OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp. 75-90

SEGURANÇA: BEM JURÍDICO SUPRANACIONAL

Manuel Monteiro Guedes Valente

mestradoguedesvalente@gmail.com

Director do ICPOL e Professor do Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna (ISCPSI). Professor da Universidade Autónoma de Lisboa. Investigador do Ratio Legis – UAL

Resumo

O artigo fala-nos da assumpção da segurança como uma topologia poliédrica, plurifuncional e plurinormativa que exige aos vários actores de acção uma concepção poligonal de bem jurídico digno de tutela penal do espaço local ao global e do global ao local. A assumpção da segurança como bem jurídico supranacional impõe que a legiferação criminal se espartilhe nos princípios da política criminal e da intervenção do Direito penal, barreiras às tendências securativistas e à tentativa de incrementação do princípio da perigosidade presumida como fundamento da intervenção penal. Considera-se que o obstáculo à «autocoisificação do homem» no polígono global passa por uma (nova) ordem jurídica mundial como futuro equilíbrio da humanidade.

Palavras chave:

Segurança; bem jurídico; direito penal; ser humano; legitimidade; perigosidade; inimigo; plurifuncionalidade; plurinormatividade; topologia; polígono; ordem jurídica mundial

Como citar este artigo

Valente, Manuel Guedes (2012). "Segurança: bem jurídico supranacional". JANUS.NET e- journal of International Relations, Vol. 3, N.º 2, outono 2012. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n2_art4

Artigo recebido em 8 de Março de 2012; aceite para publicação em 5 de Novembro de 2012

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Segurança: bem jurídico supranacional

Manuel Guedes Valente

SEGURANÇA: BEM JURÍDICO SUPRANACIONAL

Manuel Monteiro Guedes Valente

I.Enquadramento geral

1.O globo terrestre vive momentos de agitação e de conflitualidade conceptual em torno da afirmação do ser humano como um sujeito efectivo de direitos e liberdades fundamentais pessoais, sociais, económicas, culturais e políticas. A assumpção que se impõe à ciência e não à técnica não cientifica por fenómenos endógenos e exógenos (submergidos à técnica e à eficácia sem eficiência), direccionados para a autocoisificação dos homens de que nos fala Habermas (2006: 74), conduz-nos a repensar os conceitos que se convertem em topologias – em espaços geométricos de operações de grupo de correspondência tópica biunívoca entre os vários intervenientes

– e a reestruturar o sistema exíguo – do espaço exíguo – em sistema aberto e macrossistema.

Este olhar impende aos actores comunitários responsáveis pela prossecução das tarefas fundamentais dos Estados um ónus de efectividade eficiente na defesa e garantia da vivência societária harmoniosa, com qualidade de vida e bem-estar. Estes desideratos são a marca de um Estado organizado e topologicamente estruturado na criação de um espaço de liberdade, de justiça e de segurança. Este espaço constrói-se no dia-a-dia da vida e do ambiente sistémico, i. e., constrói-se na concretização da vida inserida num sistema operativo económico, político e jurídico. É neste sistema integral, que é ambiente e vida, onde o ser humano encontra a “dimensão do próprio modo-de-ser pessoa” (Figueiredo Dias, 2007: 118).

Esta dimensão ganha relevância num tempo (e espaço) de mutabilidade e incerteza que valora (quase absolutiza) uns bens vitais em detrimento de outros. A sacralização do bem «segurança» em prejuízo do bem «liberdade» ganhou protagonismo nos finais do séc. XX e início do séc. XXI e atingiu um patamar de quase esquizofrenia societária: tudo é e passa a ser segurança. Esta paneonomia, efemeridade dos nossos tempos, emergente de uma globalização económico-financeira desregulada, espalha-se num tempo cuja segurança real e efectiva existente ocupa uma dimensão jamais vista (Bauman, 2009: 13-51).

2.Este desequilíbrio topológico da essencialidade do sistema (ou macrossistema), ancorado numa ideia ficcionada do medo e da incerteza crescente da tardo- modernidade1, só é limitável caso atraquemos a ideia de segurança fora da tese securativista e da tese da perigosidade que defendem a implementação de um Direito punitivo preventivo e lançam, para o debate científico, a necessidade desta opção com

1Acompanhamos a topologia de José de Faria Costa: “O nosso tempo vive na singeleza perversa do efémero. Do transitório. Do presente que se quer irremediavelmente presente. Características, pois, deste momento civilizacional que alguns chamam de pós-modernidade mas que, nós, preferentemente qualificamos de tardo-modernidade” (Faria Costa, 2010: 7).

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fundamento de que a segurança é a primeira das liberdades. Aquelas teses sobrevalorizam a segurança olvidando a história e os momentos cuja idêntica valorização germinou as atrocidades que teimamos em esquecer. Estas teses centralizam o sistema como modo-de-ser da pessoa na base da segurança, quando nós preferimos centrar esse sistema no ser humano: razão única do ambiente e da vida em comunidade.

A acepção e a concepção científica de que a segurança é, hoje, um bem do «eu», do «outro» e do «nós», um bem de todos os «eu», de todos os «outros» e de todos os «nós», trazem para o debate científico jurídico (e político) a ilimitabilidade espacial e a ilimitabilidade das dimensões geométricas territoriais e o desafio de construir uma topologia de segurança como necessidade e como bem jurídico essencial ao desenvolvimento harmonioso da sociedade como concretização de um valor constitucional, imbuído de defesa e tutela dos direitos (e deveres) e liberdades fundamentais pessoais – que visam tutelar a “esfera de actuação especificamente pessoal” [considerada individual e colectivamente] –, sociais, económicos e políticos – que visam tutelar a esfera de actuação social da pessoa (Figueiredo Dias, 2007: 120- 121).

