OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp. 109-121

RECONSIDERANDO AS ORIGENS DA CONSTRUÇÃO DO REGIONALISMO NA

ÁFRICA AUSTRAL, TRINTA ANOS DEPOIS.

POR UMA LEITURA CONSTRUTIVISTA DAS ORIGENS DA SADC

José Abel Moma

mjoseabel@yahoo.fr

Mestre em Ciência Política (opção: Relações Internacionais e Política Comparada) pela Ohio University dos Estados Unidos de América. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Saint Pierre Canisius, afiliada à Universidade Gregoriana de Roma. Docente em Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Relações Internacionais de Luanda e em Ciência Política do Instituto Superior João Paulo II da Universidade Católica de Angola.

Resumo

A criação da SADCC tem despertado um debate acerca das reais origens do modelo de regionalismo da África Austral. Este artigo desenvolve a ideia de que as origens da SADC compreendem ao mesmo tempo factores endógenos e exógenos. Assim, o regionalismo da África Austral é entendido, em termos de teoria, como o resultado duma articulação construtivista de factores internos e externos que determinaram o surgimento da SADCC e a sua transformação em SADC.

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Palavras chave:

África Austral; SADC; SADCC; Estados da Linha de Frente; Regionalismo; Construtivismo

Como citar este artigo

Moma, José Abel (2012). "Reconsiderando as origens da construção do regionalismo na África Austral, trinta anos depois. Por uma leitura construtivista das origens da SADC". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 3, N.º 2, outono 2012. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n2_art6

Artigo recebido em 18 de Junho de 2012; aceite para publicação em 5 de Novembro de 2012

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Reconsiderando as origens da construção do regionalismo na África Austral, trinta anos depois José Abel Moma

RECONSIDERANDO AS ORIGENS DA CONSTRUÇÃO DO REGIONALISMO NA

ÁFRICA AUSTRAL, TRINTA ANOS DEPOIS.

POR UMA LEITURA CONSTRUTIVISTA DAS ORIGENS DA SADC

José Abel Moma

Introdução

A origem da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) continua sendo objecto de discussão, porquanto se, de um lado, autores como Lee (2003) afirmam que a SADCC (Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral), enquanto organização antecessora da SADC1, é uma criação ocidental, do outro, investigadores como Mandaza e Tostensen (1994) consideram que a SADCC foi concebida pelos estados da África Austral a partir da sua própria experiência de cooperação nos Estados da Linha de Frente (que designava os países membros da aliança política criada nos anos 70 contra o domínio de regimes de minoria branca na África austral). Assim, questionando sobre a compreensão da criação da SADCC perante a evidência de factores internos e externos, o presente trabalho explora os termos do debate sobre a origem dessa organização regional a partir da hipótese segundo a qual a SADCC resulta de uma articulação construtivista, pelos Estados da Africa Austral, da sua experiência de cooperação regional e da contribuição ocidental. Portanto, os factores internos e externos intervenientes no processo de criação da SADCC são aqui reconsiderados sob os conceitos de continuidade dos mecanismos prévios de cooperação regional e a de adaptação dos modelos internacionais de regionalismo.

O presente trabalho de reconsideração das origens da SADC é uma proposta de compreensão teórica da criação desta organização regional, baseado nas evidências apresentadas tanto pelos autores que afirmam a inspiração ocidental da SADCC como por aqueles que defendem que ela é o resultado da cooperação regional nos Estados da Linha de Frente. Deste modo, o desenvolvimento do trabalho incidirá na exploração das duas posições divergentes sobre as origens da SADC, compreendendo-as como polarizadas, e na proposta de uma perspectiva unificadora, iluminada pelo construtivismo. Esta abordagem resultará na proposição de questões e possíveis aplicações da contribuição construtivista no estudo do regionalismo na África Austral na década de 80 e 90.

1Para o presente artigo, a SADC é considerada como continuidade da SADCC. Assim, falaremos da SADCC para nos referirmos a aspectos ligados a origem da organização regional, e reservaremos a SADC para nos referirmos a manifestação actual e renovada da organização.

