OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 4, n.º 2 (Novembro
AS VIOLÊNCIAS (CRIMES) GRAVES DE RELEVÂNCIA
PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Francisca Saraiva
msaraiva@iscsp.utl.pt Licenciada e mestre em Relações Internacionais e doutorada em Ciências Sociais, na especialidade de Relações Internacionais, com uma tese na área dos Estudos Estratégicos, pelo
Resumo
A criação do TPI em 1998 e a entrada em vigor do seu Estatuto, em 2002, permitiu dotar a comunidade internacional de um mecanismo jurídico permanente de dissuasão e repressão de actos de barbárie e crueldade extrema. Contudo, a alteração do ambiente internacional ocorrida após o desmembramento da URSS, caracterizada pelo aumento da violência política
-guerra preventiva/guerra preemptiva – e a afirmação de políticas de excepção, teve um considerável impacto na negociação do Estatuto e mais tarde na definição do crime de agressão, aprovada na Conferência de Kampala. Os grandes poderes estruturaram as suas estratégias negociais em torno da defesa dos seus interesses de longo prazo, que verteram com grande sucesso para os textos aprovados, nomeadamente a possibilidade de uma securitização dos direitos humanos e a preferência por um multilateralismo selectivo que o Estatuto e a declaração de Kampala não conseguiram impedir, levantando sérias interrogações sobre os fundamentos do Tribunal e o seu futuro. O texto defende que esta arrogância não pode ser lida como uma manifestação da vitalidade do poder norte- americano capaz de por em causa a legitimidade do TPI. Esta hostilidade corresponde, na verdade, a uma estratégia de sobrevivência política que visa manter liberdade de acção estratégica, num ambiente estratégico crescentemente dinâmico e exigente.
Palavras chave:
Tribunal Penal Internacional; Direito Internacional; Teoria da Estabilidade Hegemónica; Revolução nos Assuntos Militares
Como citar este artigo
Saraiva, Francisca (2013). "As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional". JANUS.NET
Artigo recebido em 27 de Maio de 2013 e aceite para publicação em 12 de Setembro de 2013
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As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional
Francisca Saraiva
AS VIOLÊNCIAS (CRIMES) GRAVES DE RELEVÂNCIA
PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Francisca Saraiva
Introdução
A vida internacional apresenta fenómenos crescentemente complexos, como é o caso das atrocidades cometidas contra civis inocentes e as violações sistemáticas das leis e costumes da guerra por parte de forças armadas regulares e forças de resistência.
Para muitos, a justiça penal internacional é o principal instrumento no combate à impunidade e iniquidade destes comportamentos, na medida em que nos tribunais se procura ressarcir as vítimas dos actos de violência e outras arbitrariedades através de julgamentos justos e imparciais dos acontecimentos e da dissuasão de futuros ilícitos.
Éesta justiça que a partir da década de 90 do século XX vai construindo um regime complexo com dimensões nacionais, regionais e globais que tem levado à barra dos tribunais internacionais indivíduos que se suspeita terem cometido graves ilícitos contra a sociedade no seu todo e por isso considerados crimes ao abrigo do Direito Internacional.
A entrada em vigor do Estatuto de Roma, em 2002, dotou a comunidade internacional de uma justiça penal permanente com capacidade para prevenir e reprimir a guerra e punir os seus responsáveis. No entanto, as circunstâncias particularmente adversas em que o Estatuto foi negociado (e entrou em vigor) determinaram um reduzido grau de autonomia do Tribunal o que, no entender de muitos, se traduziu numa crescente inadequação dos objectivos do Tribunal e das concepções subjacentes à sua criação.
Em particular, os equilíbrios estabelecidos no texto do Estatuto do Tribunal e na emenda aprovada na Conferência de Kampala não oferecem garantias perante a necessidade de resguardar o Tribunal das políticas intervencionistas das grandes potências. As crescentes evidências empíricas de um aumento no número dos conflitos internos, que se começou a observar em 2005 e que ainda não atingiu o seu ponto de inflexão, por um lado, e a política de envolvimento selectivo nos mecanismos multilaterais que acompanha o envolvimento
As respostas práticas que se têm encontrado para as dificuldades apontadas não têm sido respostas satisfatórias, nem parece que o possam vir a ser no curto prazo. Estas soluções, defendidas em primeira linha pelos pequenos poderes, apresentam défices de
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mobilização por incapacidade de atrair as grandes potências e mesmo as médias potências, que procuram
Na verdade, a oposição declarada dos Estados Unidos à jurisdição do Tribunal (que já provocou alguns embaraços diplomáticos) indicia, do nosso ponto de vista, que a política seguida é uma opção contraproducente porque põe em perigo os próprios interesses de longo prazo dos Estados Unidos e de outras potências tecnologicamente avançadas. Neste sentido, a análise dos acontecimentos sugere que se trata aqui, sobretudo, de uma estratégia de sobrevivência de Washington perante um sistema internacional em acelerada mutação que este já não controla inteiramente. É certo que muitos outros Estados têm também resistido ao Tribunal Penal Internacional, na maioria dos casos grandes potências, como a China, a Índia, o Paquistão a Indonésia, a Malásia, e a Turquia (que não assinaram;
1. O contrato social e a violência política
A violência existe desde tempos imemoriais mas foi assumindo novas formas à medida que o homem foi construindo novas sociedades. Neste sentido a violência é uma construção política e social transversal a todas as sociedades organizadas.
Regra geral, os governos tomam para si a responsabilidade de proteger os cidadãos que vivem sob sua jurisdição. O Estado mediador de conflitos é, na verdade, o principal garante da estabilidade social e da paz interna. Em tempo de guerra, o Estado reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física para preservar o espaço político da comunidade e o bem mais essencial, a vida humana, posta em causa por ameaças externas e internas à comunidade2.
