OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 1 (Maio-Outubro 2013), pp. 79-90

COMUNIDADES EPISTÉMICAS:

ESTUDO SOBRE A REGULAÇÃO DO USO DE CÉLULAS-TRONCO NO BRASIL

Lourrene de C. Alexandre Maffra

lomaffra@gmail.com Professora Assistente do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Amapá (Brasil).

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina Prolam da Universidade de São Paulo (USP)

Resumo

O objetivo deste artigo é fazer uma revisão da literatura sobre comunidades epistémicas, analisando o seu conceito e estabelecendo os principais argumentos dos autores. Na primeira seção, delineia-se uma demonstração do conceito e dos principais argumentos sobre comunidades epistémicas. Na segunda seção, é feita uma análise sobre o papel desempenhado pela elite académica. Na terceira e última seção apresenta-se um estudo de caso sobre a regulamentação do uso de células-tronco no Brasil e a participação dos cientistas.

Palavras chave:

Comunidades Epistémicas; Compartilhamento de Crenças; Brasil; Células-Tronco

Como citar este artigo

Maffra, Lourrene (2013). "Comunidades epistémicas: estudo sobre a regulação do uso de células-tronco no Brasil". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 1, Maio-Outubro 2013. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n1_art6

Artigo recebido em 3 de Fevereiro de 2013 e aceite para publicação em 16 de Abril de 2013

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Comunidades epistémicas: estudo sobre a regulação do uso de células-tronco no Brasil Lourrene Maffra

COMUNIDADES EPISTÉMICAS:

ESTUDO SOBRE A REGULAÇÃO DO USO DE CÉLULAS-TRONCO NO BRASIL

Lourrene de C. Alexandre Maffra

I.Introdução

A análise das comunidades epistémicas para a área de Relações Internacionais é de imensa relevância na medida em que congrega aspectos normalmente empregados em segundo plano, ou não empregados no estudo internacional, tais como o compartilhamento de ideias, a estruturação de redes e a informação como forma de poder.

A informação, no sentido mais amplo do termo, tornou-se com a profissionalização das burocracias uma decisiva fonte de poder e, consequentemente, o seu controle e/ou monopólio provocou uma intensa busca para adquiri-la.

Atualmente, as comunidades epistémicas são consideradas por muitos analistas internacionais como um ator relevante nas relações internacionais e que atuam de forma sistémica através de redes do conhecimento, as quais impactam nacional e internacionalmente.

No Brasil, fizemos um estudo de caso sobre a atuação de comunidades epistémicas na aprovação da lei que regulava o uso das células-tronco para pesquisa. Nosso artigo está dividido em três seções: na primeira, fazemos um histórico do estudo das comunidades epistémicas na teoria das Relações Internacionais; na segunda, elucidamos um breve estudo sobre a intereção e práticas entre comunidades epistémicas e elites académicas; e na terceira seção, exploramos o caso sobre a a provação da lei de regulação do uso de células-tronco no Brasil.

II.O Estudo das Comunidades Epistémicas nas Relações Internacionais

O termo comunidades epistémicas tem sua origem relacionada à palavra grega epistemè, que significa conhecimento justificado e verdadeiro, ciência. O estudo da epistemè, a epistemologia, se origina em Platão, que opunha o conhecimento verdadeiro e justificado (epistemè) à crença ou opinião (doxa).

Em Relações Internacionais, a importância das redes baseadas no conhecimento foi inicialmente apontada por Ernst Haas no livro “When Knowledge is Power: Three Models of Change in International Organizations”, no qual o autor discute como o conhecimento pode fazer diferença nas discussões dentro de Organizações

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Internacionais, configurando-se, assim, como um tipo de poder brando (soft power) bastante efetivo na política internacional.

