OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp. 44-74

VISÕES DO IMPÉRIO:

RELIGIÃO, ONTOLOGIA E O INTERNACIONAL NO INÍCIO DA ERA MODERNA

Lucas G. Freire

lgf202@exeter.ac.uk

Formado em Ciências Econômicas (UFMG) e em Relações Internacionais (PUC-Minas), é Mestre em Relações Internacionais (Exon.) e Doutorando em Política. Sua tese em preparação na Universidade de Exeter aborda o papel de questões meta-teóricas na disciplina de Relações Internacionais. Atualmente, ocupa o posto de assistente em ensino na mesma instituição.

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Resumo

Este estudo analisa a relação entre os motivos básicos religiosos do pensamento teórico, ontologia geral e seu uso específico na teoria política ‘internacionalista’ no início da Era Moderna. A análise segue a filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd na identificação dos pressupostos básicos de Origem da existência, coerência e diversidade da realidade em diversas correntes de pensamento. O legado clássico da Grécia e de Roma, em fusão com noções cristãs antigas, são destacados como os motivos da Natureza e da Graça, direcionadores da visão de mundo escolástica, informando, assim, sua visão de Cristandade, do Sacro Império Romano-Germanico e do Papado. O protestantismo reformado adotou um conjunto mais radicalmente bíblico de pressupostos que culminou em uma visão ontologicamente pluralista da autoridade societal e da comunidade política, como também do Império. O humanismo cristão, incluindo alguns pensadores protestantes, foi ainda marcadamente influenciado pelos motivos da Natureza e Graça, mas agora com uma ideia de separação estrita entre ambas as ‘lógicas’. A teorização de uma ‘lógica interna’ para cada uma dessas esferas deu azo à reinterpretação da Natureza no humanismo clássico, conforme uma visão ‘mecanista’ da realidade com seu ideal de controle. O outro motivo religioso dessa forma secularizada de humanismo foi a noção de Liberdade da personalidade. Tal modo geométrico de teorização orientou ideias acerca do contrato social e sua analogia internacional, levando teóricos a debates candentes sobre a classificação do Império.

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Palavras chave:

Religião; Ontologia; Era Moderna; Teoria Política Internacionalista

Como citar este artigo

Freire, Lucas G. (2012). "Visões do Império: religião, ontologia e o internacional no início da Era Moderna". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 3, N.º 2, outono 2012.

Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n2_art3

Artigo recebido em 1 de Agosto de 2012; aceite para publicação em 8 de Outubro de 2012

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Visões do Império: religião, ontologia e o internacional no início da Era Moderna

Lucas G. Freire

VISÕES DO IMPÉRIO:

RELIGIÃO, ONTOLOGIA E O INTERNACIONAL NO INÍCIO DA ERA MODERNA

Lucas G. Freire

I. Introdução

Apressai-vos, usai a razão em vosso favor enquanto ainda podeis, / Antes que toda a Europa, a Terra Dourada, se esfumace!- Este verso escrito por Andreas Scultetus durante a Guerra dos Trinta Anos expressa a inquietude generalizada da época e a busca por um término do conflito (Cf. Osiander, 1994). Tal anseio veio eventualmente a cabo mediante as negociações do Congresso de Westphalia. Existe uma repulsa (justificável) por parte dos historiadores em relação à importância exagerada que se atribui aos efeitos da Paz de Westphalia como formadores das estruturas básicas da política internacional contemporânea (Freire, 2008a; Freire, 2008b). Tal ênfase no poder transformador do evento é típica das disciplinas das Relações Internacionais e do Direito. Contudo, mesmo dentro dessas áreas acadêmicas, a natureza anacrônica, imprecisa e ‘jornalística’ de tais narrativas tem sido questionada (Krasner, 1995/96; Osiander, 2001; Teschke, 2003; Franca Filho, 2007). Mesmo com esse redirecionamento dos estudos acerca da política mundial europeia no início da chamada Era Moderna, novas questões começam a ser levantadas. Se, até há pouco tempo, o tema atraía atenção por motivos equivocados, agora, ao invés de encerrar completamente o assunto em tom negativo, as investigações recentes têm aberto novas avenidas de pesquisa. Um dos problemas a (re)emergir, com vaga referência ao verso de Scultetus, diz respeito ao ‘uso da razão’ na elaboração de teoria política acerca do ordenamento ‘internacional’.

Os processos políticos e históricos envolvendo a transição gradual do mundo medieval para o moderno apresentaram inúmeros enigmas a certos ‘usuários da razão’ naquela época distante, incluindo a questão de como o Sacro Império Romano-Germânico deveria ser conceitualizado (Boucher, 1998: 225; Wilson, 2006). Durante esse período fascinante, a transição nas ideias, instituições e práticas no âmbito do Sacro Império e da política europeia (incrivelmente flexíveis e em constante alteração) coincidiu com significativas mudanças culturais envolvendo fatores como a Reforma Protestante, o Renascimento e a retomada do Escolasticismo pelos juristas católico-romanos. Cada um desses movimentos causou enorme impacto na forma de se enxergar o mundo e de se solucionarem problemas acadêmicos. A ocorrência simultânea dessas duas contingências — rápidas mudanças históricas e ideacionais — levou à composição de um rico ‘cardápio teórico’ a ser utilizado na interpretação de toda sorte de fenômenos naturais e sociais, incluindo diversas propostas de definição do arranjo político europeu. Ao contrário da fragmentação intelectual hodierna (Rushdoony, 1961), os pensadores da época eram relativamente claros quanto aos fundamentos de sua formulação teórica, tornando mais fácil a identificação do relacionamento entre esses pressupostos

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e sua aplicação em casos específicos. Não é por acaso que tais autores também figuram na lista de grandes filósofos do passado.

O grande interesse na teorização do ordenamento político e na conceitualização do Sacro Império, bem como a contingência de uma forte ligação entre teoria política e princípios últimos do raciocínio sistemático, despertam o interesse para a seguinte questão: haveria, de fato, alguma relação direta entre os pressupostos mais básicos e gerais de um sistema teórico e a sua aplicação, na superfície, ao entendimento da ordem política mundial? Em caso afirmativo, como seria possível identificar as diversas correntes de pensamento em virtude dessa relação entre os fundamentos e suas implicações no que tange às distintas ‘visões do Império’? A proposta defendida aqui é de que, com efeito, existe uma relação entre as ‘raízes’ e os ‘ramos’ do pensamento político ‘internacionalista’ em transição no início da Era Moderna. Contudo, a classificação das ‘visões do Império’ ou do ordenamento político geral em função dos diversos tipos de pressupostos mais básicos depende tanto de um recuo historicamente ‘macroscópico’ e comparativo como de uma análise das noções tácitas que orientam o pensamento teórico em cada uma dessas correntes de raciocínio. Tal combinação de uma narrativa de longo prazo com um exame dessas ‘raízes’ em cada caso tem a função de, simultaneamente, denotar a herança cultural recebida no início da Era Moderna e a forma como essa herança foi equacionada em conflito com pressupostos alternativos.

Afirma-se, além disso, que a dimensão tácita que dirige o pensamento teórico é inerentemente religiosa e pré-teórica, sendo mediada teoricamente pela formulação de modelos ontológicos que possibilitam sua identifiação. Em outras palavras: as raízes de cada uma das correntes de pensamento ‘internacionalista’ provêm de um comprometimento religioso que direciona os conceitos teóricos mais ‘superficiais’ por intermédio de uma formulação geral acerca da natureza básica da realidade. Embora o tema da ligação entre religiosidade e conceitos políticos centrais tenha sido explorado por Carl Schmitt (2006: 35) e, recentemente, por alguns de seus seguidores (ex. Kubálková, 2000), o argumento deste estudo busca uma via original ao se pautar por uma tradição distinta e menos conhecida, a escola reformacional de filosofia iniciada por Herman Dooyeweerd. Influenciado pela noção agostiniana referente ao impulso religioso que norteia o pensamento teórico, Dooyeweerd (1953-58 I; 1979) organizou a história da filosofia ocidental em torno dos seus ‘motivos básicos’, isto é, o conjunto de ‘ideias transcendentais’ de Origem da existência, da coerência e da diversidade da realidade que moldam tanto a produção de teoria como o seu contexto cultural. A relação entre pressupostos tácitos (e gerais) e raciocínio específico em disciplinas acadêmicas é um tema popular entre notáveis historiadores e filósofos da ciência como Collingwood (1945), Polanyi (1946), Burtt (1954), e Kuhn (1996). A escola reformacional tem contribuído com esse debate nos campos da história geral das ciências naturais (Hooykaas 1972; Pearcey and Thaxton 1994) e da história disciplinar de campos científicos especializados (Stafleu, 1987; Strauss, 1996). Se, aplicada às ciências naturais (supostamente mais ‘neutras’ e ‘objetivas’), essa tese já rendeu tantos frutos positivos, ela se faz por implicação ainda mais relevante em qualquer domínio discursivo em que a subjetividade aflore de maneira mais notável.

Antes, porém, de colocar o argumento reformacional em uso no caso das ‘visões’ sobre o internacional e o Sacro Império no início da Era Moderna, é necessário detalhar, ainda que de forma breve, os conceitos básicos a serem utilizados e a maneira como

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religião, ontologia e teoria se ligam dentro desse esquema. Um dos pontos centrais no desenvolvimento da filosofia reformacional é a rejeição da visão humanista da autonomia da razão, que assume esta como a fundação última de qualquer teoria. Um dos argumentos apresentados contra a suposta neutralidade do raciocínio teórico é a existência de diversas perspectivas e escolas filosóficas modernistas em conflito, cada uma fundamentando seus próprios programas de pesquisa nas ciências especiais, sendo que todas elas igualmente afirmam que seu alicerce é a razão autônoma. Considerando que essas escolas se excluem mutuamente, fica sugerida a impossibilidade de se postular a razão pura como o fundamento último da teoria. Em outras palavras: as correntes humanistas adotam uma postura dogmática acerca das bases do pensamento teórico (Dooyeweerd, 1948: 16-18). Do ponto de vista negativo, isso significa que existe uma dimensão pré-teórica nas bases do raciocínio teórico, refutando o que dogma da autonomia da razão afirma. Do ponto de vista positivo, isso ilustra a proposta rival a respeito das bases do pensamento teórico encontrada na escola reformacional, a saber, que o pensamento teórico tem suas raízes mais profundas em pressupostos tácitos (Dooyeweerd, 1947). Ou seja, além de o dogma da razão autônoma ser auto-destrutivo por não ser demonstrável com base na própria razão autônoma (o que se indica pela existência de múltiplas escolas de filosofia), ele também é mais um exemplo de como compromissos prévios direcionam a formação de argumentos teóricos, sejam eles de caráter filosófico e geral, ou científico-disciplinar e específico.

