OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013-Abril 2014)
Nota Introdutória
Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles - Justa Penal Internacional: Um diálogo entre
Duas Culturas (1-8)
Artigos
Miguel de Serpa Soares - A Justiça Penal Internacional e a Erosão da Soberania (9-38)
Maria Francisca Saraiva - As violências (crimes) graves de relevância para a
Comunidade Internacional (39-63)
Filipe Vasconcelos Romão - O cacter multidimensional dos nacionalismos centrípetos
e centrífugos (64-73)
Paloma González del Miño e Concepción Anguita Olmedo - Transformaciones del Estado
en una Sociedad Internacional globalizada. El multilateralismo como enfoque teórico
(74-89)
Gisela Pereyra Doval - La Perspectiva de la Tradición en la identidad nacional. El caso
del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil (90-109)
Daniel Rodrigues - Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da
pluralidade étnica em Estados multinacionais e na prevenção de conflitos (110-124)
Notas e Reflexões
Eugénio Costa Almeida - África no Século XXI; que prospectivismo e que causas;
efeitos nos Estados africanos (125-131)
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Nota Introdutória
JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL
UM DIÁLOGO ENTRE DUAS CULTURAS
Mateus Kowalski
mateuskowalski@ces.uc.pt
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra,
Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito. Autor de artigos e comunicações sobre
teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de
segurança. Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), onde é
investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na
Universidade Aberta. Conselheiro judico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no
domínio do Direito Internacional. Delegado a diversas organizações internacionais, incluindo as
Nações Unidas, a União Europeia ou o Conselho da Europa
Patrícia Galvão Teles
pgalvaoteles@gmail.com
Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Mestre e Doutora em
Direito Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra,
Suíça; Docente da Universidade Autónoma de Lisboa; Investigadora e Membro do Conselho
Científico do Observare e do Conselho Editorial da Janus.Net; Conselheira Jurídica da
Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia, em Bruxelas (Bélgica)
A Justiça Penal Internacional um enquadramento
A implementação da ideia de que qualquer indivíduo onde quer que se encontre
eindependentemente do seu estatuto oficial pode ser responsabilizado por crimes
derelevância para toda a humanidade é uma rutura com o paradigma vestefaliano de
que cabe a cada Estado julgar (ou não) os “seus”. Após a Guerra Fria foram criados
diversos tribunais penais internacionais, designadamente os tribunais ad hoc para a ex-
Jugoslávia e para o Ruanda, e um tribunal penal de carácter permanente, o Tribunal
Penal Internacional (doravante “TPI”). O poder deixou de constituir um escudo de
impunidade como anteriormente. Os líderes envolvidos em conflitos aprenderam a
temer a justiça penal internacional como uma “espada democles”. Por outro lado, a
criação de jurisdições penais internacionais, nas suas diversas formas, passou a ser um
método para a consolidação da paz em situações de pós-conflito enquanto mecanismo
de justiça restaurativa.
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A constituição do TPI, em 2002 e a consequente preferência pela
jurisdiçãopermanente por comparação com os tribunais ad hoc , representa o
expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é mesmo referido como
a instituição paradigmática da conceção universalista do Direito Internacional, que
pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais
abrangente da construção liberal dominante que marca atualmente quer o Direito
Internacional quer as Relações Internacionais. Conforme referem Bogdandy e
Dellavalle, «no contexto global, o progresso deste projeto de uma verdadeira ordem
pública internacional e de um verdadeiro Direito Internacional assenta atualmente e em
larga medida no destino do Direito Penal Internacional» (2008: 2). A criação do TPI
deve ser perspetivada não apenas como uma inovação mas, acima de tudo, como uma
conquista civilizacional em prol da defesa da dignidade da pessoa humana e da
promoção da paz.
Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que
respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também
reflexo no TPI. Têm, pois, persistido algumas críticas duras ao TPI relativas aos seus
fundamentos e que, de alguma forma, refletem uma preocupação com a imposição de
soluções ético-normativas “ocidentais” de matriz liberal. Elas são essencialmente de
duas ordens: estatutária e factual. Em particular, têm-lhe sido apontadas um conjunto
de críticas essenciais, de que são exemplo representativo a dependência face ao
Conselho de Segurança das Nações Unidas, sugerindo ingerência política num órgão
penal, ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas ao Tribunal
situações relativas a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a sua
seletividade. Estas são críticas que põe em causa os fundamentos do TPI.
O TPI vive ainda um certo estado de graça. Contudo, o risco de marginalização tem
vindo a aumentar (Kowalski, 2011). A conferência de revisão de Kampala de 2010 foi
um aviso: o sol ainda não se tinha posto no Lago Vitória no último dia da conferência e
já existiam divergências quanto à aplicação do que havia sido aprovado. Até hoje
apenas 14 Estados se vincularam às emendas então adotadas
1
, incluindo no que toca à
relativa à tipificação do crime de agressão.
2
Ao mesmo tempo que se assiste à universalização da justiça penal, surge também o
fenómeno da promoção de formas alternativas de justiça em situações em que tenham
sido praticados crimes graves de relevância internacional. No Ruanda, a justiça foi
assumida como fator essencial para a reconciliação. A prova disso mesmo é que
perante o papel limitado do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda e as limitações
do sistema judicial clássico ruandês, recorreu-se a estruturas comunirias tradicionais
Após 10 anos da entrada em vigor do
Estatuto do TPI, em 2012, o Tribunal proferiu a sua primeira condenação: Thomas
Lubanga Dyilo foi condenado a 14 anos de prisão pelos crimes de recrutar e alistar
crianças com menos de 15 anos e u-las para a participação em hostilidades na região
de Ituri, na República Democrática do Congo. Se a primeira condenação do TPI foi
recebida com um “finalmente!” generalizado, não deixou igualmente de servir para
avivar o debate sobre a demora nos julgamentos e, no fundo, sobre a eficácia de uma
justiça penal lenta.
1
Ilhas Maurícias, Noruega, São Marino, Trindade e Tobago, Estónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa,
Alemanha, Botsuana, Andorra, Chipre, Eslovénia e Uruguai.
2
Trindade e Tobago, Estónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Samoa, Alemanha, Botsuana, Andorra, Chipre,
Eslovénia e Uruguai.
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de modo a permitir a ampla realização da justiça na situação de pós-genocídio (os
tribunais Gacaca). O caso do Ruanda é, pois, um bom exemplo de como estruturas
comunitárias tradicionais podem ser mobilizadas para realizar a justiça, nomeadamente
na sua dimensão restaurativa, ainda que de forma pragmaticamente imperfeita
(Kowalski, 2009). Algo que deve também alimentar um debate sobre a justiça penal
internacional e sobre o seu papel jurisdicional complementar.
A reflexão sobre os ideais que sustentam a justiça penal internacional deve ser
permanente de modo a criar um discurso de legitimação ética que lhe confira efetiva
capacidade de resistência e de transformação. Mas para que haja legitimação, é preciso
antes de tudo que aconteça a crítica, a desconstrução e a desocultação. Por isso
também, a esperança na justiça penal internacional e em particular no tribunal Penal
Internacional possa estar ligada à esperança na reflexão crítica e na vontade de todos
os atores internacionais nela participarem.
A Justiça Penal Internacional entre “Duas Culturas”
A paz e o Direito são conceitos e domínios de teorização e construção social antigos. A
sua autonomização científica, o seu desenvolvimento conceptual ou a sua aquiescência
académica e prática nunca foram, nem nunca serão, absolutamente gémeos. Contudo,
as suas ambições são semelhantes: o bem-estar material e emocional dos seres
humanos. Os debates entre realismo e idealismo/liberalismo têm informado pelo menos
nos últimos cem anos quer as Relações Internacionais (Richmond, 2008) quer o Direito
Internacional (Koskenniemi, 1992), neste caso também no domínio das construções
teóricas da paz. No que concerne à “paz”, este é um conceito material estruturado e
extraordinariamente multifacetado. Já no que respeita ao Direito Internacional, o seu
vasto âmbito material e pessoal, bem como o elevado grau de imperatividade de
algumas das suas normas indicam o caminho em direção a um “Direito da
Humanidade” (Pureza, 2002). A paz é um conceito que tem evoluído desde a noção da
mera paz negativa até à mais atual paz positiva e estruturada (Galtung, 1975;
Richmond, 2008). Paz esta, que é composta por vários elementos dos mais diversos
domínios e que traduz uma aspiração de bem-estar holístico num ambiente de não-
vioncia. O Direito Internacional pode desempenhar um papel de normatização dos
elementos da paz e de garantia da sua efetiva e justa concretização.
A “insularidade acamica” entre Relações Internacionais e Direito Internacional (Beck,
1996) redunda no que Young (1992: 174) apelidou de “síndrome das duas culturas”.
Ambos os domínios científicos sofrem de um certo desalinhamento promovido pelo
discurso de autores de cada um dos ramos do saber e também da prática político-
diplomática que tende (embora de forma mais moderada) a ter uma perspectiva
cartesiana entre discursos diplomáticos jurídicos e políticos. Do lado das Relações
Internacionais, em particular no que respeita à teoria da paz, certos autores tendem a
olhar para o Direito Internacional como marginal ou como um mito perigoso (Kewenig,
1973). A supremacia dos Estados e a falta de estatuição normativa por impossibilidade
de garantir a aplicação de sanções tornariam a normatividade jurídica irrelevante.
Outros interrogam-se sobre o verdadeiro contributo do Direito para a paz (Boasson,
1968), designadamente no que respeita à atividade dos tribunais penais internacionais
(Meernik, 2005) ou às convenções sobre direitos humanos (Hafner-Burton e Tsutsui,
2007).
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Também existe o discurso oposto: a ordem internacional só será verdadeiramente uma
ordem, e a sociedade internacional só será uma comunidade quando as relações sociais
internacionais forem adequadamente reguladas pelo Direito (Tomuschat, 1993;
Fassbender, 1998). Abbott (2005) chega mesmo a descrever os jusinternacionalistas
como “arquitetos da governação global”. Pelo lado do Direito Internacional, é um facto
que as Relações Internacionais são por vezes perspetivadas como um discurso político
de contemplação e sem vocação para edificar ou transformar, antes se cingido à
apologia da análise ad nauseam das relações entre os Estados e das relações de poder
a que aqueles estariam condenados em participar. Ainda, é a espaços referido que
sendo que a hisria do Direito pode ser traçada com algum rigor até ao Direito
Romano e a do Direito Internacional em especial até aos “teólogos juristas” e Grócio
nos idos dos séculos XVI e XVII, as Relações Internacionais são um domínio novo e
ainda imaturo dos anos 1950. Numa perspectiva mais subjetiva, todo este discurso
alimenta igualmente um ascendente corporativo pelos cultores do Direito Internacional
relativamente às Relações Internacionais. O que, por sua vez, reforça uma reação pelos
cultores das Relações Internacionais acenando com a irrelencia do Direito
Internacional. Em todo o caso, e conforme observa Pureza, este “síndrome das duas
culturas” «encontra alicerces consistentes na distinta focagem que cada um dos dois
olhares perfilha: expositivo e analítico o das Relações Internacionais, prescritivo ou
normativo o do Direito Internacional» (1998: 79-80).
A “justiça penal internacional” tem sido objeto de intensa alise. É, aliás, um tema
que suscita uma abordagem de grande angular comportando temáticas, que
tradicionalmente são objeto de estudo de ramos do saber distintos, como sejam: a
tipificação dos crimes graves de relevância para a comunidade internacional; o
funcionamento dos tribunais; o contributo para o desenvolvimento do Direito
Internacional; a promoção e a proteção de direitos fundamentais (direitos humanos); a
relevância do indivíduo no espaço internacional; o impacto na prevenção / resolução de
conflitos; ou a política externa dos Estados relativamente ao TPI. Trata-se de uma
análise que é tradicionalmente compartimentada em ramos específicos do saber, com
poucos vasos comunicantes entre si, sendo certo que a “justiça penal internacional”
tem recebido maior atenção pelo Direito Internacional do que pelas Relações
Internacionais.
Existe contudo, espaço para e relevância num discurso que traduza uma abordagem
multidisciplinar à temática. Desde logo, várias das problemáticas atuais quer do Direito
Internacional quer das Relações Internacionais encontram na “justiça penal
internacional” um caso de estudo. Depois, a “justiça penal internacional” pode tornar-se
um elemento de discurso que congregue aquelas duas áreas do saber, teimosamente
afastadas no que tem sido apelidado de “síndrome das duas culturas”. Ainda, a “justiça
penal internacional” pode beneficiar de uma abordagem integrada pelo Direito
Internacional e pelas Relações Internacionais, enriquecendo-a e conferindo-lhe novos
enfoques.
O projeto “A Justiça Penal Internacional”
O projeto “Justiça Penal Internacional”, desenvolvido no âmbito do Observatório das
Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, pretende assim ser um
espaço de investigação que reúna investigadores, experiências e metodologias que
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conceptualmente se situem em cada um destes dois ramos do saber. Quando
pertinente, poderá ser pedido a investigadores de Direito Internacional que saiam um
pouco da sua área de conforto e que, mantendo o seu background científico, tratem
temas normalmente analisados no âmbito das Relações Internacionais (e vice-versa).
Nesta linha, serão convidados autores, incluindo autores estrangeiros, que provenham
de enquadramentos disciplinares diferentes e que tenham quer uma visão académica
sobre cada uma das temáticas quer tenham experiência prática no âmbito da justiça
penal internacional.
Os objetivos deste projeto de investigação são quatro. O primeiro é o de elaborar um
discurso sobre a “justiça penal internacional” que congregue leituras do Direito
Internacional e das Relações Internacionais relativamente a temáticas comuns,
contribuindo para respostas mais criativas e sustentadas. Em segundo lugar, identificar
convergências / divergências (e suas consequências) nas abordagens por cada uma
daquelas áreas do saber a temáticas comuns. O terceiro objetivo é o de suscitar novas
propostas para algumas das probleticas que atualmente se colocam no âmbito da
justiça penal internacional. Finalmente, é tamm objetivo deste projeto criar
resultados de investigação que traduzam uma visão abrangente da justiça penal
internacional que possa beneficiar investigadores, agentes diplomáticos, agentes da
justiça internacional ou estudantes.
Tendo presentes os objetivos delineados, o projeto encontra-se dividido em várias
temáticas de atualidade enunciadas de modo a permitirem uma abordagem
multidisciplinar coerente, suscitando reflexões complementares. Assim, a delimitação
de cada uma das temáticas é feita de acordo com os seguintes critérios: (i) cada
temática congregue preocupações comuns do Direito Internacional e das Relações
Internacionais relativamente à justiça penal internacional; (ii) cada temática possa
beneficiar de contributos de investigadores de áreas científicas diferentes; (iii) cada
temática tenha potencial para por em evidência convergências / divergências na
abordagem à justiça penal internacional entre Direito Internacional e Relações
Internacionais. Neste sentido, foram delineadas as seguintes quatro temáticas
aglutinadoras:“Questões Conceptuais”; “Os Tribunais Penais Internacionais”; “A Justiça
Penal Internacional, Direitos Humanos e Resolução de Conflitos”; e “Justiça, Poder e
Política Externa”.
Os contributos, em forma de artigo, serão publicados em português (ou noutra língua
em que tenham sido escritos) e em inglêsna JANUS.NET e-Journal of International
Relations. Uma vez concluído o projeto de investigação, pretende-se publicar uma
monografia que colija aqueles artigos.
“Questões Conceptuais”
Os primeiros dois contributos que agora se publicam são um bom exemplo do “dlogo
entre duas culturas” que o projecto “Justiça Penal Internacional” pretende promover. O
primeiro, intitulado “A justiça penal internacional e a erosão da soberania” é da autoria
de Miguel de Serpa Soares, jurista, ex-Director do Departamento de Assuntos Jurídicos
do Ministérios dos Negócios Estrangeiros, tendo representado nessa qualidade Portugal
na Conferência de Kampala e na Assembleia de Estados Parte do TPI, e recentemente
nomeado Subsecretário-Geral para os Assuntos Jurídicos e Conselheiro Jurídico das
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Nações Unidas. O segundo, com o título “As violências (crimes) graves de relevância
para a comunidade internacional”, foi escrito por Maria Francisca Saraiva, especialista
em relações internacionais e docente universitária, trabalhando não só na área dos
direitos humanos, mas também da resolução de conflitos, estratégia, geo-estratégia e
políticas públicas de segurança. Ambos os contributos analisam o impacto da criação do
TPI, de um ponto de vista conceptual, na ordem jurídica e política internacional, em
termos da soberania dos Estados e da geopolítica das grandes potências.
No seu artigo, Miguel de Serpa Soares, destaca o facto de o TPI ser ainda uma “criatura
adolescente” na ordem jurídica mundial, mas que, pelo facto de afectar
equilíbriosinstitucionais e a constelação de poderes vigente desde 1945, revela de
forma exemplar as tensões entre supranacionalismo e erosão da soberania dos
Estados, que o autor perspectiva de forma diferente para os grandes e
pequenos/médios Estados, enquanto questão de “soberania judicial”. O texto analisa,
em detalhe, o processo que levou à inclusão da definição do crime de agressão, o mais
grave crime internacional,e das condições do exercício da jurisdição no Estatuto de
Roma (a jurisdição sobre o crime já havia sido incluída em 1998) na Conferência de
Kampala de 2010, concluindo que o compromisso obtido revela as diferenças de
posição entre, por um lado, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança
que pretendiam manter as prerrogativas que a Carta das Nações Unidas lhes concede
para a determinação das situações de agressão e, por outro, um conjunto de
aliançasdiferenciadas entre grupos de países cujo elemento comum era a defesa de
uma independência do TPI face ao Conselho de Seguraa, bem como uma autonomia
da determinação judicial da existência de um crime de agressão. O autor considera que
o compromisso obtido em Kampala representa uma derrota para os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança e, tal como o próprio Estatuto de Roma, abriu
brechas definitivas no monopólio punitivo dos Estados e do Conselho de Seguraa.
Conclui o artigo que a existência de uma justiça penal internacional é contria à ideia
de soberania estatal, mas que as relações entre ambas não devem ser vistas de forma
apenas antagonística, mas de complementaridade e transformação da noção da própria
soberania. Contudo, para que o TPI se possa afirmar, sobretudo perante os Estados
mais poderosos, Miguel de Serpa Soares defende que este terá de consolidar uma
jurisprudência irrepreensível, tal como aconteceu com o Tribunal de Justiça da União
Europeia ou o Tribunal Internacional de Justiça, sendo por isso necessário dar tempo a
esta nova instituição.
Francisca Saraiva, no seu contributo, argumenta que o TPI permitiu dotar a
comunidade internacional de um mecanismo jurídico permanente de dissuasão e
repressão de actos de barbárie e crueldade extrema. No entanto, o resultado alcançado
pelo Estatuto de Roma em 1998 e pela definição do crime de agressão na Conferência
de Kampala em 2010 não deixou de ser influenciado, para a autora, pelas estratégias
negociais dos grandes poderes, estruturadas em torno dos seus interesses de longo
prazo, resultando num multilateralismo selectivo, ou seja, com possibilidade de um
controlo político. Em particular, a autora defende que a maior hostilidade ao TPI,
proveniente dos Estados Unidos da América, emana não de uma vitalidade do poder
norte-americano, mas sim de uma estratégia de sobrevivência política que visa protelar
no tempo a ascensão de novas potências hegemónicas, que tomarão o lugar dos EUA
no sistema internacional, considerando, por exemplo, que a hisria da negociação do
crime de agressãomostrou que o que estava em disputa no TPI era o direito das
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grandes potências conservarem a sua liberdade de acção estratégica (e bélica) e de
proteger a sua agenda humanitária.
A análise dos dois artigos, numa perspectiva de realpolitik, é coincidente no que toca à
apreciação que fazem do facto de, do ponto de vista das grandes potências, a definição
do crime de agressão ter ficado aquém das suas expectativas em relação ao papel do
Conselho de Segurança nesta matéria, pois os seus cinco membros permanentes
defendiam a necessidade de uma autorização prévia daquele órgão para que se
iniciasse um processo por iniciativa de um Estado Parte ou pelo Procurador proprio
motu.
A solução a que se chegou foi, evidentemente, uma típica de compromisso, em que a
comunidade internacional conseguiu defender a integridade e independência do
Tribunal, mas manteve-se a possibilidade de o Conselho de Segurança poder suspender
eventuais processos criminais, incluindo no caso de agressão. Se, por um lado, como
sustenta Francisca Saraiva, será difícil o TPI julgar crimes de agressão envolvendo as
grandes potências, a definição abrangente do crime consagrada permite um julgamento
adequado dos casos que cheguemao seu conhecimento.
Resta ver, na nossa opinião, como continuará a operar o TPI, agora que tem completo
o menú de crimes sob sua jurisdição e emitida já a sua primeira condenação, cumprido
assim um ciclo judicial pleno, para podermos fazer um balanço mais definitivo do seu
lugar na ordem jurídico-política mundial. As restantes análises que se promoverão no
âmbito do presente projecto de investigação do OBSERVARE “Justiça Penal
Internacional”, contribuirão, certamente, para tal desiderato.
Setembro de 2013
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Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles
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Como citar esta Nota
Kowalski, Mateus e Teles, Patrícia Galvão (2013). "Justiça Penal Internacional. Um diálogo entre
duas culturas". Nota Introdutória, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2,
Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_not1
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Vol. 4, n2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 9-38
A JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL E A EROSÃO DA SOBERANIA
Miguel de Serpa Soares
joao.soares@mne.pt
Diretor Geral do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros
(Portugal). Representou Portugal na Conferência de Kampala e na Assembleia de Estados-Partes
do Tribunal Penal Internacional. O presente artigo reflete exclusivamente as opiniões pessoais do
autor e não corresponde a qualquer posição oficial da Instituição a que pertence. Em 8 de Agosto
de 2013 foi nomeado pelo Secretário-Geral das Nações Unida, Ban Ki-moon, Under Secretary
General for Legal Affairs and Legal Counsel to the United Nations.
Resumo
O autor argumenta que qualquer forma de justiça internacional representa sempre uma
forma de limitação das soberanias estatais. No caso do Direito Penal Internacional esta
limitação torna-se ainda mais evidente ao colocar em causa elementos essenciais do
paradigma clássico do Direito Internacional, como por exemplo o monopólio punitivo dos
Estados ou a noção de uma soberania estatal quase-absoluta. Os instrumentos penais
internacionais, crimes, penas, jurisdições, são susceveis de constituir, pelo menos
parcialmente, uma alternativa judicial ao método exclusivamente político e diplomático de
manuteão da paz e seguranças internacionais. A construção desta alternativa produz,
inevitavelmente, tensões com uma estrutura de poder que se mantém relativamente
inalterada desde 1945. No entanto para que esta alternativa judicial penal se possa afirmar
será necessário um longo período de maturação assente, entre outros, numa credibilidade
cnica e jurídica inquestionável.
Palavras chave:
Soberania; Crimes Internacionais; Tribunal Penal Internacional; Conselho de Segurança/
Agressão
Como citar este artigo
Soares, Miguel de Serpa (2013). "A justiça penal internacional e a erosão da soberania".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2, Novembro 2013-Abril 2014.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art1
Artigo recebido em 27 de Maio de 2013 e aceite para publicação em 8 de Outubro de
2013
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Miguel de Serpa Soares
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A JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL E A EROSÃO DA SOBERANIA
Miguel de Serpa Soares
Introdução
O Direito Penal Internacional e o Tribunal Penal Internacional são criaturas
adolescentes na ordem jurídica mundial. Com dez anos de existência efetiva, o Tribunal
Penal Internacional é uma instituição que ainda não teve tempo para provar a
credibilidade de um discurso penal internacional na prevenção dos crimes internacionais
que "afetam a comunidade internacional no seu conjunto" e que "constituem uma
ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da Humanidade" parafraseando o
preâmbulo do Estatuto de Roma. Todos os órgãos judiciais internacionais são limitações
à soberania judicial e mesmo constitucional dos Estados. Contudo as relações entre
estas instituições de supranacionalismo judicial e os Estados não têm necessariamente
de organizar-se em termos de antagonismo e concorrência. A afirmação de qualquer
ordem jurídica supranacional, regional ou universal, passará sempre por períodos de
conflito e de rivalidade que representam o tempo necessário de adaptação das
soberanias nacionais às novas realidades. No caso do Tribunal Penal Internacional esta
tensão é exacerbada porque, inevitavelmente, são afetados equilíbrios institucionais e
uma determinada constelação de poderes vigentes desde 1945.
Os próximos tempos serão tempos de observação e ainda não de explicação.
Observação de como o Tribunal i construir uma linguagem judicial contra a
impunidade e de como serão definidas as relações de complementaridade com as
jurisdições nacionais.
1. Soberania estadual: um conceito maleável
Antes de proceder à análise de alguns dos epidios concretos que permitam uma
reflexão sobre a emergência do Direito Penal Internacional e a erosão da soberania é
importante proceder a algumas constatações sicas.
A primeira é a constatação da coexistência na ordem jurídica internacional da
atualidade de duas realidades distintas e sobrepostas, as quais correspondem a dois
paradigmas de pensamento igualmente distintos. O paradigma "Grociano" (ou
"Hobbesiano"), assente numa visão estatista das relações internacionais, por oposição
a um paradigma "Kantiano", cosmopolita e universalista
1
1
Antonio Cassese (2005) International Law, Oxford: University Press, p.20 e em particular textos de M.
Wight e H.Bull referidos nota 11.
. No primeiro caso, os Estados
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Soberanos desenvolvem relações de cooperação com o objetivo único de melhor
prosseguirem os interesses identificados como interesses nacionais. No segundo caso,
os Estados desenvolvem também relações de cooperação no interesse de uma
comunidade internacional distinta dos próprios Estados.
Em 2013, o Estado continua a ser o sujeito de Direito Internacional por excelência e a
sociedade internacional resulta fundamentalmente da interação de comunidades
poticas de base territorial, independentes, protegidas por uma igualdade jurídica
formal e dotadas de determinados atributos essenciais. Em simultâneo, a dinâmica
recente das relações internacionais e o desenvolvimento espetacular do Direito
Internacional, em especial a partir de 1945, obrigam à constatação da existência de
condicionantes efetivas, porventura limitações, no exercício de poderes soberanos pelos
Estados. Neste último caso, a ecloo do multilateralismo, o surgimento de outros
sujeitos internacionais, como organizações internacionais, algumas dotadas de
verdadeiros elementos supranacionais, as limitações do jus ad bellum, a relativização
do princípio da imunidade dos Estados
2
Para esta observação e constatação não interessa reter o conceito de soberania como
uma mera emanação o pensamento realista em que a power politics adquire uma
centralidade relacional, mas, sobretudo, identificar no discurso normativo internacional,
in casu, no Direito Penal Internacional, a expressão concreta destas possíveis
condicionantes.
, a consolidação de um Direito Internacional
Humanitário e um Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como a noção de
crimes internacionais e a criação de um tribunal penal internacional permanente,
concorrem para noção de uma Soberania relativa, maleável, em todo o caso obrigada a
adaptar-se a fatores externos aos seus poderes próprios, sejam eles normas jurídicas,
sejam eles centros concorrente de poder político ou judicial.
É conveniente assentar numa noção de base: a soberania manifesta-se em poder e
independência. Identificada como atributo do Estado territorial, a soberania é
essencialmente a possibilidade de exercer todos os poderes de autoridade sobre um
determinado território e sobre todos os indivíduos que aí se encontrem. Estes poderes
concretizam-se na adoção de normas e na sua aplicação (administrativa ou judicial) e
na capacidade de restauração do Direito, seja pela possibilidade de execução coerciva
de sentenças, seja pelo jus punendi. Em consequência, o Estado soberano tem o direito
de excluir o exercício de poderes de autoridade por qualquer outro Estado no seu
território, o qual por sua vez tem o dever de não-ingerência. A escolha deste conceito
chave, a qual corresponde a um paradigma soberanista absoluto e realista, serve um
propósito meramente analítico, para a desconstrução desse mesmo conceito.
Em 1928, o árbitro Max Huber afirmava:
"La souveraineité dans les relations entre États signifie l’independance"
3
.
2
Sobre a jurisprudência portuguesa em matéria de imunidade de jurisdição de Estados ver Margarida
Salema D’ Oliveira Martins (2011) Comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativo ao
Processo 135/06.2TVLB.L1-7 in Anuário Português de Direito Internacional 2011, M.N.E. p.119.
3
Decisão de 4 de Abril de 1928 « L’Île des Palmes », Recueil des Sentences Arbitrales II-838.
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Independência afirmada contra os outros sujeitos de Direito internacional e
consequência fundamental da personalidade jurídica internacional reconhecida
exclusivamente pelo Direito Internacional, de acordo com a fórmula de imediatismo
normativo referida por Allain Pellet (Pellet, 2002: 424). Em 1758, Vatel escrevia:
"Un nain est aussi bien un homme qu’un géant: une petite republique
n’est pas moins un État souverain que le plus puissant royaume" (Vatel,
1863: 100).
Na tradução formal e jurídica deste princípio nada de fundamental mudou desde o
século XVIII: o artigo 2º, nº 1 da Carta das Nações Unidas consagra este princípio de
igualdade formal de Estados e, em consequência, adota vários princípios que são a
garantia desta mesma igualdade e independência.
É na perspetiva destes elementos, potestas ou autoridade interna e independência, que
deve observar-se a soberania como capacidade de os Estados exercerem as suas
prerrogativas habituais, na esfera interna e externa, bem como capacidade de
influenciar a produção da norma internacional.
A análise atual das condições sob as quais os Estados exercem a sua soberania, não
pode ignorar o processo histórico de formação dos Estados modernos, o qual se
confunde com o processo de formação do Direito das Gentes. A reivindicação dos
Estados como entes superiores non recognescentes parte essencialmente da revolta
dos príncipes contra a dupla autoridade do Imperador ou do Papa e da recusa do
reconhecimento de uma autoridade secular universal de ambos (potestas directa). A
aspiração de cada comunidade política de exercer poderes soberanos no seu território e
de relacionar-se, sem interposição de outras autoridades seculares, com outras
comunidades políticas corporiza esta primeira noção "agressiva" de soberania, a qual
tem de se afirmar contra outros poderes constituídos. De forma curiosa, os
portugueses estão também na origem do exacerbamento das reações contra a
autoridade secular do papa e na aceleração do fenómeno de criação do Estado
Moderno. O Tratado de Tordesilhas de 1494, baseado na entrega de novos territórios e
mares exclusivamente a Portugal e Espanha por édito papal, alimentou a revolta de
outras nações europeias contra o poder papal e antiga ordem da civitas christianna. A
soberania foi esgrimida como reivindicação de um espaço de liberdade, liberdade de
aquisição de territórios, liberdade de navegação e comércio, contra uma autoridade
secular com fundamento transcendente
4
A destruição da ordem medieval, simbolizada na Paz de Vestefália de 1648, assinala a
formação do Estado moderno e a criação do Direito Internacional. No entanto num
momento inicial a soberania do Estado é ainda assimilada à soberania do príncipe e
apenas com o constitucionalismo liberal, surgido a partir de finais do século XVIII, os
súbditos passam a ser considerados cidadãos e a "soberania do príncipe" é convertida
na soberania do Estado. A afirmação da soberania-poder, entendido como jurisdição
exclusiva e supremacia de poderes públicos sobre cidadãos e território, e da soberania-
independência, como capacidade de relação direta e aunoma com as outras
.
4
Sobre a evolução histórica do conceito ver H. Steinberger (2000) Sovereignity in Encyclopedia of Public
International Law- IV, R. Bernhardt ed. North holland: Max Planck Institute.
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potências, tem o seu apogeu num cenário de positivismo jurídico do Século XIX, o qual
não teve o seu termo definitivo antes de 1945.
Nesta ordem jurídica internacional, a qual basicamente consiste numa ordem jurídica
blica europeia, no concerto das "nações civilizadas", o princípio da soberania dos
Estados, de natureza quasi-absoluta, tornou-se a base de todas as relações e Direito
internacionais
5
As primeiras intervenções do Direito Internacional na definição de limites à soberania
estadualm lugar no Direito da Guerra. A liberdade de guerra, como um atributo
essencial do Estado soberano, é limitada, em primeiro lugar, pelas primeiras tentativas
de regulamentação do jus in bellum, processo iniciado com a fundação da Cruz
Vermelha Internacional e pelo Direito de Haia. O jus ad bellum permanece mais ou
menos incólume até ao Pacto de Briand-Kellog de 1928.
. O processo hisrico lento que leva à desintegração desta ideia de
soberania absoluta inicia-se logo a partir da 2ª metade do século XIX.
A partir de 1945, dá-se início à formação e consolidação de todo o acervo jurídico
internacional e de todo o quadro institucional multilateral, no qual a soberania dos
Estados passará a exercer-se. A Carta das Nações Unidas e o princípio da proibição da
ameaça do uso da força como meio de resolução de conflitos, o Direito Internacional
Humanitário, incluindo, designadamente as Convenções de Genebra, a proteção jurídica
do individuo, mesmo que incipiente, pela adoção de diferentes tratados universais e
regionais de direitos humanos, as rmulas sofisticadas de exercício conjunto de
soberania, como a União Europeia, e por último a emergência de um Direito Penal
Internacional, criam uma realidade multifacetada contra a qual é impossível afirmar
uma ideia de soberania absoluta
6
Procurando refletir sobre a natureza atual da soberania, se também necessário
determinar qual a noção exata de soberania que está em causa. Uma soberania militar,
monetária, económica ou judicial? Uma soberania como poderes de autoridade
exclusivos sobre cidadãos e território? Uma soberania jurídica como uma
impermeabilidade do ordenamento jurídico internacional ao Direito Internacional ou
como uma capacidade para influenciar definitivamente a produção de normas
internacionais? Uma soberania como um conjunto exclusivo de direitos e prerrogativas
ou uma soberania que inclua igualmente deveres dos Estados?
. Todos estes desenvolvimentos criam condicionantes
específicas no modo de exercício da soberania estadual, assentes em larga medida em
normas jurídicas que disciplinam a liberdade dos Estados.
Para o autor deste texto, cidadão português, em março de 2013, a seguinte
constatação impõe-se: Portugal é membro da União Europeia, para a qual transferiu
vários dos seus poderes soberanos, nomeadamente a soberania monetária,
5
E sobretudo, segundo Martti Koskenniemi (2008) uma justificação do Direito Internacional, produto da
história e cultura europeias, como forma de justificar a expansão colonialista em África através de uma
distinção entre civilizados e não-civilizados, sendo que estes últimos eram desprovidos de Soberania como
atributo exclusivo das nações civilizadas in The Gentle Civilizer of Nations The Rise and Fall of
International Law 1870-1960. Cambridge: University Press. p. 127.
6
Para os estritos efeitos desta exposição, utilizam-se fórmulas artificialmente simplificadas de conceitos. A
noção de soberania absoluta não pode em si mesma ser reconhecida em termos teóricos senão como uma
negação do próprio Direito Internacional, asserção aceite desde há muito pela Doutrina jus-
internacionalista. Como já em 1932 afirmava G. ScelleLa notion de souveraneité est donc incompatible
avec celle de droit objectif comme avec celles de sujet de droit. C’est une tâche vaine de vouloir
construire le Droit, et en particulier le Droit international, sur la notion de la souveraineté de l’Etat.
encore, le concept ne peut aboutir pratiquement qu’à soustraire la volonté des gouvernements à l’emprise
du Droit, à détruire la notion de compétence et, avec elle, celle de légalité» (Scelle, 1932: 14).
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encontrando-se, neste momento, intervencionado por uma troika de entidades
estrangeiras ao abrigo de um programa de assistência financeira. Esta intervenção
importa numa limitação relativa dos seus poderes soberanos para realizar escolhas
fundamentais de natureza política. Portugal subscreveu, entre muitos outros tratados, o
Tratado da União Europeia que incluiu várias disposições sobre cidadania europeia.
Portugal aceita a jurisdição compulsória do Tribunal Internacional de Justiça, está
submetido à jurisdição dos tribunais do Luxemburgo e Estrasburgo e subscreveu o
Estatuto de Roma. Portugal não tem moeda própria, nem poder militar relevante e
possui uma Constituição que é, no essencial, amiga do Direito Internacional
7
A apreensão daquilo que possa ser o fenómeno de erosão da soberania nacional não
pode desligar-se da perspetiva nacional de cada observador, nem das estratégias de
adaptação de cada Estado de pequena ou média dimensão. Um membro permanente
do Conselho de Segurança avaliará o potencial de erosão da sua soberania de forma
essencialmente diferente do autor. O exercício da soberania de Portugal assenta, em
larga medida, numa ancoragem no sistema multilateral, no exercício conjunto de
poderes soberanos, nomeadamente no quadro da União Europeia e numa abertura ao
exterior do seu ordenamento judico. Um cidadão norte-americano ou chinês tenderá a
olhar para o mesmo fenómeno na perspetiva das limitações efetivas que a participação
plena no sistema multilateral poderá trazer aos seus poderes. E esta asserção é
particularmente verdadeira no donio do Direito e do Direito Penal internacional em
especial. Através da observação do que tem sido o relacionamento dos membros
permanentes do Conselho de Segurança com o Tribunal Penal Internacional, procurará
demonstrar-se, abaixo, esta asserção.
,
procedendo, inclusivamente, a uma receção automática do Direito Internacional geral.
Portugal não é membro permanente do Conselho de Segurança, não possui recursos
naturais significativos, para além de uma ampla ZEE, tem uma diplomacia com meios
materiais limitados e uma população reduzida em termos mundiais.
2. O Fim do monopólio punitivo dos Estados: crime e castigo no Direito
internacional
Em 1919, o artigo 227º, nº 1 do Tratado de Versalhes, estabelecia o seguinte:
"Art. 227 - Les puissances alliées et associées mettent en accusation
publique Guillaume II de Hohenzollern, ex-empereur d’Allemagne, pour
offense suprême contre la morale internationale et l’autorité sacrée des
traités.
Un tribunal spécial sera constitué pour juger l’accusé en lui assurant les
garanties essentielles du droit de défense. Il sera composé de cinq
juges, nommés par chacune des cinq puissances suivantes, à savoir :
les États-Unis d’Amérique, la Grande Bretagne, la France, L’Italie et le
Japon.
7
Cfr. Jorge Miranda (2010) O artigo 8º da Constituição e o Direito Internacional in Augusto de
Athayde/João Caupers/Maria da Glória F. P. D. Garcia (eds.) Estudos em Homenagem ao Professor Doutor
Freitas do Amaral. Coimbra: Almedina: 415.
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Le tribunal jugera sur motifs inspirés des principes les plus élevés de la
politique entre les nations avec le souci d’assurer le respect des
obligations solennelles et des engagements internationaux ainsi que la
morale internationale.
Les puissances alliées et associées adresseront au Gouvernement des
Pays-Bas une requête le priant de livrer l’ancien empereur entre leurs
mains pour qu’il soit jugé»
8
.
O final desta história é conhecido: O Kaiser Guillherme II refugiou-se nos Países-
Baixos, cujo Governo recusou a sua extradição, invocando a inexistência de um tribunal
internacional competente, bem como de norma incriminatória prévia. Não obstante, é
interessante atentar na linguagem utilizada em Versalhes ("moral internacional",
"princípios elevados da política entre nações"), bem como no facto absolutamente
inédito, até então, de se designar um Soberano como réu, acusado de "offense
suprême" (infração suprema contudo não qualificada como crime), da "moral
internacional"
9
Em 1814, A Declaração de Viena contra o Comércio de Escravos, refere-se às "nações
civilizadas", no essencial às nações da Europa, iniciando o lento processo de
transformação de um discurso moral, no essencial um discurso moral das potências
europeias, num discurso de Direito Internacional, traduzido progressivamente em
regras de natureza jurídica. As Conferências de Paz da Haia de 1899 e 1907 assinalam
o primeiro processo de codificação das leis da guerra e a designada "Cláusula
Martens"
. É igualmente interessante atentar na subtil e progressiva alteração da
linguagem jurídica internacional que emerge no período anterior ao surgimento do
Direito Penal Internacional e que acompanha as sucessivas tentativas de
regulamentação e limitação da soberania "guerreira" dos Estados.
10
, inserida no preâmbulos das Convenções II de 1899 e IV de 1907
declarava:
"até que seja adotado um código mais completo de leis da guerra, as
altas partes contratantes entendem adequado declarar que, nos casos
o incluídos nas disposições por si adotadas, as populações e os
beligerantes mantêm-se sobre a proteção e a observância do Direito das
Gentes, na medida em que decorrem dos usos estabelecidos entre as
nações civilizadas, das leis da humanidade e das exigências da
consciência pública"
11
8
«Pages d’Histoire -1914-1919» (1919). Paris: Librairie Militaire Berger-Levrault. 108.
.
9
Em 1932, Hans Kelsen, no seu curso na Academia de Haia, utilizava o exemplo das normas de Versalhes
sobre a responsabilidade do Kaiser para demonstrar que a ideia que somente os Estados poderiam ser
sujeitos de Direito internacional seria falsa in Robert Kolb (2003) Les Cours Généraux de Droit
International Public de l’Academie de la Haye. Bruxelles: Bruylant. 82.
10
O mesmo Fyodor Martens, Professor na Universidade de S.Petersburgo, definia em 1883 o Direito
Internacional da seguinte forma : “Les États indépendants jouissant de la civilisation européenne
constituent le domaine régi par le droit international et jouent un rôle actif das la communauté
internationale (…) C’est de cette action des États civilisés que provient le droit international » (Martens,
1883: 307)
11
Cfr. Mateus Kowalski/Miguel de Serpa Soares (2011) Cláusula Martens in Manuel de Almeida
Ribeiro/Francisco Pereira Coutinho/ Isabel Cabrita (eds) Enciclopédia de Direito Internacional. Coimbra:
Almedina, p. 91.
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Note-se ainda que alguma desta linguagem sobreviveu na nova ordem mundials-
1945: o artigo 38º, nº 2, alínea c) do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça
continua a referir-se aos princípios gerais de Direito reconhecidos pelas "nações
civilizadas" como uma fonte do Direito internacional.
A paz de Versalhes deu origem aos primeiros fenómenos de institucionalização do
multilateralismo, como a malograda Sociedade das Nações, bem como à importação de
um discurso penal para a esfera internacional. O Comité Consultivo de Juristas,
nomeado pela Sociedade das Nações, recomendou em 1920, a criação de um Supremo
Tribunal Internacional de Justiça com competência para julgar crimes cometidos contra
a ordem pública internacional e a lei universal das nações. A este mesmo tribunal seria
atribuída a competência para definir o catálogo de crimes, as penas aplicáveis, os
meios de as executar, bem como o respetivo regulamento de processo. Em 1920, Elihu
Root formulava a seguinte questão a propósito deste projeto:
"Are the Governments of the world prepared to give up their individual
sovereign rights to the necessary extent?" (Ferencz 2000: 40)
12
.
A questão, obviamente de natureza retórica em 1920, não teve uma resposta positiva,
ainda que parcial, antes da adoção do Estatuto de Roma de 1998.
Os julgamentos de Nuremberga e de Tóquio desencadearam, de forma irreversível, o
processo de desintegração do monopólio punitivo do Soberano e constituem um
momento de rutura no processo de erosão, rectius de adaptação, da soberania estatal.
Vários olhares são possíveis sobre estes julgamentos históricos: desde a consideração
de que tudo se tratou de uma mera justiça de vencedores até uma grande catarse
judicial de encenação de culpa e redeão, enfim, os historiadores, os politólogos e os
juristas dificilmente terão a mesma leitura destes eventos
13
No rescaldo da vitória das potências aliadas em 1945, colocaram-se duas hipóteses
perante os vencedores: a simples execução ou encarceramento dos vencidos ou a sua
punição após um julgamento. Benjamim Ferencz, o mais jovem membro da equipa
americana de acusação em 1945, relata, num registo humorado e simultaneamente
ácido com os britânicos, que
.
"In fact, the Foreign Office still did not favor war crimes trials. To avoid
long legal proceedings, that might become a propaganda forum for Nazi
leaders, the United Kingdom prefered a «political disposition». Allways
noted for their «fair play», the British argued that «execution without
12
Elihu Root foi Secretary of War (1899-1904) e Secretary of State (1905-1909) norte-americano com o
Presidente Theodore Roosevelt. Prémio Nobel da Paz em 1912, Root presidiu também ao Carnegie
Endowment for International Peace. Parte importante do seu pensamento encontra-se vertido na obra
Elihu Root (1927) Politique Exterieure des États-Unis et Droit International: Discours et Extraits. Paris: A.
Pedone.