No entanto, a sistematização e o aprofundamento do estudo dessa subárea nas RI foi elaborada por um conjunto de autores influenciados pela abordagem construtivista, em que foca na epistemologia social, no papel do conhecimento coletivo na vida social internacional e nas comunidades, nas quais o conhecimento se origina e pelas quais se difunde político e institucionalmente (Adler, 2005: 3).

A abordagem construtivista se configurou como uma alternativa às abordagens tradicionais que se mostraram incapazes de interpretar os mecanismos de intermediação de interesses, de compreender a diversificação e a complexificação de processos

“... muitas vezes marcados por interações não hierárquicas e por um baixo grau de formalização no intercâmbio de recursos e informações, bem como pela participação de novos atores...” (Faria, 2003: 21)

A definição de comunidades epistémicas construída por Haas no artigo intitulado “Introduction: epistemic communities and international policy coordination” (1992: 4-7) agrega diversas características. A primeira refere-se a um grupo de profissionais de diversas disciplinas e com diferentes experiências, ou seja, em uma rede, os especialistas não precisam necessariamente ser da mesma área; é possível, por exemplo, na discussão sobre o aquecimento global reunirem-se biólogos, químicos, ambientalistas, internacionalistas e cientistas sociais.

A segunda característica é que os membros de uma comunidade epistêmica compartilham crenças causais, que são derivadas de suas análises práticas, conduzindo ou contribuindo para um conjunto de problemas centrais no seu domínio e, em seguida, que servirá de base para elucidar as múltiplas ligações entre as ações políticas possíveis e resultados desejados. Isto é, os especialistas de uma comunidade conseguem elucidar os problemas que realmente são fundamentais para a resolução de uma situação específica, a qual produzirá um produto esperado.

A próxima característica refere-se ao compartilhamento pelos membros da comunidade de conjuntos de princípios normativos e crenças, que fornecem um valor de base racional para a ação social dos membros da comunidade. Esta característica está relacionada à legitimidade que é concedida à autoridade dos especialistas através de princípios comuns que eles têm de adotar.

A quarta característica relaciona-se ao compartilhamento de noções de validade pelos membros da comunidade, ou seja, os especialistas adotam “testes de validade” que servirão como padrão para os próximos estudos que forem feitos.

De forma sintética, a definição de comunidades epistémicas pode ser encontrada no seguinte trecho

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“(...) a professional group that believes in the same cause-and-effect relationships, truth tests to assess them, and shares common values.(Haas, 1990: 55)

Em uma interpretação particular, definimos comunidade epistémica como um conjunto de especialistas que demonstram discurso comum, conhecimento compartilhado e diagnóstico comum sobre determinada área-problema por meio de artigos publicados, conferências e outros tipos de comunicações orais proferidas, formais ou não, relatórios para agências de governo e possui capacidade de, através desse tipo de comunicações citados, influenciar uma agenda de políticas públicas.

Segundo Haas, a lógica da coordenação da política internacional por meio das comunidades epistémicas ocorre porque as incertezas presentes no policymaking tendem a estimular demandas por informações, aquelas pelas quais surge a forte dependência dos Estados entre si e as opções políticas para o sucesso na obtenção de metas, e as que envolvem múltiplas e apenas parcialmente estimáveis consequências da ação. As comunidades epistémicas são um possível fornecedor desse tipo de informação e de aconselhamento.

Já para Emanuel Adler (2005), as ideologias podem ser poderosas porque elas dizem aos atores quais os objetivos mais relevantes, quais podem ser concretizados, e a importância desses objetivos comparados a outros, ao mesmo tempo em que identificam aliados e opositores à causa valorizada pelos atores. As ideologias são variáveis importantes para a compreensão do comportamento político e econômico, porque elas têm suas origens não reduzidas ao desenvolvimento material e podem ter efeitos substanciais e independentes, podendo se transformar em potente força política.

O argumento de Adler é que as ideologias podem formar consensos e estes servem como uma “luz” para entender o comportamento de pessoas dentro de grupos e instituições. Dentro de instituições, há uma tendência a entendimentos coletivos e estes últimos ajudam na concretização de objetivos, tornando esses entendimentos pré-condições para mudanças institucionais.

