OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 110-124

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO FEDERALISMO NA GESTÃO DA

PLURIDADE ÉTNICA EM ESTADOS MULTINACIONAIS

E NA PREVENÇÃO DE CONFLITOS

Daniel Rodrigues

dmrodrigues_296@hotmail.com

Professor Auxiliar Convidado em Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e Investigador Integrado do OBSERVARE da Universidade Autónoma de Lisboa.

Resumo

A existência de vários grupos étnicos, religiosos e/ou linguísticos cujos direitos não são reconhecidos ou são continuamente violados cria situações de tensão cujas consequências são imprevisíveis. Se, nalguns casos, aqueles grupos procuram de forma pacífica um mero reconhecimento das suas particularidades, existem outros em que o recurso à violência tem sido frequente. Conflitos como aqueles que assolaram os Balcãs ocidentais na década de 1990 ou que continuam a devastar regiões como o Cáucaso, a República Democrática do Congo, a Nigéria ou o Myanmar encontram no factor étnico, associado nalguns casos à questão religiosa, uma das suas principais causas.

Se é verdade que foram várias as soluções apresentadas com o objectivo de responder positivamente às tensões inerentes à complexidade étnica de Estados multinacionais, não é menos verdade que a existência desta variedade de modelos teórico-práticos nem sempre conseguiu alcançar os objectivos pretendidos e, acima de tudo, o intuito de pôr cobro a uma situação de paz muitas vezes negativa. Do direito das minorias ao federalismo, é possível identificar princípios cuja pertinência e adequação a contextos que podem ser definidos como sendo de paz formal é clara e inequívoca. Não deixa contudo de ser importante inserir e enquadrar estes elementos em casos específicos, procurando com isto demonstrar que cada caso é um caso e que a sua adaptação a uma situação precisa não invalida a sua inadequação a outra aparentemente semelhante.

Torna-se, pois, fundamental levantar algumas questões que permitam tecer algumas considerações sobre o papel que um modelo de organização política e administrativa como o federalismo pode desempenhar, em parte como complemento ao direito das minorias, enquanto instrumento de gestão da pluralidade étnica em Estados que podem ser definidos como sendo multinacionais assim como na prevenção de conflitos étnicos.

Palavras chave:

Direito das minorias; federalismo; prevenção de conflitos; etnonacionalismo

Como citar este artigo

Rodrigues, Daniel (2013). "Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica em Estados multinacionais e na prevenção de conflitos". JANUS.NET e- journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2, Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art6

Artigo recebido em 23 de Setembro de 2013 e aceite para publicação em 17 de Outubro de 2013

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Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica em Estados multinacional e na prevenção de conflitos Daniel Rodrigues

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO FEDERALISMO NA GESTÃO DA

PLURIDADE ÉTNICA EM ESTADOS MULTINACIONAIS

E NA PREVENÇÃO DE CONFLITOS

Daniel Rodrigues

Introdução

Este artigo pretende, tal como o título indica, tecer algumas considerações genéricas sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica em Estados multinacionais e, por conseguinte, na prevenção de conflitos cuja justificação resida em parte ou totalmente em questões de etnicidade aliadas ao nacionalismo de um ou mais actores em confronto. A questão é tanto ou mais complexa quantas as implicações que esta tem a vários níveis da organização política e administrativa de um Estado.

Assim, é fundamental ter presente que uma abordagem a esta problemática envolve, não apenas uma apresentação do modelo federal como uma solução viável na prevenção de conflitos de índole etnonacional, mas também um entendimento das dificuldades encontradas por Estados multinacionais na gestão da sua pluralidade étnica. Por conseguinte, o artigo procura numa primeira fase analisar esta questão à luz do direito das minorias e da sua aceitação e aplicação por este tipo de Estados para depois passar à observação do modelo federal, assumindo que o não-respeito do direito das minorias aumenta o risco de um conflito étnico em contextos onde a tensão étnica está latente.

O artigo não procura definir o conceito de federalismo nem tão pouco tem a intenção de apresentar o modelo federal como o único desfecho possível em contextos de tensão étnica. O seu objectivo passa pela apresentação de elementos que possibilitem avaliar as potencialidades deste modelo, tendo presente as suas vantagens na promoção de uma maior igualdade entre grupos étnicos no seio do mesmo Estado.

Estados multinacionais e o reconhecimento das idiossincrasias ao nível interno

Se a criação de Estados multinacionais obedece às mais diversas razões (históricas, económicas, culturais, religiosas), a sua sobrevivência constitui uma tarefa complexa, independentemente do tipo de estrutura estatal existente (cidade-Estado, monarquia, república, império ou outra).