13
Para uma leitura crítica contemporânea de Nuremberga e Tóquio ver Guénaël Mettraux (ed.) (2008)
Perspectives of the Nuremberg Trial. Oxford: University Press e Yuma Totami (2009) The Tokyo War
Crimes Trial: The Pursuit of Justice in the Wake of World War II. Harvard: University Press.
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trial is the preferable course». Exactly who was to shoot whom and
when to stop shooting was not made clear" (Ferencz 2000: 42).
O Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, conducente à criação do tribunal de
Nuremberga, foi no essencial o produto de uma visão norte-americana, a qual, com o
apoio soviético, se conseguiu impor aos restantes aliados. No discurso vagamente
grandiloquente do Juiz Robert Jackson, Chief Prosecutor da equipa americana em
Nuremberga, sobre o julgamento:
"That four great nations, flushed with victory and stung with injury, stay
the hand of vengeance and voluntarily submit their captive enemies to
the judgement of the law is one of the most significant tributes that
Power as ever paid to Reason" (Ferencz 2000: 37).
A Carta do Tribunal Internacional Militar, estabeleceu como crimes da sua compencia,
suscetíveis de dar origem a uma responsabilidade penal individual os crimes contra a
paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, desta forma criando, pela
primeira, um catálogo penal de natureza internacional que se encontra
verdadeiramente nas origens da codificação do Direito Penal Internacional. O artigo
tipifica determinadas condutas ("the following acts or some of them") como "crimes
coming within the jurisdiction of the Tribunal for which there shall be individual
responsability": crimes contra a paz (o antecedente directo do "crime de agressão"
adotado na Conferência de Kampala em 2010); crimes de guerra ("namely the
violations of the laws or customs of war"); crimes against humanity ("namely murder,
extermination, enslavement, deportation and other inhumane acts"). A um penalista
nacional dos dias de hoje não deixa de causar estranheza a natureza aberta da
tipificação dos crimes.
Existe uma literatura profusa sobre os julgamentos de Nuremberga e Tóquio e uma
crítica contundente, nomeadamente norte americana, sobre a natureza excecional de
uma justiça ex post facto. O desconforto de alguns magistrados da época,
nomeadamente relativamente aos crimes contra a paz, tinha como origem a
constatação de que os Tribunais Internacionais Militares de Nuremberga equio
operaram fora do quadro de princípios fundamentais do Direito Penal, nomeadamente
os princípios do nullen crimen sine lege e nulla poena sine lege. O juiz William Douglas
comentou criticamente a incriminação dos "crimes contra a paz" da seguinte forma:
"(I) thought and still think that the Nuremberg trials were unprincipled.
Law was created ex post facto to suit the passion and clamor of the
time" (Glennon 2010: 75).
O Juiz Federal Charles E. Wyzansky comentava em 1946, a propósito da criminalizaçao
da guerra de agressão:
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"The body of growing custom to which reference is made is custom
directed at sovereign states and not individuals. There is no Convention
or Treaty which places obligations explicitly upon an individual not to aid
in wagging an aggressive war" (Glennon 2010: 76).
E interrogando-se se a fundamentação de Nuremberga poderia residir nos princípios
gerais de Direito Criminal comuns às "nações civilizadas", respondia:
"(…) it would be a basis that would not satisfy most lawyers. It would
resemble the universally condemned law of June 28, 1935 which
provided: ‘Any person who commits an act which the law declares to be
punishable or which is deserving of penalty according to the
fundamental conceptions of the penal law and sound popular feeling,
shall be punished’. It would fly straight in the face of the most
fundamental rules of the criminal justice that criminal laws shall not be
ex post facto and there shall be nullum crimen et nulla poena sine lege
no crime and no penalty whitout an antecedent law" (Glennon 2010:
76).
Este debate esteve igualmente presente de forma aguda no julgamento de Tóquio,
tendo dois jzes votado vencido na decisão final de condenação. A dissenting opinion
do juiz indiano Radhabinod Pal, absolvendo todos os acusados de Tóquio é um texto da
maior importância na hisria recente do Direito Internacional, representando sob a
aparência de um confronto entre naturalismo e positivismo, a primeira contestação
séria de uma ordem jurídica internacional dos impérios ocidentais e merece a todos os
títulos ser relido hoje
14
No entanto, Nuremberga e Tóquio, constituem um ponto de rutura para o Direito
Internacional. Apesar de todas as imperfeições, estes julgamentos assinalam a entrada
definitiva de um discurso penal na esfera do Direito internacional. As ofensas à moral
suprema ou às leis e costumes das "nações civilizadas" são expressamente qualificadas
como condutas criminais, ainda que ex post facto, geradoras de uma responsabilidade
individual. O enforcamento de alguns dos responsáveis nazis condenados em
Nuremberga e a condenação de Hideki Tojo, Primeiro Ministro do Japão à data do
ataque de Pearl Harbor, constituem momentos altamente simbólicos desta rutura. A
soberania do Estado deixou de ser a proteção última e definitiva dos seus cidadãos,
maxime dos seus altos responsáveis políticos e militares. A ordem jurídica
internacional, mesmo considerando que em 1945 essa ordem era principalmente
constituída pelos vencedores da II Guerra Mundial, sobree-se ao filtro da soberania
estatal e dirige-se diretamente ao individuo responsabilizando-o criminalmente por uma
conduta. Fazendo o paralelo com a doutrina anglo-saxónica da desconsideração da
personalidade jurídica, em Nuremberga e Tóquio operou-se um lifting of the
sovereignty veil, desconsiderando a personalidade judica do Estado, como sujeito de
.
14
A documentação relativa aos processos de Tóquio pode ser acedida em
http://avalon.law.yale.edu/imt/imtconst.asp Sobre a doutrina de Pal ver Kirsten Sellars (2011) Imperfect
Justice at Nuremberg and Tokyo. European Journal of International Law. 21: 1095.
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responsabilidade internacional, para se chegar ao líder político e militar, como sujeito
de responsabilidade criminal individual, tradicionalmente protegido pelo filtro da
soberania estatal. O enforcamento dos condenados de Nuremberga e Tóquio acaba com
o monopólio punitivo do Estado: o crime e o seu castigo deixam de ser exclusivamente
definidos e administrados pelo Soberano. Inclusivamente com a supressão física do
individuo.
Algo mudou desde o exílio do Kaiser Guilherme II nos Países Baixos: o jurista
apropriou-se de parte do domínio do historiador e do diplomata, no momento em que a
narrativa da Guerra deixa de ser da exclusiva responsabilidade da história e dos
fazedores dos tratados de paz. Pela mão dos juízes, a narrativa da Guerra passa
também a ser uma narrativa jurídica e judicial, como atestam os milhares de páginas
de atas dos julgamentos de Nuremberga e Tóquio. E nada atesta melhor a apropriação
pelo Direito de domínios reservados aos Estados soberanos, como o irromper de um
discurso penal no domínio internacional com a definição de crimes e a aplicação de
castigos. Com todas as imperfeições, criticadas desde a altura, a entrada do discurso
penal na esfera internacional e as fissuras no monopólio punitivo dos Estados
tornaram-se irreversíveis.
No período pós-1945, a noção de responsabilidade penal individual perante o Direito
Internacional subtraída ao poder exclusivo dos Estados na punição dos seus nacionais,
iniciou o seu lento processo de consolidação. Desde logo com a adoção da Convenção
para a Prevenção e Repressão do Genocídio, adotada pela Assembleia-Geral em 1948
15
. Note-se que o termo "genocídio" era inexistente antes de 1946
16
, tendo, por exemplo,
o extermínio do povo judeu sido incriminado e punido em Nuremberga como crime de
guerra ou crime contra a humanidade. A própria narrativa do Direito sofreu uma
renovação na nova ordem instaurada em 1945: genocídio, jurisdição universal, crime
internacional e castigo universal são termos inexistentes ou quase inexistentes no
período das soberanias omnipotentes
17
Em 11 de Dezembro de 1946
.
18
A criação dos tribunais penais internacionais ad hoc, para a Jugoslávia e Ruanda, são
um patamar fundamental em todo este processo. A desagregação do Império Soviético,
expressivamente assinalada com a Queda do Muro de Berlim, produziu um novo
ambiente político acompanhado por um ciclo de crescimento económico significativo.
Segundo Henry Kissinger, em 1990: "The world was entering a post-sovereign era"
, a primeira sessão da Assembleia Geral das Nações
Unidas adotou um conjunto de Resoluções com impacto significativo para o
desenvolvimento posterior do Direito Penal Internacional. Em especial a Resolução 95
reafirmou os princípios de Direito Internacional reconhecidos na Carta de Nuremberga,
criando uma Comissão com o encargo de preparar um Código Penal Internacional.
15
Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (aprovada por Resolução da Assembleia
da República nº 37/98, de 14 de Julho in DR, 1ª Série-A, nº 160).
16
Termo criado em 1946 pelo jurista polaco Raphael Lemkin, autor do anteprojeto da Convenção de 1948.
V. Miguel de Serpa Soares/Mateus Kowalski (2011), Crime de Genocídio, in Manuel de Almeida
Ribeiro/Francisco Pereira Coutinho/Isabel Cabrita (eds) Enciclopédia de Direito Internacional. Coimbra:
Almedina, p. 143 e Larry May (2010) Genocide: a Normative Account, Cambridge: University Press, 2010.
17
Exceto talvez o crime de pirataria marítima.
18
Resoluções AG 94(I), 95(I) e 96 (I) relativas à (i) criação de uma Comissão de Estudo da Codificação do
Direito Internacional, à (ii) afirmação dos princípios de Direito internacional consagrados na Carta de
Londres e ao mandato concedido a uma nova Comissão para a elaboração de um Código Penal
Internacional e à (iii) condenação do genocídio e mandato para elaboração de uma convenção sobre a
matéria.
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caracterizada "by the rule of law aspects of international law over traditional State
sovereignity". É neste ambiente geral de optimismo (Kissinger, 2011: 454) (a "mood
of triumphalism" ainda Segundo Kissinger falando do espírito político dominante em
Washigton), ou neste "espírito ingénuo e um pouco obtuso" (Cutileiro, 2003: 12),
segundo as palavras do Embaixador José Cutileiro, Coordenador, em 1992, da
Conferência de Paz da Jugoslávia da Comunidade Europeia, presidida por Lord
Carrington, que são ressuscitados os princípios de Nuremberga. O conceito de justiça
global, corporizado na ideia de Nuremberga de competência sobre crimes
internacionais, surgiu com grande intensidade neste período de "global optimism" (Koh
2003: 1503), o qual vigorou entre 1989 e 2001. E este optimismo generalizado numa
justiça global manifestou-se, para além da criação dos Tribunais ad hoc da Jugoslávia e
Ruanda, na criação dos tribunais mistos para a Serra Leoa e o Cambodja, o julgamento
Lockerbie, as acusações produzidas em Espanha e no Chile contra Pinochet. O seu
ponto alto situou-se com a assinatura pelo Presidente Clinton do estatuto de Roma, em
2001, antes que os EUA iniciassem um período de franca hostilidade com o Tribunal
Penal Internacional.
William Schabas
19
Os EUA foram, a partir de meados de 1992, os grandes patrocinadores da iniciativa que
levou à adoção da Resolão do Conselho de Segurança 827 (1993) de 25 de maio de
1993. E esta Resolução, adotada por consenso, possui ainda a originalidade de ter sido
criada com base no artigo VII da Carta, em particular nos seus artigos 39º e 41º, numa
interpretação inteiramente nova da Carta das Nações Unidas: Como assinala Paula
Escarameia a Carta
assinala que a ideia de uma justiça penal internacional foi
vagamente aflorada por George Bush e Margaret Thatcher, por volta de 1990, a
propósito da invasão do Koweit pelo Iraque, citando estudos preliminares produzidos no
exército americano. A ideia teria tido algum eco junto de líderes europeus mas sem
consequências.
"não foi provavelmente pensada com base nas premissas de que a
impunidade de criminosos internacionais constituía uma ameaça ou
quebra da paz e segurança mundiais e de que o Conselho poderia, por
isso, criar tribunais que se encarregassem de os julgar. Assim embora
me pareça que tal interpretação seja possível, ela só foi viável num
momento em que a bipolarização mundial desaparecera(…)"
(Escarameia 2003: 34).
Este consenso relativamente inédito entre os cinco membros permanentes que permitiu
a adoção da Resolução 827, foi de certa forma um consenso sobre o papel do direito
internacional na limitação das prerrogativas soberanas dos Estados. No entanto como
expressão de uma justiça seletiva é um consenso de "alguns" para ser aplicado a
"outros".
Um episódio concreto é particularmente expressivo da teno entre justiça penal
internacional e soberania: aquando da discuso no seio do Conselho de Segurança da
19
W. Schabas (2004) United States Hostility to the International Criminal Court: It’s All about the Security
Council, European Journal of International. 15: 707.
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Resolução 955 (1994) de 8 de novembro 1994 para a criação do Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda, o próprio Ruanda, membro não-permanente do Conselho
votou contra.
A análise do papel desempenhado pelos dois Tribunais Penais ad hoc supra referidos
transcende o objeto deste apontamento. No entanto, dois aspetos devem ser
realçados: (i) numa perspetiva estritamente jurídica, estes tribunais, deram um
contributo fundamental para o desenvolvimento de um corpus juris penal internacional
e (ii) prepararam a consagração de uma justiça penal não seletiva e de carácter
permanente (e independente) com a adoção do Estatuto de Roma
20
.
3. O Estatuto de Roma: uma jurisdição permanente e independente
Diversas tentativas de codificação do Direito Penal Internacional foram empreendidas a
partir de 1946
21
O projeto de 1994 da Comissão de Direito Internacional possuía uma abordagem
extremamente conservadora e, no essencial, definia um modelo de justiça penal
absolutamente integrado no sistema das Nões Unidas e, em particular, dependente
do Conselho de Segurança. Este projeto desembocava num modelo de tribunal
largamente inspirado nas versões ad hoc para a Jugoslávia e o Ruanda, quase que, de
forma paradoxal, como um tribunal segundo o figurino ad hoc embora com natureza
permanente.
.
Entre os seus aspetos mais distintivos contavam-se a subordinação total ao Conselho
de segurança, único órgão com competência para despoletar a jurisdição do tribunal
(trigger mechanism), e a inexistência de um Procurador com poderes independentes de
investigação e de submissão de casos ao tribunal (proprio motu).
A história da negociação do Estatuto do Tribunal, durante a Conferência Inter-
Governamental ocorrida no verão de 1998 em Roma, constitui em si mesmo um
processo com muito significado para o tema em análise.
É fundamental ter uma noção clara da dinâmica própria dos processos de negociação
em ambiente multilateral alargado. Em junho de 2010 o autor fez parte da delegação
portuguesa à Conferência Inter-Governamental destinada a aprovar as emendas ao
Estatuto de Roma relativas ao crime de agressão, a qual teve lugar em Kampala no
Uganda. As negociações desta natureza constituem uma formidável máquina
diplomática, envolvendo largas centenas de pessoas com o encargo de negociar textos
de natureza jurídica, destinados a serem adotados pelo maior mero possível de
Estados. Durante as duas longas semanas de negociação em Kampala o compromisso
definitivo sobre o texto das emendas foi obtido à 25ª hora do último dia de
20
Para uma avaliação do contributo destes tribunais ver Fausto Pocar (2010) The International Criminal
Tribunal for the Former Yugoslavia in Roberto Bellelli (ed) International Criminal Justice. UK: Ashgate, p.
67 e E. Mose (2005) Main Achievements of the ICTR. Journal of International Criminal Justice. 3: 920.
21
A Comissão Especial da Assembleia Geral para a Jurisdição Penal internacional apresentou em 1951 um
projeto de estatuto de Tribunal Penal Internacional. Em 1953 pela Resolução AG 697(VII) de 5 de
dezembro de 1952 a Assembleia Geral criou duas novas Comissões com o encargo de criar um tribunal
penal internacional e uma outra Comissão Especial destinada a estabelecer uma definição de agressão. Na
sequência da adoção da resolução AG 3314, em 14 de dezembro de 1974, relativa à definão de
agressão, a Comissão de Direito Internacional iniciou os trabalhos de redação de um código penal
internacional e jurisdição correspondente. Em julho de 1994 a Comissão apresentou o seu projeto de
estatuto do Tribunal e em 1996 apresentou um projeto de Código Penal.
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Conferência, após a data oficial de conclusão da mesma. Estas negociações são uma
sucessão de momentos de maior ou menor intensidade dramática, onde alianças se
formam e desfazem a uma velocidade impressionante, com uma multitude de reuniões
informais bilaterais, por grupos geográficos, por agrupamentos espontâneos de Estados
com afinidades efémeras ou permanentes, com textos alternativos, propostas e contra-
propostas.
Este aspeto não deve ser negligenciado: O processo de negociação de textos desta
natureza é também um exercício de soberania diferenciada. A capacidade de orientar
processos negociais, de agregar interesses e constituir alianças e, no fundo, a
capacidade de influenciar o conteúdo definitivo da norma é uma expressão de poder e
revela o interesse específico dos Estados em determinadas soluções. Em Kampala, tal
como em Roma, esta dinâmica ficou absolutamente patente: imagine-se o contraste
entre a delegação dos EUA, constituída por dezenas de delegados, promotora de
inúmeras reuniões bilaterais, polo aglutinador do Grupo Informal dos cinco
permanentes, autor de propostas escritas adotadas na ata Final da conferência e a
delegação portuguesa constituída por dois representantes efetivos durante as duas
semanas. E tudo isto considerando que os EUA nem sequer são Estado Parte do
Estatuto.
E não obstante, nem um Estado como os EUA, tem a capacidade suficiente para
influenciar o sentido definitivo de uma norma produzida em ambiente multilateral. A
história do processo negocial de Roma é uma ilustração particularmente expressiva
desta afirmação.
Philip Kirsch
22
, relembra que no início da negociação, em 15 de Junho de 1998, o
projeto redigido pelo PrepCom chegou à sala de negociação com cerca de 1400 pontos
de desacordo, textos de articulado incompletos e centenas de propostas alternativas.
Apesar do Estatuto não ter sido aprovado por consenso constitui um quase milagre a
sua adoção mesmo considerando que
"The Statute is nor a perfect instrument; no internationally negotiated
instrument can be. It includes uneasy technical solutions, akward
formulations and fully satisfied no one" (Kirsch 1999: 2).
A agenda negocial dos cinco membros permanentes em Roma era fortíssima. Confiando
no testemunho direto de David Scheffer
23
, os EUA tinham como objetivos principais um
tribunal próximo de um modelo ad hoc, com um papel preponderante do Conselho de
Segurança, sem poderes independentes de investigação e submissão de casos, com um
regime apertado de complementaridade e com um catálogo penal bastante restrito. Em
suma, um Estatuto que acautelasse o fato de
"United States has special responsabilities and special exposure to
controversy over our actions. This factor cannot be taken lightly when
22
Jurisconsulto do Ministério de Estrangeiros do Canadá, presidiu à “Comissão de Conjunto” durante a
Conferência de Roma.
23
Chefe da Delegação Americana em Roma e Ambassador- at- Large para os Crimes de Guerra.
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23
issues of international peace and security are at stake. We are called
upon to act, sometimes at great risk, far more than any other nation.
This is a reality in the international system" (Scheffer 1999: 12).
Ainda segundo Sheffer
"Throughout the Rome Conference our negotiators struggled to preserve
appropriate sovereign decision making in connection with obligations to
cooperate with the court" (Scheffer 1999: 15).
O resultado final ficou longe das expetativas negociais americanas, queixando-se esta
delegação da falta de transparência do processo
24
A Fraa, único Estado que apresentou um projeto próprio de Estatuto do TPI (em
Agosto de 1995), adotou um ponto de partida extremamente restritivo assente num
Tribunal Permanente sem qualquer independência e sobre a tutela exclusiva do
Conselho de Segurança. O Governo de Alain Juppé propunha um sistema de triplo
consentimento para desencadear a jurisdição do Tribunal (do Estado do território do
crime, do Estados de nacionalidade do autor e vítima), tendo o processo interno político
de concertação entre os diversos Ministérios franceses sido particularmente espinhoso.
O voto favorável da França teve como contrapartida a introdução do artigo 124º, com a
possibilidade de opt-out por um período de sete anos da jurisdição do Tribunal sobre
crimes de guerra cometidos por nacionais franceses (a França e a Colômbia foram os
únicos Estados a utilizar a possibilidade permitida pelo artigo 124º)
e, rompendo o consenso desejado,
pediu a votação formal do projeto final, tendo votado contra.
25
O Reino Unido infletiu a sua posição e após a eleição de Tony Blair abandonou a aliança
dos P5 para se juntar ao Grupo dos like minded countries, o qual constituía a base de
apoio fundamental ao projeto do TPI.
.
24
Segundo o relato de Scheffer “The process launched in the final forty-eight hours of the Rome Conference
minimized the chances that these proposals and amendments to the text that the U.S. delegation has
submitted in good faith could be seriously considered by delegations. The treaty text was subject to a
mysterious, closed-door and exclusionary process of revision by a small number of delegates, mostly from
the like-minded group, who cut deals to attract certain wavering governments into supporting a text that
was produced at 2:00 A.M. on the final day of the Conference, July 17. Even portions of the statute that
had been adopted by the Committee of the Whole were rewritten. This ‘take it or leave it’ text for a
permanent institution of law was not subject to the rigorous review of the Drafting Committee or the
Committee of the Whole and was rushed to adoption hours later on the evening of July 17 without
debate” (Scheffer 1999:20). Noutra ocasião, perante uma plateia de juristas do Exército norte-
americano, Scheffer, a propósito do resultado final de Roma, refere-se da seguinte forma às limitações do
poder diplomático americano: “A negotiating room is not a conventional battlefield, but it is a theater of
diplomatic conflict and cooperation. Within the negotiating arena, as in the courtroom, overwhelming
force is defined by logic (…) Our superpower status and the magnitude of our military forces mean very
little in these settings. That is the hard reality today. We need to adjust and turn that reality to our own
advantage with winning strategies and not self-righteous tactics that impress no one but ourselves
(Scheffer 2001: 9).
25
"La position de la France a évolué au rythme d’un double arbitrage, difficile, entre le ministère de la
Défense, le Quai d’Orsay et le ministère de la Justice d’une part (c’est à dire in fine de la décision du
Premier ministre, ce que M. Lionel Jospin a fait pour les plus importants d’entre eux en avril 1998), et
entre Matignon et l’Elysée d’autre part (son histoire et en grande partie secrète et reste à écrire, sauf à
rappeler que les changements de premier ministre n’ont pas empêché que l’Elysée et le ministère de la
Défense soient globalement sur la même ligne). L’article 124 a été l’une des exigences du Ministère de la
Défense et de l’Elysée » (Bourdon, 2000: 297).
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24
Quatro aspetos consagrados no Estatuto de Roma encerram o essencial desta tensão
diatica entre soberania e supranacionalismo judicial, ilustrando ao mesmo tempo o
sentido essencial da discussão ocorrida em 1998
26
O primeiro respeita às condições prévias ao exercício de jurisdição do Tribunal,
consagradas no artigo 12º do Estatuto. Pelos critérios estabelecidos neste preceito o
tribunal poderá exercer a sua jurisdição nos casos dos Estados (que forem partes no
Estatuto ou tenham feito a declaração avulsa de aceitação de jurisdição, a que se
refere o nº 3 do artigo 12º): (i) em que ocorra a conduta (tipificada como crime no
artigo 5º) ou (ii) da nacionalidade da pessoa a quem é imputada a conduta criminosa.
Deste preceito resulta a possibilidade para o Tribunal exercer a sua jurisdição quanto a
nacionais de Estados que não sejam Estados-Partes do Estatuto de Roma. Sendo um
dos critérios de atribuição de jurisdição o local da prática do crime, o recurso à alínea
a) do artigo 12º, nº 1 do estatuto permite, de facto, o exercício de jurisdição
relativamente a nacionais de Estados fora do Estatuto. Numa abordagem conservadora,
este preceito é um desvio inaceitável ao princípio fundamental de que as obrigações
internacionais se criam na base do consentimento de Estados segundo os princípios
gerais do Direito dos Tratados (tendo inclusivamente sido suscitadas dúvidas sobre a
compatibilidade do preceito com o artigo 36º da Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados de 1969), sendo igualmente inaceitável o seu elemento de "jurisdição
universal" permitindo a punição de nacionais de Estados que não aceitaram vincular-se
pelo Tratado. Numa abordagem progressista, o preceito ficaria aquém das expetativas
por justamente requerer alguma forma de consentimento (do Estado em cujo território
o crime seja praticado ou do Estado da nacionalidade do autor), pela sua natureza de
tratado entre Estados e pela ppria ideia de complementaridade (infra).
.
O segundo aspeto respeita aos poderes do Procurador no artigo 15º. Nos termos do nº
1 deste preceito o Procurador "poderá, por sua própria iniciativa, abrir um inquérito
com base em informações sobre a prática de crimes da competência do Tribunal". No
âmbito dos seus poderes de investigação e caso entenda existirem indícios sérios que
fundamentem a abertura de um inquérito o Procurador pedirá autorização para tal ao
juízo de instrução. A intervenção do Conselho de Segurança neste esquema de
funcionamento apenas poderá ser feita nos termos do artigo 16º. Os artigos 15º e 16º
constituem os aspetos inovatórios essenciais: pela primeira vez, no plano internacional,
existe um poder de natureza judicial verdadeiramente independente (mesmo
considerando todas as condicionantes inseridas) de interferência política e, em especial,
da interferência do Conselho de Segurança. O controlo dos poderes de investigação e
inquérito do Procurador é exercido por um órgão de natureza judicial, o juiz de
instrução, numa alteração fundamental do modelo anterior.
O terceiro aspeto respeita, conexo com o aspeto dos poderes do Procurador, ao papel
do Conselho de Seguraa nas suas relações com o Tribunal. Apesar do Conselho de
Segurança deter uma posição processual privilegiada (nos termos do artigo 13º, a
submissão pelo Conselho de Segurança de determinada situação ao Procurador,
dispensa o requisito do consentimento dos Estados implicados), o contraste com a
solução dos anteriores tribunais ad hoc e com o projeto de 1994 da Comissão de
Direito internacional é enorme. No projeto de 1994 a investigação do Procurador só
26
O conteúdo do Estatuto representaria um compromisso entre a rutura e a continuidade com o legado de
Vestefália de acordo com José Manuel Pureza (2001) Da Cultura da Impunidade à Judicialização Global: o
Tribunal Penal Internacional. Revista Crítica de Ciências Sociais. 60: 129.
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25
poderia ter início com autorização expressa do Conselho de Segurança, enquanto que
no atual artigo 16º o poder do Conselho de Segurança se transformou num mero poder
de suspensão de investigações entretanto iniciados. Na versão da comissão de direito
internacional, tal como nos anteriores tribunais ad hoc, o exercício de jurisdição penal
internacional estava absolutamente condicionado aos poderes do Conselho e, em
consequência, ao direito de veto de qualquer um dos cinco membros permanentes. E
esta alteração de equilíbrio é fundamental: um Estado membro permanente que deseje
suspender o início ou a prossecução de um inqrito do Procurador tem de
simultaneamente garantir 9 dos 15 votos no Conselho, bem como o voto favorável dos
restantes membros permanentes.
Por último, o quarto respeita ao compromisso relativo ao binómio
complementaridade/cooperação e ao funcionamento global do sistema penal
internacional. A ideia de complementaridade, consagrada desde logo no preâmbulo e
no artigo 1º do Estatuto é a fórmula de conciliação de uma ideia de soberania judicial
com a ideia de justiça supranacional ou transnacional. Recordando o debate agudo na
União Europeia sobre a afirmação do princípio do primado e a afirmação do sistema de
federalismo judicial, muitas em ambiente de conflito declarado com os tribunais
constitucionais de alguns Estados Membros, no sistema penal internacional proposto
pelo Estatuto de Roma, as jurisdições penais nacionais têm um primado sobre a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Este último não pode intervir senão
subsidiariamente, em casos descritos no próprio Estatuto, contrariando qualquer ideia
de jurisdição universal. Os artigos 17º a 19º contêm regras de grande detalhe sobre
esta dinâmica do diálogo entre jurisdições nacionais e a jurisdição internacional. Os
artigos 86º e seguintes estabelecem diferentes obrigações específicas de cooperação,
temperando, de forma relativa, este primado da jurisdão penal nacional. Segundo
Marten Zwanenburg:
"The principle of complementarity constitutes a deference to national
sovereignty, which is contrary to a development in international law
away from broader notions of sovereignty" (Zwanenburg 1999: 130).
As discussões que ocorrem no momento atual quanto à aplicação do princípio da
complementaridade nos casos do Quénia e à Líbia possuem o maior interesse na
perspetiva da aplicação da complementaridade.
Considerando o pacote global de compromisso adotado em Roma, William Schabas,
observa:
"The adoption of the Rome statute on the international Criminal Court
represents a singular defeat for American diplomacy. The world’s only
superpower found itself outmanoeuvred by a constellation of small and
medium powers, including some of its closest friends and allies (…)
Faced with an accelerated pace of ratification and entry into force, the
United States took several aggressive measures directed against the
Court" (Schabas 2004: 720).
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26
O grau de hostilidade, senão mesmo de agressividade ativa, demonstrado durante a
administração Bush contra o tribunal só pode ser compreendido à luz da perceção pelos
EUA de que uma justiça penal internacional, permanente e independente, constitui uma
ameaça a interesses estratégicos, uma verdadeira investida contra a soberania
nacional. O Presidente Clinton procedeu à assinatura do tratado no último dia
disponível para tanto, numa eventual estratégia de reforma do texto enquanto Estado
Parte, tendo essa assinatura sido imediatamente retirada pela nova administração, no
célebre epidio do "unsigning" (o que em português daria o neologismo expressivo de
"desassinatura") de um tratado internacional
27
Esta escalada de hostilidade tem em 2002 um momento de grande intensidade com a
adoção de American Service-members’ Protection Act (ASPA). Independentemente da
clivagem entre republicanos e democratas, a abundante literatura jurídica e jurídico-
potica norte-americana encontra-se muito dividida sobre o assunto
.
28
Em Portugal, como em vários outros Estados, o debate relativo à adesão ao Estatuto de
Roma centrou-se na perspetiva da constitucionalidade da transferência de soberania. O
ponto de partida do constitucionalista é, no essencial, um ponto de vista soberanista: a
Constituição nacional preserva a capacidade de comando de uma determinada
comunidade política sobre o seu território e a maior ou menor abertura do
ordenamento constitucional ao exterior é em si mesma uma questão de natureza
constitucional. A adesão ao Estatuto de Roma (aliás como as sucessivas adesões aos
Tratados de integração europeia) é pressentida como cedência de soberania
.
29
, a qual
tem de previamente acomodada pelo texto constitucional interno, se necesrio com a
sua alteração. Vital Moreira
30
refere a questão da adesão ao Estatuto como uma
questão de soberania judicial: a capacidade de investigar e julgar os crimes ocorridos
no seu terririo é um atributo essencial de soberania estatal (sendo que no caso
português, as normas constitucionais, caracterizam os tribunais como órgãos de
soberania), pelo que, determinadas normas do Estatuto de Roma representam
efetivamente derrogações da "Constituição Penal" ou "judicial". Para um Estado como
Portugal, a soberania judicial, como qualquer outra soberania, possui uma estratégia de
adaptação que passa pela permeabilidade do ordenamento constitucional. O artigo 7º
da Constituição Portuguesa, alterado em 1997, resolve o conflito com uma solução de
abertura, de soberania dialogante suscetível de aceitar esquemas limitados de
supranacionalismo ou de verdadeiro federalismo jurídico.
27
Ver o interessante artigo de Edward Swaine (2003) Unsigning. Stanford Law Review. Vol 55: 2061, no
qual o autor disserta sobre o significado desta prática no domínio do Direitos dos Tratados, a sua
legalidade face à Convenção de Viena de 1969 e efeitos possíveis na prática de negociação e conclusão de
tratados multilaterais.
28
Ver por exemplo Ruth Wedgwood (1999) The International Criminal Court: an American View. European
Journal of International Law. 10: 93, Casey (2002) The Case against the International Criminal Court.
Fordham International Law Journal. 25: 840, Monroe Leigh (2001) The United States and the Statute of
Rome. American Journal of International Law. 95: 124.
29
O processo de afirmação do princípio do primado pelo Tribunal do Luxemburgo foi um processo de conflito
latente que durou décadas, com os tribunais constitucionais e governos dos Estados Membros. Ver a este
propósito Karen Alter (2001) Establishing the Supremacy of European Law The making of an
International Rule of Law in Europe. Oxford: University Press.
30
Vital Moreira (2004) O Tribunal Penal Internacional e a Constituição in Vital Moreira/Leonor
Assunção/Pedro Caeiro/Ana Luisa Riquito, O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Portuguesa.
Coimbra: Coimbra Editora, p. 20.
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27
4. Da Guerra Ilícita ao Crime de Agressão.
Em 12 de Junho de 2010, em Kampala, Uganda, foram adotadas as primeiras emendas
ao Estatuto de Roma, relativas à criminalização de determinado tipo de armamento e
ao crime de agressão, em especial às condições de exercício de jurisdição do tribunal
penal internacional.
Este desenvolvimento introduz linhas de discussão muito interessantes para o tema em
análise e alimentará muitas discussões futuras sobre o Direito penal internacional.
O artigo 6º da Carta de Londres sobre o Tribunal Militar Internacional que procedeu aos
julgamentos de Nuremberga, estabelecia entre os crimes submetidos à jurisdição do
Tribunal os
"Crimes against peace: namely , planning, preparation, initiation or
wagging of a war of agression, or a war in violation of international
treaties, agreements and assurances, or participation in a common plan
or conspiracy for the accomplishement of any of the foregoing".
A Carta do Tribunal Internacional para o Extremo Oriente, de 19 de janeiro de 1946,
continha uma disposição quase intica a esta.
A acusação e condenação por crime de agressão, "the supreme international crime" foi
um dos aspetos mais revolucionários e controversos dos processos de Nuremberga e
quio, num grande confronto entre normativistas e jus naturalistas, em termos que
permanecem de atualidade.
O sistema de segurança coletiva consagrado pela Carta das Nações Unidas, proclamou
solenemente a proibição da ameaça do uso da força e, nos termos do artigo 39º da
Carta, atribuiu competência ao Conselho de Segurança para determinar, entre outros, a
existência de um ato de agressão, bem como as medidas adequadas para restaurar a
paz e segurança coletiva.
No período que antecedeu o Estatuto de Roma, algumas tentativas de codificação do
Direito Penal Internacional, incluíram a queso do crime de agressão. A adoção da
Resolução 3314 da Assembleia Geral, de 14 de dezembro de 1974, é um dos marcos
significativos neste processo em particular a inclusão no seu artigo 5º da declaração
que "a war of agression is a crime against international peace". O Tribunal
Internacional de Justiça apreciou questões relativas à ilicitude de casos de agressão no
caso Nicarágua
31
31
Decisão de 27 de junho de 1986 Nicarágua c. Estados Unidos da América, em especial parágrafos 187 a
201.
, tendo-se referido a algumas das disposições da Resolução 3314. A
progressiva afirmação da ilicitude da agressão, com base no sistema da Carta das
Nações Unidas, foi sendo feita mas ainda sem que uma tipificação de atos de agressão
como crime internacional fosse estabelecida de forma suficientemente clara. Apesar de
parte das acusações de Nuremberga e Tóquio se basearam nesta presunção de
exisncia de um crime internacional de agressão (ou crime contra a paz na
terminologia da época), a questão não ficou definitivamente encerrada antes de 1998.
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As razões que levaram à não inclusão definitiva do crime de agressão no Estatuto de
Roma são sobejamente conhecidas e visaram apenas viabilizar o compromisso, já de si
bastante delicado, diferindo a discussão para um momento posterior. O artigo 5º, nº 1
incluiu o crime de agressão como submetido à jurisdição do tribunal mas, nos termos
do nº 2 do mesmo preceito, tal jurisdição só poderia ser exercida com a adoção de
emendas posteriores contendo a definição do crime e as condições de exercício de
jurisdição pelo Tribunal.
Entre 2002 e 2009, o Grupo Especial de Trabalho sobre o Crime de Agressão, criado
pela primeira Assembleia de Estados Partes do Tribunal Penal Internacional com o
encargo de elaborar um projeto de emendas, procedeu a uma série de reuniões formais
e informais destinadas a atingir o desiderato referido no artigo 5º, nº 2
32
As emendas de 2010 assentam ainda num sistema complexo que separa a (i) entrada
em vigor do (ii) exercício de jurisdição pelo Tribunal e ainda da (iii) possibilidade de
ativação diferenciada de jurisdição nas situações de reenvios pelo Conselho de
Segurança ou submissões por Estados e investigações proprio motu pelo Procurador
. Os trabalhos
deste Grupo serviram de base à Conferência Diplomática de 2010. O texto adotado em
Kampala enferma do mesmo tipo de vício, frequentemente encontrado nos textos
jurídicos preparados, discutidos e "esquartejados" em ambiente multilateral, tal como
referido a propósito de Roma. Em resultado do choque de interesses absolutamente
diferentes e de culturas jurídicas diferenciadas, os textos de compromisso final
revestem-se de uma opacidade técnica e de zonas de ambiguidade, muitas vezes
permitindo interpretações distintas sobre o que teria sido realmente acordado. O
pacote final de Kampala abrange alterações ao artigo 8º (constituídas pela
criminalização da utilização de três novas categorias de armamento) , o acrescento do
novo artigo 8ºbis, contendo a definão do crime de agressão e o acrescento dos novos
artigos 15º bis e 15º ter relativos ao exercício de jurisdição.
33
A entrada em vigor das emendas se feita nos termos do artigo 121,5 do Estatuto,
ou seja, as mesmas entrarão em vigor individualmente para cada um dos Estados que
as ratificar, um ano após a data de ratificação. Contudo, a entrada em vigor das
emendas não produz automaticamente qualquer efeito na jurisdição do Tribunal sendo
ainda necessário duas etapas de condições suplementares, de natureza geral e
especial. No conjunto de condições gerais necessárias à ativação da jurisdição do
.
Este todo ainda com uma possibilidade limitada de opt out para algumas situações de
jurisdição e submetido a uma decisão final da Assembleia de Estados-Parte a tomar
após 1 de Janeiro de 2017.
32
Estes trabalhos foram muito positivamente influenciados pelo caráter informal de várias reuniões
realizadas em ambiente académico, naquilo que ficou designado como Princeton Process. Estes trabalhos
estão documentados em Stefan Barriga/Wolfgang Danspeckgruber/ Christian Wenaweser (eds.) (2009)
The Princeton Process on the Crime of Agression. Princeton: The Liechtenstein Institute on Self-
Determination at Princeton University. Sobre as negociações técnicas no Grupo Especial ver Stefan
Barriga (2010) Against the odds: The Results of the Special Working Group on the Crime of Agression in
Roberto Bellelli (ed.) International Criminal Justice. UK: Ashgate, p. 621 e ainda Roger Clark (2009)
Negotiating Provisions Defining the Crime of Agression, its Elements and the Conditions for ICC Exercise
on Jurisdiction over it. European Journal of International Law. 20: 1103.
33
Uma explicação clara do acordado em Kampala e das diferentes questões de interpretação relativas à
entrada em vigor e condições de exercício de jurisdição pode ser encontrada em Stefan Barriga (2012)
Exercise of Jurisdiction and Entry into Force of the Amendments on the Crime of Agression” in Gérard
Dive/ Benjamin Goes/ Damien Vandermeersch (eds.) From Rome to Kampala: the first 2 Amendments to
the Rome Statute. Bruxelles: Bruylant, p.31 e também em Roger Clark (2010) Amendments to the Rome
Statute of the International Criminal Court Considered at the First Review Conference of the Court,
Kampala, 31-May-11 June 2010. Goettingen Journal of International Law. 2: 689.
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Tribunal será ainda necessário um número mínimo de 30 ratificações (de preferência
até ao final de 2015) e uma decisão final da Assembleia de Estados Parte (após 1 de
Janeiro de 2017) permitindo que o Tribunal inicie o exercício da sua jurisdição (por 7/8
dos membros da Assembleia). A estas condições acresce um conjunto de condições
especiais, em função do tipo de iniciativa processual que estiver em causa. No caso de
reenvios pelo Conselho de Segurança, o tribunal poderá exercer, sem mais
condicionantes, a sua jurisdição para qualquer um dos quatro crimes do catálogo de
Roma e sem qualquer necessidade de consentimento pelos Estados envolvidos. Nos
restantes dois casos de submissões por Estados ou investigações proprio motu pelo
Procurador as seguintes condições devem ser observadas: todas as situações de
agressão envolvendo Estados não-Partes são excluídas da jurisdão do Tribunal. Para
as situações de agressão que envolvem Estados-Partes no Estatuto de Roma pelo
menos um dos Estados (autor ou vítima da agressão) tem de ter em vigor as emendas
no seu território e não pode ter feito uma declaração de opt out quanto à aceitação de
jurisdão nestes casos (em momento anterior aos alegados atos de agressão). A tudo
isto acrescem obrigações específicas no relacionamento entre o Procurador e o
Conselho de Seguraa e os poderes desde último como filtro de jurisdição, bem como
a capacidade de suster investigações em curso nos termos do artigo 16º do Estatuto.
Tomando em consideração que a descrição supra é feita de forma simplificada e sem
cuidar de questões específicas de interpretação sobre a aplicação do regime 121º, nº 5
do Estatuto e do sistema de opt out para algumas situações, fica-se com uma noção
muito clara da verdadeira selva interpretativa criada por este tipo de textos. O caminho
para o pleno funcionamento da jurisdição do Tribunal relativamente ao crime de
agressão vai ser muito sinuoso. Em março de 2013 constata-se que apenas cinco
Estados ratificaram as emendas de Kampala, o que não deixa antever que seja desde
já garantida a jurisdição do Tribunal relativamente ao crime de agressão após 2017.
Para além dos aspetos processuais referidos, alguns dos aspetos substantivo das
alterações introduzidas em 2010, possuem uma importância particular para o tema em
análise.
O aspeto mais fundamental do compromisso de Kampala respeita às relações entre o
Conselho de Segurança e o Tribunal, quanto às condições do exercício de jurisdição por
este último. Este foi, aliás, o ponto fulcral do processo de negociação e a linha de
divisão entre dois campos opostos. Esta linha é fácil de descortinar: por um lado os
cinco membros permanentes do Conselho em defesa das prerrogativas que a Carta das
Nações Unidas lhe concede para a determinação de situações de agressão e por outro,
um conjunto de alianças diferenciadas entre grupos de países cujo elemento comum
era a defesa de uma indepenncia do Tribunal face ao Conselho de Segurança, bem
como a autonomia da determinação judicial da exisncia de um crime de agreso.
De acordos com o estabelecido nos nºs 6 a 8 do novo artigo 15º bis
34
:
"6- Se concluir que existe fundamento suficiente para abrir um inquérito
em relação a um crime de agressão, o procurador deverá certificar-se
primeiro que o conselho de segurança verificou a exisncia da prática
34
Tradução em língua portuguesa realizada no Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério em 2011,
a partir dos originais em língua inglesa.
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de um ato de agressão pelo estado visado. O procurador deverá notificar
o secretário-Geral das Nações unidas do caso levado a tribunal, bem
como de quaisquer informações ou documentos pertinentes.
7- Quando o conselho de Segurança verificou a exisncia da prática de
um acto de agressão, o procurador pode abrir um inquérito em relação
ao crime de agressão.
8- Sempre que não se verifique a prática de um ato de agressão no
prazo de seis meses a contar da data de notificação, o procurador pode
abrir um inquérito em relação a um crime de agressão desde que a
secção de instrução tenha autorizado a abertura do inquérito em relação
a um crime de agressão segundo o procedimento previsto no artigo 15º,
e salvo decisão em contrário do Conselho de Seguraa em
conformidade com o artigo 16º".
A obtenção do texto supra implicou um tremendo volume de energia negocial e
representa sobretudo uma derrota da posição dos cinco membros permanentes. Estes
últimos advogavam a ativação da jurisdição do tribunal com base numa, assim
designada, green light proposal: nos casos apresentados pelos estados ou pelo
Procurador, este último só poderia prosseguir na investigação com um pedido expresso
do Conselho de Seguraa para tanto
35
As implicações são bastante significativas: na designada green light proposal a
jurisdição do Tribunal é totalmente subordinada a uma decisão prévia do Conselho. Na
segunda, próxima do texto definitivo de Kampala, apesar de existirem condicionantes
importantes no exercício de jurisdição do tribunal quanto ao crime de agressão, es-se
perante uma jurisdição concorrente, mesmo que parcialmente, das prerrogativas do
Conselho para determinar a existência de uma situação de agressão
(independentemente da sua qualificação como conduta criminal). É certo que a
prossecução das investigações pelo Procurador possui desde logo um filtro (autorização
pelo juiz de instrução), o qual é, no entanto, de natureza judicial e independente e um
travão político, dado que o Conselho de Seguraa pode suspender por um período de
12 meses (renováveis) a continuação de uma investigação, no entanto o impacto nas
prerrogativas deste último é evidente.
