OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 5, n.º 1 (Maio-Outubro 2014), pp. 51-66

ÁSIA CENTRAL: OS MEANDROS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA

Paulo Duarte

duartebrardo@gmail.com

Doutorando em Relações Internacionais no ISCSP (Portugal). Investigador no Instituto do Oriente em Lisboa. A sua pesquisa tem como foco a presença chinesa na Ásia Central, a segurança energética, a competição entre as Grandes Potências pelo acesso ao petróleo e gás natural na Ásia Central, entre outros assuntos

Resumo

O presente artigo tem como objetivo destacar as principais caraterísticas históricas e geopolíticas da Ásia Central, uma região que leva autores como Brzezinski (1997: 30) a afirmar que “quem controlar esse espaço, governará o planeta”, ligando, por outro lado, a durabilidade da hegemonia norte-americana à política de Washington na região. Por que é a Ásia Central importante no quadro do sistema internacional? O argumento central é o de que esta é uma região de grande importância na conjuntura económica atual, em resultado da sua história, geografia e posição estratégica enquanto elo de ligação entre o Ocidente e o Oriente, espaço de afirmação e competição das grandes potências.

Palavras-chave

Ásia Central; História; Geopolítica; Espaço pós-soviético; Repúblicas centro-asiáticas

Como citar este artigo

Duarte, Paulo (2014). "Ásia Central: os meandros da História e da Geografia". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 5, N.º 1, Maio-Outubro 2014. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol5_n1_art4

Artigo recebido em 28 de Fevereiro de 2014 e aceite para publicação em 7 de Abril de 2014

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Ásia Central: os meandros da História e da Geografia Paulo Duarte

ÁSIA CENTRAL: OS MEANDROS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA

Paulo Duarte

Introdução

O presente artigo tem como objetivo destacar as principais caraterísticas históricas e geopolíticas da Ásia Central. O argumento central é o de que esta é uma região de grande importância na conjuntura económica atual, em resultado da sua posição estratégica enquanto elo de ligação entre o Ocidente e o Oriente, espaço de afirmação e competição das grandes potências.

A Ásia Central é uma das regiões-pivô do mundo. Está localizada no núcleo do espaço eurasiático continental e constitui uma ligação crucial entre várias economias robustas e dinâmicas, como as da China, União Europeia, Índia, Japão e Rússia (Competitiveness Outlook, 2011). Segundo Khwaja, “a Ásia Central deve a sua importância ao vasto potencial económico e localização geoestratégica de que é dotada, tendo vindo a converter-se, progressivamente, num centro económico mundial” (2003: 7). Em 1998, “[uma] previsão inicial otimista”, apontava para que “a quantidade comprovada ou recuperável de reservas petrolíferas existentes na região do Cáspio e Ásia Central” fosse de “200 biliões de barris”, embora “a maioria dos geólogos aceite a estimativa de 40 a 60 biliões de barris para a base de reservas da região” (U.S. Congressional Record 1998). Cerca de 15 anos depois da previsão acima mencionada, um relatório especial preparado para a região do Cáspio e Ásia Central, mantém, praticamente, os mesmos números, ou seja, “estima-se que o total das reservas de petróleo, da região, seja superior a 60 biliões de barris, sendo que algumas previsões apontam, inclusive, para 200 biliões de barris” (Global Business Reports, 2012: 1).

No contexto do novo atlas energético, a Ásia Central situa-se numa região estratégica, com fortes vínculos às regiões vizinhas. O seu desenvolvimento depende, antes de mais, dos acessos ao resto do mundo. A Ásia Central é uma parte importante do sistema político e económico mundial, sendo “rodeada por algumas das economias mais dinâmicas do mundo, entre as quais, três dos chamados BRICs (Rússia, Índia e China)” (Central Asia Competitiveness Outlook, 2011: 10). Como sublinha Armando Marques Guedes (2011), “a Ásia Central é, de algum modo, uma zona charneira”, a qual tem vindo “a reganhar, indubitavelmente, importância conjuntural estrutural extraordinária”. De acordo com este especialista, “se houve três grandes marcas do século XXI, conflitos que tiveram impacto efetivo na reconstrução e criação de uma nova ordem internacional, estes foram o do Afeganistão, o do Iraque e a invasão da Geórgia pela Federação Russa” (Guedes, 2011). Curiosamente, segundo o autor, “estes três conflitos ocorreram na Ásia Central” (Guedes, 2011). De notar ainda que se há “um conflito que a humanidade receia atualmente”, este envolve o Irão, que não é

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mais que “a extensão sul da Ásia Central” (Guedes, 2011). Durante séculos, a Ásia Central tem sido o cruzamento da Eurásia, ou, como observa Jack Caravelli (2011), “a interseção entre o Oriente e o Ocidente”, o que torna, segundo este autor, a região “interessante”. Efetivamente, ela é o ponto de confluência de quatro civilizações que têm, simultaneamente, controlado e sido controladas pelos povos centro-asiáticos (Asimov e Bosworth, 1998). Por outro lado, como constata Xiaojie Xu, “as civilizações que dominam a região têm sido capazes de exercer a sua influência em outras partes do mundo” (1999: 33).