Os mecanismos da justiça penal internacional são, no sentido explanado, uma consequência do falhanço do contrato social celebrado entre governantes e governados e uma necessidade de defender os direitos humanos fundamentais face à violência, barbárie e impunidade.
1http://www.iccnow.org/, acedido em 3 de Março de 2013.
2Jean Bodin
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Hannah Arendt clarificou como ninguém a relação entre poder e violência, que muitos consideram umbilical. Arendt concluiu de forma inovadora que o exercício do poder político corresponde ao reconhecimento da autoridade do Estado e não à afirmação do poder pela violência. Após anos de estudo, demonstrou que o exercício da autoridade não só não se confunde com a violência como prescinde da violência para se afirmar (Arendt, 1969a). Esta posição contradita claramente a conhecida tese de Carl Schmitt sobre o conflito como elemento constitutivo do poder (de que a guerra é uma manifestação extrema) (Schmitt, 1932) – sem prejuízo de Arendt reconhecer, como Schmitt, que o poder é a essência do governo. Vendo o poder desta forma, a autoridade deve manter a ordem
Isto não quer dizer que o poder não necessite pontualmente da violência, enquanto instrumento de acção política. Mas segundo Arendt, quando o poder é exercido de forma plena a violência deixa de ser necessária. O corolário deste argumento é que, para Arendt, o emprego da violência simboliza, mais do que tudo, a falência do poder e não a essência desse mesmo poder (Arendt, 1969b).
Para um número significativo de governos o carácter essencialmente conflitual da política
Em tese, a institucionalização da segurança colectiva realiza o sonho cosmopolita de substituir as alianças e os equilíbrios de poder por uma paz indivisível conseguida através da submissão do interesse nacional ao interesse colectivo.
A segurança colectiva funciona sobretudo como um instrumento de redução dos abusos do poder e de prevenção de ocorrências futuras de violência internacional organizada ao serviço de um objectivo permanente, garantir a estabilidade e a previsibilidade do sistema internacional (Saraiva, 2001).
Por isso, o mandato alargado da Carta da Nações Unidas - consubstanciado no tríptico segurança/direitos humanos/desenvolvimento - é na verdade uma fórmula que enfatiza a vertente da segurança, que surge no texto fundador em grande destaque, praticamente divorciada das outras componentes.
Os sujeitos do Direito Internacional por excelência foram sempre os Estados. Mas aos poucos e poucos, foi emergindo a noção de que os governantes que planeiam e comandam actos bárbaros e atrozes que ferem o bem comum da humanidade têm o dever de responder perante a comunidade internacional no seu conjunto.
A tese da inimputabilidade dos governantes começou a
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“Um acto universalmente reconhecido como criminoso, sendo um assunto grave que gera preocupação internacional e que por alguma razão não pode ser considerado de jurisdição exclusiva do Estado que teria, em condições normais, controlo sobre ele” (Military Tribunal V
Passa a estar no centro da governança internacional como uma tipologia de crimes contra a ordem internacional cometidos por indivíduos concretos,
Do ponto de vista da segurança internacional, é indiscutível o contributo decisivo do Tribunal Militar Internacional de Nuremberga e do Tribunal Militar Internacional de Tóquio para a limitação da liberdade dos governantes. Estes julgamentos são um primeiro esboço de uma justiça cosmopolita que reprime os mais graves crimes de carácter internacional de responsabilidade penal individual de líderes políticos e militares, no caso alemães e japoneses.
Mas no pós II Guerra Mundial e durante as décadas seguintes da Guerra Fria o expressivo aumento de crimes internacionais fez com que a comunidade internacional estabelecesse como meta a criação de um tribunal internacional permanente dotado de poder suficiente para aplicar o Direito Internacional aos indivíduos acusados de cometer graves violações do Direito Internacional Humanitário.
O final do século XX viria a criar condições propícias à concretização do projecto.
Os anos 90 começaram com a desagregação da antiga União Soviética e a aceleração da globalização, que gerou novas formas de violência e terror e a “civilinização” dos conflitos. A característica essencial dos conflitos armados no final do século XX é o esbatimento da distinção entre combatentes e não combatentes. O resultado é um aumento da pressão sobre aqueles que não têm vínculo ao conflito, os civis – vítimas directas das hostilidades ou dizimados pela fome ou doença na sequência dos conflitos armados3.
Estes sinais de mudança no sistema internacional, que se integram numa tendência de longo prazo, sugerem o esgotamento do paradigma soberanista e a progressiva
3Sobre a evolução deste problema ver (2009) Human Security Report 2009/2010. Oxford: Oxford University Press.
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afirmação de uma soberania limitada por uma cultura de responsabilidade em situações de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Uma das conquistas do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), concluído em 1998, foi justamente a inclusão na sua jurisdição do crime de agressão (jus ad bellum), ausente dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional para a
A verdade é que o novo Tribunal tem mandato para prevenir e reprimir a guerra e punir os seus responsáveis mas não pode ignorar que há outras instituições com capacidade de limitar a soberania externa dos Estados. Não se está, portanto, perante uma instituição que age sozinha.
2.Segurança colectiva e responsabilidade penal individual por crimes internacionais
Nesta secção
Como se disse, o desenvolvimento de um modelo de segurança colectiva global adoptado pelas Nações Unidas em 1945 procura garantir a ordem, estabilidade e continuidade no mundo do pós guerra. O modelo que foi institucionalizado está fortemente alavancado nos poderes conferidos aos membros permanentes do CSNU, com capacidade material e vontade política para manter um sistema global capaz de funcionar a favor de todos os Estados do sistema internacional.
