OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013 - Abril 2014), pp. 1-8

Nota Introdutória

JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL

UM DIÁLOGO ENTRE DUAS CULTURAS

Mateus Kowalski

mateuskowalski@ces.uc.pt

Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito. Autor de artigos e comunicações sobre teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de segurança. Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), onde é investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta. Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no domínio do Direito Internacional. Delegado a diversas organizações internacionais, incluindo as Nações Unidas, a União Europeia ou o Conselho da Europa

Patrícia Galvão Teles

pgalvaoteles@gmail.com

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Mestre e Doutora em Direito Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Suíça; Docente da Universidade Autónoma de Lisboa; Investigadora e Membro do Conselho Científico do Observare e do Conselho Editorial da Janus.Net; Conselheira Jurídica da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia, em Bruxelas (Bélgica)

A Justiça Penal Internacional – um enquadramento

A implementação da ideia de que qualquer indivíduo onde quer que se encontre eindependentemente do seu estatuto oficial pode ser responsabilizado por crimes derelevância para toda a humanidade é uma rutura com o paradigma vestefaliano de que cabe a cada Estado julgar (ou não) os “seus”. Após a Guerra Fria foram criados diversos tribunais penais internacionais, designadamente os tribunais ad hoc para a ex- Jugoslávia e para o Ruanda, e um tribunal penal de carácter permanente, o Tribunal Penal Internacional (doravante “TPI”). O poder deixou de constituir um escudo de impunidade como anteriormente. Os líderes envolvidos em conflitos aprenderam a temer a justiça penal internacional como uma “espada de Dâmocles”. Por outro lado, a criação de jurisdições penais internacionais, nas suas diversas formas, passou a ser um método para a consolidação da paz em situações de pós-conflito enquanto mecanismo de justiça restaurativa.

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A constituição do TPI, em 2002 – e a consequente preferência pela jurisdiçãopermanente por comparação com os tribunais ad hoc –, representa o expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é mesmo referido como a instituição paradigmática da conceção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que marca atualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Conforme referem Bogdandy e Dellavalle, «no contexto global, o progresso deste projeto de uma verdadeira ordem pública internacional e de um verdadeiro Direito Internacional assenta atualmente e em larga medida no destino do Direito Penal Internacional» (2008: 2). A criação do TPI deve ser perspetivada não apenas como uma inovação mas, acima de tudo, como uma conquista civilizacional em prol da defesa da dignidade da pessoa humana e da promoção da paz.

Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Têm, pois, persistido algumas críticas duras ao TPI relativas aos seus fundamentos e que, de alguma forma, refletem uma preocupação com a imposição de soluções ético-normativas “ocidentais” de matriz liberal. Elas são essencialmente de duas ordens: estatutária e factual. Em particular, têm-lhe sido apontadas um conjunto de críticas essenciais, de que são exemplo representativo a dependência face ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, sugerindo ingerência política num órgão penal, ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas ao Tribunal situações relativas a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a sua seletividade. Estas são críticas que põe em causa os fundamentos do TPI.

O TPI vive ainda um certo estado de graça. Contudo, o risco de marginalização tem vindo a aumentar (Kowalski, 2011). A conferência de revisão de Kampala de 2010 foi um aviso: o sol ainda não se tinha posto no Lago Vitória no último dia da conferência e já existiam divergências quanto à aplicação do que havia sido aprovado. Até hoje apenas 14 Estados se vincularam às emendas então adotadas1, incluindo no que toca à relativa à tipificação do crime de agressão.2 Após 10 anos da entrada em vigor do Estatuto do TPI, em 2012, o Tribunal proferiu a sua primeira condenação: Thomas Lubanga Dyilo foi condenado a 14 anos de prisão pelos crimes de recrutar e alistar crianças com menos de 15 anos e usá-las para a participação em hostilidades na região de Ituri, na República Democrática do Congo. Se a primeira condenação do TPI foi recebida com um “finalmente!” generalizado, não deixou igualmente de servir para avivar o debate sobre a demora nos julgamentos e, no fundo, sobre a eficácia de uma justiça penal lenta.

