OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 64-73

O CARÁCTER MULTIDIMENSIONAL DOS NACIONALISMOS

CENTRÍPETOS E CENTRÍFUGOS

Filipe Vasconcelos Romão

vasconcelosromao@gmail.com Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal). Doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Diploma de Estudos Avançados em Política Internacional e Resolução de Conflitos (2007) e licenciado em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2005). Investigador Integrado no OBSERVARE. Professor assistente na Faculdade de Ecomomia

da Universidade de Coimbra (2010/2011). Investigador na Universidade de Deusto (2008/2009), ao abrigo do European Doctorate Enhancement in Peace and Conflict Studies (EDEN).

Bolseiro de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2008-2011).

Resumo

Tradicionalmente, os autores centram-se no discurso dos actores políticos e na forma como os mesmos se definem para identificar a presença de correntes políticas nacionalistas. Este artigo pretende apresentar uma grelha de análise mais ampla, visando abranger também a acção como forma de manifestação do nacionalismo. Em linha com esta proposta multidimensional, procura ainda identificar diferenças na forma com os nacionalismo se manifestam em função da sua posição em relação ao poder.

Palavras chave:

Nacionalismo centrípeto; Nacionalismo centrífugo; Estado autonómico; Identidade nacional

Como citar este artigo

Romão, Filipe Vasconcelos (2013). "O carácter multidimensional dos nacionalismos centrípetos e centrífugos". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2, Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art3

Artigo recebido em 3 de Setembro de 2013 e aceite para publicação em 17 de Outubro de 2013

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O carácter multidimensional dos nacionalismos centrípetos e centrífugos

Filipe Vasconcelos Romão

O CARÁCTER MULTIDIMENSIONAL DOS NACIONALISMOS

CENTRÍPETOS E CENTRÍFUGOS

Filipe Vasconcelos Romão

Introdução

O termo nacionalismo tem uma dupla conotação empírica na vida política actual: a violenta, cuja imagem mais forte e mais presente é a dos conflitos jugoslavos da década de 90 do século XX e, em menor medida, a dos grupos violentos independentistas, como a Frente Popular de Libertação da Palestina ou o Irish Republican Army (cuja expressão tem vindo a reduzir-se gradualmente); e a aberta e democrática, uma espécie de nacionalismo light, cujas reivindicações estão perfeitamente acomodadas e são amortecidas no contexto do sistema político concreto em que se inserem. No segundo caso, a face mais visível são os regimes autonómicos como o catalão, no caso espanhol, ou o escocês, no contexto britânico. Esta classificação, bastante ligeira e mais baseada no senso comum do que numa análise rigorosa dos factos, acaba por ser acolhida em certas abordagens científicas (Kaldor, 2004). Em paralelo, a nível mediático, o nacionalismo parece ser notícia apenas quando se faz sentir como fenómeno ruidoso, através dos mais diversos tipos de manifestação, que podem ir de uma simples cerimónia solene de comemoração de um feriado ou de um evento desportivo que desperte os mais exaltados orgulhos nacionais até grandes mobilizações sociais de defesa ou de contestação do direito à autodeterminação.

Porém, existem acções de cunho nacionalista que, embora mais discretas, podem assumir uma natureza transcendente. As políticas activas de defesa e manutenção da integridade e soberania de um Estado, levadas a cabo a partir do governo central, democraticamente instituído, por um determinado grupo de representantes directa ou indirectamente eleitos, podem ser um destes exemplos, não obstante o seu carácter mais discreto do que o dos nacionalismos reivindicativos ou dos violentos.

Em linha com a problemática identificada, apresentamos, neste artigo, uma proposta de leitura do fenómeno do nacionalismo, a partir de três dimensões distintas, que correspondem às formas como o mesmo se pode manifestar: acção, discurso e autodefinição. No âmbito desta análise, e em função da influência que a materialização política (Estado independente ou não) tem na forma como o nacionalismo se manifesta, recorreremos e explicitaremos outros dois conceitos explicativos, o nacionalismo centrífugo e o nacionalismo centrípeto, para procurar fundamentar este carácter multidimensional.

