OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 1 (Maio-Outubro 2013), pp. 64-78

REGRESSO AO FUTURO: A GUERRA AÉREA NA LÍBIA

João Paulo Nunes Vicente

joao.vicente.6@gmail.com Docente no Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM, Portugal). Investigador do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do IESM. Licenciatura em Ciências Militares e Aeronáuticas pela Academia da Força Aérea (1995), Mestrado em Estudos da Paz e da guerra nas Novas Relações Internacionais pela Universidade Autónoma de Lisboa (2007). Master of Military Operational Art and Science, pela Air University, Alabama, EUA (2009). Doutorando em Relações Internacionais, Especialidade de Estudos de Segurança e Estratégia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

Resumo

Um século volvido após a primeira missão de bombardeamento aéreo, uma nova intervenção no mesmo espaço geográfico, revelou inequivocamente a transformação ocorrida no Poder Aéreo. A Guerra Aérea na Líbia alterou radicalmente o rumo de uma guerra civil, dando cumprimento a um mandato da ONU para proteger a população líbia, impor uma zona de exclusão aérea e um embargo de armas. Neste sentido, a Operação Unified Protector tornou-se numa das campanhas com maior sucesso na história da NATO.

Pretende-se avaliar neste ensaio a eficácia operacional do emprego do Poder Aéreo no conflito da Líbia, destacando os desafios de uma Guerra essencialmente aérea. Apesar dos resultados militares obtidos e da concretização dos objetivos políticos estabelecidos para a operação é possível identificar algumas tendências preocupantes, que se não forem corrigidas, podem no futuro influenciar negativamente as operações da NATO. Nesse sentido, não se pretende extrair conclusões gerais e universais sobre o valor estratégico do Poder Aéreo a partir da análise de um caso concreto, mas acima de tudo identificar algumas lições que influenciaram a eficácia operacional da OUP. Assim, teremos de observar alguns fatores determinantes como a abrangência dos objetivos, a tipologia de ação adversária e a estratégia aérea empregue pela coligação, fazendo depois emergir os desafios resultantes da OUP..

Palavras chave:

Poder Aéreo, Guerra da Líbia, Operação Unified Protector, NATO

Como citar este artigo

Vicente, João Paulo Nunes (2013). "Regresso ao futuro: a guerra aérea na Líbia". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 1, Maio-Outubro 2013. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n1_art5

Artigo recebido em 13 de Setembro de 2012 e aceite para publicação em 24 de Janeiro de 2013

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Regresso ao futuro: a guerra aérea na Líbia

João Paulo Nunes Vicente

REGRESSO AO FUTURO: A GUERRA AÉREA NA LÍBIA

João Paulo Nunes Vicente

Introdução

A história tem formas curiosas de se repetir. Em outubro de 2011 completou-se o primeiro século da Guerra Aérea, curiosamente, do mesmo modo e no mesmo local onde começou o segundo – com aeronaves militares a bombardearem o deserto da Líbia.

Em 15 de outubro de 1911, apenas oito anos após o primeiro voo tripulado dos irmãos Wright, nove aeronaves e 11 pilotos italianos aterram na Líbia para apoiarem o conflito entre o Exército italiano e o turco-otomano. No primeiro dia de novembro, o jovem piloto Giulio Gavotti apresentou ao mundo a ideia da Guerra Aérea, inaugurando a era do bombardeamento aéreo e abrindo caminho a todos os horrores que dela adviriam. Numa carta ao seu pai, Gavotti escreveu:

“Hoje chegaram duas caixas de bombas. Esperam que as larguemos do ar. É estranho que os nossos superiores não nos tenham dito nada sobre isto. Por isso nós vamos levá-las a bordo com muito cuidado. Será muito interessante experimentá-las sobre os turcos” (Johnston, 2011).

Continuando na primeira pessoa, Gavotti descreve o momento histórico. “Junto do assento, dentro de um saco, coloquei três bombas pequenas com um quilo e meio. No bolso do casaco coloquei outra. Quando avistei o alvo, umas tendas num oásis, coloquei as bombas no colo, retirei a cavilha de segurança e atirei-as, evitando atingir a asa do avião” (Idem).

Segundos após a largada, efetuou a avaliação de danos resultantes do primeiro bombardeamento aéreo da história. Apesar da destruição negligível, Gavotti mostrou que as missões das aeronaves não se limitavam ao reconhecimento do campo de batalha, como meros observadores avançados das forças terrestres. Longe da sua imaginação estava porém, tanto a destruição imposta nas décadas seguintes, como a evolução das capacidades aéreas, transformando o Poder Aéreo no principal instrumento de coação militar.

Um século volvido, uma nova intervenção no mesmo espaço geográfico, revelou inequivocamente a transformação ocorrida no Poder Aéreo, suscitando o comentário do

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Secretário-Geral da Aliança1 de que “nenhuma operação aérea na história foi tão precisa e tão cuidadosa em evitar sofrimento aos civis” (Rasmussen, 2011a).

A derradeira missão de ataque na Líbia ocorreu na cidade de Sirte às 08:30 de 20 outubro de 2011. O veículo não-tripulado Predator em patrulha de combate, controlado via satélite a partir dos Estados Unidos da América (EUA), detetou uma coluna de 75 veículos armados a abandonar a cidade. O disparo de misseis Hellfire a partir do Predator americano levou à dispersão da coluna. Momentos depois, uma parelha de caças-bombardeiros Mirage F1CR e Mirage 2000D franceses foi dirigida para o local por uma aeronave de comando e controlo E-3D AWACS inglesa. O Mirage 2000D largou uma bomba guiada GBU-12 que destruiu 10 veículos. A interdição desta coluna de viaturas permitiu a captura de Qadafi, pondo termo a um conflito que teve início em 19 de março do mesmo ano (NATO, 2011a).