Este exercício de subordinação da segurança, como bem jurídico, à ordem jurídico- constitucional do Estado de direito democrático implica-lhe uma limitação material, processual e operativa, subordinada aos princípios da política criminal e da intervenção do Direito penal, e que se afirma como um valor de maximização da pessoa em toda a sua dignidade humana. Este pensar obriga-nos a limitar (e afastar) a hegemonia do colectivo sobre o indivíduo e a colocar no centro de toda a discussão científica o ser humano.

II.Topologia segurança e a tutela jurídico-criminal: validade/legitimidade

3.A conceptualização da segurança como um bem jurídico de tutela penal atravessa um tempo de reflexão interna e externa e deve obrigar-nos a situacioná-la nos reflexos do pensar cultural específico de um povo, do pensar conceptual (dogmático) do ser humano e do pensar de concepção de Estado. Esta trilogia de pensamento é, como já escrevemos, elemento da construção basilar da organização de um povo, independentemente da estrutura organizativa em curso (Guedes Valente, 2011: 66- 67).

A edificação de uma topologia de segurança deve anteceder a respectiva delimitação de bem jurídico digno de tutela penal, sendo que o campo a identificar de intervenção do Direito penal é um oceano a explorar. Esta exploração onera o cientista a nunca se deixar ludibriar e sentir tentado pelo discurso de «retórica» ou de «palpiteiro» político, próprio dos nossos dias, para que um dia, como GÜNTER GRASS, não tenhamos de escrever e dizer «Nunca» faríamos ou fizemos «uma coisa destas» (Günter Crass, 2008: 12-15) para justificarmos as monstruosidades humanas – v. g., Auschwitz – e os abusos e o atropelo aos direitos e liberdades fundamentais – v. g., Guantanamo legitimado pelo Patriot Act do estado-unidense; os Gulag da ex URSS.

O discurso de «retórica» ou «palpiteiro» assenta numa ideia de insegurança cognitiva propagada pela velocidade da comunicação social. Esta pluridifusão do crime transforma a vivência de um facto criminoso individual e localizado em comunitário (e

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societário) e globalizado. Um homicídio ocorrido numa aldeia recôndita de Portugal é, hoje, sentido, vivido e esgrimido (ética, política e juridicamente) em todos os lares e sofre da síndrome de multiplicação pela massificação noticiosa.

Esse crime deixa de ser um e passa ao processo da multiplicação pela difusão célere e desgastante. Esta hipervelocidade do conhecimento de um crime pode conduzir-nos ao discurso fácil da insegurança e do «reino da violência». A construção de uma topologia de segurança cognitiva não pode deixar-se viciar por este discurso, mas deve centrar- se na identificada trilogia de pensamento, sob pena de concebermos um sistema em que o bem jurídico segurança assume o leme da viagem implementada pelo Direito penal preventivo ou da perigosidade.

4.A topologia segurança detém elevada extensibilidade conceptual e afirma-se como poliédrica, plurifuncional e plurinormativa. Estas características têm maior dimensionalidade se forem pensadas e estudadas num plano local, nacional, regional e internacional por serem manifestação da versatilidade e liquidez2 de um mundo globalizado dentro da glocalização: pensar local ganha espaço dentro do pensar global e o pensar global só se incrementa no interior do pensar local. O pensar de um bem jurídico como a segurança, digno de tutela penal, deve ter em cima da mesa a certeza da falibilidade (a incerteza) e a ideia de que a implementação material e formal de uma topologia poliédrica é um desafio de uma ordem não residual ou limitada em geometria territorial, mas de geometria flexibilizada e obtusa, subordinada à teoria gravitacional do tempo e do espaço3.

Esta estruturação na edificação de uma topologia de segurança coloca-nos a condição de não a reduzirmos só a valores morais, a valores éticos, a valores políticos ou a valores de exclusiva relevância jurídica. Retira-se desta afirmação que muito menos se pode reduzir essa edificação a valores inerentes à operatividade das instâncias de controlo como a Polícia e o Tribunal (Ministério Público e Juiz). Como topologia poliédrica, plurifuncional e plurinormativa, a segurança ancora em todo um patamar pluriforme de modo a absorver a extensibilidade conceptual que encerra em si mesmo. Esta consciencialização não pode absolver o jurista (legislador) da menos conseguida legiferação em temas de segurança.

5.A plurinormatividade da segurança encontra, desde logo, eco no princípio da segurança jurídica que está fragilizado face à inconsistente e desorientada sistemática na legislação penal e processual penal: por um lado, chama-se o Direito penal a intervir na tutela de bens jurídicos desprovidos de dignidade penal por não se dirigirem à protecção da actuação pessoal e social do ser humano e se esgotarem numa lógica de simbologia criminal e de promoção exclusiva da prevenção geral negativa – chama-se o Direito penal para desempenhar a funcionalidade de polícia –, contrariando a constelação de princípios científicos que devem reger a intervenção penal nas condutas humanas; por outro, opta-se por angariar para o catálogo dos instrumentos de

perseguição criminal novos institutos, baseados em tecnologias «industrializadas e

2Para um aprofundar da teoria do mundo líquido, Zigmunt Bauman (2007). Tempos Líquidos, [Tradução do inglês – Liquid Times (Living in Age of Uncertainty) – de Carlos Alberto Medeiros]. Rio de Janeiro: Zahar Ed.