Em teoria,
“a condição sine qua non da segurança colectiva é a
Nesse sentido,
Em primeiro lugar, os problemas relacionados com a segurança interna do espaço político são mais importantes que os desafios externos a este grupo de países. Segundo, a coligação de Estados que compõem o espaço dispõem, no seu conjunto, de um poder agregado preponderante em relação aos eventuais opositores. Finalmente, os participantes do sistema estão unidos em torno de um desígnio comum: reagir contra
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qualquer emprego da força armada considerada ilegal à luz do Direito Internacional (Downs e Iida, idem).
O mecanismo que foi institucionalizado é, na origem, essencialmente reactivo apostando numa vigilância dos Estados não membros do CSNU apenas e quando estes perturbam o sistema e ferem os interesses colectivos mais fundamentais, nomeadamente a salvaguarda do status quo internacional.
No entanto o princípio, outrora basilar, de não intervenção nos assuntos internos dos Estados incorpora hoje novos parâmetros de análise a que o CSNU deve necessariamente atender.
Não pertence aos objectivos deste texto a previsão do sentido que virão a tomar as novas tendências no CSNU, nem tão pouco seria avisado
Um dos aspectos mais importantes da discussão sobre os limites do emprego da força armada é a hipótese de intervenção humanitária armada em caso de catástrofe humanitária (ao abrigo da doutrina da responsabilidade de proteger, ou R2P). Outras possibilidades avançadas são de legalidade duvidosa, como o (r)estabelecimento de regimes democráticos pela força ou o uso preventivo da força no caso de suspeita de posse ou desenvolvimento de armas de destruição massiva (Saraiva, 2009: 97).
Em 1945 parecia viável construir um sistema de segurança colectiva global que assentasse na convergência normativa e na expansão de consensos ao nível internacional. Isto era possível porque existia uma coligação de Estados suficientemente fortes para impor a sua vontade aos outros membros do sistema. No período da Guerra Fria a correlação de forças Estados Unidos/URSS inviabilizou qualquer entendimento mútuo que permitisse ao CSNU agir contra Estados prevaricadores. Mas neste caso, como se sabe, havia pouco interesse em agir e não falta de capacidade para actuar.
A questão crucial da geopolítica
Um dos principais garantes desta estratégia é a enorme capacidade militar e tecnológica dos Estados Unidos que resulta da "revolução nos assuntos militares", processo ligado às novas tecnologias referentes à precisão dos tiros de longo alcance e
àinformação permanente sobre as forças presentes e alvos eventuais. A “guerra limpa” permite uma estratégia de prevenção de ameaças potenciais ancorada na percepção de que a hegemonia (americana ou qualquer outra) é uma condição passageira no sistema internacional. Donde, não se trata apenas de enfrentar os que desafiam o poder norte- americano mas de uma necessidade de protelar no tempo a perda do estatuto hegemónico, que se sabe ser inevitável (Saraiva, 2009: 113).
Com efeito, o fim da Guerra Fria teve um papel importante na mudança da agenda internacional. A mudança ocorreu a dois níveis: em relação aos temas que integram a agenda e sobretudo na importância atribuída às questões internacionais.
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Desde logo, a dinâmica desencadeada pela implosão da URSS teve tradução na ocorrência dos conflitos armados não internacionais, que começou a baixar de forma sustentada a partir de 1989. Os conflitos entre Estados não foram afectados,
Gráfico 1 – Conflitos Armados por Tipo
Fonte: Uppsala Data Program
http://www.pcr.uu.se/digitalAssets/122/122554_conflict_type_2011jpg.jpg
Em relação à importância dada aos problemas na década que se seguiu à fragmentação da URSS e que coincidiu com a negociação do Estatuto de Roma, ocorreu uma alteração profunda da percepção internacional dos assassinatos, genocídios, pilhagens e crimes de guerra ocorridos na
Mas nem por isso se pode dizer que os actuais equilíbrios estratégicos são o resultado do novo discurso sobre a importância dos direitos humanos. O que a realidade estratégica tem mostrado é uma complexificação da agenda internacional que decorre de uma importante revalorização estratégica da violência política e uma maior fluidez das regras que proíbem o emprego da força armada. Como atrás de insinuou e se pode observar no gráfico, a partir do ano de 2005 é observável um incremento da conflitualidade armada que como tendência global ainda não deu verdadeiramente sinais de abrandamento.
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Paralelamente, é notória a tendência para uma violação mais sistemática das leis e costumes da guerra – tanto no caso dos poderes instituídos como em relação aos actores não estaduais – acompanhando a flexibilizaçao das regras do jus ad bellum.
No que diz respeito à superpotência sobrante, a omnipresença dos Estados Unidos nos principais palcos dos conflitos armados é uma crescente evidência que deve ser tomada em devida conta pois, como já deixámos dito, o relaxamento das normas contra a guerra e do jus in bello (em termos de armas e estratégias de guerra) é, em grande parte, o resultado de uma opção política deliberada das potências militares mais avançadas que beneficiam de uma panóplia de armamentos e equipamentos militares inovadores produzidos pelo complexo
Outro aspecto importante do novo ambiente estratégico, nem sempre notado, é o acesso às novas tecnologias por alguns grupos armados de oposição, o que os transformou em movimentos globais e informacionais com comportamentos similares aos Estados tecnologicamente avançados. O assunto é da maior importância, pois o que aqui está em causa é uma verdadeira simetria estratégica no relacionamento dos grupos de oposição com os poderes instituídos, embora no quadro de uma forte dissimetria de capacidades (Saraiva, 2009: 156).