Em relação à capacidade de influenciar políticas, as comunidades epistémicas, conforme argumento de Haas, devem institucionalizar essa influência e insinuar seus pontos de vistas na política internacional. Elas influenciam decision-makers, que podem influenciar interesses e comportamentos de outros Estados. O que pode levar a um aumento na probabilidade de haver convergência nos comportamentos e da coordenação política. As comunidades podem, então, contribuir também para a criação e manutenção de instituições sociais que guiam o comportamento internacional.

A figura a seguir resume o processo de influência de comunidades epistémicas nas burocracias.

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Expansão da profissionalização de burocracias e crescimento da natureza técnica dos

problemas

Aumento da expertise técnica, particularmente, a científica

Autoridade cognitiva (Comunidades Epistémicas)

“Permissão” da comunidade científica

Policymaking mais racional

Épossível observar na figura anterior que se estabelece um papel de intermediador das comunidades epistémicas no processo de racionalização do policymaking, agindo como um legitimador de políticas.

Para Goldstein e Keohane (1993: 3), uma comunidade epistêmica se forma com a produção de consensos sobre determinado assunto junto a uma comunidade de especialistas. Esse consenso é decisivo para dar unidade para a atuação desse ator, e reforçar sua influência na definição e condução de políticas nacionais, influenciando os policymakers sobre a viabilidade de uma determinada política.

Estudos baseados na abordagem sobre comunidades epistémicas são representativos. O livro “Communitarian International Relations” de Emanuel Adler apresenta estudos caso feitos pelo autor na década de 1990, como a constituição da indústria brasileira de computadores e controle de armas nucleares nos EUA.

No caso da indústria brasileira de computadores, Adler aponta que o comportamento dos atores políticos relevantes para a formulação das políticas no Brasil poderia ser assemelhado à formação daquilo que ele chamou de “guerrillas”, um comportamento bastante previsível por que ideologicamente orientado. A partir de um pequeno grupo de atores radicalmente comprometidos com uma ideologia anti-dependentista, o processo de discussão dessas políticas induziu e cooptou as elites económicas e políticas tanto do Brasil como da Argentina a cerrarem fileiras em torno da proposta de uma política de reserva de mercado que protegesse a indústria local e permitisse o seu desenvolvimento.

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III. Comunidades Epistémicas e Elites Académicas

Pode-se dizer, então, que o comportamento das elites é fortemente influenciado por fatores cognitivos e ainda que balizado pelos constrangimentos impostos pela estrutura institucional. Nesse sentido, Adler (2005: 147) afirma que

“Ideological elites such as Brazil’s pragmatic anti-dependency guerrillas have the ability to mobilize the collective beliefs, expectations, and concepts that are ultimately responsible for institutional action.”

Deste modo, decisionmakers tem se voltado para os especialistas para diminuir as incertezas, ajudá-los a entender as questões-agendas (issues) correntes e antecipar tendências. Sem a ajuda dos especialistas, eles arriscam fazer escolhas que não somente ignoram as ligações com outras issues, mas também uma alta incerteza do futuro com o resultado que a escolha política traz consigo que poderia comprometer escolhas futuras e ameaçar futuras gerações. (Haas, 1992: 4)

O conceito de incerteza é importante na análise de Haas. Primeiro, porque, diante da incerteza, muitas das condições que facilitariam o foco no poder estão ausentes. E segundo porque condições mal-entendidas podem deixar as instituições sem funções, impraticáveis. Nem poder, nem pistas institucionais para o comportamento estarão disponíveis, e novos padrões de ação podem se suceder.