. A proposta que vingou apresenta-se mais
próxima de uma, assim designada, red light proposal: em caso de inação do Conselho
de segurança, o Procurador pode prosseguir com a investigação (autorizado pelo juiz
de instrão), exceto se o Conselho de Segurança decidir o contrário (nos termos do
artigo 16º).
Em primeiro lugar, a inação do Conselho de Segurança na determinação da existência
de agressão não conduz fatalmente a um impasse sem solução. Essa inação passa a ter
um limite temporal, seis meses, e o esgotamento desse limite permite acionar os
poderes independentes do Procurador, embora com controlo judicial. Caso o Conselho
de Segurança pretenda travar uma investigação (e esse travão tem ele próprio um
limite temporal), terá de reunir 9 votos no seio do Conselho e garantir que nenhum dos
membros permanentes aponha o seu veto.
35
Sobre a história e documentação da negociação e as diferentes propostas apresentadas consultar Stafan
Barriga/Claus Kreβ (eds.) (2012) Crime of Agression Library: the Travaux Preparatoires of the Crime of
Agression. Cambridge: University Press.
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A dinâmica da ação ou inação do Conselho de Segurança na determinação da existência
de situações de agressão, vai ser necessariamente afetada pela existência de uma
alternativa judicial, para efeitos penais, que pode ser acionada em caso de inação.
Enquanto a apreciação da agressão for exclusivamente um exercício de natureza
política pertencendo apenas ao Conselho de Segurança, a inação deste não possui
quaisquer consequências. O Conselho não adota nenhuma resolão e a partir daí,
nada pode ser feito. Neste momento, o Conselho não tem um monopólio exclusivo
quanto à determinação da agressão, dado que o Procurador e o Tribunal podem
determinar a existência de um crime de agressão. E os equilíbrios específicos do voto e
do veto no seio do Conselho de Segurança passam a ser fundamentais para impedir a
jurisdição e não para permitir a jurisdição do Tribunal, a qual lhe é atribuída pelo
tratado internacional que é o Estatuto de Roma.
Outra situação particularmente interessante é a que surgir quando o Conselho de
Segurança, interpelado pelo Procurador determinar expressamente por meio de
resolução a inexistência de uma situação de agressão. Na prossecução da investigação
o Procurador, ou posteriormente o Tribunal chegam a uma conclusão oposta,
declarando que foi praticado um crime de agressão. Ou a situação inversa: ao abrigo
das suas prerrogativas o Conselho de Segurança procede à determinação da existência
de uma situação de agressão e o Procurador ou o Tribunal, chegam á conclusão inversa
de que não foi praticado um crime de agressão. Talvez estas hipóteses sejam de
natureza mais teórica do que qualquer outra coisa mas as duas possibilidades resultam
efetivamente das emendas introduzidas ao Estatuto. E nesses casos não adianta
grandemente invocar que o Conselho de Segurança realiza um exercício essencialmente
potico enquanto o Tribunal realiza um exercício judicial. Mesmo que com uma
natureza diferente política e judicial a possibilidade de os mesmos fatos poderem
ser qualificados como agressão ou não (situação ou crime de agressão) não deixa de
ser perturbadora
36
A história da determinação da existência de agressão pelo Conselho de Segurança pode
facilmente ser resumida, dado o muito reduzido número de casos relativamente aos
quais o mesmo se pronunciou neste âmbito. Na verdade o Conselho de Segurança
apreciou a existência de uma situação de agressão apenas em cinco casos: Rodésia do
Sul, África do Sul, Benim, Tunisia, Ilhas Malvinas/Falkland e Iraque/Koweit. Nos casos
da Rodésia do Sul e África do Sul, o Conselho adotou diferentes resoluções ao longo
dos anos, constatando a existência de "atos de agressão" contra Estados vizinhos como
situações constatando ameaças contra a paz e estabilidade internacionais. No caso do
Benim, as incursões de mercenários ocorridas em 1977, foram igualmente qualificadas
como atos de agressão armada. No caso da Tunísia o Conselho qualificou ataques de
Israel como atos de agressão, condenando-os expressamente. No caso das ilhas
Malvinas/Falkland, o Conselho exprimiu a sua preocupação com a incursão militar
argentina no arquipélago, não tenso qualificada a mesma como ato de agressão. Por
último no caso mais exemplar da invasão do Koweit pelo Iraque, sem dúvida o caso
mais evidente de uma situação de agressão dos últimos tempos, as diferentes
resoluções adotadas nunca qualificaram a invasão militar do Koweit e mesmo a sua
anexação territorial como ato de agressão.
.
36
Sean Murphy (2012) The Crime of Agression and the ICC. George Washington University Law School,
Legal Studies Research Paper 50: 39, suscita o receio de a existência e expansão da jurisdição do Tribunal
Penal Internacional, limitar a capacidade de gestão, pelo Conselho de Segurança, de situações de conflito
armado.
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Não é temerio afirmar que a tendência natural do Conselho de Segurança é a inação:
o Conselho tende naturalmente para não se pronunciar sobre a existência de uma
situação de agressão. E este facto não deriva tanto dos equilíbrios específicos dos votos
e vetos mas sobretudo da natureza do silêncio do Conselho. No quadro do exercício dos
poderes do Conselho ao abrigo do artigo 39º, de certa forma o silêncio pode ser em si
mesmo uma decisão: não determinar que em determinada situação fáctica houve atos
de agressão pode ser uma opção consciente com motivações possíveis muito
diferenciadas. O Conselho pode mesmo, pelo silêncio, pretender não recorrer a
nenhuma das medidas possíveis ao abrigo do Capítulo VII da Carta, insistindo em
soluções de natureza político e diplomática para eventos que efetivamente integrem ato
ou atos tipificados como condutas de agressão. Quaisquer que sejam as motivações do
Conselho a verdade é que, no momento em que às emendas de Kampala for dada
plena execução, existe uma alternativa a essa inação.
O tema em si mesmo encerra uma questão de natureza "constitucional" para a ordem
pública internacional a qual, em última análise, se prende com a natureza exclusiva ou
o exclusiva dos poderes do Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da
Carta, bem como o exato alcance do artigo 103º.
Antes de tratar desta questão, é útil passar em revista alguns comentários sobre as
emendas de Kampala. Parece interessante citar Zhou Lulu
37
Zhou Lulu avalia globalmente o compromisso de Kampala sobre as condições do
exercício de jurisdição como um fator de desestabilização para a paz e segurança
internacionais, ao introduzir impactos negativos no sistema jurídico e político
internacional atual.
, por várias ordens de
razões, por não ser muito divulgado no Ocidente um pensamento jurídico internacional
chinês, mas também porque Lulu integrou a delegão chinesa na Conferência de
Kampala.
A faculdade concedida ao Tribunal para apreciar situações de agressão em situações de
inação do conselho, não é compatível com os poderes que o artigo 39º que a carta
atribui a este e o sistema de competências concorrentes entre estes dois órgãos afeta
todo o sistema de segurança coletiva em vigor após 1945. A autora exprime ainda
grande preocupação com a possibilidade de as duas entidades (uma das quais, o
Tribunal, independente do sistema das Nações Unidas) poderem chegar a conclusões
diametralmente opostas quanto à existência de uma agressão na mesma situação de
facto. Nesta situação que tipo de obrigações decorreriam para os Estados do artigo
103º? A autora refere de forma implícita que o preceito imporia aos Estados o
desrespeito por uma sentença do Tribunal se a mesma contrariasse uma prévia
constatação pelo Conselho de Segurança. E o resultado final da existência de
constatões divergentes entre o Conselho e o Tribunal seria que
"(…) not only will the international community be faced with the disorder
brought on by the lack of clear right-or-wrong standards, the
fragmentation of international law will be exacerbated which may
stimulate states to go more on their own ways. In the long term, this
37
Zhou Lulu (2012) Brief Analysis of a Few Controversial Issues in Contemporary International law in
Morten Bergsmo/ Ling Yan (eds.) State Sovereignity and International Criminal Law. Beijing: Torkel
Opshal Academic EPublisher, p. 21.
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will be harmful to preventing acts of aggression and maintaining
international legal order" (Zhou 2012: 35).
Guo Yang ilustra o possível conflito de decisões:
"(…) to authorize the Prosecutor to proceed with the case in disregard of
the decisions of the Council will put the reputation and credibility of both
institutions at risk if their decisions conflict each other. It will also put
the States into a dilemma when faced with conflicting decisions because
they are required to give priority to the obligations from the Council
under Article 103 of the Charter, which could hinder their co-operation
with the Court (…) The intervention of the Court under these
circumstances might not be a contribution to peace and security" (Guo
2012: 97).
Muito deste debate pressupõe a qualificação dos poderes do Conselho de Segurança ao
abrigo do capítulo VII da Carta (ou melhor da interpretação cruzadas dos artigos
24º,25º e 39º da Carta) como poderes exclusivos no âmbito da paz e segurança
internacionais e, em consequência, excluindo quaisquer outros poderes concorrentes.
Esta natureza exclusiva dos poderes do Conselho assenta numa visão segundo a qual a
determinação da agressão é na sua essência uma determinação de natureza política e
diplomática e, por conseguinte, apenas o Conselho como órgão político é apto a fazer
essa determinação. É um discurso de exclusão de qualquer tentativa de judicializão
da agressão, de exclusão de um qualquer juízo técnico-jurídico sobre a apreciação de
condutas. É no fundo um discurso agressivo à existência de poderes judiciais
independentes do Conselho, visando eliminar a existência de alternativas ao Conselho
de Segurança em matérias de segurança internacional. Várias formas de contrariar esta
ideia de exclusividade de poderes do Conselho seriam possíveis mas bastaria refletir
que a defesa intransigente deste monopólio criaria de facto a distinção entre Estados
Gigantes e outros Estados a que se referia Vattel, numa situação em si mesma
incompatível em termos jurídicos com a igualdade soberana consagrada no artigo 2º da
Carta. Em última análise, fazer depender a jurisdão do Tribunal (ou de qualquer
tribunal ad hoc) da dinâmica do veto criaria uma imunidade absoluta de jurisdição a
favor de cinco Estados para qualquer um dos crimes internacionais.
Existe qualquer coisa de irreconciliável entre independência judicial e Conselho de
Segurança e entre uma avaliação política, largamente discricionária e que não é em si
mesma sindicável, e uma avaliação judicial objetiva sobre a existência de determinadas
condições que são tipificadas como condutas criminosas numa norma pré-existente.
Estas avaliações têm objetivos distintos: o Conselho de Segurança avalia a exisncia
de "situações" de agressão para efeitos de determinar ameaças à paz e seguranças
internacionais, enquanto o Tribunal avalia a prática de "crimes de agressão" para
efeitos de imputação de responsabilidade penal individual e aplicação de uma possível
pena
38
38
O texto do artigo 15º-bis, nº 4, torna difícil sustentar esta exclusividade como observa David Sheffer
However, in order for the pre-trial Division to authorize the investigation of a crime of aggression, it will
. No entanto, até 1998, ambas se mantiveram no estrito controlo do Conselho: a
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criação dos tribunais ad hoc permitiu que num primeiro momento, o Conselho se
apropria-se também da administração da justiça penal internacional, enfim dos crimes
e dos seus castigos. Os dois momentos recentes 1998 e 2010 abrem duas brechas
definitivas num monopólio punitivo que a ordem de 1945 retirou progressivamente à
soberania dos Estados para colocar nos Super-Soberanos do Conselho de Segurança.
A expansão da jurisdição do Tribunal para domínios da reserva absoluta do Conselho de
Segurança, como a apreciação da legalidade (criminal) da Guerra, poderá, caso seja
conduzida segundo padrões judiciais irrepreensíveis sob o ponto de vista técnico, trazer
ligeiras alterações nos equilíbrios existentes. Como afirmam Kreβ e von Holtzendorff, se
o Tribunal
"(…) succeeds, it is not unreasonable to assume that world opinion will
begin to slowly exert its soft power towards the expansion of the ICC’s
jurisdictional reach" (Kreβ/ Holtzendorff 2010: 1179).
5. Conclusões
A existência de uma justiça penal internacional, com natureza permanente e
independente, é contrária à ideia de soberania estatal, nas suas manifestações
concretas de soberania judicial e punitiva. No entanto não parece correto afirmar que
as relações entre soberania e justa penal internacional se organizem apenas em
termos de antagonismo, não se impondo uma escolha absoluta entre soberania ou
justiça internacional
39
No plano da justiça penal, as dificuldades de adaptação não virão de pequenos e
médios Estados, cujo processo de adaptação a esta erosão progressiva de soberania, se
encontra em curso com base em consensos políticos internos mais ou menos pacíficos,
mas sim dos grandes Estados, em particular dos Super Soberanos com assento
permanente no Conselho de Segurança. E, em segunda linha, essas dificuldades virão
de outros Grandes Soberanos, sem uma expressão de soberania tão militarizada e sem
as prerrogativas concedidas pelo estatuto jurídico formal diferenciado adveniente da
qualidade de membro permanente.
. As soberanias nacionais, sujeitas atualmente a inúmeros fatores
de erosão, possuem estratégias próprias de adaptação e transformação, as quais
podem, inclusivamente, passar por cedências consentidas e pontuais de parcelas de
poder e independência. Convém ter presente que o próprio Conselho de Segurança
submeteu à apreciação do Tribunal situações concretas de agressão.
Após 1945, o consenso entre os Super Soberanos permitiu a entrada de instrumentos
judiciais penais na ordem pública internacional com os julgamentos de Nuremberga e
quio. Este modelo de justiça penal internacional seletiva possui uma função
essencialmente retributiva e punitiva em detrimento de uma função geral de prevenção
de crimes internacionais destinada a contribuir para a paz e segurança internacionais.
need to determine(…) that a crime of aggression arises from an act of aggression. That requirement
challenges the view that the Security Council has the exclusive authority to determine an act of
aggression” (Scheffer 2010: 16).
39
Ver a observação certeira de Robert Cryer:An excess of sovereignty and state power can lead to
international crimes, as in the Holocaust, but so can a lack of sovereign powers, as in Somalia or Sierra
Leone. Ironically, we act through state sovereignty in order to restrict actions justified in the name of
sovereignty” (Cryer 2005: 1000).
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A sobrevivência do modelo de Nuremberga nas experiências da ex-Jugoslávia e do
Ruanda continua a ser uma proposta interessante para os Super Soberanos que
decidem quando, para quem e como são atribuídos os castigos. Apenas em 1998 e
agora em 2010 este modelo de justiça seletiva escapa ao controlo dos seus criadores,
criando realmente novas possibilidades, mesmo que muito limitadas, de alternativas a
um determinado esquema de poder consagrado na composição do Conselho de
Segurança. O incómodo e mesmo a hostilidade demonstrada pelos cinco membros
permanentes perante o Tribunal Penal Internacional atestam, de forma evidente, que a
justiça penal internacional é uma possibilidade de contra poder judicial e pressentida
como uma condicionante indesejada de soberania. E esse incómodo pode ser visto
como um resultado da subtil transição de um modelo de justiça internacional que é
ainda na sua esncia um sub-produto de um modelo interestadual de inspiração
vestefaliana para um modelo, porventura mais sofisticado, de maior pendor
cosmopolita e universalista. Esse incómodo é tamm resultado de uma relativa
dificuldade de comunicação entre diplomatas e juristas: a essência dotodo
diplomático é o segredo, a cedência, a composição de interesses mesmo que feita
contra legem ou proeter legem, enquanto o jurista não pode trabalhar fora de um
quadro de normas pré-determinadas e publicitadas. E no entanto, a paz e a segurança
internacionais exigem seguramente as intervenções paralelas da Diplomacia e do
Direito como os seus instrumentos essenciais. O jurista internacional não pode ficar
acantonado a uma mera função de redator de fórmulas previamente acordadas pelos
diplomatas, da mesma forma que o Direito Internacional não se resume ao Direito dos
Tratados.
A alternativa judicial está criada apenas de modo formal: o Tribunal Penal Internacional
só poderá afirmar-se pela credibilidade técnica e pela consolidação de uma
jurisprudência de aplicação absolutamente irrepreenvel. O carácter rudimentar do
direito penal internacional deverá ser progressivamente corrigido e idealmente
aproximado dos métodos de interpretação a aplicação de normas penais utilizados pelo
criminalista nas ordens jurídicas internas, procurando definir um conjunto de padrões
próprios da administrão de justiça penal, baseado em preceitos determináveis e
claros, numa operação saudável de "positivação" da "consciência e moral" universais.
E os juízes devem ter um voto de confiança. É necessário relembrar que sem os juízes
do Luxemburgo, muitas vezes acusados de ativismo judicial, não existiria integração
europeia, da mesma forma que sem os jzes de Estrasburgo não existiria uma ordem
jurídica europeia de direitos humanos. E algm consegue realisticamente imaginar
uma ordem jurídica mundial sem o Tribunal Internacional de Justiça? Todos estes
tribunais operaram na construção de um acervo jurídico em ambiente de conflito
declarado com os Estados preocupados com a preservação da maior margem possível
de soberania judicial e mesmo constitucional. Basta pensar nas relações tensas entre
os tribunais constitucionais europeus e o tribunal do Luxemburgo ou na relação difícil
dos grandes Estados, nomeadamente França e Estados Unidos, com a jurisdição
compulsória do Tribunal Internacional de Justiça.
Os acontecimentos dos próximos anos serão determinantes para avaliar da
credibilidade desta alternativa judicial para a paz e segurança mundiais e para o
objetivo da luta contra a impunidade: a implementação das emendas de Kampala, a
dinâmica das discussões relativas à complementaridade e o processo de maturidade de
um corpo de regras de Direito Penal Internacional serão testes fundamentais a esta
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mesma credibilidade. Apesar de tudo é necessário ter em mente que em março de
2013 o Estatuto de Roma possui 122 Estados Partes e que, portanto, o objetivo de
universalidade o constitui nenhuma manifestação de angelismo ou de pacifismo
lírico, mas sim uma meta perfeitamente realista.
É necessário dar tempo ao Tribunal Penal internacional. E por isso ainda estamos no
tempo de observar e ainda não no tempo de explicar.
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AS VIOLÊNCIAS (CRIMES) GRAVES DE RELEVÂNCIA
PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Francisca Saraiva
msaraiva@iscsp.utl.pt
Licenciada e mestre em Relações Internacionais e doutorada em Ciências Sociais, na
especialidade de Relações Internacionais, com uma tese na área dos Estudos Estratégicos, pelo
ISCSP-UTL. É professora auxiliar no ISCSP-UTL (Portugal) trabalhando as áreas da Estratégia,
Geoestratégia, Políticas Públicas de Segurança, Resolução de Conflitos e Direitos Humanos. É
investigadora no Instituto da Defesa Nacional (Portugal) nas áreas dos Estudos Estratégicos e
Estudos Geopolíticos. É também investigadora integrada no CAPP, no Grupo de Sociedade,
Comunicação e Cultura.
Resumo
A criação do TPI em 1998 e a entrada em vigor do seu Estatuto, em 2002, permitiu dotar a
comunidade internacional de um mecanismo judico permanente de dissuasão e repressão
de actos de barbárie e crueldade extrema. Contudo, a alteração do ambiente internacional
ocorrida após o desmembramento da URSS, caracterizada pelo aumento da violência política
- guerra preventiva/guerra preemptiva e a afirmação de políticas de excepção, teve um
considerável impacto na negociação do Estatuto e mais tarde na definição do crime de
agressão, aprovada na Conferência de Kampala. Os grandes poderes estruturaram as suas
estratégias negociais em torno da defesa dos seus interesses de longo prazo, que verteram
com grande sucesso para os textos aprovados, nomeadamente a possibilidade de uma
securitização dos direitos humanos e a preferência por um multilateralismo selectivo que o
Estatuto e a declaração de Kampala não conseguiram impedir, levantando sérias
interrogações sobre os fundamentos do Tribunal e o seu futuro. O texto defende que esta
arrogância não pode ser lida como uma manifestação da vitalidade do poder norte-
americano capaz de por em causa a legitimidade do TPI. Esta hostilidade corresponde, na
verdade, a uma estratégia de sobrevincia potica que visa manter liberdade de acção
estratégica, num ambiente estratégico crescentemente dinâmico e exigente.
Palavras chave:
Tribunal Penal Internacional; Direito Internacional; Teoria da Estabilidade Hegemónica;
Revolução nos Assuntos Militares
Como citar este artigo
Saraiva, Francisca (2013). "As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade
internacional". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N2, Novembro
2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art2
Artigo recebido em 27 de Maio de 2013 e aceite para publicação em 12 de Setembro de
2013
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As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional
Francisca Saraiva
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AS VIOLÊNCIAS (CRIMES) GRAVES DE RELEVÂNCIA
PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Francisca Saraiva
Introdução
A vida internacional apresenta fenómenos crescentemente complexos, como é o caso
das atrocidades cometidas contra civis inocentes e as violações sistemáticas das leis e
costumes da guerra por parte de forças armadas regulares e forças de resistência.
Para muitos, a justiça penal internacional é o principal instrumento no combate à
impunidade e iniquidade destes comportamentos, na medida em que nos tribunais se
procura ressarcir as vítimas dos actos de violência e outras arbitrariedades através de
julgamentos justos e imparciais dos acontecimentos e da dissuasão de futuros ilícitos.
É esta justiça que a partir da década de 90 do século XX vai construindo um regime
complexo com dimensões nacionais, regionais e globais que tem levado à barra dos
tribunais internacionais indivíduos que se suspeita terem cometido graves ilícitos contra
a sociedade no seu todo e por isso considerados crimes ao abrigo do Direito
Internacional.
A entrada em vigor do Estatuto de Roma, em 2002, dotou a comunidade internacional
de uma justiça penal permanente com capacidade para prevenir e reprimir a guerra e
punir os seus responsáveis. No entanto, as circunstâncias particularmente adversas em
que o Estatuto foi negociado (e entrou em vigor) determinaram um reduzido grau de
autonomia do Tribunal o que, no entender de muitos, se traduziu numa crescente
inadequação dos objectivos do Tribunal e das concepções subjacentes à sua criação.
Em particular, os equilíbrios estabelecidos no texto do Estatuto do Tribunal e na
emenda aprovada na Confencia de Kampala não oferecem garantias perante a
necessidade de resguardar o Tribunal das políticas intervencionistas das grandes
potências. As crescentes evidências empíricas de um aumento no número dos conflitos
internos, que se começou a observar em 2005 e que ainda não atingiu o seu ponto de
inflexão, por um lado, e a política de envolvimento selectivo nos mecanismos
multilaterais que acompanha o envolvimento norte-americano nestes conflitos, por
outro, criaram uma turbulência no sistema internacional cujo alcance ainda não é
totalmente conhecido.
As respostas práticas que se têm encontrado para as dificuldades apontadas não têm
sido respostas satisfatórias, nem parece que o possam vir a ser no curto prazo. Estas
soluções, defendidas em primeira linha pelos pequenos poderes, apresentam défices de
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mobilização por incapacidade de atrair as grandes potências e mesmo as médias
potências, que procuram organizar-se nas questões relativas ao Tribunal de forma
autónoma, em torno da agenda dos like-minded.
Na verdade, a oposão declarada dos Estados Unidos à jurisdição do Tribunal (que já
provocou alguns embaraços diplomáticos) indicia, do nosso ponto de vista, que a
política seguida é uma opção contraproducente porque põe em perigo os próprios
interesses de longo prazo dos Estados Unidos e de outras potências tecnologicamente
avançadas. Neste sentido, a análise dos acontecimentos sugere que se trata aqui,
sobretudo, de uma estratégia de sobrevivência de Washington perante um sistema
internacional em acelerada mutação que este já não controla inteiramente. É certo que
muitos outros Estados têm também resistido ao Tribunal Penal Internacional, na
maioria dos casos grandes potências, como a China, a Índia, o Paquistão a Indonésia, a
Malásia, e a Turquia (que não assinaram; note-se que os três primeiros são potência
nucleares) ou a Federação Russa (que assinou mas não ratificou), para apenas nomear
os mais óbvios. Tal como é certo que pequenas e médias potências designadamente,
mas não apenas, em África se lhe têm oposto, com maior ou menor vigor,
motivações e resultados: da Líbia à Arábia Saudita, de Cuba a El Salvador, à Mauritânia
e ao Sudão
1
. É, porém, nosso argumento, que os EUA são quem o tem feito de modo
mais consequente (dada a escala do poder norte-americano), mais fundamentado
(porque mais explicado por autores como Henry Kissinger e virtualmente todos os
Secretaries of State for Defense norte-americanos, Democratas como Republicanos) e
mais explícito e transparente, no sentido de mais publicitado pelos próprios. Vale a
pena, por isso, que nos debrucemos sobre a administração norte-americana com uma
boa parcela da nossa atenção, o que aqui fazemos sem embargo, naturalmente, de
uma remissão para explicações futuras mais completas e menos “ad hominem” e
reducionistas que podem (e devem) ser levadas a cabo.
1. O contrato social e a violência política
A violência existe desde tempos imemoriais mas foi assumindo novas formas à medida
que o homem foi construindo novas sociedades. Neste sentido a violência é uma
construção política e social transversal a todas as sociedades organizadas.
Regra geral, os governos tomam para si a responsabilidade de proteger os cidadãos
que vivem sob sua jurisdição. O Estado mediador de conflitos é, na verdade, o principal
garante da estabilidade social e da paz interna. Em tempo de guerra, o Estado
reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física para preservar o espaço
potico da comunidade e o bem mais essencial, a vida humana, posta em causa por
ameaças externas e internas à comunidade
2
Os mecanismos da justiça penal internacional são, no sentido explanado, uma
consequência do falhao do contrato social celebrado entre governantes e governados
e uma necessidade de defender os direitos humanos fundamentais face à violência,
barbárie e impunidade.
.
1
http://www.iccnow.org/, acedido em 3 de Março de 2013.
2
Jean Bodin (1530-1596) contribuiu definitivamente para a conceptualização do Estado como poder
soberano, dotado de soberania interna e externa. Mais tarde coube a Thomas Hobbes (1588-1679) e John
Locke (1712-1778) a teorização do contrato social e a sua relação com a soberania, nomeadamente a
utilidade do contrato social para a contenção do caos social em comunidades politicamente organizadas.
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Hannah Arendt clarificou como ninguém a relação entre poder e violência, que muitos
consideram umbilical. Arendt concluiu de forma inovadora que o exercício do poder
político corresponde ao reconhecimento da autoridade do Estado e não à afirmação do
poder pela violência. As anos de estudo, demonstrou que o exercício da autoridade
não só não se confunde com a violência como prescinde da violência para se afirmar
(Arendt, 1969a). Esta posição contradita claramente a conhecida tese de Carl Schmitt
sobre o conflito como elemento constitutivo do poder (de que a guerra é uma
manifestação extrema) (Schmitt, 1932) sem prejuízo de Arendt reconhecer, como
Schmitt, que o poder é a essência do governo. Vendo o poder desta forma, a
autoridade deve manter a ordem afastando-se o mais possível da violência como
estratégia de afirmação de poder.
Isto não quer dizer que o poder não necessite pontualmente da violência, enquanto
instrumento de acção política. Mas segundo Arendt, quando o poder é exercido de
forma plena a violência deixa de ser necessária. O corolário deste argumento é que,
para Arendt, o emprego da violência simboliza, mais do que tudo, a falência do poder e
não a essência desse mesmo poder (Arendt, 1969b).
Para um número significativo de governos o carácter essencialmente conflitual da
política sobrepõe-se à noção de que o poder se deve converter em autoridade para
legitimar a política. Por esta razão os pais fundadores das Nações Unidas entenderam
que o mundo necessitava de um novo contrato social, baseado no princípio da ilicitude
da violência como mecanismo de resolução de conflitos, excepto em legítima defesa ou
ao abrigo do mecanismo de segurança colectiva global. Neste sentido, o dispositivo
normativo da Carta das Nações Unidas dissocia intencionalmente o conceito de poder
da noção de violência reiterando o entendimento da violência como instrumento que
embora esteja à disposição do poder não é o cerne do poder.
Em tese, a institucionalização da segurança colectiva realiza o sonho cosmopolita de
substituir as alianças e os equilíbrios de poder por uma paz indivisível conseguida
através da submissão do interesse nacional ao interesse colectivo.
A segurança colectiva funciona sobretudo como um instrumento de redução dos abusos
do poder e de preveão de ocorrências futuras de violência internacional organizada
ao serviço de um objectivo permanente, garantir a estabilidade e a previsibilidade do
sistema internacional (Saraiva, 2001).
Por isso, o mandato alargado da Carta da Nações Unidas - consubstanciado no tríptico
segurança/direitos humanos/desenvolvimento - é na verdade uma fórmula que enfatiza
a vertente da segurança, que surge no texto fundador em grande destaque,
praticamente divorciada das outras componentes.
Os sujeitos do Direito Internacional por excencia foram sempre os Estados. Mas aos
poucos e poucos, foi emergindo a noção de que os governantes que planeiam e
comandam actos bárbaros e atrozes que ferem o bem comum da humanidade têm o
dever de responder perante a comunidade internacional no seu conjunto.
A tese da inimputabilidade dos governantes começou a modificar-se depois da I Guerra
Mundial, perante as indizíveis atrocidades cometidas pelos exércitos durante o conflito.
Esta nova fase do Direito Penal consagra, para além dos crimes comuns, os crimes
mais atrozes e hediondos, caracterizados pela violência, crueldade e barbaridade.
Assim, a noção de crime internacional, caracterizado como
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Um acto universalmente reconhecido como criminoso, sendo um
assunto grave que gera preocupação internacional e que por alguma
razão não pode ser considerado de jurisdição exclusiva do Estado que
teria, em condições normais, controlo sobre ele” (Military Tribunal V
1947-1948, caso Hostage).
Passa a estar no centro da governança internacional como uma tipologia de crimes
contra a ordem internacional cometidos por indivíduos concretos, podendo-se assacar a
estes indivíduos responsabilidade penal individual pelos seus actos.
Do ponto de vista da segurança internacional, é indiscutível o contributo decisivo do
Tribunal Militar Internacional de Nuremberga e do Tribunal Militar Internacional de
Tóquio para a limitação da liberdade dos governantes. Estes julgamentos são um
primeiro esboço de uma justiça cosmopolita que reprime os mais graves crimes de
carácter internacional de responsabilidade penal individual de líderes políticos e
militares, no caso alemães e japoneses. Tratou-se, no entanto, de tribunais ad hoc, que
por isso desapareceram mal resolvidos os casos concretos para que tinham sido
criados.
Mas no pós II Guerra Mundial e durante as décadas seguintes da Guerra Fria o
expressivo aumento de crimes internacionais fez com que a comunidade internacional
estabelecesse como meta a criação de um tribunal internacional permanente dotado de
poder suficiente para aplicar o Direito Internacional aos indivíduos acusados de cometer
graves violações do Direito Internacional Humanitário.
O final do século XX viria a criar condições propícias à concretização do projecto.
Os anos 90 começaram com a desagregação da antiga União Soviética e a aceleração
da globalização, que gerou novas formas de violência e terror e a “civilinização” dos
conflitos. A característica essencial dos conflitos armados no final do século XX é o
esbatimento da distinção entre combatentes e não combatentes. O resultado é um
aumento da pressão sobre aqueles que não têm vínculo ao conflito, os civis timas
directas das hostilidades ou dizimados pela fome ou doença na sequência dos conflitos
armados
3
Estes sinais de mudança no sistema internacional, que se integram numa tendência de
longo prazo, sugerem o esgotamento do paradigma soberanista e a progressiva
. Verifica-se também um profundo impacto das tecnologias na (nova)
morfologia dos conflitos e nos efeitos globais que estes provocam no sistema
internacional. Finalmente, um terceiro elemento, o discurso sobre a insegurança do
sistema internacional - a “guerra ao terrorismo”, apresentada como uma resposta à
nova ameaça do terrorismo, é talvez a mais significativa construção narrativa da
potica externa norte-americana na fase pós bipolar impregnou de tal modo o debate
político que acabou por ter uma influência considerável na criação de um tribunal penal
internacional permanente com capacidade de repressão efetiva de pessoas
responsáveis pelos crimes internacionais mais graves.
3
Sobre a evolução deste problema ver (2009) Human Security Report 2009/2010. Oxford: Oxford
University Press.
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afirmação de uma soberania limitada por uma cultura de responsabilidade em situações
de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Uma das conquistas do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), concluído em
1998, foi justamente a inclusão na sua jurisdição do crime de agressão (jus ad bellum),
ausente dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e do
Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, a par do crime de genocídio, crimes contra
a humanidade e crimes de guerra (jus in bello). Neste sentido, o Tribunal é uma
instituição internacional que tem por missão dissuadir e reprimir a barbárie e crueldade
extremas desincentivando tanto quanto possível o recurso à guerra como mecanismo
de transformação social e de controlo político sobre as populações e recursos.
A verdade é que o novo Tribunal tem mandato para prevenir e reprimir a guerra e punir
os seus responsáveis mas não pode ignorar que há outras instituições com capacidade
de limitar a soberania externa dos Estados. Não se está, portanto, perante uma
instituição que age sozinha. Está-se perante uma necessidade prática de articulação do
TPI com o CSNU, na medida em que este tem a responsabilidade de zelar pelo
cumprimento da norma geral que impede o emprego estratégico da coacção armada
fora do (restritivo) quadro da legítima defesa.
2. Segurança colectiva e responsabilidade penal individual por crimes
internacionais
Nesta secção pretende-se analisar a decisão tomada pelas grandes potências no final
da II Guerra Mundial de dotar o sistema internacional de um mecanismo de segurança
colectiva.
Como se disse, o desenvolvimento de um modelo de segurança colectiva global
adoptado pelas Nações Unidas em 1945 procura garantir a ordem, estabilidade e
continuidade no mundo do pós guerra. O modelo que foi institucionalizado es
fortemente alavancado nos poderes conferidos aos membros permanentes do CSNU,
com capacidade material e vontade política para manter um sistema global capaz de
funcionar a favor de todos os Estados do sistema internacional.
Em teoria,
“a condição sine qua non da segurança colectiva é a auto-regulação
colectiva: um grupo de Estados tenta reduzir as ameaças à segurança
acordando punir colectivamente qualquer Estado que viole as normas do
sistema” (Downs e Iida, 1994).
Nesse sentido, distingue-se da defesa colectiva por três ordens de razões.
Em primeiro lugar, os problemas relacionados com a segurança interna do espaço
político são mais importantes que os desafios externos a este grupo de países.
Segundo, a coligação de Estados que compõem o espaço dispõem, no seu conjunto, de
um poder agregado preponderante em relação aos eventuais opositores. Finalmente, os
participantes do sistema estão unidos em torno de um desígnio comum: reagir contra
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qualquer emprego da força armada considerada ilegal à luz do Direito Internacional
(Downs e Iida, idem).
O mecanismo que foi institucionalizado é, na origem, essencialmente reactivo
apostando numa vigilância dos Estados não membros do CSNU apenas e quando estes
perturbam o sistema e ferem os interesses colectivos mais fundamentais,
nomeadamente a salvaguarda do status quo internacional.
No entanto o princípio, outrora basilar, de não interveão nos assuntos internos dos
Estados incorpora hoje novos parâmetros de análise a que o CSNU deve
necessariamente atender.
Não pertence aos objectivos deste texto a previsão do sentido que virão a tomar as
novas tendências no CSNU, nem tão pouco seria avisado fazê-lo, sendo suficiente
realçar que estes parâmetros têm implicações decisivas para o futuro deste órgão.
Um dos aspectos mais importantes da discussão sobre os limites do emprego da força
armada é a hipótese de intervenção humanitária armada em caso de catástrofe
humanitária (ao abrigo da doutrina da responsabilidade de proteger, ou R2P). Outras
possibilidades avançadas são de legalidade duvidosa, como o (r)estabelecimento de
regimes democráticos pela força ou o uso preventivo da força no caso de suspeita de
posse ou desenvolvimento de armas de destruição massiva (Saraiva, 2009: 97).
Em 1945 parecia viável construir um sistema de segurança colectiva global que
assentasse na convergência normativa e na expansão de consensos ao nível
internacional. Isto era possível porque existia uma coligação de Estados
suficientemente fortes para impor a sua vontade aos outros membros do sistema. No
período da Guerra Fria a correlação de forças Estados Unidos/URSS inviabilizou
qualquer entendimento mútuo que permitisse ao CSNU agir contra Estados
prevaricadores. Mas neste caso, como se sabe, havia pouco interesse em agir e não
falta de capacidade para actuar.
A questão crucial da geopolítica pós-bipolar é inteiramente diferente: a histórica tensão
entre direito e poder acentuou-se após o colapso da URSS em virtude dos Estados
Unidos, país que mantém a ordem no sistema internacional desde que ganhou a II
Guerra, pretender manter a sua posição dominante recorrendo ao poder militar para
continuar a ditar as regras do jogo e eventualmente contrariar a ascensão de uma nova
potência hegemónica.
Um dos principais garantes desta estratégia é a enorme capacidade militar e
tecnológica dos Estados Unidos que resulta da "revolução nos assuntos militares",
processo ligado às novas tecnologias referentes à precisão dos tiros de longo alcance e
à informação permanente sobre as forças presentes e alvos eventuais. A “guerra limpa”
permite uma estratégia de prevenção de ameaças potenciais ancorada na percepção de
que a hegemonia (americana ou qualquer outra) é uma condição passageira no sistema
internacional. Donde, não se trata apenas de enfrentar os que desafiam o poder norte-
americano mas de uma necessidade de protelar no tempo a perda do estatuto
hegemónico, que se sabe ser inevitável (Saraiva, 2009: 113).
Com efeito, o fim da Guerra Fria teve um papel importante na mudança da agenda
internacional. A mudança ocorreu a dois níveis: em relação aos temas que integram a
agenda e sobretudo na importância atribuída às questões internacionais.
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As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional
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Desde logo, a dinâmica desencadeada pela implosão da URSS teve tradução na
ocorrência dos conflitos armados o internacionais, que começou a baixar de forma
sustentada a partir de 1989. Os conflitos entre Estados não foram afectados,
mantendo-se quase sem expressão estatística, como se pode observar no gráfico que a
seguir se reproduz e que representa a conflitualidade armada registada no período
1946-2011.
Gráfico 1 Conflitos Armados por Tipo (1946-2011)
Fonte: Uppsala Data Program
http://www.pcr.uu.se/digitalAssets/122/122554_conflict_type_2011jpg.jpg
Em relação à importância dada aos problemas na década que se seguiu à fragmentação
da URSS e que coincidiu com a negociação do Estatuto de Roma, ocorreu uma
alteração profunda da percepção internacional dos assassinatos, genocídios, pilhagens
e crimes de guerra ocorridos na ex-Jugoslávia, Ruanda, República Democrática do
Congo e em tantos outros lugares esquecidos do mundo.
Mas nem por isso se pode dizer que os actuais equilíbrios estratégicos são o resultado
do novo discurso sobre a importância dos direitos humanos. O que a realidade
estratégica tem mostrado é uma complexificação da agenda internacional que decorre
de uma importante revalorizão estratégica da violência política e uma maior fluidez
das regras que proíbem o emprego da força armada. Como atrás de insinuou e se pode
observar no gráfico, a partir do ano de 2005 é observável um incremento da
conflitualidade armada que como tendência global ainda não deu verdadeiramente
sinais de abrandamento.
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Paralelamente, é notória a tendência para uma violação mais sistemática das leis e
costumes da guerra tanto no caso dos poderes instituídos como em relação aos
actores não estaduais acompanhando a flexibilizaçao das regras do jus ad bellum.
No que diz respeito à superpotência sobrante, a omnipresença dos Estados Unidos nos
principais palcos dos conflitos armados é uma crescente evidência que deve ser tomada
em devida conta pois, como já deixámos dito, o relaxamento das normas contra a
guerra e do jus in bello (em termos de armas e estratégias de guerra) é, em grande
parte, o resultado de uma opção política deliberada das potências militares mais
avançadas que beneficiam de uma panóplia de armamentos e equipamentos militares
inovadores produzidos pelo complexo militar-industrial das potências ocidentais. É-o
em grande parte, insistimos, embora possa (e deva) ser encarada num quadro maior;
este artigo toma como ponto focal o caso dos EUA, mas, por conseguinte, uma
explicação mais exaustiva e completa só pode ser encontrada por via de uma série de
análises complementares de outras grandes potências, bem como de agrupamentos de
pequenas e médias potências, como as africanas, e das suas formas alternativas de
“resistência”. Esperamos, assim dar aqui um passo (mas apenas um passo) nessa
direcção.
Outro aspecto importante do novo ambiente estratégico, nem sempre notado, é o
acesso às novas tecnologias por alguns grupos armados de oposição, o que os
transformou em movimentos globais e informacionais com comportamentos similares
aos Estados tecnologicamente avaados. O assunto é da maior importância, pois o
que aqui esem causa é uma verdadeira simetria estratégica no relacionamento dos
grupos de oposição com os poderes instituídos, embora no quadro de uma forte
dissimetria de capacidades (Saraiva, 2009: 156).
Todas estas alterações no ambiente estratégico tiveram reflexos na negociação do
Estatuto do TPI. As diferenças de opinião entre grandes e pequenas potências sobre
estes e outros temas exigiram longos debates e negociações que culminaram quase
sempre em concessões políticas aos interesses dos grandes poderes.
Apenas num caso houve interesse comum em flexibilizar a jurisdição do TPI. Em
matéria de crimes de guerra. As potências militares queriam preservar os avanços
tecnológicos da guerra centrada em rede (Network Centric Warfare), assente no
domínio da informação, na superioridade aéreo-espacial, utilização de veículos aéreos
o tripulados (UAVs) e operações no ciberespaço, mas tinham consciência de que o
novo paradigma do conflito alterava por completo os conceitos tradicionais de guerra e
combate. Já os regimes não democráticos, naturalmente preocupados com a
necessidade de neutralizar os movimentos internos de oposição armada, também só
viam vantagens em apoiar a consagração de um período transitório para os crimes de
guerra (Escarameia, 2003: 18).
A discussão da jurisdição do Tribunal em relação ao crime de genocídio e crimes contra
a humanidade foi mais acalorada mas as divisões políticas, embora se possam
considerar importantes, não atingiram um patamar crítico. O crime de agreso foi,
pelo contrário, unanimemente considerado como a questão política mais controversa.
De tal modo que em Roma esteve a um passo de ser afastado da competência material
do Tribunal.
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As violências (crimes) graves de relevância para a comunidade internacional
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3. Violência, crueldade e poder
A violência e a crueldade têm uma dimensão universal e intemporal constituindo o
cerne dos desafios que o espaço político enfrenta na actualidade.
Os crimes internacionais e sua tipificação correspondem a violações sistemáticas dos
direitos humanos em conflitos armados e a práticas de regimes arbitrários, que se
consubstanciam em atrocidades e actos de vioncia e crueldade sobre as vítimas. Esta
banalização da violência está frequentemente associada a uma necessidade de
afirmação dos perpetradores no quadro de projectos de poder mais ou menos difusos,
de natureza política ou económica.
Não existe uma definição precisa de atrocidade. O mesmo acontece em relação às
noções de crueldade, violência e poder, embora tenham sido avançadas algumas
propostas de clarificação das suas diferenças.
No que reporta à noção de crueldade, vários autores colocam a hipótese da crueldade
se situar num patamar diferente das noções de violência e poder, por aquela envolver a
completa negação da existência do outro (Rundell, 2012).
No entender de Rundell, a violência, aqui entendida num sentido essencialmente físico,
é um instrumento do poder. Mais precisamente corresponde a uma relação que é
estabelecida entre sujeitos, numa perspectiva em que o poder reconhece a existência
do outro, embora a crueldade seja muitas vezes o traço dominante destes
antagonismos, que se estabelecem entre coactor e coagido dentro e fora do campo de
batalha.
Pode assim concluir-se que a tortura, a violação, o aniquilamento do outro a quem
negamos existência é mais difícil quando existe uma relação de poder, que acaba por
limitar a crueldade inútil, embora a relação continue dominada por uma lógica de soma
nula (Rundell, idem).
Os crimes mais graves de importância para a sociedade como um todo são uma
tentativa de limitar as manifestações de crueldade e de violência nas sociedades
politicamente organizadas onde o direito e o poder são basicamente realidades
antitéticas.