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Finalmente, em termos teóricos, assumimos a influência dos princípios estruturais a partir dos quais se desenvolvem as ideias de “nacionalismo banal” e de “everyday nationhood”. Estas são, assim, um ponto de partida para a nossa reflexão e constituem uma base conceptual que assumimos pretender alargar.

1. Elementos teórico-conceptuais

Ao propor uma abordagem ao conceito de nacionalismo a partir das formas como este se manifesta, pretendemos, sobretudo, demonstrar a importância da acção como elemento tão válido quanto o discurso ou a forma como um actor político se define a si próprio. Neste contexto, é importante destacar o desenvolvimento dos conceitos de “nacionalismo banal” (Billig, 1995) e de “everyday nationhood” (Fox e Cynthia, 2008). No centro destas propostas está a reprodução diária e discreta das nações protagonistas de Estados-nação consolidados, o que remete para uma dimensão quase subconsciente que se faz sentir em acções quotidianas dos cidadãos comuns.

Parece-nos possível ir mais longe do que o denominado nacionalismo banal ou nacionalismo do dia a dia. Como veremos abaixo, julgamos que há acções, por parte do poder político de um Estado, que são conscientes e premeditadas, no sentido de preservar e consolidar uma determinada nação e que vão além do seu carácter discreto, chegando mesmo, em alguns casos, numa atitude aparentemente paradoxal, a negar e a repudiar o próprio nacionalismo. Os laços nacionais ver-se-ão reforçados por outros factores que não os explicitamente nacionalistas, muitas vezes rejeitados pelas opiniões públicas, dada a sua conotação negativa.

Jon E. Fox e Cynthia Miller-Idriss afirmam a importância que têm determinados gestos e acções do dia a dia dos cidadãos comuns na produção e reprodução da nação. Esta não será um mero produto de directrizes estruturais provenientes de elites estatais, incluindo também certas realizações diárias de pessoas comuns (2008: 537). O cerne desta abordagem centra-se no carácter performativo que cada acção assume: não se limita a reflectir a pertença de uma pessoa a uma determinada nação, é ela própria criadora da nação.

Também sublinhando a importância das acções dos cidadãos comuns, Michael Billig introduz no debate a expressão “nacionalismo banal”, com o objectivo de desmistificar o nacionalismo e contrariar a ideia de que este só está presente no comportamento de políticos e grupos de extrema-direita ou nas lutas pela independência nacional levadas a cabo por quem pretenda a secessão de um determinado Estado (1995: 5). Partindo do pressuposto comummente aceite segundo o qual o Estado-nação é, desde finais do século XIX, a principal unidade política dos sistemas doméstico e internacional, Billig manifesta estranheza pelo facto de o nacionalismo ser, regra geral, visto como um fenómeno que não diz respeito às nações ou Estados consolidados (1995: 5). Com efeito, as nações que têm as suas aspirações políticas plenamente enquadradas em Estados independentes continuam a existir e a manifestar-se todos os dias, apesar de o fazerem de forma banal e sem suscitar grandes atenções mediáticas.

Haverá, desta forma, todo um conjunto de comportamentos e de interacções que não são, regra geral, vistos como dizendo respeito ao nacionalismo, comummente mais associado a práticas extraordinárias ou com uma conotação negativa. O autor de “Banal Nationalism” considera que o grau de enraizamento do nacionalismo dominante

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nos Estados-nação consolidados é tal que os cidadãos repetem determinados gestos sem os associar a manifestações de identidade nacional, citando como exemplo a simples exibição da bandeira dos Estados Unidos da América em locais públicos (1995: 39). Esta realidade presente no dia a dia de milhões de cidadãos é tão natural que nem merece qualquer qualificativo, o que já não acontece com fenómenos radicais violentos. Segundo Billig, além de ignorado pelos cidadãos e pelos políticos, o estudo desta componente do nacionalismo também tem sido negligenciado pelos académicos que se dedicam ao tema (1995: 43). No entanto, é o próprio que assume a sua adesão às teses modernistas, quando sublinha o papel de guia que o nacionalismo tem no desenvolvimento do actual Estado (1995: 19). O Estado-nação estabeleceu padrões que são, hoje em dia, dados como adquiridos desde sempre pela cidadania, que acaba por não ter bem a noção de que o vínculo a uma identidade nacional é algo relativamente novo.