3Quanto à teoria da falibilidade dos sistemas, incluindo das lucubrações matemáticas, Karl Popper (2003). Conjecturas e Refutações, (Tradução do inglês – Conjectures and Refutations – de Benedita Bettencourt). Coimbra: Almedina. pp. 293-338 (310-322). Quanto à teoria gravitacional do tempo e do espaço, Etienne Klein (1995). O Tempo, (Tradução do francês Le Temps de Fátima Gaspar e Carlos Gaspar). Lisboa: Instituto Piaget.

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comerciáveis» e atribuídos às polícias criminais sem que primeiro se estude e avalie a razão da não funcionalidade dos institutos existentes (Hassemer, 1995: 109-113). Dá- se fôlego ao processo da policialização da acção penal, desnudando a arquitectura constitucional democrática vigente.

O princípio da segurança jurídica, que devia ser o primeiro pilar da topologia segurança como bem jurídico digno de tutela penal, encontra-se em crise devido à menos conseguida legiferação. Há um esmorecer da certeza de orientação da concretização do ser e do dever-ser em comunidade que se impõe “como um sistema de estruturas de acção, interactivas sob múltiplos aspectos”, assente numa “susceptibilidade de orientação normativa” (Zippelius, 1997: 47) e não numa desorientação normativa da acção humana.

Esta acepção pode ter como fundo a plurinormatividade da segurança: atravessa todo o ordenamento jurídico – civil, administrativo, económico, financeiro, penal (material e processual) e constitucional, nacional e supranacional – e assume-se nele como fundamental para a vida em comunidade; e absorve, como bem a preservar e essencial ao desenvolvimento harmonioso da comunidade, o domínio público e o domínio privado do Direito.

A segurança, devido à sua dimensão plurinormativa, gera uma sensação de incerteza não própria da falibilidade, mas do demonstrativismo que nos tem governado nas últimas décadas. Mas, devia ser fonte do falibilismo próprio de uma topologia em constante adequação aos fenómenos da sociedade do risco global (Beck, 2009: 56-58) e na afirmação de uma topologia que absorva a trilogia do pensamento – pensar cultural, pensar conceptual (dogmático) do ser humano e pensar conceptual de Estado

– e expanda um operativismo globalizado.

6.A plurifuncionalidade da topologia segurança prende-se à ideia de se desenvolver em várias áreas de acção, em vários domínios e em vários espaços por vários actores com atribuições e competências, próximas e diferenciadas segundo os respectivos patamares de intervenção. A edificação topológica deve aglomerar ao núcleo essencial o maior número de funcionalidades activas e passivas de segurança e o maior espectro operativo público e privado de actividade e produção de segurança.

A consagração constitucional da segurança como valor fundamental da democratização da sociedade e do crescimento democrático dos cidadãos acopla a plurifuncionalidade ao princípio da liberdade. Este princípio conglomera no seu núcleo a segurança como necessidade e valor plurifuncional: o ser individual ganha supremacia ao ser colectivo, impondo-lhe o respeito do princípio liberdade como o mais elevado valor da justiça e como espaço de expressão da dignidade da pessoa humana e como porto de abrigo da segurança.

A plurifuncionalidade emerge, desta forma, não de uma liberdade isolada, mas de várias liberdades que oneram o ser colectivo a defender e a garantir a segurança nos vários espaços de liberdade do ser individual [circulação, escolha de trabalho, casamento, educacional, ambiental, religiosa, manifestação, expressão, etc.]. Estas liberdades (e necessidades humanas) germinam a plurifuncionalidade local e global da segurança e obrigam a ciência a repensar e a reconstruir a topologia segurança como bem jurídico local, nacional, regional e supranacional, a reencontrá-la nos bens jurídicos dignos de tutela penal e a reestruturá-la em tipologias criminais autónomas de

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acordo com a matéria comportamental e a lesão ou perigo de lesão [em concreto e muito restritiva e excepcionalmente em abstracto] do bem jurídico segurança.

7.A reconstrução da topologia segurança como bem jurídico – valor assumido pela ordem jurídica legítima, válida, vigente e efectiva – impende à ciência o ónus de considerá-la como uma topologia poliédrica. A segurança é uma topologia poliédrica, ou seja, afirma-se como uma construção plana paralela às direcções da força dos vários actores [força pluri e biunívoca] e proporcional às intensidades da plurinormatividade e plurifuncionalidade situadas num tempo e num espaço.

Esta característica da segurança encontra-se expressa ao longo da história penal e na codificação legislativa penal da efectiva tutela de bens jurídicos individuais p. e., vida, integridade física, liberdade (de decisão e de acção – locomoção), propriedade e respectiva fruição –, bens jurídicos supraindividuais p. e., realização da justiça, credibilidade e transparência do funcionamento dos mercados financeiros, livre concorrência e bom funcionamento do tecido económico, integridade do Estado de direito – e bens jurídicos difusos (que não deixam de ser individuais e supra- individuais) – p. e., ambiente com quotas de qualidade, segurança do tráfego rodoviário. O valor segurança é um valor poliédrico relacional com os demais valores tutelados pelo Direito penal e assume-se, em muitas tipologias criminais, como a redoma ou a cápsula envolvente de bens jurídicos pessoais: v. g., a segurança do tráfego rodoviário que mais não é do que a tutela da vida e da integridade física de todos os utentes das vias rodoviárias.

