JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 9-38
A justiça penal internacional e a erosão da soberania
Miguel de Serpa Soares
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potências, tem o seu apogeu num cenário de positivismo jurídico do Século XIX, o qual
não teve o seu termo definitivo antes de 1945.
Nesta ordem jurídica internacional, a qual basicamente consiste numa ordem jurídica
pública europeia, no concerto das "nações civilizadas", o princípio da soberania dos
Estados, de natureza quasi-absoluta, tornou-se a base de todas as relações e Direito
internacionais
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As primeiras intervenções do Direito Internacional na definição de limites à soberania
estadual têm lugar no Direito da Guerra. A liberdade de guerra, como um atributo
essencial do Estado soberano, é limitada, em primeiro lugar, pelas primeiras tentativas
de regulamentação do jus in bellum, processo iniciado com a fundação da Cruz
Vermelha Internacional e pelo Direito de Haia. O jus ad bellum permanece mais ou
menos incólume até ao Pacto de Briand-Kellog de 1928.
. O processo histórico lento que leva à desintegração desta ideia de
soberania absoluta inicia-se logo a partir da 2ª metade do século XIX.
A partir de 1945, dá-se início à formação e consolidação de todo o acervo jurídico
internacional e de todo o quadro institucional multilateral, no qual a soberania dos
Estados passará a exercer-se. A Carta das Nações Unidas e o princípio da proibição da
ameaça do uso da força como meio de resolução de conflitos, o Direito Internacional
Humanitário, incluindo, designadamente as Convenções de Genebra, a proteção jurídica
do individuo, mesmo que incipiente, pela adoção de diferentes tratados universais e
regionais de direitos humanos, as fórmulas sofisticadas de exercício conjunto de
soberania, como a União Europeia, e por último a emergência de um Direito Penal
Internacional, criam uma realidade multifacetada contra a qual é impossível afirmar
uma ideia de soberania absoluta
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Procurando refletir sobre a natureza atual da soberania, será também necessário
determinar qual a noção exata de soberania que está em causa. Uma soberania militar,
monetária, económica ou judicial? Uma soberania como poderes de autoridade
exclusivos sobre cidadãos e território? Uma soberania jurídica como uma
impermeabilidade do ordenamento jurídico internacional ao Direito Internacional ou
como uma capacidade para influenciar definitivamente a produção de normas
internacionais? Uma soberania como um conjunto exclusivo de direitos e prerrogativas
ou uma soberania que inclua igualmente deveres dos Estados?
. Todos estes desenvolvimentos criam condicionantes
específicas no modo de exercício da soberania estadual, assentes em larga medida em
normas jurídicas que disciplinam a liberdade dos Estados.
Para o autor deste texto, cidadão português, em março de 2013, a seguinte
constatação impõe-se: Portugal é membro da União Europeia, para a qual transferiu
vários dos seus poderes soberanos, nomeadamente a soberania monetária,
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E sobretudo, segundo Martti Koskenniemi (2008) uma justificação do Direito Internacional, produto da
história e cultura europeias, como forma de justificar a expansão colonialista em África através de uma
distinção entre civilizados e não-civilizados, sendo que estes últimos eram desprovidos de Soberania como
atributo exclusivo das nações civilizadas in The Gentle Civilizer of Nations – The Rise and Fall of
International Law 1870-1960. Cambridge: University Press. p. 127.
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Para os estritos efeitos desta exposição, utilizam-se fórmulas artificialmente simplificadas de conceitos. A
noção de soberania absoluta não pode em si mesma ser reconhecida em termos teóricos senão como uma
negação do próprio Direito Internacional, asserção aceite desde há muito pela Doutrina jus-
internacionalista. Como já em 1932 afirmava G. Scelle “La notion de souveraneité est donc incompatible
avec celle de droit objectif comme avec celles de sujet de droit. C’est une tâche vaine de vouloir
construire le Droit, et en particulier le Droit international, sur la notion de la souveraineté de l’Etat. Là
encore, le concept ne peut aboutir pratiquement qu’à soustraire la volonté des gouvernements à l’emprise
du Droit, à détruire la notion de compétence et, avec elle, celle de légalité» (Scelle, 1932: 14).