Os meandros da história e da geografia

Antes da chegada dos russos, a Ásia Central era uma entidade integrada ao nível cultural, linguístico e religioso (Dani e Masson, 1992). O processo de colonização, iniciado pela Rússia czarista, constituiu o ponto de partida para a fragmentação da região, tendo sido especialmente concebido para apoiar a estrutura de poder do colonizador (Bacon, 1966). Esta lógica de fragmentação foi continuada e reforçada pelos sovietes (Encyclopædia Britannica, 2013). Fourniau explica que, do ponto de vista histórico, “a região fora quer integrada em Impérios-mundo, durante períodos muito curtos, quer dividida durante longos períodos” (2006: para. 22). As várias entidades que compõem a Ásia Central correspondem, frequentemente, a “Estados sucessores desses Impérios-mundo (como os Estados soberanos da atualidade são os sucessores das Républicas Soviéticas)” (Fourniau, 2006: para. 22).

Segundo Gleason, “os primeiros habitantes da Ásia Central eram nómadas, que se deslocaram do norte e do leste para ocidente e para sul” (1997: 27). Os nomes regionais ‘Transoxiana’ ou ‘Ma Wara’un-Nahr’, entre outras designações para a Ásia Central, resultaram das invasões estrangeiras (Dani e Masson, 1992). À governação árabe, durante os séculos 9.º e 10.º, sucedeu a dinastia Samanid da Pérsia (Esengul, 2009). A era do Grande Khan dos Mongóis, Chingis Khan, teve início no século XIII (Esengul, 2009). O império de Chingis Khan deixou um legado de línguas túrquicas, que substituíram o Persa e o árabe (Carrere d’Encausse, 1967). Os mongóis destruíram os principais centros de aprendizagem e comércio persas e árabes, o que contribuiu para que as línguas túrquicas se tornassem dominantes na região (Dani e Masson, 1992). Depois do falecimento do Grande Khan em 1227, os seus descendentes dividiram a Ásia Central, e a região permaneceu dividida até à governação de Timur, ‘o coxo’, o qual uniu as pequenas tribos turcas a meio do século XIV (Dani e Masson, 1992). Segundo Hye Lee “os russos tiveram um primeiro contato com a Ásia Central em 1715 quando Pedro o Grande enviou a primeira expedição militar russa para a estepe cazaque, porém, o verdadeiro esforço para conquistar a região teve lugar no século XIX, por volta de 1860” (2012: para. 5). A partir de então, os vales da Ásia Central foram divididos em três canatos: Bukhara (oásis de Zerafshan), Khiva (a jusante do Amur-Darya) e Khokand (Vale de Fergana) (Gleason, 1997).

As invasões estrangeiras não se limitavam a atos de conquista, na medida em que geravam uma vasta interação cultural. Proporcionando uma fusão de culturas, línguas, religiões e pessoas, elas contribuíram para que a noção de identidade na região se tornasse extremamente complexa (Dani e Masson, 1992). As principais instituições informais centro-asiáticas que provaram resistir à passagem do tempo foram as tribos e os clãs (Esengul, 2009). Não surpreende, por conseguinte, que cada vez mais

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especialistas em assuntos centro-asiáticos realcem a importância da política de clãs no que respeita ao controlo que estes exercem na economia e política da região (Collins, 2006). Entre os centro-asiáticos, a lealdade para com a família ou a aldeia é a mais importante ao nível sub-étnico (Dani e Masson, 1992). Esta lealdade baseia-se no núcleo da organização política da sociedade: a família (Dani e Masson, 1992).

Do ponto de vista histórico, a Ásia Central era denominada de Turquestão, cuja tradução literal do Persa significa ‘a terra dos turcos’ (Encyclopædia Britannica, 2013). O grupo linguístico dominante do Turquestão era formado pelas línguas túrquicas, como o turquemeno, o uzbeque, o quirguiz ou o cazaque (Bruchis, 1984). Em termos geográficos, o território do Turquestão estendia-se desde a área a leste do Mar Cáspio até às Montanhas Altay, e desde as fronteiras da Pérsia e do Afeganistão, no sul, até às terras russas no norte (Encyclopædia Britannica, 2013). Ele fora dividido em duas partes: Turquestão ocidental e Turquestão oriental (Dani e Masson, 1992). Os russos ocupavam os três canatos, tendo, porém, anexado apenas o canato de Khokand, e atribuíram o estatuto de protetorados aos canatos de Khiva e Bukhara (Rywkin,1963). Assim, o Turquestão ocidental, que se tornou parte do império russo em 1867 e era conhecido como Turquestão russo, englobava a maioria das terras habitadas pelos povos túrquicos (turquemenos, uzbeques, quirguizes e cazaques), mas não compreendia oficialmente os protetorados de Bukhara e Khiva (Bacon, 1966). Por sua vez, o Turquestão oriental (também conhecido por Turquestão chinês) referia-se à parte mais oriental da região, englobando terras no noroeste da China, isto é, o território da Região Autónoma do Xinjiang (Bacon, 1966).

De 1860 até ao colapso da União Soviética em 1991, a Ásia Central esteve sob domínio russo durante pouco mais que um século (Rywkin,1963). Mark Dickens sugere alguns fatores que contribuíram para a conquista da Ásia Central. Destaquemos “um impulso instintivo com o objetivo de preencher a lacuna geopolítica criada pelo colapso da Grande Horda Tártara...”; “um espírito histórico de reconquista a respeito dos territórios conquistados pela Horda...”; “uma postura tradicional anti-turca, que facilmente se traduzia em atitudes anti-islâmicas”; e “a perceção de que as poucas pessoas que habitavam as áreas asiáticas do leste e sudoeste da Rússia… eram um alvo fácil para o controlo e exploração assim que a região fosse conquistada” (1989: 2).