2. Nacionalismos centrípetos e centrífugos

No contexto das democracias ocidentais, o nacionalismo democrático assumido acaba por ser quase um monopólio daqueles que Anwen Elias (2009) qualifica como partidos nacionalistas minoritários (por exemplo, a Convergència Democràtica de Catalunya), ideia que vai no mesmo sentido do conceito de “pequeno nacionalismo”, empregue por Mary Kaldor (2004). Definitivamente, os grandes partidos e os governos dos Estados afastaram-se deste tipo de linguagem, o que acaba por também ir ao encontro dos conceitos de “nacionalismo banal” de Michael Billig (1995) e de “everyday nationhood” de Jon E. Fox e Cynthia Miller-Idriss (2008), quando defendem a valorização de outras manifestações para lá da retórica. O próprio Billig sublinha que, no essencial, os nacionalismos estão associados a ideologias fascistas ou a movimentos separatistas.

Convirá, neste momento, aclarar, diferenciar e justificar a nossa interpretação de dois conceitos estruturais desta abordagem: nacionalismo centrípeto e nacionalismo centrífugo. Por nacionalismo centrípeto entendemos o nacionalismo que procura manter agregada, ou vir a agregar, na mesma entidade política (tipicamente, o Estado), uma ou várias identidades nacionais, no quadro da maior integração possível. Dizemos integração e não homogeneidade (termo empregue com mais frequência nas abordagens tradicionais), porque a dinâmica política das últimas décadas tem demonstrado que existem múltiplas formas concretas de nação, algumas mais abrangentes e tolerantes com a diversidade interna. A integração parece estar a ganhar algum terreno à homogeneidade.

A opção pelo termo ‘centrípeto’ prende-se com a evolução dos sistemas políticos democráticos. No contexto dos Estados autonómicos, o termo ‘centralizador’ tende a perder força. Nestes casos, a descentralização política é perfeitamente compatível com a existência de uma identidade nacional, que, a partir do governo central, procure manter a supremacia sobre outras identidades presentes no mesmo território. Por outro lado, o nacionalismo centrífugo faz o percurso inverso, procurando afastar-se do pólo agregador mais vasto em que está integrado. O seu objectivo final pode ser a independência de uma entidade política ou a obtenção de maior autonomia, no quadro de um Estado autonómico ou federal.

Como em qualquer regime político de um Estado plurinacional, no âmbito de uma democracia, o choque entre nacionalismos centrífugos e centrípetos gera,

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necessariamente, uma relação conflitual assimétrica. Para esta assimetria contribui, do lado do nacionalismo centrípeto, toda a estrutura de um Estado central organizado que concede ao actor político mediato que ocupa o poder uma enorme margem de manobra para levar a cabo o seu projecto. Quando os nacionalismos centrífugos optam por respeitar a ordem constitucional estabelecida no Estado em que se encontram inseridos, como, até há pouco, acontecia no caso escocês, o maior nível institucional a que podem aspirar, num primeiro momento, é o das estruturas governamentais regionais ou locais. Obviamente, não pode ser excluída a hipótese de uma revisão da ordem constitucional. Este é, muitas vezes, o objectivo dos nacionalismos centrífugos democráticos, em virtude da protecção constitucional à soberania dos Estados. Sendo, tradicionalmente, o objectivo último do nacionalismo a instituição de um Estado-nação próprio independente, é natural que pretenda subverter a ordem que o impede de atingir este patamar. No entanto, há formas de Estado que induzem a um comportamento mais pragmático e favorecem o estabelecimento de objectivos prévios a uma hipotética independência.