Para Nelkin (1975: 36), os cientistas desempenham um papel ambivalente na área política, sendo ao mesmo tempo “indispensáveis” e “suspeitos”, pois o seu conhecimento técnico é uma fonte de poder. Conforme a autora, a autoridade dos cientistas reside na racionalidade com que são feitos seus diagnósticos, suas interpretações e suas predições, porque julga-se que suas ações estariam baseadas em dados objetivos obtidos por meio de processos racionais, avaliados pela comunidade científica através de um rigoroso processo de controle.

Haas também propõe que a racionalidade científica passa a ser um paradigma alternativo de conhecimento como modelo para decisionmaking. Esse processo teve origem com a proliferação dos ministérios e agências governamentais, as quais tinham a função de coordenar diversas novas tarefas, tornando a regulação uma importante função burocrática e a expertise passou a ser requisitada em muitas disciplinas, como nunca antes (Haas, 1992: 8).

Alguns policymakers, de acordo com Nelkin, avaliam que é mais eficiente e confortável definir decisões como técnicas, mais do que políticas, tornando, então, o conhecimento científico base para um planejamento substantivo, ou mais especificamente, um “defensor” da legitimação de decisões específicas. A autora ainda aprofunda seu argumento afirmando que a viabilidade de uma burocracia depende muito mais do controle e monopólio do conhecimento em uma área específica (Nelkin, 1975: 36-37).

Já para Amitav Acharya, as elites são importantes no processo que ele denomina de localização, o qual se refere ao processo de difusão de normas em que agentes locais reconstroem normas estrangeiras para assegurar que as normas adquirem forma com as prioridades as identidades dos agentes. As elites atuariam, assim, como os

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intermediadores nesse processo, fornecendo a informação necessária para a concretização dele (Acharya, 2004: 241-242).

No entanto, há a necessidade de se considerar que, em conformidade com o argumento de Haas, o conhecimento transmitido pelos especialistas não é necessariamente a verdade e sim um conhecimento consensual. Isto é, o aconselhamento de especialistas traz consigo as interpretações do conhecimento deles, baseadas nas visões de realidade e nas noções de validade deles (Haas, 1992: 21).

Discutir comunidades epistémicas é discutir também o potencial poder que possui a elite do conhecimento em moldar políticas. Deste modo, a capacidade de influenciar políticas da elite do conhecimento torna-se um tipo de Soft Power, servindo como balizador na condução e na estruturação de novas políticas.

IV. Estudo de Caso: A regulação do uso de células-tronco no Brasil

Em março de 2005, a Lei que regulamentava o uso de células-tronco no Brasil foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. A Lei de Biossegurança, como foi chamada, autorizou e regulamentou as investigações com células-tronco embrionárias de seres humanos e liberou o plantio e comercialização de organismos geneticamente modificados, popularmente conhecidos como transgênicos. No entanto, o processo não foi tão simples, envolveu diversas discussões com cientistas, sociedade civil e mídia.

Considerado um tema de fronteira, o uso de células-tronco vem sido alvo de diversas pesquisas no mundo todo. No Brasil, especificamente, a comunidade científica tem buscado junto aos políticos a regulamentação de suas pesquisas com o intuito também de evitar que se faça mal uso do potencial das células-tronco e evitar excessos. “É preciso evitar experiências de fundo de quintal e ao mesmo tempo dar infra-estrutura para os cientistas”, afirma Mayana Zatz, Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e pró-reitora de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à jornalista Karla Bernardo para o site Ghente.

De acordo com a geneticista (Zatz , 20041), as células-tronco são

[...] células progenitoras que mantêm a capacidade de diferenciar nos inúmeros tecidos (sangue, músculos, nervos, ossos etc..) do corpo humano.

São totipotentes quando tem a capacidade de diferenciar-se em qualquer um dos tecidos humanos e pluripotentes quando conseguem diferenciar-se em alguns, mas não em todos os tecidos humanos.