Todas estas alterações no ambiente estratégico tiveram reflexos na negociação do Estatuto do TPI. As diferenças de opinião entre grandes e pequenas potências sobre estes e outros temas exigiram longos debates e negociações que culminaram quase sempre em concessões políticas aos interesses dos grandes poderes.
Apenas num caso houve interesse comum em flexibilizar a jurisdição do TPI. Em matéria de crimes de guerra. As potências militares queriam preservar os avanços tecnológicos da guerra centrada em rede (Network Centric Warfare), assente no domínio da informação, na superioridade
A discussão da jurisdição do Tribunal em relação ao crime de genocídio e crimes contra a humanidade foi mais acalorada mas as divisões políticas, embora se possam considerar importantes, não atingiram um patamar crítico. O crime de agressão foi, pelo contrário, unanimemente considerado como a questão política mais controversa. De tal modo que em Roma esteve a um passo de ser afastado da competência material do Tribunal.
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3. Violência, crueldade e poder
A violência e a crueldade têm uma dimensão universal e intemporal constituindo o cerne dos desafios que o espaço político enfrenta na actualidade.
Os crimes internacionais e sua tipificação correspondem a violações sistemáticas dos direitos humanos em conflitos armados e a práticas de regimes arbitrários, que se consubstanciam em atrocidades e actos de violência e crueldade sobre as vítimas. Esta banalização da violência está frequentemente associada a uma necessidade de afirmação dos perpetradores no quadro de projectos de poder mais ou menos difusos, de natureza política ou económica.
Não existe uma definição precisa de atrocidade. O mesmo acontece em relação às noções de crueldade, violência e poder, embora tenham sido avançadas algumas propostas de clarificação das suas diferenças.
No que reporta à noção de crueldade, vários autores colocam a hipótese da crueldade se situar num patamar diferente das noções de violência e poder, por aquela envolver a completa negação da existência do outro (Rundell, 2012).
No entender de Rundell, a violência, aqui entendida num sentido essencialmente físico, é um instrumento do poder. Mais precisamente corresponde a uma relação que é estabelecida entre sujeitos, numa perspectiva em que o poder reconhece a existência do outro, embora a crueldade seja muitas vezes o traço dominante destes antagonismos, que se estabelecem entre coactor e coagido dentro e fora do campo de batalha.
Pode assim
Os crimes mais graves de importância para a sociedade como um todo são uma tentativa de limitar as manifestações de crueldade e de violência nas sociedades politicamente organizadas onde o direito e o poder são basicamente realidades antitéticas.
Os crimes contra a população civil, genocídio e crimes contra a humanidade, são a face visível de um Estado bárbaro e cruel que persegue e mata cidadãos comuns como estratégia política para manter o poder, no contexto de conflitos amados ou simplesmente no quadro de políticas de repressão. São igualmente formas de violência praticadas por grupos armados irregulares sobre populações indefesas. O espaço da violência generalizada contra civis está instalado no quotidiano de muitos povos, o que facilita uma articulação perversa destas violências com dinâmicas da conflitualidade externa e transnacional, produzindo assim uma complexa mistura de tensões conflituais que destroem as sociedades.
Os crimes de guerra constituem outra faceta da violência e crueldade. Sendo violações das leis e dos costumes de guerra incluem actos cometidos durante os conflitos militares que são condenados e proibidos tanto pelo costume internacional como pelo direito de Haia, direito de Genebra e mais recentemente pelo direito de Nova Iorque. Estes crimes estão balizados por normas que regulam o modo de emprego da força
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armada, em termos de armas e métodos de combate permitidos, uma vez tomada a decisão de recorrer à violência armada por parte de Estados ou grupos de resistência.
Finalmente há a assinalar importantes progressos na institucionalização do crime de agressão, que reporta à responsabilidade de indivíduos envolvidos na decisão de recorrer ao uso da força para concretizar objectivos políticos no exterior.
O acordo alcançado em Nuremberga a propósito deste crime, então designado “crime contra a paz”, tornou bastante clara a profunda interdependência entre paz, segurança e justiça mas também as consideráveis discordâncias quanto à sua tipificação. Volvido meio século, verificamos que as tensões
O crime de genocídio
É um crime sem nome e um crime internacional ao abrigo do costume internacional.
De todos os crimes elencados no Estatuto do TPI, é dos crimes com maior densificação política, a par do crime de agressão.
O genocídio ocorreu em todos os períodos da história e está intimamente ligado à intolerância perante a diversidade humana (Nersessian, 2007: 243). O genocídio
Deste modo,
“O genocídio é um estado de criminalidade sistemático e
O termo tem origem num tratado de 1944 sobre o
Com efeito, no final da II Guerra, o léxico jurídico existente não dispunha de uma categoria que exprimisse o acto inominável de exterminação massiva do povo judeu. Alguns anos mais tarde, uma convenção de 19484 autonomizava e positivava uma nova
4Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
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categoria de crime internacional, o “genocídio”, que designa crimes contra o género humano, contra a dignidade da raça humana no seu todo.
O seu carácter particularmente bárbaro e cruel fere de tal modo o princípio de humanidade que para os governos democráticos ocidentais é politicamente insustentável
Neste sentido, a tipificação do crime no Estatuto do TPI, que se limita a reproduzir a definição do crime de genocídio adoptada na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (supracitada) tranquilizou a generalidade dos Estados envolvidos na criação do TPI, pelo facto do crime continuar limitado à destruição (física e biológica) intencional de um grupo nacional, religioso, racial ou étnico (Cardoso, 2012: 48). A concepção adoptada exclui, por exemplo, fenómenos de perseguição e destruição intencional de grupos políticos, permitindo aos governos
Com estas observações pretendemos sublinhar um ponto importante, que os conceitos jurídicos ganham muitas vezes no discurso político um estatuto meramente instrumental de manipulação da realidade. Esta referência serve portanto para lembrar que a realidade é interpretada em função dos interesses da política, entendida como capacidade de optar em cada momento por um determinado curso de acção em nome do bem comum.