Esta edificação discursiva induz-nos à extensibilidade conceptual que a topologia segurança carrega em toda a legislação penal (e administrativa sancionatória) e que se estende a espaços de plurinormatividade e plurifuncionalidade afirmativos de estarmos perante um bem jurídico-criminal: um interesse vital pessoal (individual) e supra individual essencial e estruturante para o desenvolvimento do ser humano organizado em comunidade e, como valor antropocêntrico da sua actuação pessoal e social, digno de tutela penal. Mas, esta extensibilidade conceptual não significa arbitrariedade na criminalização de condutas humanas negativas, significa antes extensibilidade integradora de um conceito de valor essencial ao ser humano – bem jurídico –, delimitada pela plurifuncionalidade e pela plurinormatividade, aferidas da Constituição formal e material, i. e., aferidas da ordem axiológica jusconstitucional (Figueiredo Dias, 2007: 119-121).

A extensibilidade conceptual da topologia segurança significa a subordinação a uma topologia valorativa real de construção cognitiva epistemológica e axiológica como bem vital (mas não absoluto) de toda a comunidade (nacional e supranacional). Uma comunidade desprovida de segurança é uma comunidade desguarnecida de desenvolvimento e de crescimento do ser humano, mas mais grave é deixar ao tópico (τοποσ) momentâneo a decisão da vitalidade ou não da segurança como bem jurídico, cuja desesperação se agudiza com a mutabilidade dos tempos líquidos. Assente-se que esta constatação não é um apelo à sacralização da segurança. É um apelo à sua encubação na fundamentação dogmática da intervenção punitiva do Estado.

A validade e a legitimidade da assumpção da segurança como bem jurídico digno de tutela penal residem no assumir da sua essencialidade e da sua necessidade e exigibilidade para a actividade pessoal e social do ser humano e, por essa razão, em conter uma estrutura relacional antropocêntrica na tutela de um valor/interesse

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[necessidade convertida em bem jurídico pela ordem jurídica (von Liszt, 2003: 139- 146)] individual e supra individual, nevrálgico para o desenvolvimento em harmonia do homem em comunidade. Como bem jurídico digno de tutela penal em um Estado de direito material democrático, a segurança encontra-se ao serviço (sendo por isso instrumental) da liberdade e edifica-se sob o pensar cultural de um povo, o pensar conceptual (dogmático) do ser humano e o pensar conceptual de Estado.

Esta nossa construção epistemológica e axiológica de afirmação da topologia segurança como bem jurídico, que carece de tutela jurídico-criminal, como fonte legitimante de intervenção do Direito penal, nega a funcionalização do Direito penal à concretização das necessidades e exigências emergentes da sociedade do risco – assente na ideia de perigosidade e da ameaça concreta edificadora de um Direito penal do risco – (Figueiredo Dias, 2007: 138-139), i. e., nega o Direito penal preventivo ou da perigosidade presumida (abstracta) e afasta a ideia do Direito penal com “fato de polícia de giro” (Faria Costa, 2010: 10).

III. O espaço e o bem jurídico «segurança»

8.A segurança, como topologia poliédrica, ocupa vários espaços planos e paralelos poligonais que interagem e se interligam dentro da plurifuncionalidade e plurinormatividade nacional e supranacional. A textura deste polígono, que envolve a textura esférica do globo, é local, nacional, regional e supranacional. Incrementa-se uma elasticidade espacial de segurança face à mutabilidade da criminalidade nómada da sociedade sedentarizada e assenta-se a ideia de construção de um espaço de liberdade e justiça, subordinado a um discurso harmonizado, aproximado e horizontal e extirpado do discurso político que tem reduzido esse espaço de segurança à teoria securitária (e aqui e acolá belicista).

A conversão da exiguidade dos espaços em sistema aberto e macrossistema nasce da cognitividade da segurança como topologia antropocêntrica extensível no espaço e no tempo e construtiva de estádios vivenciais diferenciados e centrifugadores. A prática de um crime afecta, por si só, o estádio real e cognitivo da topologia segurança no espaço estrito identificável e determinável: o espaço local ou território geometricamente limitável [polígono real]. A plurifuncionalidade e a plurinormatividade centram-se numa concepção poliédrica de fácil configuração e determinação territorial e temporal de efeitos pessoais e comunitários concretos.

Figura 1

R

Cognitivo

l

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A expansibilidade do efeito criminógeno esgota-se num polígono localizado e nele se encerra: ganha expressão o princípio da territorialidade do Direito penal. O real absorve o cognitivo e toda a topologia segurança se afirma dentro de um sistema exíguo que esfuma a onda gravitacional do tempo (também ele exíguo por ser integrante do próprio sistema).

9.O efeito gravitacional de determinados crimes projecta-se para fora do polígono localizado e ganha dimensão espacial nacional e ocupa o mundo da realidade – local – e mundo da cognitividade. Este processo é garantido com a ênfase que a comunicação social empreende ao facto criminoso que afecta a vítima directa (o ofendido e titular do bem jurídico lesado ou colocado em perigo de lesão), as vítimas indirectas (personificadas nos membros da comunidade local que vêem os bens jurídicos em perigo de serem lesados por condutas humanas), e os membros da comunidade nacional (sente e percepciona cognitivamente a redução do espaço e do tempo da topologia segurança).