A Guerra Aérea alterou radicalmente o rumo de uma guerra civil, dando cumprimento a um mandato da Organização das Nações Unidas (ONU) para proteger a população líbia, impor uma zona de exclusão aérea e um embargo de armas. Neste sentido, a Operação Unified Protector (OUP) tornou-se numa das campanhas com maior sucesso na história da NATO (Rasmussen, 2011b). Na sequência da operação, o emprego do Poder Aéreo reemergiu como um instrumento predominante para coagir o adversário sem incorrer em riscos e custos demasiado elevados, nomeadamente em baixas humanas. É esta capacidade de dissuadir e influenciar potenciais adversários, afetando diretamente as suas fontes de poder e vontade de lutar, sem que para isso tenha de depender exclusivamente do combate direto, que tornam esta opção militar politicamente atrativa.

Pretende-se avaliar neste ensaio a eficácia operacional do emprego do Poder Aéreo no conflito da Líbia, destacando os desafios de uma Guerra essencialmente aérea. Apesar dos resultados militares obtidos e da concretização dos objetivos políticos estabelecidos para a operação é possível identificar algumas tendências preocupantes, que se não forem corrigidas, podem no futuro influenciar negativamente as operações da NATO. Nesse sentido, não se pretende extrair conclusões gerais e universais sobre o valor estratégico do Poder Aéreo a partir da análise de um caso concreto, mas acima de tudo identificar algumas lições que influenciaram a eficácia operacional da OUP. Assim, teremos de observar alguns fatores determinantes como a abrangência dos objetivos, a tipologia de ação adversária e a estratégia aérea empregue pela coligação, fazendo depois emergir os desafios resultantes da OUP.

O Poder Aéreo: vetores de um conceito

Seguindo o preconizado por Clauzewitz, de que a Guerra é a continuação da política por outros meios, facilmente se compreende que qualquer campanha militar tenha o seu início com a determinação política do estado final desejado2. A NATO classifica as operações de acordo com temas predominantes de campanha3, os quais exigem diferentes aproximações e capacidades militares. Todos estes temas requerem, em maior ou menor grau, de forma simultânea ou sequencial, as mesmas modalidades de

1NATO - North Atlantic Treaty Organization.

2Situação política e/ou militar a ser alcançada no fim de uma operação (AAP-6, 2010).

3Combate; Segurança; Operações de apoio à paz; Envolvimento militar em tempo de paz (AJP 3(B), 2011:1-3).

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atividades militares4. A predominância de certas modalidades em detrimento de outras define o carácter de cada campanha. Por exemplo, uma campanha de combate consiste primariamente de atividades ofensivas. Por outro lado, uma campanha de segurança tem uma mistura complexa das quatro modalidades. No sentido de contribuir para os diversos temas de campanha, através das várias atividades militares, as componentes militares exploram as características e capacidades do Poder Aéreo, incluindo o meio espacial, para criarem efeitos5 letais e não letais no sentido de alcançar os objetivos6 conducentes à obtenção do estado final desejado.

Desde o advento do voo tripulado que os teóricos do Poder Aéreo têm defendido a sua eficácia. Contudo, ao longo da história, declarações extremas acerca dos resultados decisivos do emprego do Poder Aéreo têm esbatido o valor concetual e real deste inestimável instrumento de Poder. A concetualização do Poder Aéreo, enquanto instrumento de combate à distância, remonta à visão original de ultrapassar o cruel combate travado na superfície. As características intrínsecas de altura, velocidade e alcance, fornecem ao Poder Aéreo vantagens operacionais distintas dos restantes instrumentos militares, permitindo uma perspetiva mais alargada do espaço de batalha, maior rapidez e distância percorrida, assim como o movimento tridimensional sem restrições, alterando de forma fundamental as dinâmicas do conflito.

A flexibilidade das capacidades aéreas, expressa segundo as dimensões geográfica, operacional e de efeitos, permite que estas respondam a múltiplos desafios (Sabin, 2010). A flexibilidade geográfica resultante da capacidade de evitar os exércitos e marinhas adversárias, minimizando o impacto da geografia, permite atuar em diversos teatros e mover-se rapidamente entre eles, atacando alvos em profundidade sem que para isso tenha de ganhar vantagem no ambiente terrestre. A flexibilidade operacional revela a capacidade de operação de forma transversal ao espetro de conflitos, ao mesmo tempo que minimiza os riscos de emprego de força militar. A fragilidade de meios aéreos, como os helicópteros e veículos não tripulados, é compensada pela exploração da altitude e velocidade para evitar o envelope de ameaças. A flexibilidade de efeitos, resultante de melhorias na consciência do espaço de batalha, sobrevivência e precisão do armamento, é expressada pela possibilidade de obtenção do efeito de massa sem ter de massificar forças e uma melhor adequação de efeitos ao ambiente de combate.

Neste âmbito, poderemos encarar o Poder Aéreo como fornecedor de liberdade de ação política e militar (Dalton, 2010). Ao nível político, fornece a capacidade de defesa aérea do território, assim como alternativas estratégicas para emprego da força, no sentido de exercer influência global, de forma gradual e sustentada. No plano militar, fornece a capacidade de alcançar o controlo do ar, pré-requisito para qualquer operação militar expedicionária moderna. Todavia, na perspetiva política, a Guerra, em particular quando combatida por interesses que não vitais, terá sempre restrições e constrangimentos que influenciarão a estratégia e eficácia do Poder Aéreo. Essas limitações ou condicionantes ao uso da força podem incluir entre outras medidas, restrição de alvos, minimização de danos colaterais, duração do conflito, números de

4Ofensiva; Defensiva; Estabilização e Facilitadores (AJP 3(B), 2011: 1-3).