Ao mesmo tempo que se assiste à universalização da justiça penal, surge também o fenómeno da promoção de formas alternativas de justiça em situações em que tenham sido praticados crimes graves de relevância internacional. No Ruanda, a justiça foi assumida como fator essencial para a reconciliação. A prova disso mesmo é que perante o papel limitado do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda e as limitações do sistema judicial clássico ruandês, recorreu-se a estruturas comunitárias tradicionais

1Ilhas Maurícias, Noruega, São Marino, Trindade e Tobago, Estónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa, Alemanha, Botsuana, Andorra, Chipre, Eslovénia e Uruguai.

2Trindade e Tobago, Estónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa, Alemanha, Botsuana, Andorra, Chipre, Eslovénia e Uruguai.

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de modo a permitir a ampla realização da justiça na situação de pós-genocídio (os tribunais Gacaca). O caso do Ruanda é, pois, um bom exemplo de como estruturas comunitárias tradicionais podem ser mobilizadas para realizar a justiça, nomeadamente na sua dimensão restaurativa, ainda que de forma pragmaticamente imperfeita (Kowalski, 2009). Algo que deve também alimentar um debate sobre a justiça penal internacional e sobre o seu papel jurisdicional complementar.

A reflexão sobre os ideais que sustentam a justiça penal internacional deve ser permanente de modo a criar um discurso de legitimação ética que lhe confira efetiva capacidade de resistência e de transformação. Mas para que haja legitimação, é preciso antes de tudo que aconteça a crítica, a desconstrução e a desocultação. Por isso também, a esperança na justiça penal internacional – e em particular no tribunal Penal Internacional – possa estar ligada à esperança na reflexão crítica e na vontade de todos os atores internacionais nela participarem.

A Justiça Penal Internacional entre “Duas Culturas”

A paz e o Direito são conceitos e domínios de teorização e construção social antigos. A sua autonomização científica, o seu desenvolvimento conceptual ou a sua aquiescência académica e prática nunca foram, nem nunca serão, absolutamente gémeos. Contudo, as suas ambições são semelhantes: o bem-estar material e emocional dos seres humanos. Os debates entre realismo e idealismo/liberalismo têm informado pelo menos nos últimos cem anos quer as Relações Internacionais (Richmond, 2008) quer o Direito Internacional (Koskenniemi, 1992), neste caso também no domínio das construções teóricas da paz. No que concerne à “paz”, este é um conceito material estruturado e extraordinariamente multifacetado. Já no que respeita ao Direito Internacional, o seu vasto âmbito material e pessoal, bem como o elevado grau de imperatividade de algumas das suas normas indicam o caminho em direção a um “Direito da Humanidade” (Pureza, 2002). A paz é um conceito que tem evoluído desde a noção da mera paz negativa até à mais atual paz positiva e estruturada (Galtung, 1975; Richmond, 2008). Paz esta, que é composta por vários elementos dos mais diversos domínios e que traduz uma aspiração de bem-estar holístico num ambiente de não- violência. O Direito Internacional pode desempenhar um papel de normatização dos elementos da paz e de garantia da sua efetiva e justa concretização.

A “insularidade académica” entre Relações Internacionais e Direito Internacional (Beck, 1996) redunda no que Young (1992: 174) apelidou de “síndrome das duas culturas”. Ambos os domínios científicos sofrem de um certo desalinhamento promovido pelo discurso de autores de cada um dos ramos do saber e também da prática político- diplomática que tende (embora de forma mais moderada) a ter uma perspectiva cartesiana entre discursos diplomáticos jurídicos e políticos. Do lado das Relações Internacionais, em particular no que respeita à teoria da paz, certos autores tendem a olhar para o Direito Internacional como marginal ou como um mito perigoso (Kewenig, 1973). A supremacia dos Estados e a falta de estatuição normativa por impossibilidade de garantir a aplicação de sanções tornariam a normatividade jurídica irrelevante. Outros interrogam-se sobre o verdadeiro contributo do Direito para a paz (Boasson, 1968), designadamente no que respeita à atividade dos tribunais penais internacionais (Meernik, 2005) ou às convenções sobre direitos humanos (Hafner-Burton e Tsutsui, 2007).