No caso do crime de genocídio a sua negação denota, quase sempre, um desinteresse político em punir este tipo de crime. Já a opção contrária, a denúncia internacional de actividades genocidas, não significa forçosamente uma vontade política de reprimir e punir tais actos.
Um só exemplo, dos vários possíveis:
A crise do Darfur evidencia a existência de uma dualidade moralista no pensamento político
No início de Setembro de 2004, na sequência da investigação promovida pelo governo americano aos crimes cometidos no Darfur, o secretário de Estado Colin Powell
5International Commission for Inquiry on Darfur, Report of the International Commission of Inquiry on Darfur to the United Nations
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descreveu os crimes ocorridos no Darfur como genocídio e o presidente George W. Bush usou o termo num discurso nas Nações Unidas algumas semanas depois (Hamilton, 2011). Na crise do Darfur, a política externa
Deste modo, a prática discursiva dos Estados Unidos não confirma a assumpção de responsabilidades deste país na repressão internacional do crime de genocídio. Bem pelo contrário. A resolução do CSNU que denunciou a situação ao TPI só foi aprovada porque se sabia que uma maioria de 9 países (do grupo dos
A administração
Já que envolve os Estados Unidos, uma grande potência com um discurso muito sui generis, este episódio que aqui tomámos como exemplo põe a nu um discurso contraditório e ambivalente que procura conciliar o discurso identitário da promoção dos direitos humanos, focado no princípio da centralidade da dignidade da pessoa, e a reafirmação do estatuto de nação excepcional, que neste sentido muito particular isenta o país do cumprimento das regras prescritas pelo regime internacional de protecção dos direitos humanos.
Os crimes contra a humanidade
Desde o final da II Guerra que assistimos à violência patrocinada pelos governos.
Os governos que matam intencionalmente civis
Como acabou de se ver, o genocídio compreende a uma política de assassinatos organizada em que as vítimas são escolhidas em função da sua pertença a um grupo particular.
Já os politicídios seguem um padrão diferente, em que as vítimas são definidas primordialmente em termos da sua posição hierárquica ou oposição política ao regime e grupo dominante. Politicamente, este conceito reflete a necessidade de reunir numa
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mesma categoria um conjunto de práticas dos regimes autoritários a que não corresponde uma categoria autónoma no Direito Penal Internacional (Krain, 2005: 364).
Nos dois crimes, há uma intenção da parte do agressor em destruir o grupo alvo, no todo ou na parte (Krain, idem). Donde, o que verdadeiramente separa os dois crimes não é a intenção mas os grupos alvo.
O assassinato em massa é tipicamente um crime de Estados mas também se aplica a perpetradores não estaduais, no pressuposto de que estes controlam a região onde o massacre acontece e operam como se fossem o próprio Estado, exercendo funções de autoridade na região (Krain, idem).
Para o Direito Penal Internacional a perseguição de grupos políticos é um crime contra a humanidade, no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque6, no quadro de conflitos armados ou fora deles.
Mas, como recorda Cassese, continua a não existir acordo sobre as práticas a incluir neste tipo de crimes. O Tribunal de Nuremberga foi confrontado com esta dificuldade e decidiu considerar nesta categoria os “actos desumanos” cometidos pelos alemães. Apesar das divergências sobre o alcance do conceito, o Tribunal Penal Internacional para a
Na opinião de Cassese,
A inclusão e caracterização dos crimes de violência sexual no Estatuto do TPI foi uma das mais significativas vitórias da diplomacia portuguesa e em particular do empenho de Paula Escarameia7, que muito contribuiu para o aprofundamento e ampliação destas temáticas durante as negociações do Estatuto e dos Elementos dos Crimes.
O impacto dos crimes de violência sexual nos conflitos armados não tem parado de crescer. Forças de segurança dos governos, forças militares, empresas militares ao serviço de governos ocidentais e grupos armados na oposição, todos recorrem à guerra psicológica com a intenção de humilhar o inimigo e destruir a sua moral e a da população, como ficou amplamente provado no Afeganistão e Iraque (Zawati, 2007). Isto porque as ofensas sexuais têm sempre resultados devastadores nas comunidades e os responsáveis por estes actos esperam que o estigma social impeça as vítimas de falar publicamente
A violência sexual praticada de modo sistemático é, portanto, uma forma de enfraquecer a sociedade civil, já que as suas consequências vão muito para além de cada um dos indivíduos envolvidos.
6Estatuto do TPI, artigo 7.º.
7Enquanto Conselheira Jurídica da Missão de Portugal junto das Nações Unidas.
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A violência sexual tem atingido homens, mulheres e crianças. A violação de homens em tempo de guerra é essencialmente uma manifestação de poder e de agressão e não uma satisfação dos desejos sexuais dos perpetradores. O vencedor faz questão de violar estes homens como forma de garantir que não poderão voltar a combater ou a comandar. Homens submetidos a esses abusos são especialmente marginalizados.
Nas sociedades contemporâneas, o contrato social não se tem mostrado capaz de contrariar esta e outras violências contra civis. As respostas práticas que se têm encontrado para esta dificuldade não têm obtido resultados muito satisfatórios.