Apontando o problema interno no dogma modernista da autonomia da razão, a filosofia reformacional o substitui por uma noção de dependência fundamental do pensamento teórico em relação aos seus pressupostos pré-teóricos de cunho religioso. Aqui, ‘religioso’ não significa necessariamente uma institucionalização organizada de rituais, de tradições, de devoção explícita e de sistematização do conteúdo dogmático. É verdade que diversas religiões empiricamente exemplificam tais fenômenos, mas essa não é uma afirmativa absolutamente generalizável. O que define o cerne da religiosidade é a ideia de uma certa ligação (religare) com alguma noção de Origem, seja ela pessoal ou não (Clouser, 1991: 9-36). Diversos acadêmicos admitem a dependência que a teoria em uma ciência especial tem de bases filosóficas mais profundas de diversas naturezas (ex. Bhaskar, 1978). A filosofia reformacional somente leva essa lógica de rastreamento das raízes do pensamento teórico mais adiante, postulando que mesmo essas bases filosóficas dependem de uma camada ainda mais profunda de pressupostos. A afirmação de que toda teoria (seja ela geral ou especial) depende necessariamente de uma dimensão religiosa básica, portanto, substitui a moldura modernista que avalia o pensamento teórico somente em termos de seus aspectos lógicos.

Qual fórmula genérica permitiria a identificação exata desses pressupostos de Origem, e qual seria o seu conteúdo em termos mais amplos? Como visto anteriormente, rastrear as camadas discursivas teóricas até sua base filosófica não responde ao problema da diversidade do cardápio acadêmico em uma disciplina especial, dada a existência de uma ampla gama de possibilidades mesmo nessa dimensão mais profunda. Os diversos ‘ismos’ teóricos não existem somente no plano mais imediato dos campos especializados. Eles também se fazem presentes na camada mais básica da filosofia. Ora, grosso modo, todas as escolas filosóficas se propõem a lidar com a mesma realidade a partir das questões teóricas mais gerais (ex. ‘o que é real?’).

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Ocorre, porém, que cada uma dessas escolas abstrai teoricamente essa realidade de formas distintas. Portanto, uma chave para a compreensão da diversidade teórica é o mapeamento das maneiras em que a abstração é efetuada em cada abordagem. É justamente nesse ponto que os pressupostos de Origem se fazem relevantes na análise do pensamento teórico. Uma característica-chave da abstração é que ela consiste tanto em análise como em síntese. A análise consiste na separação e na classificação conceitual. A síntese, por sua vez, propõe uma fórmula de coerência. Ou seja, a abstração depende necessariamente de opiniões acerca tanto da diversidade quanto da coerência da realidade abstraída. O seu passo inicial é sempre orientado por pressupostos sobre a Origem da existência, da diversidade e da unidade das coisas. Esses pressupostos religiosos são, por assim dizer, “ideias transcendentais”, visto serem inevitáveis na filosofia, constituindo “aquilo que estabelece as condições para o pensamento teórico” no ato de abstração (Zuidervaart, 2004: 70). Resumindo: o pensamento teórico especializado (em uma disciplina acadêmica) depende do pensamento teórico geral (filosofia) que, por sua vez, é orientado por um conjunto de ideias transcendentais que habilita o procedimento abstrativo.

Uma maneira de identificar a forma como esses conjuntos de ideias transcendentais pré-teóricas de Origem (ou ‘motivos básicos’ religiosos) influenciam o pensamento teórico é a verificação de como eles são evidenciados teoricamente através da ontologia — isto é, um modelo sobre quais são os componentes mais básicos da realidade; uma tentativa de descrição conceitual dos motivos básicos e de sua ideia cosmonômica1. Seguindo essa fórmula, este estudo analisa os principais motivos básicos na cultura e no pensamento ocidentais de relevância na formação histórica da teoria política ‘internacionalista’ e das ‘visões’ conceituais sobre o Sacro Império no início da Era Moderna. Este empreendimento é apenas um passo inicial rumo à pesquisa mais detalhada acerca da influência de motivos básicos religiosos sobre aspectos da política mundial. Embora o próprio Dooyeweerd tenha aplicado sua filosofia a várias ciências especializadas, Skillen (1979; 1981) foi o primeiro e, até agora, possivelmente o único a fazer uma análise de diversas teorias em Relações Internacionais em termos da filosofia reformacional.

A próxima seção trata da herança clássica recebida pelos pensadores medievais. Como os motivos básicos dos escolasticismos medieval e tardio envolvem uma fusão entre a filosofia clássica e o cristianismo, esse passo deve, aqui, preceder uma exposição do pensamento escolástico. Após um resumo das teorias católico-romanas do ordenamento político, as alternativas protestantes são analisadas. Surpreendentemente, nota-se que uma vertente do protestantismo permaneceu sob grande influência teórica do escolasticismo, enquanto que o lado reformado (calvinista) buscou resgatar a radicalidade bíblica dos motivos básicos cristãos. A Reforma não foi o único elemento diferenciador do pensamento teórico em relação ao escolasticismo no início da Era Moderna. A emergência do humanismo (inicialmente no âmbito cristão e depois em uma versão mais secularizada) também forneceu alternativa sistemática às demais ‘visões’ do ordenamento internacional e do Império.

1A filosofia reformacional é também conhecida como Filosofia da Ideia Cosmonômica – o princípio que estipula as condições ordenadoras do cosmos.

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II. A Herança Clássica: Forma, Matéria e Política

A ideia cosmonômica da cultura e do pensamento clássico ocidental deriva da antítese entre o motivo da Forma e o motivo da Matéria, ambos reivindicando papeis absolutos. Embora esss dois motivos tenham igual relevância na compreensão do pensamento ‘internacionalista’ clássico, vale lembrar que cada um deles obteve proeminência em períodos distintos da história. O período mais anterior pode ser caracterizado pelo papel da Matéria como a Origem independente “da qual emergem todos os seres em sua forma individual” em uma moldura de “necessidade cega” (Dooyeweerd, 1948: 62) do destino operando por intermédio de uma “corrente cíclica de vida amorfa” (Dooyeweerd, 1979: 16). O quadro cósmico derivado desse motivo básico se resume da seguinte forma:

É dessa corrente disforme de onde constantemente flui vida orgânica que gerações de coisas perecíveis se originam periodicamente. A existência dessas coisas, limitada por uma forma corpórea, está submetida ao destino horrível da morte [...]. Tal existência sob o limite de uma forma era considerada uma injustiça, visto precisar de se manter às custas de outros seres, de modo que a vida de um seja a morte de outro. Portanto, toda fixidade da vida em uma figura individual

évingada pelo destino inexorável da morte na ordem do tempo. (Dooyeweerd, 1960: 39)

Em outras palavras, a noção geral é de um constante “processo de nascimento e declínio de tudo o que existe em forma corpórea”. É essa a suma da ideia cosmonômica contida no motivo da Matéria.

Eventualmente, o ‘pólo’ oposto do motivo-base clássico emergiu em tensão com a absolutização da Matéria. Tal como observado por Nietzsche (1995) e por outros (ver debate em Bos, 1986; Runia, 1989; Kok, 1998), o motivo da Forma se ergueu na cultura e no pensamento teórico como uma noção rival da Origem última das coisas (Dooyeweerd, 1948: 65-66). Esse motivo alternativo, ilustrado na religião grega de “forma, dimensão e harmonia” e na literatura que retratava os deuses olímpicos como “forma pessoal de uma beleza perfeita” (Dooyeweerd, 1960: 40) culminou na “Ideia platônica como a forma metafísica do verdadeiro ser”. A antítese entre Matéria e Forma deu azo à importante questão de como conciliar esses dois lados da ideia transcendental antiga. A desconfortável antítese entre ambas as noções de Origem se tornou uma característica-chave da cosmovisão grega, incluindo também o pensamento teórico, ao “determinar” a “concepção da natureza (physis) das coisas” (Dooyeweerd, 1979: 21). Como Collingwood (1945: 29-92) observa, todo o pensamento teórico grego variou conforme os diversos conteúdos atribuidos à ideia de natureza, fosse ela “uma forma puramente invisível” (Dooyeweerd, 1979: 21) ou “uma corrente animada da vida”, porém, “em geral, uma combinação de ambas”.

O pensamento político grego também se viu sob a força dessa visão de mundo. As alterações de ênfase no motivo básico da forma/matéria modificavam a noção de natureza (physis), que, por sua vez, reconfiguravam as noções de ‘natural’ e de

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‘arbitrário’. Esses conceitos eram, segundo sugere Keene (2005: 32), fundamentais nas narrativas clássicas sobre a vida pública. Um exemplo é a ideia mais antiga ‘materialista’ sobre a Origem dos costumes e leis, atribuída às relações caóticas de poder, como se percebe em Heródoto, Tucídides e Protágoras, em consistência com a visão de natureza como uma ‘corrente’ sujeita aos choques do acaso. Em contraste, observa-se em Platão a visão de formas imateriais ideais e a ligação entre a aparente diversidade aleatória da vida política à imperfeição e seu componente dito uniforme às formas ideais sem mácula (Keene, 2005: 33-35). Do período platônico em diante, nota- se uma considerável ênfase cultural e teórica no motivo da Forma, evidenciada politicamente na instituição da cidade-estado (polis). Sem surpresa alguma, relata Parkinson (1977: 9), “o pensamento político na Grécia clássica girou em torno da ideia geral da cidade-estado”. Platão, deparando-se com a realidade empírica da diversidade de leis e de formas de governo que compartilhavam o mesmo princípio organizador da cidade-estado, procurou defender sua coerência, apesar de tudo, em termos da forma “universal e imutável do ordenamento político que deveria servir de norma paradigmática para todas as cidades-estado particulares e variáveis” (Skillen, 1979: 13).

