OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 4, n.º 1 (Maio-Outubro 2013), pp. 49-63

O ATOR NORMATIVO NA ERA DO NOBEL: QUO VADIS UE?

Ana Isabel Xavier

xavier.anaisabel@gmail.com Professora Auxiliar Convidada no Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública (RIAP), Escola de Economia e Gestão (EEG), Universidade do Minho (Portugal). Investigadora de Pós Doutoramento do NICPRI – Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações Internacionais. Presidente da Direcção da DECIDE – Associação de Jovens Auditores para a Defesa, Segurança e Cidadania

Resumo

A ideia de uma união política paralela à união económica, da Europa dos cidadãos para lá da Europa da livre circulação de bens e mercadorias, esteve sempre presente nos ideais da construção europeia. No entanto, a sua formalização de jure só surge com a entrada em vigor, a 01 de novembro de 1993, do Tratado de Maastricht e a institucionalização de uma nova personagem político-estratégica: a União Europeia (UE).

Desde então, a literatura académica tem vindo a “rotular” a União Europeia em sucessivas tentativas de clarificar o que é ou o que pode vir a ser o que Jacques Delors designava, nos anos 90, de OPNI – Objeto Político Não Identificado. Uma das aceções que tem contribuído para a discussão é o de “ator normativo” (Manners, 2001; 2002) que defende que a União Europeia tem caminhado numa progressiva normatividade, quer para vigorar internamente, quer com o intuito de ser exportável para a sua vizinhança próxima e pautar as suas relações com o resto do mundo.

Ora, a presente reflexão pretende desde logo contribuir para a discussão sobre a qualidade ou condição europeia de prescrição de normas, iniciando pela sistematização de uma série de concretizações que, pela leitura da tese de Manners, fazem culminar a tríade democracia, Direitos humanos e boa governação na assinatura do Tratado de Lisboa, a 13 de dezembro de 2007 e posterior entrada em vigor a 1 de dezembro de 2009. No entanto, o presente artigo não ignora que a noção de “ator normativo” tem sido (re)trabalhada e aperfeiçoada pelo próprio e por outros autores, em função de algumas críticas e estudos empíricos, tendo conhecido alguma evolução, enriquecimentos e contradições.

Por isso, num segundo momento, iremos colocar em evidência algumas teses cuja linha de argumentação nos permitirá contrapor e questionar as dimensões interna e externa do ator União Europeia. Iremos também explorar o poder simbólico que a União emana no desenvolvimento de instrumentos e capacidades para ser reconhecida como um ator capaz de afrontar as ameaças e os desafios atuais, mas cujo perfil pode não ser distintivo de demais atores nas relações internacionais. Concluiremos com uma reflexão sobre o impacto da atribuição do Prémio Nobel da Paz em 2012 na (re)definição de normas, valores e princípios e da atual crise financeira no futuro do “gigante económico mas anão político”.

Palavras chave:

União Europeia; Ator Normativo; Tratado de Lisboa

Como citar este artigo

Xavier, Ana Isabel (2013). "O ator normativo na era do Nobel: Quo Vadis UE?". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 4, N.º 1, Maio-Outubro 2013. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol4_n1_art4

Artigo recebido em 1 de Agosto de 2012 e aceite para publicação em 5 de Novembro de 2013

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O ator normativo na era do Nobel: Quo Vadis UE?

Ana Isabel Xavier

O ATOR NORMATIVO NA ERA DO NOBEL: QUO VADIS UE?

Ana Isabel Xavier

Introdução

Deriva da sua génese a ideia de edificar um projeto de paz, Direitos Humanos, Democracia e Boa Governação para a Europa assolada pela segunda guerra mundial (1939-1945), entre e para lá das suas fronteiras. Por isso, deparada com as “novas guerras”1 nas fronteiras da Europa no início da década de 90, a então Comunidade Económica Europeia (CEE) viu-se compelida a responder aos novos desafios e responsabilidades morais exigidos pela Comunidade Internacional.

Nesse sentido, ao herdar esta conjuntura internacional, o Tratado de Maastricht configura um “modelo de templo grego” e introduz um segundo pilar dedicado exclusivamente à PESC – a Política Externa e de Segurança Comum, começando a delinear-se a afirmação da União como ator político comprometido com a tríade Democracia, Direitos Humanos e Boa Governação como corolário da manutenção da paz e reforço da segurança internacional à la UE. E é nos objetivos da PESC estatuídos no art. J-1, n.º 2 TUE que o reforço da segurança internacional aparece associado ao objetivo maior do desenvolvimento e reforço da Democracia e do Estado de Direito, bem como ao respeito dos direitos e liberdades fundamentais.