Sob a liderança russa que era, fundamentalmente, colonial, os habitantes locais experienciaram importantes transformações (Bacon, 1966). Com o tempo, a designação ‘Turquestão’ fora substituída pelo termo ‘Srednaya Azia’ (do russo Ásia Interior ou Central) (Encyclopædia Britannica, 2013). Daniel Pipes considera que “à semelhança de outros mestres coloniais, o governo cazarista acreditava na superioridade esmagadora da sua cultura”, sendo que “os russos insistiram em utilizar a sua própria língua, desprezaram os hábitos e a cultura locais, em especial o Islão, e revelaram atitudes caraterísticas de todos os colonizadores europeus no Terceiro Mundo” (1983: para. 6).

O período de domínio russo fora não só marcado pela transição política e económica, mas, acima de tudo, pelo domínio da cultura e língua russas. Na prática, a língua do ‘ocupante colonial’ converteu-se em língua franca para o povo centro-asiático (Rywkin,1963). A popularização ‘imposta’ da língua russa era um dos elementos-chave no grande plano de engenharia social desenhado por Moscovo, o qual havia sido realizado, em diferentes níveis, nas repúblicas soviéticas (a chamada Russificação ou Russifikatsia) (Bacon, 1966). Note-se que mais tarde, os soviéticos viriam a

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desenvolver uma teoria segundo a qual à medida que a sociedade socialista avançasse em direção ao verdadeiro comunismo, as nações tenderiam a aproximar-se, ao mesmo tempo que uma nova cultura soviética emergeria (Dickens, 1989: 4). A este respeito Bennigsen e Broxup explicam que:

“Um novo ser humano ‘o Homem Soviético (Sovetskiy chelovek) tenderá a emergir, libertado do passado, livre e feliz. Não haverá diferenças espirituais, intelectuais ou mesmo físicas entre russos e uzbeques, estónios e quirguizes; eles partilharão a mesma cultura, acreditarão no mesmo Marxismo-Leninismo, comerão a mesma comida e adorarão os mesmos líderes. A cultura do Homem Soviético consistirá numa mistura harmoniosa dos melhores elementos de todas as outras culturas” (1983: 3).

De entre os motivos que explicam o fim do domínio cazarista, sublinhemos as condições socioeconómicas adversas sentidas em todo o império, agravadas pelas realidades e exigências da Primeira Guerra Mundial (Encyclopædia Britannica, 2013). A insensibilidade dos russos face às necessidades dos habitantes locais, a sua relutância em se adaptar à cultura local, e a sua preocupação com os ganhos pessoais deram origem a uma atmosfera de constante hostilidade entre os povos indígenas e o colonizador russo (Bacon, 1966).

A União Soviética foi edificada sobre o que restava do império russo, tendo prosseguido o mesmo caminho colonialista do seu predecessor (Mandel, 1942). Portanto, a União Soviética, viria a reforçar e completar os processos iniciados pela Rússia czarista, introduzindo, ao mesmo tempo, alguns conceitos e projetos novos, caraterísticos da doutrina comunista (Silver, 1974). No momento em que os Bolcheviques haviam vencido a Guerra Civil, todo o antigo império russo, os seus protetorados e colónias encontravam-se numa situação socioeconómica extremamente difícil (Encyclopædia Britannica, 2013). A fome que se seguiu à guerra causou a morte de milhares de pessoas. Tais condições eram ainda mais graves no Turquestão, que havia sido colonizado pelo império russo (Wheeler, 1977). Face a tais circunstâncias, segundo Chinara Esengul, “a estratégia - mais amistosa e inclusiva - das autoridades soviéticas que procuravam implementar um processo de korenizatsia (‘assimilação’) parecia ser promissora” (2009: 47). De acordo com a autora, “o principal objetivo da política de korenizatsia consistia em incorporar os quadros locais juntamente com os russos, no processo de gestão, bem como em outras áreas da produção e indústria” (2009: 47). Este processo foi limitado pelo baixo nível de alfabetização, mesmo entre as elites regionais. A criação das Repúblicas, em 1924, constituiu uma tentativa, por parte de Moscovo, para ‘matar dois coelhos de uma só cajadada’ (Rywkin, 1963). Por outras palavras, tal passava por pacificar as massas e elites nacionalistas na Ásia Central, concedendo-lhes autonomia formal e independência, retendo, ao mesmo tempo, o controlo sobre a política e economia da região (Rywkin, 1963). Esta delimitação era uma continuação do princípio ‘dividir para reinar’, adotado anteriormente pela Rússia czarista a respeito do Turquestão (Mandel, 1942). O processo de edificação de novas Repúblicas visava impedir os centro-asiáticos de se unirem numa única entidade pan- túrquica ou pan-islâmica (Encyclopædia Britannica, 2013).