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1. O conceito de regionalismos

A presente análise do regionalismo da África Austral na década de 80 está baseada no entendimento de que existe uma diferença entre os conceitos de regionalismo e de regionalização. Enquanto o segundo expressa mais a dimensão económica, o primeiro enfatiza aspectos políticos de cooperação entre os estados (Mansfield e Milner, 1999: 591). É nesta perspectiva que Fawcett (2005: 24, tradução nossa) propõe o conceito de regionalismo, acentuando a dimensão de intencionalidade política. Com efeito, ela define o regionalismo “como política e projecto pelos quais os estados e não-estados cooperam e coordenam estratégias numa dada região”. Na mesma tradição do carácter político do conceito de regionalismo, abordando-o como uma resposta ao amplo processo de globalização e reconhecendo a diversidade e especificidade desta resposta, Farrell (2005: 2, tradução nossa) tem uma visão pluralista do regionalismo. Ela afirma que o regionalismo é o produto de acções “formatadas, dum lado, pela dinâmica regional interna, e do outro, pelas pressões externas, tais como a globalização, a instabilidade, [e] a segurança”.

Esta possibilidade explorada por Farrell duma abordagem bidimensional do fenómeno do regionalismo constitui a base para nossa consideração dos factores internos e externos da origem da SADC. Assim, neste trabalho assumimos as duas dimensões como sendo essenciais para o entendimento do regionalismo na África Austral.

2. A polarização do debate sobre as origens da SADC

O debate sobre as origens do regionalismo na África Austral ganha mais significado com o facto do tipo de regionalismo da África Austral ter evoluído duma mera cooperação (Cardoso, 1991: 80; Haarlov, 1997: 61; Khadiagala, 1994: 229-242) para abraçar um projecto de integração regional (Lee, 2003: 44-50; Poku, 2001: 74-78). Esta mudança

éinstitucionalmente simbolizada pela transformação da SADCC em SADC na década de 90. Neste sentido, uma melhor compreensão da SADC passa pelo entendimento da criação da SADCC.

Com efeito, alguns autores sugerem que a SADCC, enquanto percursora da SADC, é o produto duma ideia ocidental “vendida” aos países da África Austral. Embora sejam unânimes nesta afirmação, os mesmos autores divergem quanto ao saber se a SADCC foi apenas uma criação da Europa ocidental ou teve o contributo dos Estados Unidos de América. Por exemplo, como editor da colecção de estudos sobre a SADCC, Amin (1987: 8, tradução nossa) afirma que

“a SADCC não foi apenas uma iniciativa dos Estados da Linha de Frente. Ao contrário, houve um encorajamento forte dos países ocidentais que desejavam tornar a região mais ligada ao ocidente”.

A mesma opinião é partilhada por Mandanza (1987) que, embora reconheça o papel fundacional dos Estados da Linha de Frente na criação da SADCC, observa que a sua origem está marcada por intervenção externa de origem europeia e norte-americana.

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Este movimento da década de 80 que punha em causa a iniciativa de formação da SADCC pelos próprios estados da África Austral foi retomado por Lee (2003), afirmando que a organização regional da África Austral resultou de factores externos e realça a sua relativa dependência financeira dos governos ocidentais e instituições financeiras internacionais.

Enquanto alguns autores afirmam que a SADCC é uma criação exógena, outros enfatizam as suas origens internas (regionais). Para estes, a SADCC é o resultado da cooperação dos países da África Austral, em harmonia com a realidade da região. Assim, embora reconheçam que, desde o início do seu estabelecimento, os estados da África Austral procuraram apoios externos (especialmente tecnológico e financeiro), estes autores exploram o facto de que a SADCC é o resultado histórico e político dos chamados Estados da Linha de Frente. Neste sentido, Mandaza e Tostensen (1994: 4, tradução nossa) declaram que “a base mais imediata para a formação da SADCC foram os Estados da Linha de Frente”. A mesma posição é partilhada por Khadiagala (1994: 226, tradução nossa), observando que a “SADCC foi basicamente fundada a partir das estruturas da colaboração política entre os Estados da Linha de Frente”. Na mesma esteira, outros autores tentam explorar a ligação entre os Estados da Linha de Frente e a SADCC (Clough e Ravevhill, 1982: 162; Grungy, 1982: 160; Cardoso, 1991: 74; Mhone, 1991: 181-183; Rukudzo, 2002: 158). Para esses autores, apesar dos seus desafios, a arquitectura de organização regional na Africa Austral é autêntica e promissora.