Entre as formas de Estado dotadas de uma organização territorial mais adequada à conjugação de diferentes identidades nacionais dentro de uma mesma unidade política soberana, encontramos o Estado federal e o que Jorge Miranda classifica como “Estado unitário regional” (1994: 259). Este, também conhecido como Estado autonómico ou Estado das autonomias, teve um contributo importante para pôr fim à exclusividade da imagem da nação centralizadora como uma identidade que procura subjugar, através do Estado, as suas congéneres periféricas, sem lhes reconhecer quaisquer direitos específicos. O quadro dicotómico que temos vindo a apresentar pode perfeitamente encaixar neste modelo político: as instituições do Estado central vêem-se maioritariamente preenchidas por provenientes ou partidários da nação centrípeta e as autonomias regionais pelos correspondentes das nações centrífugas. Parece-nos óbvio que poderão coexistir, dentro do mesmo Estado regional, regiões autónomas em que predomine uma identidade nacional centrífuga e regiões sem outra identidade nacional que não a centrípeta, salvaguardadas as respectivas especificidades regionais. Esta adequação entre um determinado sistema político e uma realidade nacional plural não prejudica outros contextos em que o Estado regional esteja instituído em países etnicamente homogéneos ou sem uma identidade nacional predominante.

O Estado contemporâneo já não corresponde à imagem padronizada do modelo jacobino e centralizador que tem nos órgãos de soberania nacionais o único ponto a partir do qual é exercido o poder político. Actualmente, coexistem diversos modelos estatais de organização territorial, podendo o Estado unitário regional ter como grande objectivo a acomodação de aspirações políticas periféricas, através do recurso à criação de novos pólos de poder, geograficamente não coincidentes com a capital, para os quais são transferidas competências tradicionalmente exercidas pelo governo central. Através da aplicação destas formas jurídico-constitucionais, são criados mecanismos de escape que procuram aliviar, pelo menos parcialmente, tensões identitárias através de vias institucionais, o que vai em linha com os teóricos do nacionalismo liberal, quando relativizam o objectivo de independência nacional em favor de processos de autodeterminação cultural e de aprofundamento autonómico ou federal (Tamir, 1995: 69; Miller, 2000: 124).

O Estado federal que, pelas suas características, numa abordagem superficial, poderia ser encarado como a opção mais lógica para os países democráticos com tensões

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nacionais internas, acaba por não se revelar muito cativante. É provável que haja algum receio em ir muito longe na descentralização formal, o que não prejudica que um Estado unitário regional, na prática, seja tão ou mais descentralizador do que uma federação, em relação às competências que atribui aos níveis infraestatais. Nas questões relativas à soberania, o simbólico ainda tem muito peso. A título de exemplo, podemos observar que três dos sistemas federais mais relevantes, o norte-americano, o brasileiro e o alemão, não contam com nacionalismos centrífugos com relevância política no seu seio. O sistema federal canadiano, que abarca a província do Quebeque (que conta com um forte movimento nacionalista centrífugo), entre as democracias ocidentais, parece constituir uma rara excepção. Por outro lado, há vários Estados com realidades deste género que optam por modelos formalmente unitários, embora descentralizados, como o Reino Unido, Espanha ou Itália.

Sendo o nacionalismo e o poder dois conceitos com uma relação directa, os nacionalismos centrífugos são os óbvios beneficiários da criação de centros de poder periféricos institucionalizados. Este quadro contribui para desmistificar a ideia de proximidade entre nacionalismo e violência, através da normalização e democratização política de conflitos nacionais não violentos ou que, gradualmente, tendam a não violentos. Frente a frente, recorrendo unicamente aos canais democráticos, passam a estar um nacionalismo centrípeto, que se pode definir pela subtileza do discurso, e um, ou vários, nacionalismos centrífugos, bem definidos e afirmativos.

Neste contexto, a famosa expressão disjuntiva “Independência ou morte”, pronunciada pelo imperador Pedro I aquando da independência do Brasil, que parecia perfeitamente adaptável a décadas de conflitos secessionistas ou expansionistas, deixa de fazer sentido. O objectivo final de independência pode agora ser protelado, pelo nacionalismo centrífugo, para um momento mais oportuno, dando lugar a uma grelha muito mais indefinida e complexa de objectivos intermédios que, uma vez cumpridos, poderão, ou não, dar lugar à secessão. Isto leva a uma alteração de estratégia pelo nacionalismo centrípeto, que pode prescindir do discurso musculado e concentrar-se no menos visível conflito pelos objectivos intermédios. No fundo, este é o debate principal, uma vez que, consoante o que aqui se passe, haverá, ou não, margem para evoluir para o debate final: o da independência nacional.