A distinção entre o natural e o arbitrário com base no motivo da Forma é especificamente notória no caso do pensamento ‘internacionalista’ platônico. O natural, sendo “imutável e imaterial, podendo ser conhecido apenas pelo intelecto” (Keene, 2005: 36), é por inferência melhor apreendido por aqueles que sabem colocar os aspectos não-intelectuais da vida a serviço da prioridade da teoria. Ora, nem todas as pessoas são dotadas de tal capacidade. Existe, assim, uma distinção entre aqueles que são propensos ao pensamento teórico e os que não são. A justiça, sendo Forma imutável, não corresponde necessariamente aos diversos costumes e leis. Toda sorte de pessoa consegue elaborar e seguir costumes e leis, mas isso não significa uma aproximação à justiça, que, sendo ideal, somente pode ser obtida na comunidade semelhantemente ideal da cidade-estado sob a liderança dos filósofos (o tipo de pessoa mais propensa à contemplação e, portanto, mais próxima das Formas em geral e da justiça em particular). Esse célebre argumento de Platão (1999), além de diferenciar internamente grupos de gregos (filósofos e o restante), também serve de base para uma distinção externa. É verdade que, apesar da tensão entre os propensos e os não propensos à teoria, Platão enfatizou também a coerência interna da comunidade grega em termos do compartilhamento natural da instituição da cidade-estado. Assim, a noção de coerência da comunidade política depende necessariamente da cosmologia idealista derivada do motivo da Forma. Contudo, o mesmo motivo também é retratado como Origem da diversidade das comunidades políticas, afinal, não era fácil detectar instituições semelhantes à polis fora do mundo grego antigo. Tal fato era considerado um dos indicadores de uma diferença qualitativa entre o ‘dentro’ — o povo mais ‘racional’ — e o ‘fora’ – os ‘bárbaros’ — que transcendia a mera identidade linguística. Não foi por causa de seu idioma, mas por causa de suas instituições antagônicas à cidade-estado, que os ‘bárbaros’ (ou os de ‘fora’) receberam o tratamento de ‘inimigos naturais’ dos gregos.

Uma tendência similar pode ser encontrada em Aristóteles. Tal como Platão, Aristóteles contrapõe o motivo mais antigo materialista a uma ideia de natureza como Forma. Isso

ébem visível na ligação entre natureza e o propósito (telos) que orienta o desenvolvimento de todas as coisas em suas tendências intrínsecas. Não obstante a

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aproximação a Platão nesse sentido, Aristóteles tem uma visão alternativa sobre o meio que deve ser utilizado para a obtenção de conhecimento acerca das Formas.

Ao contrário de Platão, que ensinava que o conhecimento das Formas jamais poderia ser obtido pelos sentidos, o modo de investigação de Aristóteles começa com a observação empírica da maneira como as coisas estão no mundo, a partir da qual as Formas compartilhadas por certas espécies de coisas devem ser deduzidas mediante o exame de suas tendências a desenvolver em tipos qualitativamente distintos de entidade (Keene, 2005: 39).

Ao seguir tal ‘modo de investigação’, a filosofia aristotélica passa a depender de uma noção hierárquica entre todo e partes que também serve de fundamento para a teoria política, como Aristóteles (1999: 3) deixa claro: “Tal como em outros departamentos da ciência, na política o composto deve sempre ser resolvido em termos dos elementos simples ou as menores partes de um todo”. Além dessa ontologia hierárquica, o pressuposto teleológico que orienta todo o pensamento teórico de Aristóteles é “igualmente proeminente em sua ética e política”, segundo observa Lloyd (1970: 121- 122), “visto que suas ideias sobre a vida boa e sobre o bom Estado são fundamentadas na sua concepção acerca dos fins ou funções próprias do homem”. A tese aristotélica sobre a diversidade em coerência das associações societais serve de evidência concreta:

Cada Estado é uma comunidade de determinado tipo, e cada comunidade é estabelecida com vistas a determinado bem, porque a humanidade sempre age no intuito de obter aquilo que se pensa ser bom. Contudo, se todas as comunidades desejam determinado bem, o Estado, isto é, a comunidade política, sendo a maior de todas elas e a que as abrange na sua totalidade, visa ao bem em um grau maior que qualquer outro, e ao maior de todos os bens (Aristotle, 1999: 3).

Em Aristóteles esse propósito do Estado tem como aliada a razão (nous), que diferencia os seres humanos dos demais animais, e a contemplação (theoria), que, além de ser o propósito da vida humana emergente dessa diferenciação, também se apresenta como referencial da vida política na cidade-estado. Visto que somente na cidade-estado — a mais abrangente comunidade política — a vida é dirigida para ‘o maior de todos os bens’, é nessa instituição que o propósito da contemplação pode ser obtido.

As implicações para a análise ‘internacionalista’ das relações entre comunidades políticas diversas são ainda mais notáveis em Aristóteles e, em grande parte, isso se deve ao direcionamento inicial da ideia básica de Forma em tensão com o princípio da Matéria, bem como os pressupostos de uma ontologia teleológica e baseada na disposição hierárquica entre todo e partes, segundo relata Dooyeweerd (1979: 22). Internamente, a cidade-estado era vista como uma disposição “totalitária” ou integral: “o homem só seria realizado na condição de um cidadão ativo e livre. Toda a vida

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deveria servir a essa cidadania, uma vez que somente ela forneceria uma Forma cultural divina e racional à existência humana”. Externamente, essa visão reforçava a suspeita já antiga de que aqueles ‘dentro’ da cidade-estado eram mais ‘humanos’ do que os ‘de fora’:

a cidade-estado era o estandarte da religião grega da cultura e, portanto, do ideal grego de cultura. Um grego era considerado verdadeiramente humano apenas como um cidadão livre da polis. A polis dava Forma à existência humana. Fora dessa influência formativa, a vida humana permanecia um reflexo da selvageria do princípio da Matéria. Todos os não-gregos eram bárbaros. Eles não eram plenamente humanos por não possuírem a marca da formação cultural grega (Dooyeweerd, 1979: 21-22).

O próprio Aristóteles leva essa visão binária adiante, ‘naturalizando’ a tensão entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’. De inimigos naturais dos gregos, os bárbaros passam, assim,

àcondição de escravos naturais, dada a impossibilidade de igualidade entre os que obtêm seu propósito para a vida humana e os que rejeitam os meios de se diferenciar dos demais animais (Cf. Ossewaarde, 2008: 204-207).

A tensão entre Forma e Matéria, elemento básico a direcionar o pensamento teórico grego clássico, também afetou de forma profunda os ideais opostos de imperialismo e de cosmopolitismo no período da dominação romana sobre o Ocidente. Antes mesmo disso, no período Alexandrino da proeminência macedônica sobre os gregos, a noção transcendental materialista se mostrou bastante conveniente à hierarquia política externa. Dooyeweerd (1979: 23) observa que “a concepção fatalista de um ciclo da vida para a morte aplicada a toda existência em forma individual era notadamente adequada à deificação do monarca como senhor sobre a vida e sobre a morte” (Cf. também Foucault, 1978: 135-136). Além de ter levado à institucionalização da adoração ao Imperador como uma divindade, o motivo básico da Matéria também serviu aos propósitos do ideal de imperialismo. “Liderado por um governante deificado, o imperium passou a ser cercado por uma espécie de aura mágica. Tal como lutar contra o destino inexorável da morte, era inútil resistir ao imperium”. O declínio da Macedônia não foi acompanhado pela queda da influência política do materialismo, de modo que a dominação romana encontrou terreno fértil nos mesmos princípios, sendo auxiliada por uma tolerância eclética por parte dos dominadores, que estavam cientes de sua conveniência. Paradoxalmente, isso representou uma inversão na formulação aristotélica sobre os ‘de dentro’ dominando os ‘de fora’, mas, como se percebe, tal ironia só foi possível por causa da posterior proeminência do pólo materialista das ideias transcendentais clássicas, oposto ao pólo da Forma, tão caro a Aristóteles.

Surgia, gradativamente, uma nova forma de se pensar a relação entre o ‘dentro’ e o ‘fora’. Aliás, tal distinção foi notadamente relaxada em virtude do cosmopolitismo estoico no periodo romano. Seguindo a tendência antiga de se orientar pela dialética entre Forma e Matéria em sua concepção da natureza, os estoicos desenvolveram seus sistemas teóricos a partir do objetivo de obter uma ‘unidade’, por assim dizer, com tal ordem natural. A diversidade das comunidades políticas, incluindo a diversidade de cidades-estado, era vista como simplesmente incapaz de servir como instrumento

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dessa ‘unidade’ fundamental com a natureza, tendo falhado em promover de forma suficiente uma vida política verdadeiramente virtuosa. Em contrapartida, os estoicos expressaram sua preferência por uma cidade mundial (cosmopolis), explicando teoricamente a coerência política em torno de sua Origem postulada na ‘lei da natureza’ (ou direito natural), comum a cada ser humano (Keene, 2005: 52-56). A formulação estoica sobre a ordem mundial e sobre a sua coerência a despeito da diversidade de costumes e de culturas foi tão influente que passou a ser parte do ideário oficial romano. Todavia, nessa tentativa parcialmente fracassada de acomodar o ideal imperialista com o ideal cosmopolita no seu contexto institucional da ‘lei das gentes’ (ou direito das gentes), os romanos preservaram uma noção do ‘fora’, contrariando, assim, a intenção estoica (Korff, 1924: 252-255). A ‘lei das gentes’ tinha uma certa base na ‘lei da natureza’, porém, ambas não se confundiam. Roma localizava no direito natural uma ideia transcendental de Origem do direito das gentes, mas a noção de cidadania imperial, com todos seus critérios de exclusividade, perpetuou a diferenciação entre ‘dentro’ e ‘fora’ no pensamento ‘internacionalista’ clássico (Keene, 2005: 59-61).