5São um estado físico ou comportamental de um sistema em resultado de uma ação, um conjunto de ações, ou outro efeito (JP 5-0, 2011: xxi).

6Os objetivos são importantes para o comandante da força conjunta porque ligam o propósito da operação ao estado final desejado, orientando os esforços da campanha no sentido de priorizar o emprego dos recursos disponíveis. Ajudam, por isso, a organizar as tarefas e efeitos no tempo e espaço.

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meios empregues, área de operações, ou adesão estrita às Regras de Empenhamento (ROE).

Análise operacional do emprego do Poder Aéreo na Guerra da Líbia

Um dos exemplos históricos que sintetiza a eficácia do Poder Aéreo para coagir uma alteração de comportamento adversário foi o ataque à Líbia em 1986. A Operação El Dorado Canyon tinha objetivos limitados, foi empregue contra um adversário convencional, atacou infraestruturas críticas do sistema e foi integrada com outros instrumentos de poder. Os objetivos políticos visaram punir Qadafi pelo ataque efetuado contra forças americanas em Berlim, assim como dissuadir o regime de patrocinar ações terroristas. Apesar dos constrangimentos políticos obrigarem à redução de risco para as forças americanas e minimização de danos colaterais, foi possível criar efeitos substanciais no comportamento de Qadafi (Stanik, 2003: 151). No entanto, convém lembrarmos que esta alteração foi efémera, já que dois anos depois de sofrer o ataque, o regime de Qadafi foi responsável pelo atentado de Lockerbie, atingindo um avião comercial e vitimando 270 pessoas. Todavia, esta operação mostrou que a aplicação do Poder Aéreo, em combinação com medidas económicas e diplomáticas, pode influenciar e facilitar a obtenção de objetivos de política externa, pelo menos a curto prazo. Cinco anos depois, as lições aprendidas nesta operação foram aplicadas em larga escala no conflito do Golfo Pérsico.

Vinte e cinco anos depois do primeiro ataque, uma nova operação aérea contra Qadafi, com objetivos também limitados, impôs efeitos mais decisivos e duradouros. Quando os analistas perspetivavam o fim dos conflitos inter-estatais e após uma década de envolvimento em duas Guerras irregulares com elevados custos humanos e materiais, a história repete o sucesso do Poder Aéreo como instrumento de coação. À semelhança do conflito no Kosovo, a recente operação na Líbia veio confirmar a eficácia operacional do Poder Aéreo. Ao contrário da perceção sobre as Guerras terrestres como dispendiosas, com baixas elevadas e que se arrastam no tempo, a operação da Líbia fez despertar, novamente, o interesse político pelas campanhas aéreas.

Na sequência da Guerra civil travada na Líbia, e segundo o paradigma de “responsabilidade de proteger”, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a 17 de março de 2011 a Resolução 1973, autorizando a utilização de todas as medidas necessárias para proteger os civis, mas excluindo a ocupação do território. A 19 de março de 2011, uma coligação multinacional liderada pelos EUA7, iniciou a intervenção militar com o objetivo de implementar o mandato da ONU.

A 31 de março, a NATO assumiu o comando das operações, estendendo a coligação a 18 países8, mantendo como objetivo primário da OUP a proteção dos civis e das áreas povoadas sob ameaça de ataques, garantindo a exclusão de emprego da componente terrestre. A missão era composta por um embargo naval, uma zona de exclusão aérea e ações ofensivas para cumprir os objetivos do mandato. Após 214 dias de operações aéreas por cerca de 260 aeronaves, em que foram realizadas mais de 26.500 saídas, das quais mais de 9.700 de ataque, que destruíram mais de 5.900 alvos incluindo 400

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Foram estabelecidas diferentes nomenclaturas para as operações consoante o participante: Operação Harmattan pela França; Operação Ellamy pela Inglaterra; Operação Mobile pelo Canadá e Operação Odyssey Dawn pelos EUA. Posteriormente, a Operação Unified Protector liderada pela NATO.

Entre os quais a Jordânia, Qatar, Emirados Árabes Unidos e Suécia.

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posições de artilharia e lançadores de rockets e mais de 600 blindados, a OUP foi terminada a 31 de outubro de 2011, tornando-se uma das campanhas com maior sucesso na história da Aliança (NATO, 2011b). Até porque, durante as operações aéreas apenas se registou a perda de três aeronaves (umas das quais um helicóptero não tripulado), não se tendo verificado quaisquer baixas humanas na coligação.

Este conflito renovou a tendência recente das operações militares com pegada operacional reduzida, combinando forças especiais em apoio de forças rebeldes e doses precisas de Poder Aéreo, fazendo lembrar o sucesso do “Modelo Afegão” na fase inicial da Operação Enduring Freedom no Afeganistão. Neste modelo operacional, o Poder Aéreo, uma vez mais, eliminou a eficácia de um exército regular e providenciou uma capacidade assimétrica e esmagadora a um grupo rebelde mal treinado e equipado, para derrotar as forças leais ao regime. Nesse sentido, a campanha aérea limitada, com recurso exclusivo a munições de precisão, revelou-se como a operação aérea mais precisa da história (Rasmussen, 2011a).

Contudo, para avaliarmos a eficácia operacional do emprego do Poder Aéreo e retirarmos algumas lições sobre esta operação, teremos de nos debruçar sobre alguns fatores essenciais, nomeadamente a natureza dos objetivos, tipologia de adversário e estratégia aérea.