Examinando os argumentos principais e a forma do debate sobre as origens da SADCC, compreende-se que ele é alimentado por uma polarização de posições que, todavia, não são incompatíveis, porquanto o conceito de regionalismo deve ser compreendido como sendo um fenómeno dinâmico, que sintetiza e articula elementos endógenos e exógenos. Neste sentido, a explicação histórica de Anglin (1983) sobre as origens do regionalismo da África Austral é menos controversa e oferece uma base coerente para uma reconstrução mais compreensiva das origens da SADCC, mostrando igualmente as condições formais e informais da sua criação.

Assim, seguindo a perspectiva de Anglin, afirmamos que não se pode captar compreensivamente os elementos que deram origem à SADCC se os argumentos se limitarem à polarização da discussão em factores externos e internos. Assim, é necessário desconstruir esta polarização através da compreensão das razões que fazem que os académicos tendam a divergir no concernente às origens da SADCC.

3. Argumentos e evidências sobre as origens da SADC

Dois aspectos principais podem ser explorados em relação às posições sobre as origens da SADC: a natureza dos argumentos e as evidências históricas. Esta análise pode ser feita através da abordagem dos autores mais representativos de cada posição.

Lee (2003) é uma das autoras mais recentes que critica a posição dos defensores das origens internas na formação da SADCC e pode ser tomada como representante dos que asseveram a preponderância de factores exógenos na formação da SADCC. Ela constrói o seu argumento a partir doutros autores que levantaram a mesma questão e apresenta algumas evidências históricas para a afirmação das origens externas da SADCC. Do outro lado, Mandaza e Tostensen (1994) podem ser considerados como

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representantes dos defensores da perspectiva centrada nas origens endógenas da SADCC. Com efeito, os seus trabalhos sobre a organização são conduzidos pelo propósito de oferecer evidências da criação da SADCC pelos próprios estados da África Austral.

Relativamente à natureza do argumento, enquanto Lee baseia-se em razões económicas e financeiras, Mandaza e Tostensen exploram aspectos políticos. Lee (2003: 48, tradução nossa) afirma que a organização regional “foi uma criação externa e continua sendo largamente controlada pelos governos ocidentais e instituições financeiras internacionais através da ajuda financeira à organização”. Esta perspectiva, baseada em aspectos económicos e financeiros, é confirmada por uma outra observação na qual ela afirma que “se o financiamento internacional lhe fosse retirado, provavelmente a organização (SADC) não poderia sobreviver” (Ibid.: 49, tradução nossa).

Do outro lado, Mandaza e Tostensen (1994, 1994: 3 tradução nossa) identificam cinco

factores que apoiam o argumento da origem interna (regional) da SADCC: a geografia, a história, o contexto sociocultural, a experiência colonial, a aliança dos Estados da Linha de Frente, e o regime Sul-africano do apartheid (como inimigo comum). Eles argumentam que “todos esses factores contribuíram para a fundação duma distinta personalidade e identidade da África Austral, o que apoiou em primeiro lugar a solidariedade política e depois a cooperação económica”.

Em relação às evidências históricas, Lee concentra-se na informalidade da criação da SADCC, enquanto Mandaza e Tostensen estão mais interessados em discutir a história da criação formal da organização. Deste modo, citando autores que têm questionado a vertente endógena do processo da criação da SADCC, Lee refere-se à uma entrevista de Daniel Ndela, consultor Zimbabueano, que reconstrói um conjunto de encontros (nem sempre oficiais) entre dirigentes dos países da África Austral e o Director de Gestão do Fundo da Commonwealth para a Cooperação Técnica, David Anderson, que contribuíram para o desenho da SADCC.

Por seu lado, Mandaza e Tostensen (1994: 17, tradução nossa) concentram os seus estudos de evidências em documentos oficiais, chegando a sugerir que a confusão sobre as origens da SADCC vem duma distinção formal entre encontros e conferências:

“O debate sobre as origens da SADCC deriva da confusão entre Conferência Coordenadora de Ajuda da África Austral (SAACC), que é o encontro, e a instituição que é a SADCC.”

Percebido neste sentido, observa-se que enquanto as duas posições respondem à uma mesma questão principal sobre as origens da SADCC, elas concentram-se e dão respostas à diferentes subquestões. Dum lado, há a preocupação em responder à subquestão sobre as origens informais, enquanto do outro lado, responde-se à subquestão sobre as suas origens formais.