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O período soviético era caraterizado por um processo intensivo de ‘construção do Estado’… o Estado soviético (Anderson, 1997). Ao mesmo tempo, a construção da nação foi bem planificada pelo centro que atribuiu aos novos Estados “línguas e cultura formais, e estruturas administrativas” (Anderson, 1997: 47). No entanto, o processo de criação de uma identidade ‘étnico-nacional’ era limitado por e subordinado a políticas orientadas para o desenvolvimento da identidade supranacional: o ‘povo soviético’ (Mandel, 1942). A política de nacionalidades soviética preconiza uma eventual fusão numa cultura soviética (Carrere d'Encausse, 1978). Segundo Mark Dickens, “embora a sovietização e a russianização fossem, em teoria, dois processos distintos, na prática eles pareciam coincidir com frequência” (1989: 5). Os russos percebiam-se a si mesmos enquanto agentes civilizadores na Ásia Central durante a era czarista, sendo que essa autoperceção pouco mudaria na era soviética (Wheeler, 1966). Todavia, Dickens alerta para “a importância de se reconhecer que os soviéticos realizaram bastantes feitos notáveis [na Ásia Central]: reduziram a iliteracia, o ensino superior tornou-se acessível a uma maior percentagem da população, os serviços médicos melhoraram significativamente, e a produção agrícola e industrial elevou o padrão de vida comparativamente a qualquer outro lugar no mundo islâmico” (1989: 5).

Desde o início que o Islão se havia revelado a questão mais sensível na relação de Moscovo com os habitantes locais, sendo percebido pelos soviéticos como não compatível com a doutrina marxista (Thrower, 1987). Foram ralizados esforços consideráveis para erradicar o culto do Islão (Mandel, 1942). Afinal, este era considerado uma potencial força política unificadora contra a governação russa, e visto, a partir de então, como uma ameaça ao domínio soviético e à doutrina comunista (Rywkin, 1963). Porém, a destruição das mesquitas e a proibição total do culto no final da década de 20 não produziram os resultados esperados (Encyclopædia Britannica, 2013). Pelo contrário, forçaram as pessoas “a viver uma vida dupla durante a era soviética; fingindo reverenciar publicamente os seus líderes comunistas, ao mesmo tempo que, em privado, cultivavam a sua cultura pré-comunista” (Olcott, 2002: 7).

Do ponto de vista económico, a região, que havia sido transformada numa fonte de matérias-primas sob a liderança czarista, manteve-se enquanto tal na era soviética. O ‘ouro branco’ (algodão) continuou a captar o interesse dos soviéticos em termos de economia regional (Mandel, 1942). Estes não foram particularmente ativos no que concerne ao desenvolvimento da indústria na região, sendo que as economias centro- asiáticas eram totalmente dependentes de doações provenientes do centro, bem como de outras Repúblicas no que respeitava a alimentos básicos (Encyclopædia Britannica, 2013). Uma tal política económica “afetou seriamente o ambiente da região” (Anderson, 1997: 116). Com efeito, a utilização excessiva de fertilizantes e de recursos hídricos para melhorar as colheitas de algodão viria a saldar-se num desastre ambiental, como atesta a degradação do Mar de Aral (Regional report of the Central Asian States, 2000).

As últimas décadas de domínio soviético foram importantes por dois motivos:

a)as iniciativas de liberalização (1985-1991) de Mikhail Gorbachev; a perestroika e a glasnost estabeleceram “o contexto político imediato e o elemento catalisador para as primeiras etapas da transição de regime na Ásia Central [e em outras repúblicas soviéticas]” (Collins, 2006: 103);

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b)este período é caraterizado pela “negociação de pactos entre as principais forças políticas em cada Estado centro-asiático” (Collins, 2006: 50). Este fora um tempo de mudança na configuração do poder.

Éinteressante constatar o modo como a visão do domínio russo afetou a escrita da história durante a era soviética (Dani e Masson, 1992). Antes de 1930, “a linha oficial era a de que a conquista russa das áreas não-russas havia sido ‘um mal absoluto’ (absoliutnoe zlo)” (Dickens, 1989: 6). Assim, aqueles que resistiram às forças czaristas foram considerados heróis patrióticos. Durante as décadas de 30 e 40, “a expansão russa passara a ser vista como um ‘mal menor’ (naimen'sheie zlo), em comparação com o que poderia ter sucedido às populações caso os turcos, os persas, ou os britânicos as tivessem conquistado” (Dickens, 1989: 6). Por volta de 1950, “a visão oficial era a de que a conquista russa fora ‘um bem absoluto’”, sendo que aqueles que haviam lutado contra ela seriam agora denunciados (Dickens, 1989: 6).

A era pós-soviética mostraria que a política na Ásia Central não tem que ver com ideologia, mas com o controlo de recursos económicos por parte dos principais clãs. Uma das razões que levaram ao descontentamento da maioria dos centro-asiáticos é económica, na medida em que “as Repúblicas centro-asiáticas eram altamente subsidiadas por Moscovo” (Esengul, 2009: 52). Por outro lado, “não existia um forte sentimento nacionalista (cívico ou étnico)”, o que “condicionou a passividade da sociedade em termos de participação política e mobilização social durante os anos 1990-1991” (Esengul, 2009: 52). A lealdade dizia respeito às identidades subnacionais, ligadas aos clãs e à família (Encyclopædia Britannica, 2013). Quanto ao Islão, depois dos esforços dos soviéticos em erradicá-lo, este já não seria mais uma força política suscetível de mobilizar as pessoas (Encyclopædia Britannica, 2013). Teçamos, de seguida, breves considerações sobre a geografia e geopolítica da região.