Ex ante, a 19 de junho 1992, o Conselho da União da Europa Ocidental viria a adotar as missões de Petersberg (nome da localidade alemã perto de Bona onde se situa o Palácio de Petersberg e onde a reunião decorreu) e que o Tratado de Amesterdão, em 1999, viria a incluir no art. 17.º, parágrafo 2. As Missões de Petersberg são especializadas em missões de caráter humanitário ou de evacuação de cidadãos; missões de manutenção de paz (peace-keeping) e missões executadas por forças de combate para a gestão de crises, incluindo operações de restabelecimento da paz (o que incluirá a dimensão de peace-enforcing). Veremos na última parte deste artigo, como é que o Tratado de Lisboa estende este escopo, considerando-as parte das atuais missões da União Europeia.

Paralelamente, no mesmo ano em que o Tratado de Maastricht entra em vigor, em 1993, são formulados no Conselho Europeu de Copenhaga e posteriormente reforçados no Conselho Europeu de Madrid em 1995, os três critérios que viriam a pautar a apresentação da candidatura de um dado Estado para aderir à União Europeia. Deste modo, os critérios de Copenhaga pressupõem que se devem respeitar as condições impostas pelo artigo 49.º e os princípios do n.º 1 do artigo 6.º do Tratado da UE, cumprindo um critério político (instituições estáveis que garantam a Democracia, o Estado de direito, os Direitos do Homem, o respeito pelas minorias e a sua proteção),

1Vide a este respeito Kaldor, 2001 (1999) e a sua análise a partir do estudo de caso da Bósnia- Herzegovina na dicotomia entre novas e velhas guerras.

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um critério económico (economia de mercado que funcione efetivamente e capacidade de fazer face às forças de mercado e à concorrência da União) e um critério jurídico (subscrição do acervo comunitário).

Assumindo a tríade Democracia - Direitos Humanos - Boa Governação como uma preocupação muito notória com as necessidades dos indivíduos e comunidades com tónica na prevenção de situações de conflitualidade e enfoque nas raízes estruturais das fragilidades, a União Europeia tem vindo então a trilhar um caminho de normatividade que é paralelo e complementar ao plasmado em letra de Tratado e alargado às dimensões do ator de política externa para lá do ator de segurança e defesa.

Neste sentido, uma das referências mais emblemáticas prende-se com a criação, a 1 de março de 1999, do serviço oficial da Comissão Europeia responsável pela assistência humanitária2 aos países terceiros afetados por conflitos ou desastres naturais e/ou causados pelo Homem, em todo o mundo. De facto, a missão do serviço de ajuda humanitária da UE é particularmente relevante através de duas variantes interdependentes. A primeira, salvar e preservar vidas humanas em situações de emergência e de pós-emergência, reduzir ou impedir o sofrimento e salvaguardar a integridade e a dignidade das populações afetadas por catástrofes naturais ou conflitos com causas humanas. A segunda, facilitar, em conjunto com outros instrumentos de ajuda, a recuperação das populações à situação anterior à crise e a sua autonomia, implementando estratégias não só de emergência, mas também de reabilitação e desenvolvimento.

De interesse igualmente relevante, destaquem-se os inúmeros Comunicados sobre Direitos Humanos e Boa Governação e a Iniciativa da Comissão para a Prevenção de Conflitos, datada de 11 de abril de 2001, tendo em vista a melhoria das capacidades de intervenção civil da UE. Esta vem no seguimento do Relatório conjunto da Comissão e do Alto Representante para a PESC sobre a prevenção de conflitos, apresentado no Conselho Europeu de Nice de dezembro de 2000, e antecede o Programa Europeu para a prevenção de conflitos, adotado no Conselho Europeu de Gotemburgo de junho de 2001. Uma das tónicas desta Comunicação da Comissão reside no reforço da capacidade da União para reagir atempadamente a conflitos “nascentes”, bem como aumentar a capacidade de deteção e luta contra as causas profundas dos conflitos numa fase precoce e não só de tratar dos “sintomas” em situações de crise.

Étambém em 2001 que a Europa se confronta consigo mesma com as seguintes questões: qual é e/ou deverá ser o novo papel da Europa num mundo globalizado? Como é que a PESC/PESD pode projetar a União enquanto ator de segurança no xadrez internacional? «Não deverá a Europa, agora que está finalmente unida, desempenhar um papel estabilizador a nível mundial e de constituir uma referência para inúmeros países e povos?». A questão citada da Declaração de Laeken sobre o futuro da Europa, que saiu do Conselho Europeu de 14 e 15 de dezembro de 2001, encontra a sua resposta no mesmo documento: «o papel que deve desempenhar é o de uma potência que luta decididamente contra todas as formas de violência, terror ou fanatismo, mas que também não fecha os olhos às injustiças gritantes que existem no mundo».