Uma das soluções mais discutidas é o emprego da força armada num cenário extremo de emergência humanitária em que por acção humana a integridade física e a sobrevivência da população civil se encontram em risco. Todavia a consagração de um modelo mais flexível de soberania não parece ser, pelo menos por agora, viável devido ao facto de boa parte da comunidade internacional se opor a esta evolução.
Os crimes contra a humanidade tratam da criminalização das atrocidades humanas que colocam em perigo a segurança das comunidades atingidas por tais indignidades e ultrajes. Deste modo, a responsabilidade internacional não se esgota na capacidade de julgar estes crimes, é de facto na arena política que a defesa da dignidade humana encontra a sua última fronteira.
Os crimes de guerra
Os crimes de guerra foram definidos pelo Estatuto do TPI tendo como base as violações graves do Direito Internacional Humanitário contidas no Direito de Haia e nas Convenções de Genebra e seus Protocolos adicionais de 1977.
Os elementos dos crimes de guerra são dois: que os crimes sejam cometidos dentro de um contexto de conflito armado e que o crime tenha relação com esse conflito. O que diferencia os crimes de guerra dos crimes contra a humanidade é a necessidade de existência de um conflito armado, internacional ou não internacional8.
Apesar da primazia que o TPI concede ao
8Estatuto do TPI, artigos 7.º e 8.º.
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Actualmente a França já não se encontra abrangida pelo período transitório mas a verdade é que esta cláusula pode ser usada por outros Estados partes do Tribunal que foi concebido para actuar num contexto territorial o mais amplo possível e com uma jurisdição que deveria ser geral e uniforme.
Por outro lado, a dinâmica desencadeada pela França foi aproveitada pelos Estados Unidos que tratou de por em marcha uma política, com várias frentes, destinada a proteger as suas forças militares estacionadas no exterior, em missões de paz ou intervenções armadas mais musculadas (Escarameia, idem).
Todos estes desenvolvimentos indiciam uma securitização dos direitos humanos e uma crescente disponibilidade dos grandes poderes para executar intervenções humanitárias como justificação para as suas acções militares unilaterais.
Voltemos, então, ao exemplo escolhido, o
Perante esta conquista da ordem pública internacional os Estados Unidos redobraram esforços para encontrar alternativas ao Estatuto pois em tese os militares americanos envolvidos em operações de paz ou noutras missões militares no exterior podem vir a estar sujeitos à jurisdição do TPI se cometerem crimes no território de Estados partes e estes não quiserem ou não puderam
A defesa da soberania não é incompatível com vínculos internacionais firmados pelos próprios Estados, numa clara extensão do contrato social, mas já poderá ser posta em causa quando um cidadão de um Estado que não é Estado parte do Estatuto é entregue ao TPI para ser julgado. Cientes deste facto, os Estados Unidos têm contornado a jurisdição do Tribunal por várias vias.
No CSNU, Washington
O Conselho reagiu mal à proposta da Casa Branca porque se tratava de forçar, uma vez mais, a aprovação de um estatuto de excepção para os militares americanos num momento particularmente delicado em que se discutia a legalidade da intervenção no Iraque. Nessa altura, só os russos, angolanos e filipinos apoiaram a pretensão dos Estados Unidos, o que os deixou isolados e obrigou à retirada da resolução (Johansen, idem, 310).
9Uma vez que o Estatuto do TPI não admite reservas. 54
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Washington reagiu a este desaire com a retirada de 9 soldados americanos das missões de peacekeeping da Etiópia e Kosovo, Estados que não tinham firmado tratados bilaterais com os Estados Unidos (Johansen, idem) e que também não eram Estados partes do TPI.
A política dos Estados Unidos perante os mecanismos multilaterais não é um factor novo nas relações internacionais: o que preocupa os Estados Unidos é o TPI ter capacidade de projecção de normas internacionais ao nível global, condicionando deste modo o desenho das políticas nacionais das grandes potências, neste caso a sua própria (May et al, 2006: 354).
Outro exemplo da política seguida é a rede de tratados bilaterais celebrados entre os Estados Unidos e um conjunto alargado de países que determinam que os países que são Estados partes do Estatuto não deverão entregar ao TPI os nacionais americanos ou de outros países que não são partes do Estatuto, incluindo pessoas ligadas ao departamento de Defesa e CIA, civis incluídos.
Outro aspecto importante deste período é o American Servicemember’s Protection Act (ASPA), legislação que proíbe a assistência militar a países que ratificaram o Estatuto a não ser que mantenham acordos bilaterais com os Estados Unidos (Johansen, 2006:
Estas políticas já começaram a
Um problema adicional para a agenda crescentemente intervencionista das grandes potências é o poder do Procurador do TPI de iniciar um processo por si próprio.
Importa, no entanto, reconhecer que o Procurador se tem mostrado prudente no exercício das suas funções. No caso da intervenção no Iraque, o Procurador recebeu várias missivas
Para além de tudo o que foi dito até aqui, os Estados Unidos abriram um outra frente de conflito com a justiça internacional a propósito da proibição da tortura, princípio consolidado no Direito Internacional consuetudinário e nos tratados internacionais como
10OTO, Policy Paper, On the Interests of Justice, September of 2007. 55
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jus cogens.
A Amnistia Internacional, entre outras organizações, acusaram o antigo presidente
A tortura
A tortura em democracia não é assumida como política oficial e
Obama tentou remediar a situação e aprovou uma nova Estratégia de Segurança Nacional que condena cabalmente o recurso à tortura como método de combate ao terrorismo sugerindo que os Estados Unidos estarão dispostos a abolir de uma vez por todas esta prática nefasta14. Mas a verdade é que a discussão doutrinária em torno da legitimidade da tortura em casos excepcionais não se pode dissociar da doutrina da guerra preventiva, que a Estratégia de Segurança Nacional de 2010 manteve integralmente. Esta circunstância tem dificultado objectivamente a consolidação dos princípios do direito e da justiça internacional.