Estudadas as duas posições, a partir da natureza dos argumentos e as evidências históricas, é importante reconhecer a influência externa na criação da SADCC. No entanto, este reconhecimento não pode ir tão longe ao ponto de negar a relativa

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autonomia dos estados da África Austral em definir o tipo de cooperação regional que melhor lhes ajudaria a atingir os seus objectivos. Como foi observado por Mandaza (1987: 215, tradução nossa), se a SADCC teve ou não origens externas, não devemos nos esquecer que esta organização “pode na verdade reflectir as aspirações do povo africano e assim gerar uma cooperação regional genuína na África Austral”. Esta percepção pode servir de incentivo à uma compreensão das origens da SADC a partir duma perspectiva construtivista.

4. Por uma compreensão construtivista das origens da SADC

A observação de Mandaza é compatível com um aspecto essencial do fenómeno de regionalismo que é a afinidade identitária dos estados membros. Na acepção de Hettne (1999), o conceito de regionalismo implica uma dimensão política apoiada pela afinidade identitária entre os estados. Com efeito, este autor vai longe ao ponto de usar o conceito de Benedict Anderson de ‘comunidades imaginadas’, para apoiar o seu entendimento de regiões como entidades simbolicamente construídas:

“tal como a formação de identidades étnicas e nacionais, a identidade regional é dependente do contexto histórico [...] e como as nações e as etnias, as formações regionais [...] também têm uma qualidade subjectiva, e podem consequentemente ser vistas como ‘comunidades imaginadas’ ” (Hettne, 1999: 9, tradução nossa).

Este contributo de Hettne no entendimento do regionalismo capta aspectos importantes do caso da África Austral, que são muitas vezes subconsiderados por aqueles que sublinham as origens exógenas da criação da SADC. Assim, uma abordagem construtivista da questão sobre as origens da SADC pode ajudar-nos a captar estes elementos de conflito e identidade, que determinaram a sua criação, sem ignorar os factores internos e externos. De facto, a história da criação da SADC ilustra como “a região não é uma forma estática, mas dinâmica no seu desenvolvimento e aberta para a mudança e adaptação” (Farrell, 2005: 8, tradução nossa). Neste sentido, a partir duma perspectiva construtivista, a região da África Austral deve ser estudada em termos de continuidade e adaptação.

Em termos de continuidade, não podemos compreensivamente entender a criação da SADC sem ter em consideração a história imediata da cooperação regional na Africa Austral antes da formação da SADCC. Esta história é fundamentalmente marcada pela existência dos Estados da Linha de Frente. Depois duma das suas vitórias mais significativas, a independência do Zimbabué em 1980, os membros desta aliança deram-se conta que os seus esforços contra o regime Sul-africano do apartheid não podiam ser eficazes diante do seu poderio económico (Thompson, 1986; Khadiagala, 1994). Daí que a declaração que proclama a criação da SADCC foi assinada sob o título de: “por uma libertação económica” (Mandaza; Tostensen, 1994: 116, tradução

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nossa)2. Esta declaração indica-nos a intenção de mitigar a dependência económica de muitos estados da região em relação à África do Sul.

Considerando os contornos da sua origem, a SADCC pode ser vista como um projecto regional contra o domínio do regime Sul-africano do Apartheid. É dentro desta visão que se entende a observação de Poku (2001: 100, tradução nossa), segundo a qual “na prática, o sentimento anti Sul-africano mais do que interesses económicos juntou os países da SADCC.” Neste sentido, o tipo de regionalismo inicialmente adoptado, caracterizado por baixos níveis de integração e a ênfase dada à cooperação, pode ser entendido dentro do contexto regional de confrontação com os interesses do poder hegemónico regional – a África do Sul. Daí que nos seus estudos sobre o modelo de regionalismo adoptado pelos países da África Austral até a sua transformação de Conferência de Coordenação para Comunidade de Desenvolvimento, Haarlov (1997: 61, tradução nossa) afirma que a África Austral adoptou “a perspectiva de cooperação”. Mais adiante ele caracteriza este modelo de cooperação da África Austral nos seguintes termos:

“a maneira de operar da [SADCC] é incremental, de procura de consenso e descentralizado, ambos na administração de áreas regionais de cooperação e na execução de projectos.” (Ibid.: 61, tradução nossa).