Essa capacidade que estas células possuem pode ser aproveitada no tratamento de doenças genéticas, tais como diabetes, mal de Alzheimer, mal de Parkinson. Conforme o cientista Radovan Borojevic,

“... pode-se (sic) utilizar células-tronco embrionárias para corrigir um organismo geneticamente defeituoso. Ao implantar estas células

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embrionárias dentro do organismo (após manipulação em laboratório), potencialmente elas terão capacidade de se diferenciar em outras células e terão a capacidade de promover uma regeneração por que elas não vão ter o defeito genético que o resto do organismo tem”2.

Assim como em outros países, o Brasil passou por um processo longo de regulamentação desse tipo de pesquisa. Vários atores se envolveram na discussão da aprovação da lei que regulamentava o uso de células embrionárias. O principal ator que se mobilizou na aprovação da Lei de Biossegurança no Congresso Nacional foram os cientistas.

Os principais meios de envolvimento dos cientistas foram audiências públicas, com apresentação de forma didática de esquemas sobre os procedimentos do emprego de células embrionárias, conversas informais com senadores, além de confecção de artigos e da presença dos próprios cientistas e pacientes nas sessões de votação da lei.

A especialista em células-tronco umbilicais da faculdade de Farmácia e de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Patrícia Pranke declarou que esteve em Brasília no mínimo umas 20 vezes durante a tramitação do projeto de Lei no Congresso para fazer, segundo ela, “um trabalho de formiguinha”3.

E em depoimento à Revista de Pesquisa FAPESP de 15 de agosto de 2008, a geneticista Mayana Zatz declarou

“Teve início a minha peregrinação em Brasília. Comecei a participar de audiências públicas e a conversar com senadores, porque a lei voltou ao Senado para ser reescrita. Nós visitamos os senadores, um por um, para tentar explicar a importância dessa lei. E ela acabou aprovada no Senado no final de 2004 com 96% dos votos favoráveis”

a respeito da rejeição da Lei na primeira vez que foi à votação na Câmara de Deputados em fevereiro de 2004.

A proposta, então, aprovada no Senado voltaria para a Câmara para ser novamente apreciada pelos deputados. E na época, Severino Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados, hesitou em colocar o projeto na pauta para ser votado, pois era ligado à ala católica do Congresso. Alguns cientistas, liderados por Mayana se reuniram com o deputado e explicaram minuciosamente quais seriam as potencialidades das pesquisas na cura de doenças crônicas. E, deste modo, os cientistas saíram da reunião com a promessa do presidente da Câmara que ele colocaria a lei para ser votada.

As principais dificuldades enfrentadas para aprovação da lei eram a sua abrangência e o medo relativo à clonagem humana. A primeira versão da lei que foi enviada ao Congresso reunia a problemática do uso dos transgênicos e a questão das células embrionárias. Diante da resistência das bancadas evangélicas e católicas em relação ao uso de células-tronco e da bancada ambientalista em relação aos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), o autor do relatório Renildo Calheiros (deputado do PCdoB-CE) vetou a clonagem terapêutica e limitou a competência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) à autorização para pesquisas, conferindo

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ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) poder para decidir sobre o plantio e comercialização de OGMs.

Entretanto, a questão da clonagem reprodutiva humana, que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo, é condenada por todos os cientistas. O documento A Propósito da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei que Autoriza a Pesquisa em Células-Tronco Embrionárias (2005: 5) reflete claramente este ponto de vista quando pontua

“Em consonância com as diretrizes defendidas pela comunidade académica do mundo todo, também a comunidade científica brasileira reprova explicitamente experimentos que tenham por meta a clonagem reprodutiva em humanos”.

Visando demonstrar a posição brasileira sobre a questão da clonagem humana em nível mundial, a Academia Brasileira de Ciências pediu que Mayana Zatz ajudasse a escrever um documento que estava sendo redigido por pesquisadores de vários países sugerindo o banimento da clonagem reprodutiva. Junto com outros cientistas, Zatz ajudou a escreveu um documento, que foi ratificado por 63 países, condenando a clonagem humana, mas defendendo as pesquisas com células-tronco embrionárias

Os principais argumentos que a comunidade científica utilizou se referiam a possível utilização das células-tronco na cura de doenças genéticas, à terapia preventiva (no caso de pais que decidem congelar células-tronco do embrião de seus filhos para posterior utilização caso necessário) e, entre outros, a situação das pesquisas sobre o assunto no resto do mundo. O argumento do andamento das pesquisas do mundo pode ser observado no quadro abaixo que está no documento redigido por Mayana et all (2005).