De acordo com Olivier Roy, “a Ásia Central é uma área de geometria variável, podendo referir-se, simplesmente, à Transoxiana ou, então, ao espaço cultural definido pelas civilizações turco-persas, que se estende desde Istambul até ao Xinjiang” (2000: 1). A Ásia Central é delimitada pelo Mar Cáspio, Sibéria, Mongólia, Tibete e o Hindu Kush.1 Trata-se, como explica Rafael Kandiyotti, de “uma região interior, rodeada por uma enorme massa de terra que cobre um vasto território de estepes, desertos e montanhas, ocupando um espaço superior ao da Europa Ocidental e cerca de metade da área dos Estados Unidos” (2008: 76). Do ponto de vista geográfico, a Ásia Central inclui o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Turquemenistão e o Uzbequistão, enquanto a Eurásia Central agrupa os referidos países mais os três Estados do sul do Cáucaso (Arménia, Azerbaijão e Geórgia).

Na opinião de Doris Bradbury (2011), a Ásia Central é “uma região mais estável que o Afeganistão, o Irão e o Médio Oriente, em geral”, embora, como refere a autora, uma grande parte das pessoas demonstre “desconhecimento face a esta região”, que se situa “entre algumas das potências políticas mais importantes”.2 De entre as várias caraterísticas comuns às Repúblicas centro-asiáticas, é de salientar o facto de “todos eles serem Estados ‘interiores’” (Fourniau, 2006: para.17). Aliás, como sublinha

1O Hindu Kush é uma cordilheira no Afeganistão e no Paquistão Ocidental, com cerca de 1200Km de extensão.

2Doris Bradbury é Presidente-Executiva da American Chamber of Commerce no Cazaquistão.

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Vincent Fourniau, “não deixa de ser curioso notar que a Ásia Central é a região do mundo com mais Estados interiores/isolados (ou landlocked, se preferirmos), se se juntar aos cinco Estados da Ásia Central pós-soviética, o Afeganistão e a Mongólia” (2006: para.17). O Uzbequistão, por exemplo, é “um país duplamente isolado”, uma vez que “é rodeado de Estados que são, eles próprios, isolados” (Fourniau, 2006: para.18). O facto de as Repúblicas centro-asiáticas não beneficiarem de um acesso direto ao oceano, exerce uma influência importante no seu desenvolvimento económico, sendo, por conseguinte, um tema de grande interesse. Tal não significa que a Ásia Central seja um ‘beco sem saída’ no mundo globalizado. A região, que integra a “Grande Rota da Seda”, é, como refere Levent Hekimoglu, “um cruzamento de rotas mundiais, provenientes, essencialmente, de todos os cantos do planeta” (2005: 76).

Regressando a Fourniau, este autor sublinha que “ao contrário dos povos indianos, chineses, otomanos ou russos, a Ásia Central não resulta de uma grande construção política, anterior ou atual” (2006: para.22). Com efeito, este especialista salienta que “nunca existiu registo, na História, de um único Estado centro-asiático” e, por outro lado, “a unificação da região ficou a dever-se a forças de conquista, maioritariamente exógenas” (2006: para. 22). De acordo com Abdul Hafeez Khan, “a Ásia Central tem sido, por diversas vezes, dividida, fragmentada e conquistada, mas, raramente, tem servido enquanto sede do poder a um qualquer império ou Estado influente” (2011: 62). Por conseguinte, este autor considera que “a região se tem revelado, acima de tudo, um campo de batalha para as potências externas, do que, propriamente, um poder em seu próprio direito” (Khan, 2011: 62).

A Ásia Central é uma região que, em bom rigor, só começou a ser analisada, do ponto de vista geopolítico, em termos de pesquisa de campo, pelos estudiosos ocidentais, a partir de 1991, na sequência do colapso da União Soviética (Banuazizi e Weiner, 1994; Ferdinand, 1994; Fuller, 1990; Mesbahi, 1994). O termo Ásia Central carateriza um vasto conjunto histórico, articulado em torno de várias subunidades, bem como uma amálgama de situações económicas, políticas, culturais, de processos identitários e comunidades étnicas. O facto de constituir um importante ponto de encontro de interesses económicos, geopolíticos, religiosos e etnolinguísticos, faz da Ásia Central uma zona dotada de uma profundidade histórica extraordinária, no coração dos grandes desafios da atualidade mundial.

A divisão territorial e o estatuto administrativo das unidades que constituem a região, atestam uma certa heterogeneidade. A atual definição de Ásia Central, que concebe a mesma como sendo formada pelas Repúblicas que, outrora, integravam a URSS (isto é, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Uzbequistão, o Tajiquistão e o Turquemenistão), foi elaborada em meados do século XX, com o intuito de distinguir estas cinco Repúblicas centro-asiáticas. Pouco depois da sua independência, mais concretamente em 1993, “esta definição foi oficialmente reconhecida pelas Repúblicas centro-asiáticas, bem como pela comunidade internacional” (Malik, 1994: 4).

Por sua vez, para a UNESCO, a Ásia Central agrupa “as cinco antigas Repúblicas soviéticas (o Turquemenistão, o Quirguistão, o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Tajiquistão)”, mas também “o Afeganistão, a Mongólia, a China ocidental e várias partes do Paquistão, Irão e Índia” (Asimov, 2001: para. 2). Importa notar, à semelhança de Michael W. Cotter (2008), que não obstante a heterogeneidade económica e política da região, a Ásia Central é, para todos os efeitos, considerada uma ‘entidade geopolítica’. Vários estudos pós-soviéticos continuam a interpretar a Ásia

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Central como sendo limitada a cinco ex-Repúblicas soviéticas: o Quirguistão, o Cazaquistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão e Turquemenistão (Menon, 2007). Tal conceção deixa, assim, de fora as áreas acima mencionadas, ainda que estas estejam profundamente interligadas do ponto de vista geográfico e histórico (Naby, 1994). Na era soviética, a região era designada por “Sredniaia Azia” (o que, traduzido, quer dizer Ásia do Meio), compreendendo “o Tajiquistão, o Turquemenistão, o Quirguistão, o Uzbequistão”, e deixando de fora o Cazaquistão (Lewis e Wigen, 1997: 179).