2Em Inglês, European Community Humanitarian Offices - ECHO 51

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No entanto, tratando-se de uma Declaração sobre o Futuro da Europa, Laeken também pode ser lida como uma Declaração sobre a Identidade europeia3, no dealbar do século XXI, sob o desígnio da globalização e com a memória muito próxima dos atentados às Torres Gémeas do outro lado no Atlântico. De facto, o que o 11 de setembro parece vir despoletar no processo do ator é a preocupação por um esboço de um conceito estratégico que prima pelo diálogo e negociação, pela prevenção e estabilização dos conflitos regionais, bem como pela integração de todos os países num sistema mundial equitativo de segurança, prosperidade e desenvolvimento. É um mundo de Paz, Direito(s) e tolerância que a UE pretende edificar, sobretudo quando o combate ao terrorismo aparece como um dos objetivos prioritários de ação da União.

Caberá a Javier Solana, então Alto Representante para a PESC, clarificar o contributo e potencial da União enquanto comunidade produtora e promotora de normas e valores. De facto, proclamada e aprovada pela Conclusão 83 do Conselho Europeu de Bruxelas de 12 e 13 de dezembro de 2003, a Estratégia Europeia de Segurança defende que a União Europeia «que reúne 25 Estados com mais de 450 milhões de habitantes, com uma produção que representa um quarto do produto nacional bruto (PNB) mundial, e com uma vasta gama de instrumentos ao seu dispor, é forçosamente um ator global». (Solana, 2003: 1)

Para responder a este desafio, a EES define três grandes objetivos estratégicos para a defesa e segurança da promoção dos valores europeus. Assentes numa lógica de simultaneamente “pensar em termos globais e agir a nível local”, os três objetivos estratégicos deste documento são (Solana, 2003: 6-9): primeiro, enfrentar as velhas e novas ameaças, como o terrorismo, a proliferação de armas de destruição maciça, conflitos regionais, Estados falhados e criminalidade organizada; segundo, promover estabilidade, Boa Governação e segurança dos vizinhos próximos da Europa (Balcãs, Cáucaso, Mediterrâneo…); por fim, contribuir para uma ordem internacional baseada num multilateralismo efetivo, reforçando a legitimidade das Nações Unidas, o fomento da relação transatlântica e parcerias estratégicas com a OSCE, o Conselho da Europa, a ASEAN, o Mercosul e a União Africana, bem como a Organização Mundial do Comércio.

Através destes três objetivos, a Estratégia de Solana simbolizava o que a União exportava, fosse para a sua vizinhança próxima, fosse para o resto do mundo. Com o enquadramento legal devido, em termos de Direito Humanitário e de Direito Penal Internacional, quer a nível decisório, quer a nível operacional, a EES dava assim uma primeira luz verde para uma União mais normativa. De facto, na sua Estratégia, Solana parece não ter dúvidas que a UE tem vindo a trilhar um caminho em matéria de prevenção destas novas ameaças globais, reforçando a democracia, a boa governação e a primazia dos Direitos Humanos como alicerces de segurança.

Quando, em 2008, quase em vésperas de se despedir do cargo de Alto Representante, Solana apresenta um amendment à sua Estratégia “original”, são preteridas as referências explícitas ao ator global em beneficio da projeção do ator normativo e peace-settler, enquanto ator ativo na comunidade internacional, consciente das suas responsabilidades e pró-ativo na sua ação estratégica. Nas palavras de Solana, a União é um «pólo de estabilidade» (2008:1), pelo que «a nível

3Já a 14 e 15 de dezembro de 1973, a Cimeira de Copenhaga adota uma espécie de bilhete de identidade europeia - A “Declaração sobre a Identidade Europeia” – que definia as então comunidades europeias como um farol ético-normativo e uma potência civil.

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mundial, a Europa deve conduzir um processo de renovação da ordem multilateral» (Solana, 2008: 2).

Também em 2003, foi lançada, no contexto do alargamento da União Europeia a 25, a Política europeia de vizinhança. A PEV foi concebida como um novo enquadramento para as relações entre a Comunidade alargada e os países vizinhos a leste (Arménia, Azerbeijão, Bielorússia, Geórgia, Moldávia e Ucrânia) e a sul (Argélia, Autoridade Palestiniana, Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Líbia, Marrocos, Síria e Tunísia). Deste modo, o seu objetivo consiste na criação de uma zona alargada de estabilidade, segurança e prosperidade, na qual se estabeleça uma relação de paz e cooperação entre a UE e os seus vizinhos, através da liberalização adicional das trocas comerciais e da perspetiva de um maior relacionamento dos países do Mediterrâneo com o Mercado Único Europeu, bem como uma maior assistência técnica e financeira. Mais uma vez, Democracia e Direitos Humanos pautam transversalmente as relações da União com a sua vizinhança próxima, seja a leste, seja a sul.