3. Dimensões do nacionalismo: acção, discurso e autodefinição

Os cidadãos têm um peso fundamental no escrutínio dos agentes políticos. É inevitável que, no contexto dos actuais sistemas democráticos fortemente mediatizados, haja uma aferição permanente da convergência ou divergência entre o discurso e a acção, bem como da conformidade entre estas manifestações e auto-definição dos próprios agentes. No caso da identidade, a questão ganha maior relevância, visto estar em causa a essência de um elemento estrutural da principal unidade política do sistema internacional, o Estado-nação. Assim, por exemplo, a propósito da acção dos governos, podemos assumir que entendemos o nacionalismo como um fenómeno que se manifesta de forma multidimensional, sendo possível isolar e analisar três expressões concretas do mesmo: acção, discurso e autodefinição.

Ao valorizar a acção e ao não considerarmos o discurso como única manifestação indiciadora da presença do nacionalismo, este conceito, em si mesmo, torna-se mais abrangente, passando a tónica a incidir sobre a sua intensidade. A defesa de uma

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identidade com objectivos políticos, no contexto da actividade interna e externa do Estado, é mais frequente do que muitas vezes se julga, variando, isso sim, no grau ou intensidade. Um nacionalismo que se limite a sê-lo na dimensão dos seus actos será menos intenso do que outro que, além de actuar, faça uso de um discurso de defesa e de apologia da respectiva identidade o que, por sua vez, será superado pelo nacionalismo que age, discursa e assume a sua opção.

O facto de entendermos o nacionalismo como um fenómeno multidimensional e de considerarmos que a acção deve ser alvo de uma maior atenção em termos analíticos não acarreta uma desvalorização do papel do discurso, provavelmente a componente mais visível e indispensável ao que classificamos como nacionalismo afirmativo. Muitas vezes, é através do discurso que o nacionalismo mobiliza e mantém a coesão das suas bases, em contextos pacíficos e democráticos e em contextos conflituais violentos. Há uma gama muito diversificada de possibilidades discursivas nacionalistas, como o comprovam diversos casos. Por exemplo, nos períodos de ascensão e apogeu das ditaduras fascistas (entre as décadas de vinte e de quarenta do século XX), regimes nacionalistas por excelência, o tipo de discurso destes governos era claramente afirmativo, violento, de exaltação dos respectivos valores identitários e de exclusão do diferente. Paralelamente, o discurso dos regimes democráticos liberais proclamava outro tipo de valores, sem deixar de assumir e exaltar a própria identidade (provavelmente, por considerar que os valores democráticos e liberais lhe eram inerentes). Com base neste quadro terminológico, poderíamos mesmo afirmar que os regimes fascistas foram o exemplo perfeito de um nacionalismo de Estado afirmativo e assumido e que se contrapõem à mencionada prática inexistência deste tipo de nacionalismo nos governos de Estados independentes democráticos contemporâneos.

Um discurso com características semelhantes ao dos fascismos acaba por ser recuperado, mais tarde, pelas diferentes partes em confronto nas guerras dos Balcãs, em plenos anos 90 do século XX. Neste caso, depois de quase cinquenta anos de Guerra Fria (em que a tónica estava colocada no discurso ideológico) e da subsequente descompressão discursiva e prática da democracia liberal, assistiu-se a um regresso a uma dialéctica de agressividade e enaltecimento nacionalista a que o mundo parecia já não estar habituado. Nos últimos anos, com a expansão do sistema democrático liberal e com a estabilização do mapa político, a componente nacionalista do discurso político, na Europa, tendeu a um menor grau de enaltecimento dialéctico e a um mais baixo perfil. Não obstante, menos visibilidade não é necessariamente sinónimo de ausência, podendo uma atitude discreta conduzir a resultados mais efectivos do que uma via afirmativa mais ruidosa.