Os objetivos políticos da intervenção foram definidos pelo mandato da ONU. No entanto, à medida que a operação se foi desenrolando, também foi crescendo a ambiguidade dos objetivos políticos. Para os EUA, a intervenção na Líbia enquadrou-se nos parâmetros da doutrina Obama, segundo a qual os interesses humanitários justificam a ação militar, estritamente limitada, sem envolvimento de forças terrestres e num esforço partilhado multilateral, incluindo a liderança das operações (Biddle, 2011). Nesta perspetiva de política externa, o Poder Aéreo constitui-se como uma opção irresistível, porque mais precisa, menos dispendiosa e com menor risco político e operacional. Talvez isto ajude a explicar o facto de apenas 10 dias após a decisão de intervir tivessem ocorrido as primeiras missões sobre a Líbia9.

Enquanto para os rebeldes líbios, esta foi uma luta vital, para a NATO, a OUP foi mais uma operação limitada, sujeita a interesses políticos diversos e segundo um mandato da ONU que restringia a aplicação da estratégia aérea mais eficaz. A ambiguidade, ou melhor a dessincronia de objetivos, residia nas diferenças entre os propósitos elencados pela NATO e as declarações políticas dos países participantes. Alguns dos países, como a Inglaterra e a França, elencaram a remoção de Qadafi como um objetivo da operação, mas nunca o demonstraram explicitamente. O próprio comandante da OUP, General Bouchard, apontou para estas diferenças entre a comunicação estratégica da NATO e as relações públicas dos países. Segundo ele, o facto dos objetivos da operação não coincidirem frequentemente com os objetivos nacionais, o tempo reduzido para planeamento da operação (cerca de três semanas para preparar os planos de operações), assim como as reduzidas capacidades no terreno e o ambiente caótico que se fazia sentir, aumentaram a complexidade do planeamento e execução (Gomes, 2011).

9Comparativamente com os 11 meses que demoraram na intervenção no Kosovo em 1999, desde a aprovação do mandato da ONU até à primeira missão de implementação da zona de exclusão aérea (Shanker; Schmitt, 2011).

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Relativamente à natureza do adversário e das suas táticas podemos dizer que as forças militares líbias adotaram inicialmente uma postura convencional. A geografia do espaço de batalha favoreceu o emprego dos meios aéreos e de fogos navais contra forças convencionais que se movimentassem em espaços abertos, impedindo o abastecimento logístico e a massificação das forças. A mudança gradual para táticas irregulares por parte do Exército líbio foi uma consequência natural dos ataques aéreos. Ao copiarem as táticas dos rebeldes, como o uso de veículos civis, transportando diverso armamento, e o abandono dos uniformes militares, tornaram as operações aéreas ainda mais complexas. Da mesma forma, o emprego pelas forças rebeldes de material capturado contribuiu para aumentar o “nevoeiro da Guerra”, sendo um dos motivos explicativos para um dos incidentes de danos colaterais em que foram atacados blindados líbios, mas operados pelos rebeldes (Svendsen, 2011: 56).

No que concerne à estratégia aérea colocada em prática pela coligação e em face dos inúmeros constrangimentos, o emprego do Poder Aéreo foi orquestrado segundo uma aproximação gradualista e seguindo uma preocupação de minimizar os danos colaterais. O ataque inicial, a 19 de março, efetuado por aeronaves francesas, ocorrido contra veículos blindados nos arredores de Benghazi, levou alguns observadores a apontar para um desvio na estratégia aérea tradicional. Porém, este foi apenas um ato isolado, politicamente motivado e com intuito de causar impacto imediato no terreno. Nessa mesma noite, uma salva de 112 mísseis Tomahawk foi lançada de navios americanos e ingleses contra elementos críticos do sistema de defesa aérea líbio, seguida do ataque de bombardeiros furtivos B-2 a aeródromos (Anrig, 2011: 91)10. Estava em marcha uma campanha de luta aérea ofensiva, fundamental nos momentos iniciais de cada conflito para conquistar o controlo do ar. Esta modalidade de ação confirmou uma das lições mais óbvias e intemporais, retirada de outros conflitos, é de que o sucesso depende do estabelecimento do controlo do ar de forma antecipada. Foi isto que se verificou nos momentos iniciais da Operação Odyssey Dawn em que a capacidade de defesa aérea líbia foi rapidamente destruída, abrindo caminho para o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea.

Após a obtenção do controlo do ar assistiu-se a uma mudança no processo de seleção de alvos. A estratégia inicial incidia no ataque a concentrações de forças, linhas de comunicações, depósitos de armamento e pontos-chave da estrutura de Comando e Controlo (C2) (Bouchard, 2012). Em meados de abril, apenas 10% das missões diárias atacavam alvos planeados. As restantes 90% eram dedicadas a alvos dinâmicos (Anrig, 2011: 99)11. Na prática, as aeronaves efetuavam patrulhas sobre determinadas áreas, nomeadamente vias de comunicação, para detetarem eventuais alvos de oportunidade. Esta tipologia de missões de reconhecimento e coordenação de ataque12 fornecia o

10Na primeira noite da operação, três bombardeiros B-2 descolados dos EUA atacaram 45 alvos num aeródromo líbio e regressaram à base de origem, reafirmando a capacidade americana de ataque global à semelhança do ocorrido na Sérvia em 1999, no Afeganistão e Iraque (Tirpak, 2011: 37).