Por fim e mais recentemente, em junho de 2012, a Comissão aprovou uma Estratégia sobre Direitos Humanos e Democracia, com especial ênfase para os direitos das mulheres e das crianças em todas as áreas das relações externas da União. Esta estratégia foi acompanhada por um plano de ação concreto, tendo em vista a promoção da Democracia e a Igualdade de Género e será acompanhado pela nomeação de um enviado especial de Direitos Humanos que acompanhe os assuntos de género em situações de conflito.

O Acquis normativo da União: de Maastricht a Lisboa

As referências citadas anteriormente exemplificam, em grande medida, a «força importante de mudança positiva» (Hirschman, 1963: 4) que a União tem vindo a ensaiar e cujo embrião da sugestão de normas como pauta para a condução da política remontaria a Carr quando este resguarda que «a ação política deve ser baseada numa coordenação de moralidade e poder» (2001: 92).

Mas, como se mede a normatividade e quem a define, sobretudo se pensarmos que há diferentes tipos de normas, sejam regulativas, constitutivas ou prescritivas? Um autor que tem tentado responder a estas questões tem sido Manners que define que os conceitos chave de uma União normativa residem na Paz, Democracia, Estado de Direito, Boa Governação e Respeito pelos Direitos Humanos (2001, 2002).

Ora, estes cinco pilares de Manners leva-nos a concluir que a base normativa da UE já existe (retomando aliás as primeiras alusões deste artigo), visto que a União Europeia tem vindo a definir uma arquitetura institucional produtora e promotora de normas e valores que têm sido incorporadas no que poderia ser considerado o acquis normativo da União:

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Esquema 1 - O acquis normativo da União segundo Manners

Princípios

Missões e objetivos

Instituições

Direitos

fundadores

 

estáveis

Fundamentais

Liberdade,

Progresso social

Garantia de

Dignidade

Democracia,

Discriminação

Democracia,

Liberdade

Respeito pelos

(positiva)

Estado de direito,

Igualdade

Direitos Humanos e

Desenvolvimento

Direitos Humanos e

Solidariedade

Liberdades

sustentável

liberdades

Cidadania

fundamentais,

 

fundamentais

 

Justiça

Estado de direito

 

Proteção das minorias

 

 

Base de Tratado – Art.

Base de Tratado –

Critérios de

Carta dos Direitos

6.º TUE

Arts. 2 TCE e TUE

Copenhaga –

Fundamentais da

 

Arts. 6 e 13 TCE

conclusões do

União Europeia

 

 

conselho europeu de

 

 

 

junho de 1993

 

Fonte: Manners (2001: 11-12)

De todos os elementos preceituados por Manners e a que já fomos fazendo referência ao longo deste artigo, faz sentido debruçarmo-nos apenas num dos elementos que, até agora, não tinha sido ainda desenvolvido: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, formalmente adotada em Nice, em dezembro de 2000, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho Europeu e pela Comissão Europeia.

De facto, a Carta foi elaborada por uma convenção composta por um representante de cada país da UE e da Comissão Europeia, bem como por deputados do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais e compreende um preâmbulo e 54 artigos repartidos em sete capítulos: dignidade; liberdades; igualdade; solidariedade; cidadania; justiça e disposições gerais e, como tal, faz uma compilação de uma série de jurisprudência que estava espalhada e que é agora compilada num só documento. Em dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta foi investida de efeito jurídico vinculativo. Para o efeito, a Carta foi alterada e proclamada pela segunda vez em dezembro de 2007.

Tendo em conta a proposta conceptual de Manners, esquematizada na imagem 1, podemos então concluir que, com o Tratado de Lisboa, a UE parece estar mais normativa, desde logo porque a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada politicamente no Conselho Europeu de Nice, de dezembro de 2000, só encontrou valor vinculativo neste último Tratado.

Por isso, e tendo em conta que a proposta de Manners é de 2001 e, por isso, não contempla muitos dos elementos que falámos a título introdutório, sugere-se o seguinte modelo para reflexão:

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Esquema 2 - O acquis normativo da União adaptado, tendo em conta os preceitos

do Tratado de Lisboa

Valores,

 

 

 

Missões da

Direitos,

Missões e

Democracia e

Relações com o

União Europeia

Liberdades e

objetivos

Instituições

resto do mundo

no âmbito da

princípios

 

estáveis

 

PCSD

Respeito pela

dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito, Direitos do Homem (…).

Conforme

reconhecidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e garantidos pela

adesão à

Convenção

Europeia para a

proteção dos

direitos do

Homem e das

Liberdades.