Segundo Jennifer Jackson Preece,

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[a]s minorias não são mais do que etnonações que não conseguiram alcançar o objectivo final do nacionalismo étnico – a independência em relação ao seu próprio Estado-nação – e, por conseguinte, existem dentro das fronteiras políticas do Estado de outra nação; a sua própria existência é uma desconfortável recordação da ʽcrença na autodeterminação nacionalʼ na sociedade internacional […]. Em suma, o problema das minorias só surge no contexto do sistema de Estados- nação e é na verdade um resultado directo de anomalias e inconsistências no mesmo. (1998: 29)

São estas anomalias que vários Estados têm tentado corrigir, na maioria dos casos após o surgimento de movimentos internos reivindicando a pertença a essas “etnonações”, ou “nações sem Estado”. As últimas décadas do século XX viram o desenvolvimento de soluções devolucionárias enquanto respostas estatais a tendências centrífugas internas, nomeadamente no espaço europeu. O Reino Unido, a Espanha, a Itália, a Bélgica e até a França são exemplos de democracias ocidentais que deram um passo nesse sentido ao optarem por uma restruturação política e administrativa com o objectivo claro de pôr um termo às reivindicações de carácter etnonacionalista e etnoregionalista. Semelhantes na sua capacidade de destabilização da harmonia e da unidade do espaço nacional, estas reivindicações são distintas e específicas em termos de percepção. E porque cada Estado tem os seus próprios problemas, a solução encontrada é também ela diferente consoante os casos e as especificidades locais. A profícua bibliografia sobre conflitos étnicos e arranjos institucionais, enquanto reguladores das tensões entre o Estado e os diferentes grupos que o compõem numa base de rejeição da violência, tem apresentado inúmeras soluções visando a prevenção, a gestão e a resolução de conflitos. E se alguns autores se limitam a uma referência genérica das possibilidades existentes, outros não hesitam em apresentar listas intermináveis. De forma sucinta, podemos afirmar que a resolução assim como a prevenção de conflitos étnicos através da elaboração de arranjos institucionais passa pela criação de mecanismos como sejam um auto-governo territorial e não territorial, a divisão de poder aos níveis local e central, instituições transfronteiriças, a paradiplomacia, ou medidas promovendo os direito(s) humanos e das minorias (Cordell

&Wolff, 2010: 87). Aprofundando estas opções, William Safran (1994) apresenta várias políticas estatais que o próprio define como sendo de cariz positivista/pluralista; federalismo segundo critérios étnicos; quase-federalismo e pseudo-federalismo; autonomia local e/ou regional; consociação; descentralização funcional; rotação dos cargos públicos; autonomia local e/ou descentralização funcional mista; representação comunalista; representação legislativa garantida aos principais grupos etnoraciais; múltiplos sistemas legais e tribunais, funcionalmente diferenciados; reconhecimento de um estatuto de oficialidade ou co-oficialidade a várias línguas e institucionalização do multilinguismo; acção afirmativa; distinção entre cidadania e nacionalidade; distribuição de patrocínios; e, incentivo e subsidiação de criações culturais das minorias étnicas. Outra solução passa pela adopção de políticas promovendo a autonomia não- territorial, também conhecida por autonomia pessoal (ou cultural), sendo que esta se baseia fundamentalmente no pensamento de Otto Bauer e Karl Renner (Bottomore & Goode, 1978), dois pensadores austro-marxistas. Todavia, quaisquer que sejam as

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respostas estatais, todas procuram na descentralização territorial (e frequentemente na federalização ou pseudo-federalização) a síntese entre os interesses dos poderes central e locais (ou regionais), procurando ao mesmo tempo evitar que a resposta venha a constituir uma base legal para novas reivindicações.

O direito das minorias como resposta às reivindicações das “etnonações”

Limitando a nossa análise ao contexto europeu, é possível verificar que a protecção das minorias nacionais entrou definitivamente na esfera de intervenção de várias organizações internacionais (por ex.: Conselho da Europa, UE, OSCE, Conselho dos Estados do Mar Báltico, Iniciativa Central Europeia). O papel desempenhado por estas organizações tem sido objecto de estudo por parte de diversos autores que abordam a questão do direito das minorias sob os mais diversos prismas (Pentassuglia, 2004; Hogan-Brun & Wolff, 2003; Thornberry, 2001; Trifunovska, 2001a)1.

A protecção das minorias nacionais não é um fenómeno recente. Esta tornou-se, de facto, um princípio internacionalmente reconhecido no final da Primeira Guerra Mundial, com a definição dos Quatorze Pontos do presidente norte-americano Woodrow Wilson e a sua adopção parcial pelas potências vencedoras. Contudo, e não obstante a existência de várias convenções, como a Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais, a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias, ou o Instrumento da Iniciativa Central Europeia para a Protecção dos Direitos das Minorias, nas quais se podem encontrar recomendações relativas à protecção das referidas minorias, estas não são respeitadas na sua totalidade pelos seus Estados signatários. De acordo com Trifunovska (2001), o Conselho da Europa defende a ideia segundo a qual os indivíduos pertencentes a minorias têm vários direitos decorrentes dessa condição. As minorias têm assim o direito ao reconhecimento enquanto tal por parte do Estado em que residem; o direito de manterem e desenvolverem a sua própria cultura; o direito de manterem as suas instituições educacionais, religiosas e culturais; e, o direito de participarem enquanto sujeitos de pleno direito nas tomadas de decisão em assuntos que lhes digam directamente respeito (2001: 146).