Éinteressante sublinhar que enquanto os especialistas ocidentais utilizam o termo ‘Ásia Central’, os autores russos, por sua vez, não abandonaram (ainda) a velha expressão ‘Ásia do Meio’, embora, contrariamente ao passado, esta inclua, hoje, o Cazaquistão (Ismailov e Papava, 2010). O facto de existirem múltiplas interpretações relativamente ao conceito de Ásia Central, atesta, portanto, a ausência de consenso acerca deste.

As fronteiras da região foram definidas e delimitadas pelos soviéticos em 1924, numa altura em que as nações centro-asiáticas eram referidas nos documentos soviéticos como “uma questão muçulmana/turca” (Koichiev, 2003: 48). Tais referências eram relativamente frequentes. Na verdade, segundo Petra Steinberger, o Islão era percebido como “um fator de diferenciação entre a população local e os estrangeiros recém-chegados, como os russos, os ucranianos e outros colonos, durante o domínio czarista e soviético” (2003: 235). Assim, com a chegada dos russos à Ásia Central, o Islão tornou-se uma categoria etno-religiosa, porque estes consideravam todos os povos da Ásia Central como muçulmanos. Antes da chegada dos russos, várias etnias da região, tais como os quirguizes, os cazaques, os uzbeques, os uigures, os Dungan, haviam coexistido em “canatos e impérios multiétnicos” (Lowe, 2003: 108). Tal coexistência sob estas entidades supraétnicas pré-modernas apenas era possível devido à lealdade demonstrada pelos vários povos relativamente à identidade supraétnica, o Islão.

Segundo Chinara Esengul, “durante quase sete décadas de domínio soviético, os povos centro-asiáticos estavam económica, política e socialmente unidos como cidadãos de um único Estado (homo sovieticus)” (2009: 3). Contudo, em 1924, antes da unificação sob o regime soviético, eles haviam sido divididos, por Moscovo, em cinco Repúblicas soviéticas. Por um lado, como refere Chinara Esengul, “esta estratégia - ambígua - tinha criado, artificialmente, unidades políticas baseadas na etnia”; por outro, “a lealdade deveria pertencer à unidade supranacional: o Estado soviético” (2009: 3). Por conseguinte, “nenhum destes elementos havia sido bem desenvolvido; a existência do supra-Estado Soviético suspendeu, durante várias décadas, o processo de construção da nação”; além disso, esta política de delimitação nacional teve graves consequências, visto que “estes Estados foram 'artificialmente' criados, em vez de se desenvolverem de forma orgânica” (Esengul, 2009: 3).

Acrescente-se a tudo isto, o facto de a infraestrutura da região operar, do ponto de vista económico, sob o estrito controlo de Moscovo, em benefício da economia centralizada. Havia pouco comércio entre as próprias Repúblicas centro-asiáticas, e a suas economias eram, consideravelmente, subsidiadas pelo orçamento central. No início dos anos 90, os subsídios do centro, constituíam “um quinto do Produto Interno Bruto (PIB) do Uzbequistão”, e “um sétimo dos PIBs do Cazaquistão e do Quirguistão” (Sarygulov, 1999: 240).

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Dito isto, o colapso da União Soviética trouxe às nações centro-asiáticas não só uma independência e uma liberdade que elas nunca haviam experienciado, mas, acima de tudo, o fim dos subsídios, bem como “um impacto económico negativo generalizado na vida da maioria das pessoas, nesta vasta região do mundo” (Linn, 2004: 1). Este foi o momento em que uma série de clivagens políticas emergiram entre os Estados da Ásia Central. Além da democratização da estrutura do Estado (Tolipov, 2007), das minorias étnicas e das fronteiras, e do colapso do sistema de segurança comum, “um dos assuntos mais urgentes na região é a questão do extremismo e do terrorismo religioso”, analisada, entre outros autores, por Mariya Omelicheva (2010). O problema do tráfico de droga é, também, premente na região, e bem ilustrado, entre outros, pelo estudo de Timothy Krambs (2013). Erika Marat sublinha, a este respeito, que “à semelhança do que se verifica em outras esferas do crime organizado, as Repúblicas centro-asiáticas não estavam preparadas para lidar com o aumento do tráfico de estupefacientes, e com os problemas a este associados” (2006: 45-46). Por sua vez, a temática da gestão dos recursos hídricos ocupa o primeiro lugar entre os problemas económicos e ambientais da região, já que como referem, por exemplo, Mañé Estrada e Campins Eritja, “a Ásia Central é uma região transnacional com um uso da água compartilhado, mas com uma distribuição assimétrica de recursos” (2012: 2).