Os crimes contra a população civil, genocídio e crimes contra a humanidade, são a face
visível de um Estado bárbaro e cruel que persegue e mata cidadãos comuns como
estratégia política para manter o poder, no contexto de conflitos amados ou
simplesmente no quadro de políticas de repressão. São igualmente formas de violência
praticadas por grupos armados irregulares sobre populações indefesas. O espaço da
vioncia generalizada contra civis esinstalado no quotidiano de muitos povos, o que
facilita uma articulação perversa destas violências com dinâmicas da conflitualidade
externa e transnacional, produzindo assim uma complexa mistura de tensões
conflituais que destroem as sociedades.
Os crimes de guerra constituem outra faceta da violência e crueldade. Sendo violações
das leis e dos costumes de guerra incluem actos cometidos durante os conflitos
militares queo condenados e proibidos tanto pelo costume internacional como pelo
direito de Haia, direito de Genebra e mais recentemente pelo direito de Nova Iorque.
Estes crimes estão balizados por normas que regulam o modo de emprego da força
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armada, em termos de armas e métodos de combate permitidos, uma vez tomada a
decisão de recorrer à violência armada por parte de Estados ou grupos de resistência.
Finalmente há a assinalar importantes progressos na institucionalização do crime de
agressão, que reporta à responsabilidade de indivíduos envolvidos na decisão de
recorrer ao uso da força para concretizar objectivos políticos no exterior.
O acordo alcançado em Nuremberga a propósito deste crime, então designado “crime
contra a paz”, tornou bastante clara a profunda interdependência entre paz, segurança
e justiça mas também as consideráveis discordâncias quanto à sua tipificação. Volvido
meio século, verificamos que as tensões político-estratégicas associadas ao crime não
foram totalmente ultrapassadas, apesar dos esforços das delegações presentes em
Roma e Campala, como adiante se verá em maior detalhe.
O crime de genocídio
É um crime sem nome e um crime internacional ao abrigo do costume internacional.
De todos os crimes elencados no Estatuto do TPI, é dos crimes com maior densificação
política, a par do crime de agressão.
O genocídio ocorreu em todos os períodos da história e está intimamente ligado à
intolerância perante a diversidade humana (Nersessian, 2007: 243). O genocídio
manifesta-se através de um plano premeditado destinado a destruir ou debilitar
(destruir no todo ou na parte) grupos de carácter nacional, religioso, racial ou étnico. O
plano tem por finalidade acabar com as instituições políticas e sociais, com a cultura,
língua, sentimentos de nacionalidade, religião e a própria existência econômica dos
grupos nacionais.
Deste modo,
“O genocídio é um estado de criminalidade sistemático e realiza-se em
duas fases: a primeira consiste na destruição do modelo nacional do
grupo oprimido e a segunda na imposição do modelo nacional do
opressor sobre a população oprimida que ficou no território.”
(Nersessian, idem: 246)
O termo tem origem num tratado de 1944 sobre o nacional-socialismo e a sua política
de ocupação escrito por um judeu, Raphael Lemkin, polaco e professor de direito. Nos
julgamentos de Nuremberga nenhum acusado foi condenado pelo crime de genocídio
per se porque nessa altura o genocídio integrava a categoria dos crimes contra a
humanidade (Nersessian, idem: 243).
Com efeito, no final da II Guerra, o léxico jurídico existente não dispunha de uma
categoria que exprimisse o acto inominável de exterminação massiva do povo judeu.
Alguns anos mais tarde, uma convenção de 1948
4
4
Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
Assembleia-Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1984.
autonomizava e positivava uma nova
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categoria de crime internacional, o “genocídio”, que designa crimes contra o género
humano, contra a dignidade da raça humana no seu todo.
O seu carácter particularmente bárbaro e cruel fere de tal modo o princípio de
humanidade que para os governos democráticos ocidentais é politicamente
insustentável ignorá-lo, não havendo qualquer possibilidade de recuar perante as
opiniões públicas depois de se ter admitido que o crime aconteceu.
Neste sentido, a tipificão do crime no Estatuto do TPI, que se limita a reproduzir a
definição do crime de genocídio adoptada na Convenção para a Prevenção e
Repressão do Crime de Genocídio (supracitada) tranquilizou a generalidade dos
Estados envolvidos na criação do TPI, pelo facto do crime continuar limitado à
destruição (física e biológica) intencional de um grupo nacional, religioso, racial ou
étnico (Cardoso, 2012: 48). A concepção adoptada exclui, por exemplo, fenómenos de
perseguição e destruição intencional de grupos poticos, permitindo aos governos
eximir-se de maiores responsabilidades perante estes crimes que embora se
considerem graves não parecem ferir tão profundamente o bem geral.
Com estas observações pretendemos sublinhar um ponto importante, que os conceitos
jurídicos ganham muitas vezes no discurso político um estatuto meramente
instrumental de manipulação da realidade. Esta referência serve portanto para lembrar
que a realidade é interpretada em função dos interesses da política, entendida como
capacidade de optar em cada momento por um determinado curso de acção em nome
do bem comum.
No caso do crime de genocídio a sua negação denota, quase sempre, um desinteresse
potico em punir este tipo de crime. Já a opção contrária, a denúncia internacional de
actividades genocidas, não significa forçosamente uma vontade política de reprimir e
punir tais actos.
Um só exemplo, dos vários possíveis: veja-se a convicção com que os Estados Unidos
se apressaram a condenar os acontecimentos no Darfur como actos genocidas, numa
altura em que o Relatório da Comissão Internacional de Inquérito sobre a Situação no
Darfur-Sudão
i5
A crise do Darfur evidencia a existência de uma dualidade moralista no pensamento
potico norte-americano (como, noutros casos, de intervenções semelhantes de
grandes potências), ao mesmo tempo particular e universal, e que esta dualidade cria
dificuldades políticas no momento em que é preciso tomar decisões.
, criada por vontade do CSNU e presidida por Antonio Cassese, não
conseguira obter provas contundentes da intenção de destruir grupos no todo ou na
parte, concluindo que o existia uma política genocida no Darfur mas actos militares
para eliminar acções rebeldes vindas de um grupo político (Hamilton, 2011). Com os
meios ao seu alcance, teria sido muitocil aos Estados Unidos apoiar a recomendação
da Comissão, que ia no sentido do CSNU referir o caso ao TPI permitindo desta forma o
julgamento dos responsáveis pelas atrocidades perpetradas no Darfur. Em vez de
apoiar esta proposta, os Estados Unidos sugeriram a criação de um tribunal híbrido
africano.
No início de Setembro de 2004, na sequência da investigação promovida pelo governo
americano aos crimes cometidos no Darfur, o secrerio de Estado Colin Powell
5
International Commission for Inquiry on Darfur, Report of the International Commission of Inquiry on
Darfur to the United Nations Secretary-General, UN Doc, S/2005/60, Jan, 25, 2005.
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descreveu os crimes ocorridos no Darfur como genocídio e o presidente George W.
Bush usou o termo num discurso nas Nações Unidas algumas semanas depois
(Hamilton, 2011). Na crise do Darfur, a política externa norte-americana quebrou a
tradição de manter o silêncio sobre este tipo de atrocidades. Porém a referência
explícita ao processo de desumanização em curso no Sudão não desencadeou uma
acção decisiva face à gravidade dos acontecimentos.
Deste modo, a prática discursiva dos Estados Unidos não confirma a assumpção de
responsabilidades deste país na repressão internacional do crime de genocídio. Bem
pelo contrário. A resolução do CSNU que denunciou a situação ao TPI só foi aprovada
porque se sabia que uma maioria de 9 países (do grupo dos like-minded) votaria
favoravelmente o texto, colocando os Estados Unidos numa posição ingrata: somente o
veto americano permitiria chumbar a resolução.
A administração norte-americana preferiu abster-se e viabilizar a resolução 1593 que
denunciou o caso ao TPI (Mackeod, 2010). Esta decisão, que parecia sinalizar um
compromisso com a justiça penal internacional, não amarra verdadeiramente o país ao
regime de protecção internacional dos direitos humanos porque a administração exigiu
contrapartidas pela viabilização da resolução, nomeadamente imunidade de jurisdição
perante o TPI dos cidadãos americanos envolvidos em operações militares naquela
região.
Já que envolve os Estados Unidos, uma grande potência com um discurso muito sui
generis, este episódio que aqui tomámos como exemplo põe a nu um discurso
contraditório e ambivalente que procura conciliar o discurso identitário da promoção
dos direitos humanos, focado no princípio da centralidade da dignidade da pessoa, e a
reafirmação do estatuto de nação excepcional, que neste sentido muito particular
isenta o país do cumprimento das regras prescritas pelo regime internacional de
protecção dos direitos humanos.
Conclui-se, neste caso, que do ponto de vista da grande estratégia dos Estados Unidos
os instrumentos de justiça internacional têm forte ligação a uma estratégia nacional de
promoção de regime democráticos, no quadro de uma agenda securitária mais ampla e
integrada que inclui, entre outros aspectos, a definição de esferas de influência, a
manutenção do estatuto de hegemonia e preocupações com a segurança energética do
país. Tudo indica que intervenções de outras grandes potências sigam um padrão
similar de duplicidade.
Os crimes contra a humanidade
Desde o final da II Guerra que assistimos à violência patrocinada pelos governos.
Os governos que matam intencionalmente civis socorrem-se de políticas letais como
genocídios e politicídios.
Como acabou de se ver, o genocídio compreende a uma política de assassinatos
organizada em que as vítimas são escolhidas em função da sua pertença a um grupo
particular.
Já os politicídios seguem um padrão diferente, em que as vítimas são definidas
primordialmente em termos da sua posição hierárquica ou oposição política ao regime e
grupo dominante. Politicamente, este conceito reflete a necessidade de reunir numa
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mesma categoria um conjunto de práticas dos regimes autoritários a que não
corresponde uma categoria autónoma no Direito Penal Internacional (Krain, 2005:
364).
Nos dois crimes, há uma intenção da parte do agressor em destruir o grupo alvo, no
todo ou na parte (Krain, idem). Donde, o que verdadeiramente separa os dois crimes
o é a intenção mas os grupos alvo.
O assassinato em massa é tipicamente um crime de Estados mas também se aplica a
perpetradores não estaduais, no pressuposto de que estes controlam a região onde o
massacre acontece e operam como se fossem o próprio Estado, exercendo funções de
autoridade na região (Krain, idem).
Para o Direito Penal Internacional a perseguição de grupos políticos é um crime contra
a humanidade, no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer
população civil, havendo conhecimento desse ataque
6
Mas, como recorda Cassese, continua a o existir acordo sobre as práticas a incluir
neste tipo de crimes. O Tribunal de Nuremberga foi confrontado com esta dificuldade e
decidiu considerar nesta categoria os “actos desumanos” cometidos pelos alemães.
Apesar das divergências sobre o alcance do conceito, o Tribunal Penal Internacional
para a ex-Jugoslávia, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda e o TPI
concordaram genericamente com esta conceptualização que define o crime em função
da desumanidade dos actos em causa.
, no quadro de conflitos armados
ou fora deles.
Na opinião de Cassese, trata-se de um conjunto de ofensas odiosas que constituem um
ataque sério à dignidade humana ou uma grave humilhação ou degradação da
dignidade (Mackeod, 2010: 283). O Estatuto do TPI considera neste grupo os crimes de
violência sexual e o crime de apartheid, por exemplo.
A inclusão e caracterização dos crimes de vioncia sexual no Estatuto do TPI foi uma
das mais significativas vitórias da diplomacia portuguesa e em particular do empenho
de Paula Escarameia
7
O impacto dos crimes de violência sexual nos conflitos armados não tem parado de
crescer. Forças de segurança dos governos, forças militares, empresas militares ao
serviço de governos ocidentais e grupos armados na oposição, todos recorrem à guerra
psicológica com a intenção de humilhar o inimigo e destruir a sua moral e a da
população, como ficou amplamente provado no Afeganistão e Iraque
(Zawati, 2007).
Isto porque as ofensas sexuais têm sempre resultados devastadores nas comunidades
e os responsáveis por estes actos esperam que o estigma social impeça as vítimas de
falar publicamente reduzindo-se drasticamente a possibilidade dos seus autores serem
punidos.
, que muito contribuiu para o aprofundamento e ampliação destas
temáticas durante as negociações do Estatuto e dos Elementos dos Crimes.
A violência sexual praticada de modo sistemático é, portanto, uma forma de
enfraquecer a sociedade civil, já que as suas consequências vão muito para além de
cada um dos indivíduos envolvidos.
6
Estatuto do TPI, artigo 7.º.
7
Enquanto Conselheira Jurídica da Missão de Portugal junto das Nações Unidas.
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A violência sexual tem atingido homens, mulheres e crianças. A violação de homens em
tempo de guerra é essencialmente uma manifestação de poder e de agressão e não
uma satisfação dos desejos sexuais dos perpetradores. O vencedor faz questão de
violar estes homens como forma de garantir que não poderão voltar a combater ou a
comandar. Homens submetidos a esses abusos são especialmente marginalizados.
Nas sociedades contemponeas, o contrato social não se tem mostrado capaz de
contrariar esta e outras violências contra civis. As respostas práticas que se têm
encontrado para esta dificuldade não têm obtido resultados muito satisfarios.
Uma das soluções mais discutidas é o emprego da força armada num cenário extremo
de emergência humanitária em que por acção humana a integridade física e a
sobrevivência da população civil se encontram em risco. Todavia a consagração de um
modelo mais flexível de soberania não parece ser, pelo menos por agora, viável devido
ao facto de boa parte da comunidade internacional se opor a esta evolução.
Confirma-se, assim, a necessidade de encontrar outras soluções. Mas, como se viu, as
dificuldades técnico-jurídicas e reservas políticas quanto à tipificação de alguns
comportamentos como crimes contra a humanidade tornam mais difícil concretizar uma
justiça penal internacional assente unicamente numa instituição de jurisdição universal
permanente. É, pois, evidente, que é preciso pensar melhor a inter-relação entre o
domínio do Direito e da política internacional.
Os crimes contra a humanidade tratam da criminalização das atrocidades humanas que
colocam em perigo a segurança das comunidades atingidas por tais indignidades e
ultrajes. Deste modo, a responsabilidade internacional não se esgota na capacidade de
julgar estes crimes, é de facto na arena política que a defesa da dignidade humana
encontra a sua última fronteira.
Os crimes de guerra
Os crimes de guerra foram definidos pelo Estatuto do TPI tendo como base as violações
graves do Direito Internacional Humanitário contidas no Direito de Haia e nas
Convenções de Genebra e seus Protocolos adicionais de 1977.
Os elementos dos crimes de guerra são dois: que os crimes sejam cometidos dentro de
um contexto de conflito armado e que o crime tenha relação com esse conflito. O que
diferencia os crimes de guerra dos crimes contra a humanidade é a necessidade de
existência de um conflito armado, internacional ou não internacional
8
Apesar da primazia que o TPI concede ao Estado-nação, permitindo-lhe julgar os seus
cidadãos em caso de violações graves dos direitos humanos e evitando que esses casos
possam chegar ao TPI (princípio da complementaridade) foi a França, um país
ocidental, que exigiu (e conseguiu já em Roma, no artigo 124.º do Estatuto) que um
Estado que se tornou parte do Estatuto possa diferir, por um período de 7 anos após a
entrada em vigor do mesmo, a aceitação da jurisdição do Tribunal em relação a estes
crimes, sempre que praticados por seus nacionais ou no seu território (Escarameia,
2003: 18).
.
8
Estatuto do TPI, artigos 7.º e 8.º.
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Actualmente a França já não se encontra abrangida pelo período transitório mas a
verdade é que esta cláusula pode ser usada por outros Estados partes do Tribunal que
foi concebido para actuar num contexto territorial o mais amplo possível e com uma
jurisdição que deveria ser geral e uniforme.
Por outro lado, a dinâmica desencadeada pela França foi aproveitada pelos Estados
Unidos que tratou de por em marcha uma política, com várias frentes, destinada a
proteger as suas forças militares estacionadas no exterior, em missões de paz ou
intervenções armadas mais musculadas (Escarameia, idem).
Todos estes desenvolvimentos indiciam uma securitização dos direitos humanos e uma
crescente disponibilidade dos grandes poderes para executar intervenções humanitárias
como justificação para as suas acções militares unilaterais.
Voltemos, então, ao exemplo escolhido, o norte-americano. É esta lógica que justifica
que os EUA tivessem procurado limitar a jurisdição do TPI aos crimes que ocorressem
no território de um Estado parte “e” fossem cometidos por um nacional de um Estado
parte. O que aconteceu foi que os delegados chegaram a um consenso radicalmente
diferente, convictos que o “ou” disjuntivo (Lindberg, 2010: 17) fortaleceria a ideia do
indivíduo como foco normativo do Direito Internacional e o paradigma cosmopolita de
uma justiça ao serviço da unidade da comunidade humana.
Perante esta conquista da ordem pública internacional os Estados Unidos redobraram
esforços para encontrar alternativas ao Estatuto pois em tese os militares americanos
envolvidos em operações de paz ou noutras missões militares no exterior podem vir a
estar sujeitos à jurisdição do TPI se cometerem crimes no território de Estados partes e
estes não quiserem ou não puderam julgá-los
9
A defesa da soberania não é incompatível com vínculos internacionais firmados pelos
próprios Estados, numa clara extensão do contrato social, mas já poderá ser posta em
causa quando um cidadão de um Estado que não é Estado parte do Estatuto é entregue
ao TPI para ser julgado. Cientes deste facto, os Estados Unidos têm contornado a
jurisdição do Tribunal por várias vias.
.
No CSNU, Washington tem-se empenhado em garantir imunidade de jurisdição aos
militares a cumprir missões de paz no exterior, apesar da generalidade dos países
considerar estas cláusulas contrárias à letra e ao espírito do Estatuto de Roma. As
tensões atingiram um nível crítico quando os Estados Unidos comunicaram que
pretendiam renovar as garantias de imunidade de todas as suas forças que faziam
parte das missões das NU ou missões autorizadas pelas NU, como a coligação de forças
presente no Iraque após 30 de Julho de 2004 (Birdsall, 2010: 460, Johansen, 2006:
308-310).
O Conselho reagiu mal à proposta da Casa Branca porque se tratava de forçar, uma vez
mais, a aprovação de um estatuto de excepção para os militares americanos num
momento particularmente delicado em que se discutia a legalidade da intervenção no
Iraque. Nessa altura, só os russos, angolanos e filipinos apoiaram a pretensão dos
Estados Unidos, o que os deixou isolados e obrigou à retirada da resolução (Johansen,
idem, 310).
9
Uma vez que o Estatuto do TPI não admite reservas.
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Washington reagiu a este desaire com a retirada de 9 soldados americanos das missões
de peacekeeping da Etiópia e Kosovo, Estados que não tinham firmado tratados
bilaterais com os Estados Unidos (Johansen, idem) e que também não eram Estados
partes do TPI.
A política dos Estados Unidos perante os mecanismos multilaterais não é um factor
novo nas relações internacionais: o que preocupa os Estados Unidos é o TPI ter
capacidade de projecção de normas internacionais ao nível global, condicionando deste
modo o desenho das políticas nacionais das grandes potências, neste caso a sua
própria (May et al, 2006: 354).
Outro exemplo da política seguida é a rede de tratados bilaterais celebrados entre os
Estados Unidos e um conjunto alargado de países que determinam que os países que
são Estados partes do Estatuto não deverão entregar ao TPI os nacionais americanos
ou de outros países que não são partes do Estatuto, incluindo pessoas ligadas ao
departamento de Defesa e CIA, civis incluídos.
Outro aspecto importante deste período é o American Servicemember’s Protection Act
(ASPA), legislação que proíbe a assistência militar a países que ratificaram o Estatuto a
o ser que mantenham acordos bilaterais com os Estados Unidos (Johansen, 2006:
313-314).
Estas políticas já começaram a mostrar-se contraproducentes na América Latina. O que
aconteceu na América Latina foi que os países da região que recusaram assinar acordos
bilaterais com os Estados Unidos resolveram celebrar contratos de assistência militar
com a China. Confrontado com a perda destes contactos privilegiados, o Congresso
aprovou em Setembro de 2006 uma alteração legislativa que contempla a exclusão dos
programas de treino militar da lista de sanções a aplicar aos países que se recusam a
assinar estes acordos (Birdsall, 2010: 462) deixando de existir qualquer impedimento à
celebração deste tipo de acordos de cooperação militar.
Um problema adicional para a agenda crescentemente intervencionista das grandes
poncias é o poder do Procurador do TPI de iniciar um processo por si próprio.
Importa, no entanto, reconhecer que o Procurador se tem mostrado prudente no
exercio das suas funções. No caso da intervenção no Iraque, o Procurador recebeu
várias missivas pedindo-lhe que julgasse Blair, Bush e Rumsfeld (Lindberg, 2010, 24-
25). Numa carta que foi tornado pública, o Procurador reconheceu que os soldados
norte-americanos (pertencentes a um Estado queo é Estado parte, o mesmo
sucedendo com o Iraque) contaram com a cumplicidade dos soldados ingleses (que
pertencem a um Estado parte) na forma como trataram os prisioneiros no Iraque. Não
obstante, o Procurador entendeu que o RU estava a investigar internamente os factos
pelo que, do seu ponto de vista, não fazia qualquer sentido envolver o TPI na
polémica
10
Para além de tudo o que foi dito até aqui, os Estados Unidos abriram um outra frente
de conflito com a justiça internacional a propósito da proibição da tortura, princípio
consolidado no Direito Internacional consuetudinário e nos tratados internacionais como
.
10
OTO, Policy Paper, On the Interests of Justice, September of 2007.
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jus cogens. Trata-se de uma prática banida por todos os povos e criminalizada no
Estatuto do TPI como crime de guerra, crime contra a humanidade e genocídio
11
A Amnistia Internacional, entre outras organizações, acusaram o antigo presidente
norte-americano Bush, o antigo vice-presidente Dick Cheney, o antigo secretário de
estado para a Defesa Donald Rumsfeld, bem como o antigo director da CIA, George
Tenet, de terem ordenado o recurso a práticas legalmente consideradas como tortura
contra presos no contexto da “guerra contra o terrorismo”
.
12
em centros de detenção
secretos geridos pela CIA
13
A tortura pratica-se sempre em nome da segurança nacional. A principal característica
da tortura é a sua especialização como instrumento rotineiro nos interrogatórios sobre
actividades de oposição aos regimes militares e outras formas não democráticas de
governo.
. As declarações feitas na televisão pelo ex-presidente
George W. Bush reconhecendo que autorizou a tortura e documentos oficiais entretanto
relevados confirmam a ocorrência destas práticas (Guantánamo, Abu Grahib) (Ross,
2007).
A tortura em democracia não é assumida como política oficial e resume-se a um
todo de obtenção de informações de modo ilegal. Por esta razão é particularmente
difícil entender porque reconheceu George W. Bush que autorizou a tortura de presos
sob custódia dos Estados Unidos. A administração Bush colocou abertamente em causa
a aplicação universal da proibição de tortura, plasmada no artigo 2.º da Convenção
contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
pondo em cheque os fundamentos do liberalismo político e a ideia de que as pessoas
o um fim em si mesmo. A relativização da imoralidade e da ilegalidade da tortura e a
sua institucionalização no aparelho de estado democrático representa uma falha do
sistema de informações, em particular da HUMINT, que é inaceitável por se tratar de
um país com enormes responsabilidades internacionais e interesses globais.
Obama tentou remediar a situação e aprovou uma nova Estratégia de Segurança
Nacional que condena cabalmente o recurso à tortura como método de combate ao
terrorismo sugerindo que os Estados Unidos estarão dispostos a abolir de uma vez por
todas esta prática nefasta
14
Em síntese, a tentação do unilateralismo e as políticas de excepção agravam as
dificuldades da ordem pública internacional e do Direito Internacional em matéria de
. Mas a verdade é que a discussão doutrinária em torno da
legitimidade da tortura em casos excepcionais não se pode dissociar da doutrina da
guerra preventiva, que a Estratégia de Segurança Nacional de 2010 manteve
integralmente. Esta circunstância tem dificultado objectivamente a consolidação dos
princípios do direito e da justiça internacional.
11
Artigo 8.º, ii), artigo 7.º, f) e artigo 6.º b) do Estatuto do TPI.
12
Amnesty International (2012). USA Human Rights Betrayed, 20 Years After the Ratification of ICCPR,
Human Rights Principles Sideliend by “Global War” Theory. UK, p.3
13
Muitos sectores continuam pouco convencidos de que existia um conflito armado com a Al Qaeda. De
qualquer modo, com já se viu, o Estatuto de Roma permite julgar actos de tortura no quadro de crimes
contra a humanidade.
14
Segundo a Estratégia de Segurança Nacional de 2010, a administração americana“prohibit torture without
exception or equivocation: brutal methods of interrogation are inconsistent with our values, undermine
the rule of law, and are not effective means of obtaining information. They alienate the United States
from the world. They serve as a recruitment and propaganda tool for terrorists. They increase the will of
our enemies to fight against us, and endanger our troops when they are captured. The United States will
not use or support these methods”. In USA (2010). National Security Strategy. Washington: the White
House, p.36.
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protecção e promoção dos direitos humanos potenciando as contradições conceptuais
do texto aprovado em Roma. Com efeito, a heterogeneidade de perspectivas têm
permitido aos países partes (e não partes) do Estatuto explorar as insuficiências
apontadas permitindo-lhes, em última análise, projectar os seus interesses e não os
valores da sociedade global que o Estatuto visa defender.
Crime de agressão
O crime de agressão é um crime contra a principal instituição internacional que
promove a paz e protege os direitos humanos, o Estado soberano.
O crime de agressão é central na construção normativa do TPI, na medida em que cabe
ao Tribunal por cobro aosabusos de poder”, desencorajar a competição violenta e
promover a paz através da prevenção e julgamento dos crimes de agressão no
ordenamento jurídico internacional.
É relativamente consensual que o Pacto de Briand-Kellog (1928) foi o primeiro
documento jurídico a introduzir a ideia, revolucionária à época, de que a guerra já não
é a solução para todos os problemas internacionais. Antes desta data o enfoque era
completamente diferente, o uso da força e a agressão armada eram meros conceitos
políticos que serviam para descrever a conduta dos Estados fortes e poderosos (Meddi,
2008: 658).
As atrocidades cometidas na II Guerra alertaram a comunidade internacional para a
necessidade de julgar a guerra de agressão. O julgamento de Nuremberga é o primeiro
marco na codificação do Direito Penal Internacional e um importante compromisso
político com o novo regime internacional assente na regra geral de proibão do uso da
força nas relações internacionais.
Mas apesar da sua importância, o julgamento de Nuremberga não escapou às
contradões da política internacional do final da II Guerra. Bass (2002: 173-174), por
exemplo, sustenta que as negociações preparatórias do julgamento mostram que os
interesses nacionais de Americanos e Ingleses se sobrepuseram às responsabilidades
da comunidade internacional na punição dos crimes perpetrados pela cúpula política e
militar nazi. Os trabalhos preparatórios do Tribunal de Nuremberga permitem, de facto,
perceber a importância das marcas da guerra na sociedade americana e a necessidade
de reparar o sofrimento infligido ao povo americano. Esta circunstância nacional
acabaria por remeter para segundo plano a memória do nacional-socialismo e o
sofrimento judeu no holocausto (Bass, 2002: 173-174)
15
Este aspecto particular da política interna norte-americana ajuda a perceber a extrema
importância dos “crimes contra a paz” na fase do pós-guerra:
.
“Na Conferência Internacional sobre Tribunais Militares, reunida em
Londres entre 26 de Junho e 8 de Agosto de 1945, o assunto mais
polémico continuava a ser a questão da criminalidade da guerra
agressiva. Os EUA insistiam em patrocinar a ideia da guerra agressiva
15
Talvez esta posição ajude a explicar a necessidade de outros tribunais, em Israel e na Alemanha
Ocidental, julgarem o holocausto.
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como crime internacional que gera responsabilidade penal para os seus
autores. O crime de agressão foi inclusivamente apresentado na
Conferência no mesmo dia em que a Conferência de São Francisco
ilegalizava o uso da força na Carta das Nações Unidas” (Saraiva, 2009:
221).
Cinquenta anos volvidos sobre estes acontecimentos, os Estados Unidos mudaram
radicalmente de posição no que diz respeito à criminalização da agressão no quadro
das negociações do Estatuto do TPI, tendo exercido considerável influência no sentido
de se excluir o crime da jurisdição do Tribunal.
Mas apesar das pressões americanas e dos outros membros permanentes do CSNU, o
crime de agressão foi incluído no texto do Estatuto, graças ao sentimento partilhado
pelos delegados à Conferência de Roma de que a agressão constitui a maior ameaça à
paz e à segurança colectiva. Ainda assim, por falta de tempo e consenso político -
recorde-se que os grandes poderes viabilizaram a referência ao crime já na recta final
da conferência-, a sua definição ficou adiada para futuras conferências de revisão.
A primeira conferência de revisão ocorreu em Kampala, em 2010. Conforme se
esperava, a discussão da definição do crime de agressão encontrou inúmeros
obstáculos políticos, o que não permitiu afinar vários aspectos da solução final
adoptada, que acabou por reflectir o essencial das prioridades estratégicas dos grandes
poderes.
O crime de agressão é, de facto, o crime sob jurisdição do TPI que melhor reflecte a
actual distribuição de poder do sistema internacional que é uma distribuição assimétrica
entre os Estados.
Os sucessivos entraves colocados pela potência dominante a todo este processo
evidenciam a sua profunda desconfiança em relação às normas internacionais vigentes
que regem o emprego da força armada, na medida em que estas funcionam como uma
barreira defensiva da integridade territorial das unidades políticas mais frágeis do
sistema internacional (Saraiva, idem). O movimento dos o-alinhados (NAM) tem
questionado a posão dos P5 e já fez notar que não está disposto a viabilizar a agenda
intervencionista das potências ocidentais como solução concreta para as emergências
humanitárias que deflagram nos seus territórios, que as autoridades locais não
conseguem debelar ou de que são as primeiras responsáveis. Neste sentido, os NAM
sempre favoreceram as propostas da UE no seio do grupo dos like-minded, batendo-se
pela inclusão do crime de agressão e a ampliação das prerrogativas do Tribunal, contra
a opinião declarada dos grandes poderes.
Apesar da rigidez inicial das posições, à medida que a negociação avançava ia-se
tornando claro que os pequenos e médios poderes teriam de ceder e admitir o papel do
CSNU nesta matéria, o que faz deste crime o único crime no Estatuto que estabelece
como pré-condição para que um indivíduo seja responsável por um crime de agressão
que essa pessoa tenha planeado, preparado, iniciado ou executado um acto de
agressão que cria responsabilidade ao Estado (área de actuação do CSNU).
Seja como for, no final, a resolução adoptada em Kampala sobre o crime de agressão é
uma emenda ao Estatuto do TPI que define finalmente o crime e as condições de
exercício de jurisdição.
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Mas como se disse, o texto final evidencia um consenso muito frágil e a ambivalência
dos grandes poderes em relação ao multilateralismo. A arquitectura final do crime de
agressão tomou em linha de conta as doutrinas estratégicas em vigor nos Estados
Unidos, NATO e outros países ocidentais fortemente sustentadas na Revolução dos
Assuntos Militares, na Transformação e em conceitos conexos que procuram
compatibilizar as forças militares com a era da informação em que vivemos.
As tecnologias de informação e comunicação (TIC) têm um efeito multiplicador de força
que ‘permite às Forças Armadas que já incorporaram os requisitos tecnológicos da RMA
começarem a pensar adoptar uma postura estrategicamente mais pró-activa, de
prevenção militar das “novas ameaças” '(Saraiva, 2009: 338).
Esta opção estratégica dos Estados Unidos, que foi materializada pela administração
Bush e não foi interrompida por Obama, apoia-se na doutrina da guerra preventiva por
se tratar de uma estratégia de longo prazo que “é, por definição, uma estratégia que se
desenvolve num quadro de superioridade estratégica, pois só em condições de grande
vantagem militar é possível inviabilizar a ascensão de potenciais rivais (Saraiva, idem:
2029). Neste sentido, a ideia de que uma superioridade tecnológica seria decisiva em
futuros conflitos, que os tornaria mais curtos no tempo, menos intensos e com menores
baixas (Espírito Santo, 2007) conquistou os outros membros permanentes do CSNU, o
que permitiu a adopção de uma posição comum dos P5 em relação ao crime de
agressão.
A história da negociação do crime de agressão mostra, assim, que o que está em
disputa no TPI é o direito das grandes potências conservarem a sua liberdade de acção
estratégica e de prosseguirem a sua agenda humanitária.
Durante a negociação do crime foram muitas as estratégias seguidas para atingir o
objectivo traçado. Por exemplo, em 1999, no rescaldo da intervenção da NATO no
Kosovo, a delegação alemã defendeu que o sentido restrito do crime afasta as
categorias de crime exteriores à noção de “ataque armado que tem como objectivo ou
efeito a ocupação militar ou a anexação do território do outro Estado”
16
Isto é, os
bombardeamentos aéreos e os bloqueios navais não constituiriam actos de agressão
(Saraiva, 2009: 295). Como se sabe, o argumento não foi aceite pela Comissão
Preparatória (PrepCom), pois não parecia razoável ilibar, por esta via, eventuais
responsabilidades da NATO na campanha aérea em território kosovar
ii
A questão, muito controvertida, da legalidade/legitimidade das “interveões
humanitárias” no Kosovo, Afeganistão, Iraque e Geórgia voltou a estar em cima da
mesa na reunião de Kampala. Mas uma posição definitiva relacionada com a
licitude/ilicitude da intervenção humanitária armada unilateral bona fide (Trahan, 2011:
75-76) acabou por ser afastada do texto final, por ser uma matéria não estabilizada e
que permanece em discussão na comunidade jurídica (e entre os estudiosos das
relações internacionais), essencialmente ao abrigo da R2P. Não obstante ter sido este o
sentido da decisão, o articulado final não deixa de abrir a porta a abordagens indirectas
a este assunto.
.
No que reporta à noção de ilegalidade excepcional das intervenções humanitárias
armadas, tal como foi proposta por Franck, Chesterman e Byers (2003), há uma sólida
percepção, sobretudo entre os NAM, da sua natureza ilegal o que motivou mais de 130
16
Proposta alemã (PCNICC72000/DPPP-139 (1999), Discussion Paper PCNICC/2000/WGCA/DP.4 (2000)
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declarações unilaterais ou conjuntas de países opondo-se formalmente à sua
consagração (Leckerc-Gag e Byers, 2009: 380).
Todavia, em Kampala as iniciativas diplomáticas dos Estados Unidos conseguiram
vencer a resistência dos países afro-asiáticos. De acordo com a redacção do texto final
aprovado, os crimes cometidos no território de Estados não partes e por nacionais de
Estados que o são partes ficam excluídos da competência do Tribunal. Esta
formulação implica que os crimes de agressão cometidos por nacionais americanos no
território de um Estado parte já não poderão ser julgados pelo Tribunal, facilitando
ainda a intervenção de coligações militares em que participam os Estados Unidos
(Estado não parte) e um Estado parte do Estatuto (RU ou França, por exemplo) no
território de um Estado não parte, pois neste caso o TPI não poderá julgar o crime de
agressão (Trahan, 2011: 91-93).
Recorde-se que um dos propósitos da criação do TPI foi evitar julgamentos de situações
particulares e de áreas geográficas específicas. A questão que se coloca em relação aos
Estados partes é que o artigo 15 bis (4) prevê uma declaração de exclusão que permite
a estes Estados declarar que não aceitam a competência do Tribunal em relação ao
crime de agressão mediante o depósito de uma simples declaração junto do
Secretariado (Arribas, 2011)
A situação é agravada pelo facto de a solução encontrada não permitir a possibilidade
de se começar a julgar este crime antes de 2017, isto na melhor das hipóteses
17
Conclui-se que o Tribunal e os países que o apoiam não foram capazes de superar a
posição soberanista dos Estados na questão do crime de agressão, o que reforça a ideia
de que o Tribunal só terá capacidade para julgar indivíduos suspeitos de crimes de
agressão em casos relativamente limite.
.
Em relação à definição do crime, consideramos que o resultado obtido é bastante mais
satisfatório embora não particularmente inovador.
O crime de agressão foi definido como o planeamento, a preparação, iniciação ou a
execução, por pessoa em posição efetiva para exercer controlo ou dirigir a acção
potica ou militar de um Estado, de um acto de agreso o qual, pelo seu carácter,
gravidade e escala, constitui violação manifesta da Carta das Nações Unidas (Arribas,
idem).
Do ponto de vista dos grandes poderes, o texto alcançado ficou aquém das
expectativas em relação ao papel do CSNU nesta matéria, pois a certa altura os P5
acreditaram que seria possível inserir no texto a necessidade de uma autorização do
Conselho para iniciar um procedimento por iniciativa de um Estado parte ou pelo
Procurador motu proprio. Os delegados à conferência de Kampala optaram por
defender a integridade e independência do Tribunal mas mantiveram a prerrogativa do
CSNU poder suspender, por um ano, prorrogável, o inquérito ou procedimento criminal
(artigo 16.º do Estatuto).
A fórmula de compromisso a que se chegou inverte em larga escala a estratégia inicial
dos grandes poderes, muito empenhada numa definição restritiva do crime de
agressão. Tal estratégia acabaria por ser abandonada em favor de uma outra, centrada
17
Ver emenda ao Estatuto de Roma, Kampala, 11 de Junho de 2010, disponível em
http://www.iccnow.org/?mod=aggression.
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não na definição mas nas condições de exercício da jurisdição do Tribunal. Em termos
práticos, o Tribunal será muito selectivo e terá a maior dificuldade em julgar crimes de
agressão envolvendo as grandes potências, o que acentua os aspectos de
multilateralismo à la carte presentes no seu Estatuto. Em contrapartida, a consagração
de uma definição abrangente do crime de agressão permite um julgamento adequado
dos casos que chegam ao seu conhecimento, na medida em que o crime, tal como foi
tipificado, permite colocar sob jurisdição do Tribunal a maioria dos fenómenos
agressivos que caracterizam os conflitos da actualidade contribuindo, deste modo, para
o reforço da ordem jurídica internacional.
Conclusão
A criação do TPI é um marco na história do Direito Penal Internacional porque apesar
da sua jurisdição não ser, como muitos desejavam, universal o Estatuto permite que
um cidadão de um Estado que não é Estado parte possa ser entregue ao Tribunal para
ser julgado.
Esta limitação da soberania por uma cultura de responsabilidade constitui uma
revolução jurídica mas sobretudo é uma ameaça ao direito das grandes potências
conservarem a sua liberdade de acção estratégica e ao prosseguimento da sua
ambiciosa agenda humanitária.
Neste sentido, há algum desfasamento entre este aspecto estrutural do Estatuto de
Roma e a geopolítica pós-bipolar, que se caracteriza por um significativo aumento da
conflitualidade armada e um envolvimento permanente dos Estados Unidos nestes
conflitos armados.
Todavia, como de resto tentámos demostrar ao longo do texto, a estratégia de
fragilização institucional do TPI, que envolve diversas grandes poncias, mas que, aqui
se argumenta, ocorre sob clara liderança americana, não só não altera o carácter
profundamente inovador do Tribunal como oferece uma explicação sobre a natureza do
sistema internacional e o papel dos Estados Unidos no mesmo.
Como conclusão, podemos dizer que o sistema internacional se encontra em acelerada
mutação sem que os grandes poderes consigam (ou sequer desejem, na maior parte
dos casos) controlar satisfatoriamente o processo.
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O CARÁCTER MULTIDIMENSIONAL DOS NACIONALISMOS
CENTRÍPETOS E CENTRÍFUGOS
Filipe Vasconcelos Romão
vasconcelosromao@gmail.com
Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa
(Portugal). Doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Diploma de
Estudos Avançados em Política Internacional e Resolução de Conflitos (2007) e licenciado em
Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(2005). Investigador Integrado no OBSERVARE. Professor assistente na Faculdade de Ecomomia
da Universidade de Coimbra (2010/2011). Investigador na Universidade de Deusto (2008/2009),
ao abrigo do European Doctorate Enhancement in Peace and Conflict Studies (EDEN).
Bolseiro de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2008-2011).
Resumo
Tradicionalmente, os autores centram-se no discurso dos actores políticos e na forma como
os mesmos se definem para identificar a presença de correntes políticas nacionalistas. Este
artigo pretende apresentar uma grelha de análise mais ampla, visando abranger também a
acção como forma de manifestação do nacionalismo. Em linha com esta proposta
multidimensional, procura ainda identificar diferenças na forma com os nacionalismo se
manifestam em função da sua posição em relação ao poder.
Palavras chave:
Nacionalismo centrípeto; Nacionalismo centrífugo; Estado autonómico; Identidade nacional
Como citar este artigo
Romão, Filipe Vasconcelos (2013). "O carácter multidimensional dos nacionalismos
centrípetos e centrífugos". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N2,
Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art3
Artigo recebido em 3 de Setembro de 2013 e aceite para publicação em 17 de Outubro
de 2013
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ISSN: 1647-7251
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O carácter multidimensional dos nacionalismos centrípetos e centrífugos
Filipe Vasconcelos Romão
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O CARÁCTER MULTIDIMENSIONAL DOS NACIONALISMOS
CENTRÍPETOS E CENTRÍFUGOS
Filipe Vasconcelos Romão
Introdução
O termo nacionalismo tem uma dupla conotação empírica na vida política actual: a
violenta, cuja imagem mais forte e mais presente é a dos conflitos jugoslavos da
década de 90 do século XX e, em menor medida, a dos grupos violentos
independentistas, como a Frente Popular de Libertação da Palestina ou o Irish
Republican Army (cuja expressão tem vindo a reduzir-se gradualmente); e a aberta e
democrática, uma espécie de nacionalismo light, cujas reivindicações estão
perfeitamente acomodadas e são amortecidas no contexto do sistema político concreto
em que se inserem. No segundo caso, a face mais visível são os regimes autonómicos
como o catalão, no caso espanhol, ou o escocês, no contexto britânico. Esta
classificação, bastante ligeira e mais baseada no senso comum do que numa análise
rigorosa dos factos, acaba por ser acolhida em certas abordagens científicas (Kaldor,
2004). Em paralelo, a nível mediático, o nacionalismo parece ser notícia apenas quando
se faz sentir como fenómeno ruidoso, através dos mais diversos tipos de manifestação,
que podem ir de uma simples cerimónia solene de comemoração de um feriado ou de
um evento desportivo que desperte os mais exaltados orgulhos nacionais até grandes
mobilizações sociais de defesa ou de contestação do direito à autodeterminação.
Porém, existem acções de cunho nacionalista que, embora mais discretas, podem
assumir uma natureza transcendente. As políticas activas de defesa e manutenção da
integridade e soberania de um Estado, levadas a cabo a partir do governo central,
democraticamente instituído, por um determinado grupo de representantes directa ou
indirectamente eleitos, podem ser um destes exemplos, não obstante o seu carácter
mais discreto do que o dos nacionalismos reivindicativos ou dos violentos.
Em linha com a problemática identificada, apresentamos, neste artigo, uma proposta
de leitura do fenómeno do nacionalismo, a partir de três dimensões distintas, que
correspondem às formas como o mesmo se pode manifestar: acção, discurso e
autodefinição. No âmbito desta análise, e em função da influência que a materialização
política (Estado independente ou não) tem na forma como o nacionalismo se manifesta,
recorreremos e explicitaremos outros dois conceitos explicativos, o nacionalismo
centrífugo e o nacionalismo centrípeto, para procurar fundamentar este carácter
multidimensional.
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Finalmente, em termos teóricos, assumimos a influência dos princípios estruturais a
partir dos quais se desenvolvem as ideias de “nacionalismo banal e de everyday
nationhood”. Estas são, assim, um ponto de partida para a nossa reflexão e constituem
uma base conceptual que assumimos pretender alargar.
1. Elementos teórico-conceptuais
Ao propor uma abordagem ao conceito de nacionalismo a partir das formas como este
se manifesta, pretendemos, sobretudo, demonstrar a importância da acção como
elemento tão válido quanto o discurso ou a forma como um actor político se define a si
próprio. Neste contexto, é importante destacar o desenvolvimento dos conceitos de
“nacionalismo banal” (Billig, 1995) e de “everyday nationhood” (Fox e Cynthia, 2008).
No centro destas propostas está a reprodução diária e discreta das nações
protagonistas de Estados-nação consolidados, o que remete para uma dimensão quase
subconsciente que se faz sentir em acções quotidianas dos cidadãos comuns.