11Nos ambientes complexos característicos da conflitualidade moderna, o targeting dinâmico (em oposição ao deliberado) designa o processo de identificação, seleção e atribuição de alvos imprevistos, ou seja, aqueles alvos que foram identificados tarde demais para serem incluídos no processo normal de planeamento. De acordo com a doutrina NATO, um alvo é “uma área geográfica, objeto, capacidade, pessoa ou organização (incluindo a sua vontade, compreensão e comportamento), que pode ser influenciada como parte da contribuição militar para o estado final político”. O processo de Targeting visa determinar os efeitos necessários para alcançar os objetivos do comandante, identificando as ações necessárias para criar os efeitos desejados, tendo por base os meios disponíveis, a seleção e priorização de alvos e a sincronização de fogos com outras capacidades militares, e avaliando posteriormente a sua eficácia (AJP-3.9, 2008: 1-1).

12Strike Coordination and Reconnaissance (SCAR).

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apoio de fogo essencial às forças rebeldes quando em contacto com forças líbias. Assim, nestas ações aéreas em proximidade de forças amigas e com restrições ao emprego da força letal, para garantir a minimização de danos colaterais, o fator humano assumiu importância idêntica às tecnologias de aquisição de alvos (Baker, 2011).

As operações aéreas (cinéticas e não cinéticas) procuraram influenciar os Centros de Gravidade (CoG)13 estabelecidos para a campanha (Bouchard, 2012). Na prática foram eleitos três CoG correlacionados com os atores primordiais no conflito. Assim, Benghazi foi eleita como o CoG dos rebeldes tendo em consideração a importância enquanto bastião da resistência. Tripoli foi designada como CoG das forças do regime, já que concentrava o poder líbio e a fonte de ordens militares. Finalmente, na perspetiva da NATO, o CoG era a própria coligação, cuja integridade deveria ser protegida no sentido de manter a unicidade de comando e ação.

Neste sentido, a queda do regime foi o efeito último e necessário que permitiu alcançar a situação política e/ou militar para declarar o términus da OUP. Este facto pode levar alguns comentadores a equiparar a queda do regime como o estado final desejado. Contudo, a condição definida no início da operação previa alcançar uma situação em que as hostilidades estivessem terminadas, a remoção de todos os sistemas de armas de grandes dimensões da área de concentração e permitir a livre movimentação da assistência humanitária (Bouchard, 2012).

Apesar de globalmente se poder considerar a operação como um sucesso militar indiscutível, é possível destacar alguns desafios decorrentes desta Guerra essencialmente Aérea. Como se verifica em qualquer conflito, as opiniões não são unânimes.

Os críticos alertam para a sobrestimação da eficácia do Poder Aéreo resultante da análise errada da operação. Robert Farley (2011) aponta essas lacunas, nomeadamente a concentração excessiva em alvos táticos, em detrimento dos princípios históricos de ataque a alvos estratégicos, que guiaram o emprego do Poder Aéreo no passado. Após vários meses de combates, ainda existiam alvos fixos importantes para atacar, como centros de C2 e comunicações estatais. Numa estratégia ideal, estes alvos teriam sido atacados nas fases iniciais da campanha aérea. Nesta perspetiva, as campanhas táticas, em que os meios aéreos são atribuídos aos comandantes no terreno, neste caso forças especiais e rebeldes líbios, transformam o Poder Aéreo em artilharia bastante dispendiosa, desperdiçando o seu real potencial. Contudo, a destruição de blindados, veículos de abastecimentos e forças entrincheiradas, encaradas por muitos como irrelevantes e desprovidas do efeito multiplicador associado a alvos estratégicos, como as redes de comunicações e centros de comando, contribuem para diminuir de forma direta a ameaça aos civis, em estrito cumprimento com o mandato da ONU. Para além disso, os alvos de valor estratégico, essenciais à consecução do objetivo de estabelecimento da zona de exclusão aérea, foram amplamente afetados nas horas iniciais do conflito.

Grande parte das críticas à ineficácia da operação assenta na excessiva duração da campanha, resultante da inadequada estratégia aérea e tendo em consideração a assimetria entre as forças de Qadafi e a NATO. Cenciotti (2011) salienta a demora da

13Center of Gravity - Característica, capacidade ou local a partir do qual uma nação, aliança, força militar ou outro grupo gera a sua liberdade de ação, força física ou vontade de combater (AJP 01(D), 2010: 5A1).

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coligação em decidir atingir a capacidade do regime reabastecer as suas forças em vez de atacar os recursos na linha da frente, quando estes estão prontos a ser empregues. Também a dispersão de ataques aos inúmeros depósitos de armamento em vez da concentração nos mais importantes nas fases iniciais do conflito, pode ter contribuído para que as forças leais ao regime pudessem ter continuado a lutar por mais de sete meses.

Estas críticas confundem porém, alvos com efeitos, esquecendo que o emprego do Poder Aéreo, numa operação limitada, está sujeito a vastas restrições e constrangimentos militares e políticos. Teremos de perceber que numa Era de conflitos limitados, em coligação de países com interesses divergentes, fortemente constrangidos e submetidos a ROE restritivas para evitar danos colaterais e brechas na coligação, a aplicação de uma estratégia aérea em condições ideais raramente ocorrerá. Neste caso, a interpretação do mandato da ONU sugeria a impossibilidade de atacar alvos que não ameaçassem diretamente a população. Desta forma, o imperativo de evitar sofrimento e danos a civis, como salientado pelo Secretário-Geral da NATO, condicionou o processo de seleção de alvos. De igual forma, os caveats impostos pelas nações relativamente aos ataques acrescentou complexidade adicional ao processo de targeting. Por exemplo, algumas nações apenas conduziam missões de ataque se as forças de Qadafi estivessem em movimento para posições rebeldes (Book, 2012: 69).