III. Natureza e Graça: A Teoria Escolástica da Cristandade

A hibridização da mentalidade imperialista romana não se restringiu ao estoicismo de Cícero e outros. Eventualmente, a cultura predominante, já em declínio, veio a absorver elementos do cristianismo, o qual havia sido capaz de resistir à perseguição inicial e de se expandir até literalmente chegar à Casa Imperial. Os primeiros séculos da igreja cristã são notáveis pela crescente uniformização doutrinária e pela condenação de qualquer mistura com a cultura clássica ao redor dessa comunidade religiosa que fosse considerada perniciosa (Clark, 1988: 1-22; Clark, 1989: 13-19). Entretanto, com a ascensão do cristianismo como uma força política em um período posterior às perseguições iniciais, é possível notar uma nova tendência de maior abertura mútua entre cristãos e não-cristãos. Principalmente do ponto de vista intelectual, relata-se que essa tolerância teria sido crucial para a sobrevivência cultural do cristianismo (Jaeger, 1963). Após um certo tempo, a ascese intelectual rigorosa deu vez a um impulso de hibridização até que, com esse relaxamento, o cristianismo passasse a ser considerado a religião oficial do Império Romano tardio. Embora diversas opiniões negativas e positivas possam ser formadas acerca dessa modificação de atitude em relação ao confronto entre ‘Jerusalém’ e ‘Atenas’, permanece a distinção entre a forma mais sintética de ideias transcendentais no Cristianismo posterior (aquela que permeou as instituições e as ideias políticas no Ocidente Cristão pré-moderno) e a forma original arraigada no motivo básico religioso bíblico (Hebden Taylor, 1966: 142- 151).

No que tange ao ponto inicial de uma cultura cristã moldada pelas ideias transcendentais contidas no motivo básico bíblico, pode-se dizer em resumo que o cristianismo antigo se orientava a partir de um entendimento radical a respeito do esquema criação/queda/redenção. Deus, e somente Ele, deve ser visto como a Origem do cosmos, havendo, assim, uma distinção aguda entre o Criador Absoluto e a criação relativa, incluindo suas leis de funcionamento, pelo fato de terem sido estabelecidas como parte da ordem da criação (Vollenhoven, 1933: 22). Dentro da criação, postula- se outro salto qualitativo entre seres humanos, feitos à imagem de Deus, e descritos

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como ‘mordomos’ ou ‘gestores’ do restante da criação no intuito de colocá-la a serviço do Criador e do próximo. A noção de uma barreira definitiva entre criação e Criador é mais acentuada como efeito da queda do ser humano em pecado (Stoker, 1935). A transgressão das ordenanças divinas tira a criação do estado inicial de relacionamento obediente e harmônico com o Criador e redireciona o coração humano rumo a uma resistência profunda ao senhorio de Deus sobre todas as coisas. Embora a graça comum divina permita, mesmo para não-cristãos, o desdobramento geral da criação para uma qualidade mínima de vida, é a redenção em Jesus Cristo que inicia a restauração de tudo à sua plenitude, a começar pelo retorno da inclinação pessoal e comunal à obediência ao Criador (Bavinck, 1894: 43ff). Por incluir nesse esquema o pensamento teórico, o motivo bíblico reconhece a antítese radical entre teoria bem como outras construções culturais redirecionadas a Deus como Origem transcendental da existência, coerência e diversidade (de um lado) e a vida rebelde, em todos seus aspectos, a essa Origem (de outro lado). As ideias transcendentais bíblicas de criação/queda/redenção proíbem quaisquer concorrentes no motivo básico orientador de todo o pensamento teórico, daí seu caráter radicalmente antagônico às primeiras tentativas de síntese pagã (Dooyeweerd, 1953-58: I, 506-67). Isso não significa necessariamente a rejeição de todo diálogo possível com outras culturas, mas somente a recusa em aprovar sua hibridização com o cristianismo nas ideias religiosas básicas.

As possibilidades de uma filosofia bíblica e, por implicação, da teoria especializada nas demais áreas (incluindo política ‘internacional’), foram logo abafadas pela emergência do movimento sintético no próprio motivo básico cristão (Skillen, 1981: 58ff). As obras de Agostinho já ilustram a força dessa síntese entre as ideias transcendentais clássicas de forma/matéria e o esquema bíblico de criação/queda/redenção. Agostinho é relevante aqui porque tanto os detalhes do seu pensamento ‘internacionalista’ quanto seus fundamentos sintéticos foram deixados de herança para a teoria escolástica posterior a respeito do Sacro Império e da Igreja institucionalizada. Ele é geralmente listado como um dos pioneiros cristãos no pensamento ‘internacionalista’, mas sua teoria é em parte derivada de uma ontologia dualista neo-platônica que, por sua vez, emerge de uma tentativa de harmonização da admirada filosofia pagã com as ideias transcendentais bíblicas (Dooyeweerd, 1997: 10-12). É bem verdade que nas suas obras mais teológicas e em sua vida pessoal Agostinho tentou de todas as formas defender a ortodoxia contra os ataques sintéticos. Exemplo disso é sua refutação da heresia pelagiana, incluindo sua doutrina da ‘eleição’ como uma apresentação teórica do motivo da redenção em Jesus Cristo em sua forma mais radical (Augustine, 1953). Contudo, é também inegável que toda a disposição da filosofia agostiniana e de suas derivações na área da política ‘internacional’ foi orientada não somente pelo motivo básico cristão mas também pelas ideias transcendentais clássicas anteriores. Talvez esse aspecto do pensamento de Agostinho seja menos notável por causa da atitude intelectual predominante nos chamados ‘Pais da Igreja’ de sua época, já bastante permeável pelo “corpo da produção cultural” pagã (Hebden Taylor, 1966: 149). Em tal contexto, a antítese radical entre a intelectualidade cristã e a não-cristã deu lugar a uma postura mais receptiva, e no caso do pensamento político, como mostra Van Reenen (1995: 660-661), tal abertura foi ainda mais acentuada.

A única antítese entre cristianismo e outras visões de mundo que se pode perceber no pensamento político de Agostinho (2003) tem por fundamentos iniciais concepções romano-estoicas e platônicas de modo bastante visível. Trata-se da oposição entre a

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‘Cidade de Deus’ e a ‘Cidade dos Homens’. Além da base dessa tensão, as suas implicações diversas para a vida política também são detalhadas em uma clara dependência em relação a um conjunto híbrido de ideias transcendentais. Um primeiro exemplo é a delimitação da ‘Cidade de Deus’ como algo fora do presente mundo com base em seu relacionamento com a alma do cristão que, juntamente com o pressuposto dualista de uma distinção antropológica entre corpo/alma, ecoa uma visão neo-platônica de Forma como Origem. Outra ilustração, talvez mais importante para o pensamento ‘internacionalista’ posterior, é o modo como Agostinho conclama os cristãos a conviverem presentemente com os demais habitantes da ‘Cidade dos Homens’ com base na noção romana de direito natural. Os irmãos Carlyle (1962 citados em Keene, 2005:76) atestam que o argumento a favor da obediência cristã à autoridade terrena é “praticamente a definição [estoica] de Cícero”. Kenny (2004-07: II, 4) resume bem o esforço de direcionamento misto do filósofo cristão, afirmando que “Cidade de Deus posiciona Jesus, o Rei crucificado dos judeus, no ápice da cidade- estado idealizada da filosofia pagã”. É evidente, em suma, que em Agostinho há um desenvolvimento da noção de direito natural como o elo de ligação entre a ideia transcendental pagã de Forma e o motivo básico cristão.

O direito natural é um bom indicador do caráter sintético do escolasticismo posterior a Agostinho no que tange ao pensamento ‘internacionalista’. “A ideia de direito natural”, segundo comenta Keene (2005: 82), “sempre foi de certa forma um conceito importado, enxertado nas crenças morais e espirituais cristãs”. O que cristalizou a incorporação do direito natural no pensamento teórico escolástico foi o desenvolvimento definitivo de uma ontologia dualista de ideias transcendentais de Origem baseadas no novo motivo básico híbrido de natureza/graça.

O Catolicismo Romano concebia ‘natureza’ no sentido grego: a natureza era um cosmos composto de Matéria disforme e dinâmica e de uma Forma que determinava a essência imutável das coisas. A natureza humana também era vista como uma composição de Forma e Matéria: a ‘matéria’ humana era o corpo mortal, material (sujeito à tendência de ser e de decair), e sua ‘forma’ era a alma imperecível, imortal e racional, caracterizada pela atividade de pensamento. Para o Catolicismo Romano, uma esfera supranatural da Graça, que tinha seu centro na igreja institucional, se colocava acima da esfera da Natureza. A Natureza formava a base independente, e um prelúdio para a Graça (Dooyeweerd, 1979: 144).

A absorção de uma noção clássica de ‘natureza’ (em termos de Forma e Matéria) foi amplamente influenciada pelos escritos de Aristóteles, redescobertos no ápice da época medieval. Um passo à frente de Agostinho no sentido de uma inclinação positiva à filosofia pagã, Tomás de Aquino mitigou a rejeição radical agostiniana da noção pelagiana acerca das implicações da queda do ser humano no pecado (Thompson, 1994: 59). Crendo que, apesar do pecado, todos são ainda naturalmente capazes de se aproximar de Deus através do aperfeiçoado uso da razão, Tomás encontrou nessa versão mitigada da doutrina da queda uma porta de entrada para firmar a noção pagã de direito natural. Sendo Deus razão perfeita e Sua lei eterna, e tendo a queda pouco

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efeito sobre o uso da razão, logo, torna-se possível para a humanidade inferir algo dessa lei eterna na concepção do direito natural (Knutsen, 1997: 31-32). Como se diz: “a lei natural é simplesmente o compartilhamento de criaturas racionais em relação à lei eterna” (Aquinas, 2002: 18). Essa esfera da Natureza, incluindo a razão humana universal, tinha relativa independência no motivo básico dualista escolástico. Cristãos e não-cristãos compartilham, assim, princípios do direito natural. Todavia, em uma manobra classicamente escolástica, é afirmado que, em último caso, a Igreja detém uma posição privilegiada de intérprete da lei natural, visto ter sido esta revelada de forma mais clara na bíblia (Coulton, 1940: 167-180). Graça se sobrepõe à Natureza.