A consideração do contexto regional de cooperação entre os países da África Austral antes da criação da SADCC é importante, porquanto ajuda a explicar a necessidade de contribuição externa no processo de criação desta organização. De facto, nas décadas de 70 e 80 a maior parte dos novos estados independentes da África Austral tinha uma relativa dependência económica da África do Sul. Com efeito, este país constituía o poder económico “hegemónico” da região. Como observado por Khadiagala (1994: 23, tradução nossa), “em quase todas as medidas de capacidade económica (excepto na extensão e população), existe uma imensa disparidade entre a pobreza e fraqueza dos estados da SADCC e a riqueza e poder da África do Sul”. A dependência económica dos países da SADCC era essencialmente manifesta na insuficiência de infra-estruturas de transporte e comunicação e nos baixo níveis de industrialização, comparativamente à África do Sul (Khama, 1981; Mandaza e Tostensen, 1987).

Essa situação de “dependência” pode explicar a necessidade do recurso ao apoio de actores externos à região, para o alcance do objectivo de libertação económica dos países da Africa austral. Assim, a estratégia fundamental da SADCC foi a de atrair ajuda financeira e técnica externa para prosseguir com os projectos internos definidos pela organização.3 Esta necessidade de apoio externo concorre para uma explicação parcial do contacto dos estados da África Austral com actores externos durante a fase da criação da SADCC. Como reconhecido pelo antigo presidente da Tanzânia, Julius Nyerere:

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in Appendices, ‘Southern Africa: Toward Economic Liberation’.

Por exemplo, Lee nota que na década de 80, 90% do orçamento da SADCC vinha da sua cooperação com países ocidentais e instituições financeiras internacionais.

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“Nós tivemos importante apoio técnico de indivíduos não africanos a quando da criação da SADCC, mas a SADCC foi formada da iniciativa pessoal do antigo presidente Seretse Khama, com o pronto e entusiástico apoio dos outros líderes dos Estados da Linha de Frente” (in Mandaza e Tostensen, 1994: 17).

O facto de os estados da África Austral receberem apoio técnico e financeiro dos países ocidentais para a criação da SADCC pode ser parcialmente explicado em termos duma perspectiva racionalista. Para tal, as relações entre os países da África Austral e os países ocidentais podem ser entendidas no âmbito da maximização de interesses. Com efeito, se dum lado, Mandaza e Tostensen chamam irónico a SADCC, constituída por estados politicamente ligados à União Soviética e ideologicamente inclinados para o socialismo, ter recebido o apoio técnico e económico de actores ocidentais tais como a Comunidade Europeia e a Commonwealth; do outro lado, o interesse ocidental em apoiar a SADCC é explicado por Lee em termos duma estratégia de distracção. Ela compreende que a SADCC foi uma estratégia dos estados ocidentais para cobrir o seu apoio ao regime sul-africano do apartheid (Lee, 2003)4.

Embora essa explanação racionalista tenha a sua razão de ser, ela torna dicotómicas as origens da SADCC, concentrando-se exclusivamente em factores externos ou internos. Assim, a aplicação da perspectiva teórica construtivista ao debate sobre as origens da SADC pode contribuir para uma explicação mais compreensiva do regionalismo da África Austral e da sua evolução.

No âmbito desta perspectiva teórica, entendemos que o regionalismo construído pelos estados da Africa austral é uma articulação dos modelos de regionalismo existentes e a experiência acumulada de cooperação regional entre os mesmos estados. Com efeito, as primeiras trocas de experiência entre os líderes africanos e técnicos não africanos, durante a fase de concepção da SADCC, não podem ser entendidas apenas como uma maximização estratégica dos interesses dos países da África Austral. As contribuições externas e internas fazem parte dum processo de aprendizagem e de socialização que ainda caracteriza a arquitectura da construção do regionalismo da África Austral.