Regressando ao exemplo do governo que actua com o objectivo de manter o Estado- nação do qual é órgão de soberania, observamos que, frequentemente, as políticas desenvolvidas nesse sentido podem ser acompanhadas por um discurso de enaltecimento identitário que sublinhe a sua importância e a sua função. Nesse caso, poderemos dizer que há uma correspondência entre a acção e o discurso, o que consubstancia uma actuação que qualificaríamos como nacionalismo afirmativo. Por outro lado, também é possível conceber e encontrar exemplos concretos de governos que desenvolvem e aplicam políticas semelhantes, mas que não as fazem acompanhar pelo mesmo tipo de discurso. Na prática, cumprem a sua função de garante dos direitos políticos de uma determinada identidade, mas não são explícitos em relação à materialização destes objectivos. Aqui, poderíamos falar de um nacionalismo subtil.

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Convencionalmente, considera-se que há um maior alinhamento entre partidos e ideologias de direita e posicionamentos nacionalistas (McCrone, 1998: 3). Julgamos que para esta ideia também terá contribuído o facto de os partidos de esquerda utilizarem um discurso mais cosmopolita, com menos referências identitárias. Porém, em termos práticos, um quadro de análise que concebe o nacionalismo como um fenómeno pluridimensional exige reajustamentos neste alinhamento, o que nos conduz a identificar uma maior propensão dos partidos, governos e ideologias de direita a enquadrar-se num modelo de nacionalismo afirmativo e dos seus congéneres de esquerda num modelo de nacionalismo subtil. Ambos actuarão em favor de uma identidade e dos seus objectivos e materializações políticas, residindo as diferenças que os separam no discurso e não na acção.

Em relação à terceira dimensão que propomos, a autoafirmação, esta materializa-se na assunção explícita de alguém, ou de alguma estrutura, como nacionalista ou como partidário de políticas nacionalistas ou de defesa declarada de determinada identidade ou nação. Este fenómeno é pouco frequente nos dias que correm, principalmente quando observamos a actuação de governos ou de grandes partidos dos denominados países desenvolvidos. Como tivemos oportunidade de referir, a associação entre nacionalismo e lógicas violentas e excludentes tem uma projecção mediática considerável, o que acaba por gerar receios de conotação negativa entre os agentes políticos.

Não obstante, existem vários partidos, das mais diversas proveniências ideológicas e em vários contextos políticos, a assumir-se explicitamente nacionalistas ou a fazer da defesa dos direitos políticos de uma identidade o ponto central do seu programa. Desde partidos de extrema-direita, que assumem a defesa da nação na acepção étnica mais excludente e totalitária do termo, como o Nationaldemokratische Partei Deutschlands (NPD), a partidos plenamente democráticos que defendem o alargamento dos níveis de autogoverno da sua região, no quadro do Estado de direito autonómico em que estão inseridos, como a Convergència Democràtica de Catalunya (CDC). Obviamente, não pode ser inferido qualquer género de afinidade entre estes dois exemplos, que servem apenas para ilustrar a abrangência do nacionalismo assumido.

4.A dimensão discursiva e a natureza centrípeta e centrífuga do nacionalismo

No caso da relação entre o discurso e a natureza centrípeta ou centrífuga do nacionalismo, no âmbito dos actuais quadros políticos, o segundo tende a ser mais afirmativo do que o primeiro, como pudemos verificar quando mencionámos o exemplo dos catalães da CDC. Parece haver alguma correlação entre o grau de afirmação discursiva do nacionalismo e a sua posição em relação ao poder (entendendo-se poder na sua materialização máxima de conquista de soberania, ou seja, de um Estado- nação).

Neste sentido, Xosé M. Núñez Seixas afirma que

a componente nacionalista (...) desempenha um papel de protagonista na agenda dos partidos ou movimentos sociopolíticos cuja nação de referência não goza de um reconhecimento institucional considerado

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suficiente e, acima de tudo, de soberania (2010: 13-14).