Parece-nos possível ir mais longe do que o denominado nacionalismo banal ou
nacionalismo do dia a dia. Como veremos abaixo, julgamos que há acções, por parte do
poder político de um Estado, que são conscientes e premeditadas, no sentido de
preservar e consolidar uma determinada nação e que vão além do seu carácter
discreto, chegando mesmo, em alguns casos, numa atitude aparentemente paradoxal,
a negar e a repudiar o pprio nacionalismo. Os laços nacionais ver-se-ão reforçados
por outros factores que não os explicitamente nacionalistas, muitas vezes rejeitados
pelas opiniões públicas, dada a sua conotação negativa.
Jon E. Fox e Cynthia Miller-Idriss afirmam a importância que têm determinados gestos
e acções do dia a dia dos cidadãos comuns na produção e reprodão da nação. Esta
não será um mero produto de directrizes estruturais provenientes de elites estatais,
incluindo também certas realizações diárias de pessoas comuns (2008: 537). O cerne
desta abordagem centra-se no carácter performativo que cada acção assume: não se
limita a reflectir a pertença de uma pessoa a uma determinada nação, é ela própria
criadora da nação.
Também sublinhando a importância das acções dos cidadãos comuns, Michael Billig
introduz no debate a expressão “nacionalismo banal”, com o objectivo de desmistificar
o nacionalismo e contrariar a ideia de que este está presente no comportamento de
políticos e grupos de extrema-direita ou nas lutas pela independência nacional levadas
a cabo por quem pretenda a secessão de um determinado Estado (1995: 5). Partindo
do pressuposto comummente aceite segundo o qual o Estado-nação é, desde finais do
século XIX, a principal unidade política dos sistemas doméstico e internacional, Billig
manifesta estranheza pelo facto de o nacionalismo ser, regra geral, visto como um
fenómeno que não diz respeito às nações ou Estados consolidados (1995: 5). Com
efeito, as nações que têm as suas aspirações políticas plenamente enquadradas em
Estados independentes continuam a existir e a manifestar-se todos os dias, apesar de o
fazerem de forma banal e sem suscitar grandes atenções mediáticas.
Haverá, desta forma, todo um conjunto de comportamentos e de interacções que não
são, regra geral, vistos como dizendo respeito ao nacionalismo, comummente mais
associado a práticas extraordinárias ou com uma conotação negativa. O autor de
Banal Nationalism” considera que o grau de enraizamento do nacionalismo dominante
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nos Estados-nação consolidados é tal que os cidadãos repetem determinados gestos
sem os associar a manifestações de identidade nacional, citando como exemplo a
simples exibição da bandeira dos Estados Unidos da América em locais públicos (1995:
39). Esta realidade presente no dia a dia de milhões de cidaos é tão natural que nem
merece qualquer qualificativo, o que já não acontece com fenómenos radicais violentos.
Segundo Billig, além de ignorado pelos cidadãos e pelos políticos, o estudo desta
componente do nacionalismo também tem sido negligenciado pelos académicos que se
dedicam ao tema (1995: 43). No entanto, é o próprio que assume a sua adesão às
teses modernistas, quando sublinha o papel de guia que o nacionalismo tem no
desenvolvimento do actual Estado (1995: 19). O Estado-nação estabeleceu padrões
que são, hoje em dia, dados como adquiridos desde sempre pela cidadania, que acaba
por não ter bem a noção de que o vínculo a uma identidade nacional é algo
relativamente novo.
2. Nacionalismos centrípetos e centrífugos
No contexto das democracias ocidentais, o nacionalismo democrático assumido acaba
por ser quase um monopólio daqueles que Anwen Elias (2009) qualifica como partidos
nacionalistas minoritários (por exemplo, a Convergència Democràtica de Catalunya),
ideia que vai no mesmo sentido do conceito de “pequeno nacionalismo”, empregue por
Mary Kaldor (2004). Definitivamente, os grandes partidos e os governos dos Estados
afastaram-se deste tipo de linguagem, o que acaba por também ir ao encontro dos
conceitos de “nacionalismo banal” de Michael Billig (1995) e de “everyday nationhood
de Jon E. Fox e Cynthia Miller-Idriss (2008), quando defendem a valorização de outras
manifestações para lá da retórica. O próprio Billig sublinha que, no essencial, os
nacionalismos estão associados a ideologias fascistas ou a movimentos separatistas.
Convirá, neste momento, aclarar, diferenciar e justificar a nossa interpretação de dois
conceitos estruturais desta abordagem: nacionalismo centrípeto e nacionalismo
centrífugo. Por nacionalismo centrípeto entendemos o nacionalismo que procura manter
agregada, ou vir a agregar, na mesma entidade potica (tipicamente, o Estado), uma
ou várias identidades nacionais, no quadro da maior integração possível. Dizemos
integração e não homogeneidade (termo empregue com mais frequência nas
abordagens tradicionais), porque a dinâmica política das últimas décadas tem
demonstrado que existem múltiplas formas concretas de nação, algumas mais
abrangentes e tolerantes com a diversidade interna. A integração parece estar a ganhar
algum terreno à homogeneidade.
A opção pelo termo ‘centrípeto’ prende-se com a evolução dos sistemas políticos
democráticos. No contexto dos Estados autonómicos, o termo ‘centralizador’ tende a
perder força. Nestes casos, a descentralização política é perfeitamente compatível com
a existência de uma identidade nacional, que, a partir do governo central, procure
manter a supremacia sobre outras identidades presentes no mesmo território. Por
outro lado, o nacionalismo centrífugo faz o percurso inverso, procurando afastar-se do
pólo agregador mais vasto em que está integrado. O seu objectivo final pode ser a
independência de uma entidade política ou a obtenção de maior autonomia, no quadro
de um Estado autonómico ou federal.
Como em qualquer regime político de um Estado plurinacional, no âmbito de uma
democracia, o choque entre nacionalismos centrífugos e centrípetos gera,
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necessariamente, uma relação conflitual assimétrica. Para esta assimetria contribui, do
lado do nacionalismo centrípeto, toda a estrutura de um Estado central organizado que
concede ao actor político mediato que ocupa o poder uma enorme margem de manobra
para levar a cabo o seu projecto. Quando os nacionalismos centrífugos optam por
respeitar a ordem constitucional estabelecida no Estado em que se encontram
inseridos, como, até há pouco, acontecia no caso escocês, o maior nível institucional a
que podem aspirar, num primeiro momento, é o das estruturas governamentais
regionais ou locais. Obviamente, não pode ser excluída a hipótese de uma revisão da
ordem constitucional. Este é, muitas vezes, o objectivo dos nacionalismos centrífugos
democráticos, em virtude da protecção constitucional à soberania dos Estados. Sendo,
tradicionalmente, o objectivo último do nacionalismo a instituição de um Estado-nação
próprio independente, é natural que pretenda subverter a ordem que o impede de
atingir este patamar. No entanto, há formas de Estado que induzem a um
comportamento mais pragmático e favorecem o estabelecimento de objectivos prévios
a uma hipotética independência.
Entre as formas de Estado dotadas de uma organização territorial mais adequada à
conjugação de diferentes identidades nacionais dentro de uma mesma unidade política
soberana, encontramos o Estado federal e o que Jorge Miranda classifica como “Estado
unitário regional” (1994: 259). Este, também conhecido como Estado autonómico ou
Estado das autonomias, teve um contributo importante para pôr fim à exclusividade da
imagem da nação centralizadora como uma identidade que procura subjugar, através
do Estado, as suas congéneres periféricas, sem lhes reconhecer quaisquer direitos
específicos. O quadro dicotómico que temos vindo a apresentar pode perfeitamente
encaixar neste modelo político: as instituições do Estado central vêem-se
maioritariamente preenchidas por provenientes ou partidários da nação centrípeta e as
autonomias regionais pelos correspondentes das nações centrífugas. Parece-nos óbvio
que poderão coexistir, dentro do mesmo Estado regional, regiões autónomas em que
predomine uma identidade nacional centrífuga e regiões sem outra identidade nacional
que não a centrípeta, salvaguardadas as respectivas especificidades regionais. Esta
adequação entre um determinado sistema político e uma realidade nacional plural não
prejudica outros contextos em que o Estado regional esteja instituído em países
etnicamente homoneos ou sem uma identidade nacional predominante.
O Estado contemporâneo já não corresponde à imagem padronizada do modelo
jacobino e centralizador que tem nos órgãos de soberania nacionais o único ponto a
partir do qual é exercido o poder político. Actualmente, coexistem diversos modelos
estatais de organização territorial, podendo o Estado unitário regional ter como grande
objectivo a acomodação de aspirações políticas periféricas, através do recurso à criação
de novos pólos de poder, geograficamente não coincidentes com a capital, para os
quais são transferidas competências tradicionalmente exercidas pelo governo central.
Através da aplicação destas formas jurídico-constitucionais, são criados mecanismos de
escape que procuram aliviar, pelo menos parcialmente, tenes identitárias através de
vias institucionais, o que vai em linha com os teóricos do nacionalismo liberal, quando
relativizam o objectivo de independência nacional em favor de processos de
autodeterminação cultural e de aprofundamento autonómico ou federal (Tamir, 1995:
69; Miller, 2000: 124).
O Estado federal que, pelas suas características, numa abordagem superficial, poderia
ser encarado como a opção mais lógica para os países democráticos com tensões
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nacionais internas, acaba por não se revelar muito cativante. É provável que haja
algum receio em ir muito longe na descentralização formal, o que não prejudica que
um Estado unitário regional, na prática, seja tão ou mais descentralizador do que uma
federação, em relação às competências que atribui aos níveis infraestatais. Nas
questões relativas à soberania, o simbólico ainda tem muito peso. A título de exemplo,
podemos observar que três dos sistemas federais mais relevantes, o norte-americano, o
brasileiro e o alemão, não contam com nacionalismos centrífugos com relevância política no
seu seio. O sistema federal canadiano, que abarca a província do Quebeque (que conta com
um forte movimento nacionalista centrífugo), entre as democracias ocidentais, parece
constituir uma rara excepção. Por outro lado, há vários Estados com realidades deste
género que optam por modelos formalmente unitários, embora descentralizados, como o
Reino Unido, Espanha ou Itália.
Sendo o nacionalismo e o poder dois conceitos com uma relação directa, os nacionalismos
centrífugos são os óbvios beneficiários da criação de centros de poder periféricos
institucionalizados. Este quadro contribui para desmistificar a ideia de proximidade entre
nacionalismo e violência, através da normalização e democratizão política de conflitos
nacionais não violentos ou que, gradualmente, tendam a não violentos. Frente a frente,
recorrendo unicamente aos canais democráticos, passam a estar um nacionalismo
centrípeto, que se pode definir pela subtileza do discurso, e um, ou vários, nacionalismos
centrífugos, bem definidos e afirmativos.
Neste contexto, a famosa expressão disjuntiva “Independência ou morte”, pronunciada pelo
imperador Pedro I aquando da independência do Brasil, que parecia perfeitamente
adaptável a décadas de conflitos secessionistas ou expansionistas, deixa de fazer sentido. O
objectivo final de independência pode agora ser protelado, pelo nacionalismo centrífugo,
para um momento mais oportuno, dando lugar a uma grelha muito mais indefinida e
complexa de objectivos intermédios que, uma vez cumpridos, poderão, ou não, dar lugar à
secessão. Isto leva a uma alteração de estratégia pelo nacionalismo centrípeto, que pode
prescindir do discurso musculado e concentrar-se no menos visível conflito pelos objectivos
intermédios. No fundo, este é o debate principal, uma vez que, consoante o que aqui se
passe, haverá, ou não, margem para evoluir para o debate final: o da independência
nacional.
3. Dimensões do nacionalismo: acção, discurso e autodefinição
Os cidadãos têm um peso fundamental no escrutínio dos agentes poticos. É inevitável
que, no contexto dos actuais sistemas democráticos fortemente mediatizados, haja
uma aferição permanente da convergência ou divergência entre o discurso e a acção,
bem como da conformidade entre estas manifestações e auto-definição dos próprios
agentes. No caso da identidade, a questão ganha maior relevância, visto estar em
causa a essência de um elemento estrutural da principal unidade política do sistema
internacional, o Estado-não. Assim, por exemplo, a propósito da acção dos governos,
podemos assumir que entendemos o nacionalismo como um fenómeno que se
manifesta de forma multidimensional, sendo possível isolar e analisar três expressões
concretas do mesmo: acção, discurso e autodefinição.
Ao valorizar a acção e ao não considerarmos o discurso como única manifestação
indiciadora da presença do nacionalismo, este conceito, em si mesmo, torna-se mais
abrangente, passando a tónica a incidir sobre a sua intensidade. A defesa de uma
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identidade com objectivos políticos, no contexto da actividade interna e externa do
Estado, é mais frequente do que muitas vezes se julga, variando, isso sim, no grau ou
intensidade. Um nacionalismo que se limite a-lo na dimensão dos seus actos se
menos intenso do que outro que, além de actuar, faça uso de um discurso de defesa e
de apologia da respectiva identidade o que, por sua vez, será superado pelo
nacionalismo que age, discursa e assume a sua opção.
O facto de entendermos o nacionalismo como um fenómeno multidimensional e de
considerarmos que a acção deve ser alvo de uma maior atenção em termos analíticos
não acarreta uma desvalorização do papel do discurso, provavelmente a componente
mais visível e indispensável ao que classificamos como nacionalismo afirmativo. Muitas
vezes, é através do discurso que o nacionalismo mobiliza e mantém a coesão das suas
bases, em contextos pacíficos e democráticos e em contextos conflituais violentos.
uma gama muito diversificada de possibilidades discursivas nacionalistas, como o
comprovam diversos casos. Por exemplo, nos períodos de ascensão e apogeu das
ditaduras fascistas (entre as décadas de vinte e de quarenta do século XX), regimes
nacionalistas por excelência, o tipo de discurso destes governos era claramente
afirmativo, violento, de exaltação dos respectivos valores identitários e de exclusão do
diferente. Paralelamente, o discurso dos regimes democráticos liberais proclamava
outro tipo de valores, sem deixar de assumir e exaltar a ppria identidade
(provavelmente, por considerar que os valores democráticos e liberais lhe eram
inerentes). Com base neste quadro terminológico, poderíamos mesmo afirmar que os
regimes fascistas foram o exemplo perfeito de um nacionalismo de Estado afirmativo e
assumido e que se contraem à mencionada ptica inexistência deste tipo de
nacionalismo nos governos de Estados independentes democráticos contemporâneos.
Um discurso com características semelhantes ao dos fascismos acaba por ser
recuperado, mais tarde, pelas diferentes partes em confronto nas guerras dos Balcãs,
em plenos anos 90 do século XX. Neste caso, depois de quase cinquenta anos de
Guerra Fria (em que a tónica estava colocada no discurso ideológico) e da subsequente
descompressão discursiva e prática da democracia liberal, assistiu-se a um regresso a
uma dialéctica de agressividade e enaltecimento nacionalista a que o mundo parecia já
o estar habituado. Nos últimos anos, com a expansão do sistema democrático liberal
e com a estabilização do mapa político, a componente nacionalista do discurso político,
na Europa, tendeu a um menor grau de enaltecimento dialéctico e a um mais baixo
perfil. Não obstante, menos visibilidade não é necessariamente sinónimo de ausência,
podendo uma atitude discreta conduzir a resultados mais efectivos do que uma via
afirmativa mais ruidosa.
Regressando ao exemplo do governo que actua com o objectivo de manter o Estado-
nação do qual é órgão de soberania, observamos que, frequentemente, as políticas
desenvolvidas nesse sentido podem ser acompanhadas por um discurso de
enaltecimento identitário que sublinhe a sua importância e a sua função. Nesse caso,
poderemos dizer que há uma correspondência entre a acção e o discurso, o que
consubstancia uma actuação que qualificaríamos como nacionalismo afirmativo. Por
outro lado, também é possível conceber e encontrar exemplos concretos de governos
que desenvolvem e aplicam políticas semelhantes, mas que não as fazem acompanhar
pelo mesmo tipo de discurso. Na prática, cumprem a sua função de garante dos direitos
políticos de uma determinada identidade, mas não são explícitos em relação à
materialização destes objectivos. Aqui, poderíamos falar de um nacionalismo subtil.
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Convencionalmente, considera-se que há um maior alinhamento entre partidos e
ideologias de direita e posicionamentos nacionalistas (McCrone, 1998: 3). Julgamos
que para esta ideia também terá contribuído o facto de os partidos de esquerda
utilizarem um discurso mais cosmopolita, com menos referências identitárias. Porém,
em termos práticos, um quadro de análise que concebe o nacionalismo como um
fenómeno pluridimensional exige reajustamentos neste alinhamento, o que nos conduz
a identificar uma maior propensão dos partidos, governos e ideologias de direita a
enquadrar-se num modelo de nacionalismo afirmativo e dos seus conneres de
esquerda num modelo de nacionalismo subtil. Ambos actuarão em favor de uma
identidade e dos seus objectivos e materializações políticas, residindo as diferenças que
os separam no discurso e não na acção.
Em relação à terceira dimensão que propomos, a autoafirmação, esta materializa-se na
assunção explícita de alguém, ou de alguma estrutura, como nacionalista ou como
partirio de políticas nacionalistas ou de defesa declarada de determinada identidade
ou nação. Este fenómeno é pouco frequente nos dias que correm, principalmente
quando observamos a actuação de governos ou de grandes partidos dos denominados
países desenvolvidos. Como tivemos oportunidade de referir, a associação entre
nacionalismo e lógicas violentas e excludentes tem uma projecção mediática
considerável, o que acaba por gerar receios de conotação negativa entre os agentes
poticos.
Não obstante, existem vários partidos, das mais diversas proveniências ideológicas e
em vários contextos políticos, a assumir-se explicitamente nacionalistas ou a fazer da
defesa dos direitos políticos de uma identidade o ponto central do seu programa. Desde
partidos de extrema-direita, que assumem a defesa da nação na acepção étnica mais
excludente e totalitária do termo, como o Nationaldemokratische Partei Deutschlands
(NPD), a partidos plenamente democráticos que defendem o alargamento dos níveis de
autogoverno da sua região, no quadro do Estado de direito autonómico em que eso
inseridos, como a Convergència Democràtica de Catalunya (CDC). Obviamente, não
pode ser inferido qualquer género de afinidade entre estes dois exemplos, que servem
apenas para ilustrar a abranncia do nacionalismo assumido.
4. A dimensão discursiva e a natureza centrípeta e centrífuga do
nacionalismo
No caso da relação entre o discurso e a natureza centrípeta ou centrífuga do
nacionalismo, no âmbito dos actuais quadros políticos, o segundo tende a ser mais
afirmativo do que o primeiro, como pudemos verificar quando mencionámos o exemplo
dos catalães da CDC. Parece haver alguma correlação entre o grau de afirmação
discursiva do nacionalismo e a sua posição em relação ao poder (entendendo-se poder
na sua materialização máxima de conquista de soberania, ou seja, de um Estado-
nação).
Neste sentido, Xosé M. Núñez Seixas afirma que
a componente nacionalista (...) desempenha um papel de protagonista
na agenda dos partidos ou movimentos sociopolíticos cuja nação de
referência não goza de um reconhecimento institucional considerado
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suficiente e, acima de tudo, de soberania (2010: 13-14).
Tomemos como exemplo o caso da Escócia, região com históricas aspirações
independentistas, integrada no Reino Unido: o nacionalismo escocês é claramente
afirmativo e assumido, o que se materializa na própria denominação do principal
partido nacionalista local, o Scottish National Party (SNP), e na sua organizão
estudantil, a Federation of Student Nationalists (FSN). O governo britânico, principal
órgão executivo do Reino Unido, provavelmente fruto da comodidade que confere uma
posição de poder até há pouco tida como um dado adquirido e pouco contestado, não
recorre à mesma terminologia e mantém uma posição formalmente aberta em relação
a uma potencial evolução política do estatuto da região, recorrendo a um modelo que
esta entre o afirmativo e o subtil.
Outro aspecto digno de nota é a ausência de um movimento nacionalista regional inglês
efectivo (English, 2011: 5). Ao contrário da Escócia, do País de Gales e da Irlanda do
Norte, Inglaterra é a única região do Reino Unido que não conta com um parlamento
regional. O ascendente político de Inglaterra sobre o Estado do Reino Unido é de tal
forma significativo que é provável que sejam os próprios ingleses a não querer um
parlamento regional, pelo poder simbólico que retiraria ao parlamento da Grã-Bretanha
(parlamento estatal do Reino Unido), localizado em Londres, capital inglesa (e
britânica). Por outro lado, o nacionalismo britânico abertamente assumido e afirmativo,
que preconiza a manutenção do Reino Unido da G-Bretanha e da Irlanda do Norte
como Estado independente e indivisível, está limitado a personalidades e movimentos
claramente conservadores ou de extrema-direita.
Parece, assim, haver um espaço de silêncio discursivo que domina o nacionalismo
centrípeto. Esta sua maior propensão para o que denominamos como nacionalismo
subtil ou afirmativo (mas não para o assumido) pode não ter como única justificação os
receios de conotação com os aspectos mais negativos do discurso identitário. Poderá
haver uma tentativa deliberada, por parte de um dado agente nacionalista centrípeto,
de centrar as atenções da cidadania noutras questões (por exemplo, nas políticas
sociais e económicas), como forma de atingir novas metas ou manter conquistas já
alcançadas, em matéria de poder político. Em determinadas circunstâncias, o
nacionalismo subtil ou o nacionalismo afirmativo não assumido poderão ser a receita
mais adequada para materializar os objectivos políticos de uma identidade,
principalmente quando esta já se encontre consubstanciada num Estado.
Em paralelo, os partidários do afastamento da centralidade e da construção de novas
unidades políticas à luz de uma ideia nacional e que entendem que estas não se
compaginam com uma entidade tão abrangente, tendem a assumir abertamente as
suas posições nacionalistas. Uma das causas possíveis para esta diferença pode residir
na já referida associação, precipitada e errónea, entre nacionalismo, expansionismo e
violência (Evera, 1994: 5). É compreensível que, perante este enquadramento, os
nacionalismos centrípetos optem por uma via menos declarativa, visto serem os mais
facilmente associáveis a estratégias de expansão e a potenciais consequências
conflituais que daí derivem. Somando a esta situação, o nacionalismo centrífugo goza
de uma maior aceitação intelectual, como pode ser comprovado quando Mary Kaldor
descreve o que classifica como “pequeno nacionalismo” como sendo não violento,
aberto e inclusivo (2004: 173).
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Conclusão
A nossa proposta de leitura em relação ao nacionalismo assenta em dois aspectos
concretos: na defesa do carácter multidimensional das suas formas de actuação,
destacando-se aqui, de forma especial, o papel da acção, muitas vezes ignorado em
detrimento de alises superficiais que se centram, sobretudo, no discurso e na
autodefinição; e na diferenciação dos diversos nacionalismos em função da sua
proximidade ou afastamento em relação ao poder soberano (nacionalismos centrífugos
e centrípetos).
Também nos parece possível identificar uma tendência de correlação entre as duas
variáveis identificadas. No período em que vivemos, provavelmente fruto de exemplos
menos positivos da história recente, os agentes políticos dos Estados soberanos evitam
identificar-se explicitamente como nacionalistas, apesar de, no seu dia-a-dia,
desenvolverem acções que visam atingir o máximo corolário das ambições
nacionalistas: a manutenção da identidade nacional como base do Estado, unidade
política soberana por excelência, e do próprio sistema internacional. Por outro lado, os
nacionalistas partidários de identidades nacionais não materializadas em Estados
soberanos e independentes parecem ter uma propensão clara para assumir o próprio
nacionalismo na sua plenitude, inclusivamente nas dimensões discursiva e de auto-
definição.
Referências Bibliográficas
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Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 4, n2 (Noviembre 2013-Abril 2014), pp. 74-89
ESTADO Y MULTILATERALISMO, UN ENFOQUE TEÓRICO.
TRANSFORMACIONES EN UNA
SOCIEDAD INTERNACIONAL GLOBALIZADA
Paloma González del Miño
palomagm@cps.ucm.es
Profesora Titular de Universidad de Derecho Internacional Público y
Relaciones Internacionales de la Universidad Complutense de Madrid (UCM, España)
Coordinadora del Grado Relaciones Internacionales de la Universidad Complutense de Madrid,
impartido en la Facultad de Ciencias Políticas y Sociología. Directora del Grupo de Investigación
“Relaciones Internacionales Siglo XXI” (RIS-XXI) perteneciente al Campus de Excelencia.
Investigadora Senior del Instituto Complutense de Relaciones Internacionales (ICEI) de la
Universidad Complutense de Madrid. Directora del Área Magreb-Oriente Medio de Euro-
Mediterranean University Institute (EMUI).
Concepción Anguita Olmedo
concepcion.anguita@ccinf.ucm.es
Contratada Doctor de la Universidad Complutense de Madrid (UCM, España). Profesora de
Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales en la Facultad de Ciencias Políticas y
Sociología. Doctora en Ciencias de la Información (1997). Directora del Magister en Diplomacia
Corporativa: Influencia y Representación de Intereses (UCM). Coordinadora del ster Política
Internacional: Estudios sectoriales y de área (2009-2013), Codirectora del Magíster en Relaciones
Internacionales y Comunicación (2004-2012), Diplomada en Altos Estudios de la Defensa (2008).
Investigadora Senior del Instituto Complutense de Estudios Internacionales (UCM). Miembro del
equipo investigador Relaciones Internacionales Siglo XXI (UCM). Miembro del equipo de expertos
del Observatorio de la Cátedra Paz, Seguridad y Defensa de la Universidad de Zaragoza
Resumen
El Estado, actor clásico internacional, ha tenido que readaptarse a las nuevas dinámicas de
la Sociedad Internacional y ha cedido protagonismo a otros actores. En esta lógica, es
pertinente analizar el papel en el sistema internacional de la postguerra fría para evaluar si
sigue siendo un actor capaz de dar respuestas a las necesidades funcionales de la sociedad.
Para ello, se reafirma su apuesta por el multilateralismo como respuesta a los principales
retos de la agenda internacional. Es decir, se reactiva como una herramienta idónea para
gestionar los cambios estructurales, pese a las distintas interpretaciones que del mismo
hacen Estado Unidos, la Unión Europea o los BRICS. El presente análisis tiene por objetivo
principal contribuir al debate académico y se centra en estudiar las transformaciones del
Estado en la sociedad internacional globalizada, donde el multilateralismo se ha convertido
en un concepto debatido y en una práctica común discursiva en el ámbito internacional,
pese a su complejidad y a las distintas visiones e interpretaciones por parte de los
diferentes actores. El multilateralismo concede al Estado una vía de cooperación y
entendimiento como principio rector y discurso legitimador de política exterior.
Palabras clave:
Estado, multilateralismo, Estados Unidos, Unión Europea, BRICS, TIMBI
Como citar este artículo
Miño, Paloma González y Olmedo, Concepción Anguita (2013). "Estado y multilateralismo,
un enfoque teórico. Transformaciones en una sociedad internacional globalizada".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 2, Noviembre 2013-Abril 2014.
Consultado [en línea] en la fecha de la última visita,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art4
Artículo recibido el 2 de octubre de 2013 y aceptado para publicación en 14 de octubre
2013
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ESTADO Y MULTILATERALISMO, UN ENFOQUE TEÓRICO.
TRANSFORMACIONES EN UNA
SOCIEDAD INTERNACIONAL GLOBALIZADA
Paloma González del Miño
Concepción Anguita Olmedo
I. Introducción
Los cambios acontecidos en la actual Sociedad Internacional evidencian mutaciones,
afectando de manera notable al Estado, que se mantiene como el actor clásico del
sistema internacional, aunque han ido ganando protagonismo y poder otros actores
internacionales. En esta lógica, sigue siendo pertinente perseverar en el análisis del
papel que juega el Estado en las Relaciones Internacionales, máxime cuando en la
actualidad, en una sociedad globalizada, comparte su tradicional hegemonía con otros
actores.
Por tanto, son diversas las razones que contribuyen a mantener estas dinámicas
analíticas sobre el papel del Estado en el escenario internacional. En primer lugar, el
Estado es la institución que ha logrado el nivel más avanzado de desarrollo como forma
de organización socio-política. En segundo lugar, porque siendo el actor clásico de las
relaciones internacionales, ha tenido que adaptarse a los cambios de la Sociedad
Internacional globalizada. En tercer lugar, porque es el sujeto principal de la soberanía.
En cuarto lugar, porque diseña las políticas públicas en función del espacio político-
económico de las diferentes Sociedades Internacionales. En quinto lugar, porque
ostenta el monopolio legítimo de la violencia; y, en sexto y último lugar, porque la
propia evolución de la Sociedad Internacional ha modificado el papel del Estado,
pasando de un sistema westfaliano de potencias a otro multipolar, tras un periodo de
bipolaridad. En la actualidad, han surgido nuevos actores internacionales que cada vez
tienens poder y protagonismo (Barbé, 2010) y que contribuyen a modificar las
reglas de actuación vigentes.
Pese a que el Estado es uno de los actores s estudiados multidisciplinarmente y la
palabra Estado es una de las más utilizadas por las distintas Ciencias Sociales, los
análisis sobre este actor se polarizan en dos ámbitos principales: nacional e
internacional. Sin embargo, se diluye la perspectiva de una realidad indisoluble: la
interacción entre los dos planos, debido a las dinámicas de interdependencia generadas
en la actual Sociedad Internacional. En este sentido, Ulrich Beck, mantiene dicho
planteamiento cuando expone que esta Sociedad Internacional, transformada por la
globalización, necesita de un análisis cosmopolita que supere el clásico enfoque de
“mirada nacional”. Por tanto, es necesario ampliar las lógicas westfalianas para
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aprehender las dinámicas actuales que cada vez condicionan en mayor medida la
potica, la economía y la seguridad.
En las últimas décadas, y debido a los procesos de globalización, se cuestiona la
capacidad del Estado para seguir cumpliendo sus funciones básicas: “la noción del
Estado como unidad que se gobierna a sí misma parece ser más una demanda
normativa, que una descripción de la realidad” (Held, 2002). En este sentido, las
relaciones de interdependencia sobrepasan las capacidades y jurisdicción de los
Estados, mediante la aplicacn de otros marcos de regulación, al igual que la
transnacionalización de las finanzas y el proceso económico (producción, distribución y
consumo). Así mismo, la emergencia de nuevos actores transnacionales, la aparición de
desafíos en distintos planos, de riesgos globales a la seguridad en sentido amplio, el
debilitamiento de las identidades nacionales y la erosión de la soberanía son factores
decisivos que interpelan el papel del Estado como agente capaz de dar respuestas a las
necesidades funcionales de la sociedad.
Igualmente, nos encontramos elementos reactivadores de la vigencia del Estado como
actor determinante del escenario internacional, entre los que cabe mencionar la
cooperación internacional, el reforzamiento de las organizaciones internacionales y el
reciente protagonismo del regionalismo como respuestas del Estado y nuevas
alternativas a la gobernanza multinivel. Por tanto, el Estado reafirma su apuesta por el
multilateralismo como respuesta a los retos actuales. Es decir, desde finales del siglo
XX, se reactiva como una herramienta inea para gestionar los cambios estructurales
del sistema internacional, pese a las distintas interpretaciones que del mismo hacen los
actores internacionales.
En este sentido, los actores del sistema internacional afrontan estas mutaciones con
respuestas diferenciadas: “Estados Unidos continúa impulsando un multilateralismo
hegemónico, la UE promueve un multilateralismo normativo, los países en desarrollo
practican un multilateralismo defensivo y los emergentes promueven un
multilateralismo revisionista basados en narrativas, legitimaciones discursivas,
objetivos y prácticas diferenciadas” (Sanahuja, 2013:27).
Mientras EE.UU. venía participando durante las últimas Administraciones republicanas
de una mayor actuación unilateral, o dicho en otros términos una “institucionalización
de la unipolaridad”, las Administraciones decratas de los presidentes Clinton y
Obama ejercen una actuación más inclusiva, recurriendo a los foros multilaterales para
buscar un mayor amarre de acciones puntuales de su actuación exterior. Para la UE,
por su propia experiencia de integración, el multilateralismo se posiciona como un
imperativo en virtud de su propia identidad y reconocimiento como actor internacional
en un contexto de Estados soberanos (Natorski, 2012). En relación a los países en
desarrollo, el multilateralismo se ha convertido en una herramienta decisiva, por su
entramado institucional y normativo, canalizado mediante el sistema de Naciones
Unidas o en las organizaciones regionales particulares. Por los procesos de cambio de
poder, los países emergentes están en mejor situación para demandar reformas
institucionales, normativas y un mayor equilibrio en el orden internacional, con el fin de
lograr alternativas simétricas de cooperación.
El presente alisis se centra en evaluar las transformaciones del Estado en la sociedad
internacional globalizada, donde el multilateralismo se ha convertido en un concepto
debatido y en una práctica común discursiva en el ámbito internacional. Pese a su
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complejidad y a las distintas visiones e interpretaciones por parte de los diferentes
actores, el multilateralismo concede al Estado una vía de cooperación y entendimiento
como principio rector y discurso legitimador de política exterior.
Partiendo de una breve narrativa hisrica sobre la evolución del Estado en el sistema
internacional, el artículo pretende contribuir al debate académico y busca identificar las
respuestas sen el posicionamiento de los distintos actores estatales del sistema
internacional (Estados Unidos, UE y pses emergentes -BRICS/TIMBIs
1
-). Es decir, las
diferentes respuestas según la concepción que cada uno tiene del multilateralismo,
aunando un enfoque multidisciplinar con una amplia base en las Relaciones
Internacionales. En esta lógica, la intención es estudiar la correlacn entre la
estructura internacional y las variaciones en cuanto a epicentros de poder en el actual
sistema internacional. Por tanto, el análisis parte de la premisa que el Estado ha tenido
que adaptarse a los cambios del sistema internacional para no perder poder y
competitividad, incrementando sus capacidades, siendo precisamente el
multilateralismo el instrumento que mejor se adecua como estrategia de readaptación,
nicho de oportunidad, para ajustar su posición en el sistema internacional.
II. Continuidad del Estado como actor central del sistema internacional
La historia de Europa, producto de distintas transformaciones complejas, es en gran
parte la historia del Estado moderno como comunidad política (Truyol y Serra, 1974:
30-41). El Estado moderno es la forma en que las sociedades han construido su
organización política. Es el Estado el que cohesiona a la comunidad, puesto que dicha
comunidad, como tal, no existe antes. En el orden westfaliano se observa el papel
central y exclusivo del Estado como actor del sistema y centro de poder dentro de una
estructura todavía anárquica, que sólo podía ser mitigado por el principio de equilibrio
de poder, lo que significa que cada Estado tiene que velar por sus intereses y
seguridad, o dicho en otros términos, cada cual debe de valerse por sí mismo (Del
Arenal, 2002).
Los Estados westfalianos se estructuran fundamentalmente “en torno a la realidad y a
la distribución del poder, interpretado puramente en términos relacionales y entendido
sobre todo en términos político-militares, y en función al papel que desempeñaban las
grandes potencias que actuaban como un directorio en relación al mismo” (Del Arenal,
2002: 23). Por tanto, el orden westfaliano implica dos características fundamentales: el
establecimiento de relaciones diplomáticas permanentes y crecientemente sofisticadas,
tanto en la pctica como en la codificación; y la dimensión interna y externa de los
Estados que ha tenido una amplia influencia en el desarrollo teórico, político y
normativo de las relaciones internacionales.
1
Turquía, India, México, Brasil e Indonesia. Desde que se creara el término BRICs para referirse a
economías emergentes, se abre un debate en relación a si se debe mantener estos miembros, si hay que
incluir nuevos actores internacionales o si se hay que rehacer el grupo. El profesor Jack Goldstone de la
Univesidad George Manson e investigador del Brookings Institution, en su artículo Rise of the TIMBIs
(2011), publicado en Foreign Policy, mantiene la tesis de que los BRICS deberían dar paso a los TIMBIs y
propone la ausencia de China y Rusia en las siguientes década en este nuevo bloque al estar cambiando
sus capacidades, principalmente los patrones demográficos y el nivel de exportaciones, junto a un sistema
político todavía muy rígido, obstáculos que pueden trabar su progreso.
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En este orden de ideas, y a modo de recopilacn, podemos reseñar que el concepto del
Estado-nación moderno supone, como argumenta Held, una serie de innovaciones al
Estado mismo y, por ende, a la Sociedad Internacional, entre las que cabe mencionar la
territorialidad, el monopolio de la violencia, la noción de estructura de poder impersonal
y la legitimidad. Es decir, Westfalia establece el desarrollo de la soberanía como
principio organizativo de los Estados (Barbé, 2007: 165).
Desde el surgimiento del sistema interestatal westfaliano, la estructura ha sufrido
importantes cambios, destacando la variacn numérica de Estados con capacidad para
incidir en el orden internacional. Después del Congreso de Viena, el concierto de
grandes potencias incorpora ocho naciones (Austria, Francia, Gran Bretaña, Rusia,
Portugal, España y Suecia) que acaban reduciéndose cuando las tres últimas pierden
potencialidad en el equilibrio de poder. A finales del siglo XIX y principios del XX,
algunos países incrementan sus capacidades, lo que significa mejoras en su posición en
la estructura internacional de poder. Estados Unidos, Alemania, Italia y Japón se
incorporan al directorio de las grandes potencias hasta entonces europeas.
Después de la II Guerra Mundial, se produce otro acontecimiento decisivo respecto a la
variación numérica de los Estados que integran el directorio de grandes potencias, no
por la desaparición o formación de nuevos Estados, sino porque Estados Unidos y la
Unión Soviética incrementan sus capacidades, convirtiéndose en superpotencias. En
consecuencia, la estructura del sistema internacional se orienta hacia una configuración
de poder bipolar, en donde el factor tecnológico, es decir, la potencialidad nuclear,
altera profundamente los esquemas de socialización y competencia desarrollados por
las unidades del sistema. Con la desaparición de la Unión Soviética, el poder del
sistema internacional tiende a desconcentrarse en un mayor mero de actores. Sin
embargo, no pierde su naturaleza oligopólica, según la terminología de Raymond Aron.
En efecto, a pesar de todos estos cambios, permanece un directorio de grandes
potencias, que concentran mayores cuotas de poder en relación a una extensa cantidad
de Estados.
El Estado se reafirma como actor principal en múltiples ámbitos; eso sí, ha tenido que
hacer frente a los nuevos desaos y riesgos que conlleva la globalización como la
desestatalización, la desterritorialización y la reubicacn del poder. En este sentido, se
han generado nuevas dinámicas internacionales en las que la cooperación interestatal
ha difuminado la línea que separa lo nacional de lo internacional. Los Estados se ven
obligados a buscar mecanismos formales de cooperación permanente y voluntaria,
creando entes independientes destinados a alcanzar objetivos colectivos (Sobrino
Heredia, 2006: 43).
Ahondando en esta línea, podemos afirmar que en un mundo cada vez más
interdependiente, la multilateralidad se ha convertido en una respuesta apropiada para
afrontar las demandas del siglo XXI. Respuesta que “no puede entenderse sin aludir a
los Estados-nación y a un orden westfaliano basado en el principio de soberanía
nacional” (Sanahuja, 2013:p. 31). Es evidente el progresivo incremento de la actividad
estatal en instituciones internacionales, motivada por una causa y que conlleva una
consecuencia. En relación a la primera, los Estados son incapaces per se de dar
satisfacción a las nuevas necesidades colectivas; respecto a la segunda, los Estados se
ven avocados a cooperar ante estos procesos de transnacionalización y desarrollo. Por
tanto, la multilateralidad se convierte en una herramientalida que asienta el orden
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internacional contemponeo, con el objetivo permanente de cimentar relaciones
pacíficas entre los Estados.
III. Dialéctica Estado-Globalización
El fenómeno de la globalización ha generado amplios debates desde diferentes
disciplinas científicas, en los que el tema del Estado se inserta en estas dinámicas de
reflexión por las transformaciones nucleares que este proceso conlleva. Numerosos
autores mantienen la hipótesis de que el proceso de globalización ha producido una
rdida significativa de la presencia del Estado en la dinámica social, en una doble
vertiente: a nivel nacional y en el ámbito internacional. Sin embargo, resulta apropiado
introducir una matización, ya que los cambios que viene experimentando el Estado
soberano suponen la necesaria readaptación a esta nueva realidad internacional, en la
que el multilateralismo es una variable explicativa que permite una revisión ontológica
del poder.
Desde los años 80 del pasado siglo, resulta abundante la producción analítica en torno
a la globalizacn. En este sentido, se explican muchas de las transformaciones que
experimentan las sociedades estatales y la propia Sociedad Internacional, para reputar
distintos rasgos característicos del orden internacional actual. Sin embargo, la
globalización no podría entenderse sin otros fenómenos anteriores, pues coincidiendo
con autores como Castells o García Segura, cuatro son los procesos continuos en el
tiempo y de diferente naturaleza y efectos que afectan a la Sociedad Internacional:
mundialización, creciente interdependencia, humanización y globalización (Castells,
1997 y Gara Segura, 1999). Por tanto, la nueva Sociedad Internacional post Segunda
Guerra mundial es muy diferente a la que caracterizó las relaciones internacionales
desde la Paz de Westfalia. El resultado ha sido el nacimiento de una nueva Sociedad
Internacional global post-westfaliana, caracterizada por el debilitamiento de algunos
actores, como el Estado, que definieron el periodo anterior, y el empoderamiento de
otros actores no estatales, como las empresas transnacionales, las Organizaciones
Internacionales, gubernamentales y no gubernamentales, y sobre todo el individuo.
A pesar de este debilitaiento, la Sociedad Internacional continua siendo estatocéntrica,
donde este actor internacional se confirma como única forma de organización política.
“En este sentido, la estatalizacn constituye la máxima expresión de la mundialización
de la lógica y el modelo westfaliano de Sociedad Internacional, al dividir la sociedad
mundial en unidades políticas soberanas e iguales en derechos, con fronteras
claramente delimitadas, pero manifiestamente desiguales en términos de poder y
desarrollo” (Del Arenal, 2008: 21).
En la nueva sociedad internacional, se ha producido un cambio en la naturaleza y
distribución del poder. Si en la sociedad westfaliana se identificaba poder y Estado, en
la sociedad de la información, el poder es un fenómeno multidimensional, mutante,
expresado en términos económicos, pero también, en términos culturales, tecnológicos
y de información y, cada vez menos, en términos militares. Además, se produce un
cambio en la base tradicional del poder: el territorio, que deja de ser considerado un
elemento esencial, para ser sustituido por otros elementos no siempre tangibles, como
redes financieras o comerciales, comunicacionales…, (Del Arenal, 2008: 31). Autores
como Thomas Risse cuestionan conceptos como la multipolaridad “para describir un
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mundo parcialmente globalizado en el que los Estados no son sino uno entre los
diferentes centros de poder” (Risse, 2008).
Consecuencia directa del cambio en la distribución del poder es el incremento de
nuevos actores, que en tiempos anteriores no detentaban ni el poder político ni el
económico, y que en esta nueva Sociedad Internacional emergen tratando de instaurar
un nuevo orden internacional inclusivo, a la vez que reclaman cambios institucionales y
normativos, junto a un sistemas equilibrado. Nos referimos, a las potencias
emergentes, cuya acepción más utilizada sigue siendo el acrónimo BRICS (China, India,
Rusia, Brasil y Sudáfrica), creado por Goldman Sachs (Sachs: 2003). Estos Estados
concentran un porcentaje importante de la población mundial, el 40%, y están
consolidando su posición económica, cuestionando la tradicional hegemonía occidental
de la sociedad anterior, desde un posicionamientos combativo del multilateralismo.
El principal reto con el que se encuentran estos Estados es convertir su relevancia
demográfica, su extensión territorial y su potencialidad económica en poder político con
capacidad para influir en el sistema internacional, aunque en el espacio regional ya son
identificados como actores relevantes. A diferencia del pasado, estas potencias
emergentes han buscado potenciar los foros multilaterales que ahora permiten una
representación más equitativa. Un ejemplo nítido, es la respuesta a la crisis financiera
que encabezó el G-20 foro más representativo que el G-8 ó cualquier otro grupo
reducido y selecto que no resultan legítimos o eficaces para la resolución de problemas
globales.