Em síntese, a tentação do unilateralismo e as políticas de excepção agravam as dificuldades da ordem pública internacional e do Direito Internacional em matéria de
11Artigo 8.º, ii), artigo 7.º, f) e artigo 6.º b) do Estatuto do TPI.
12Amnesty International (2012). USA Human Rights Betrayed, 20 Years After the Ratification of ICCPR, Human Rights Principles Sideliend by “Global War” Theory. UK, p.3
13Muitos sectores continuam pouco convencidos de que existia um conflito armado com a Al Qaeda. De qualquer modo, com já se viu, o Estatuto de Roma permite julgar actos de tortura no quadro de crimes contra a humanidade.
14Segundo a Estratégia de Segurança Nacional de 2010, a administração americana“prohibit torture without exception or equivocation: brutal methods of interrogation are inconsistent with our values, undermine the rule of law, and are not effective means of obtaining information. They alienate the United States from the world. They serve as a recruitment and propaganda tool for terrorists. They increase the will of our enemies to fight against us, and endanger our troops when they are captured. The United States will not use or support these methods”. In USA (2010). National Security Strategy. Washington: the White House, p.36.
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protecção e promoção dos direitos humanos potenciando as contradições conceptuais do texto aprovado em Roma. Com efeito, a heterogeneidade de perspectivas têm permitido aos países partes (e não partes) do Estatuto explorar as insuficiências apontadas
Crime de agressão
O crime de agressão é um crime contra a principal instituição internacional que promove a paz e protege os direitos humanos, o Estado soberano.
O crime de agressão é central na construção normativa do TPI, na medida em que cabe ao Tribunal por cobro aos “abusos de poder”, desencorajar a competição violenta e promover a paz através da prevenção e julgamento dos crimes de agressão no ordenamento jurídico internacional.
É relativamente consensual que o Pacto de
éa solução para todos os problemas internacionais. Antes desta data o enfoque era completamente diferente, o uso da força e a agressão armada eram meros conceitos políticos que serviam para descrever a conduta dos Estados fortes e poderosos (Meddi, 2008: 658).
As atrocidades cometidas na II Guerra alertaram a comunidade internacional para a necessidade de julgar a guerra de agressão. O julgamento de Nuremberga é o primeiro marco na codificação do Direito Penal Internacional e um importante compromisso político com o novo regime internacional assente na regra geral de proibição do uso da força nas relações internacionais.
Mas apesar da sua importância, o julgamento de Nuremberga não escapou às contradições da política internacional do final da II Guerra. Bass (2002:
Este aspecto particular da política interna
“Na Conferência Internacional sobre Tribunais Militares, reunida em Londres entre 26 de Junho e 8 de Agosto de 1945, o assunto mais polémico continuava a ser a questão da criminalidade da guerra agressiva. Os EUA insistiam em patrocinar a ideia da guerra agressiva
15Talvez esta posição ajude a explicar a necessidade de outros tribunais, em Israel e na Alemanha Ocidental, julgarem o holocausto.
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como crime internacional que gera responsabilidade penal para os seus autores. O crime de agressão foi inclusivamente apresentado na Conferência no mesmo dia em que a Conferência de São Francisco ilegalizava o uso da força na Carta das Nações Unidas” (Saraiva, 2009: 221).
Cinquenta anos volvidos sobre estes acontecimentos, os Estados Unidos mudaram radicalmente de posição no que diz respeito à criminalização da agressão no quadro das negociações do Estatuto do TPI, tendo exercido considerável influência no sentido de se excluir o crime da jurisdição do Tribunal.
Mas apesar das pressões americanas e dos outros membros permanentes do CSNU, o crime de agressão foi incluído no texto do Estatuto, graças ao sentimento partilhado pelos delegados à Conferência de Roma de que a agressão constitui a maior ameaça à paz e à segurança colectiva. Ainda assim, por falta de tempo e consenso político -
A primeira conferência de revisão ocorreu em Kampala, em 2010. Conforme se esperava, a discussão da definição do crime de agressão encontrou inúmeros obstáculos políticos, o que não permitiu afinar vários aspectos da solução final adoptada, que acabou por reflectir o essencial das prioridades estratégicas dos grandes poderes.
O crime de agressão é, de facto, o crime sob jurisdição do TPI que melhor reflecte a actual distribuição de poder do sistema internacional que é uma distribuição assimétrica entre os Estados.
Os sucessivos entraves colocados pela potência dominante a todo este processo evidenciam a sua profunda desconfiança em relação às normas internacionais vigentes que regem o emprego da força armada, na medida em que estas funcionam como uma barreira defensiva da integridade territorial das unidades políticas mais frágeis do sistema internacional (Saraiva, idem). O movimento dos
Apesar da rigidez inicial das posições, à medida que a negociação avançava
Seja como for, no final, a resolução adoptada em Kampala sobre o crime de agressão é uma emenda ao Estatuto do TPI que define finalmente o crime e as condições de exercício de jurisdição.
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Mas como se disse, o texto final evidencia um consenso muito frágil e a ambivalência dos grandes poderes em relação ao multilateralismo. A arquitectura final do crime de agressão tomou em linha de conta as doutrinas estratégicas em vigor nos Estados Unidos, NATO e outros países ocidentais fortemente sustentadas na Revolução dos Assuntos Militares, na Transformação e em conceitos conexos que procuram compatibilizar as forças militares com a era da informação em que vivemos.