Para além disso, a implementação de uma estratégia aérea adequada está diretamente associada ao conhecimento do ambiente operacional e do adversário. Neste sentido, a escassez de meios de vigilância e reconhecimento14, comparativamente com outros conflitos recentes, pode ajudar a explicar algumas das deficiências. Por exemplo, durante a última década de operações no Afeganistão, a NATO habituou-se a dispor de uma centena de saídas diárias de ISR, o que contrastou com apenas três missões dedicadas diariamente na Líbia, um território três vezes maior (Tillyard, 2012: 23). Esta insuficiência obrigou a uma priorização do emprego operacional dos meios dedicados, ao mesmo tempo que provocou divergências de análises acerca da forma mais adequada de afetar o regime líbio.

Por outro lado, a contribuição do Poder Aéreo para as operações terrestres só poderá ser maximizada, em particular em atividades de apoio de fogo, se existir uma integração detalhada com as forças de superfície. Com o decorrer do conflito, os requisitos e a complexidade do apoio aéreo obrigavam a uma maior integração e rapidez na resposta. Todavia, as dificuldades de integração ar-solo, nomeadamente de coordenação com as forças rebeldes, podem ter afetado o ritmo e a intensidade de emprego do Poder Aéreo.15 Isto porque, as limitações operacionais das forças rebeldes, mal equipadas e treinadas, desprovidas de coordenação, de C2 e comunicações adequadas, impediram uma sincronização detalhada das operações, aumentando tanto a complexidade das missões de ataque como a probabilidade de danos colaterais. No entanto, mesmo que fosse aplicado um modelo de ataques aéreos massivos e esmagadores, semelhante ao empregue nas Guerras do Golfo, não existiria forma de explorar no terreno os efeitos obtidos.

14Intelligence, Surveillance and Reconnaissance – ISR.

15Em comparação, nos 78 dias de duração da campanha aérea na Sérvia em 1999, foram efetuadas 38.004 saídas, das quais 14.112 de ataque (Cenciotti, 2011).

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A natureza do processo dinâmico de seleção de alvos, associada à reduzida persistência dos meios aéreos tripulados, bem como a escolha criteriosa dos momentos adequados para a largada de armamento no sentido de evitar danos colaterais, podem servir de justificação para grande parte das missões de ataque não terem empregue armamento. Com o decorrer das operações, o recurso a conselheiros militares estrangeiros e forças especiais, separadas da estrutura de comando da NATO, por forma a não comprometer o mandato da ONU, foi essencial para efetuar guiamentos de aeronaves de ataque, recolha de informações e acima de tudo para transformar um grupo de rebeldes mal equipados e treinados numa força organizada para capturar Trípoli (Svendsen, 2011: 58).

Para além dos fatores acima discutidos, é possível identificar lições adicionais que distinguem a Guerra na Líbia de conflitos passados, mas que por outro lado, repetem algumas tendências preocupantes.

Em primeiro lugar, a iniciativa partiu da Inglaterra e da França, tendo estes países despendido a maior parte do esforço. Os Aliados europeus da NATO disponibilizaram grande parte dos meios de combate, enquanto os EUA se reservaram para um plano secundário após a transição do comando da operação para a NATO. Ou seja, apesar de na fase inicial os EUA terem efetuado a maioria das missões de combate, após a transferência do comando das operações para a NATO, a divisão do esforço foi visível, ao ponto dos restantes membros terem efetuado 90% das missões de ataque (Hebert, 2011: 4).

A complexidade de orquestrar operações aéreas de 18 países, originadas de bases espalhadas pela Europa e EUA, sem qualquer baixa da coligação qualifica também o sucesso desta operação. Durante a fase inicial assistiu-se à falta de clareza acerca das relações de comando entre os participantes. Por um lado, da perspetiva americana, o Comando Africano (AFRICOM) dirigia as operações da coligação, enquanto do lado europeu os meios eram comandados por cada nação. Esta situação ambígua levou mesmo à suspensão da participação norueguesa até que fossem esclarecidas as relações de C2 (Anrig, 2011: 91). Este relacionamento só se clarificou com a transição do comando das operações para a NATO.

Por outro lado, a eficiência, e em certa medida a eficácia das campanhas aéreas depende em grande parte da proximidade dos meios aéreos das áreas de operação. Caso contrário, os sistemas tripulados terão graves restrições à permanência alargada na zona de operações, implicando também um recurso excessivo a capacidades de reabastecimento aéreo. A opção de utilização de meios aéreos embarcados colmatou inicialmente esta vulnerabilidade, mas foi severamente afetada com o afastamento dos EUA das missões de ataque, revelando a importância histórica do Poder Aéreo baseado em navios16 e ao mesmo tempo, a lacuna existente no portfolio europeu de porta- aviões17. Nesse sentido, o emprego de Poder Aéreo embarcado proporcionou maior

16Transformando o porta-aviões num recurso fundamental para o sucesso das operações militares. Vários exemplos demonstram a importância destes meios para projeção de força a grandes distâncias e em locais onde seja difícil estabelecer aeródromos. Veja-se os casos do ataque a Pearl Harbour, ou a dependência de meios aéreos embarcados nas operações do Afeganistão e Iraque.

17Em junho, os italianos retiraram o seu porta-aviões do teatro de operações. Mais tarde, o porta-aviões francês Charles de Gaulle abandonou a área de operações. Os ingleses apenas dispunham de um porta- helicópteros manifestamente insuficiente para a envergadura das operações.