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Também existe o discurso oposto: a ordem internacional só será verdadeiramente uma ordem, e a sociedade internacional só será uma comunidade quando as relações sociais internacionais forem adequadamente reguladas pelo Direito (Tomuschat, 1993; Fassbender, 1998). Abbott (2005) chega mesmo a descrever os jusinternacionalistas como “arquitetos da governação global”. Pelo lado do Direito Internacional, é um facto que as Relações Internacionais são por vezes perspetivadas como um discurso político de contemplação e sem vocação para edificar ou transformar, antes se cingido à apologia da análise ad nauseam das relações entre os Estados e das relações de poder a que aqueles estariam condenados em participar. Ainda, é a espaços referido que sendo que a história do Direito pode ser traçada com algum rigor até ao Direito Romano e a do Direito Internacional em especial até aos “teólogos juristas” e Grócio nos idos dos séculos XVI e XVII, as Relações Internacionais são um domínio novo e ainda imaturo dos anos 1950. Numa perspectiva mais subjetiva, todo este discurso alimenta igualmente um ascendente corporativo pelos cultores do Direito Internacional relativamente às Relações Internacionais. O que, por sua vez, reforça uma reação pelos cultores das Relações Internacionais acenando com a irrelevância do Direito Internacional. Em todo o caso, e conforme observa Pureza, este “síndrome das duas culturas” «encontra alicerces consistentes na distinta focagem que cada um dos dois olhares perfilha: expositivo e analítico o das Relações Internacionais, prescritivo ou normativo o do Direito Internacional» (1998: 79-80).

A “justiça penal internacional” tem sido objeto de intensa análise. É, aliás, um tema que suscita uma abordagem de grande angular comportando temáticas, que tradicionalmente são objeto de estudo de ramos do saber distintos, como sejam: a tipificação dos crimes graves de relevância para a comunidade internacional; o funcionamento dos tribunais; o contributo para o desenvolvimento do Direito Internacional; a promoção e a proteção de direitos fundamentais (direitos humanos); a relevância do indivíduo no espaço internacional; o impacto na prevenção / resolução de conflitos; ou a política externa dos Estados relativamente ao TPI. Trata-se de uma análise que é tradicionalmente compartimentada em ramos específicos do saber, com poucos vasos comunicantes entre si, sendo certo que a “justiça penal internacional” tem recebido maior atenção pelo Direito Internacional do que pelas Relações Internacionais.

Existe contudo, espaço para e relevância num discurso que traduza uma abordagem multidisciplinar à temática. Desde logo, várias das problemáticas atuais quer do Direito Internacional quer das Relações Internacionais encontram na “justiça penal internacional” um caso de estudo. Depois, a “justiça penal internacional” pode tornar-se um elemento de discurso que congregue aquelas duas áreas do saber, teimosamente afastadas no que tem sido apelidado de “síndrome das duas culturas”. Ainda, a “justiça penal internacional” pode beneficiar de uma abordagem integrada pelo Direito Internacional e pelas Relações Internacionais, enriquecendo-a e conferindo-lhe novos enfoques.

O projeto “A Justiça Penal Internacional”

O projeto “Justiça Penal Internacional”, desenvolvido no âmbito do Observatório das Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, pretende assim ser um espaço de investigação que reúna investigadores, experiências e metodologias que

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conceptualmente se situem em cada um destes dois ramos do saber. Quando pertinente, poderá ser pedido a investigadores de Direito Internacional que saiam um pouco da sua área de conforto e que, mantendo o seu background científico, tratem temas normalmente analisados no âmbito das Relações Internacionais (e vice-versa). Nesta linha, serão convidados autores, incluindo autores estrangeiros, que provenham de enquadramentos disciplinares diferentes e que tenham quer uma visão académica sobre cada uma das temáticas quer tenham experiência prática no âmbito da justiça penal internacional.