Neste sentido, o facto dos países da África Austral procurarem apoio dos países ocidentais, apesar do facto de eles discordarem com algumas das posições políticas e económicas ocidentais, não é irónico. Pelo contrário, isto revela uma profunda estrutura das relações internacionais e cooperações regionais. Como sublinhado por Wendt (1995: 71-72, tradução nossa),

“as estruturas fundamentais da política internacional são societais mais do que estritamente materiais […] e […] estas estruturas formatam as

4Falando sobre a criação conceptual da SADCC, enquanto autores como Lee (2003) mencionam o envolvimento directo de indivíduos ligados a Commonwealth, a ajuda técnica e económica não foi apenas concedida pelos estados da commonwealth. Mandaza e Tostensen (1994) apresentam uma lista exaustiva de apoio económico e político vindo de diferentes entidades, incluindo os Estados Unidos de América (durante a Administração Cárter) e do Reino Unido. De facto, a lista por eles proposta estende-se aos seguintes estados e organizações internacionais: A União Europeia, os países Nórdicos, os Estados Unidos de América, a Commonwealth, as Nações Unidas, a USSR / CMEA, e o Japão.

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identidades e interesses dos actores, e não apenas o seu comportamento”.

O facto de o regionalismo não ser uma realidade nova, mas já ter sido experimentado por outros estados no contexto societal das relações internacionais, modifica as condições de emergência e estabelecimento de novas organizações regionais. Com efeito, as novas experiências de integração ou de cooperação regional não ignoram as experiências anteriores. As estruturas das novas organizações regionais de cooperação são informadas e formatadas pela experiência acumulada doutras que as antecederam. Assim, os recém-chegados à realidade do regionalismo aprendem e interiorizam os modelos existentes.

Contudo, a interiorização não é uma simples repetição de modelos. Como para as sociedades intra-nacionais, a sociedade internacional é caracterizada pela dinâmica de novos actores que não são somente formatados pelas estruturas existentes, mas também informam as mesmas estruturas, de tal modo que os modelos (estruturas) regionais não são simplesmente copiados pelos novos agentes. Como afirmado por Acharya (1997: 320, tradução nossa), “o impacto de ideias e normas, especialmente se elas surgem fora dum dado contexto socio-político regional, depende em larga maneira da identidade auto-definida dos actores locais.” Assim, pode-se afirmar que, tal como os modelos sociais, os regionalismos são adaptados no mesmo acto de sua adopção.

O argumento da adaptação criativa ultrapassa a dicotomia entre factores endógenos e exógenos na criação da SADC. De facto, a adaptação supõe a intervenção (neste caso articulação ou síntese) de factores internos e externos. Isto implica a referência aos modelos existentes de regionalismo e a inovação dos actores, que adaptam os modelos que eles adoptam. Como observado por Poku (2001: 9, tradução), na sua interpretação do construtivismo, “enquanto as propriedades estruturais da vida social são constituídas e reconstituídas por agentes, elas são também constitutivas desses mesmos agentes.” A prova da adaptação do regionalismo da África Austral é o facto de que, no princípio, os países da África Austral adoptaram um tipo de regionalismo concentrado na cooperação (Lee, 2003; Haarlov, 1997; Khadiagla, 1994). Se eles simplesmente tivessem de repetir o modelo europeu, talvez a SADCC tivesse sido caracterizada por um regionalismo dirigido pela perspectiva integradora de mercado. Como bem observado por Cardoso (1991: 80),

“o próprio nome (Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento) escolhido para a organização reflecte a estratégia de passos progressivos e concertados adotada, bem como a resistência que, até agora, a SADCC tem colocado às tentativas de a transformar num organismo clássico de integração regional, com predomínio dos aspectos de natureza comercial”.

Do mesmo modo, a lenta mudança do ocidente, manifesta no apoio à SADCC, não pode ser explicada apenas em termos racionalistas. A atitude ocidental não foi apenas um engajamento visando a distracção dos países da África Austral, como sublinhado por Lee (2003). O engajamento ocidental deve ser situado num largo contexto de perda da

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legitimidade internacional do apartheid e da interiorização internacional do novo papel do regionalismo, não apenas no sentido de cooperação entre os estados, mas também no sentido da cooperação entre regiões.

A focalização nos interesses económicos e políticos dos países ocidentais em relação à África Austral (Asobie, 1985) impediu certos autores de explorar o facto de que na década de 80 o regime sul-africano do apartheid não estava apenas a perder a sua legitimidade interna, mas também a sua legitimidade internacional. Embora os meados da década de 80 tenham constituído o píncaro do desconforto ocidental para com a África do Sul, as suas raízes podem ser situadas muitos anos antes5. Esta situação fortaleceu o isolamento da África do Sul não apenas na África Austral, como também noutras regiões de África e do mundo.