Mientras la bilateralidad está definida por los principios de exclusión y negociación, el
multilateralismo participa de la lógica de la complementariedad. En este sentido,
supone un modelo idóneo para analizar las relaciones múltiples y diversas, aunque
todavía no es una realidad generalizada, e incluso se la podría catalogar de
embrionaria, pese a algunos procesos ya consagrados -Asamblea General de la ONU,
Organizacn Mundial del Comercio (OMC), la Conferencia de Naciones Unidas sobre
medio ambiente y desarrollo de Río o la Convención sobre el cambio climático de
Kioto…-
IV. La multilateridad como enfoque teórico
El estudio de las relaciones internacionales conlleva el análisis de estructuras que se
transforman. Desde este punto de vista, cabe afirmar que la gica formal clásica de la
Sociedad Internacional post Segunda Guerra mundial se orienta a una configuración de
poder bipolar, en donde Estados Unidos y la Unión Soviética se convierten en
superpotencias como consecuencia del incremento de sus capacidades, principalmente
militares. Las evoluciones del sistema internacional, antes y después de la
descomposición de la Unión Soviética, agudiza la atención académica sobre el
multilateralismo como instrumento de relacn, a la vez que se amplia la participación
de los Estados en foros multilaterales, en pos de objetivos o intereses comunes tras la
ruptura del encorsetamiento producido por la bipolaridad de la guerra fría. Al debate
académico contribuye el artículo ampliado en libro de John Gerard Ruggie, referente
clásico aunque controvertido, que se centra en la dimensión normativa de este
concepto.
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El multilateralismo es una herramienta, en cuanto a la toma de decisiones, en donde el
consenso y la negociación entre las partes son esenciales. Para Ruggie, el
multilateralismo es “una forma institucional que coordina las relaciones entre tres o
más Estados en base a principios generalizados de conducta, esto es, principios que
especifican la conducta adecuada para cada tipo de acción, sin tomar en consideración
los intereses particulares de las partes o las exigencias estratégicas que puedan darse
en cada caso concreto” (Ruggie, 1992:14). Por tanto, para este autor lo que prima no
es la capacidad de coordinar políticas nacionales entre países, sino que lo hacen en
base a ciertos principios de relacn. Su concepcn se diferencia “de la definición
funcional y cuantitativa del multilateralismo utilizada ampliamente, entre otros por
Robert Keohane, para quien el multilateralismo es la practica de coordinar políticas
nacionales en grupos de tres o más Estados. A través de mecanismos ad hoc o por
medio de instituciones” (Barbé, 2010).
Caporaso diferencia, en un intento por contribuir al debate intelectual, multilateralismo
de multilateral. La distinción de este autor introduce un debate conceptual interesante,
por dos motivos; en primer lugar, porque desde la década de los ochenta y a lo largo
de los noventa estaban presentes en el discurso político de los principales actores del
sistema internacional; en segundo lugar, porque muchos autores principalmente del
ámbito académico norteamericano, tratan de delimitar estosrminos y construir una
definicn aplicable a la ciencia política y a las relaciones internacionales.
En este sentido, es pertinente definir ambos términos, en qué consisten y si son útiles
para afrontar los nuevos retos que se plantean en el siglo XXI. “The terms multilateral
and multilateralism suggest some linguistic consideration. The noum comes in the form
of an ism suggesting a belief or ideology rather than a straightforward state of affaire”
(Caporaso, 1992: 601). “The term “multilateral” can refer to an organizing principle, an
organization, or simply an activity. Any of the above can be considered multilateral
when involves cooperative activity among many countries. “Multilateralism” as opposed
to “multilateral”, is a belief that activities ought to be organized in a universal (or at
least a many-sided) basis for a relevant Group, such as the Group of democracies”
(Caporaso, 1992: 603).
Aunque ambos términos implican cooperación entre Estados, el multilateralismo hace
referencia al conjunto de creencias y valores sobre los que se debe asentar la política
internacional, siendo ésta una propuesta en la que coordinar las relaciones
internacionales. Por el contrario, multilateral es un principio organizacional, es decir, el
funcionamiento de una organización o simplemente una actividad. Igualmente, esta
concepción es defendida por un número significativo de politólogos e internacionalistas,
reflejada en los trabajos de Ruggie, Martin, Keohane o Cox, quien afirma que
“multilateralism appears in one aspect as the subordinate concept. Multilateralism can
only be understood within the context in which it exist, and that context is the historical
structure of World order. But multilateralism is not just a passive, dependent activity. It
can appear in another aspect as an active force shaping World order” (Cox, 1992:
161); es decir, el multilateralismo es un fenómeno dinámico de normas y
organizaciones que no permanecen inmutables y que introduce una intención clara de
modelar el orden mundial en un marco de entendimiento y cooperación ente Estados.
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La evolución del multilateralismo “debe ponerse en relación con la transformación del
conjunto de la sociedad internacional: de la estructura de poder, de la naturaleza del
Estado, de las relaciones entre Estado y sociedad, de las ideas imperantes. El
multilateralismo (o cada tipo de multilateralismo), desde este punto de vista, no es ni
más ni menos que el producto de un determinado tipo de sociedad internacional”
(Costa, 2013: 11-12). La evolución de la estructura histórica, en terminología de Cox,
de la sociedad internacional produce tres tipos,el multilateralismo de la coexistencia,
el de cooperación y el del solidarismo. Cada uno de estos tipos de multilateralismo es
expresión de un tipo concreto de sociedad internacional, pero hasta ahora todos ellos
se han mostrado suficientemente resilientes y autónomos como para sobrevivir (bien
que mal) a las condiciones que los hicieron posibles, de forma que cada una de las
fases ha conocido la acumulación de una capa sedimentaria de normas. Estas fases son
constructos analíticos, tipos ideales, pero pretenden (tentativamente) tener una
correspondencia con la realidad histórica” (Costa, 2013: 12).
En relacn al primero, el multilateralismo de la coexistencia, que representa el punto
de partida, posee un marcado carácter eurocéntrico en términos de poder, ya que
Estados Unidos o Japón se centran en cuestiones domésticas o regionales. Su objetivo
es “restringir y coordinar la acción de los Estados para permitir a cada uno la mayor
libertad para perseguir sus intereses nacionales con la mínima interferencia o
imposición de los demás” (Burley, 1993: 127). Este multilateralismo de coexistencia
prima evitar el enfrentamientos que la resolución de conflictos comunes, mostrando
sus debilidades frente a los retos de una sociedad en evolución. En relación al segundo,
el multilateralismo de cooperación, se asienta en las nuevas relaciones surgidas entre
los Estados tras la II Guerra Mundial, partiendo de un presupuesto: la cooperación
interestatal como solución a los problemas internacionales, como recoge el prmbulo
de la Carta de Naciones Unidas. En este sentido, Burley considera que el sistema de
Naciones Unidas marca un punto de inflexión entre las normas de la coexistencia y los
esfuerzos cooperativos por embrionarios que todavía sean en este periodo. El tercer
tipo de multilateralismo (solidarismo), que comienza a partir al término de la guerra
fría, es decir, finales de los años ochenta, viene marcado por el incremento de las
organizaciones internacionales junto a una “promoción cada vez más asertiva de las
normas liberales universalizadas por parte de instituciones internacionales y una
incipiente sociedad civil global (Rüland, 2012: 257).
Por último, el multilateralismo comporta dos variables, una dimensión política y otra
económica. En este sentido, el multilateralismo en la dimensn política, más general y
macro, hace referencia a la arquitectura institucional que nace de la cooperación entre
Estados para afrontar los retos comunes (cambio climático, terrorismo, pobreza global,
narcotfico). En su dimensión económica, limitado al ámbito sectorial de las políticas
económicas-comerciales, atiende a la coordinación de los actores que participan en la
relación multilateral. En este sentido, Cox se expresa en los siguientes términos:
“economic multilateralism meant the structure of World economy most conductive to
capital expansion on a World scale; and political multilateralism meant the
institutionalized arrangements made at that time and in those conditions for interstate
cooperation of common problems” (Cox, 1992: 162). Este planteamiento se puede
completar con las aportaciones de Ruggie, que afirma que el multilateralismo posee
una dimensión cuantitativa, referente al número de Estados, y una dimensión
culitativa, en virtud de los valores que dichos Estados deben poseer,in short, the
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Vol. 4, n2 (Noviembre 2013-Abril 2014), pp. 74-89
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nominal definition of multilateralism misses the qualitative dimension of the
phenomenon that makes it distinct” (Ruggie, 1992: 566).
No cabe duda que el sistema internacional surgido después de la Segunda Guerra
Mundial supone un hito en el establecimiento de nuevas formas de cooperación
interestatal, junto a la proliferación de instituciones y regímenes multilaterales que han
promovido la convergencia de “valores mundiales”, nunca antes experimentados
(democracia, gobernanza, derechos humanos, reducción de la pobreza…). Sin embargo,
en la práctica el sistema multilateral no responde a dichos valores y se evidencia una
resistencia por parte de los Estados para actuar de manera multilateral, primando la
defensa de sus intereses securitarios y de bienestar. En relaciones internacionales, esta
dicotomía (unilateral-multilateral) se plantea como un debate entre ganancias
absolutas versus relativas (Mersheimer, 1995). En contra de esta lógica, el propósito
altruista del multilateralismo consiste en establecer reglas de comportamiento de
satisfacción para los países; así como desarrollar instituciones que favorezcan la
cooperación internacional.
V. Comportamientos asimétricos frente al multilateralismo: Estados
Unidos-Unión Europea
Son diferentes las visiones que los actores internacionales poseen en relación al
multilateralismo, en función del contexto histórico y de los propios intereses de los
actores. Estados Unidos, como superpotencia económica y militar ha formado parte de
la construcción y diseño de las instituciones que conocemos como foros multilaterales,
surgidos tras la Segunda Guerra Mundial. Con la caída de la Unión Soviética, se abre,
en el plano teórico, un cuadro propicio para la remodelación del orden internacional al
quebrarse el sistema bipolar. Sin remontarnos a épocas pretéritas, y centrándonos en
la últimas décadas, se aprecia en Estados Unidos, una evolucn en su política exterior.
Con el fin del mundo bipolar y la victoria militar en Irak (1991), intervención
respaldada por Naciones Unidas, entra en lo que Robert Kagan denomina el momento
unipolar que “predispuso aún más a Estados Unidos a utilizar la fuerza en el exterior y
comportarse como un sheriff internacional, basándose en unas capacidades militares
sin parangón posible” (Sanahuja, 2008: 302), reafirmando la posición neoconservadora
del orden internacional.
En esta lógica, Robert Jervis “ha calificado a Estados Unidos como hegemon revisionista
al intentar modificar unas instituciones multilaterales y unas reglas que,
paradójicamente, son, en gran medida, creación de Estados Unidos, y por ello, le
otorgan una mayor cuota de poder. En otras palabras, el hegemon ya no se encontraría
cómodo en su propio <multilateralismo hegemónico> de postguerra, y por ello
pretendería establecer nuevas reglas e instituciones que puedan dar cobertura legal y
legitimidad a una actuación esencialmente unilateral la que ilustraría la conformación
de <coaliciones de los dispuestos> (coalitions of the willing) en vez de actuar a través
de Naciones Unidas, la OTAN u otras organizaciones internacionales- y supongan
menos condicionamientos a su libertad de acción” (Sanahuja, 2008: 304).
Para Estados Unidos, el multilateralismo no es una creencia, es un instrumento
aplicable a cuestiones puntuales de la agenda global, con independencia de que las
Administraciones republicanas o demócratas hayan utilizado esta práctica en mayor o
menor medida, provocando un debilitamiento del sistema multilateral, como analiza
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Fred Holliday: “la victoria de George W. Bush en 2000, dio fin a década y media del
modelo de política exterior de Bill Clinton y de George Bush padre. Un modelo
compatible con el multilateralismo y con las normas internacionales, incluso las
referidas al uso de la fuerza, que ampararon la primera guerra del Golfo, o las
intervenciones en el Kurdisn, Somalia o Haití. Esa política ya había sido rechazada por
George W. Bush antes de los atentados del 11-S en Nueva York y Washington. Tras
esos atentados, la política exterior de Estados Unidos ha oscilado entre un
unilateralismo descarnado, y los intentos de adaptar a sus intereses a las
organizaciones internacionales. La guerra de Irak, en particular, mostró que el intes
de Washington por las reglas de Naciones Unidas se limitaba a obtener su respaldo y
legitimidad, pero si no podía obtenerlo, esto no impediría el ataque. Para la
administración Bush bastaba con mostrar un interés simbólico por la voluntad de los
aliados, y exaltar sin tapujos el interés nacional de Estados Unidos y el sentimiento
patrtico” (Mesa, 2006: 3).
La visión neoimperial que mantiene la potencia estadounidense tiene sus propios
límites, limites económicos y políticos, particularmente en el terreno militar y
financiero, siendo, además, costoso de mantener. Esto se refleja en periodos como el
actual, marcado por un contexto de crisis ecomica internacional. Para corregir lo que
Paul Kenney llama la desproporción imperial de Estados Unidos, la evolución hacia un
orden multilateral obliga a abandonar la inapetencia hacia el multilateralismo. Será, con
el presidente Obama, cuando se aprecia un giro respecto a la política de su predecesor,
en donde el multilateralismo es un espacio natural para el mantenimiento del liderazgo,
apreciándose, en el plano discursivo, un mayor acercamiento a estos principios, sobre
todo, durante su primer mandato. Sin embargo, con la reciente postura de intervenir
en Siria ha quedado demostrado que no lo es un convencimiento, sino una
necesidad, pues no es momento de actuaciones unilaterales.
En este sentido, el multilateralismo de Estados Unidos es asertivo. Por un lado, aboga
por las organizaciones internacionales, contribuyendo con apoyo financiero (aporta el
22% al presupuesto de la ONU) y, por otro lado, su interpretación está íntimamente
ligada a su interés nacional, lo que supone una estrategia, es decir, el medio para
alcanzar un fin. En suma, aunque la Administración Obama viene reafirmando el
compromiso con el multilateralismo, esto no significa que se posicione como un
instrumento clave de su política exterior, a diferencia de Canadá o la Unión Europea.
En conclusión, el multilateralismo para Estados Unidos puede ser una respuesta idónea
para contrarrestar el coste que implican las actuaciones unilaterales en diversos
ámbitos (cambio clitico, seguridad, terrorismo…), pero también para afrontar los
nuevos retos de la actual agenda global que de otra forma serían difícilmente
solventados de manera unilateral. Para ello, ha reforzado su relación cooperativa en
foros como el G-20, que aunque simboliza las dificultades de un orden multipolar, se
manifiesta como alternativa a un sistema institucional clásico, siendo un ejemplo
relevante Naciones Unidas que resulta ineficaz para prevenir violaciones de las reglas
sicas de juego; o lo obsoleta de su estructura, principalmente del Consejo de
Seguridad, pues, responde a un modelo posguerra mundial muy diferente al actual; o
la carencia de medios eficaces para satisfacer las necesidades de la agenda mundial,
marcada por desafíos transversales.
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La Unión Europea ocupa un rol relevante en relación al multilateralismo. Desde el
periodo posguerra fría, e incluso antes, “el compromiso de la Unión Europea con la
democracia, los derechos humanos, el desarrollo y la lucha contra la pobreza, los
procesos de paz y el multilateralismo contribuyeron a conformar una poderosa imagen
positiva de la Unn como actor progresivo y civil (…) Se afianzaría su voluntad de ser
un actor global capaz de participar activamente en la conformación de los principios,
reglas e instituciones que conforman el sistema internacional mediante su identidad
singular como potencia civil y actor normativo basado en valores; valores que además
de constituir su identidad internacional, también serían fuente de su poder blando, al
ejercer influencia a través de medios no coercitivos” (Sanahuja, 2013: 40).
La Unión Europea, multilateral por naturaleza, manifiesta su compromiso con el
multilateralismo eficaz, término surgido en la Estrategia de Seguridad Europea (2003),
que implica una herramienta útil para lograr la gobernanza global mediante el Derecho
Internacional, las reglas compartidas y los principios consensuados entre iguales. En
este orden de ideas, el Tratado de la Unión Europea (art. 21.2.h.) regula que la política
exterior ha de estar comprometida con “un sistema internacional basado en una
cooperación internacional más fuerte y la buena gobernanza global”.
Aunque Bruselas ha convertido el multilateralismo eficaz en un vértice de actuación
exterior, no se pueden ocultar las divergencias en torno a este término en su propio
seno entre multilateralistas funcionales, para los que es una herramienta, como otras,
y los multilateralistas normativos, para los que es un principio de interacción.
Igualmente, existen disimilitudes respecto a su aplicación, mientras que las potencias
comunitarias utilizan el unilateralismo y el minilateralismo como instrumentos de
potica exterior, los Estados miembros más pequeños encuentran en el multilateralismo
una forma de defender con mayores posibilidades de éxito sus propios intereses.
El multilateralismo eficaz es un objetivo principal y un marco relacional con socios
preferentes. El enfoque aplicado en los años noventa está asentado en asociaciones
estratégicas con base regional. Sin embargo, en la actualidad se refuerzan las
relaciones bilaterales con un pool de actores destacados, como proceso previo al
multilateralismo eficaz con el que se pretende dar respuestas colectivas a los retos de
la agenda global, bajo el paraguas de los organismos multilaterales y las normas
internacionales vinculantes.
Resulta hasta cierto punto paradójico, la promoción por parte de la Unn Europea de
un multilateralismo eficaz cuando, el avance experimentado en su composición como
un único actor (suma de 28), implicaría una pérdida de peso relativo en las
organizaciones multilaterales en las que cuenta con una representación y poder que no
es ya proporcional al que efectivamente tiene en el sistema internacional. En efecto,
cabe preguntarse en qué medida el multilateralismo eficaz que promueve, beneficia o
perjudica sus intereses, “y hasta qué punto no constituye de cara al futuro una de sus
opciones estratégicas promover la modificación del sistema multilateral para su
transformación progresiva en un sistema más adecuado de gobernanza global, sobre la
base de ceder poder institucional en el mismo a favor de otros actores” (Montobio,
2013).
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Conclusiones
La actual Sociedad Internacional evidencia mutaciones en los actores internacionales,
siendo el Estado el que mayores cambios ha sufrido. Este actor, determinante del
sistema internacional, ha visto modificada su autonomía, protagonismo y exclusivismo
anterior, como consecuencia de las dinámicas de interdependencia y de una serie de
nuevas realidades internacionales que diferencian la Sociedad Internacional del pasado
de una global, transnacional y humana, como la actual. El Estado ha sufrido un
importante debilitamiento e incluso ha sido cuestionado pero, aún así, sigue
manteniendo un papel destacado, aunque comparte protagonismo con otros actores
internacionales pujantes.
Desde Westfalia hasta la actualidad, las relaciones interestatales y la distribución
oligopólica del sistema internacional permanecen como una constante. El vínculo entre
el poder político-militar y económico mundial mantiene un directorio de grandes
potencias, es decir, un pequeño grupo de actores internacionales estatales que poseen
mayores capacidades en términos de poder y siempre en relación a otras unidades del
sistema y que, en función de esta posición, ejercen un papel determinante en el
escenario internacional. Prueba de ello, son los nuevos Estados emergentes, BRICS, o
incluso en un futuro inmediato los TIMBIs, que explican una nueva configuración del
poder y el desarrollo de una diferente polaridad, con la finalidad de situarse mejor en
el sistema internacional. En esta lógica, el multilateralismo se posiciona como principio
rector de las relaciones internacionales, utilizado de forma diferente en función de los
intereses propios de los Estados. Ejemplo significativo son las distintas relaciones con
el multilateralismo de Estados Unidos, UE o BRICS.
El multilateralismo se ha convertido en un recurso importante en el discurso político
internacional, lo que no significa que goce de la misma trascendencia en la agenda
global. Igualmente, comporta una práctica compleja dado que no se concibe e
interpreta del mismo modo por parte de los distintos actores que forman la Sociedad
Internacional. El multilateralismo es una creencia, una forma en las reglas que deben
regir las relaciones entre Estados, frente a multilateral, un adjetivo que cataloga un
determinado tipo de organización interna. En este sentido, cabe señalar que a partir de
la II Guerra Mundial se produce una explosión del multilateralismo y de las
organizaciones multilaterales, como nichos de oportunidad, en la que los Estados
realizan una apuesta en pro de su defensa como herramienta de su acción exterior y
para afrontar los retos globales. Cabría preguntarse, si el actual sistema multilateral
cuenta con competencias e instrumentos necesarios para afrontar los retos que plantea
la agenda internacional.
En función de las distintas narrativas, objetivos, prácticas y legitimaciones discursivas,
se detectan distintas visiones del multilateralismo. Estados Unidos como potencia
unipolar, considera universales sus valores, lo que distorsiona la esencia del
multilateralismo. En relación a la posición de la Unión Europea, hay que señalar que
promueve un multilateralismo normativo que refleja principalmente valores europeos,
que contradice a la propia esencia del concepto, pues la sociedad internacional actual
es cada vez más cosmopolita y demanda consensos basados en la diversidad. Los
países en desarrollo practican un multilateralismo defensivo y los emergentes un
multilateralismo revisionista.
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La debilidad del sistema internacional para responder a los desafíos de la agenda
global; el emergente papel de nuevos actores estatales y no gubernamentales con clara
vocación de incidir y reformar la estructura de la política exterior mundial; la
consolidación de nuevos bloques y el fortalecimiento de otros bloques regionales,
reflejan los déficits del sistema internacional. En este sentido, las respuestas limitadas
de instituciones como Naciones Unidas, reconducen a nuevos mecanismos ad hoc como
el G-8 y el G-20, donde la toma de decisiones resulta más efectiva, aunque se reduce
la legitimidad democrática internacional al ser excluyentes.
El escenario estratégico global ha mutado decisivamente. La unipolaridad
estadounidense se ve cuestionada por potencias emergentes, China en particular, la
Unión Europea en menor medida, pero también los otros miembros de los BRICS y los
TIMBIs, que han aparecido con fortaleza e imponen su marca, reclamando mayores
cuotas de poder. Incluso, actores no estatales, como las organizaciones no
gubernamentales van adquiriendo paulatinamente mayor influencia y demandan un
protagonismo acorde con su peso específico. Por tanto, en un sistema internacional
como el actual que diverge significativamente en cuestiones económicas, geopolíticas y
organizativas, de los anteriores, los nuevos retos que enfrenta el sistema, en las
últimas décadas, han de ser afrontados multilateralmente.
Con la actual crisis económica internacional las distorsiones se evidencian aún. En esta
crisis que se da en el “centro, juegan un papel importante los países de la “periferia”
que contribuyen al sostenimiento del sistema financiero, lo que demuestra su capacidad
económica y solvencia junto a la interdependencia y el reconocimiento de que los
efectos negativos de la crisis tienen repercusiones globales. Unido a esta característica,
la crisis económica implica un replanteamiento de costos por parte de los actores
clásicos (principalmente Estados Unidos, la Unión Europea, Japón…), reflejando la
agudización de las divergencias que ahonda en la supeditación de lo colectivo a lo
nacional. Aunque las potencias emergentes tienen intereses globales que manifiestan
claramente, puede ser que no estén capacitadas para afrontar responsabilidades de
liderazgo y de financiación en el orden internacional, particularmente en el plano de la
seguridad internacional.
El multilateralismo del siglo XXI es demasiado interdependiente y complejo. Exige un
nuevo marco de cooperación que además de los equilibrios de poder, considere la
diversidad de los desafíos actuales y la necesidad de reafirmar un modelo normativo.
En conclusión, el fortalecimiento del multilateralismo es generar mayor legitimidad en
los procesos de toma de decisión, ya sean por instrumentos ad hoc o por aquellas
instituciones con vocación global de salvaguarda de los intereses colectivos.
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LA PERSPECTIVA DE LA TRADICIÓN EN LA IDENTIDAD
INSTITUCIONAL. EL CASO DEL MINISTERIO DE RELACIONES
EXTERIORES DE BRASIL
Gisela Pereyra Doval
gpdoval@gmail.com
Dra. en Relaciones Internacionales. Coordinadora del Programa de Estudios Argentina-Brasil
(PEAB) de la Facultad de Ciencia Política y Relaciones Internacionales de la Universidad Nacional
de Rosario (Argentina). Profesora de Relaciones Internacionales por la misma institución. Becaria
Posdoctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Cienficas y Técnicas (CONICET).
Resumen
El objetivo de este artículo es describir determinados elementos que consideramos
constitutivos del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil Itamaraty- como “significante
vacío”. La tradición de continuidad en política exterior es el resultado de la combinación de
estos elementos, lo que, finalmente, crea una identidad institucional distintiva. Entre ellos,
describiremos los distintos valores, principios y constantes; la importancia del pensamiento
estratégico y la evolución administrativa.
Palabras clave:
Itamaraty; Política Exterior; Tradición; Identidad Institucional
Como citar este artículo
Doval, Gisela Pereyra (2013). "La perspectiva de la tradición en la identidad institucional. El
caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 4, N.º 2, Noviembre 2013-Abril 2014. Consultado [en línea] en la fecha de la
última visita, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art5
Artículo recibido el 30 de Agosto de 2013 aceptado para publicación en 16 de
Septiembre de 2013
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La perspectiva de la tradición en la identidad institucional.
El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
Gisela Pereyra Doval
LA PERSPECTIVA DE LA TRADICIÓN EN LA IDENTIDAD
INSTITUCIONAL. EL CASO DEL MINISTERIO DE RELACIONES
EXTERIORES DE BRASIL
Gisela Pereyra Doval
Introducción
Algunos elementos, tanto ideacionales como institucionales/organizacionales, generan
reconocimiento al interior de un grupo y obligatoriedad para los miembros individuales.
Así, estas ‘normas implícitas’ ayudan a definir los significados sociales, estableciendo
expectativas colectivas. Estas normas se repiten a través de la internalizacn de los
miembros del grupo y dan como resultado una solución de continuidad a través de la
tradición. De esta forma se establecen los mencionados significados sociales. La
hipótesis de este artículo es que esta tradición de continuidad se compone de varios
elementos que forman parte del Ministerio comosignificante vacío”. Por este motivo,
el objetivo de este trabajo es describir cada uno de estos elementos. Así, el primer
apartado - La Tradición Diplomática - hace hincapié en la tradición con todo lo que ella
implica, los distintos valores, principios y constantes que se sostienen a través del
tiempo permitiendo la continuidad de la política exterior. El segundo apartado - El
pensamiento estratégico - presenta brevemente la importancia de las ideas que se
mantuvieron con el correr de los años. Por último, el tercer apartado -La evolución
Orgánica del Ministerio- describe brevemente la evolucn administrativa de Itamaraty
a través de tres períodos: la diplomacia imperial; el período carismático y la fase
moderna o burocrática-racional para demostrar que: a pesar de las acomodaciones
administrativas, la elite diplotica comenzó a formarse conjuntamente con la nación y
que la base axiogica de la acción externa del país se conformó a partir de la asuncn
del Barón de Rio Branco que, al mismo tiempo, coincidió con la proclamación de la
República.
De esta forma, partiremos de la dimensión analítica que propone Aboy Carlés (2001)
la perspectiva de la tradición- para analizar la identidad institucional de la elite
1
1
Nos referimos a un grupo “selecto” de personas que se destaca en alguna actividad particular. En este
caso, es el grupo de diplomáticos que forman parte de la cúpula política del Ministerio de Relaciones
Exteriores y que, como tal, tiene el poder de tomar decisiones con respecto a la política exterior. Se
encuentran un nivel más abajo del líder político (en este caso el presidente) en el proceso de toma de
decisiones en materia de política exterior. Este grupo que llamamos elite diplomática (o solo elite) son los
que más cercanamente rodean al líder político. Son “(…) todos aquellos miembros de un solo cuerpo, que
en conjunto seleccionan un curso de acción, en consulta unos con otros” (Hermann, 2001: 57).
diplomática dirigente de la política exterior brasileña. En primer lugar, nos parece
fundamental compartir el concepto de identidad política,
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La perspectiva de la tradición en la identidad institucional.
El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
Gisela Pereyra Doval
“(…) el conjunto de prácticas sedimentadas, configuradoras de sentido,
que establecen, a través de un mismo proceso de diferenciación externa
y homogeneización interna, solidaridades estables, capaces de definir, a
tras de unidades de nominación, orientaciones gregarias de la acción
en relación a la definición de asuntos públicos” (2001: 54).
Otra dimensión que presenta Aboy Carlés es la dimensión representativa, al respecto
plantea:
“(…) el elemento que define a la dimensión representativa será el nunca
acabado cierre interior de una superficie identitaria (…) Aquí tenemos
como elementos centrales bien los procesos de constitución de un
liderazgo, bien la conformación de lo que generalmente se ha
denominado una ‘ideología política’, bien la relación con ciertos
símbolos, como elementos cohesivos de una identidad (…)” (2001: 66-
67).
Es decir, la dimensión representativa es el inacabado intento de cierre, de
homogeneización interna de una identidad, institucional en este caso, la forma en que
se construye internamente. De esta forma, esta burocracia crea marcos de
‘significados’ dentro de los cuales ellos mismos piensan y actúan; en consecuencia, sus
acciones refuerzan los discursos dominantes creados por ellos mismos.
Básicamente, lo que permite definir la identidad institucional de Itamaraty es una
burocratización y racionalización de tipo weberiana
2
Con patrones regulares de carrera, control sobre el reclutamiento, y un sistema de
entrenamiento y evaluación profesional, Itamaraty viabilizó la manutención de un alto
grado de cohesión corporativa posibilitando el surgimiento de una identidad
institucional propia, independiente y articulante de las diversas identidades de sus
componentes particulares. Como plantean Laclau y Mouffe,
como significante vacío, es decir,
como la generalización de las distintas particularidades que conforman la elite
diplomática. En este sentido, podemos relacionar el proceso de toma de decisiones con
el segundo modelo planteado por Allison (1988), según el cual las unidades
burocráticas funcionan de acuerdo con un patrón específico, cuyo comportamiento está
determinado por rutinas y orientado por metas y objetivos que condicionan su acción,
lo que lleva a maximizar ciertos valores que le son propios.
“(…) todo depende de cómo se conciba esta ‘organización que seamos
capaces de darnos a nosotros mismos’, que reconduce los fragmentos a
una nueva forma de unidad: esa organización es contingente y, por
tanto, externa a los fragmentos (…) esta forma de ‘organización’ puede
ser considerada como articulación (…)” (1987: 106-107).
2
Podríamos llamar a este tipo ideal Burocrático-Racional.
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“(…) llamaremos articulación a toda práctica que establece una relación
tal entre elementos, que la identidad de éstos resulta modificada como
resultado de esa práctica” (1987: 119).
En el tercer apartado veremos cómo se crea el ministerio bajo un régimen monárquico
y si hubo modificaciones considerables con el advenimiento de la República.
Además de su autonomía, cohesión y ‘aislamiento’ burocrático, también se remarca
como característica weberiana de Itamaraty la larga ‘coherencia corporativa’ vigente en
la institución, y que se expresa en la continuidad y en la solidez de la adhesión de sus
miembros a la ‘doctrina’ de política externa desarrollada por la corporación. Cabe
resaltar algunos motivos que posibilitan este ‘aislamiento’ del ministerio. Los partidos
poticos estuvieron generalmente distantes de la política externa, la agenda oficial de
los principales partidos ignoró, o simplemente respetó los puntos de vista de Itamaraty.
Lo mismo se aplica a los sindicatos, empresarios, fuerzas armadas y la sociedad en su
conjunto. Pero, además, según Barros, también ha sido una cuestión elitista, que hacía
que los burócratas de Itamaraty se ‘sintieran’ superiores que el resto de las
burocracias:
"Partly because of that (and partly because of the high geographic
mobility of diplomats), they have cultivated a strong sense of isolation
from the rest of the bureaucracy, for which they have sometimes been
mocked as the jeunesse dorée (1984: 32).
Según Geddes (1990), la competencia del personal burocrático depende de dos
factores: la disponibilidad de entrenar a las personas de una sociedad de la cual
reclutar y el proceso de reclutamiento que selecciona entre empleados potenciales con
base en el mérito. Al mismo tiempo, si el proceso de reclutamiento es exitoso, los
burócratas de carrera serán aislados de los favores políticos y, por lo tanto, sus
incentivos seráns corporativos. Su trabajo se orientará hacia la agencia, sus
objetivos, y los valores de los colegas más que a beneficios e intereses personales. De
esta forma, el aislamiento de una agencia es la manera de prevenir que las tareas de la
organización se subviertan. Al mismo tiempo, las agencias burocticas tienen una
tendencia natural a buscar el control sobre los recursos de los cuales dependen,
incluyendo el poder de contratar a los candidatos, a desarrollar una ideología de
pertenencia y un sentido de misión que guíe sus decisiones, y tambn a desarrollar
divisiones entre ellos mismos y el ambiente que los rodea.
De esta forma, la institucionalización del servicio diplomático contribuyó para
‘despolitizar’
3
3
La despolitización está en estrecha relación con el realismo, y tiene que ver con la adaptación a las
circunstancias para procurar ganancias.
la política externa; sin embargo, el factor burocrático no es suficiente,
por sí solo, para dar cuenta de ese resultado. Lo que también parece haber favorecido
a esa relativa desvinculación de la política externa de la dinámica política dostica fue
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La perspectiva de la tradición en la identidad institucional.
El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
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la naturaleza de las cuestiones que, mayoritariamente, compusieron la agenda externa,
consecuencia para la cual mucho contribuyeron ciertas características institucionales
del proceso de formación de la política, asegurando al Ministerio de Relaciones
Exteriores influencia decisiva en la definición de esa agenda (Lima, 2000: 288-289). La
idea de coherencia y continuidad que para Itamaraty puede considerarse como una
ideología política tradicional - se explica en función de este fuerte componente
institucional en la formación de política externa y la presencia de un poder burocrático,
autónomo, configurado en la existencia de una agencia especializada. Estos elementos
pueden ser identificados en el proceso de toma de decisiones. Según Pimenta de Faria
(2008: 81) hay seis factores que posibilitan la centralización del proceso de toma de
decisiones en política exterior por parte de Itamaraty: el aparato constitucional del país
le concede autonomía al Poder Ejecutivo, relegando al Congreso a una posición
marginal; al mismo tiempo, el Poder Legislativo le concedió al Ejecutivo total
responsabilidad por las decisiones en política externa; el carácter “imperial” del
presidencialismo; el hecho de que el modelo de industrializacn por sustitucn de
importaciones generó una introversión en los procesos político y económico lo que
redundó en el aislamiento internacional del país; la actuacn diplomática del país que
ha sido no confrontativa; y la precoz profesionalización del cuerpo diplomático a lo que
se suma un prestigio a nivel nacional e internacional. Estos factores explican que la
potica externa más que una política de gobierno sea una política de Estado.
Recapitulando, los elementos mencionados arriba, el proceso de burocratización, la
selección y la preparación del cuerpo diplomático por parte de Itamaraty son algunos
de los elementos más importantes que justifican por qué la Cancillería brasileña opera
como un ‘significante vacío’. De esta manera, el trabajo desarrollado por Itamaraty da
cuenta de cómo se articulan las particularidades individualidades de los candidatos-
contribuyendo a construir una misma identidad institucional a través del proceso de
formación.
La Tradición Diplomática
La última dimensión a la que Aboy Carlés hace referencia es la perspectiva de la
tradición, al respecto, el autor plantea que:
“Toda identidad política se constituye en referencia a un sistema
temporal en el que la interpretación del pasado y la construcción del
futuro deseado se conjugan para dotar de sentido a la acción presente”
(2001: 68).
Diplomacia e historia en Brasil se encuentran vinculadas de diversos modos y por
diversas razones. En esta relación se reflejan visiones y percepciones de intereses
nacionales anclados en la formación del Estado, en sus características distintivas y en la
tensión con la que cada ps, al ejercer su individualidad y su soberanía, carga en su
relación con el otro.
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En todos sus campos de incidencia, el oficio de la diplomacia se revela esencialmente
potico
4
La tradición diplomática de Brasil, desde su independencia, le ha dado sentido
estratégico y pragmático a su política exterior, evitando desvíos bruscos de doctrina.
De este modo, como plantea Aboy Carlés:
, permanentemente condicionado por la reflexión crítica y el conocimiento
adecuado de antecedentes. Para la diplomacia profesional, por lo tanto, la historia y la
tradición representan un instrumento indispensable de trabajo. El proceso diplomático
brasileño ha hecho un culto de sus ideas y acciones que tienen vocación de
permanencia en el tiempo, de tradición, de contacto del presente con el pasado y el
futuro. La diplomacia, por razones de forma y de fondo, es por cierto una de esas
cosas. La política externa brasileña está vinculada a los intereses permanentes y
nacionales a largo plazo. De ahí deriva su coherencia y continuidad a través del tiempo.
“Si la vinculación de la acción colectiva con la obtención de metas
definidas como deseables parece evidente para quienes pretenden
abordar la acción atendiendo a su racionalidad, la asimilación del
accionar presente a empresas pretéritas adquiere particular importancia
al contribuir a cubrir de sentido a la accn colectiva a partir de una
legitimación de tipo tradicional” (2001: 68).
Así, la elite de Itamaraty conservó los intereses nacionales, haciendo pequeños cambios
en la política exterior implementada, según la coyuntura internacional en donde fue
aplicada, pero manteniendo siempre una visión realista
5
y coherente con los objetivos
generales del país. Como plantea Lins da Silva:
“A política externa brasileira tem preservado históricamente forte
característica de continuidade. A alternancia de pessoas e partidos no
governo, mesmo quando derivada de movimentos traumáticos, como
revoluçôes ou golpes de Estado, raramente alterou de modo significativo
ou duradouro quer alguns de seus princípios fundadores, persistentes ao
longo de praticamente todo o século XX (…)" (2002: 295).
En este sentido, no escapa a nuestro conocimiento que esta afirmación puede ser
contestada con algunos ejemplos así como que la diplomacia presidencial llevada
adelante, sobre todo, a partir de la década del noventa con la presidencia de FHC y
reforzada con la administracn Lula - pondrían en duda una afirmación tan categórica.
Sin embargo, es importante señalar dos cuestiones. La primera es que el protagonismo
de la figura presidencial en el ámbito de la política exterior no forma parte de la
tradición brasileña (Giaccaglia, 2010), sino que es un modelo de política exterior
reciente; y segundo, que la pluralización o democratización del proceso de toma de
decisiones en política externa debería ser entendida en términos relativos más que
absolutos “Pluralization departs from a unique baseline: the quasi-monopolistic
4
Dejando fuera de los objetivos de este trabajo la discusión de qué es lo político.
5
En cuanto al pragmatismo y la importancia del Interés Nacional.
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reputation of Itamaraty” (Cason y Power, 2006, 7). Así, aunque el conocido estudio de
Amaury de Souza haga hincapié en la expectativa de la diversificación de actores
interesados en tener alguna injerencia en el proceso de toma de decisión en política
exterior, el autor también argumenta que existe un
“«déficit democrático» decorrente da falta de transpancia nos
processos decisórios e da inexistência de canais adequados para a
representação dos interesses de grupos organizados ou das grandes
tendências da opinião nacional” (2009, 85).
Como plantea Pimenta de Faria
“(...) se hoje são significativos os indícios de uma maior porosidade do
processo de produção da PEB, talvez seja precipitado afirmar
categoricamente ter havido uma mudança de paradigma na formação de
tal política, de um processo claramente top down para um formato mais
bottom up (2008, 84).
Por último, según Amado Cervo
6
, existen tres ejes conceptuales constantes de la
potica exterior, que surgen como elementos secundarios de la identidad brasileña y
van consolidándose con el paso del tiempo para ser actualmente elementos primigenios
como principios de política exterior y que tienen más impacto en la continuidad de la
misma. Estos son el universalismo, el desarme y la integracn. Cervo explica que fue
posible llevar adelante una política exterior universalista, como uno de los principios
vectores de la política exterior, porque Brasil es un país heterogéneo y tiene una
composición social heterogénea
7
. De este modo, el universalismo deriva de una
composición étnica diversificada y cultural plural con un fuerte estrato europeo e
indígena, pero también con componentes africanos y orientales (árabes, chinos,
japoneses).
“Três traços definem a composiçâo étnica da populaçâo brasileira: a) um
tronco original de raça mista formado com o cruzamento de brancos,
índios e negros; b) um crescente branqueamento em conseqüência da
imigraçâo européia e de cruzamentos interétnicos e c) um elevado grau
de integraçâo de matrizes étnicas e culturais” (Cervo, 1995: 134).
Así, Brasil tiene una formación hisrica de la identidad nacional de convivencia de las
diferencias vinculadas al carácter heterogéneo del país y de su población. De este
modo, la construcción de una identidad con bases plurales, indujo a principios, valores
y patrones de conducta que se incorporaron a la política exterior del país,
6
Entrevista realizada al Profesor Amado Cervo en octubre de 2010.
7
Esta explicación también es respaldada por el ministro Joâo Mendes Pereira, Coordinador General
Ecomico de América del Sur (IIRSA/COSIPLAN) en entrevista realizada el 09 de noviembre de 2011.
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constituyendo su acervo histórico. Desde el impulso modernizador de la sociedad en la
cada del treinta, la diplomacia brasileña fue reflejando la ideología de la pluralidad
étnica y cultural en su discurso. Ese sustrato le sirvió para la defensa de principios de
conducta y valores inherentes a la potica exterior que le dieron un carácter de
permanencia. En palabras de Cervo,
“A forma como o discurso diplomático apropiou-se de conceitos
derivados da ideologia da identidade nacional pluralista se exposta
através da referência aos termos lusitanismo, raízes africanas,
ecumenismo e universalismo para se concluir sobre a ligaçâo entre
multiculturalismo e política exterior no Brasil” (1995: 140);
actualmente, a estos conceptos se suma el sudamericanismo. Desde la perspectiva de
este autor, el universalismo como estrategia de la política exterior brasileña fue posible
por la incorporacn en el discurso de las cuestiones étnicas y culturales que sirvieron
para establecer lazos con aquellas comunidades con las cuales se compartían esos
rasgos.
Asimismo, destacamos que la estrategia universalista está acompañada de acciones
políticas pragmáticas. Esto se observa en el discurso brasileño cuando se sostiene que
los agregados culturales son reivindicados en la medida en que sirvan para consolidar
orientaciones externas. Así se observa que cada discurso sirvió a Brasil para establecer
relaciones dependiendo de quién era el interlocutor válido del contexto. De ello puede
inferirse que como Brasil cuenta con una de las poblacioness heteroneas del
globo, tiene el potencial de desempeñar el rol de puente entre los distintos continentes.
No obstante, hay que tener en cuenta que existen otras posturas con respecto a la
cuestión racial. Autores clásicos pendulan entre los más favorables a los más reacios a
la mezcla de razas. Oliveira Vianna planteaba la desigualdad de las razas para que el
africano tuviera una incidencia positiva en la generación de una civilización debía
“mezclarse” con la raza aria-; Gilberto Freyre (padre de la “democracia racial”
brasileña), por el contrario, ponderaba la contribución de los africanos a la formación
de la cultura brasileña. De Almeida Vasconcelos (2007) en su estudio sobre la cuestión
racial concluye que: la cuestión racial es delicada; las diferencias espaciales deben ser
tenidas en cuenta; en una sociedad muy “mezclada” es difícil “separar” los negros de
los mestizos y de los indios; la discusión sobre a cuestión racial coloca en una posicn
secundaria las desigualdades sociales del país, independientemente del color.
El segundo concepto clave es el desarme. En la década del cincuenta el embajador
Fácio propuso en la OEA la necesidad de destinar los recursos que se empleaban en el
mantenimiento del aparato militar a financiar el desarrollo ecomico a nivel regional
en ese momento se consideraba una falta de realismo proyectar el tema a nivel
mundial-. Fácio (1958) planteaba que la seguridad de los países de la región no estaría
amenazada ya que el Tratado Interamericano de Asistencia Recíproca (TIAR)
funcionaría como disuasión ante una posible agresión extra continental y, por lo tanto,
era innecesario mantener fuerzas militares superiores a las que la seguridad interna
exigía. Cervo (1995) sostiene que esta idea de Fácio, es un subsidio teórico al
pensamiento diplomático brasileño. De esta forma, se observa no sólo la necesidad de
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desmilitarizar la región, sino también en que esos recursos sean destinados a otras
áreas más provechosas para el desarrollo social. En esos términos, también fue
planteado, en la XVIII Sesión Ordinaria de la Asamblea General de Naciones Unidas de
1963, el famoso discurso del ministro Araújo Castro sobre las 3 D’s
8
, que calaría hondo
en la tradición diplomática brasileña.
“A luta pelo Desarmamento é a própria luta pela Paz e pela igualdade
judica de Estados que desejam colocar-se a salvo do medo e da
intimidaçâo (de Seixas Corrêa, 2007: 173).
A partir de ese momento, en el discurso y en la pctica, la diplomacia brasileña se
valdría de este recurso para demostrar su política no confrontacionista.