Art. 2.º TUE

Art. 6.º TUE

Promoção da paz,

valores e bem- estar dos povos

Espaço de liberdade, segurança e justiça

Desenvolvimento

sustentável

Coesão

económica, social

e territorial

Art. 3.º TUE,

Art. 13.º TUE

Democracia representativa

Relações com os

parlamentos

nacionais

Garantia de democracia

Estado de direito Direitos Humanos

eliberdades fundamentais

Proteção das

minorias

Art. 10º TUE

Art. 11º TUE

Critérios de

Copenhaga – conclusões do conselho europeu de junho de 1993

Paz e Segurança

Erradicação da

pobreza

Direito

Internacional

Multilateralismo

Respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas

Relações

privilegiadas com os países vizinhos

Art. 3.º TUE

Art. 8.º TUE

Art. 21 TUE

Política Europeia

de Vizinhança

EES 2003 e

Amendment 2008

Missões nas quais

a União pode utilizar meios civis e militares e que incluem as ações conjuntas em matéria de desarmamento, missões humanitárias e de evacuação, missões de aconselhamento e assistência em matéria militar, missões de prevenção de conflitos e de manutenção da paz, missões de forças de combate para a gestão de crises, incluindo missões de restabelecimento da paz e operações de estabilização no termo dos conflitos.

Todas estas

missões podem contribuir ainda para a luta contra o terrorismo.

Art. 42 TUE

Art. 43 TUE

Fonte: Autoria própria

Tendo em conta o esquema 2 e para além dos aspetos a que já fomos fazendo referência, há alterações significativas no Tratado de Lisboa a respeito do ator

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normativo com implicações significativas na gestão das suas relações externas. De facto, é introduzida uma base jurídica específica para a ajuda humanitária (art. 214.º TUE) que sublinha a especificidade desta política e da aplicação dos princípios do direito humanitário internacional, nomeadamente os princípios da imparcialidade e não discriminação. Para além disso, a política de desenvolvimento torna-se um serviço de desenvolvimento único dentro da Comissão com um comissário responsável pela cooperação para o desenvolvimento e os assuntos humanitários que também é membro da Comissão.

Destarte, com a identificação da cooperação para o desenvolvimento como área independente e com competências para agir nas relações com os países em desenvolvimento e a consequente separação dos orçamentos para o desenvolvimento e assistência humanitária, todas as políticas europeias que afetam os países em desenvolvimento passam a necessitar do apoio transversal das políticas de desenvolvimento em todos os seus objetivos. Em todas as reformas que são postas em prática é ainda definida uma hierarquia e mecanismos que promovem o desenvolvimento e a erradicação da pobreza como principal objetivo desta política4 (art. 208.º).

Por fim, uma referência às missões da União Europeia enquanto tal, que veem o seu escopo de gestão de crises alargado para lá das tradicionais missões de Petersberg, projetando um ator comprometido com as grandes questões internacionais. A este respeito, importa sublinhar que a UE tem em curso, no momento da escrita deste artigo, 12 missões ao abrigo da PCSD (Política Comum de Segurança e Defesa), três de índole militar e nove de índole civil, em três continentes diferentes5 e prepara já o lançamento de mais três missões: a EUAVSEC Sudão do Sul (missão civil de apoio e formação na segurança do aeroporto contra riscos externos); a EUCAP NESTOR (missão de reforço das capacidade na área da segurança marítima dos países na região do Corno de África e Índico Ocidental para o combate à pirataria) e a EUCAP SAHEL Níger (missão civil de reforço das capacidades de luta contra o terrorismo e criminalidade organizada na região do Sahel).

Mais do que um ator de segurança e defesa, a União surge-nos, nesta aceção de Manners como um ator sui generis que desenvolve relações externas (nas suas várias dimensões) e nos diversos contextos do sistema internacional. Segundo o autor, estas suas relações externas (política internacional ou externa do ator) e a sua presença e ação na cena internacional revestem características específicas, quando comparadas com as políticas externas de outros atores internacionais (relevantes ou/e semelhantes), sendo certo que tais características têm muito a ver com as suas características de ator interno, o que teria a ver com «as suas realizações a longo prazo como um modelo de cooperação regional, um ator múltiplo e decisores políticos, bem como sobre a sua espécie incipiente e sem precedentes de poder» (Telò, 2009:1).

4

5

Um sinal claro do compromisso da União Europeia com os Objetivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM), definidos em 2000, na Cimeira do Milénio, pelas Nações Unidas, tendo-se comprometido a aderir a um projeto mundial de redução, até 2015, da pobreza extrema sob todas as suas formas. Neste sentido, a UE reivindica para si o estatuto de principal entidade financiadora da ajuda pública ao desenvolvimento mundial, cerca de 55%, no total dos seus Estados-Membros.

Na Europa/Cáucaso: EUFOR Althea (militar); EULEX Kosovo; EUBAM Moldávia-Ucrânia; e, EUMM Geórgia.

Em África: EUSEC RD Congo; EUPOL RD Congo; EUNAVFOR Atalanta (militar); e EUTM Somália (militar).