De entre as várias convenções europeias que abordam esta questão, a mais conhecida

éa “Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais” emitida pelo Conselho da Europa em 1995 (COE, 1995). Dos quarenta e sete Estados-membros do Conselho da Europa, apenas quatro não assinaram esta convenção, sendo França uma das raras excepções2 dado este país não reconhecer a existência de minorias no seu território. De notar ainda que dos Estados que assinaram a Convenção-Quadro, apenas trinta e nove a ratificaram3. Outro documento de grande importância relativo à protecção das minorias, em particular em termos linguísticos, é a “Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias” (COE, 1992). Neste caso, existem apenas vinte e cinco ratificações para oito assinaturas não seguidas de ratificação4. A não-assinatura assim

1A este respeito, ver também Rechel (2009); Packer (2005); Philips (2005); Alcock (2000).

2As outras excepções são Andorra, Mónaco e a Turquia.

3Os países que não ratificaram a “Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais” são a Bélgica, Grécia, Islândia e Luxemburgo.

4A “Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias” não foi ratificada pelo Azerbaijão, França, Islândia, Itália, Malta, Moldova, Federação Russa e Macedónia. Para além destes países, há quatorze que

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como a não ratificação da Carta prende-se com várias questões, desde a não existência de minorias nacionais e, por conseguinte, de línguas regionais ou minoritárias, até questões de políticas linguísticas internas. Parece pois bastante claro que a existência de documentos deste género não é suficiente para garantir os direitos legais das minorias, pelo menos nos Estados não signatários, nem tão pouco que aqueles direitos (legais) são respeitados pelos Estados signatários. As referências à violação dos direitos das minorias ou ao não reconhecimento das mesmas é frequente não apenas na bibliografia mas também na imprensa local e nacional de vários Estados, assim como em relatórios de organizações internacionais dedicadas à protecção das minorias como seja o caso da OSCE e do seu Alto-Comissário para as Minorias Nacionais, vários centros de investigação5 ou ainda organizações não-governamentais como a Freedom House, a Minority Rights Group International e a Human Rights Watch. Os países bálticos (em particular a Estónia e a Letónia) são com frequência confrontados com as reivindicações das respectivas minorias russas. A minoria macedónia da Bulgária ainda não obteve reconhecimento legal por parte das autoridades locais. Os polacos continuam a ser alvo de discriminação por parte dos seus concidadãos lituanos apesar de uma história comum, pautada por relações pacíficas entre ambas as comunidades. Não queremos com isto afirmar que os direitos das minorias são o alvo de constantes violações por parte dos Estados em questão, nem tão pouco estamos perante situações de perseguição por motivos étnicos ou religiosos dignos dos pogroms da década de 1930 do século passado. O recente referendo sobre a oficialização da língua russa na Letónia6 (mais de um quarto da população do país é russófona, sendo um terço da população etnicamente russa) saldou-se por uma clara recusa desta pela maioria dos votantes (75%). Parece óbvio que submeter os direitos das minorias ao voto popular resulta com frequência na negação das mesmas. No caso letão, o resultado era expectável, não só pelo passado histórico do país e pela existência de uma minoria russa que é entendida como a consequência de uma política de desnacionalização da Letónia por parte das autoridades soviéticas, mas também pelas suspeitas de instrumentalização do referendo por Moscovo.

O não-respeito de alguns daqueles direitos é uma realidade em determinados países, mas não constitui necessariamente uma prática recorrente e persistente. Nas situações em que os direitos das minorias são respeitados, pese a inexistência de documentos legais com essa mesma finalidade, o Estado não signatário tem a possibilidade de argumentar que o respeito das particularidades locais e regionais assim como das identidades nacionais não necessita de qualquer vínculo jurídico-legal. Desta forma, este seria completamente desnecessário quando confrontado com tradições de respeito das minorias nacionais. A recusa em assinar e ratificar convenções internacionais (aos níveis regional e global) não se resume a um conjunto de boas práticas mais ou menos

não a assinaram. É o caso dos três países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), Albânia, Andorra, Bélgica, Bulgária, Geórgia, Grécia, Irlanda, Mónaco, Portugal, São Marino e Turquia.

5De destacar o ECMI, ou European Centre for Minority Issues, sediado na cidade alemã de Flensburg.