Essa legitimidade à que nos referimos não pode ser reduzida aos interesses económicos (ver Hurd, 2007). Daí a possibilidade de uma perspectiva construtivista ajuda-nos a compreender, por exemplo, o envolvimento dos estados Nórdicos na África Austral. De facto, é de algum modo redutor afirmar que esses estados foram apenas motivados por interesses económicos. Como foi observado por Sellstrom (1989: 13, tradução nossa),

“O engajamento dos [países nórdicos] deve ser primeiramente compreendido como uma posição política em relação aos dois regimes obsoletos e inumanos ainda existentes na África Austral depois da Segunda Guerra, isto é, o colonialismo e o apartheid.”

O caso do apoio dos Estados Nórdicos à SADCC mostra como a abordagem racionalista capta e explica apenas uma parte da realidade, enquanto falha na compreensão de elementos importantes do ambiente regional e internacional que mudou o cálculo dos estados.

A aplicação da abordagem construtivista para a compreensão da criação da SADCC não complementa apenas a perspectiva racionalista. Ela também tem um carácter heurístico no estudo do regionalismo da África Austral. Embora isto vá para além dos limites do objecto de estudo do presente trabalho, pode ser mencionado que, aplicando a abordagem construtivista, descobre-se uma certa coerência no regionalismo da África Austral, mesmo quando falamos da mudança de SADCC para SADC (duma perspectiva meramente cooperativa para outra mais integrativa). De facto, os modelos de regionalismos, tal como as identidades e os interesses são socialmente construídos. A adaptação desses modelos implica que tais estruturas convencionais são absorvidas pelo contexto social da realidade que os adopta. Os recém-chegados não podem ignorar a experiência dos outros; Eles aprendem com os predecessores. No entanto, o processo de aprendizagem é activo; ele formata os modelos existentes. Este processo da adaptação social implica factores internos e externos.

Outro aspecto que pode ser iluminado por uma leitura construtivista é o da eficácia da SADCC e da sua relação com outras organizações regionais, sobretudo europeias. Com efeito, embora a tendência da literatura sobre a SADCC medir o sucesso desta organização, focalizando-se em aspectos económicos, seja logicamente justificada, o

5Ver Gibb (1987, p. 396).

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sucesso de uma organização de cooperação regional não pode ser reduzido à aspectos económicos. Neste sentido, a abordagem construtivista pode ajudar a levantar algumas questões e explorar outras explicações sobre a arquitectura de cooperação regional na Africa Austral e a sua relação com outras organizações regionais e actores internacionais. Por exemplo, pode-se interrogar sobre o quanto a SADCC terá contribuído para a mudança de percepções entre os países da África Austral e os países ocidentais. Quão legítima se tornou a intervenção ocidental na região Austral através da cooperação com a SADCC? Quão diferente se tornou a percepção dos estados da África Austral sobre os antigos poderes coloniais e seus aliados? Enquanto a resposta à essas questões pode não ser ainda evidente, a abordagem construtivista parece estar melhor equipada para a sua compreensão.

Conclusão

Àguisa de conclusão, pode-se afirmar que o debate sobre as origens internas e externas da SADC é largamente motivado pela dicotomia e polarização dos argumentos e evidências históricas. Se alguns autores centram-se em aspectos formais e políticos, outros focalizam-se nas dimensões informais e económicas. Embora a leitura racionalista sobre a criação da SADC não deve ser descartada, ela ilumina apenas alguns aspectos da criação da SADC, deixando de fora outros, como os construídos socialmente, que são fundamentais na compreensão do sentido teleológico da SADC baseado nos factores etiológicos da SADCC. Assim, uma abordagem construtivista ajuda a compreender que faz parte da natureza da construção de organizações regionais como a SADC envolver factores internos e externos.

Esses factores foram aqui articulados, usando os conceitos de continuidade e de adaptação. A SADCC é uma continuidade dos mecanismos prévios de cooperação regional na África Austral. No entanto, essa cooperação assumiu novas formas, novas ideias, e novas normas; ela foi também uma adaptação criativa dos modelos existentes de regionalismo. Neste sentido, a reconsideração das origens da construção do regionalismo na Africa Austral, a partir da abordagem construtivista, articulando os factores endógenos e exógenos, pode servir de base para uma explicação da transformação da SADCC em SADC e sobretudo do papel da SADCC na mudança de percepções entre os estados da Africa Austral e os países ocidentais.

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