Na Ásia e no Médio Oriente: EUPOL Afeganistão; EUJUSTLEX Iraque; EUBAM Rafah/Palestina; e EUPOL COPPS Palestina.

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No entanto, é exatamente a argumentação do caráter distintivo da União enquanto ator de política externa que tem vindo a ser questionada nos últimos anos (Tocci, 2008a; 2008b), dando-nos espaço para um olhar crítico sobre esta tese.

Um olhar crítico sobre a normatividade distintiva

Não obstante a União Europeia assegurar hoje uma importante presença internacional e assumir-se como um dos atores centrais da cena internacional contemporânea, a literatura académica tem vindo a dar ecos de uma multiplicidade de propostas analítico-conceptuais, no intuito de definir (não necessariamente na perspetiva latina de definire enquanto «dar um fim») a União Europeia hoje.

Nessa linha, Ginsberg defende desde logo que «os académicos concordam que a UE tem uma “presença” internacional (é visível nos fora regional e global) e que exibe alguns elementos do “ator em processo” (é um ator internacional em algumas áreas mas não em outras)» (1999: 437). Este conceito de actorness atribuído a Hettne e Soderbaum (2005), em construção, sempre inacabado, com um complexo de Instituições com regras e procedimentos diferenciados, articulados em vários níveis ou pilares (até ao enunciado de Lisboa), denuncia também a persistência de um enorme déficit entre o “querer” e o “poder” em termos de projeção internacional (Hill, 1993: 306, 315; Toje, 2008: 139).

Hill dá seguimento a esta ideia (1993) e considera que a Comunidade Europeia desempenhava então quatro funções no sistema internacional que eram fortemente influenciadas pelas dinâmicas da guerra-fria (idem ibidem: 310-311): a estabilização da Europa ocidental (nomeadamente os países do sul em transição para a democracia, como a Grécia, Portugal e Espanha e a entente Franco-Alemã); a gestão do comércio internacional (a Comunidade Europeia como o mais importante ator único na negociação do processo no GATT e, depois, na OMC); ser a principal voz do mundo desenvolvido nas relações com o sul (referência às Convenções de Lomé e aos acordos preferenciais com o Mediterrâneo); e assumir-se como a segunda voz ocidental da diplomacia internacional (a diplomacia europeia coletiva como alternativa à dos Estados Unidos, nomeadamente na reconstrução da Europa Oriental depois de 1989).

Ainda tendo como referência o ano de 1993, Hill acreditava que a União Europeia podia ter a potencialidade de, no futuro próximo, assumir seis funções na arena internacional (idem ibidem: 312-315): ser um substituto da URSS no equilíbrio de poder (a CE como candidata para preencher o vacum deixado pela hegemonia soviética num mundo bipolar); ser um pacifista regional (agir como mediador/árbitro coercivo quando a paz regional e a estabilidade de uma determinada região está sob ameaça de se espalhar a uma escala global); ser um interveniente global (interveniente na crise global com os instrumentos económicos e políticos e onde a instabilidade de um Estado ou região pode ameaçar os interesses económicos e os valores e princípios da comunidade internacional); ser um mediador de conflitos (ação diplomática, incluindo coerção e medidas de condicionalidade para levar as partes terceiras a resolver os seus conflitos e evitar a regressão às plataformas não democráticas); servir de ponte entre ricos e pobres (devido a uma relação especial, uma herança das ligações coloniais, com um vasto número de países condenados a fracas condições de riqueza de poder); ser um supervisor conjunto da economia mundial (capacidade para agir de forma coerente e

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consistente com o FMI, Banco Mundial, cimeiras do G7 ou outras instituições onde a CE negoceia diretamente com os Estados Unidos ou o Japão).

Por outro lado, é a Bretherton e Vogler que se deve a primeira referência à União enquanto “ator global” (1999), conceito que pressupõe três elementos essenciais: oportunidade (para agir no mundo), presença (capacidade efetiva para se deslocar e permanecer fora das suas fronteiras, influenciando o desenvolvimento dos outros Estados) e capacidade (para aproveitar todas as oportunidades para marcar presença).

Por fim, ao aceitarem a proposta de “ator internacional” atribuída à UE, Caporaso e Jupille (1998) avançaram também com quatro pré-requisitos para a União alcançar um estatuto maior com presença internacional: reconhecimento, autoridade, autonomia e coesão.

Sem querer alimentar a plêiade de propostas que se ofereceriam à nossa reflexão, parece importante convergir para a ideia de que «[…]a UE se distingue de outros atores, porque não é apenas um poder civil (no sentido de que não dispõe de instrumentos militares à sua disposição), mas (também) um poder normativo, civilizatório ou éticos dentro do sistema internacional» (Sjursen, 2006: 170).

Também Javier Solana adianta que «a forma distinta em que a UE exerce o poder, seja ele civil ou militar, é cada vez mais colocada em termos de uma “maneira europeia” de conduzir as suas relações internacionais, o que implica a existência de um sistema emergente de valores europeus que determina as regras que regem a ação externa» (2005).