Sin embargo, cabe aclarar que esta situación se vio comprometida con la llegada de la
etapa más activa del progreso nuclear que vino de la mano de la Doctrina de Seguridad
Nacional y los gobiernos militares y la histórica situación de rivalidad con Argentina.
Esta rivalidad se manifes principalmente a través de dos acontecimientos claves. Por
un lado, en la Cuenca del Plata que tuvo como escenario las aguas compartidas del río
Paraná, donde se sucedieron algunos desentendimientos en el contexto de los
proyectos de construcción de los diques de Itaipú (Brasil) y Corpus (Argentina) en los
años setenta. El puntapié inicial para revertir esta situación se dio con la firma del
Tratado Tripartito en 1979. Por otro lado, esta competencia se puso en evidencia a
través de la carrera armamentista y nuclear que comenzó a transitar el camino de la
cooperación recn con la firma del Acuerdo de Cooperación bilateral para el Desarrollo
y la Aplicacn de los Usos Pacíficos de la Energía Nuclear en 1980. A partir de la
década del ochenta esta rivalidad desaparece, entre otros factores, debido al proceso
de redemocratización en ambos países que se complementa con los diversos
mecanismos de integración regional, especialmente, el MERCOSUR. Si bien en el
ámbito estrictamente nuclear se generaron los momentos de mayor tensión entre
ambos países, tambn en fue el espacio donde se establecieron las primeras Medidas
de Confianza que desembocarían, una vez llegada la democracia, en la consolidación de
lo que consideramos un proceso de Seguridad Cooperativa. Posteriormente a la llegada
de la democracia en ambos estados llegarían también las adhesiones a los tratados de
no proliferación nuclear. A modo de ejemplo señalamos: la adhesión al Tratado de
Tlatelolco, al Tratado de No Proliferación Nuclear, la firma junto con Argentina del
gimen de Control Misilístico (MCRT), la firma de la Declaración del MERCOSUR como
zona de paz y libre de armas nucleares y de destruccn masiva y la Declaración de la
Zona de Paz y Cooperación del Atlántico Sur, entre otras. De esta forma, si bien es
cierto que existió un período álgido en lo que al desarrollo nuclear respecta, tambn es
cierto que fue durante un corto período de tiempo y bajo regímenes de facto.
En lo que atañe al tercer enunciado por Cervo la integración- destacamos que éste
constituye un issue infaltable en el discurso ya que se han llevado a cabo múltiples
acciones para concretar la integración regional a lo largo del tiempo. Esta política
permanec, independientemente de los vaivenes a los que estuvieron sujetos los
procesos de integración latinoamericanos.
8
Desarme, Desarrollo y Descolonización.
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En la década del cincuenta, el programa de gobierno de Kubitschek daba prioridad al
esfuerzo de industrialización, considerado fundamental para el desarrollo ecomico del
país. El entendimiento entre Kubitschek y el resto de los mandatarios de la región
especialmente Frondizi- no sólo fue en el plano económico, sino también en el político.
Cuando el presidente brasileño promovió la llamada Operación Pan-Americana, el
argentino le dio todo su respaldo; en las Conferencias Pan-Americanas, ambos
defendían la idea de que la mayor amenaza para nuestros países no estaba en las
potencias extra-continentales, sino en el subdesarrollo. Ese clima de cooperación
posibilitó el surgimiento de la Asociación Latinoamericana de Libre Comercio (ALALC),
primer proceso de integración de la región. En este contexto se enmarcaron las
definiciones de la Comisión Económica para América Latina (CEPAL), y particularmente,
de la Teoría del Desarrollo formulada por Raúl Prebisch cuyas recomendaciones fueron
adoptadas por los países de la región. De este modo, el objetivo central de los procesos
de integración regional fue apoyar el modelo de Industrialización por Sustitucn de
Importaciones, que debía ser impulsado por el Estado. Es así como en los años sesenta,
la integracn ecomica regional fue vista como un instrumento funcional a la
squeda de un desarrollo concebido como una etapa posterior al subdesarrollo. Bajo
esta concepción, la integración ecomica regional era una estrategia para alcanzar la
ampliación del mercado interno y fomentar la industrialización en los países de América
Latina. Esta integración fue caracterizada como introvertida y cerrada
9
Los objetivos de la ALALC fueron limitados, sin embargo en los primerosos se pudo
observar un aumento del intercambio entre los países miembros como producto de la
reducción de los gramenes a bienes que no originaban resistencia. Las negociaciones
se estancaron a la hora de reducir los aranceles a modo de alcanzar lo esencial del
intercambio. Tampoco se avanzó sobre la reducción de las restricciones cuantitativas ni
sobre acuerdos de complementación industrial. Por ende, la supremacía del
proteccionismo, los regímenes autoritarios que se sucedieron en lacada posterior en
toda América Latina, las intervenciones burocticas ineficientes, las percepciones de
ganancias asimétricas entre los miembros y la inestabilidad política y económica
contribuyeron al fracaso del esquema.
(Van Klaveren,
1992, 64).
A pesar de sus escasos avances, la experiencia de la ALALC fue la piedra fundacional
sobre la cual se asentó la ALADI. Dicha institucn se constituyó, a partir de 1980,
como el punto de acercamiento de los países que en la actualidad conforman la
Comunidad Andina
10
9
Se entiende por introvertida una integración económica que mira hacia adentro y está abocada a
solucionar los problemas de demanda interna que tienen los países no desarrollados. Fue cerrada pues se
instrumentó sobre la base de los procesos de sustitución de importaciones que pretendieron dinamizar la
industria nacional.
, los miembros del MERCOSUR, Chile y México. La transformación
de la ALALC en ALADI respondió a la necesidad de dar un nuevo marco a la integración
latinoamericana. Bajo este nuevo esquema se implementaron acuerdos de nueva
generación que traspasaron la dimensn comercial para incorporar la dimensión
potica. De este modo, se abrió una nueva etapa que se caracterizó por asimilar en un
esquema pragtico, la heterogeneidad de la región y canalizar institucionalmente la
vocación integracionista de la región dentro de un marco flexible. Sin compromisos
10
La Comunidad Andina (1996) deriva del Pacto Andino (1969) y está conformada por Bolivia, Colombia,
Ecuador, Perú y Venezuela.
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cuantitativos preestablecidos, contuvo elementos necesarios para que el esquema
pudiera evolucionar hacia etapas superiores de integración económica y alcanzar, en
último término, el objetivo del mercado común latinoamericano. En relación con la
ALALC, la ALADI apareció como una institución más abierta ya que previó la
participación de países miembros en acciones parciales con países no miembros, así
como la participación de la Asociación en los movimientos de cooperación horizontal
entre países en vías de desarrollo.
A mediados de la década del ochenta, también se sentarían las bases para el proyecto
de integración regional más ambicioso de América Latina, el Mercado Común del Sur
(MERCOSUR). En primer lugar, factores de orden sistémico influían en una perspectiva
gubernamental de acercamiento entre los países de América Latina: la crisis de la
deuda, la crisis centroamericana, y la agudización del conflicto Este-Oeste.
Considerando dichos factores, el gobierno brasileño se proponía favorecer la integración
latinoamericana. Así, la Declaración de Iguazú, firmada en 1985 por Alfonsín y Sarney,
aparece como el primer paso en dirección a un relanzamiento de la relación bilateral. El
29 de julio de 1986, los mandatarios suscribieron el Acta para la Integración Argentino-
Brasileña en Buenos Aires, y el 10 de diciembre el Acta de Amistad Argentino-Brasileña
en Brasilia. Finalmente, esta etapa se completaría con el Tratado de Integración,
Cooperación y Desarrollo de 1988, ratificado por ambos congresos en 1989.
La década del noventa se inaugura con las amplias reformas estructurales
recomendadas por el Consenso de Washington y de allí surge el llamado nuevo
regionalismo que será adoptado en los procesos de integración latinoamericanos tal es
el caso del MERCOSUR. El principio del Regionalismo Abierto supuso múltiples cambios
respecto de la concepción de los procesos de integración y de las prácticas que se
adoptarían para hacerlos operativos.
El Tratado de Asunción fue firmado el 26 de marzo de 1991 entre los cuatro Estados
Partes Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay. El objetivo de este acuerdo era la
conformación de un mercado común. Para ello trazaron una estrategia de integracn
gradual que supuso, primero, el establecimiento de una Zona de Libre Comercio entre
1991-1994 y la constitución de la Unión Aduanera a partir de 1995. Cabe señalar que
los cuatro socios han experimentado múltiples problemas que dificultaron el
cumplimiento pleno de las dos etapas mencionadas.
Independientemente de los análisis que puedan realizarse sobre la eficacia del
MERCOSUR, cabe destacar que en rminos geoeconómicos, la integración regional ha
permitido y ampliado la cooperación entre nuestros países haciéndolos más fuertes a
escala mundial. Así, en las negociaciones del proyecto ALCA, los países del MERCOSUR
negociaron en bloque - a instancias de Brasil y su propuesta de Building Blocks en
contraposición a la sugerencia norteamericana de negociaciones Step by Step -, lo que
les confirió un impacto mayor en las negociaciones que si cada país hubiera actuado de
forma individual. Asimismo, la integración ha ayudado a los países democráticos a
sellar fuertemente la paz ganada en las fronteras con una tradición de conflicto
(creando la Zona de Paz y Cooperación), como así también a proteger las democracias
mediante la cláusula democrática (Protocolo de Ushuaia de 1996). Estos logros del
gobierno de FHC se realizaron bajo el supuesto de que la formación de bloques de
integración constituían la única salida de los países subdesarrollados ante los riesgos de
la globalización. De esta manera, como ocurrió con casi todos los estados
latinoamericanos, la Argentina con el presidente Carlos Menem y Brasil con Fernando
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Collor de Melo, Itamar Franco y FHC abandonaron el paradigma del Estado desarrollista
adoptando el paradigma neoliberal. Consecuentemente, se reformularon las
concepciones y las poticas gubernamentales dominantes en el pasado, se
abandonaron las estrategias de sustitución de importaciones, se reformuló el papel del
Estado y de las relaciones económicas y comerciales internacionales de los dos países,
y se adoptó la interpretación según la cual todos los problemas eran de naturaleza
puramente económica. De esta forma, la integración regional fue utilizada como
instrumento de política eficaz para intensificar la liberalización comercial, y reducir cada
vez s el promedio de los niveles de protección que es lo que exigían las políticas
neoliberales. De entre las amplias reformas estructurales, surge el llamado nuevo
regionalismo o Regionalismo Abierto que será adoptado en los procesos de integración
regional latinoamericanos. Es en este marco en el que debe entenderse la firma no sólo
del Tratado de Asunción de 1991, que dio comienzo al MERCOSUR, sino también, ys
importante, al Protocolo de Ouro Preto de 1995 que puso finalmente en marcha sus
instituciones y la creación del arancel externo con. A diferencia que en los pses
vecinos, Brasil no sufrió contrapesos, sino que se visualizaron reacciones positivas de la
economía a la apertura económica. El hecho de ser la economía más grande de
Sudamérica generó asimetrías entre sus otros socios que todavía penetran el
planeamiento de la integración.
A partir de la administración de Lula Da Silva, se analiza la condición periférica del
Cono Sur con un criterio optimista, en la medida en que los países de la región
buscaran asociarse para manejar, conjuntamente, las situaciones que ellos mismos
generaran entre sí y con terceros, como atambién las provocadas por terceros y que
impacten en las sociedades y economías nacionales. En el 2004, Brasil impulsó lo que
hoy se denomina UNASUR, ampliando a toda América del Sur la importancia conferida
anteriormente sólo al MERCOSUR. Dicho esto, cabe resaltar la importancia de la
diplomacia en la génesis de los procesos de integración. Como plantea Cervo (2008),
aunque los líderes políticos son los creadores visibles de los procesos de integración,
éstos pueden llevarlos a cabo y sólo sí- las fuerzas sociales esn directamente
involucradas, y la diplomacia es la encargada de crear conciencia en torno de la misma.
La integración como tema permanente de la agenda de la política exterior de Brasil se
observa en su participación en las múltiples instancias y procesos, tales como las
mencionadas.
En todos estos casos la diplomacia tuvo una importancia superlativa. El Imperio dejó a
la diplomacia como herencia que se transmite ‘genéticamente’ en la construcción del
Estado. De este modo, Itamaraty adoptó una posición de fortaleza en los asuntos
externos, informando y formando las opiniones de política exterior con suficiencia. En
palabras de Melo:
“O fortalecimento do Itamaraty, enquanto corpo profissional, tem suas
origens na própria história da formaçâo do estado Nacional. Observa-se
que a instituiçâo adquiriu, uma autonomia crescente em relaçâo ao
sistema social e ao próprio aparelho estatal (…) (2000: 58).
Así, la conjuncn de autonomía y centralización posibilitó que el proceso decisorio
alcanzase un alto grado de unidad. El sólido consenso sobre la política exterior, la
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aprobación de Itamaraty por segmentos claves como las fuerzas armadas y los grupos
empresariales, y la articulacn funcional con otras agencias federales contribuyeron
significativamente para formatear el papel central de Itamaraty en la formulación de la
potica externa brasileña (Russell, 1990). La aprobación histórica proviene del hecho
de que el foco de la agenda de la política externa ha estado concentrado en las
prioridades de desarrollo del país.
El pensamiento estratégico
El Embajador Meira Penna plantea que Brasil es el producto de la diplomacia. Aunque
ésta nos parece una aseveración un poco extrema, compartimos que el rumbo de la
potica brasileña en sí, estuvo marcado por grandes estrategas y, entre ellos,
encontramos una gran cantidad de diplomáticos. Por este motivo, creemos que el
estudio de la identidad política que subyace en el corpus del pensamiento de los
diplomáticos de Itamaraty, y con él de sus grandes personalidades, es fundamental
para comprender la acción externa brasileña y su vinculación con los objetivos políticos
internos brasileños.
La historia de las ideas políticas en Brasil es pródiga en imágenes y en conceptos
profundos. En este apartado no hablaremos de las ideas políticas en acción, tal como
las materializan los estadistas que se consideran representantes del pueblo, sino de
aquellas ideas políticas que pudieron tener influencia en estos estadistas para terminar
finalmente en acciones, es decir, lo que había de esencial en el consenso de base de
pensamiento político-estratégico nacional. sicamente, como plantea Severino Cabral
(2004), se trata del estudio de ideas político-estratégicas contemporáneas que analizan
un conjunto de conceptos sobre Brasil, elaboradas por intelectuales instalados en el
alto mando político del país, y volcadas a la creación de una respuesta nacional a los
desafíos del orden tanto doméstico como internacional.
Estudiar el pensamiento elaborado por estos intelectuales
“(…) pode parecer um exercício anacrônico de erudiçâo pouco o nada
relevante (…) No en tanto, parece cada vez mais próxima de nosso dias
a agenda política desenvolvida entâo por alguns dos principias
personagens que asomaban o cenário con ideáis e problemas
relacionados com o Ser nacional e sue destino” (Cabral, 2004: 15).
El pensamiento de estos políticos e intelectuales tiene hoy una relevancia asombrosa
con relación al desarrollo interno del país así como con respecto a su actuación en el
escenario internacional.
Pensamiento estratégico es definido por Calvario dos Santos como aquella
“Atividade intelectual voltada ao preparo e aplicaçâo do Poder Nacional
para alcançar ou manter objetivos superando óbices de toda ordem”
(2003: 41).
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Vol. 4, n2 (Noviembre 2013-Abril 2014), pp. 90-109
La perspectiva de la tradición en la identidad institucional.
El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
Gisela Pereyra Doval
Según Severino Cabral
11
De esta forma, independientemente de quién sea el pensador, lo importante es que sus
conceptos hayan sido tenidos en cuenta para expresarse en acciones. Así, el Barón de
Rio Branco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, José Honorio Rodrigues, Hélio
Jaguaribe, Golbery do Couto e Silva, Fernando Henrique Cardoso, João Augusto de
Araújo Castro, San Tiago Dantas, Gerson Moura, Ramiro Saraiva Guerreiro, Celso Lafer,
Samuel Pinheiro Guimarâes, son algunos de los exponentes de una idea de Brasil país,
que luego, de alguna forma, fue volcada a las acciones. La articulación entre estos
poticos-intelectuales que tuvieron pensamientos muy dimiles entre sí fue que
pensaron al Brasil de su época, sin embargo, sus ideas prevalecen a los largo del
tiempo.
, para definir ‘pensamiento estratégico’, en primer lugar, hay
que reflexionar sobre la existencia de un sistema de pensamiento, o sea, de
un conjunto de ideas sistematizadas en un cuerpo teórico que expresan un campo de
saber determinado acerca de hechos y datos. El sistema de pensamiento difiere de una
simple concepción del mundo o ideología ya que admite una formalización epistémica
capaz de generar conjeturas y previsiones susceptibles de prueba o demostraciónun
ejemplo de sistema de pensamiento serían las doctrinas económica liberal o socialista
marxista sobre a naturaleza de la sociedad y del Estado. Segundo, cuando el sistema
de pensamiento se apoya en cálculos de costos y beneficios para figurar proyecciones
de escenarios posibles para determinada sociedad, los cuales implican la posibilidad de
competición, conflicto, aproximación y/o cooperación con otras sociedades, a nos
ubicamos en una situación estratégica, y el pensar está en función de la estrategia,
creando así un campo de pensamiento que sirve de background para el nacimiento de
una teoría estragica. La perduración en el tiempo consolida esa doctrina y la hace un
modelo a seguir para otros pensamientos.
En tercer lugar, planteamos que tanto determinados personajes de la historia como
objetivos establecidos en el comienzo de la experiencia independiente de Brasil, han
contribuido notablemente a dotar de sentido a la accn presente de Itamaraty,
tomando premisas, percepciones e intereses permanentes y adaptándolos a la
actualidad, lo que según Aboy Carlés constituye parte de toda identidad política.
Nascimento (2005) explica que los intelectuales estuvieron presentes en momentos que
expresaron profundas modificaciones en la historia brasileña. En la década del treinta
que a nuestro juicio inaugura el Estado moderno en Brasil-, los intelectuales decidieron
direccionar su actuación para el Estado, percibido a partir de esa década como la
representación superior de la idea de nación y el cerebro capaz de coordinar y hacer
funcionar armónicamente todo el organismo social. De esta forma, el intelectual de la
época tenía una función social que pronunciaba que era preciso juntar el pensamiento y
la acción. Fue un período en el que se intensificó el pensamiento nacionalista. La
consecuencia en la política exterior fue un importante cambio en la representacn de
los intereses nacionales de Brasil. El pragmatismo y la desideoligización tuvieron como
contracara -en clave de interés nacional- un objetivo central: obtener insumos para el
desarrollo nacional. Otro quiebre histórico fue la década del setenta con los gobiernos
militares, en los cuales se resaltó la idea de que la política exterior brasileña debía ser
11
Entrevista concedida por el Dr. Severino Cabral en octubre de 2010 en la Escuela Superior de Guerra de
Rio de Janeiro.
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La perspectiva de la tradición en la identidad institucional.
El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
Gisela Pereyra Doval
actualizada para conferir a Brasil un papel de destaque en el mundo la idea de Brasil
potencia-. El último período que queremos resaltar, en el cual nos extenderemos, es el
gobierno de Lula da Silva, cuyo ministro de relaciones exteriores, Celso Amorim ha
profundizado tres ideas fuerza. La primera es el sentimiento de pertenencia a
Sudarica, la sudamericanidad. De esta primera idea fuerza se desprende la segunda:
el liderazgo regional. Finalmente, este liderazgo regional intenta reflejarse s allá de
las fronteras sudamericanas para jugar a nivel global. En palabras del mismo Amorim:
“Ao mesmo tempo em que nos percebemos latinoamericanos, e mais
especificamente sul-americanos, reconhecemos a singularidade
brasileira no contexto mundial. Não há nisso incompatibilidade alguma.
A posão do Brasil como ator global é consistente com a ênfase que
damos à integração regional e vice-versa. Na realidade, a capacidade de
coexistir pacificamente com nossos vizinhos e contribuir para o
desenvolvimento da região é um fator relevante da nossa projeção
internacional” (2007: 7-8).
Brasil se ha convertido bajo la dirección del protagonismo y el carisma de Lula Da Silva,
en una potencia emergente. A esa empresa contribuyen, también, una diplomacia
personalista, el acompañamiento de un ministro de Relaciones Exteriores con
experiencia y con una fuerte sintonía con el presidente. Esta identidad internacional ha
llevado al país a erigirse como portavoz de los estados del Sur dentro de los
organismos internacionaless importantes, como así también a constituirse como
‘creador’ de instituciones regionales.
El protagonismo creciente que ha adquirido el país, su rol global y regional, y, en
consecuencia, su inserción en el mundo, derivan de una idea de destino manifiesto
(Almeida Neves, 1995). Ésta es, en parte, el resultado de la construccn de su
identidad nacional. Como plantean Busso & Pignatta (2008) aquellos países cuya
identidad nacional actuó como elemento estructurante de su potica exterior, han
logrado mejores resultados en su insercn internacional que aquellos estados en donde
la identidad es más débil.
De la mano de Amorim, a nivel regional, Brasil ‘utilizó’ su condición territorial para
fortalecer su posición con respecto a sus movimientos en el continente y en el mundo.
Las alusiones a lo regional, que son parte de la identidad del país se refuerzan en el
siglo XXI, cuando América del Sur pasa a representar la plataforma regional que
referencia la estrategia de inserción internacional de Brasil
12
(Freitas Couto, 2009).
Como plantea Samuel Pinheiro Guimarâes otro de los ideólogos de la administración
Da Silva:
“América do Sul é a circunstância inevitável, histórica e geográfica do
Estado e da sociedade brasileira” (2002: 146).
12
En la Reunión Presidencial del Grupo Río de 1993, el presidente Itamar Franco propuso la creación del
Área de Libre Comercio Sudamericana (ALCSA). Así, el Grupo sirvió para el primer ensayo efectivamente
sudamericano de la política exterior brasileña. En este momento, Amorim apuntaba que con la iniciativa
del ALCSA se iniciaba la construcción política de América del Sur.
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El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
Gisela Pereyra Doval
Como fue planteado, la absorción de una sudamericanidad en la identidad nacional de
Brasil significó la construcción de iniciativas que fortaleciesen esa dimensión, las cuales
se vieron reforzadas con la gestión de Amorim.
En una dimensión estructural, los aportes de las distintas épocas pueden ser vistos
parafraseando a Weber - en un armonioso equilibrio de convicción y responsabilidad.
En otras palabras, la máxima responsabilidad externa está atada al juego de interés
nacional para consolidar un proyecto nacional de desarrollo interno fuerte y de
presencia internacional autónoma. Las convicciones actúan allí como aportes
subsidiarios como partes de un todo - que suman a una identidad, en grandes trazos,
única y que se convierte en el sustento de la continuidad política.
La evolución Orgánica
13
La evolución orgánica que dio, posteriormente, lugar a la creación del Ministerio de
Relaciones Exteriores como tal fue compleja y accidentada. Antes inclusive de la
independencia brasileña, el manejo de los asuntos exteriores del imperio pa por
varias modalidades. A partir del año 1822, Borges Cheibub (1984) hace un seguimiento
de la evolución del órgano diplomático por excelencia, dividiendo en tres momentos la
historia del proceso diplomático en Brasil: el período patrimonial (diplomacia imperial)
de 1822 a 1902 -; el período carismático (el Ban de Rio Branco) - 1902 a 1920 -; y
el período burocrático racional - 1920 a la actualidad. Tomaremos estas tres categorías
y describiremos brevemente el proceso de burocratización del Ministerio ya que en su
evolución encontramos la explicacn de la organicidad.
del Ministerio
En el primer período, Brasil contaba con una estructura diplomática heredada de
Portugal. En este punto, la política de reclutamiento apuntaba a que la tarea
diplomática fuera ejercida por miembros de familias de alcurnia, allegadas al Estado y
ligadas a él por lazos comerciales. Esta característica no permitía que existieran límites
claros entre los intereses individuales y los colectivos. Esto y la insuficiencia
financiera del Imperio - no permitió un alto grado de profesionalización de los cuadros
diplomáticos de la época. Sin embargo, estas características per se no consideradas
buenas, arrojaron buenos resultados: la elite, previamente socializada en la tradición
portuguesa, no era heterogénea.
“Foram antes a estabilidade, coesâo e homogeneidade da elite imperial
que diferenciavam o Brasil dos outros países da América Latina - que
garantiram ao país supremacía diplomática em relaçâo aos países
vizinhos (...)” (Borges Cheibub, 1984: 118).
Lo más interesante que plantea Cheibub es que, durante todo el período, existió un
consenso intra-elite que fue lo que permitió la continuidad de la política exterior. En
este período, el objetivo de generar una estructura burocrática propia que reclutara
13
Según Oliveira Castro (2009), el proceso que describiremos puede asemejarse al desarrollo de un
organismo vivo.
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diplomáticos - aunque en la primera etapa se adoptaran características prebendarias -
creó los antecedentes más importantes del servicio diplomático, que se afianzaría en
los períodos subsiguientes.
El paso del Imperio a la Republica no implicó grandes alteraciones en la política exterior
brasileña, como lo plantean varios autores (Borges Cheibub, 1984; Lafer, 2002;
Pinheiro, 2004). Sin embargo, Borges Cheibub (1984) realiza una distincn entre el
período imperial y el momento carismático debido a la figura del Barón de Rio Branco y
a la fuerza simbólica que éste personaje cobraría a través de los años para Itamaraty.
El llamado legado del Barón posee una significación más amplia por ser responsable de
la afirmación de principios y valores que sean posteriormente reconocidos como la
base axiológica de la acción externa del país (Sénéchal de Goffredo, 2005).
El Barón de Rio Branco imprimió un sello distintivo en la manera de hacer la diplomacia
a partir de sus gestiones, particularmente a través del símbolo de esprit de corps que
inculcó en Itamaraty. Su gestión puede ser considerada como el marco simbólico
fundamental en la concepcn moderna del Ministerio de Relaciones Exteriores. Como
plantea Celso Lafer:
“(…) la dirección que orientaba la visión de futuro de Rio Branco era el
desarrollo como medio de reducir el diferencial del poder, responsable
de la vulnerabilidad sudamericana” (2002: 102).
Por otra parte, como plantea Barros (1984), la originalidad de la situación del Barón
radicó en, con la excepción de las Fuerzas Armadas, ningún otra agencia burocrática
del gobierno brasileño genesemejante símbolo histórico tan poderoso para ayudarlo
a actuar coherentemente y sortear las incertezas de la competencia burocrática actual.
Rio Branco fue el político que inició el viraje definitivo. La historia diplomática a partir
de su intervención se empieza a contar de forma distinta al adquirir el Ministerio un rol
protagónico en la burocracia republicana.
Tras la muerte de Rio Branco terminaría la llamada Belle Epoque de la diplomacia y
comenzaría la fase moderna o burocrática-racional de la historia de la organización del
Ministerio de Relaciones Exteriores con las consecuentes modificaciones administrativas
y reglamentaciones que darían lugar a la organización actual. Así, este último período
se centra en la reforma burocrática que convirtió a Itamaraty en la institución que
conocemos hoy en día. Cabe aclarar que, como plantea Borges Cheibub el proceso de
transformación burocrático-racional de Itamaraty fue propio de la modernización
general del Estado del siglo XX - particularmente a partir de 1930 -, momento en el
cual se aceleran las tendencias a la centralización y burocratización de toda la
administración pública.
De este modo, Itamaraty viene fortaleciéndose a lo largo de la historia de la formación
del Estado nacional brasileño, entre otras cosas, debido a las características del propio
proceso de formación del Estado y a algunos factores relativos a la diplomacia en sí y a
las instituciones diplomáticas. Así, los diplomáticos tienden a adquirir autonomía con
respecto al sistema lo que les confiere una creciente iniciativa en cuanto a la
formulacn e implementacn de la política exterior, al mismo tiempo que se aseguran
una cierta capacidad de asegurar su continuidad (Borges Cheibub, 1984).
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El caso del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil
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A modo de cierre
En este trabajo hemos intentado analizar al Ministerio de Relaciones Exteriores como
“significante vacío”, lo que posibilita la tradición de continuidad de Itamaraty. Para ello,
describimos determinadas constantes de potica exterior, detallamos algunas aristas
del pensamiento diplomático, e hicimos una breve descripción de su evolución ornica.
Asimismo, creemos que los funcionarios de Itamaraty la elite diplomática -, ha
generado la tendencia de actuar en una misma dirección, para proteger y profundizar
su identidad compartida identidad institucional - a través de la aplicación de estas
directrices.
En Itamaraty existe un componente estructural por sobre el componente político, el
cual, independientemente de los cambios contextuales, mantiene determinadas
directrices, principios, valores y objetivos. La potica exterior se desarrolla de tal forma
que las metas orgánicas son más importantes que las gubernamentales. Al margen de
las críticas que puedan hacerse a algunas agencias del Estado, cabe aclarar que
Itamaraty actúa como bolsô de eficncia en donde el esprit de corp le permite ser una
agencia que mantiene una coherencia a través del tiempo, quizás por el sentimiento de
pertenencia de los agentes que la componen - que hace que la identidad compartida
sobrepase a las identidades individuales. Acordamos con Arbilla en que la presencia de
una corporación diplomática con una fuerte orientación institucional propia y un alto
grado de control sobre la mayoría de los canales de acceso al proceso de formulación
de la política exterior, inhibió las rupturas conceptuales a pesar de los cambios
contextuales. Éstos se han traducido en una actualización de los principios
tradicionalmente sustentados, como sostenía Azeredo da Silveira, “la mejor tradición de
Itamaray es saber renovarse”.
Recapitulando, la identidad política de Itamaraty se define a través de la
burocratización weberiana como significante vacío. Es esta burocratización la que
permite establecer una única identidad en la continuidad, con un alto grado de cohesión
corporativa. Tomando la práctica de articulación que plantean Laclau y Mouffe
planteamos que es, precisamente, esta burocratización de tipo weberiana la que
permite establecer esa modificación en los distintos elementos individuales que
reconduce los fragmentos a una unidad representada en una única identidad
institucional, que se evidencia en la manutención de un alto grado de cohesión
corporativa.
Cabe remarcar que, desde hace algunos años se plantea que no es más válida la
premisa del consenso positivo de las diversas tendencias político-ideológicas sobre la
potica exterior brasileña. En general, los críticos consideran que la actual política
externa es una emanación tardía del tercermundismo de la década del sesenta,
marcada por un antiimperialismo infantil, así como en las limitaciones en la capacidad
de liderazgo brasileño (de Almeida, 2006). A pesar de que estas opiniones en contra
complejizan la hipótesis del consenso, es innegable que refuerzan la hipótesis de la
coherencia y permanencia a lo largo de la historia del tratamiento continuo de ciertas
temáticas y percepciones. Teniendo esto último en cuenta, nos animamos a afirmar la
existencia de una identidad político-institucional única en el seno de Itamaraty.
Las modificaciones administrativas y organizacionales que ha sufrido el Ministerio de
Relaciones Exteriores como institución dan muestra de lo que Oliveira Castro (2009)
llama evolución ornica; esto es, que el Ministerio ha evolucionado y continúa
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haciéndolo conforme avanzan las necesidades planteadas tanto por la política
internacional como por la política doméstica brasileña.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 4, n2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 110-124
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO FEDERALISMO NA GESTÃO DA
PLURIDADE ÉTNICA EM ESTADOS MULTINACIONAIS
E NA PREVENÇÃO DE CONFLITOS
Daniel Rodrigues
dmrodrigues_296@hotmail.com
Professor Auxiliar Convidado em Relações Internacionais na Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (Portugal) e Investigador Integrado do
OBSERVARE da Universidade Autónoma de Lisboa.
Resumo
A existência de vários grupos étnicos, religiosos e/ou linguísticos cujos direitos não são
reconhecidos ou são continuamente violados cria situações de tensão cujas consequências
são imprevisíveis. Se, nalguns casos, aqueles grupos procuram de forma pacífica um mero
reconhecimento das suas particularidades, existem outros em que o recurso à violência tem
sido frequente. Conflitos como aqueles que assolaram os Balcãs ocidentais na década de
1990 ou que continuam a devastar regiões como o Cáucaso, a República Democrática do
Congo, a Nigéria ou o Myanmar encontram no factor étnico, associado nalguns casos à
questão religiosa, uma das suas principais causas.
Se é verdade que foram várias as soluções apresentadas com o objectivo de responder
positivamente às tensões inerentes à complexidade étnica de Estados multinacionais, não é
menos verdade que a existência desta variedade de modelos teórico-práticos nem sempre
conseguiu alcaar os objectivos pretendidos e, acima de tudo, o intuito de pôr cobro a uma
situação de paz muitas vezes negativa. Do direito das minorias ao federalismo, é possível
identificar princípios cuja pertinência e adequação a contextos que podem ser definidos
como sendo de paz formal é clara e inequívoca. Não deixa contudo de ser importante inserir
e enquadrar estes elementos em casos específicos, procurando com isto demonstrar que
cada caso é um caso e que a sua adaptação a uma situação precisa não invalida a sua
inadequação a outra aparentemente semelhante.
Torna-se, pois, fundamental levantar algumas questões que permitam tecer algumas
considerações sobre o papel que um modelo de organização política e administrativa como o
federalismo pode desempenhar, em parte como complemento ao direito das minorias,
enquanto instrumento de gestão da pluralidade étnica em Estados que podem ser definidos
como sendo multinacionais assim como na prevenção de conflitos étnicos.
Palavras chave:
Direito das minorias; federalismo; prevenção de conflitos; etnonacionalismo
Como citar este artigo
Rodrigues, Daniel (2013). "Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da
pluralidade étnica em Estados multinacionais e na prevenção de conflitos". JANUS.NET e-
journal of International Relations, Vol. 4, N2, Novembro 2013-Abril 2014. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_art6
Artigo recebido em 23 de Setembro de 2013 e aceite para publicação em 17 de Outubro
de 2013
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Vol. 4, n2 (Novembro 2013-Abril 2014), pp. 110-124
Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica
em Estados multinacional e na prevenção de conflitos
Daniel Rodrigues
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO FEDERALISMO NA GESTÃO DA
PLURIDADE ÉTNICA EM ESTADOS MULTINACIONAIS
E NA PREVENÇÃO DE CONFLITOS
Daniel Rodrigues
Introdução
Este artigo pretende, tal como o título indica, tecer algumas considerações genéricas
sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica em Estados multinacionais
e, por conseguinte, na prevenção de conflitos cuja justificação resida em parte ou
totalmente em questões de etnicidade aliadas ao nacionalismo de um ou mais actores
em confronto. A questão é tanto ou mais complexa quantas as implicações que esta
tem a vários níveis da organizão política e administrativa de um Estado.
Assim, é fundamental ter presente que uma abordagem a esta problemática envolve,
não apenas uma apresentação do modelo federal como uma solução viável na
prevenção de conflitos de índole etnonacional, mas também um entendimento das
dificuldades encontradas por Estados multinacionais na gestão da sua pluralidade
étnica. Por conseguinte, o artigo procura numa primeira fase analisar esta questão à
luz do direito das minorias e da sua aceitação e aplicação por este tipo de Estados para
depois passar à observação do modelo federal, assumindo que o não-respeito do direito
das minorias aumenta o risco de um conflito étnico em contextos onde a tensão étnica
está latente.
O artigo não procura definir o conceito de federalismo nem tão pouco tem a intenção
de apresentar o modelo federal como o único desfecho possível em contextos de tensão
étnica. O seu objectivo passa pela apresentação de elementos que possibilitem avaliar
as potencialidades deste modelo, tendo presente as suas vantagens na promoção de
uma maior igualdade entre grupos étnicos no seio do mesmo Estado.
Estados multinacionais e o reconhecimento das idiossincrasias ao nível
interno
Se a criação de Estados multinacionais obedece às mais diversas razões (históricas,
económicas, culturais, religiosas), a sua sobrevivência constitui uma tarefa complexa,
independentemente do tipo de estrutura estatal existente (cidade-Estado, monarquia,
república, império ou outra).
Segundo Jennifer Jackson Preece,
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Considerações sobre o papel do federalismo na gestão da pluralidade étnica
em Estados multinacional e na prevenção de conflitos
Daniel Rodrigues
[a]s minorias o são mais do que etnonações que não conseguiram
alcançar o objectivo final do nacionalismo étnico a independência em
relação ao seu próprio Estado-nação e, por conseguinte, existem
dentro das fronteiras políticas do Estado de outra nação; a sua própria
existência é uma desconfortável recordação da ʽcrença na
autodeterminação nacionalʼ na sociedade internacional […]. Em suma, o
problema das minorias só surge no contexto do sistema de Estados-
nação e é na verdade um resultado directo de anomalias e
inconsistências no mesmo. (1998: 29)
São estas anomalias querios Estados têm tentado corrigir, na maioria dos casos
após o surgimento de movimentos internos reivindicando a pertença a essas
“etnonações”, ou “nações sem Estado”. As últimas décadas do século XX viram o
desenvolvimento de soluções devolucionárias enquanto respostas estatais a tendências
centrífugas internas, nomeadamente no espaço europeu. O Reino Unido, a Espanha, a
Itália, a Bélgica e até a França são exemplos de democracias ocidentais que deram um
passo nesse sentido ao optarem por uma restruturação política e administrativa com o
objectivo claro de pôr um termo às reivindicações de cacter etnonacionalista e
etnoregionalista. Semelhantes na sua capacidade de destabilização da harmonia e da
unidade do espaço nacional, estas reivindicações são distintas e específicas em termos
de percepção. E porque cada Estado tem os seus próprios problemas, a solução
encontrada é também ela diferente consoante os casos e as especificidades locais. A
profícua bibliografia sobre conflitos étnicos e arranjos institucionais, enquanto
reguladores das tensões entre o Estado e os diferentes grupos que o compõem numa
base de rejeição da violência, tem apresentado inúmeras soluções visando a
prevenção, a gestão e a resolução de conflitos. E se alguns autores se limitam a uma
refencia genérica das possibilidades existentes, outros não hesitam em apresentar
listas intermináveis. De forma sucinta, podemos afirmar que a resolução assim como a
prevenção de conflitos étnicos através da elaboração de arranjos institucionais passa
pela criação de mecanismos como sejam um auto-governo territorial e não territorial, a
divisão de poder aos níveis local e central, instituições transfronteiriças, a
paradiplomacia, ou medidas promovendo os direito(s) humanos e das minorias (Cordell
& Wolff, 2010: 87). Aprofundando estas opções, William Safran (1994) apresenta
várias políticas estatais que o próprio define como sendo de cariz positivista/pluralista;
federalismo segundo critérios étnicos; quase-federalismo e pseudo-federalismo;
autonomia local e/ou regional; consociação; descentralização funcional; rotação dos
cargos públicos; autonomia local e/ou descentralização funcional mista; representação
comunalista; representação legislativa garantida aos principais grupos etnoraciais;
ltiplos sistemas legais e tribunais, funcionalmente diferenciados; reconhecimento de
um estatuto de oficialidade ou co-oficialidade a várias línguas e institucionalização do
multilinguismo; acção afirmativa; distinção entre cidadania e nacionalidade;
distribuição de patronios; e, incentivo e subsidiação de criações culturais das minorias
étnicas. Outra solução passa pela adopção de poticas promovendo a autonomia não-
territorial, tamm conhecida por autonomia pessoal (ou cultural), sendo que esta se
baseia fundamentalmente no pensamento de Otto Bauer e Karl Renner (Bottomore &
Goode, 1978), dois pensadores austro-marxistas. Todavia, quaisquer que sejam as
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respostas estatais, todas procuram na descentralização territorial (e frequentemente na
federalização ou pseudo-federalização) a síntese entre os interesses dos poderes
central e locais (ou regionais), procurando ao mesmo tempo evitar que a resposta
venha a constituir uma base legal para novas reivindicações.
O direito das minorias como resposta às reivindicações das
“etnonações
Limitando a nossa análise ao contexto europeu, é possível verificar que a protecção das
minorias nacionais entrou definitivamente na esfera de intervenção de várias
organizações internacionais (por ex.: Conselho da Europa, UE, OSCE, Conselho dos
Estados do Marltico, Iniciativa Central Europeia). O papel desempenhado por estas
organizações tem sido objecto de estudo por parte de diversos autores que abordam a
questão do direito das minorias sob os mais diversos prismas (Pentassuglia, 2004;
Hogan-Brun & Wolff, 2003; Thornberry, 2001; Trifunovska, 2001a)
1
A protecção das minorias nacionais não é um fenómeno recente. Esta tornou-se, de
facto, um princípio internacionalmente reconhecido no final da Primeira Guerra Mundial,
com a definição dos Quatorze Pontos do presidente norte-americano Woodrow Wilson e
a sua adopção parcial pelas potências vencedoras. Contudo, e não obstante a
existência de várias convenções, como a Convenção-Quadro para a Protecção das
Minorias Nacionais, a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias, ou o
Instrumento da Iniciativa Central Europeia para a Protecção dos Direitos das Minorias,
nas quais se podem encontrar recomendações relativas à protecção das referidas
minorias, estas não são respeitadas na sua totalidade pelos seus Estados signatários.
De acordo com Trifunovska (2001), o Conselho da Europa defende a ideia segundo a
qual os indivíduos pertencentes a minorias têm vários direitos decorrentes dessa
condição. As minorias têm assim o direito ao reconhecimento enquanto tal por parte do
Estado em que residem; o direito de manterem e desenvolverem a sua própria cultura;
o direito de manterem as suas instituições educacionais, religiosas e culturais; e, o
direito de participarem enquanto sujeitos de pleno direito nas tomadas de decisão em
assuntos que lhes digam directamente respeito (2001: 146).
.
De entre as várias convenções europeias que abordam esta questão, a mais conhecida
é a “Convenção-Quadro para a Proteão das Minorias Nacionais” emitida pelo Conselho
da Europa em 1995 (COE, 1995). Dos quarenta e sete Estados-membros do Conselho
da Europa, apenas quatro não assinaram esta convenção, sendo França uma das raras
excepções
2
dado este país não reconhecer a existência de minorias no seu território. De
notar ainda que dos Estados que assinaram a Convenção-Quadro, apenas trinta e nove
a ratificaram
3
. Outro documento de grande importância relativo à protecção das
minorias, em particular em termos linguísticos, é a “Carta Europeia das Línguas
Regionais ou Minoritárias” (COE, 1992). Neste caso, existem apenas vinte e cinco
ratificações para oito assinaturas não seguidas de ratificação
4
1
A este respeito, ver também Rechel (2009); Packer (2005); Philips (2005); Alcock (2000).
. A não-assinatura assim
2
As outras excepções são Andorra, Mónaco e a Turquia.
3
Os países que não ratificaram a “Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais” são a
Bélgica, Grécia, Islândia e Luxemburgo.
4
A “Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias” não foi ratificada pelo Azerbaijão, França,
Islândia, Itália, Malta, Moldova, Federação Russa e Macedónia. Para além destes países, há quatorze que
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como a não ratificação da Carta prende-se com várias questões, desde a não existência
de minorias nacionais e, por conseguinte, de línguas regionais ou minoririas, a
queses de políticas linguísticas internas. Parece pois bastante claro que a existência
de documentos deste género não é suficiente para garantir os direitos legais das
minorias, pelo menos nos Estados não signatários, nem tão pouco que aqueles direitos
(legais) são respeitados pelos Estados signatários. As referências à violação dos direitos
das minorias ou ao não reconhecimento das mesmas é frequente não apenas na
bibliografia mas também na imprensa local e nacional de vários Estados, assim como
em relatórios de organizações internacionais dedicadas à protecção das minorias como
seja o caso da OSCE e do seu Alto-Comissário para as Minorias Nacionais, vários
centros de investigação
5
ou ainda organizações não-governamentais como a Freedom
House, a Minority Rights Group International e a Human Rights Watch. Os países
bálticos (em particular a Estónia e a Letónia) são com frequência confrontados com as
reivindicações das respectivas minorias russas. A minoria macedónia da Bulgária ainda
o obteve reconhecimento legal por parte das autoridades locais. Os polacos
continuam a ser alvo de discriminação por parte dos seus concidadãos lituanos apesar
de uma história comum, pautada por relações pacíficas entre ambas as comunidades.