6As autoridades russas reagiram com indignação ao resultado do referendo através do ministro dos Negócios Estrangeiros Aleksander Lukashevich. Segundo ele, os direitos dos russófonos estão a ser desrespeitados pelo Estado letão, estando este a desrespeitar as suas obrigações internacionais (http://en.rian.ru/russia/20120219/171400820.html, último acesso a 14-VII-2013). Note-se que a Letónia se encontra entre os países que não assinaram a “Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias”. O país assinou contudo a “Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais” em 1995, tendo-a ratificado uma década depois. A última resolução do primeiro ciclo de monitorização, apresentado pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa a 30 de Março de 2011, refere-se às dificuldades encontradas pelos cidadãos pertencentes às minorias nacionais nas suas relações com o Estado devido ao não reconhecimento das línguas minoritárias.

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enraízadas nem tão pouco à simples inexistência de minorias nacionais no seio de um dado Estado. Para além das convenções internacionais, existem vários acordos bilaterais com o objectivo anunciado de corrigir “erros” históricos. Estes fazem, de certa forma, parte de um processo de reconciliação histórica tanto mais importante quanto resulta frequentemente de negociações internacionais tendo por vista a adesão a instituições ou organismos supra-estatais. Estes têm a especificidade de terem sido assinados em grande parte na década de 1990, após a Guerra Fria, e se referirem à questão das minorias nacionais na Europa central e oriental (Hornburg, 2006; Gál, 1999).

O federalismo enquanto instrumento de prevenção de conflitos

Se é verdade que o federalismo não está na origem do direito das minorias, não é menos verdade que o direito das minorias pode dar origem a regimes federais. Nos casos em que tal sucede, o federalismo surge como a solução definitiva, isto é, quando a gestão pacífica das diferenças locais e regionais resultantes da existência de minorias etnonacionais não foi conseguida através de outros mecanismos jurídico-legais e/ou culturais.

Em décadas anteriores, a violência e a dissidência política no País Basco, na Córsega e na Irlanda do Norte, por exemplo, foram consideradas como a evidência do fracasso da integração estatal. Presentemente, um certo reconhecimento nacional e a autonomia infra-estatal resultou numa diminuição da violência como um movimento táctico (Williams, 2009: 199).

Tendo por base as teorias sobre a origem dos Estados federais, que razões justificam a adopção de um regime federal por oposição à existência de Estados separados ou a secessão de partes de um dado Estado? O que estará na origem de federalismos centrípetos ou centrífugos?

Em primeiro lugar, é possível verificar que, segundo vários autores, as federações (e em especial as federações multinacionais) são entendidas como um instrumento viável na promoção da paz dada o seu recurso enquanto instrumento de prevenção de conflitos. Muitas nascem, portanto, como uma resposta aos receios provocados pela possibilidade de um conflito. Ao formarem uma federação, Estados previamente independentes procuram uma sensação de poder, real ou imaginada ou ainda dependendo da percepção que se tenha ou se queira dar dela, superior àquela que era detida por cada um individualmente. Esta sensação pode ser real ou imaginária (e imaginada) mas tem a capacidade de dissuadir eventuais agressores e/ou evitar conflitos entre os membros da federação, como era o caso da Confederação Iroquesa. Neta C. Crawford argumenta que,

[e]nquanto regime de segurança, a Liga Iroquesa funcionou bem para diminuir a conflitualidade entre os seus membros. Mais tarde, foi também parcialmente bem sucedida ao permitir às nações iroquesas

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adaptarem-se aos choques exógenos causados pela chegada dos europeus – despovoamento epidémico massivo, ruptura da economia local, e as guerras entre os europeus – porque criou a base para a diplomacia e a segurança colectiva (1994: 346).

Esta ideia está presente na obra de vários pensadores europeus que fizeram a apologia do federalismo aplicado ao Velho Continente. É o caso dos italianos Altiero Spinelli e Ernesto Rossi (1941) no seu famoso Manifesto de Ventotene, publicado em 1941, como resposta à violência provocada pela Segunda Guerra mundial e os regimes autoritários europeus. John Stuart Mill argumenta, contudo, que para que um regime federal (ou confederal) possa constituir-se como um instrumento válido de prevenção de conflitos, é necessário que não se torne mais agressivo que cada Estado membro da federação.

