título de exemplo, a International
Association of Educating Cities, movimento associativo que já agrega mais de 400
entidades locais, ou a Organization of World Heritage Cities, exclusiva para cidades que
ostentem a classificação de Património Mundial, atribuída pela UNESCO. Em qualquer
dos casos, estas redes visam, segundo Simões (2010), a otimização da gestão
territorial, num mundo onde as fronteiras entre territórios se tornam cada vez mais
fluídas e com carater transnacional.
4. Fundamentação teórica
O presente trabalho assume a paradiplomacia como uma fenómeno multidimensional,
sendo nosso intuito identificar e analisar formas de cooperação paradiplomáticas,
atendendo a vários eixos e dimensões identificados.
O paradigma diplotico no sistema das relações internacionais sofreu uma mudança
paulatina mas considerável, talvez desde o final da Primeira Guerra Mundial. A partir da
década de 70 do séc. XX, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim (1989) e da
desintegração do Império Soviético (1991). Assente em instrumentos de poder,
"No mundo pós Guerra Fria, pela primeira vez na História, a política
global tornou-se multipolar e multicivilizacional" (Huntington, 1996:
21).
Hoje em dia, a diplomacia já não se refere apenas à persecução de interesses nacionais
e à prática da persuasão, mas também à gestão de questões globais. Para pensar à
escala planetária surgem novas necessidades, exigências complementares de
diferenciação geográfica e de especialização local. Até porque os atores relevantes já
não são apenas os Estados, mas também as cidades e as regiões estratégicas com
políticas externas próprias, nas quais operam mais atores relevantes e se enfrentam
desafios que têm a ver com mudanças sofridas pelos próprios povos. Pelo que a
diplomacia clássica deixou de ser suficiente para responder aos desafios da atualidade
(Burt, 1998: 25).
Assim, nas sociedades atuais, o conceito de paradiplomacia surge a partir da
globalização onde as redes constituem um elemento central da competitividade. Neste
contexto emergem no cenário mundial, com uma crescente importância, os atores não
estatais, em grande parte pela capacidade de formar redes e parcerias transnacionais
com o objetivo de potenciar a sua ação, a partir da identificação de interesses comuns
e de potenciais sinergias.
Neste sentido Santos Neves (2010: 28) refere:
"A Paradiplomacia demonstra que a ação externa será cada vez mais
um processo multidimensional com vários atores, onde os setores
blico e privado, assim como o terceiro setor, têm de participar e
articular as suas diferentes competências no contexto de parcerias
duradouras. A existência de redes de conhecimento envolvendo a
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coordenação e colaboração entre governos, empresas, ONGs,
universidades e sindicatos é, pois, um fator imprescindível para
garantir uma ação externa eficaz, não só para efeitos de
implementação como de planeamento".
Também Aldecoa et. al. (1999), apontam dois fatores fundamentais para a crescente
importância deste fenomeno: 1) o aumento das ONGs; 2) o aumento das atividades
internacionais dos atores não estatais dos quais se destacam, entre outros, as cidades
e as regiões.
Assim a paradiplomacia subnacional permite que diferentes agentes públicos e privados
participem numa dinâmica multidimensional cada vez mais sofisticada de ação externa.
Esta dinâmica de redes global, multidimensional e interdependente do sistema de
liberalismo económico ou capitalista também gera fenómenos de localização
específica e processos microcentrífugos de descentralização onde não só participam as
empresas multinacionais, mas igualmente as cidades e as regiões globais. Tanto assim
que
"A inserção explícita de cidades nas relações internacionais por meio
de redes ou negociações diretas com organismos multilaterais ou
regionais, empresas transnacionais e outras cidades ou regiões vem
gerando transformações significativas sob o ponto de vista da
autonomia económica e política das localidades. Este fenómeno de
ação internacional de cidades tem criado espaços reticulares de
cooperação que transcendem às formas geográficas clássicas de
divisão político-administrativa e de continuidade territorial" (Senhoras,
Moreira e Vitte, 2008: 5).