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rapidez e flexibilidade de resposta, assim como um menor dispêndio de recursos associados ao baseamento a longas distâncias18.

Outra das lições mostra que apesar do esforço suportado por alguns países e da OUP ser comandada pela NATO, apenas metade dos membros da Aliança forneceu contribuição militar. Esta situação veio confirmar a perspetiva da NATO como uma “Aliança dos dispostos”, onde a inexistência de uma ameaça esmagadora como no caso da Guerra-Fria, expõe as divergências das agendas políticas dos seus membros (UK Parliament, 2011). Isso ficou revelado no facto de apenas seis países europeus, dos 26 da NATO, terem contribuído com capacidades de ataque. Na realidade, o conflito na Líbia acentua o fosso crescente existente na NATO, demonstrando a ambição europeia em partilhar da teoria e conceitos de operações americanos, mas também a sua incapacidade para despender o esforço financeiro necessário para aplicar o modo americano de fazer a Guerra. Este paradigma ficou revelado pela inaptidão de satisfazer áreas de missão essenciais para sustentar um conflito aéreo limitado, em particular reabastecedores aéreos e meios não tripulados. Este fosso transformacional será, no futuro, ainda mais acentuado, em conflitos geograficamente distantes, sem o apoio massivo dos EUA ou perante adversários mais capazes.

A postura americana adotada, no sentido de oferecer a liderança e esforço ofensivo a países europeus, contribuiu para minimizar o debate político e escrutínio público acerca de mais uma intervenção prolongada num país muçulmano. Todavia, esta postura secundária não correspondeu a um decréscimo da importância dos EUA nesta campanha, na medida em que teve de suprimir grande parte das lacunas da coligação em determinadas áreas de missão. Como relembrou o então Secretário de Defesa americano, Robert Gates (2011) “os caças mais avançados são inúteis se os Aliados não dispuserem dos meios para identificar, processar e atacar alvos como parte duma campanha integrada”. A dependência das capacidades americanas foi também notória nas atividades de reabastecimento aéreo e ISR (entre os quais se realçam o emprego de plataformas não tripuladas), uma vez que 75% das missões de ISR e de reabastecimento aéreo foram executadas pelos EUA (Hebert, 2011: 4).

Sem estes meios de alto valor, a OUP teria sido severamente afetada na sua eficácia. Por exemplo, as missões efetuadas de bases europeias mais afastadas do teatro tinham a duração de oito horas, envolvendo cinco reabastecimentos aéreos, para apenas uma hora disponível sobre o objetivo (Tirpak, 2011: 36). Aludindo a outras dificuldades, Gates (2011) salientou que os EUA tiveram de fornecer grande parte dos analistas de targeting para guarnecerem o Centro de Operações Aéreas. Para além disso, este Centro de Operações, preparado para gerir 300 saídas por dia, debateu-se para conseguir gerir apenas 150 saídas diárias (cerca de um terço do esforço diário efetuado na Operação Allied Force em 1999).

Este conflito mostra também o impacto da austeridade na Guerra, em que vários países se debatem pela definição das capacidades adequadas e acima de tudo a preços acessíveis. A especialização num determinado espetro de capacidades, pressupondo que outro membro da coligação disponibilize as capacidades deficitárias, comporta riscos porque poderá nem sempre se verificar. Mesmo dispondo de uma capacidade de

18Segundo um estudo sobre o emprego do Poder Aéreo inglês na OUP, é referido que a utilização de aeronaves baseadas em terra foi seis vezes mais onerosa quando comparada com os efeitos equivalentes provocados por meios estacionados em navios (UK Parliament, 2011).

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ataque substancial, aos países europeus faltam os meios facilitadores para uma operação eficaz, nomeadamente reabastecedores, guerra eletrónica, ISR e elementos humanos especialistas em tarefas de targeting e de análise de informações.

Para além das lacunas mencionadas, dois meses após o início da operação, já se verificavam falhas no abastecimento de munições guiadas (Gates, 2011). Isto porque, o recurso exclusivo a armamento de precisão esgotou o stock de alguns países. Por exemplo, os F-16 dinamarqueses largaram mais de 500 munições guiadas até meados de junho, expondo o desafio logístico associado a esta tipologia de conflito, em particular para forças aéreas de pequena dimensão (Anrig, 2011: 96). Todavia, isto não reflete uma relação direta entre quantidade de sistemas de armas empregues e os efeitos provocados. Por exemplo, a Noruega e Dinamarca forneceram apenas 12% dos meios aéreos de ataque mas atingiram um terço dos alvos (Gates, 2011).

O teatro de operações da Líbia possibilitou o teste e a validação operacional das capacidades militares dos membros da Aliança. Para além disso, constituiu-se como uma oportunidade de marketing económico, militar e político para os defensores do Poder Aéreo e Naval. A disputa pelos mercados de exportação de sistemas de armas19 pressiona os participantes a demonstrarem a panóplia de capacidades, muitas das vezes aumentando a complexidade da modalidade de ação20. A capitalização deste sucesso, por parte dos defensores do Poder Aéreo, está já em marcha, usando o conflito da Líbia como justificação para maior investimento em caças, bombardeiros, reabastecedores e aeronaves não tripuladas. Para além disso, a mudança de ênfase da estratégia de defesa americana para a zona do pacífico aumenta a relevância do Poder Aéreo nomeadamente na sua vertente de operação naval. Tal como em conflitos anteriores, as lições retiradas do conflito da Líbia irão moldar o sistema de forças e o processo de aquisição de novas capacidades militares das grandes potências. Para além disso, será a partir dessas lições que serão planeadas futuras intervenções militares.