Em segundo lugar, o argumento segundo o qual existe uma maior eficiência económica nas federações aparece com frequência como um dos seus aspectos positivos, sendo aquelas entendidas como sendo mais capazes de promover a sua prosperidade económica. Este é um ponto altamente questionável mas que é detentor de um grande poder de atracção. São avançadas ideias como as da criação de um maior mercado interno livre de barreiras7 ou ainda a transformação das federações em importantes actores globais com a capacidade de influenciar as regras do comércio internacional (o que poderá ser o caso de algumas federações mas em caso algum de todas). A referência à dualidade comércio/prosperidade económica enquanto factores positivos de paz é frequente, sendo possível encontrá-las em vários projectos de paz da época moderna. Em terceiro lugar, a criação de um regime federal pode potenciar o desenvolvimento de um regime de protecção das minorias ao criar mecanismos para acomodar as mesmas. Estes podem passar pela restrição da soberania das entidades federadas e pela atribuição de um poder de intervenção ao poder federal em assuntos internos daquelas quando perante uma violação dos direitos das minorias. A validade deste argumento depende, naturalmente, da natureza do Estado federal. Se este desrespeitar de igual modo os direitos das minorias, então o poder de intervenção que lhe é atribuído encontra-se corrompido. Em quarto lugar, as federações podem facilitar a obtenção de certos objectivos de Estados soberanos previamente independentes. A transferência de alguns poderes e competências para um organismo comum, o Estado federal, permite-lhe assumir o papel de coordenador de actividades externas, como por exemplo relativamente à política externa. Mas esta cooperação ao nível federal pode derrapar ao exigir uma maior coordenação noutros sectores e, por conseguinte, dar origem a uma situação em que se assiste a uma centralização do poder. Em quinto lugar, as entidades federadas vêem a sua influência política reforçada no seio de uma federação. No caso de territórios anteriormente independentes, estes obtêm as vantagens de uma aliança política como sejam a coordenação acima referida. Pequenos Estados (ou antigas regiões e províncias) podem obter o maior reconhecimento e poder de decisão quando parte de Estados federais.

Por outro lado, é também necessário perceber porque razão escolher um regime de tipo federal em vez de um Estado unitário. Também neste caso as justificações

7Não é, pois, um acaso que a unificação da Alemanha tenha sido precedida pela eliminação das taxas aduaneiras nos territórios alemães com criação do Zollverein em 1818 e o seu posterior desenvolvimento e alargamento à maioria dos Estados alemães.

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apresentadas são várias e diversas, algumas delas aproximando-se daquelas acima referidas. Ao opôr o modelo unitário e centralizador ao modelo federal, Proudhon afirma que

[o]sistema federativo corta pela raíz a efervescência das massas, a todas as ambições e exaltações da demagogia: é o fim do regime da praça pública, dos triunfos dos tribunos, como da absorção das capitais. […] A federação torna-se assim a salvação do povo: pois salva-, dividindo-o, ao mesmo tempo, da tirania dos seus líderes e da sua própria loucura (1863: 100-101).

O federalismo como complemento ao direito das minorias

Como foi visto antes, uma das críticas feitas aos Estados unitários tem a ver com as suas políticas em relação às minorias existentes no seu território. Sendo eles o resultado de um processo de centralização do poder e de assimilação das periferias, assistiu-se ao domínio de um grupo nacional sobre os restantes, com a integração dos últimos na comunidade nacional que se queria abrangente e englobando a totalidade dos territórios sob autoridade do Estado. Esta dupla política teve por consequência a recusa de direitos aos grupos minoritários. O federalismo pode ser uma protecção para estes contra o poder central ao dotá-los de poderes e direitos constitucionalmente consagrados. Em segundo lugar, e na sequência do ponto anterior, os regimes federais podem acomodar as chamadas “nações sem Estado”, independentemente das suas reivindicações. O federalismo pode ser uma resposta a desejos de secessão e auto- determinação por parte daquelas nações, mas também uma solução para a preservação de elementos da identidade local, como a cultura, língua ou religião. Escrevendo na década de 1980, Stanislaw Ehrlich afirmava que

[o]s sistemas federais decidem pela descentralização territorial quem tem o poder, que soberania. As instituições do federalismo são ideologicamente neutras, e servem para descentralizar um Estado ou proteger identidades étnicas no seu seio. Os marxistas favoreceram governos unitários, aceitando o federalismo como um meio de evitar a dissolução do Estado. […] A secessão é geralmente resistida pela força […]. O federalismo tem um futuro! (1984: 359)

Em terceiro lugar, o modelo federal cria as condições para uma maior participação dos cidadãos nas tomadas de decisão públicas, através da deliberação ou da ocupação de posições nas entidades federadas ou estruturas do Estado federal. Finalmente, os arranjos de tipo federal, e em particular as federações assimétricas, podem abrigar grupos étnicos territorialmente localizados num dado território ao mesmo tempo, não os sujeitando a um regime jurídico uniforme à totalidade do território e, desta forma, preservando-os da “tirania da maioria” quando esta é sistematicamente contrária aos seus interesses. Este tipo de regime não unitário minimiza, até certo ponto, a repressão e é sensível às necessidades de um maior número de cidadãos.