As tecnologias de informação e comunicação (TIC) têm um efeito multiplicador de força que ‘permite às Forças Armadas que já incorporaram os requisitos tecnológicos da RMA começarem a pensar adoptar uma postura estrategicamente mais
Esta opção estratégica dos Estados Unidos, que foi materializada pela administração Bush e não foi interrompida por Obama,
A história da negociação do crime de agressão mostra, assim, que o que está em disputa no TPI é o direito das grandes potências conservarem a sua liberdade de acção estratégica e de prosseguirem a sua agenda humanitária.
Durante a negociação do crime foram muitas as estratégias seguidas para atingir o objectivo traçado. Por exemplo, em 1999, no rescaldo da intervenção da NATO no Kosovo, a delegação alemã defendeu que o sentido restrito do crime afasta as categorias de crime exteriores à noção de “ataque armado que tem como objectivo ou efeito a ocupação militar ou a anexação do território do outro Estado”16 Isto é, os bombardeamentos aéreos e os bloqueios navais não constituiriam actos de agressão (Saraiva, 2009: 295). Como se sabe, o argumento não foi aceite pela Comissão Preparatória (PrepCom), pois não parecia razoável ilibar, por esta via, eventuais responsabilidades da NATO na campanha aérea em território kosovarii.
A questão, muito controvertida, da legalidade/legitimidade das “intervenções humanitárias” no Kosovo, Afeganistão, Iraque e Geórgia voltou a estar em cima da mesa na reunião de Kampala. Mas uma posição definitiva relacionada com a licitude/ilicitude da intervenção humanitária armada unilateral bona fide (Trahan, 2011:
No que reporta à noção de ilegalidade excepcional das intervenções humanitárias armadas, tal como foi proposta por Franck, Chesterman e Byers (2003), há uma sólida percepção, sobretudo entre os NAM, da sua natureza ilegal o que motivou mais de 130
16Proposta alemã
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declarações unilaterais ou conjuntas de países
Todavia, em Kampala as iniciativas diplomáticas dos Estados Unidos conseguiram vencer a resistência dos países
A situação é agravada pelo facto de a solução encontrada não permitir a possibilidade de se começar a julgar este crime antes de 2017, isto na melhor das hipóteses17.
Em relação à definição do crime, consideramos que o resultado obtido é bastante mais satisfatório embora não particularmente inovador.
O crime de agressão foi definido como o planeamento, a preparação, iniciação ou a execução, por pessoa em posição efetiva para exercer controlo ou dirigir a acção política ou militar de um Estado, de um acto de agressão o qual, pelo seu carácter, gravidade e escala, constitui violação manifesta da Carta das Nações Unidas (Arribas, idem).
Do ponto de vista dos grandes poderes, o texto alcançado ficou aquém das expectativas em relação ao papel do CSNU nesta matéria, pois a certa altura os P5 acreditaram que seria possível inserir no texto a necessidade de uma autorização do Conselho para iniciar um procedimento por iniciativa de um Estado parte ou pelo Procurador motu proprio. Os delegados à conferência de Kampala optaram por defender a integridade e independência do Tribunal mas mantiveram a prerrogativa do CSNU poder suspender, por um ano, prorrogável, o inquérito ou procedimento criminal (artigo 16.º do Estatuto).
A fórmula de compromisso a que se chegou inverte em larga escala a estratégia inicial dos grandes poderes, muito empenhada numa definição restritiva do crime de agressão. Tal estratégia acabaria por ser abandonada em favor de uma outra, centrada
17 Ver emenda ao Estatuto de Roma, Kampala, 11 de Junho de 2010, disponível em http://www.iccnow.org/?mod=aggression.
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não na definição mas nas condições de exercício da jurisdição do Tribunal. Em termos práticos, o Tribunal será muito selectivo e terá a maior dificuldade em julgar crimes de agressão envolvendo as grandes potências, o que acentua os aspectos de multilateralismo à la carte presentes no seu Estatuto. Em contrapartida, a consagração de uma definição abrangente do crime de agressão permite um julgamento adequado dos casos que chegam ao seu conhecimento, na medida em que o crime, tal como foi tipificado, permite colocar sob jurisdição do Tribunal a maioria dos fenómenos agressivos que caracterizam os conflitos da actualidade contribuindo, deste modo, para o reforço da ordem jurídica internacional.
Conclusão
A criação do TPI é um marco na história do Direito Penal Internacional porque apesar da sua jurisdição não ser, como muitos desejavam, universal o Estatuto permite que um cidadão de um Estado que não é Estado parte possa ser entregue ao Tribunal para ser julgado.
Esta limitação da soberania por uma cultura de responsabilidade constitui uma revolução jurídica mas sobretudo é uma ameaça ao direito das grandes potências conservarem a sua liberdade de acção estratégica e ao prosseguimento da sua ambiciosa agenda humanitária.
Neste sentido, há algum desfasamento entre este aspecto estrutural do Estatuto de Roma e a geopolítica
Todavia, como de resto tentámos demostrar ao longo do texto, a estratégia de fragilização institucional do TPI, que envolve diversas grandes potências, mas que, aqui se argumenta, ocorre sob clara liderança americana, não só não altera o carácter profundamente inovador do Tribunal como oferece uma explicação sobre a natureza do sistema internacional e o papel dos Estados Unidos no mesmo.
Como conclusão, podemos dizer que o sistema internacional se encontra em acelerada mutação sem que os grandes poderes consigam (ou sequer desejem, na maior parte dos casos) controlar satisfatoriamente o processo.
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