Poderemos afirmar que a campanha da Líbia constitui um exemplo de sucesso em como empregar o Poder Aéreo para desequilibrar a balança de poder, em favor de um movimento de resistência, contra uma força superior (Anrig, 2011: 104). A aferição da eficácia, tendo em consideração o custo despendido, revela que esta operação representou uma fração dos gastos dos conflitos no Afeganistão e Iraque.21 Porém, mais importante do que o custo financeiro é o número de baixas amigas e os danos colaterais provocados22. Mesmo concordando que a aplicação do Poder Aéreo neste conflito poderia ter sido otimizada, a verdade é que se revelou um instrumento político adequado para dar cumprimento a uma resolução da ONU, concretizando os objetivos políticos estabelecidos, com um custo substancialmente menor do que as alternativas militares disponíveis. E isso, é por si só revelador da utilidade estratégica do Poder Aéreo enquanto instrumento de coação. Contudo, em vez de considerarmos a influência

19Convém não esquecermos que durante esse período tanto o Typhon inglês, como o Rafale francês eram candidatos para uma proposta de venda de aeronaves à India e ao Brasil.

20Por exemplo, o emprego de aeronaves Tornado equipadas com misseis de última geração Storm Shadow, em missões de longa duração a partir de Inglaterra, é indicador da capacidade de projeção global inglesa, mas também valida a existência dessa tecnologia em futuras atualizações do sistema de forças. É difícil de compreender a necessidade operacional, após 100 dias de campanha aérea, para efetuar missões de oito horas de duração para empregar um míssil de 900.000€ (Cenciotti, 2011).

21A contribuição americana durante sete meses (cerca de 1.1 biliões de dólares) equivaleu ao custo de operação numa semana no Afeganistão (Schwartz, 2012).

22Os conflitos do Afeganistão e Iraque, causaram até à data, ferimentos em mais de 46.000 militares americanos e mais de 6.200 mortos (US DoD, 2012:7). Os danos colaterais são incontabilizáveis.

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aérea como decisiva, julgamos não existirem dúvidas de que a vitória foi, em grande parte, tornada possível através da contribuição do Poder Aéreo.

Conclusão

Ao equacionarmos as Guerras futuras deveremos ter em consideração que nem todas poderão ter um custo humano e material tão reduzido. Existirão casos em que uma ocupação terrestre prolongada e com custos humanos elevados será a única solução para alcançar o estado final desejado. No entanto, os defensores de uma intervenção terrestre na Líbia, salientando as vantagens operacionais de acelerar a capitulação do regime, não equacionaram na sua crítica os efeitos estratégicos adversos da ocupação por forças ocidentais, doutro país muçulmano, originando um novo conflito irregular prolongado.

As críticas efetuadas acerca da reduzida eficiência do emprego do Poder Aéreo, ou mesmo um elevado rácio de custo-eficácia ou valor, refletindo o aumento do custo unitário dos sistemas de armas aéreos, podem ser rebatidas segundo uma perspetiva de capacidades e efeitos. Ou seja, a evolução tecnológica permitiu um aumento substancial das capacidades dos sistemas de armas atuais e consequentemente um custo por efeito desejado menor, quer seja em número de alvos destruídos por aeronave, quer seja em aumento da consciência do espaço de batalha através do uso de sensores mais evoluídos, muitas das vezes na mesma plataforma. Isto multiplica as capacidades de uma força, com um número mais reduzido de sistemas de armas. Nesse sentido, a avaliação do sucesso de uma campanha através da quantidade de meios envolvidos não parece adequada, uma vez que são os efeitos obtidos que realmente importam.

Em suma, apesar das inúmeras críticas, o que normalmente falta nestas análises é uma apreciação acerca das crescentes restrições políticas impostas ao emprego do Poder Aéreo, assim como da aplicação cada vez mais precisa e rigorosa do uso da força aérea. A imposição legítima de constrangimentos e restrições políticas combinada com limitações intrínsecas ao emprego do Poder Aéreo, assim como à omnipresença do “nevoeiro e fricção”, impedem uma solução simples para o fenómeno da Guerra. No entanto, para ser eficaz, o Poder Aéreo não necessita de ganhar as guerras por si só. Apenas necessita de fornecer opções flexíveis para serem empregues pelos decisores políticos quando necessitem de usar a força para coagir uma alteração de comportamento adversário. Nesse sentido, a eficácia do Poder Aéreo deve ser medida tendo em consideração a contribuição para a consecução dos objetivos políticos. Isto significa que o Poder Aéreo pode alcançar efeitos políticos recorrendo a um espetro alargado de meios, quer seja através de dissuasão, ataque a longas distâncias, ISR persistente, forças especiais, ou mesmo transporte aéreo, operações de informação, apoio humanitário, construção de parcerias e desenvolvimento económico.

Contudo, não poderemos esquecer que a conflitualidade contemporânea demonstra a verdade histórica de que o Poder Aéreo, per si, não constitui uma panaceia para a resolução de um conflito armado, revelando que o emprego deste instrumento terá forçosamente de ser integrado com outras componentes militares e numa aproximação mais abrangente, mediante uma orquestração de outros instrumentos de poder. Nesse sentido, apesar do brilhantismo operacional da OUP, ainda é cedo para confirmar os efeitos estratégicos de longo prazo que garantam uma paz duradoura. Apenas

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poderemos afirmar a nossa convicção de que este objetivo supremo vai muito para além das potencialidades do instrumento militar, requerendo uma aproximação mais alargada ao fenómeno da conflitualidade hostil. Tal como no passado, este é o desafio que continuará a confrontar o uso futuro da força.

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