Quadro 1 – Resumo do status das pesquisas com células-trono em diversos países

Resumo da situação da derivação de linhagens de células-tronco embrionárias e

transferência de núcleo em alguns países

Países que permitem a derivação de linhagens de células-tronco embrionárias e a transferência de núcleo (clonagem terapêutica)

Reino Unido, China, Bélgica, Israel, Japão, Coréia do Sul, Singapura

Países que permitem a derivação de linhagens de células-tronco embrionárias, mas não permitem a transferência de núcleo (clonagem terapêutica)

Austrália, Brasil, Canadá, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irã, Letônia,

Holanda, República Checa, Rússia, Eslovênia, Espanha, Taiwan, Suíça

Achefe do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências da USP, Lygia Pereira acrescenta à lista dos argumentos apresentados a questão da reprodução assistida, a qual é praticada no Brasil desde 1978, [...] talvez sem nos darmos conta, ao aceitarmos as técnicas de reprodução assistida em 1978, aceitamos a destruição

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deste embrião, desta forma de vida humana. Sim, há quase 30 anos que em todo mundo esta prática médica gera embriões humanos (“bebês de proveta”) que não são utilizados para fins reprodutivos e acabam sendo congelados ou simplesmente descartados – e viemos convivendo com este fato com muita tranqüilidade.

A cientista refere-se ao aspecto da Lei de Biossegurança que permite a pesquisa com células-tronco apenas com embriões congelados até março de 2005 e que estejam congelados a mais de três anos, resultantes de procedimentos de reprodução assistida que não foram utilizados para a fertilização.

A participação dos cientistas foi decisiva para a aprovação da Lei de Biossegurança pelo Congresso Nacional brasileiro e posterior sanção pelo presidente Luís Inácio. Um dos aspectos que pode ser inferido, seguindo a linha de análise das comunidades epistémicas, é a questão do compartilhamento de crenças causais, pois a partir das experiências cotidianas dos cientistas com pesquisas e com seus pacientes, eles definem quais os problemas centrais das suas pesquisas e contribuem para o estabelecimento de links com ações políticas na área, produzindo determinado resultado. Por exemplo, a Mayana Zatz declara que decidiu se envolver em pesquisa sobre células-tronco a partir de sua experiência com pacientes com doenças neurológicas, especificamente doenças com degeneração progressiva da musculatura4.

Outro aspecto importante que configura o caso da regulamentação do uso de células- tronco no Brasil como passível de ser compreendido por meio do estudo das comunidades epistémicas é o tópico do “teste de validade”. Ao se referir a resultados sobre a identificação de células-tronco na medula óssea adulta com propriedades semelhantes às das células-tronco embrionárias pelo grupo de Catherine Verfaillie e não conseguindo ser reproduzidos por nenhum outro pesquisador no mundo, os cientistas brasileiros ligados à área escreveram o seguinte comentário.

Porém mais importante ainda é informar que os estudos da Dra. Verfaillie não puderam ser reproduzidos por vários laboratórios de eminentes cientistas no mundo todo, colocando este achado naquela situação em que a ciência exige comprovação por, e concordância de vários grupos de pesquisa para que o resultado passe a ser aceito como verdade científica. De qualquer forma, no momento, essa população de células, se existe, não pode ser separada e estudada praticamente, e por isso a viabilidade de sua utilização para tratamentos é nula5.