A centralidade do direito natural no pensamento escolástico ditou toda uma era de pensamento teórico ‘internacionalista’ centrado no vocabulário especificamente “legal ou jurisprudencial”, daí sua relevância (Keene, 2005: 99). Com efeito, a ligação entre as ideias transcendentais sintéticas de natureza/graça no escolasticismo e a teorização do Sacro Império e de seus limites em relação à jurisdição da Igreja (ligação esta efetuada via ‘cosmopolitismo’ baseado no direito natural) é bastante notável. Outro elemento ontológico a influenciar o pensamento ‘internacionalista’ escolástico foi a noção teleológica aristotélica da primazia do todo sobre suas partes (Thompson, 1994: 60). Com esses dois fatores, o pensamento político medieval postulou de ponto de partida “duas Ordens de vida organizada, a espiritual e a temporal” (Gierke, 1958: 10), correspondendo, respectivamente, à Graça e à Natureza. Nessa última esfera, o pensamento medieval convergia em termos da metáfora aristotélica do organismo político, supostamente aplicável a toda associação. Visto que tanto o Império como a Igreja reivindicavam uma autoridade absoluta (ou ‘cosmopolita’), a solução encontrada foi a de ligar o organismo eclesiástico representado pelo Papado à jurisdição universal sobre assuntos espirituais (Graça) e o organismo político representado pelo Imperador

àjurisdição universal sobre assuntos terrenos (Natureza). Gierke (1958: 10-11) explica como essa formulação definia a busca de ‘propósito’ por cada um desses organismos:

Século após século um decreto imutável da Lei Divina aparentemente determinou que, em correspondência com a dualidade da natureza e do destino humano, deveria haver duas Ordens separadas, sendo que uma delas cumpriria o destino temporal e terreno do homem, enquanto a outra deveria prepará-lo aqui na Terra para a eternidade de depois. E cada uma dessas Ordens necessariamente aparece como uma Esfera externamente separada, dominada por sua própria Lei particular [...] e governada por um Governo único.

A ontologia escolástica aplicada aos assuntos políticos ilustra, com isso, seu fundamento sintético entre as ideias transcendentais clássicas e uma noção cristã modificada de redenção do cosmos via submissão à jurisdição da Igreja.

Com base nessa ontologia demarcada pelo caráter sintético e potencialmente ‘cosmopolita’ em seu motivo básico, a imagem medieval do Sacro Império ‘superenfatizou’ a sua coerência e unidade política, relevando em boa medida a existência de inúmeros costumes, corporações e autoridades baseadas em costumes feudais, e não em noções legais originadas no mundo clássico (Ruggie, 1998: 145-151; 178-192). A precedência do todo sobre as partes, derivada dessa demarcação

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cosmológica, permitiu retratar todas essas associações e autoridades entrelaçadas como meras frações subsumidas pelo ‘todo’ da grande comunidade política. Com o tempo, porém, foi necessária a ligação conceitual entre esse ‘todo’ e a ideia de ‘Cristandade’, incluindo o Sacro Império e a Igreja em uma unidade maior, “universal na medida que possuía uma religião comum, direito e cultura compartilhados e, entre as classes educadas, uma língua comum” (Armstrong, 1993: 22). Além de proporcionar uma solução para o problema conceitual da coerência da comunidade política em termos do motivo natureza/graça, a noção de Cristandade também equacionou o cosmopolitismo estoico, mantendo, à maneira escolástica, a hierarquia entre Graça e Natureza.

No cerne da noção de Cristandade estava a ideia – arraigada em teorias romanas de direito natural bem como no cristianismo – de que a humanidade estava inerentemente unificada visto que todos os homens estavam em última análise sob a tutela do mesmo governante divino. Portanto, na medida em que o homem pudesse obter unidade, ele estava a agir inclinado ao propósito terreno que Deus lhe havia determinado. E, visto que o Papa era o representante de Deus na Terra, ele podia reivindicar domínio universal sobre os governantes inferiores, temporais (Armstrong, 1993: 21).2

Um último aspecto da conveniência do conceito de Cristandade que deve ser mencionado é sua capacidade de servir de ponto de referência apesar da emergência de um padrão de conduta mais independente do Império por parte dos Estados modernos em formação (Perkins, 2004: 21).

O potencial unificador da ontologia escolástica no que tange à comunidade política foi instrumentalmente moldado, também, pela diferença entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ da Cristandade. A noção de coerência da ordem mundial à luz de diferenças externas, bastante visíveis no caso das Cruzadas e, posteriormente, na conquista do Novo Mundo, também problematizou esse conceito de unidade. Nesse último caso, o maior desafio talvez tenha sido o de justificar a expansão do cristianismo através do instrumento da conquista, mas evitando que o novo contexto europeu de tensão político-religiosa devido à Reforma ricocheteasse na argumentação. Afinal, uma potencial justificativa de diferença religiosa para depor a ordem nativa no Novo Mundo soaria perigosamente similar aos argumentos protestantes em prol da resistência a governantes católicos que se enquadrassem na categoria de ‘tiranos’ (Inayatullah and Blaney, 2004: 47ff). Felizmente para os teóricos da Igreja, o Sacro Império e o Estado mais poderoso envolvido na conquista do Novo Mundo convergiam sob a autoridade de Carlos V, encarregado de ambas as unidades políticas, fato que diminuía o obstáculo a uma unidade conceitual (Keene, 2005: 120-121). A questão da legalidade do domínio sobre os ameríndios foi tratada pelos teóricos jesuítas conforme os padrões escolásticos. Aqueles favoráveis à escravização dos nativos apresentavam sua tese enfatizando um ponto de vista mais puramente ‘aristotélico’, enquanto que jesuítas

2Notadamente, a autoridade papal na teoria e na prática sempre tinha um aspecto ligado à Graça, não obstante algumas formulações que favoreciam uma maior ação política do Papado.

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como Vitoria e Las Casas defenderam uma tese mitigada sobre a diferença entre a Cristandade e os de ‘fora’. Aqui a unidade ‘para fora’ foi reforçada em termos da ‘comunidade da humanidade’ conectada pela lei da natureza (Wight, 1991: 69-73). A resposta escolástica à tese do partido aristotélico novamente colocou Graça acima de Natureza, reiterando o dever último da Igreja: os nativos eram análogos não a animais irracionais, como pensavam os aristotélicos. Pelo contrário, a unidade de todos os seres humanos permeada pelo direito natural foi reforçada, mas a diferença em relação aos ‘de fora’ foi atribuída à necessidade de amadurecerem no uso desse direito, pois, por exemplo, praticavam o canibalismo, contrário ao papel do ser humano na hierarquia do mundo natural (Inayatullah and Blaney, 2004: 58-65). A função dos cristãos, através da atividade missionária envolvida na conquista, seria a de ‘ensinar’ os ameríndios a aperfeiçoar a convivência sob a lei da natureza.

IV. A Fase Protestante: Continuidade e Ruptura Rumo ao Pluralismo

O crescente fortalecimento dos Estados europeus, principalmente após o rompimento da ligação direta entre a Espanha e o Sacro Império na pessoa de Carlos V, com a divisão da dinastia imperial entre o ramo austríaco e o espanhol, contribuiu para aumentar o desconforto da busca teórica por unidade da Cristandade representada pelo Império (McCulloch, 2004: 277). Nesse e em outros problemas acadêmicos, a síntese do motivo básico natureza/graça se enfraquecia cada vez mais, sendo mantida mais pela autoridade institucional da Igreja do que pelo seu aspecto intelectual. Dentro da própria Igreja, já há algum tempo, os pensadores nominalistas haviam proposto uma quebra dessa síntese, enxergando no elemento aristotélico uma grande mácula para o dogma cristão e para suas aplicações em diversas áreas da vida (Quigley, 1979: 344- 348; Kenny, 2004-07 II: 201-213)3. Contudo, foi a emergência da Reforma e do Renascimento que questionaram de forma mais veemente o fator institucional responsável por manter acesa a chama da síntese escolástica. Além desse questionamento externo, a reorientação da comunidade de pensamento em seu motivo básico, quer protestante, quer humanista, também se manifestou favorável a um rompimento da síntese escolástica. Não obstante, os elementos desse motivo básico permaneceram (separadamente) como pontos de referência para o humanismo cristão inicial, incluindo o pensamento teórico protestante mais ligado a Lutero e à fase inicial da Reforma.

Durante essa primeira fase, a comunidade acadêmica enfatizou a reformulação dogmático-eclesiástica e outros fatores considerados mais urgentes. Apesar de uma grande movimentação na divulgação de panfletos protestantes de cunho político- religioso, a teoria política protestante inicial ainda se pautava pelas noções de Natureza e Graça em suas ideias transcendentais, embora tratasse desses dois domínios como opostos, e não mais sintetizados sob a autoridade da Igreja romana (Dooyeweerd, 1979: 139-141). O resultado foi a emergência de uma nova forma de postular a aplicação política desse motivo básico, agora, desconexo em seus dois elementos centrais, à semelhança do nominalismo medieval tardio. Em outras palavras, o pensamento político protestante inicial surpreendentemente emulou fatores do pensamento católico-romano anterior, apesar das diferenças teóricas de cunho mais

3Cf. a próxima seção.

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teológico. Tratando de cada um desses domínios fundamentais (Natureza e Graça) de forma separada, a manifestação teórica do protestantismo na área política enrijeceu a tensão entre ‘mundo’ e ‘Igreja’ sem a pretensão de igualar a comunidade institucionalizada dos cristãos com esse último aspecto. Uma manobra semelhante foi adotada pelo humanismo cristão de Melanchton, Agricola e Erasmo, mas com o conteúdo do motivo da ‘Natureza’ fortemente informado pelo ideal renascentista de retorno à história, literatura e filosofia clássica. A esfera religiosa, por sua vez, passou a ser vista de forma mais introspectiva (Dooyeweerd, 1979: 142-143).