Uma certa maneira europeia de perspetivar normas, princípios e valores parece unir todas estas propostas conceptuais, mas o próprio Manners, na sua teoria inicial, salienta uma certa dimensão transcendente do ator considerando que «a noção de uma Europa potência normativa situa-se na discussão de uma ideia-chave, o "poder sobre a opinião”, o “poder ideológico", ou o "poder simbólico" e o desejo de ir além do debate sobre a projeção do ator como um Estado através da compreensão da identidade internacional da UE» (2001: 7).

Assim se percebe, aliás, porque Manners considera que o poder normativo da União é percetível por cinco vias: por contágio (a difusão intencional); pela via informacional (comunicações estratégicas e declaratórias); por via procedimental (institucionalização das relações da UE); por transferência (troca de benefícios entre a UE e países terceiros); pela evidência (a presença real da UE em países terceiros e Organizações) e pelo filtro cultural (difusão cultural e aprendizagem política em países terceiros e Organizações) (2001: 13).

Mas se pensarmos no poder simbólico que Manners defende, vale a pena pensar na dupla dinâmica que este parece encerrar: primeiro, este poder simbólico deve ser percetível internamente, exigindo à União olhar para dentro e assegurar que a tríade democracia, boa governação e direitos humanos vigore nos seus próprios Estados- membros; segundo, este poder deve ser externalizado, exigindo da parte da União capacidade e credibilidade para estar à altura das expectativas e poder assumir-se efetivamente como ator normativo. É aliás esta dupla dimensão que confere ao ator o seu caráter sui generis. Mas será que a União subscreve integralmente este duplo entendimento? A União é hoje um ator unificado na capacidade de expressão externa ou é um ator de gestão de crises que atua quando lhe é solicitado sobretudo em

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dimensões de pós conflito mais do que de prevenção? Existe uma cultura estratégica verdadeiramente europeia? Basta partilhar valores? A existência de uma cultura estratégica europeia é inequívoca e resiste, por exemplo, à divisão transatlântica?

Na tentativa de responder a algumas destas questões, a literatura académica tem notado como a intensidade do ator normativo de Manners tem diminuído, questionando por exemplo a perversidade da externacionalização da União, em que a criação de uma zona de estabilidade e paz serviria apenas os interesses europeus. No fundo, estaríamos perante “um lobo em pele de cordeiro” que advoga a segurança como bem público global através do uso de instrumentos de soft power, mas que tem entre mãos o mais eficaz instrumento de hard power: o processo de alargamento.

Nesse sentido, Aggestam propõe pensarmos nos limites da ambição de formatar o mundo à imagem e semelhança da Europa, o que facilmente poderia ser confundido com uma autopresunção moral de superioridade. A autora alerta que este cenário de criação de protetorados a nível internacional poderia «facilmente conduzir a um discurso de identidade entre "nós" e "eles " e poderia ser entendida como um imperialismo cultural incipiente» (2008: 7). Por isso, a sugestão de Aggestam de uma “Europa de poder ético” representaria «uma mudança conceptual no papel da UE e nas aspirações do que "é" para o que "faz": de simplesmente representar um "poder de atração" e um modelo positivo para trabalhar proativamente para mudar o mundo em direção à sua visão do "bem comum global”» (2008: 1).

Para além disso, há ainda que ter alguma cautela ao assumirmos a UE como um ator normativo distintivo, porque «se uma política externa normativa significa perseguir objetivos normativos de política externa através de meios normativamente implantados e ter um impacto normativo percetível, então o que emerge, talvez inevitavelmente, é que a UE não é sempre normativa, como acontece com qualquer outro ator internacional6» (Tocci, 2008b: 3). Perante esta reserva, Tocci (2008a: 5) propõe a definição de um quadro baseado em três dimensões que formatariam então o rótulo de “política externa normativa”: o que um autor quer (os seus objetivos), como age (a mobilização de meios políticos) e o que consegue atingir (o seu impacto). Também Manners aprimora a sua tese inicial e reconhece a importância de se perceber em que condições se está perante um ator normativo o que, no caso da União Europeia, residiria «na forma como a UE promove tais princípios substantivos, em virtude dos princípios de "viver pelo exemplo", pelo dever de suas ações em "serem razoáveis" e, por consequência, do seu impacto em "fazer menos mal"» (2008).

Considerações finais

Ao longo deste artigo, retomámos alguns elementos fundamentais que reforçariam a tese de Manners de que a União Europeia é um ator normativo e, por isso, concluímos que na letra do Tratado de Lisboa, esta dimensão sai reforçada.