Há, portanto, indicadores de que se formou uma comunidade epistêmica em torno do debate sobre o uso de células-tronco no Brasil. O primeiro indicador refere-se a diversidade de atores participante do grupo que buscava a aprovação da Lei de Biossegurança. O fato de o grupo ser interdisciplinar, no qual há profissionais de diversas áreas: médicos, informatas, biológos, estatísticos, matemáticos, educadores, físicos, dentre outros. Essa é a primeira característica importante de uma comunidade epistêmica: ser composta de membros originários de diferentes áreas de formação acadêmicas.

O segundo indicador está relacionado à influência no planejamento de políticas de públicas e na formação de agenda para a área. Ou seja, o grupo consegue influenciar o policymaking da área no país. Este indicador pode ser comprovado quando recordamos toda a trajetória dos cientistas de idas ao Congresso Nacional Brasileiro na tentativa de convencer os parlamentares brasileiros da importância da aprovação da Lei de Biossegurança, por meio de palestras educativas e apresentação de estudos de caso.

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O terceiro indicador é de formar agendas de discussões internacionais, ou até mesmo, influenciar diretamente o uso de técnicas brasileiras do uso de células-tronco para tratamento de doenças degenerativas em outros países, promovendo soluções simples para problemas que ainda não tinham sido resolvidos.

O quarto indicador é a presença do consenso nas decisões e estratégias do grupo de cientistas de convencimento dos policymakers aprovação da lei. Originalmente nos trabalhos relacionados às comunidades epistêmicas, o consenso é apontado como fundamental para o processo de influência no policymaking. O consenso é decisivo para dar unidade para a atuação do ator comunidade epistêmica, e reforçar sua influência na definição e condução de políticas nacionais, influenciando os policymakers sobre a viabilidade de uma determinada política.

V.Considerações Finais

Um importante legado do estudo sobre o papel das ideias e das comunidades epistémicas, especificamente, é que ideias inspiram políticas. E as comunidades epistémicas funcionariam como canais pelos quais novas ideias circulam da sociedade para os governos, assim como de país para país.

A informação, nesse processo, consiste na descrição de processos físicos ou sociais, suas inter-relações com outros processos, e as prováveis conseqüências para ações que requerem aplicações de expertises científicas ou técnicas. A informação não é, assim, nem palpites, nem dados brutos. É o produto de interpretações humanas de fenômenos sociais e físicos. As comunidades epistémicas são um possível fornecedor desse tipo de informação e de aconselhamento.

A partir de uma análise restrospectiva e bibliográfica sobre a atuação comunidades epistémicas, logramos vincular quatro características atribuídas a esses atores à comunidade profissionais ligados à utilização de células-tronco para pesquisa no Brasil, o que nos permite afirmar que existe uma comunidade epistémica no país quando a área de estudo é células-tronco.

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Volker. (ed). Regime Theory and International Relations. Oxford: Oxford University Press.

VII. NOTAS

1Artigo disponível no site http://www.ghente.org/temas/celulas-tronco/artigos_mayana.htm <Acesso em 18 de dezembro de 2009>

2Entrevista concedida ao site Ghente. Células-tronco: O Brasil a um passo da criação de órgãos em laboratório. Disponível em http://www.ghente.org/temas/celulas-tronco/artigos_radovan.htm <Acesso em 18 de dezembro de 2009>

3Entrevista concedida à Shirley de Campos. Nova lei autoriza pesquisas com células-tronco e libera comercialização de transgênicos. Disponível em www.drashirleydecampos.com.br/noticias/15201 <Acesso: 10 de dezembro de 09>

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In: Revista de Pesquisa FAPESP. op cit.

Marco Antonio Zago, Mayana Zatz e Antonio Carlos Campos de Carvalho. A Propósito da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei que Autoriza a Pesquisa em Células-Tronco Embrionárias. (p.5) Dez de 2005. Disponível em www.ghente.org/temas/celulas-tronco/abc_prol_cel_tronco.pdf <Acesso em 10 de dezembro de 09>

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