O caso das opiniões políticas de Lutero serve para ilustrar como Natureza e Graça continuaram a servir de referência para o pensamento teórico protestante inicial, com o notável acréscimo de uma clara tensão entre cada um desses pólos, tratados como antitéticos (Dooyeweerd, 1997: 132-133). Escrevendo para condenar as revoltas camponesas que eclodiram nos domínios do Sacro Império supostamente em nome da Reforma, Lutero desenvolve como fundamento uma oposição entre dois domínios correlativos com Natureza e Graça: respectivamente, Lei e Evangelho (Luther, 2002: 206-207). Semelhante ao raciocínio agostiniano, a Lei se aplica ao mundo caído, corrompido pelo pecado original, e serve de condenação aos pecadores. A graça salvadora divina transporta o cristão do império da Lei para o domínio do Evangelho, tornando-o livre da Lei. A partir de então, ele passa a viver com base no ‘novo mandamento’ de amar a Deus e ao próximo. A Lei existe por causa do pecado. No mundo da graça o pecado é passado. A Lei, contudo, continua a servir de referência, mas restrita ao mundo caído. Por implicação, o magistrado civil e a ordem política pertencem a esse mundo, tendo sua própria lógica interna e servindo ao propósito de restringir a pecaminosidade humana e de proteger a comunidade cristã dos efeitos do pecado. Isso tudo não quer dizer que os cristãos não pequem, mas sim que eles não estão mais sob a condenação e a ‘lógica interna’ desse mundo da Lei (Luther, 2002: 208-209). Assim, a política não é prerrogativa cristã por necessidade e convém ao cristão obedecer à autoridade instituída. Mais do que isso, a possibilidade de uma teoria marcadamente cristã de política é negada, visto tratar-se de uma área relativa à Lei. Assim, o que é possível é somente uma ética cristã do ‘novo mandamento’ do amor (Cf. Brunner, 2003).

Àsemelhança da formulação luterana, o pensamento teórico protestante inicial apresentou uma continuidade com as ideias transcendentais de Natureza e Graça. Fala- se até mesmo, em determinados contextos, de um escolasticismo protestante. Sudduth (2009: parte I), por exemplo, ressalta a surpreendente emulação protestante nos argumentos acadêmicos de defesa da fé cristã, notando como diversos autores inicialmente dependeram da herança tomista-aristotélica, utilizando a teologia natural como base para sua apologética. Na área da política, Grabill (2006) nota um resíduo de síntese no uso protestante de noções clássicas de direito natural. O próprio Lutero se declarava “membro da escola de Ockham” (um nominalista católico do passado) e o reflexo disso em seu pensamento já foi confirmado por comentadores em mais de uma ocasião (Kropatscheck, 1900; Dooyeweerd, 1997: 132). Não surpreende, assim, que pensadores luteranos, principalmente os posteriores, do século XVII, tenham reagido aos horrores dos conflitos religiosos europeus (incluindo a Guerra dos Trinta Anos) apresentando teses favoráveis à reunificação da Igreja e do Sacro Império, se bem que de uma forma mais crítica, por questão de expediência e de manutenção da ‘paz geral’ no mundo conforme a lógica autônoma da esfera da Lei (ex. Thomasius). Embora esses

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teóricos posteriores tenham sido influenciados por uma visão humanista em sua ideia de Natureza, o ponto é que os motivos básicos do protestantismo inicial mantiveram seu reflexo político sob a direção dual das noções de Natureza e Graça. É difícil, portanto, encontrar indícios de um retorno aos motivos básicos radicais de criação/queda/redenção do cristianismo antigo no pensamento político protestante em geral, apesar de os esforços teológicos, por sua vez, terem sido mais bem sucedidos nesse aspecto por conta do retorno às afirmações bíblicas em detrimento de posteriores tradições eclesiásticas como base dogmática.

Coube a Calvino, juntamente com outros autores da ala ‘reformada’ dos protestantes, iniciar a tentativa de resgate das ideias transcendentais bíblicas como ponto norteador de uma visão de mundo que incluísse uma nova ontologia a ser aplicada em diversas áreas de investigação teórica. Na cosmovisão e no pensamento teórico reformado, o dualismo cristão do escolasticismo e do protestantismo anterior dão lugar a um pluralismo ontológico. Esse fator pluralista emerge principalmente a partir do resgate teórico-dogmático da radicalidade dos motivos básicos bíblicos na principal e mais influente obra teológica de Calvino, a Institutas. O ato da criação é retratado em termos de uma independência de Deus em relação a qualquer outra coisa externa a Si mesmo (Calvino, 1999 I: 17-18), sendo que Ele opera ativamente para preservar a ordem da criação (Calvino, 1999 I: 47), tendo estabelecido uma diversidade de leis que atuam sobre a criação, mas não sobre Ele. A queda representa o profundo redirecionamento do coração humano para longe de buscar a glória de Deus. Tal como Agostinho, Calvino enxerga grande força nesses efeitos do pecado, que só podem ser revertidos pelo poder do próprio Deus. Embora a salvação venha pela fé somente, a corrupção humana é tal que mesmo essa fé deve ser concedida como manifestação da graça especial aos predestinados. O homem não crê naturalmente e essa situação de rebeldia só é alterada pelo próprio Deus, ao qual aprouve eleger somente alguns para a salvação. Calvino desenvolve mais o tema da redenção ao explicar que, por causa do redirecionamento do cristão pela fé, cada aspecto da vida deve ser semelhantemente colocado a serviço de Deus (Calvino, 1999 II: 183-188). Isso quer dizer que a política faz parte integral da vida cristã e que ela deve ser compreendida, como tudo o mais, à luz da revelação de Deus na bíblia e no entendimento da forma como as estruturas da criação se relacionam entre si. Apesar de ter lançado as bases para o pensamento social reformado posterior, Calvino dedicou pouco espaço ao tema da política em sua obra, ainda que o tenha feito de forma intensa, afirmando a pluralidade das esferas societais e teorizando os direitos e deveres dos magistrados e dos cidadãos, inclusive o direito à resistência ordeira no caso de abuso de poder (Calvino, 1999 II: 186 e 1167- 1194).

Embora diversos pensadores reformados tenham desde cedo se aplicado ao desenvolvimento de uma teoria política derivada da nova base ontológica naquilo que Witte (2007) considera uma verdadeira “reforma dos direitos” com diversas implicações para as instituições do mundo ocidental, foi necessário o amadurecimento dessas bases para que, finalmente, Johannes Althusius utilizasse os novos princípios na sua interpretação do Sacro Império em relação à esfera societal como um todo. Em sua obra principal, Politica, a ontologia pluralista orientada pelas ideias transcendentais bíblicas de criação/queda/redenção se traduzem em um elegante sistema teórico digno de nota por seu caráter cuidadosamente arquitetado e pelo seu grande poder explicativo (Carney, 1995: xiv). O autor atribui ao motivo bíblico o ponto que alavanca

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o seu argumento. A visão do Sacro Império em Politica emerge como consequência da formulação geral, sendo uma ilustração de pontos-chave tais como a ‘comunidade universal’ e sua formação histórico-legal. Apesar de, nesses termos, o Império ocupar um lugar secundário no pensamento de Althusius, vale notar a relevância do argumento geral para a discussão dessa instituição política naquele período histórico, principalmente no que tange à delimitação dos poderes do governo e do direito de resistência à tirania. Os principais temas de Politica, com efeito, giram necessariamente em torno da ontologia pluralista cristã pressuposta pelo autor. São eles: definição de política como ‘simbiose’, a origem divina da pluralidade dentro da esfera societal e, finalmente, a negação da existência de qualquer autoridade terrena absoluta4.

O primeiro tema abordado por Althusius (1995: 17) é a definição de política. Saltam à vista, nessa definição, tanto a ideia de pluralidade de associações quanto o caráter normativo-redentivo da prática política. Ambas as noções permeiam o pensamento althusiano e se fazem presentes em sua declaração inicial: “Política é a arte de associar (consosciandi) pessoas para o propósito de estabelecer, cultivar e conservar a vida social entre elas”. A natureza desse vínculo entre as pessoas é explicada com o uso da metáfora biológica da simbiose. No nível mais primário, a associação política diz respeito à mera sobrevivência, dada a impossibilidade de se viver em completo isolamento. Em uma aplicação mais complexa, a prática da associação política também se liga à redenção da sociedade, em cooperação e amor ao próximo (Althusius, 1995: 23). Em ambos os casos, a simbiose leva à formação de associações diversas no intuito de promover “a comunicação daquilo que é útil e necessário ao exercício harmonioso da vida social”. Do lado normativo, fica claro que Althusius não define política somente como algo que simplesmente acontece. É certo que para a sobrevivência a política deve existir, mas, entendida como uma “arte”, ela extrapola a mera sobrevivência e tem o potencial de proporcionar qualidade de vida social. A política não é qualquer tipo de interação. Pelo contrário, ela se diferencia da mera vida em bando, passando a significar, de forma mais profunda, uma disposição específica da sociedade tal que as coisas, serviços e direitos necessários a uma vida plena sejam propriamente “comunicados” (Althusius, 1995: 19-24). Fica evidente nesse conceito, então, que as associações têm uma importância vital na política que, por sua vez, é uma noção normativo-redentiva por requerer o empenho das pessoas para que a ‘comunicação’ ocorra de forma adequada.

O problema central passa a ser a obtenção de uma disposição da sociedade que possibilite a política nos termos dados. Neste segundo tema importante no argumento, Althusius explica como a noção de Origem divina da pluralidade social se liga aos meios da simbiose. Há diversos tipos de necessidade na vida, um fato que resulta da forma como Deus criou os seres humanos sob uma pluralidade de leis da natureza. Além de viver em grupos por causa dessas necessidades, as pessoas formam diferentes tipos de associações que correspondem a cada um desses tipos de necessidade, a fim de que elas comuniquem as coisas, serviços e direitos necessários ao desenvolvimento de uma vida plena. Em geral, as pessoas ingressam em associações por intermédio de consentimento. Cada um desses grupos possui sua estrutura interna de regras, autoridade e papéis, a fim de funcionar corretamente (Althusius, 1995: 20-22). Esse

4Esse último ponto envolve a oposição marcada de Althusius à noção de soberania defendida por Bodin e outros contemporâneos.

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argumento é ilustrado e aplicado no caso de diversos tipos de associações (família, guildas, igrejas e associações públicas como, por exemplo, cidades). Althusius (1995:

143)distingue três espécies principais de associações: naturais (ex. família), civis (ex. corporações de profissionais) e públicas (ex. províncias). Ele diferencia esses grupos com referência à sua função e estrutura interna. Notadamente, cada associação tem uma “vocação” dada por Deus, um potencial que deve ser desenvolvido ativamente. Em suma: Deus criou seres humanos que precisam de viver em comunidade. Diferentes tipos de necessidade, provenientes da ordem da criação divina, devem ser satisfeitas por distintas associações. Quando essas associações cobrem de forma eficiente tais necessidades, o arranjo social resultante pode ser chamado de simbiose e as relações podem ser consideradas como políticas. Isso quer dizer que o desenvolvimento da arte da política requer um reconhecimento das estruturas da criação de Deus e um ajuste da sociedade em relação a essas estruturas no cumprimento da vocação ‘redentiva’ das associações diversas.