Este processo edificativo deixa de ocupar só o campo da epistemologia e da axiologia – o campo da racionalidade –, que preenche o polígono real, e passa também a ocupar o espaço ficcional da cognitividade – o campo da emotividade (quantas vezes paneónica)

que preenche o polígono cognitivo. O polígono cognitivo ganha dimensão e intensidade e, com esta força gravitacional de deslocação espacial, propulsionada pela comunicação social, começa a absorver o polígono real e a dominá-lo.

Figura 2

Cognitivo Real

A plurifuncionalidade e a plurinormatividade devem aparecer para reduzir ao máximo o polígono cognitivo e fazer vingar a ideia jusconstitucional de afirmação do princípio da territorialidade penal dentro do espaço do território estadual. Consideramos que, não obstante a funcionalidade (material) se afirmar na plurinormatividade da topologia segurança, se deve submeter essa funcionalidade à normatividade que impõe o local da prática do crime como aquele que sofreu com maior densidade e intensidade os efeitos nefastos daquela conduta humana negativa. Caso se consiga obter esta absorção do polígono cognitivo pelo polígono real, conseguimos assumir a segurança como um bem jurídico de dimensão local e nacional por se evitar o espraiar de um sentir do πανεον.

10.A consciencialização da existência de crimes de explosão reflexiva e de onda de choque, devido à elevada danosidade pessoal e social e profunda percepção antropológica da gravidade, leva-nos a assumir a implementação doutrinária e

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operacional de “rede das redes” (Wilkinson, 2006: 127) de fenómenos criminais de

vítimas indeterminadas e ilegíveis: em que todos os cidadãos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, são vítimas de condutas negativas estruturadas e organizadas lesivas e/ou de perigo de lesão de bens jurídicos individuais, supra individuais e difusos.

O poliedro segurança abandona, neste campo de acção criminógena, a exclusividade do polígono local e nacional, arrasta-se e estende-se pelo polígono regional – espaços como a União Europeia, como a lusofonia, o Mercosul, a União Africana, a Commonwealth (etc.) – e pelo polígono supranacional. A afirmação da extensibilidade espacial supranacional é assumida pelas comunidades científica e geral até pela proficuidade da comunicação social que projecta o efeito criminógeno pelo espaço nacional e supranacional e fomenta a convivência de subalternidade entre o polígono real e o polígono cognitivo.

Figura 3

COGNITIVO

REAL

O equilíbrio dos polígonos é essencial e só é possível se os operadores – policiais, judiciários, políticos, jornalistas e os cidadãos – promoverem a confluência das linhas biunívocas da topologia segurança: plurifuncionalidade, plurinormatividade, extensibilidade conceptual que densifica a intensidade da força e intervenientes da segurança como poliédrica. Esta estruturação conceptual traz para o debate o repensar da topologia segurança como bem jurídico local – prática do crime – de refracção nacional, regional e supranacional e como bem jurídico supranacional com convergência regional, nacional e local; e impõe a intervenção do Direito penal como “solidariedade do mundo cultural face ao crime” de dimensão internacional (transnacional) (Jescheck/Weigend, 2002: 182).

O local converte-se em global e o global converge em local. Este movimento pendular e de elipse encontra terreno no pensar jurídico adequado à mutabilidade e liquidez da sociedade tardo-moderna e afirma o princípio da extraterritorialidade por meio (complementaridade) do princípio da nacionalidade, do princípio da protecção dos interesses nacionais, do princípio da universalidade e do princípio da administração supletiva da justiça penal da aplicação do Direito penal no espaço por existirem crimes que, independentemente da localização da prática na “rede das redes”, são susceptíveis

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de responsabilização criminal universal4 por lesarem ou colocarem em perigo de lesão bens jurídicos dos polígonos nacional, regional e internacional.

11. Acresce, ainda, referir a existência de crimes lesivos – de forma imediata e mediata

da topologia segurança com dimensão supranacional e que afectam o estádio real e cognitivo de todos os cidadãos do mundo por representar uma lesão do núcleo central dos direitos humanos: v. g., crimes contra a humanidade [p. e., genocídio] e crimes contra a sociedade local e global [p. e., terrorismo]. O genocídio do Ruanda ou os atentados do 11 de Setembro de 2001, do 11 de Março de 2004 e de 7 de Julho de 2005, representam uma lesão no âmago da liberdade do ser humano e da sua segurança. Neste cenário criminógeno, temos as vítimas imediatas dos massacres carnificinas e dos atentados – seres humanos mortos e agredidos fisicamente – e as vítimas mediatas – todo o cidadão do mundo que assume a vida, a integridade pessoal e a liberdade como valores sagrados e como essência da dignidade da pessoa humana.

Este quadro converte-nos «a todos» em vítimas da barbárie a que todos estamos expostos e susceptíveis de ser alvos concretos. A indefinição territorial e indefinição dos alvos – vítimas – gera um estádio de insegurança cognitiva, que absorve o estádio real de insegurança e germina o medo esquizofrénico – o πανεον –, indutor de uma descapitalização de direitos, liberdades e garantias fundamentais em prol da sagrada topologia segurança. A consumpção do polígono real pelo polígono cognitivo gera uma não racionalidade conceptual e germina a defesa de um Estado blindado e de um espaço de liberdade e justiça naufragado no oceano da securitividade produzida pela teoria da perigosidade presumida. A barreira a esta euforia utópica de segurança cognitiva é o Direito, que é (ou deve ser) a manifestação material e formal do pensar cultural do povo, do pensar conceptual (dogmático) do ser humano e do pensar conceptual de Estado.