Desde o colapso da URSS, que as Repúblicas centro-asiáticas têm sido minadas pela instabilidade. Com uma história baseada, em grande parte, na vida dos clãs, uma liderança inexperiente e relativamente recente, e um potencial incalculável de recursos energéticos, a Ásia Central tem experienciado, como nota Philip Shishkin, “problemas significativos de corrupção, de abuso de direitos humanos, conflito e agitação civil” (2012: 4). Receosos das divisões históricas no interior de cada país, fruto da pertença a clãs, e do crescimento de movimentos fundamentalistas islâmicos em países vizinhos, como o Irão, o Iraque e o Afeganistão, os líderes centro-asiáticos converteram-se em ditadores sob o pretexto de manter a estabilidade a todo o custo (Diuk e Karatnycky, 1993). Porém, como já referia o The New York Times, num artigo de 1999, mas de grande atualidade, “este tipo de estabilidade artificial e temporária termina, muitas vezes, em agitação explosiva” (1999: para.1). O Tajiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão têm sido particularmente afetados por conflitos internos, embora, como constata Philip Shishkin, “de todas as Repúblicas centro-asiáticas, o Tajiquistão é aquela que, provavelmente, enfrenta o conjunto de ameaças mais preocupante no que respeita à sua estabilidade” (2012: 14).

Os regimes políticos estabelecidos nas Repúblicas centro-asiáticas são, todos eles, autoritários, ainda que os níveis de autoritarismo variem de acordo com os países em questão. Para sermos precisos, como refere Alexander Warkotsch, “o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão são Estados semi-autoritários, enquanto o Uzbequistão e o Turquemenistão são dirigidos por regimes autoritários, senão mesmo ditatoriais” (2008: 62). A Ásia Central é, com efeito, uma das regiões mais autoritárias e corruptas do mundo, como demonstram as avaliações levadas a cabo, por exemplo, pela Freedom House e pela Transparency International. Com efeito, a Freedom House (2012) classifica o Cazaquistão, o Turquemenistão e o Uzbequistão como “não livres” no que concerne a direitos políticos e liberdades civis. Por outro lado, estes três países ocupam as últimas posições do Corruption Perception Index da Transparency International (2012). A caraterística central e unificadora destes Estados consiste, na prática, no caráter patrimonial dos seus regimes. Na verdade, a principal dinâmica

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política (ainda que informal) é representada pela relação entre os Chefes de Estado e certos grupos de interesse, em vez de pelo Estado de Direito, ou pela relação entre o Governo e o seu povo. Por outras palavras, “o poder do governo resulta do patrocínio de redes poderosas, magnatas do mundo dos negócios e grupos regionais” (Azarch, 2009: 65-66). Por conseguinte, “a manutenção do status quo na região é do interesse fundamental dos Governos centro-asiáticos”, uma vez que “a transformação das estruturas político-sociais poderá, inevitavelmente, acarretar a perda de poder dos regimes atuais” (Azarch, 2009: 66).

Todas estas Repúblicas que integram a região comungam de um presente relativamente recente (cerca de duas décadas de independência) enquanto Estados autónomos, pese embora tenham diferido quanto ao rumo das suas políticas, autoritarismo, desenvolvimento, e forma de lidar com os desafios resultantes do colapso da União Soviética.

Embora localizadas num mesmo espaço regional, as várias unidades, neste caso, os Estados que a compõem, estão longe de formar um todo homogéneo suscetível, à partida, de facilitar a compreensão dos processos e realidades políticas, económicas e culturais a um qualquer curioso pela região. Ao invés, elas tendem a confundir um espírito impreparado e ingénuo que possa querer vislumbrar realidades e mundividências semelhantes em Estados que seguiram caminhos diferentes, findo o fator agregador, isto é, a União Soviética. Por outro lado, e segundo esta ordem de ideias, sublinhe-se que “qualquer consideração geral em matéria de política sobre a Ásia Central deve tomar em conta a natureza dos regimes no poder, bem como os interesses específicos de cada um deles” (Esengul, 2012). Se, por um lado, é demasiado evidente que o papel da liderança é importante, por outro, a relação pessoal entre cada um dos líderes não deixa, também ela, de ser fundamental.

Num espaço onde nada está definido e tudo se joga, persiste uma certa nostalgia geral, mais ou menos evidente, no Homo Sovieticus (fruto de uma mesma cultura e dotado de uma personalidade singular) face aos tempos de ouro em que ele não tinha de se preocupar com nada, visto que o ‘sistema’ se encarregava de tudo. Contrariamente ao passado, os ‘emancipados’ centro-asiáticos estão, hoje, entregues a si próprios, filhos da Ásia Central, uma sub-região desprovida de acesso ao oceano, mercê da ‘boa vontade’ da cooperação dos Estados vizinhos, entre os quais uma Rússia e uma China, para acederem ao resto do mundo. E, é interessante notar como os próprios têm consciência da sua posição de dependência face a esta ‘boa vontade’ alheia, como atesta o desabafo de Meruert Makhmatova (2011), investigadora cazaque: “não somos jogadores principais, mas parte do jogo”. Contudo, uma parte importante, capaz, também ela, paradoxalmente, de frustrar as ambições das potências externas, em resultado do seu poder funcional. Atente-se, por exemplo, na singularidade da política uzbeque, umas vezes pró-russa, outras contra, o que faz de Karimov um parceiro imprevisível, dependendo dos interesses que melhor convêm ao Uzbequistão.

Em suma, as Repúblicas centro-asiáticas são, hoje, marcadas por diferentes tipos de transformações políticas, económicas e sociais, diferentes ritmos, diferentes conceções sobre o significado do devir histórico. Elas convergem na vontade de maximizar os benefícios decorrentes dos grandes e pequenos jogos regionais, mas demonstram muita incapacidade em estabelecer estratégias comuns e cooperar para a resolução dos grandes e pequenos problemas regionais.