O terceiro tema relevante é o da limitação do exercício da autoridade política. Da mesma forma como as estruturas da criação divina e a necessidade de se aperfeiçoar sempre a conduta (ajustando-a a essas estruturas rumo à simbiose) são fatores orientados pelo motivo bíblico de criação/queda/redenção, aqui também Althusius deixa claros os seus pressupostos religiosos. Uma estrutura plural da criação, sempre relativa ao Criador e sempre limitada, é entrelaçada em todos os seus aspectos. Cada associação utilizada para o desenvolvimento desses aspectos na vida humana tem, dentro dos limites de sua ‘lógica’ interna, uma estrutura de autoridade que se encarrega somente da área de ‘especialização’ dessa associação. Idealmente, a autoridade de uma associação nunca extrapolará a sua esfera, configurando um estado de múltiplos exercícios de autoridades na vida social, cada uma limitada por sua ‘vocação’, positivado, talvez, em alguma espécie de pacto. Em sua análise das associações do tipo público (colégios eleitorais, tribunais, prefeituras, etc.), Althusius (1995: 39-40) deixa claro que cada uma delas se restringe somente à provisão da justiça pública através do poder da espada. Dentro desse aspecto público da vida social diversas associações emergem gradativamente em uma sobereposição de ‘camadas’ associativas em progressão de tamanho. Logo, pode-se dizer, por um lado, que as cidades são partes das províncias que, em conjunto, constituem a “associação pública universal” (Althusius, 1995: 66). Por outro lado, todavia, essa comunidade universal não pode ser tomada como o ‘todo’ do qual as famílias, guildas e igrejas fazem parte. Ao contrário do escolasticismo, o pluralismo social de Althusius só estabelece uma relação entre ‘todo’ e ‘partes’ quando a ‘lógica’ interna às associações é a mesma de ambos os lados da relação (Ossewaarde, 2007: 113ff). A autoridade pública, portanto, difere da eclesiástica ou da profissional. Não há uma autoridade última sobre todas as coisas, a não ser Deus.

Além de proporcionar uma narrativa teórica para explicar a emergência dos Estados através do entrelaçamento de associações públicas, Althusius desenvolve melhor sua teoria da associação pública universal e dos limites às suas estruturas de autoridade, passando a ilustrar o conceito com o caso do Sacro Império. Ele atribui soberania a essa associação em virtude da inexistência de qualquer outra autoridade pública que lhe seja igual ou superior em seu território (Althusius, 1995: 69). Considerando a disposição interna de cada ‘camada’ associativa pública, a imagem que emerge do entrelaçamento de todas as associações é bem distinta do conceito liberal-humanista

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de ‘contrato social’ que pressupõe uma divisão aguda entre indivíduos e Estado. Além do mais, há diversas outras associações de cunho civil ou natural enriquecendo ainda mais o quadro geral. Em todo caso, o ponto é que a associação universal se forma já contando com as estruturas de autoridade pública inferiores e sem prejuízo para os outros tipos de associações. É ao “povo” que a soberania pertence. Isto é, “não aos membros individuais, mas a todos eles em conjunto” (Althusius, 1995: 70). Althusius é por vezes tratado como um defensor da soberania popular, à moda de Rousseau, mas ele deixa claro que por ‘povo’ ou ‘membros’ ele se refere “não a homens individuais, famílias ou corporações, como numa associação privada ou particular-pública. Pelo contrário, os membros são diversas cidades, províncias e regiões de acordo entre si em um corpo único constituído por união e comunicação mútua” (Althusius, 1995: 67). O conceito de ‘povo’, assim, corresponde às associações públicas que se unem na formação do Estado. Há, então, dois limites à autoridade estatal: sua restrição à provisão da justiça pública somente, e a permanência da soberania no ‘povo’, ou corpo de magistrados imediatamente inferiores à associação universal.

A ‘visão’ althusiana do Império como associação pública universal é, pois, bastante análoga à situação das Províncias Unidas. Em sua experiência profissional como um magistrado inferior servindo à cidade de Emden (entre a Alemanha e a Holanda), Althusius precisou de argumentar mais de uma vez contra os excessos das autoridades centrais. A terceira edição de sua obra (1614) é dedicada aos líderes da resistência de sua província durante o longo período da Revolta Holandesa contra o domínio espanhol, que só terminou oficialmente no mesmo ano dos tratados de Westphalia (Carney, 1995: xi-xii). A resistência pública era uma situação familiar para o autor. É evidente que sua conceitualização da associação pública universal possui, tal como a definição de política, caráter redentivo. É preciso conformar as instituições humanas à vocação divina e à estrutura da criação. Conservar a soberania no corpo dos magistrados é uma forma de garantir que, caso haja abusos no exercício da autoridade, incluindo a situação da reação holandesa aos decretos religiosos do Estado espanhol, haverá vias pré-estabelecidas de resistência através do poder público desses magistrados inferiores (Althusius, 1995: 196-197). O argumento althusiano, segundo explica Grabill (2006: 122-123), foi compreendido como potencialmente perigoso tanto pelos que defendiam o crescimento do poder imperial quanto pelos proponentes do absolutismo em nível local. Por causa das implicações em termos da limitação de poder transportada do contexto da Revolta Holandesa para a estrutura do Império, após a morte de Althusius, essa teoria foi virtualmente esquecida durante séculos.

V. O Humanismo: Ciência, Personalidade e Política

Como visto anteriormente, há uma grande semelhança entre os primórdios do humanismo (principalmente em sua vertente mais religiosa) e o movimento anti- escolástico medieval. Hardt e Negri (2000: 72) observam, com efeito, uma marcada separação entre Natureza e Graça no nominalismo da Idade Média tardia que rompeu de vez a síntese escolástica em seu motivo religioso básico dualista: a produção de conhecimento, com isso, “alternou do plano transcendente para o imanente”. A área da Graça não foi completamente eliminada da vida como um todo, ao menos nos momentos iniciais do humanismo, mas tornou-se ‘privatizada’. Do anti-escolasticismo medieval tardio e do humanismo cristão emerge uma ideia introspectiva de

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religiosidade. O âmbito terreno, por sua vez, separado conceitualmente das coisas religiosas, ganha uma ‘lógica’ própria, pautada no ideal renascentista da livre personalidade (Boucher, 1998: 118). Ambos os fatores apresentam claras consequências na teoria política nominalista e em sua ‘visão do Império’.

Assim, por exemplo, em Dante, a unidade fundamental da humanidade como um todo (cristãos e não-cristãos) deve corresponder a um único governo universal que proporcione a liberdade dos cidadãos e sua realização intelectual, o maior de todos os bens no âmbito político terreno (Dante, 1863; Ullmann, 1975: 278). Marsílio de Pádua vai além disso e nega o direito de a Igreja se envolver na vida secular e nos assuntos de governo, abstendo-se de qualquer aspecto transcendente em sua visão de Origem do governo, ao localizá-la no consentimento dos cidadãos governados (Ullmann, 1975: 283; Marsilius, 2005). Segundo Nederman (2003: 130), esse precursor do humanismo já reconhece o “benefício temporal como fundamental e como o objetivo totalmente legítimo da conduta humana”, apresentando “o propósito da vida”, inclusive na política, em termos de “auto-preservação”. Todo o esquema teórico, finalmente, é aplicado ao caso do Sacro Império, retratado como o resultado da volição e do consentimento do grupo de cidadãos (Marsiglio, 1993). No humanismo cristão posterior, tanto a religiosidade introspectiva como o tratamento da Natureza passam a ser definitivamente vistos em função do ideal da livre personalidade através da ênfase na educação, ilustrada no pensamento ‘internacionalista’ de Erasmo e de outros renomados ‘irenistas’ como, por exemplo, Comenius. Essas ilustrações sugerem que, com sua insistência em uma lógica própria interna ao plano terreno, o humanismo cristão buscou os princípios últimos da política (inclusive a sua ‘visão do Império’) nesse domínio imanente da Natureza.

Com o tempo, o motivo básico religioso do pensamento humanista se cristalizou em torno dos pólos da Natureza, agora na condição de autonomia, e da Liberdade humana “absolutamente independente de todo poder sobrenatural” (Dooyeweerd, 1979: 152). A pessoa autônoma haveria de, cedo ou tarde, “tomar seu destino em suas próprias mãos”. Hardt e Negri (2000: 70-71) chegam a retratar o caráter integral dessa “afirmação dos poderes deste mundo” como uma “revolução”:

os humanos se declararam mestres de suas próprias vidas, produtores de cidades e da história, inventores dos céus. Eles herdaram uma consciência dualista, uma visão hierárquica da sociedade e uma ideia metafísica de ciência, mas deixaram, para as gerações seguintes, uma ideia experimental de ciência, uma concepção constituinte da história e apontaram o ser como um terreno imanente de conhecimento e de ação.

Como principal resultado desse “processo de secularização que negava a autoridade divina e transcendente sobre os assuntos mundanos”, dizem eles, “o conhecimento humano se transformou num fazer, numa prática de transformação da natureza” (Hardt and Negri, 2000: 72). Em outras palavras, o ideal da livre personalidade humana serviu de impulso ao ideal de controle sobre a natureza, sendo ambos componentes-chave do motivo da Liberdade.

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O outro pólo do conjunto de ideias transcendentais humanistas, aquele que diz respeito

àNatureza, por sua vez, se diferencia radicalmente da visão pressuposta nas correntes teóricas anteriores. Após a consolidação da quebra da síntese escolástica, o motivo da Natureza também passou pela transformação trazida pela visão ‘mecanista’ de mundo e pelos grandes avanços da física e do cálculo no início da Era Moderna (Shapin, 1996: 12-64). Essa leitura matemática da natureza gerou um critério meta-teórico normativo para a produção do conhecimento nas disciplinas especiais. No intuito de servir ao ideal de controle impulsionado pelo motivo da Liberdade, a mente humana deveria se esforçar para descobrir todos os mecanismos ou ‘leis’ da realidade à sua volta (Hooykaas, 1972: 13-19). O uso dessa diretriz no âmbito político não foi imediato, fato evidente na insistência ‘historicista’ dos primeiros humanistas clássicos como Guicciardini ou Maquiavel no que tange à vida social (Tuck, 1993: 171). Apesar disso, sobre as obras desse último pensador, Femia (2003: 150) comenta que

"não há traços de teologia aristotélica ou cristã, nenhuma referência a qualquer ordenamento ideal [...] ou a qualquer propósito rumo ao qual a criação se encaminha. Não há qualquer pressuposto discernível da existência de leis divinas. As únicas leis da natureza que Maquiavel menciona são as leis da necessidade física".