Como escreve Adriano Moreira, a “tirania, um conceito coincidente com o de despotismo, e próximo do totalitarismo, designa as formas de governo, múltiplas ao longo da história, que adoptam o medo como instrumento de submissão da sociedade, com métodos violentos, cruéis, indiscriminados” (2009: 208). A nossa edificação conceptual pretende evitar este tiranicídio em crescente nos espaços abertos ou macrossistemas regionais e supranacionais. Só o Direito pode estabelecer uma nova ordem mundial de referência e de estabilidade humana, porque ele aparece para afirmar a justiça como substituto da violência (Tocqueville, 2002: 180).

O Direito deve assumir-se como o suporte da plurifuncionalidade e da plurinormatividade impostas pelo poliedro segurança supranacional que ganha estatuto de bem jurídico de tutela jurídico-criminal sob o prisma de um (novo) princípio da territorialidade europeia ou internacional. O “Direito não pode ser subestimado” (Oeter 2006: 217) na prevenção e na repressão de crimes hediondos pelos operadores que devem actuar sob os princípios regentes da ordem jurídica do Estado de direito material e democrático.

A prevenção e a repressão de crimes de dimensão internacional p. e., terrorismo, tráfico de armas, tráfico de droga, branqueamento de bens e corrupção – que ameaçam a paz e a segurança supranacional devem estar subordinadas à ordem jurídica material válida nacional, regional e supranacional. Os operadores estatais e

4Chamamos á colação o princípio da universalidade do Direito penal criado por Hugo Grotius em De Jure Belli ac Pacis, dedicado a Luís XIII de França, em 1625.

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supra estatais devem concretizar o princípio da extraterritorialidade através do princípio da universalidade do Direito penal e evitar que se gere a certeza da impunidade dos agentes de crimes negadores de um espaço de liberdade e de justiça por nihilificação da topologia segurança.

Podemos, neste ponto, consolidar a ideia de que o espaço da topologia segurança é, hoje, um espaço ilegível no plano territorial real e no plano cognitivo; é, em simultâneo, um espaço local/global e global/local. Como ensina Otfried Höffe [2005: 19-24 (22)], o mesmo princípio que, numa escala local, induz indivíduos e grupos a organizarem-se sob a égide do Direito e da Justiça, deve reinar numa escala global. O polígono segurança estanque e de linhas bem definidas e planas com pontos historicamente identificados e determinados metamorfoseia-se em polígono pluriforme cuja intervenção jurídico-criminal se deve adaptar sem a defesa e recurso ao Direito penal preventivo presumido ou de polícia.

IV. A autonomização da tipologia «segurança» como bem jurídico supranacional e limite à tese securativista e da perigosidade

12.A queda das fronteiras e a consequente expansão económica e financeira – inclua- se a bancária – tem imposto à comunidade científica, construtiva de um discurso com maior ou menor rigor científico, um repensar e reestruturar dos conceitos e da organização interventiva dos Estados e dos operadores nacionais no quadro do espaço supranacional. A mundialização, conhecida por globalização económica, seguida da mundialização da cultura, que se converte em cultura-mundo ou no reino da hipercultura (Lipovetsky, 2001: 14-112), obriga-nos a sair do sistema exíguo e caminhar para o sistema aberto ou macrossistema da segurança como bem necessário e vital para o desenvolvimento em harmonia do ser humano inserido numa sociedade juridicamente organizada.

A expansão económico-financeira e cultural, que deve promover a mundialização do pensamento político e não a hegemonia política ou hegemonia económica, força-nos a pensar o espaço de segurança dentro de um espaço de liberdade e justiça subordinados ao Direito devido ao fácil oportunismo político hegemónico de subversão conceptual, de manipulação do medo e do desnudar a tutela efectiva do ser humano. Esta realidade conflituante exige uma reconstrução do bem jurídico segurança como bem jurídico individual e supra individual, assim como um bem jurídico de tutela penal supranacional. Desafio que nos impõe uma construção de autonomização ou de reforço do status quo.

A vulnerabilidade ou oportunidade vulnerável de aproximação (e não unificação) dos seres humanos – v.g., aproximação cultural, religiosa, educativa, económica, ideológica, política – onera um olhar sobre o poliedro segurança como um bem necessário e vital à vida em comunidade, como um valor essencial à realização do ser humano, um valor individual e supra individual digno de tutela penal por ser nevrálgico para o desenvolvimento harmonioso da comunidade. É um bem jurídico que se espalha por entre a filigrana consistente e sistemática da protecção de valores da ordem jusconstitucional pelo Direito penal e o Direito de ordenação social. Implica uma aferição da possível autonomização formal e tópica ou, antes, uma autonomização material inscrita e aferida dos tipos legais de crime.

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13.A autonomização em tipos legais de crime especificadores de condutas negativas lesivas da segurança, concretizando os modelos exteriores de comportamento lesivos ou que coloquem em perigo de lesão o bem jurídico segurança, realiza a dimensão material e a dimensão formal de crime.