Os objetivos deste projeto de investigação são quatro. O primeiro é o de elaborar um discurso sobre a “justiça penal internacional” que congregue leituras do Direito Internacional e das Relações Internacionais relativamente a temáticas comuns, contribuindo para respostas mais criativas e sustentadas. Em segundo lugar, identificar convergências / divergências (e suas consequências) nas abordagens por cada uma daquelas áreas do saber a temáticas comuns. O terceiro objetivo é o de suscitar novas propostas para algumas das problemáticas que atualmente se colocam no âmbito da justiça penal internacional. Finalmente, é também objetivo deste projeto criar resultados de investigação que traduzam uma visão abrangente da justiça penal internacional que possa beneficiar investigadores, agentes diplomáticos, agentes da justiça internacional ou estudantes.

Tendo presentes os objetivos delineados, o projeto encontra-se dividido em várias temáticas de atualidade enunciadas de modo a permitirem uma abordagem multidisciplinar coerente, suscitando reflexões complementares. Assim, a delimitação de cada uma das temáticas é feita de acordo com os seguintes critérios: (i) cada temática congregue preocupações comuns do Direito Internacional e das Relações Internacionais relativamente à justiça penal internacional; (ii) cada temática possa beneficiar de contributos de investigadores de áreas científicas diferentes; (iii) cada temática tenha potencial para por em evidência convergências / divergências na abordagem à justiça penal internacional entre Direito Internacional e Relações Internacionais. Neste sentido, foram delineadas as seguintes quatro temáticas aglutinadoras:“Questões Conceptuais”; “Os Tribunais Penais Internacionais”; “A Justiça Penal Internacional, Direitos Humanos e Resolução de Conflitos”; e “Justiça, Poder e Política Externa”.

Os contributos, em forma de artigo, serão publicados em português (ou noutra língua em que tenham sido escritos) e em inglêsna JANUS.NET e-Journal of International Relations. Uma vez concluído o projeto de investigação, pretende-se publicar uma monografia que colija aqueles artigos.

“Questões Conceptuais”

Os primeiros dois contributos que agora se publicam são um bom exemplo do “diálogo entre duas culturas” que o projecto “Justiça Penal Internacional” pretende promover. O primeiro, intitulado “A justiça penal internacional e a erosão da soberania” é da autoria de Miguel de Serpa Soares, jurista, ex-Director do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministérios dos Negócios Estrangeiros, tendo representado nessa qualidade Portugal na Conferência de Kampala e na Assembleia de Estados Parte do TPI, e recentemente nomeado Subsecretário-Geral para os Assuntos Jurídicos e Conselheiro Jurídico das

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Nações Unidas. O segundo, com o título “As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional”, foi escrito por Maria Francisca Saraiva, especialista em relações internacionais e docente universitária, trabalhando não só na área dos direitos humanos, mas também da resolução de conflitos, estratégia, geo-estratégia e políticas públicas de segurança. Ambos os contributos analisam o impacto da criação do TPI, de um ponto de vista conceptual, na ordem jurídica e política internacional, em termos da soberania dos Estados e da geopolítica das grandes potências.