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Não sendo um apanágio de Estados multinacionais, as teorias federalistas encontram nestes um terreno fértil para o desenvolvimento de propostas visando a prevenção de conflitos, a gestão de tensões interétnicas violentas e, em última instância, a manutenção da integridade territorial dos mesmos. De um ponto de vista político, a adopção de medidas federalisantes em contextos de violência (real ou previsível) procura ser uma resposta adequada ao secessionismo territorial, entendido pelas autoridades como a violação de um princípio sagrado: a unidade e indivisibilidade do Estado. Nalguns casos, a manutenção da integridade territorial de dado Estado passa pela necessidade de redefinir as estruturas internas da administração sub-estatal, a nível regional e local, estabelecendo governos regionais dotados de um elevado grau de autonomia (por ex.: Escócia no Reino Unido; Catalunha em Espanha). Não nos podemos, porém, esquecer que “[d]iferentes tipos de sociedade exigem diferentes tipos de instituições. O federalismo, por exemplo, pode ser irrelevante para pequenos países homogéneos mas uma necessidade virtual para outros maiores e heterogéneos” (Reilly, 1998:137). Esta redefinição das estruturas administrativas e a partilha de poder passam antes de mais pelo diálogo e concessões mútuas entre as partes envolvidas. É possível encontrar correntes federalistas no seio dos mais diversos movimentos etnonacionalistas, entre os quais movimentos geralmente associados ao separatismo radical8. Em tais circunstâncias, é possível concluir que a secessão apenas ocorre quando, apesar de tudo, estas alternativas são consideradas insuficientes para responder positivamente às reivindicações de todas as partes envolvidas (Estado, região, actores políticos, sociedade civil) e, como tal, para pôr um termo ao conflito existente, independentemente do grau de violência. O fim das negociações, ou a indefinição das mesmas, resulta com frequência na manutenção de um estado de violência cujo resultado pode ser a concretização de um processo secessionista unilateral. Ainda que se assista nestes casos à desmistificação da ideia de integridade territorial, a mesa das negociações volta a ser o local em que são definidos os moldes segundo os quais o novo Estado entra (ou não) no grupo restrito de Estados independentes.

A referência ao modelo federal como meio efectivo de promoção e defesa das diferenças no seio de um mesmo território não é uma novidade. A sua apologia tem, contudo, sido mais frequente quando as estruturas políticas em vigor não têm dado a resposta adequada a reivindicações que possam colocar em causa a própria existência de um Estado e a sua integridade territorial. A introdução precoce de mecanismos de partilha de poder tem o potencial para evitar que conflitos étnicos ou identitários se transformem em conflitos mortais (Sisk, 1998: 139). Alain-G. Gagnon defende que

8É bastante usual existirem várias posições e reivindicações no seio de alguns movimentos nacionalistas e/ou autonomistas. Se a independência é com frequência apresentada como a única solução possível e desejável em situações em que existe uma percepção de injustiça política, económica e cultural por parte de um dado grupo étnico; as correntes defendendo a implementação de soluções de cariz federalista existem como alternativa ao independentismo. Os casos da Galiza e da Bretanha são alguns dos exemplos que ilustram esta situação. Ramón Maiz (1984) divide o regionalismo galego de entre 1886 e 1907 em três tendências ideológicas: liberal, católico tradicionalista, e federal. A respeito do nacionalismo / regionalismo galego, veja também Duran (1984). De igual modo, o papel do pensamento federalista na Bretanha não deve ser subestimado devido ao forte papel histórico que desempenhou no seio do movimento nacionalista local (Nicolas, 2001; Barbin, 1937). Curiosamente, o nacionalismo basco também viu emergir uma corrente federalista, a saber através do Mouvement Démocrate Basque, que emergiu em França na década de 1960 (Gurrutxaga, 2005: 78; Izquierdo, 2001: 149-150).

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o federalismo, em ambas as suas manifestações institucionais e características sociológicas, constitui uma solução promissora na gestão de comunidades políticas coexistentes e na afirmação de identidades colectivas em Estados constituídos por duas ou mais nações (2010: 1).

Àprimeira vista, o modelo federal aparenta ser um instrumento de prevenção e gestão de conflitos quase perfeito. Pelo menos tanto quanto outros mecanismos político- institucionais e estruturais criados ou potencialmente adaptados para o efeito. É contudo utópico acreditar que existe perfeição quando o objecto de análise é a prevenção e gestão de conflitos e, em última instância, o indivíduo. Nem o federalismo tem essa aura de perfeição, nem tão pouco o têm outros mecanismos. Ao observar o papel desempenhado pelo federalismo na Índia e no Paquistão pós-independência na gestão do pluralismo étnico daqueles Estados, Katharine Adeney conclui que

[a]inda que não promova necessariamente a segurança e a paz étnica, não pode ser acusado de aumentar o conflito, especialmente quando é combinado com mecanismos consociativos (2007: 181).