Identificámos ainda vários elementos que concorrem para a ideia da União enquanto ator relevante (e até distintivo) nas relações internacionais, mesmo que na encruzilhada de múltiplos rótulos conceptuais. Um aspeto que foi sugerido pelos autores citados é que a União Europeia é essencialmente um “poder civil”, uma

6A autora desenvolve este argumento com os exemplos de Rússia, China e Índia (2008a). 59

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designação atribuída originalmente a Duchêne, quando conceptualiza a UE como um modelo natural de estabilização, reconciliação e paz para outras regiões do mundo. Mesmo sem uma dimensão militar pura, um poder civil assumiria a capacidade para influenciar outros atores internacionais e lograr por uma presença política, diplomática, jurídica7 e económica de relevo.

Mas essa presença tem também passado em muito pelo que Karl Deutsch apelidou de “comunidade de segurança” (1961), uma comunidade unida em torno de um processo de integração económica e política comum, historicamente coincidente, desenvolvendo- se expectativas recíprocas, valores partilhados e perspetivas semelhantes sobre como é que a segurança pode ser atingida (Adler; Barnett, 1998: 30).

Por sua vez, já Weiler defende que a União Europeia, não é um Estado no sentido clássico, mas nem uma comunidade, visto que «a ideia da comunidade procura ditar um tipo diferente de relação entre os atores que pertencem a isso, um tipo de autolimitação na sua autoperceção, um autointeresse redefinido e, até, objetivos políticos redefinidos [o que] condiciona o discurso entre os Estados, mas também estende-se às pessoas dos Estados, influenciando as relações entre os Estados. (1991: 2479)

No entanto, e em conclusão, importa questionar todas estas referências e resgatá-las para pensar na atribuição do prémio Nobel da paz no último trimestre de 2012. Segundo o júri do Nobel, o prémio pretendia galardoar o contributo dado pela União Europeia durante as últimas seis décadas para a paz, a reconciliação entre os povos e a consolidação da democracia e os direitos humanos.

Na declaração conjunta do Presidente do Conselho Europeu e Presidente da Comissão Europeia, Van Rompuy e Barroso recordaram os valores que a União continua a promover enquanto maior doador em termos de assistência ao desenvolvimento e ajuda humanitária, sempre na vanguarda dos esforços globais para lutar contra as alterações climáticas e na afirmação da promoção da paz e segurança como bens públicos globais.

Mas as reações à atribuição do Nobel divergiram: para alguns, a distinção constituiu mais uma nota de obituário e recordam que a União só conseguiu ser um projeto de paz negativa (ausência de guerra) ficando por cumprir o modelo de paz positiva (de Estado social); para outros, constituiu uma oportunidade para os Estados voltarem a pensar no que querem para o projeto de integração europeia, como evitarem a desagregação e como continuarem a perseguir a tríade de democracia-direitos humanos e boa governação. Uma tríade a ter em conta quer no interior dos seus Estados (onde os movimentos extremistas antieuropa ganham cada vez mais força), quer externamente como ator de segurança reconhecido no mundo, com mais de 20 missões civis, militares e civilo-militares conduzidas desde 2003 em três continentes diferentes (mesmo com os constrangimentos financeiros atuais que obrigam os Estados a fazerem mais e melhor com menos recursos pela via, por exemplo, do pooling & sharing).

7Sobre as regras de conduta da ação externa, Morel e Cameron percecionam a União como uma «potência de direito» (2009:81), referindo-se à integração nas leis nacionais das leis europeias que diariamente são adotadas em Bruxelas.

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Não, admira, por isso, que nesta altura de questionamento identitário do “gigante económico mas anão político”, os defensores dos preceitos federalistas se assumam, questionando o impacto que a falta de consolidação de uma união económica (que se esperava já consolidada com a moeda única e um mercado comum) pode ter numa união política, na qual, embora mais recente e em processo permanente, residem os alicerces da Europa normativa que os pais fundadores idealizaram e que o Nobel vem reconhecer.

Em suma, recordemos Jean Monnet quando afirmava: “Não coligamos Estados. Unimos pessoas”. Mas em 2013, ainda com o Nobel presente, onde nos encontramos? Numa utopia renovada? À procura de uma ideia para a Europa? Na expetativa de uma ‘comunhão’ (Manners, 2011) que faz convergir integração e cooperação simultaneamente como uma constelação de comunidades, um espaço cosmopolita e um exemplo de coexistência cosmopolitica8, ou seja uma comunidade e uma união integradas?

Mesmo com o apoio das ferramentas analíticas que aqui partilhámos, são seguramente mais as perguntas que permanecem, deixando as respostas fadadas à filosofia das ideias e aos cenários mais ou menos federalistas agudizados pela crise financeira atual. Por isso também, mantém-se ainda a questão fundadora do projeto europeu: quo vadis Europa?

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8O conceito de democracia cosmopolitica é desenvolvido também por Archibugi, 2003. 61

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