Tomemos como exemplo o caso da Escócia, região com históricas aspirações independentistas, integrada no Reino Unido: o nacionalismo escocês é claramente afirmativo e assumido, o que se materializa na própria denominação do principal partido nacionalista local, o Scottish National Party (SNP), e na sua organização estudantil, a Federation of Student Nationalists (FSN). O governo britânico, principal órgão executivo do Reino Unido, provavelmente fruto da comodidade que confere uma posição de poder até há pouco tida como um dado adquirido e pouco contestado, não recorre à mesma terminologia e mantém uma posição formalmente aberta em relação a uma potencial evolução política do estatuto da região, recorrendo a um modelo que estará entre o afirmativo e o subtil.

Outro aspecto digno de nota é a ausência de um movimento nacionalista regional inglês efectivo (English, 2011: 5). Ao contrário da Escócia, do País de Gales e da Irlanda do Norte, Inglaterra é a única região do Reino Unido que não conta com um parlamento regional. O ascendente político de Inglaterra sobre o Estado do Reino Unido é de tal forma significativo que é provável que sejam os próprios ingleses a não querer um parlamento regional, pelo poder simbólico que retiraria ao parlamento da Grã-Bretanha (parlamento estatal do Reino Unido), localizado em Londres, capital inglesa (e britânica). Por outro lado, o nacionalismo britânico abertamente assumido e afirmativo, que preconiza a manutenção do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte como Estado independente e indivisível, está limitado a personalidades e movimentos claramente conservadores ou de extrema-direita.

Parece, assim, haver um espaço de silêncio discursivo que domina o nacionalismo centrípeto. Esta sua maior propensão para o que denominamos como nacionalismo subtil ou afirmativo (mas não para o assumido) pode não ter como única justificação os receios de conotação com os aspectos mais negativos do discurso identitário. Poderá haver uma tentativa deliberada, por parte de um dado agente nacionalista centrípeto, de centrar as atenções da cidadania noutras questões (por exemplo, nas políticas sociais e económicas), como forma de atingir novas metas ou manter conquistas já alcançadas, em matéria de poder político. Em determinadas circunstâncias, o nacionalismo subtil ou o nacionalismo afirmativo não assumido poderão ser a receita mais adequada para materializar os objectivos políticos de uma identidade, principalmente quando esta já se encontre consubstanciada num Estado.

Em paralelo, os partidários do afastamento da centralidade e da construção de novas unidades políticas à luz de uma ideia nacional e que entendem que estas não se compaginam com uma entidade tão abrangente, tendem a assumir abertamente as suas posições nacionalistas. Uma das causas possíveis para esta diferença pode residir na já referida associação, precipitada e errónea, entre nacionalismo, expansionismo e violência (Evera, 1994: 5). É compreensível que, perante este enquadramento, os nacionalismos centrípetos optem por uma via menos declarativa, visto serem os mais facilmente associáveis a estratégias de expansão e a potenciais consequências conflituais que daí derivem. Somando a esta situação, o nacionalismo centrífugo goza de uma maior aceitação intelectual, como pode ser comprovado quando Mary Kaldor descreve o que classifica como “pequeno nacionalismo” como sendo não violento, aberto e inclusivo (2004: 173).

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Conclusão

A nossa proposta de leitura em relação ao nacionalismo assenta em dois aspectos concretos: na defesa do carácter multidimensional das suas formas de actuação, destacando-se aqui, de forma especial, o papel da acção, muitas vezes ignorado em detrimento de análises superficiais que se centram, sobretudo, no discurso e na autodefinição; e na diferenciação dos diversos nacionalismos em função da sua proximidade ou afastamento em relação ao poder soberano (nacionalismos centrífugos e centrípetos).

Também nos parece possível identificar uma tendência de correlação entre as duas variáveis identificadas. No período em que vivemos, provavelmente fruto de exemplos menos positivos da história recente, os agentes políticos dos Estados soberanos evitam identificar-se explicitamente como nacionalistas, apesar de, no seu dia-a-dia, desenvolverem acções que visam atingir o máximo corolário das ambições nacionalistas: a manutenção da identidade nacional como base do Estado, unidade política soberana por excelência, e do próprio sistema internacional. Por outro lado, os nacionalistas partidários de identidades nacionais não materializadas em Estados soberanos e independentes parecem ter uma propensão clara para assumir o próprio nacionalismo na sua plenitude, inclusivamente nas dimensões discursiva e de auto- definição.

Referências Bibliográficas

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