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A região tem vindo, nos últimos anos, a atrair a atenção de investidores estrangeiros, devido à existência de importantes reservas de petróleo e de gás natural em três Estados: Cazaquistão, Turquemenistão e Uzbequistão (Babak, 2006; Kenisarin, 2004). Em 2010, a produção petrolífera na região rondou, em média, os 3 milhões bpd3, dos quais cerca de 2.5 milhões foram exportados (BP, 2011). Weiss et al informam que tais exportações representam “uma parte importante no comércio de petróleo mundial”, equivalente a “cerca de 10% do total de exportações de combustível líquido”, por parte dos Estados-membros da OPEP (2012: 9). A produção de petróleo e as exportações, a partir do Cáspio, tenderão a crescer substancialmente, isto é, a mais do que duplicar ao longo dos próximos 25 anos, segundo a Agência Internacional de Energia (2011). Para tal, muito contribuirá o aumento significativo, nos próximos anos, da produção petrolífera do campo de Kashagan (localizado no norte do Mar Cáspio), que se acredita ser uma das descobertas [energéticas] mais importantes (em julho de 2000) do mundo, nos últimos 30 anos (The Astana Times, 2011; ENI, 2012). De acordo com Robert M. Cutler, “o campo petrolífero offshore de Kashagan é, geralmente, classificado como o 5.º ou 6.º maior do mundo, e possui as maiores reservas de qualquer campo petrolífero situado fora do Médio Oriente” (2011: para. 2). As suas reservas estão avaliadas em “38 biliões de barris”, dos quais se estima que 11 a 13 biliões sejam recuperáveis” (Cutler, 2011: para. 2). Inicialmente previsto entrar em produção em 2005, esta data tem sido continuamente prorrogada devido a “dificuldades técnicas ligadas à exploração da jazida”, e por causa de “querelas sobre a natureza da participação da KazMunaiGaz” (Cutler, 2011: para. 2). Segundo o Global Business Reports, a região do Cáspio possui “reservas comprovadas de gás natural de mais de 6 triliões de metros cúbicos”, a maior parte das quais detidas pelo Turquemenistão e Uzbequistão (2012: 1). Por outro lado, a Rússia é um ator fundamental no que respeita ao setor do gás natural centro-asiático, sendo que “ao importar este recurso da região, Moscovo pode protelar a sua própria (e mais dispendiosa) produção de gás em Yamal e nos mares de Barents e de Kara, sem sofrer perdas nas exportações e no consumo” (Azarch, 2009: 61). De acordo com a Energy Information Administration, “o Turquemenistão está, atualmente, posicionado entre os seis países detentores das maiores reservas de gás natural do mundo, e entre os 20 maiores Estados produtores de gás natural do mundo”, possuindo “reservas de aproximadamente 7 triliões de metros cúbicos em 2012, um aumento considerável face a cerca de 2 triliões de metros cúbicos, em 2009” (Country Analysis Briefs - Turkmenistan, 2012: 4). Segundo Vladimir Socor (2012), o Turquemenistão produziu 59.5 biliões de metros cúbicos (bmc) de gás natural em 2011 - uma pequena fração de um vasto potencial ainda por explorar - sendo que as exportações de gás turquemeno, nesse ano, foram de 10 bmc para a Rússia, outros 10 bmc para o Irão e 14 bmc para a China.

Notas finais

As Repúblicas centro-asiáticas, com o seu considerável potencial energético e humano são, como refere Johannes Linn, confrontados, simultaneamente, com “um desafio e uma oportunidade”, na medida em que “o espaço económico eurasiático é parte ativa de uma nova fase de integração global” (2007: 5). Na verdade, a Ásia Central é, no entendimento de Guo Xuetang, “a região onde os efeitos da geopolítica e da

3Bpd (do inglês barrels per day: barris por dia, também dito bbl/d). 62

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competição entre as grandes potências mais se têm feito notar, comparativamente a qualquer outra parte do mundo” (2006: 117). Efetivamente, segundo este autor, “os conflitos étnicos e religiosos, a competição energética, o posicionamento estratégico dos vários atores e a agitação política na região, têm-se revelado uma caraterística recorrente no contexto regional centro-asiático” (Guo Xuetang, 2006: 117-118).

No entendimento do cônsul Fernando Melo Antunes (2012), existem três razões fundamentais que explicam “a importância da Ásia Central para as grandes potências”. Em primeiro lugar, “[a região] possui recursos energéticos, em quantidades assinaláveis, tanto em petróleo, como em gás natural” (Antunes, 2012). A este respeito, Zehra Akbar (2012: para. 14) afirma que “os Estados regionais e transregionais estão bem cientes da importância do potencial energético da Ásia Central”. A região está, de facto, prestes a tornar-se “um grande fornecedor mundial de energia”, em particular, “nos setores do petróleo e do gás natural” (Akbar, 2012: para. 14). Voltando a Fernando M. Antunes (2012), o segundo motivo de importância da região para as grandes potências, deve-se ao facto de os seus vizinhos, “nomeadamente a China, a Rússia, o Cáucaso e a Europa”, se depararem com “problemas de transporte” (entenda-se de caráter logístico), suscetíveis de ser resolvidos e/ou mitigados pelos “países da Ásia Central”. Por fim, a região é importante, uma vez que é composta por países que, tendo conquistado a independência há cerca de 20 anos, “apresentam um potencial de crescimento económico bastante significativo” (Antunes, 2012).

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