A dimensão material de crime significa garantia efectiva de condutas negativas (tipicidade), limitando-se o legislador na legiferação e criminalização dessas condutas, restringindo o intérprete e aplicador da norma à concepção e à legitimidade material da criminalização ou da previsão sancionatória administrativa, e assume-se como uma real protecção do agente do crime face ao ius puniendi. Esta dimensão constela o equilíbrio inerente ao Direito, em especial ao Direito penal: tutela efectiva de bens jurídicos lesados ou colocados em perigo de lesão pelo delinquente e a protecção do delinquente perante a «máquina» punitiva do Estado.

A dimensão formal de crime consigna a subordinação da actuação dos actores de segurança à Constituição e à legalidade democrática. Onera aqueles a um agir segundo o Direito. A imposição de existência prévia de tutela constitucional do bem jurídico poliédrico segurança é conditio sine qua non para que o legislador opte por criminalizar uma conduta negativa lesiva da topologia segurança. Essa previsão constitucional é uma realidade – art. 27.º da CRP – e a previsão supraconstitucional encontra porto de abrigo nos artigos 3.º e 29.º, n.º 2 da DUDH, nos artigos 5.º e 8.º, n.º 2 da CEDH, nos artigos 9.º, 21.º e 22.º do PIDCP, art. 6.º da CDFUE e art. 4.º, n.º 2, al. j), 67.º, 68.º, 82.º a 89.º do TFUE.

14. A topologia poliédrica segurança, a par da liberdade e da justiça, apresenta-se como um bem jurídico de consagração constitucional e supraconstitucional. Contudo, a validade e a legitimidade de um bem jurídico vai para lá da dimensão formal e ocupa o espaço da dimensão material aportada no art. 18.º, nºs 1 e 2 da Constituição Portuguesa. A opção de qualquer criminalização de comportamentos negativos lesivos, e muito em especial do bem jurídico poliédrico segurança, obriga o legislador a submeter a validade e legitimidade da opção aos princípios reitores da política criminal

legalidade, culpabilidade, humanidade e ressocialização – sob o conteúdo e alcance dos seus vectores – legitimidade e eficácia.

Adite-se a esta constelação de primados de natureza constitucional e supraconstitucional os princípios reitores da intervenção do Direito penal: o princípio da subsidiariedade, o princípio da proibição do excesso ou da intervenção mínima e da proporcionalidade em sentido amplo que exige a verificação dos corolários da necessidade e exigibilidade, da adequação da intervenção penal ao comportamento negativo em concreto, da razoabilidade (proporcionalidade em sentido estrito), o princípio da indispensabilidade da intervenção penal e da aplicação da pena, o princípio da eficácia com verificação de futura eficiência da intervenção penal e o princípio da ultima et extrema ratio.

Desta enunciação material e funcional da validade e legitimidade de tutela do bem jurídico segurança, poder-se-á, por um lado, defender que é possível autonomizar as condutas negativas lesivas e construir tipos legais de crime autónomos e, por outro, considerar que há espaços inerentes à visão poliédrica da segurança, que, por essa razão, não permite uma autonomização formal positiva. Mas, considera-se que essa autonomização encontra-se na esfera material do próprio tipo legal de crime por nele se realizar não só o bem jurídico concreto – p. e., integridade física ou liberdade –, mas

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também o bem jurídico poliédrico segurança face à sua plurinormatividade e plurifuncionalidade.

15.A assumpção da topologia poliédrica segurança como bem jurídico de topologia plurifuncional e plurinormativa, que carece de protecção jurídico-criminal por ser um bem essencial e vital ao viver humano – inerente à sua actuação pessoal e social – e ao seu modo-de-ser jurídico intrínseco à comunidade, é um modelo a fortificar. Esta fortificação dirige-se a assumir como pedras angulares da intervenção supranacional do Direito penal valores como a dignidade da pessoa humana [pensar conceptual (dogmático) do ser humano], a vontade do povo [pensar cultural do povo] e o Estado de direito material democrático [pensar conceptual de Estado].

Esta assumpção da segurança como bem jurídico de espaços poliédricos e pluriformes afasta ou limita ou afirma-se como barreira às promocionais políticas criminais securativistas mutantes de um Direito penal de justiça e fundantes de um Direito penal de emergência próprio de um estado de excepção, albergado pelo Estado de direito material democrático (Canotilho, 2009: 24). Esta assunção da segurança afirma-se como barreira às tentações securativistas e às políticas de desestadualização das tarefas fundamentais do Estado constitucional democrático: i. e., como barreira à desconstitucionalização do sistema penal (Canotilho, 2009: 25) em prol de uma privatização relacional da pessoa com o mundo, germinadora de uma individualização objectiva da pessoa como «coisa», «inimigo» do estado legal. Incrementa-se como limite intransponível do Direito penal do bem jurídico e do Direito penal da liberdade. Esta concepção do polígono segurança, bem jurídico submetido à dogmática penal, assume-se como barreira intransponível do Direito penal do ser humano.

A génese deste modelo ancora na ideia nevrálgica de ser um limite ao desnudamento do ser humano – dotado de dignidade em igualdade – e à ascensão de um Direito penal da perigosidade presumida e de segurança nacional ou de um Direito penal do risco. Ao defendermos um sistema integral penal do bem jurídico de aferição jusconstitucional material (nacional e supranacional) construímos barragens aos discursos (políticos) de «retórica», aos discursos cool, publicitários e vazios de pensamento (ZAFFARONI 2007: 70-91), e edificamos pontes alternativas de intervenção penal por a submetermos a uma validade e legitimidade de valores meta-jurídicos.