Na União Europeia (UE), um bloco regional que atravessa um estádio de integração
avançado entre países, a paradiplomacia subnacional assume mesmo um papel de
relevo, desenvolvendo negociações diretas com questões do máximo interesse
estratégico, nas quais envolvem empresas multinacionais. Neste contexto, as regiões e
as cidades transfronteiriças acabam por alimentar uma relação especial entre dois
países, em particular entre povos vizinhos, com potenciais vantagens mútuas em
função da sua proximidade, beneficiando do interesse e da necessidade real das
populações interagirem umas com as outras.
Esta tendência parecia já estar prevista pelos fundadores do projeto europeu.
"Atualmente, as fronteiras da União Europeia assumiram-se,
felizmente, como um espaço de permeabilidade entre os mercados,
concretizando uma velha ambição dos Pais fundadores do projeto
europeu" (Mendonça e Moura, 2010: 9).
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Com base na profunda alteração evidenciada nas relações entre Portugal e Espanha
após a adesão ao bloco regional europeu (ambos os países se anexaram em 1986), os
mercados vizinhos abriram portas aos fluxos comerciais como nunca antes e as regiões
transfronteiriças estrangeiras (Galiza, Castela/Leão, Andaluzia e Extremadura)
ganharam especial importância para Portugal. De facto,
"(…) as regiões transfronteiriças de Portugal e Espanha (o nosso
principal parceiro comercial), assumem particular relevo como
mercado natural para ambos os países, nomeadamente como
plataformas para o desenvolvimento dos seus negócios regionais e
internacionais»" (Horta, 2010: 4).
Em consequência, multiplicaram-se as relações entre as principais localidades (capitais
de distrito, cidades e vilas) junto à fronteira entre Portugal e Espanha, promovendo as
interões entre empresas nacionais que têm vindo a aproveitar o momento para nelas
expandirem os seus negócios.
5. Metodologias
Para o desenvolvimento do projeto prevê estabelecer-se parcerias privilegiadas com
outros centros de investigação, inseridos em universidades conceituadas nacionais ou
internacionais, com estudos cientifícos na área das relações internacionais, bem como
associações e outras entidades motivadas por interesses comuns no estudo das redes
da paradiplomacia.
A metodologia a seguir é enquadrada por estudos empíricos, com recurso a
levantamento de dados primários, através dascnicas de inquérito por questionário e
entrevistas aos atores identificados, nomeadamente representantes de euroregiões, de
eurocidades, de autarquias locais e das regiões autónomas da Madeira e dos Açores.
De forma complementar, e seguindo um princípio sistemático, será realizada análise
documental e de recursos online, tais como páginas das entidades e das redes
estabelecidas. De forma a melhor compreender todo o processo da internacionalização
protagonizada pelos atores não estatais será ainda desenvolvida a pesquisa de fontes
que viabilizem uma fundamentação teórico-conceptual do problema em estudo.
Para a realização das atividades inerentes ao trabalho de campo é esperado o
envolvimento de um grupo de alunos de licenciatura e de mestrado.
6. Resultados esperados
Em termos de resultados esperados, com o desenvolvimento deste projeto, destacamos
os seguintes:
Publicação de artigos científicos e de divulgação, estimando-se que ao longo do
período em que decorre a investigação sejam publicados 12 artigos, sendo 6
científicos e 6 de divulgação, com uma periodicidade bienal de 4 artigos;
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Criação de uma página do projeto na internet, de caráter interativo, que permita
visualizar por meio de cartografia, outra infografia adequada (gráficos, fotografias) e
análise de dados, os principais resultados intercalares e finais da investigação;
Participação em 12 congressos nacionais e internacionais com uma periodicidade
semestral;
Organização de 2 workshops em fases intermédias do desenvolvimento das
atividades previstas em articulação com parceiros internacionais;
Publicação de livro, em língua portuguesa, inglesa ou francesa, de acordo com
localização geográfica da participação dos intervenientes no projeto;
Organização de conferência internacional na fase final do projeto com divulgação dos
resultados e apresentação pública de livro, na qual se prevê a participação dos
diferentes tipos de atores estudados;
Produção de relatórios de atividades anuais, sendo cinco intercalares e um final.
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Como citar esta Nota
Curto, H. S.; Moita, L.; Brito, Brígida R.; Quintas, C.; Galito, M. S. (2014). "Cidades e Regiões: a
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