A capacidade do modelo federal enquanto instrumento de prevenção e gestão de conflitos tem, contudo, granjeado de alguma popularidade, com particular ênfase em contextos multinacionais nos quais a manutenção da unidade do território nacional tem sido ameaçada por reivindicações de carácter autonomista, secessionista ou irredentista. A questão da Transnístria, que continua em aberto desde a implosão da União Soviética e a independência da Moldova, tem sido um desafio para o qual ainda não foi encontrada uma solução. Têm sido elaboradas várias propostas de federalização daquele país com o intuito de pôr termo ao conflito, embora sem qualquer sucesso (VVAA, 2009; Löwenhardt, 2004). Segundo Andrey Safonov,

[p]arece que, no nosso caso específico, a resolução pode ser conseguida apenas através da federalização da antiga República Socialista Soviética da Moldávia com elementos de confederação. A Moldova deve abandonar a sua abordagem unitária e a Transnístria deve desistir das suas pretensões de independência total ao nível de um Estado-membro da Organização das Nações Unidas (2009: 188).

Outro exemplo de uma proposta conceptual promovendo o federalismo como meio de gestão de conflitos pode ser encontrada na análise efectuada por Bruno Coppieters sobre o conflito opondo as regiões georgianas da Abcásia e da Ossétia do Sul e as autoridades de Tbilisi. Coppieters propunha transformar a Geórgia numa república federal, na qual aquelas regiões gozariam de uma autonomia local alargada (2003). O conflito que opôs a Geórgia à Federação Russa no verão de 2008 veio destruir qualquer hipótese de redefinição administrativa interna, pelo menos no curto prazo. A proclamação de independência daquelas duas regiões, reconhecida e apoiada política,

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económica e militarmente por Moscovo, veio apenas agravar a situação sem ter resolvido de forma definitiva o conflito opondo Tbilisi às suas regiões.

Contudo, vários exemplos de federações falhadas ou, nas palavras de Emilian Kavalski e Magdalena Zolkos (2008, 163), “federalismos defuntos”, mostraram os limites deste modelo de construção do Estado, pondo igualmente termo à ideia segundo a qual o federalismo seria uma panaceia para contextos como os anteriormente referidos. Significa isto que este modelo político deve ser abandonado ou, pelo menos, ser recusado enquanto uma das soluções mais adequadas para a gestão da diversidade étnica em Estados onde a situação é potencialmente explosiva? Ou quererá isto dizer que é necessário reformular o que se entende por federalismo de acordo com situações específicas e aceitar que este pode revelar-se inadequado enquanto resposta válida noutras circunstâncias? Enquanto meio de gestão de conflitos, em especial conflitos étnicos, o modelo federal tem o mesmo objectivo que outros mecanismos institucionais, a saber a resolução daqueles conflitos.

O objectivo da resolução de conflitos é estabelecer um quadro institucional em que os interesses conflituosos das principais diferentes entidades em conflito […] se possam de tal forma acomodar que os incentivos para a cooperação e a continuação não violenta de conflitos de interesses através do compromisso superem quaisquer benefícios que possam ser esperados do confronto violento (Cordell & Wolff, 2010: 17-18)9.

Não se pode ver, de forma alguma, no federalismo uma panaceia para todos os males do mundo (Watts, 2003: 17). Todavia, esta é uma solução que não se pode descurar. Segundo Watts, verifica-se hoje em dia o desenvolvimento de sistemas híbridos que conjugam elementos federais e unitários como sejam a África do Sul e a União Europeia (idem, 18). Será essa a solução? A variedade de federalismos existentes e a sua capacidade de adaptação a casos diferentes pode ser um indicador de que o regime federal tem uma palavra a dizer enquanto modelo de organização estatal. Se, de acordo com J. Denis e Ian Derbyshire (2000, 19-22), o federalismo pode ser histórico, cultural, geográfico, linguístico, étnico, artificial ou imitativo, esta caracterização é em todos os casos cumulativa. Assim, a Bélgica é considerada por estes autores uma federação simultaneamente cultural e linguística, sendo a Suíça uma federação histórico-cultural. A Bósnia-Herzegovina, por seu lado, acumula aos factores histórico e cultural, o factor étnico. Contudo, esta definição apresentada por estes autores pode ser facilmente contrariada. A Suíça constituiu um exemplo claro de uma federação multi-étnica, ainda que ao contrário do que sucede noutros casos, a Confederação suíça não assenta na distinção interétnica ou na diferenciação linguística. A instauração de um regime federal reside frequentemente num paradoxo. Se, como foi acima referido, o federalismo surge como resposta ao Estado-nação tradicional, unitário e centralizado, os moldes nos quais é instituído devem por conseguinte ser diferentes deste último. Contudo, existem algumas dúvidas que merecem ser esclarecidas. Segundo Carré de Malberg, “o Estado federal aparece nalguns aspectos como um Estado unitário” (1962:

9Itálico conforme ao original.