V. A segurança como bem jurídico supranacional e a limitação à hegemonia do colectivo

16.O Direito – não o direito positivo ou formal, mas o jusnaturalista de legitimidade material – legitima a actuação dos operadores de segurança a restringirem direitos e liberdades dos cidadãos desde que essa restrição se funde numa lesão da segurança como bem jurídico (e nunca como expectativa) protegido pela ordem axiológica jurídico-constitucional criminal. Esta é a linha-eixo inquebrável do polígono segurança que a geopolítica ou a geoestratégia da segurança da hipermodernidade estão obrigadas a respeitar.

A acção humana de protecção da segurança – base da paz pública e da paz jurídica glocalizada e globalizada – não pode sacralizá-la, nem, para a sua prossecução, derrogar os valores em que edificamos o nosso espaço e tempo estadual inscritos na CEDH, como fez o Reino Unido em 2001 para aprovar a lei de segurança e contra os crimes terroristas que legalizou e legitimou a restrição da liberdade através de uma

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detenção ilimitada por decisão ministerial, sem que os detidos tenham acesso a quaisquer provas (Marchisio, 2006: 198-199). Esta opção é a negação da democracia e a afirmação do πανεονκρατοσ: poder da paneonomia.

A opção do estado-unidense de ressuscitação do hostis judicatus – do inimigo do estado legal ou do povo organizado jurídica e politicamente, i. e., do inimigo sem rosto e sem exército (Smith, 2008: 378) –, através do Patriot Act e do Reino Unido pela lei de segurança, é a negação da consciência história e da luta dos nossos antepassados por uma sociedade assente nos direitos humanos. Esta realidade é a demonstração plena de uma consciência histórica inexistente e vencida pelo imediato da eficácia securativista e a afirmação da hegemonia do colectivo sobre o individual.

17.A defesa da topologia segurança como bem jurídico do Direito penal da liberdade e do ser humano (Guedes Valente, 2010: 99-100) é a única alternativa à hegemonia do colectivo sobre o indivíduo – o todo impõe segurança e tudo é segurança – e a única fonte legitimadora da acção dos operadores de segurança para tutela de bens vitais dos membros de uma comunidade local, nacional, regional ou supranacional.

Como escreve Stefan Oeter (2006: 215-218), que sufragamos, só uma acção antiterrorista – policial, judicial e, em certos cenários, militar – subordinada à ordem jurídica nacional e internacional é legítima5, porque é no Direito que toda a concepção e actuação geopolítica (e geoestratégica) encontram a legitimidade sociológica (do povo), que garante o direito e o dever de acção contra as condutas humanas negativas, lesivas de bens jurídicos individuais, supra individuais e difusos: v.g., a segurança.

O Direito penal do bem jurídico, como Direito de liberdade e do ser humano, que amarra o político e o legislador aos cânones da ordem axiológica jurídico-constitucional e jusinternacional (supranacional), é a única força centrífuga de absorção do polígono cognitivo da segurança pelo polígono real e de negação da construção de um Direito penal da segurança ou da perigosidade presumida conducente à despersonalização e respectiva coisificação do ser humano.

A constante afirmação de um Direito penal supranacional, cujos laivos de positivação e constitucionalização se inscrevem no dia-a-dia, traz para a ciência jurídica a acepção do ser humano como sujeito de direitos e deveres jusinternacionais sob tutela jurisdicional jusinternacional: veja-se o TPI, o TEDH e o TJC. Podemos, desta feita, defender que a topologia segurança, como bem jurídico supranacional digno de tutela jurídico-criminal nacional e supranacional, revoga a hegemonia do colectivo e aprova e torna vigente a hegemonia do ser humano como genes da humanidade, e assume-se como topologia inerente a “toda a noção de comunidade jurídica” (Faria Costa, 2010: 40), mas nunca como bem absoluto e sagrado, sob pena de esmagarmos não só os demais direitos, mas o próprio ser humano. Ou, como escreve Grass (2008: 52), “a menos que o género humano desista de si próprio”.

VI. Pequena ideia de chegada, mas grande espaço de partida

18.Defendemos um sistema que busca respostas e alternativas dentro da ordem axiológica jurídico-constitucional válida, legítima, vigente efectiva sem derrogações dos valores meta-jurídicos intrínsecos ao Estado de direito democrático-constitucional: v.g.,

5Veja-se, também, este pensamento em Diogo Freitas do Amaral (2003). Do 11 de Setembro ao Iraque, Lisboa: Bertrand Editora.

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o valor da liberdade. As barreiras à ilimitabilidade da intervenção dos vários actores nos espaços geométricos de operações de grupo de correspondência biunívoca encontram- se na epistemologia e na axiologia da ordem jurídica: legitima e limita.

O desafio, que se defende, é a assumpção efectiva da topologia segurança como bem jurídico poliédrico de extensibilidade conceptual e arreigado à plurinormatividade e à plurifuncionalidade, da ordem jurídica dos tempos líquidos. Este caminho é o único que se nos afigura adequado a travar a onda securativista e a onda da perigosidade presumida, assentes no amplificador comunicacional do crime.

Esta construção, que aqui trouxemos para reflexão e debate, assenta na arquitectura de extensibilidade conceptual e de desenvolvimento de um Direito penal de liberdade e do ser humano, inscrito no quadro de uma ordem jurídica mundial ou ordem jurídica supranacional, que se afirma como o futuro equilíbrio da humanidade.

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