Não queremos com isto afirmar que os direitos das minorias são o alvo de constantes
violações por parte dos Estados em questão, nem tão pouco estamos perante situações
de perseguição por motivos étnicos ou religiosos dignos dos pogroms da década de
1930 do século passado. O recente referendo sobre a oficialização da língua russa na
Lenia
6
O não-respeito de alguns daqueles direitos é uma realidade em determinados países,
mas não constitui necessariamente uma prática recorrente e persistente. Nas situações
em que os direitos das minorias são respeitados, pese a inexistência de documentos
legais com essa mesma finalidade, o Estado não signatário tem a possibilidade de
argumentar que o respeito das particularidades locais e regionais assim como das
identidades nacionais não necessita de qualquer vínculo jurídico-legal. Desta forma,
este seria completamente desnecessário quando confrontado com tradições de respeito
das minorias nacionais. A recusa em assinar e ratificar convenções internacionais (aos
níveis regional e global) não se resume a um conjunto de boas práticas mais ou menos
(mais de um quarto da população do país é russófona, sendo um terço da
população etnicamente russa) saldou-se por uma clara recusa desta pela maioria dos
votantes (75%). Parece óbvio que submeter os direitos das minorias ao voto popular
resulta com frequência na negação das mesmas. No caso letão, o resultado era
expectável, não só pelo passado histórico do país e pela existência de uma minoria
russa que é entendida como a consequência de uma política de desnacionalização da
Lenia por parte das autoridades soviéticas, mas também pelas suspeitas de
instrumentalização do referendo por Moscovo.
não a assinaram. É o caso dos três países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), Albânia, Andorra, Bélgica,
Bulgária, Geórgia, Grécia, Irlanda, Mónaco, Portugal, São Marino e Turquia.
5
De destacar o ECMI, ou European Centre for Minority Issues, sediado na cidade alemã de Flensburg.
6
As autoridades russas reagiram com indignação ao resultado do referendo através do ministro dos
Negócios Estrangeiros Aleksander Lukashevich. Segundo ele, os direitos dos russófonos estão a ser
desrespeitados pelo Estado letão, estando este a desrespeitar as suas obrigações internacionais
(
http://en.rian.ru/russia/20120219/171400820.html, último acesso a 14-VII-2013). Note-se que a
Letónia se encontra entre os países que não assinaram a “Carta Europeia das Línguas Regionais ou
Minoritárias”. O país assinou contudo a “Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais” em
1995, tendo-a ratificado uma década depois. A última resolução do primeiro ciclo de monitorização,
apresentado pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa a 30 de Março de 2011, refere-se às
dificuldades encontradas pelos cidadãos pertencentes às minorias nacionais nas suas relações com o
Estado devido ao não reconhecimento das línguas minoritárias.
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enraízadas nem tão pouco à simples inexistência de minorias nacionais no seio de um
dado Estado. Para além das convenções internacionais, existem vários acordos
bilaterais com o objectivo anunciado de corrigir “erros” históricos. Estes fazem, de certa
forma, parte de um processo de reconciliação histórica tanto mais importante quanto
resulta frequentemente de negociações internacionais tendo por vista a adesão a
instituições ou organismos supra-estatais. Estes têm a especificidade de terem sido
assinados em grande parte na década de 1990, após a Guerra Fria, e se referirem à
questão das minorias nacionais na Europa central e oriental (Hornburg, 2006;l,
1999).
O federalismo enquanto instrumento de prevenção de conflitos
Se é verdade que o federalismo não es na origem do direito das minorias, não é
menos verdade que o direito das minorias pode dar origem a regimes federais. Nos
casos em que tal sucede, o federalismo surge como a solução definitiva, isto é, quando
a gestão pacífica das diferenças locais e regionais resultantes da exisncia de minorias
etnonacionais não foi conseguida através de outros mecanismos jurídico-legais e/ou
culturais.
Em décadas anteriores, a violência e a dissidência política no País Basco,
na Córsega e na Irlanda do Norte, por exemplo, foram consideradas
como a evincia do fracasso da integração estatal. Presentemente, um
certo reconhecimento nacional e a autonomia infra-estatal resultou
numa diminuição da violência como um movimento táctico (Williams,
2009: 199).
Tendo por base as teorias sobre a origem dos Estados federais, que razões justificam a
adopção de um regime federal por oposição à existência de Estados separados ou a
secessão de partes de um dado Estado? O que estará na origem de federalismos
centrípetos ou centrífugos?
Em primeiro lugar, é possível verificar que, segundo vários autores, as federações (e
em especial as federações multinacionais) são entendidas como um instrumento viável
na promoção da paz dada o seu recurso enquanto instrumento de prevenção de
conflitos. Muitas nascem, portanto, como uma resposta aos receios provocados pela
possibilidade de um conflito. Ao formarem uma federação, Estados previamente
independentes procuram uma sensação de poder, real ou imaginada ou ainda
dependendo da percepção que se tenha ou se queira dar dela, superior àquela que era
detida por cada um individualmente. Esta sensação pode ser real ou imaginária (e
imaginada) mas tem a capacidade de dissuadir eventuais agressores e/ou evitar
conflitos entre os membros da federação, como era o caso da Confederação Iroquesa.
Neta C. Crawford argumenta que,
[e]nquanto regime de segurança, a Liga Iroquesa funcionou bem para
diminuir a conflitualidade entre os seus membros. Mais tarde, foi
também parcialmente bem sucedida ao permitir às nações iroquesas
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adaptarem-se aos choques exógenos causados pela chegada dos
europeus despovoamento epidémico massivo, ruptura da economia
local, e as guerras entre os europeus porque criou a base para a
diplomacia e a segurança colectiva (1994: 346).
Esta ideia está presente na obra de vários pensadores europeus que fizeram a apologia
do federalismo aplicado ao Velho Continente. É o caso dos italianos Altiero Spinelli e
Ernesto Rossi (1941) no seu famoso Manifesto de Ventotene, publicado em 1941, como
resposta à violência provocada pela Segunda Guerra mundial e os regimes autoritários
europeus. John Stuart Mill argumenta, contudo, que para que um regime federal (ou
confederal) possa constituir-se como um instrumento válido de prevenção de conflitos,
é necessário que não se torne mais agressivo que cada Estado membro da federação.
Em segundo lugar, o argumento segundo o qual existe uma maior eficiência económica
nas federações aparece com frequência como um dos seus aspectos positivos, sendo
aquelas entendidas como sendo mais capazes de promover a sua prosperidade
económica. Este é um ponto altamente questionável mas que é detentor de um grande
poder de atracção. São avançadas ideias como as da criação de um maior mercado
interno livre de barreiras
7
Por outro lado, é também necessário perceber porque razão escolher um regime de tipo
federal em vez de um Estado unitário. Também neste caso as justificações
ou ainda a transformação das federações em importantes
actores globais com a capacidade de influenciar as regras do comércio internacional (o
que poderá ser o caso de algumas federações mas em caso algum de todas). A
referência à dualidade comércio/prosperidade económica enquanto factores positivos
de paz é frequente, sendo possível encontrá-las em vários projectos de paz da época
moderna. Em terceiro lugar, a criação de um regime federal pode potenciar o
desenvolvimento de um regime de protecção das minorias ao criar mecanismos para
acomodar as mesmas. Estes podem passar pela restrição da soberania das entidades
federadas e pela atribuição de um poder de intervenção ao poder federal em assuntos
internos daquelas quando perante uma violação dos direitos das minorias. A validade
deste argumento depende, naturalmente, da natureza do Estado federal. Se este
desrespeitar de igual modo os direitos das minorias, então o poder de interveão que
lhe é atribuído encontra-se corrompido. Em quarto lugar, as federações podem facilitar
a obtenção de certos objectivos de Estados soberanos previamente independentes. A
transferência de alguns poderes e competências para um organismo comum, o Estado
federal, permite-lhe assumir o papel de coordenador de actividades externas, como por
exemplo relativamente à política externa. Mas esta cooperação ao nível federal pode
derrapar ao exigir uma maior coordenação noutros sectores e, por conseguinte, dar
origem a uma situação em que se assiste a uma centralização do poder. Em quinto
lugar, as entidades federadas vêem a sua influência política reforçada no seio de uma
federação. No caso de territórios anteriormente independentes, estes obtêm as
vantagens de uma aliança política como sejam a coordenação acima referida. Pequenos
Estados (ou antigas regiões e províncias) podem obter o maior reconhecimento e poder
de decisão quando parte de Estados federais.
7
Não é, pois, um acaso que a unificação da Alemanha tenha sido precedida pela eliminação das taxas
aduaneiras nos territórios alemães com criação do Zollverein em 1818 e o seu posterior desenvolvimento
e alargamento à maioria dos Estados alemães.
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apresentadas são várias e diversas, algumas delas aproximando-se daquelas acima
referidas. Ao opôr o modelo unitário e centralizador ao modelo federal, Proudhon
afirma que
[o] sistema federativo corta pela raíz a efervescência das massas, a
todas as ambições e exaltações da demagogia: é o fim do regime da
praça pública, dos triunfos dos tribunos, como da absorção das capitais.
[…] A federação torna-se assim a salvação do povo: pois salva-,
dividindo-o, ao mesmo tempo, da tirania dos seus líderes e da sua
própria loucura (1863: 100-101).
O federalismo como complemento ao direito das minorias
Como foi visto antes, uma das críticas feitas aos Estados unitários tem a ver com as
suas políticas em relação às minorias existentes no seu território. Sendo eles o
resultado de um processo de centralização do poder e de assimilação das periferias,
assistiu-se ao domínio de um grupo nacional sobre os restantes, com a integração dos
últimos na comunidade nacional que se queria abrangente e englobando a totalidade
dos territórios sob autoridade do Estado. Esta dupla política teve por consequência a
recusa de direitos aos grupos minoritários. O federalismo pode ser uma protecção para
estes contra o poder central ao dotá-los de poderes e direitos constitucionalmente
consagrados. Em segundo lugar, e na sequência do ponto anterior, os regimes federais
podem acomodar as chamadas “nações sem Estado”, independentemente das suas
reivindicações. O federalismo pode ser uma resposta a desejos de secessão e auto-
determinação por parte daquelas nações, mas também uma solução para a
preservação de elementos da identidade local, como a cultura, língua ou religião.
Escrevendo na década de 1980, Stanislaw Ehrlich afirmava que
[o]s sistemas federais decidem pela descentralização territorial quem
tem o poder, que soberania. As instituições do federalismo são
ideologicamente neutras, e servem para descentralizar um Estado ou
proteger identidades étnicas no seu seio. Os marxistas favoreceram
governos unitários, aceitando o federalismo como um meio de evitar a
dissolução do Estado. […] A secessão é geralmente resistida pela força
[…]. O federalismo tem um futuro! (1984: 359)
Em terceiro lugar, o modelo federal cria as condições para uma maior participação dos
cidadãos nas tomadas de decisão públicas, através da deliberação ou da ocupação de
posições nas entidades federadas ou estruturas do Estado federal. Finalmente, os
arranjos de tipo federal, e em particular as federações assimétricas, podem abrigar
grupos étnicos territorialmente localizados num dado território ao mesmo tempo, não
os sujeitando a um regime jurídico uniforme à totalidade do território e, desta forma,
preservando-os da “tirania da maioria” quando esta é sistematicamente contrária aos
seus interesses. Este tipo de regime não unitário minimiza, até certo ponto, a
repressão e é sensível às necessidades de um maior número de cidadãos.
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em Estados multinacional e na prevenção de conflitos
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o sendo um apanágio de Estados multinacionais, as teorias federalistas encontram
nestes um terreno fértil para o desenvolvimento de propostas visando a prevenção de
conflitos, a gestão de tensões interétnicas violentas e, em última instância, a
manutenção da integridade territorial dos mesmos. De um ponto de vista político, a
adopção de medidas federalisantes em contextos de violência (real ou previsível)
procura ser uma resposta adequada ao secessionismo territorial, entendido pelas
autoridades como a violação de um princípio sagrado: a unidade e indivisibilidade do
Estado. Nalguns casos, a manutenção da integridade territorial de dado Estado passa
pela necessidade de redefinir as estruturas internas da administração sub-estatal, a
nível regional e local, estabelecendo governos regionais dotados de um elevado grau de
autonomia (por ex.: Escócia no Reino Unido; Catalunha em Espanha). Não nos
podemos, porém, esquecer que “[d]iferentes tipos de sociedade exigem diferentes tipos
de instituições. O federalismo, por exemplo, pode ser irrelevante para pequenos países
homogéneos mas uma necessidade virtual para outros maiores e heterogéneos” (Reilly,
1998:137). Esta redefinição das estruturas administrativas e a partilha de poder
passam antes de mais pelo diálogo e concessões mútuas entre as partes envolvidas. É
possível encontrar correntes federalistas no seio dos mais diversos movimentos
etnonacionalistas, entre os quais movimentos geralmente associados ao separatismo
radical
8
A referência ao modelo federal como meio efectivo de promoção e defesa das
diferenças no seio de um mesmo território não é uma novidade. A sua apologia tem,
contudo, sido mais frequente quando as estruturas políticas em vigor não têm dado a
resposta adequada a reivindicações que possam colocar em causa a própria existência
de um Estado e a sua integridade territorial. A introdução precoce de mecanismos de
partilha de poder tem o potencial para evitar que conflitos étnicos ou identitários se
transformem em conflitos mortais (Sisk, 1998: 139). Alain-G. Gagnon defende que
. Em tais circunstâncias, é possível concluir que a secessão apenas ocorre
quando, apesar de tudo, estas alternativas são consideradas insuficientes para
responder positivamente às reivindicações de todas as partes envolvidas (Estado,
região, actores políticos, sociedade civil) e, como tal, para pôr um termo ao conflito
existente, independentemente do grau de violência. O fim das negociações, ou a
indefinição das mesmas, resulta com frequência na manutenção de um estado de
vioncia cujo resultado pode ser a concretização de um processo secessionista
unilateral. Ainda que se assista nestes casos à desmistificação da ideia de integridade
territorial, a mesa das negociações volta a ser o local em que são definidos os moldes
segundo os quais o novo Estado entra (ou não) no grupo restrito de Estados
independentes.
8
É bastante usual existirem várias posições e reivindicações no seio de alguns movimentos nacionalistas
e/ou autonomistas. Se a independência é com frequência apresentada como a única solução possível e
desejável em situações em que existe uma percepção de injustiça política, económica e cultural por parte
de um dado grupo étnico; as correntes defendendo a implementação de soluções de cariz federalista
existem como alternativa ao independentismo. Os casos da Galiza e da Bretanha são alguns dos exemplos
que ilustram esta situação. Ramón Maiz (1984) divide o regionalismo galego de entre 1886 e 1907 em
três tendências ideológicas: liberal, católico tradicionalista, e federal. A respeito do nacionalismo /
regionalismo galego, veja também Duran (1984). De igual modo, o papel do pensamento federalista na
Bretanha não deve ser subestimado devido ao forte papel histórico que desempenhou no seio do
movimento nacionalista local (Nicolas, 2001; Barbin, 1937). Curiosamente, o nacionalismo basco também
viu emergir uma corrente federalista, a saber através do Mouvement Démocrate Basque, que emergiu em
França na década de 1960 (Gurrutxaga, 2005: 78; Izquierdo, 2001: 149-150).
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o federalismo, em ambas as suas manifestações institucionais e
características sociológicas, constitui uma solução promissora na gestão
de comunidades políticas coexistentes e na afirmação de identidades
colectivas em Estados constituídos por duas ou mais nações (2010: 1).
À primeira vista, o modelo federal aparenta ser um instrumento de prevenção e gestão
de conflitos quase perfeito. Pelo menos tanto quanto outros mecanismos político-
institucionais e estruturais criados ou potencialmente adaptados para o efeito. É
contudo utópico acreditar que existe perfeição quando o objecto de análise é a
prevenção e gestão de conflitos e, em última instância, o indivíduo. Nem o federalismo
tem essa aura de perfeição, nem tão pouco o têm outros mecanismos. Ao observar o
papel desempenhado pelo federalismo na Índia e no Paquistão pós-independência na
gestão do pluralismo étnico daqueles Estados, Katharine Adeney conclui que
[a]inda que não promova necessariamente a segurança e a paz étnica,
o pode ser acusado de aumentar o conflito, especialmente quando é
combinado com mecanismos consociativos (2007: 181).
A capacidade do modelo federal enquanto instrumento de prevenção e gestão de
conflitos tem, contudo, granjeado de alguma popularidade, com particular ênfase em
contextos multinacionais nos quais a manutenção da unidade do território nacional tem
sido ameaçada por reivindicações de carácter autonomista, secessionista ou
irredentista. A questão da Transnístria, que continua em aberto desde a implosão da
União Soviética e a independência da Moldova, tem sido um desafio para o qual ainda
não foi encontrada uma solução. Têm sido elaboradas várias propostas de federalização
daquele país com o intuito de pôr termo ao conflito, embora sem qualquer sucesso
(VVAA, 2009; Löwenhardt, 2004). Segundo Andrey Safonov,
[p]arece que, no nosso caso específico, a resolução pode ser conseguida
apenas através da federalização da antiga República Socialista Soviética da
Moldávia com elementos de confederação. A Moldova deve abandonar a sua
abordagem unitária e a Transnístria deve desistir das suas pretensões de
independência total ao nível de um Estado-membro da Organização das
Nações Unidas (2009: 188).
Outro exemplo de uma proposta conceptual promovendo o federalismo como meio de
gestão de conflitos pode ser encontrada na análise efectuada por Bruno Coppieters
sobre o conflito opondo as regiões georgianas da Abcásia e da Ossétia do Sul e as
autoridades de Tbilisi. Coppieters propunha transformar a Geórgia numa república
federal, na qual aquelas regiões gozariam de uma autonomia local alargada (2003). O
conflito que opôs a Geórgia à Federação Russa no verão de 2008 veio destruir qualquer
hipótese de redefinição administrativa interna, pelo menos no curto prazo. A
proclamação de independência daquelas duas regiões, reconhecida e apoiada política,
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económica e militarmente por Moscovo, veio apenas agravar a situação sem ter
resolvido de forma definitiva o conflito opondo Tbilisi às suas regiões.
Contudo, vários exemplos de federações falhadas ou, nas palavras de Emilian Kavalski
e Magdalena Zolkos (2008, 163), “federalismos defuntos”, mostraram os limites deste
modelo de construção do Estado, pondo igualmente termo à ideia segundo a qual o
federalismo seria uma panaceia para contextos como os anteriormente referidos.
Significa isto que este modelo político deve ser abandonado ou, pelo menos, ser
recusado enquanto uma das soluções mais adequadas para a gestão da diversidade
étnica em Estados onde a situação é potencialmente explosiva? Ou quererá isto dizer
que é necessário reformular o que se entende por federalismo de acordo com situações
específicas e aceitar que este pode revelar-se inadequado enquanto respostalida
noutras circunstâncias? Enquanto meio de gestão de conflitos, em especial conflitos
étnicos, o modelo federal tem o mesmo objectivo que outros mecanismos
institucionais, a saber a resolução daqueles conflitos.
O objectivo da resolução de conflitos é estabelecer um quadro
institucional em que os interesses conflituosos das principais diferentes
entidades em conflito […] se possam de tal forma acomodar que os
incentivos para a cooperação e a continuação não violenta de conflitos
de interesses através do compromisso superem quaisquer benefícios
que possam ser esperados do confronto violento (Cordell & Wolff, 2010:
17-18)
9
.
Não se pode ver, de forma alguma, no federalismo uma panaceia para todos os males
do mundo (Watts, 2003: 17). Todavia, esta é uma solução que não se pode descurar.
Segundo Watts, verifica-se hoje em dia o desenvolvimento de sistemas híbridos que
conjugam elementos federais e unitários como sejam a África do Sul e a União Europeia
(idem, 18). Será essa a solução? A variedade de federalismos existentes e a sua
capacidade de adaptação a casos diferentes pode ser um indicador de que o regime
federal tem uma palavra a dizer enquanto modelo de organização estatal. Se, de
acordo com J. Denis e Ian Derbyshire (2000, 19-22), o federalismo pode ser histórico,
cultural, geográfico, linguístico, étnico, artificial ou imitativo, esta caracterização é em
todos os casos cumulativa. Assim, a Bélgica é considerada por estes autores uma
federação simultaneamente cultural e linguística, sendo a Suíça uma federação
histórico-cultural. A Bósnia-Herzegovina, por seu lado, acumula aos factores histórico e
cultural, o factor étnico. Contudo, esta definão apresentada por estes autores pode
ser facilmente contrariada. A Suíça constituiu um exemplo claro de uma federação
multi-étnica, ainda que ao contrário do que sucede noutros casos, a Confederação suíça
não assenta na distinção interétnica ou na diferenciação linguística. A instauração de
um regime federal reside frequentemente num paradoxo. Se, como foi acima referido,
o federalismo surge como resposta ao Estado-não tradicional, unitário e centralizado,
os moldes nos quais é instituído devem por conseguinte ser diferentes deste último.
Contudo, existem algumas dúvidas que merecem ser esclarecidas. Segundo Carré de
Malberg, “o Estado federal aparece nalguns aspectos como um Estado unitário” (1962:
9
Itálico conforme ao original.
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96). O que parece contraditório encontra a sua justificação no princípio da
sobreposição. A subordinação das entidades federadas ao poder federal resulta na
limitação das suas competências e conduz a conflitos legais entre os dois níveis. Não
raras vezes, o Estado federal é acusado de querer assumir um papel que ultrapassa as
suas competências, a saber o de Estado central omnipresente. O caso norte-americano
é bastante revelador desta problemática. Por se encontrar a meio caminho entre o
confederalismo e o unitarismo (ou centralismo), o federalismo é alvo das critícas dos
defensores de ambos os regimes. O seu estabelecimento e manutenção são o resultado
de uma tensão permanente entre partidários de um Estado federal forte e aqueles que
advogam o maior grau de autonomia possível para as entidades federadas.
Historicamente, foi a necessidade de uma maior integração política e de um poder
executivo forte que levou a que vários regimes confederais optassem por uma maior
centralização e, por conseguinte, por regimes federais. Voltando ao modelo federal
suíço, é fundamental ter presente que este é o resultado de uma evolução com mais de
setecentos anos, e que passou por ts fases distintas. Quando em 1291, os cantões de
Uri, Schwyz e Unterwalden se aliaram através da chamada aliança de Uri, renovada em
1315 pela aliança de Bonden, aquelas comunidades estavam longe de imaginar que
esta seria a génese da Confederação helvética. Segundo Andreas Wimmer (2002: 233),
o modelo suíço caracteriza-se pela chamada “paz linguística” que difere dos tradicionais
regimes de protecção das minorias ao recusar oficializar o estatuto minoritário das
línguas faladas no país. Isto significa que apesar do alemão ser a língua mais falada na
Confederação Helvética, as línguas francesa, italiana e romanche não são alvo de
qualquer política linguística ou estatuto jurídico visando a sua protecção e/ou
promoção. Em última instância, estas são línguas nacionais suíças como a língua
alemã. “Politicamente falando, a Suíça não conhece minorias” (idem, ibidem).
Todavia, e não obstante a excepção suíça, as políticas de reconhecimento (ou políticas
de identidade) são de uma grande importância. Importância essa que deve ser
reforçada ao analisar a viabilidade do modelo federal na gestão, prevenção ou
resolução de conflitos. Sendo o federalismo uma das escolhas para acomodar grupos
nacionais minoritários, mantendo-os no cadilhe nacional, deve procurar responder
positivamente às reivindicações das minorias. As federações podem fa-lo de duas
formas diferentes, seja através de uma partilha de poder equitativa, ou através da
atribuição de maiores competências às minorias, nomeadamente em termos de
influência na tomada de decisões comuns. Mas a politização da identidade também
pode dar origem a novos desafios, especialmente em regimes federais nos quais os
riscos de instabilidade ligados à existência de fortes sentimentos etnonacionais
minoritários são claros. A manutenção de uma dupla lealdade política
10
, ou de duas
lealdades políticas
11
10
Entende-se por dupla lealdade política uma lealdade que, sendo una, engloba duas lealdades diferentes
(por ex.: regional e nacional, ou nacional e supranacional). Estas são experienciadas pelo indivíduo da
mesma forma, não sendo uma lealdade mais importante que a outra.
, é necessária, assim como o é um estatuto de auto-governo,
podendo estes ser factores de uma instabilidade acrescida ao ser pervertidos a favor de
interesses cada vez mais locais a despeito do bem comum da federação. O modelo
federal pode, de maneira involuntária, estar a alimentar o secessionismo que procurava
11
No caso de duas lealdades políticas, está-se de igual modo, perante duas lealdades diferentes. Porém, se
estas também existem em simultâneo, não são necessariamente experienciadas da mesma forma pelo
indivíduo. Assim, é possível que uma das lealdades seja considerada mais importante e, como tal,
privilegiada em relação à outra.
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em Estados multinacional e na prevenção de conflitos
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combater. O reconhecimento e a institucionalização da diferea estariam assim a
minar as condições de uma identificação comum.
Conclusão
Não deixa de ser interessante verificar que as federações são muitas vezes entendidas
como regimes desviantes. Sendo o modelo de tipo unitário e centralizado pós-Vestefália
considerado o ideal de regime estatal, o federalismo pode parecer sui generis. A
exisncia de federações diferentes entre si vai nesse sentido. Por não existir uma única
forma federal, um federalismo-tipo, esta parece padecer de uma esquizofrenia
normativa para a qual não se vislumbra cura alguma mas sim novas ramificações. Cada
federação é federal à sua maneira. De notar que os regimes com características
federais e, por conseguinte, fugindo ao tipo de Estado unitário, não são uma inovação
da modernidade. É possível, como analisado, encontrá-los desde a Antiguidade e em
vários contextos geográficos.
Da mesma forma, se este artigo procurou apresentar as principais vantagens deste
modelo, é necessário ter presente que o federalismo não é um remédio infalível,
devendo por conseguinte ser visto como uma solução entre muitas outras. O artigo
teve como finalidade não um estudo intensivo e extensivo do federalismo, mas a breve
apresentação do mesmo enquanto um instrumento viável na gestão da pluralidade
étnica em Estados multinacionais assim como na prevenção de conflitos em contextos
onde aquela é uma realidade.
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Notas e Reflexões
ÁFRICA NO SÉCULO XXI: QUE PROSPECTIVISMO E QUE CAUSAS;
EFEITOS NOS ESTADOS AFRICANOS
Eugénio Costa Almeida
elcalmeida@gmail.com
Luso-angolano. Licenciado (Universidade Lusíada de Lisboa), Mestre em Relações Internacionais
(ISCSP-UTL) e Doutorado em Ciências Sociais, na especialidade de Relações Internacionais
(ISCSP-UTL, Portugal). Investigador do Centro de Estudos Africanos (ISCTE-IUL, Portugal).
Tem 3 ensaios publicados: "Fundamentalismo Islâmico: A Ideologia e o Estado" (2003), Azeitão,
Autonomia 27, ISBN 972-98918-5-0; "África, Trajecto Poticos, Religiosos e Culturais" (2004),
Azeitão, Autonomia 27, ISBN 972-98918-9-3; e "Angola, potência regional em emergência"
(2011), Lisboa, Edições Colibri, 978-989-689-131-2.
Tem intervenção em algumas obras publicadas (ensaios, prefácios e poesia).
Participa, periodicamente, em Debates e Conferências como orador.
Preâmbulo
Em 25 de Maio de 1963 foi instituída a Organização de Unidade Africana (OUA) que
visava a unidade entre os africanos recentemente saídos das várias independências
derivadas das lutas independentistas; em Julho de 2002, e após proposta nada
inocente de Muammar Kadhafi, a OUA converte-se em União Africana pela convenção
de Durban. A nova UA visava e visa a integração política e económica dos Estados-
membros africanos.
Estamos aqui, por isso, a comemorar meio-século do aniversário da unidade africana.
Desde tempos imemoriais que Africa tem sido um continente em constante movimento
migratório, tanto a nível cultural em particular devido aos movimentos recolectores e
pastorícios, seja a nível comercial ou militar.
Foram esses movimentos migratórios que permitiram o período luz dos egípcios, os
seus contactos comerciais e culturais com o reino Núbio, ou destes com os povos
Monomotapa região entre Moçambique e Zimbabwe onde, segundo algumas lendas
estaria o mítico reino da rainha Sabá , as migrações cartaginesas para além das
colunas de Hércules até ao “golfo do Corno de Ocidente” e à “montanha do Carro dos
Deuses”
1
1
O golfo do Corno do Ocidente estaria entre o bojador e a foz do rio Geba (Guiné-Bissau) e a montanha do
carro dos Deuses, estaria onde hoje é Camarões (segundo lenda esta palavra seria de origem fenícia
, de onde o périplo de Hanão trouxe felpudas peles que, segundo os seus
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companheiros, seriam de fêmeas de gorilas, mas que, para autores como Ki-Zerbo,
pertenceriam a pigmeus (o que me parece difícil dado que os pigmeus não são peludos)
ou a chimpanzés.
No entanto, as primeiras grandes migrações, que quase provocaram o desaparecimento
de um povo, os Khoi-san
2
De início, os Banto avançaram até às regiões equatoriais, onde se mantiveram durante
milhares de anos. Com as migrações árabes, especialmente, aquele grupo desceu para
a região do Cabo, onde chegou quase ao mesmo tempo que os calvinistas holandeses,
os antepassados dos Africânderes. Em qualquer dos casos os grandes prejudicados
foram os Khoi-san que ficaram confinados a uma pequena região entre o deserto
angolano do Namibe e a parte norte do Botswana embora existam uns quantos numa
região no norte da África do Sul), ou seja, quase todo o deserto do Namibe/Calaári.
(também ditos bosquímanos ou hotentotes, conforme as
zonas), povos de tez amarelada e olhos amendoados, verificaram-se com as invasões
cataclísmicas dos Negros, povos negróides do Sudeste asiático, há mais de 200
séculos, com passagem pelo Sinai e pelo Mar Vermelho. De entre estes sobressaíram
dois sub-grupos, os do Sudão Ocidental e os Ba’Ntu (Banto).
Actualmente, os Banto são considerados os verdadeiros povos autóctones africanos,
esquecendo-se, seja por uma questão política, seja por uma questão sociológica, todos
os outros membros geneológicos, em particular os bosquímanes, provavelmente os
primeiros povos continentais, descendentes doKenyapithecus africanus”, do “Homo
habilis” e do “Homem de Boskop”. Por outro lado tem-se a tendência, embora os
últimos acontecimentos na região setentrional, em parte devido à Primavera Árabe,
venham a demonstrar o contrário, a esquecer os povos caucasianos do Norte, os
árabes, ou do sul, os africânderes.
Introdução
Entre a formação da OUA e a transformação em União Africana, o Continente africano
passou por diversas vicissitudes políticas, económicas e sociais importantes,
nomeadamente, a transformação das antigas colónias europeias em nalguns, poucos,
casos de sucesso potenciais Estados geradores de importantes polos de
desenvolvimento económicos e políticos e militares.
Os finais dos anos 80, particularmente após a implosão da antiga URSS, o fim do mito
marxista e a afirmação do neoliberalismo conservador, tão a gosto de Fukuyama ou de
Friedman, tem sido apontado e caracterizado como sendo o grande responsável pela
larga referência que se tem feito à democratização do Continente Negro, com
consequente proliferação de movimentos políticos em África, nomeadamente na África
subsaariana.
O norte africano debate-se com um problema crucial: fazer coexistir os fundamentos de
uma religião ainda, temporalmente, medieva ou, pelo menos assim a querem
apresentar, não mutável e base de alguns sistemas poticos nacionais, com os ideais
camer + ayoun = carro dos deuses); as colunas ou pilares de Hércules correspondem ao estreito de
Gilbraltar.
2
Dividem-se em bosquímanos ou boximanes (san-khoi, caçadores) e em hotentotes (os-khoi-khoi,
pastores).
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democráticos ditos ocidentais e laicos, onde o direito do Estado predomina sobre o
direito eclesiástico. A “Primavera Árabe” é o exemplo vivo disto mesmo.
São ou foram-no os processos eleitorais em Angola, no Congo Democrático, no Gana,
no Mali e na Nigéria, entre outros, ou ainda as que aí vêm, como as esperadas e
sempre não marcadas eleições na Guiné-Bissau e Madagáscar, só para citar alguns
exemplos, resultantes de Coup dÉtats ilegais e condenados pelas instituições
internacionais, nomeadamente pela União Africana e que os centros decisórios
regionais não conseguem fazer estancar.
Mas note-se que este tipo de democracia, também conhecida por demoliberalismo, hoje
em dia tanto em voga nos países de Leste europeu, como na Europa ocidental, sem
que, no caso dos primeiros, tenha conseguido evitar a proliferação dos sangrentos
neonacionalismos, como os que se verificam no Cáucaso e nos Balcãs, não tem sido
formalmente acompanhado pelos Estados Africanos na mesma amplitude.
Mas se a nível político, África tem registado evoluções e recuos sistemáticos, a
vertente cultural não tem sido descurada, (nem por alguma vez essa questão se
poderia colocar), até porque, mais do que o desafio que à partida nos é imposto, África
é uma miscelânea de culturas com que a todo o passo tropeçamos. Aliás, a primeira
parte deste texto aborda uma das problemáticas culturais do continente, os fluxos
migratórios, sejam internos, sejam externos, bem assim toda a influência que os
mesmos tiveram na formação cultural e, mais tarde, na nova engenharia social e
potica da África em mutação.
Que perspectiva e que prospectivismo?
1. A Formação das duas Áfricas
Face aos actuais movimentos políticos uns, contestatários, outros, de ruptura que
por quase toda a África persiste, é legitimo questionar se se trata de um sintoma em
que o sistema partidário que nos querem impor está em involução e, como tal, a ser
progressivamente substituído por um pluralismo cultural ou a caminho de uma vertente
politicamente proto-mexicanizada como se verifica em alguns Estados?
Para responder, recorramos à tese sustentada por Fernando Chambino
3
Segundo ele, e em função do modelo de implantação talassocrático do colonizador
europeu registe-se que só em Portugal transmitiu um modelo talassocrático puro, os
ingleses e os franceses, mais estes que aqueles, adoptaram o modelo epirocrata
existem o que se poderia designar por duas Áfricas. Uma, a do contacto e da mudança
cultural, geralmente identificada com o urbanismo litorâneo, onde a pedagogia e a
massificação social superam as condicionantes da transição, e outra, em que o contacto
de culturas foi escasso ou, mesmo inexistente, sede do conservadorismo e do privilégio
costumeiro, representado pelos chefes tradicionais, cujo poder é suportado pela
complexa questão da legitimidade de origem e que, factualmente, se opõem aos
adeptos da mudança.
, nesse domínio
(Almeida, 2004).
3
Fernando Chambino, entretanto falecido, abordou esta temática comigo quando eu era aluno na
Universidade Lusíada e propôs-me que, quando pudesse, a desenvolvesse. Porque sabia que esta era uma
matéria a desenvolver na sua dissertação doutoral, nunca o fiz.
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Qualquer das duas Áfricas não abdica do direito que reivindica da manutenção e do
exercício do poder e, simultaneamente, com afectação egocêntrica.
Por sua vez, também Lavroff refere a existência de três grandes obstáculos para a
consagração evolutiva do pluripartidarismo em África. A tentativa dos novos líderes se
definirem como dirigentes de todos os Povos, daí não havendo lugar, pelo menos
manifesto, para outros partidos políticos, apesar de isso consagrarem e anunciarem, de
modo a serem congregados à volta de um partido claramente predominante, dito
iluminador, todos os que têm qualidades para bem governar. O senhor Mugabe é um
dos principais defensores desta tese; mas há mais...
Por fim, a, ainda, criação de um verdadeiro nacionalismo. Não esqueçamos que a maior
parte dos países africanos são uma amálgama de etnias, diferentes entre si, que, na
época colonial, foram incentivadas ao etnocentrismo. O conceito de Nação só em
poucos países começa a estar implantado, como por exemplo em Cabo Verde, Angola,
Lesoto, Senegal ou Swazilândia. De resto existem, apenas, projectos nacionais com
maior ou menor impacto na sociedade; a África do Sul é um destes últimos casos
Estes três obstáculos, bem assim como a sua conjugação com a tese das duas Áfricas,
o são, de per si, sustentáculos suficientes que permitam manter a mexicanização
poticas que os regimes, quase totalitários, ainda fazem persistir.
Aproveitando uma tese de Erik Wright (1981: 69) embora contextualizada para uma
situação diferente a implantação de um regime realmente democrático do tipo
Ocidental só acontecerá quando existir umasabotagem económica eficaz perpetrada
pela burguesia capitalista” de modo que, uma insurreição seja vitoriosa perante um
aparelho repressivo. E esta insurreição só cobrará dividendos quando “...esse aparelho
se dividir ou se desintegrar...”.
Ora, foi precisamente isso que se verificou na defunta União Soviética, nos antigos
estados do Leste Europeu, nos países jugoslavos e é o que se tem verificado embora
em muito menor escala, em Estados africanos como Madagáscar, no Benim, no
Burkina-Faso ou no Quénia.
2. Que Democracia, que Pluralismo
Pessoalmente, perspectivo a afirmação da pluralidade ideológica, apesar de continuar a
persistir dirigentes como Mugabe (Zimbabwe), Obiang (Guiné-Equatorial), Biya
(Camarões), Museveni (Uganda) ou Camporé (Burkina Faso), que defendem e
defenderam a manutenção do poder, segundo a sua visão programática e segundo o
seu “carisma” pessoal, sendo que alguns chegaram ao poder através de sangrentos
golpes de Estado.
No entanto, deveremos considerar para cada caso, cada País, a sua própria
especificidade. Não poderemos transmitir para um islâmico os mesmos valores que os
europeus possuem, ou seja, a cultura judaico-cristã. Também estes valores, não são,
em parte ou num todo, conforme os casos, possíveis de serem apreendidos por todas
as culturas africanas, cuja raiz cultural é epirocrata, animista, conservadora e
costumeira, ou seja, o domínio do “soba”, o chefe politico, administrativo e, por vezes,
curandeiro, gestor de um grupo unido, sobrepõe-se aos interesses individuais de um
qualquer indivíduo desfasado da sociedade onde se insere.
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Pelo contrário, a África talassocrática ou das cidades, aceita melhor essa recepção. As
grandes metrópoles africanas, são muito individualistas, descaracterizadas. Aliás, o
afrocitadino é um aculturado por natureza, daí melhor receber qualquer nova ideia que
se lhe depare.
Para África a melhor solução poderá ser fazer coexistir o sistema político ocidental, o
chamado liberalismo democtico não aquele que se verifica, hoje em dia, na Europa
mas uma mistura entre a terceira via social de Anthony Giddens (a teoria da
estruturação) com o liberalismo conservador de Locke e Adam Smith , com sistema
social africano costumeiro.
Para tal nada melhor do que criar uma organização política onde coexistam duas
Câmaras de Representantes. Uma, tipicamente ocidental, o Parlamento Nacional, com
todas as características próprias do sistema democrático. Outra, não menos
importante, provavelmente até mais, seria uma Câmara Consultiva e de Fiscalização,
tipo Senado, onde tivessem assentos os chamados “Homens-Bons” da sociedade
tradicional, ou seja, os sobados, as chefaturas, ou os “monarcas e príncipes” nacionais,
em suma, os chefes tradicionais. Seria uma Câmara Consultiva com poderes
fiscalizadores e que poderia, e só em último caso, ter, também, poderes legislativos.
3. Que Fronteiras terá Africa no século XXI?
A Carta da OUA, aprovada em Adis-Adeba em 1963, e ratificada pela sucessora União
Africana, estipulava a manutenção e intangibilidade das fronteiras coloniais, do pós-
Conferência de Berlim.
Casos como Biafra, Katanga, Chade, ou a região Tuaregue (Mali-Argélia), confirmam-
nos que a Carta está a ser aplicada, quaisquer que foram as consequências que
advieram aos seus infractores. Tal como Cabinda ou Kaprivi. Só a região eritreia e por
razões político-históricas se separou, em 1993, da Etiópia e com o prévio acordo desta.
Todavia, mais recentemente, houve um facto que contrariou a Carta da UA, mais
devido a inconcebíveis imposições externas aos africanos que por real vontade destes:
a secessão do Sudão do Sul. Pode ter sido um prenúncio do que poderá vir a acontecer
a outras regiões onde interesses externos sejam mais superiores que os interesses dos
africanos u dos autóctones. E se casos onde isso poderá acontecer…
Para isso recorde-se, a emergência de um nacionalismo, mais próximo de um conceito
tribal que nacional, a afirmação de valores etno-culturais antigos, a apetência para o
poder de certos dirigentes, que não olham aos meios para atingirem os seus fins, o
caso Sudão que se cingir, como acima já referi em dois Estados, fazem supor que a
imutabilidade das fronteiras coloniais já não se põe com a clareza que a Carta
implicava.
Também a adopção, pelo Uganda, da antiga denominação régia de Buganda, poderá
fazer e de certa forma, o faz questionar as actuais fronteiras coloniais que
correspondem com o antigo reino; não é em vão que, periodicamente, a questão dos
Grandes Lagos embora com outros actores nos papéis principais , surja nos
noticiários internacionais no que é razão recente a visita do Secretário-geral da ONU,
Ban Ki-moon, à região e ao facto do nordeste congolês que faz parte da região
lacustre estar em constante ebulição político-militar com solução imprevisível.
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ISSN: 1647-7251
Vol. 4, n.º 2 (Novembro 2013 - Abril 2014), pp. 125-131
África no século XXI: que prospectivismo e que causas; efeitos nos Estados africanos
Eugénio Costa Almeida
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Verifica-se avel político, a nível cultural e, principalmente, a nível económico, que o
conceito tradicional ocidental de nacionalismo deixou de ser um valor inquestionável,
para assumir, embora pareça paradoxal face ao conteúdo programático que o mesmo
contém, valores próximos de uma Aldeia Global.
Apesar de tudo, e citando o periódico de economia Financial Times, o Continente negro
é um continente a apostar. Também o recente relatório “Africa Attractiveness Survey
da empresa de consultadoria Ernest & Young, indica que até 2040, Angola, Nigéria,
África do Sul, Gana, Egipto, Quénia e Etiópia, serão os países que mais acolherarão o
maior número de investimentos externos e vão estar entre os maiores motores de
crescimento global.
Cabem aos nossos dirigentes reafirmarem e confirmarem essa aposta não esquecendo
que, desde 2007, o ganho acumulado do crescimento africano ascendeu aos 21%,
cerca de três vezes mais que nos chamados mercados desenvolvidos.
Daí que a estabilidade das fronteiras nacionais seja um modelo a considerar e a
defender pelos Estados africanos sob pena do periclitante desenvolvimento social dos
nossos países ser colocado, ainda mais, em causa.
Não pode não deve continuar a acontecer casos de questionamento das fronteiras
como os que acontecem e só vou dizer três que nos são mais próximos entre
Angola e Congo Democrático, na foz do Zaire; Guiné-Bissau e Senegal (na
perpendicular de Casamance); ou entre o Malawi e Tanzânia/Moçambique, no Lago
Niassa. Tudo devido a um único factor desestabilizador: hidrocarbonetos!
Ora um dos meios que permitirão os Estados africanos poderem melhor defender as
suas fronteiras políticas e geográficas passam pela cooperação múltipla, seja interna,
através dos diferentes organismos político-económicos como a SADC, a CEDEAO ou
CEEAC; seja, e principalmente, pelo reforço externo da cooperação política, económica
e militar onde se destaca, por exemplo, a Comissão do Golfo da Guiné e, ou, a Zona de
Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS)
(Almeida & Bernardino, 2013) como
veículos de salvaguarda territorial marítima.
Constata-se que o pouco interesse que os nossos Estados africanos, nomeadamente, as
proto-potências regionais da zona do Golfo (África do Sul, Angola e Nigéria)m ou
tiveram pelas forças navais levaram que sejam potências externas (EUA, Reino
Unido, França, Espanha, Portugal e Brasil, entre outros) a procurarem manter as rotas
marítimas entre o Cabo e o Hemisfério ocidental livres.
Registe-se, que tanto a África do Sul (que terá encomendado 3 submarinos) como
Angola procuram, agora, fomentar a sua marinha e, com isso, evitar que o Golfo seja
uma área não africana.
Ficam estas reflexões bem como esta pergunta no ar: “que fronteiras haverá no nosso
Continente no final deste século?”.
Referências Bibliográficas:
Almeida, Eugénio Costa e Bernardino, Luís (2013). A Comissão do Golfo da Guiné e a
Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul: organizações interzonais para a persecução
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Eugénio Costa Almeida
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da segurança marítima da Bacia Meridional Atlântica; Lisboa, Revista Militar nº. 2532,
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precisam-encarar-Oceano-Atlantico-forma-diferente,9bace6e2-d79d-47af-a9a0-
194ff5f2936b.html
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aises_com_maior_investimento_estrangeiro_em_2012;
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Como citar esta Nota
Almeida, Eugénio Costa (2013). "África no século XXI: que prospectivismo e que causas; efeitos
nos Estados africanos". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol.
4, N.º 2, Novembro 2013-Abril 2014. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n2_not2