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96). O que parece contraditório encontra a sua justificação no princípio da sobreposição. A subordinação das entidades federadas ao poder federal resulta na limitação das suas competências e conduz a conflitos legais entre os dois níveis. Não raras vezes, o Estado federal é acusado de querer assumir um papel que ultrapassa as suas competências, a saber o de Estado central omnipresente. O caso norte-americano

ébastante revelador desta problemática. Por se encontrar a meio caminho entre o confederalismo e o unitarismo (ou centralismo), o federalismo é alvo das critícas dos defensores de ambos os regimes. O seu estabelecimento e manutenção são o resultado de uma tensão permanente entre partidários de um Estado federal forte e aqueles que advogam o maior grau de autonomia possível para as entidades federadas. Historicamente, foi a necessidade de uma maior integração política e de um poder executivo forte que levou a que vários regimes confederais optassem por uma maior centralização e, por conseguinte, por regimes federais. Voltando ao modelo federal suíço, é fundamental ter presente que este é o resultado de uma evolução com mais de setecentos anos, e que passou por três fases distintas. Quando em 1291, os cantões de Uri, Schwyz e Unterwalden se aliaram através da chamada aliança de Uri, renovada em 1315 pela aliança de Bonden, aquelas comunidades estavam longe de imaginar que esta seria a génese da Confederação helvética. Segundo Andreas Wimmer (2002: 233), o modelo suíço caracteriza-se pela chamada “paz linguística” que difere dos tradicionais regimes de protecção das minorias ao recusar oficializar o estatuto minoritário das línguas faladas no país. Isto significa que apesar do alemão ser a língua mais falada na Confederação Helvética, as línguas francesa, italiana e romanche não são alvo de qualquer política linguística ou estatuto jurídico visando a sua protecção e/ou promoção. Em última instância, estas são línguas nacionais suíças como a língua alemã. “Politicamente falando, a Suíça não conhece minorias” (idem, ibidem).

Todavia, e não obstante a excepção suíça, as políticas de reconhecimento (ou políticas de identidade) são de uma grande importância. Importância essa que deve ser reforçada ao analisar a viabilidade do modelo federal na gestão, prevenção ou resolução de conflitos. Sendo o federalismo uma das escolhas para acomodar grupos nacionais minoritários, mantendo-os no cadilhe nacional, deve procurar responder positivamente às reivindicações das minorias. As federações podem fazê-lo de duas formas diferentes, seja através de uma partilha de poder equitativa, ou através da atribuição de maiores competências às minorias, nomeadamente em termos de influência na tomada de decisões comuns. Mas a politização da identidade também pode dar origem a novos desafios, especialmente em regimes federais nos quais os riscos de instabilidade ligados à existência de fortes sentimentos etnonacionais minoritários são claros. A manutenção de uma dupla lealdade política10, ou de duas lealdades políticas11, é necessária, assim como o é um estatuto de auto-governo, podendo estes ser factores de uma instabilidade acrescida ao ser pervertidos a favor de interesses cada vez mais locais a despeito do bem comum da federação. O modelo federal pode, de maneira involuntária, estar a alimentar o secessionismo que procurava

10Entende-se por dupla lealdade política uma lealdade que, sendo una, engloba duas lealdades diferentes (por ex.: regional e nacional, ou nacional e supranacional). Estas são experienciadas pelo indivíduo da mesma forma, não sendo uma lealdade mais importante que a outra.

11No caso de duas lealdades políticas, está-se de igual modo, perante duas lealdades diferentes. Porém, se estas também existem em simultâneo, não são necessariamente experienciadas da mesma forma pelo indivíduo. Assim, é possível que uma das lealdades seja considerada mais importante e, como tal, privilegiada em relação à outra.

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combater. O reconhecimento e a institucionalização da diferença estariam assim a minar as condições de uma identificação comum.

Conclusão

Não deixa de ser interessante verificar que as federações são muitas vezes entendidas como regimes desviantes. Sendo o modelo de tipo unitário e centralizado pós-Vestefália considerado o ideal de regime estatal, o federalismo pode parecer sui generis. A existência de federações diferentes entre si vai nesse sentido. Por não existir uma única forma federal, um federalismo-tipo, esta parece padecer de uma esquizofrenia normativa para a qual não se vislumbra cura alguma mas sim novas ramificações. Cada federação é federal à sua maneira. De notar que os regimes com características federais e, por conseguinte, fugindo ao tipo de Estado unitário, não são uma inovação da modernidade. É possível, como analisado, encontrá-los desde a Antiguidade e em vários contextos geográficos.

Da mesma forma, se este artigo procurou apresentar as principais vantagens deste modelo, é necessário ter presente que o federalismo não é um remédio infalível, devendo por conseguinte ser visto como uma solução entre muitas outras. O artigo teve como finalidade não um estudo intensivo e extensivo do federalismo, mas a breve apresentação do mesmo enquanto um instrumento viável na gestão da pluralidade étnica em Estados multinacionais assim como na prevenção de conflitos em contextos onde aquela é uma realidade.

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