No seu artigo, Miguel de Serpa Soares, destaca o facto de o TPI ser ainda uma “criatura adolescente” na ordem jurídica mundial, mas que, pelo facto de afectar equilíbriosinstitucionais e a constelação de poderes vigente desde 1945, revela de forma exemplar as tensões entre supranacionalismo e erosão da soberania dos Estados, que o autor perspectiva de forma diferente para os grandes e pequenos/médios Estados, enquanto questão de “soberania judicial”. O texto analisa, em detalhe, o processo que levou à inclusão da definição do crime de agressão, o mais grave crime internacional,e das condições do exercício da jurisdição no Estatuto de Roma (a jurisdição sobre o crime já havia sido incluída em 1998) na Conferência de Kampala de 2010, concluindo que o compromisso obtido revela as diferenças de posição entre, por um lado, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que pretendiam manter as prerrogativas que a Carta das Nações Unidas lhes concede para a determinação das situações de agressão e, por outro, um conjunto de aliançasdiferenciadas entre grupos de países cujo elemento comum era a defesa de uma independência do TPI face ao Conselho de Segurança, bem como uma autonomia da determinação judicial da existência de um crime de agressão. O autor considera que o compromisso obtido em Kampala representa uma derrota para os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e, tal como o próprio Estatuto de Roma, abriu brechas definitivas no monopólio punitivo dos Estados e do Conselho de Segurança. Conclui o artigo que a existência de uma justiça penal internacional é contrária à ideia de soberania estatal, mas que as relações entre ambas não devem ser vistas de forma apenas antagonística, mas de complementaridade e transformação da noção da própria soberania. Contudo, para que o TPI se possa afirmar, sobretudo perante os Estados mais poderosos, Miguel de Serpa Soares defende que este terá de consolidar uma jurisprudência irrepreensível, tal como aconteceu com o Tribunal de Justiça da União Europeia ou o Tribunal Internacional de Justiça, sendo por isso necessário dar tempo a esta nova instituição.

Francisca Saraiva, no seu contributo, argumenta que o TPI permitiu dotar a comunidade internacional de um mecanismo jurídico permanente de dissuasão e repressão de actos de barbárie e crueldade extrema. No entanto, o resultado alcançado pelo Estatuto de Roma em 1998 e pela definição do crime de agressão na Conferência de Kampala em 2010 não deixou de ser influenciado, para a autora, pelas estratégias negociais dos grandes poderes, estruturadas em torno dos seus interesses de longo prazo, resultando num multilateralismo selectivo, ou seja, com possibilidade de um controlo político. Em particular, a autora defende que a maior hostilidade ao TPI, proveniente dos Estados Unidos da América, emana não de uma vitalidade do poder norte-americano, mas sim de uma estratégia de sobrevivência política que visa protelar no tempo a ascensão de novas potências hegemónicas, que tomarão o lugar dos EUA no sistema internacional, considerando, por exemplo, que a história da negociação do crime de agressãomostrou que o que estava em disputa no TPI era o direito das

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grandes potências conservarem a sua liberdade de acção estratégica (e bélica) e de proteger a sua agenda humanitária.

A análise dos dois artigos, numa perspectiva de realpolitik, é coincidente no que toca à apreciação que fazem do facto de, do ponto de vista das grandes potências, a definição do crime de agressão ter ficado aquém das suas expectativas em relação ao papel do Conselho de Segurança nesta matéria, pois os seus cinco membros permanentes defendiam a necessidade de uma autorização prévia daquele órgão para que se iniciasse um processo por iniciativa de um Estado Parte ou pelo Procurador proprio motu.

A solução a que se chegou foi, evidentemente, uma típica de compromisso, em que a comunidade internacional conseguiu defender a integridade e independência do Tribunal, mas manteve-se a possibilidade de o Conselho de Segurança poder suspender eventuais processos criminais, incluindo no caso de agressão. Se, por um lado, como sustenta Francisca Saraiva, será difícil o TPI julgar crimes de agressão envolvendo as grandes potências, a definição abrangente do crime consagrada permite um julgamento adequado dos casos que cheguemao seu conhecimento.

Resta ver, na nossa opinião, como continuará a operar o TPI, agora que tem completo o menú de crimes sob sua jurisdição e emitida já a sua primeira condenação, cumprido assim um ciclo judicial pleno, para podermos fazer um balanço mais definitivo do seu lugar na ordem jurídico-política mundial. As restantes análises que se promoverão no âmbito do presente projecto de investigação do OBSERVARE “Justiça Penal Internacional”, contribuirão, certamente, para tal desiderato.

Setembro de 2013

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Como citar esta Nota

Kowalski, Mateus e Teles, Patrícia Galvão (2013). "Justiça Penal Internacional. Um diálogo entre duas culturas". Nota Introdutória, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2, Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_not1

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