Embora inicialmente o caráter contingente da sociedade tenha sido enfatizado em tal predileção pelo conhecimento histórico, o secularismo e a visão mecânica da natureza garantiram a partir desses primeiros humanistas uma abertura para a posterior extensão da leitura matemática ao terreno da política.

Àsemelhança das correntes dualistas anteriores, o humanismo clássico também se caracteriza por uma tensão profunda entre os dois pólos de sua raiz. A Liberdade, buscada em termos do novo ideal científico de controle, coloca a seu serviço a visão mecânica da Natureza. Quanto mais controle sobre o mundo, mais livre o ser humano será (Shapin, 1996: 119-135)5. Contudo, a expansão desse ideal de controle na tentativa de se compreender a sociedade à luz dos critérios matemáticos modernos em último caso representa potencialmente a explicação de todos os mecanismos da realidade, negando qualquer espaço à autonomia (Kalsbeek, 1975: 137-141). Tal tensão entre o determinismo teórico gerado a partir de uma visão ‘mecanista’ da Natureza e o motivo da Liberdade logo adquiriu um papel central na formação histórica do pensamento humanista. Descartes, por exemplo, negou a subordinação última do ‘ego’ ao mundo mecânico, ligando racionalidade e moralidade a esse ‘ego’ em um dualismo insolúvel de Origem. Todo o sistema cartesiano, incluindo a separação entre sujeito e objeto, flui dessa dupla ideia transcendental. Hobbes, ao contrário, procurou seguir à risca as implicações teóricas de sua ontologia ‘mecanista’, reduzindo à Origem postulada em termos de leis físicas toda a diversidade do mundo (Cf. Dooyeweerd, 1979: 153-154). O pensamento ‘internacionalista’ hobbesiano reflete o mesmo princípio, considerando o Estado como um ‘corpo’ em choque com os demais ‘corpos’ políticos e sujeito às leis mecânicas do movimento (Skillen, 2003: 322-324).

5A produção científica do período também abunda fora do motivo básico humanista. A ciência do início da Era Moderna de forma alguma é comutável com ‘pensamento humanista’. Cf. Pearcey e Thaxton (1994).

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A teorização política humanista a partir do fundamento antitético de natureza/liberdade pautou-se, em sua época, pela necessidade de estender o ideal de controle ao âmbito do Estado, dadas as convulsões político-religiosas do período. Bodin, com sua doutrina de soberania centralizada e indivisível apresentada como a solução para os embates entre facções internas, encontrou grande aceitação por toda a parte (Eulau, 1941: 646). Hobbes, com uma proposta semelhante, acrescentou ao argumento a visão ‘mecanista’ da sociedade, que já servia como um poderoso instrumento intelectual em pelo menos três aspectos. Primeiramente, a secularização ou ‘imanentização’ humanista da política apresentava alternativa viável ao embate interno europeu entre catolicismo romano e protestantismo(s), transformando a noção de Origem em algo apreensível pelo uso ‘neutro’ e universal da razão. Embora os teóricos do início da Era Moderna tenham mantido Deus em seu vocabulário, mesmo a noção de lei natural ganha um conteúdo altamente neutralizado pelo novo modo científico de raciocínio. Assim, Grotius, por exemplo, pode sem maiores impedimentos postular o ponto de partida do direito natural na razão humana, embora seja consistente com o caráter divino, e afirmar que mesmo que Deus não existisse, a lei natural permaneceria válida (Grotius, 2005: 89). Dengerink (1978: 16) comenta o resultado dessa manobra, apontando que, para Grotius “o direito natural é, em última análise, produto da razão humana”. Leibniz vai além, ao reduzir tudo, inclusive Deus, a essências que são co- eternas com Ele e que Ele não pode contrariar. “É importante lembrar”, observa Riley (1988: 6), “que, para Leibniz, Deus opera sob limites”. Um desses limites é a justiça, definida em termos de uma harmonia geométrica entre amor ao próximo e uso da sabedoria que serve de Origem, no sistema leibniziano, para o Estado, cuja finalidade é permitir o “império da razão” (Riley, 1988: 22-23). Em Leibniz e Grotius, a razão autônoma assume um papel central. Esses casos ilustram o primeiro tipo de influência da nova abordagem ‘imanente’ acerca das leis naturais.

Em segundo lugar, a universalização do método matemático na visão humanista clássica de Natureza emprestava à teoria política um aspecto de neutralidade e de precisão para além das querelas teológicas que permeavam a prática e o estudo das relações ‘internacionais’, aspecto esse que se evidenciava de duas formas — geométrico-dedutiva e aritmética. Spinoza, Grotius, Leibniz, Pufendorf (ao menos inicialmente) e tantos outros procuraram retratar seus argumentos como se fossem sistemas euclideanos deduzidos a partir de axiomas iniciais. Sobre o método de Grotius, por exemplo, Dengerink (1978: 15) comenta que “é puramente dedutivo, à moda da geometria”. Outro aspecto do uso desse tipo de teorização pelos humanistas do início da Era Moderna é sua ênfase na primazia das partes sobre o todo (invertendo, aritmeticamente, a relação aristotélica herdada do escolasticismo). Tal perspectiva foi deveras instrumental nas várias tentativas de reconciliação do ideal de livre personalidade com o ideal de controle através da noção de ‘contrato social’, celebrado hipoteticamente entre um conjunto de indivíduos livres (ou partes em ligação ou ‘soma’ voluntária formando um todo). É somente em Pufendorf que o Estado adquire, de vez, sua própria personalidade jurídica abstrata sendo, ainda assim, concebido como fruto de uma série de pactos entre as partes diversas (Boucher, 1998: 236-238). O primado de abstrações geométricas e aritméticas no mundo intelectual consolidou, respectivamente, o modo dedutivo de teorização e a concepção de conjuntos tomando suas partes como ponto de partida.

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Esse procedimento, aplicado à análise da sociedade como um todo, também se fazia fortemente presente, em terceiro lugar, no estudo das relações entre diferentes Estados. Concebido à luz da noção ‘mecanista’, o Estado se define como um conjunto fechado em choque com os demais Estados ou, como Hobbes propõe, um ‘corpo político’ sujeito às mesmas leis físicas que o restante do universo. Assim, não é surpresa que o mesmo argumento utilizado na análise e na síntese do ‘estado de natureza’ que leva ao contrato social seja aplicado às relações entre Estados. Embora o ‘internacional’ no início da Era Moderna seja concebido à luz do que se convencionou chamar de ‘analogia doméstica’, isso não significa que haja, do lado de ‘fora’, um espelho completo daquilo que supostamente teria ocorrido ‘dentro’, no momento hipotético do contrato social (Walker, 1993). Uma das diferenças entre o conjunto de indivíduos no estado de natureza e o conjunto de Estados no ambiente internacional é o fato de os Estados terem supostamente resolvido o problema interno da segurança e, por isso, poderem se defender de uma maneira mais adequada que os indivíduos no estado de natureza, argumento usado por Pufendorf para se desvencilhar a implicação de um Estado mundial que resolveria o problema do choque entre diferentes comunidades políticas (Boucher, 1998: 239). Grotius acrescenta a isso a noção de uma ‘sociedade internacional’, formada, também contratualmente, sob o direito natural (Cf. Bull, 1977). Em todo o caso, era amplamente reconhecido que, na busca por estabilidade no plano interestatal, os atores tinham o poder de se munir de estratégias como o equilíbrio de poder e as alianças militares, dispensando o uso de uma entidade centralizadora universal. Assim, embora o mesmo princípio de sobrevivência e de auto- interesse se aplique tanto no plano doméstico quanto internacional, a resolução de problemas em cada âmbito demanda maiores considerações, apresentando mais uma faceta da dialética entre o ideal de controle e o ideal da livre personalidade.

Um dos grandes enigmas para o pensamento ‘internacionalista’ humanista surgido após todas as modificações práticas e institucionais no contexto do Sacro Império, principalmente depois de Westphalia, foi o de definir o status dessa entidade política. A maioria dos teóricos humanistas considerava os escolásticos e os clássicos inferiores à nova abordagem matemática, porém categorias aristotélicas eram ainda bastante difundidas na classificação de comunidades políticas em geral. Além da proposta original, mas esquecida, de Althusius, as ‘visões do Império’ disponíveis variavam em torno dos conceitos aristotélicos de monarquia, aristocracia e, possivelmente, uma mistura. O problema consistia em reconciliar a definição já cristalizada de soberania proposta por Bodin com a dupla reivindicação de soberania por parte do Império e dos Príncipes alemães. Seguida à risca, essa noção de soberania ameaçaria o poder dos Príncipes (se aplicada ao Imperador), ou, alternativamente, reduziria o Império a uma mera confederação ou aliança militar (se aplicada aos Príncipes), ‘desnudando’ o Imperador de sua ‘vestimenta soberana’. Era, por assim dizer, mais um dos ‘quebra- cabeças’ gerados pela tensão entre controle e liberdade no motivo religioso básico humanista.

Embora aqui o objetivo não seja o de focalizar em todos os principais argumentos, saltam à vista dois autores igualmente críticos das categorias herdadas: Pufendorf e Leibniz. Pufendorf encara a soberania, entendida conforme as formulações de Bodin e de Hobbes, como “a característica definidora de um Estado”, chegando inclusive a propor uma distinção entre Estados regulares e irregulares, sendo que somente os regulares contam com soberania “unificada e efetiva”, fator que rebaixa os Estados

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irregulares a tentativas fracassadas de alcançar o seu objetivo principal de promover a segurança dos cidadãos (Seidler, 2007: xvii-xviii). Não encontrando aplicabilidade nas categorias aristotélicas de aristocracia e monarquia ao Império, Pufendorf (2007: 176-

177)é levado a concluir que “a Alemanha é um Corpo Irregular e semelhante a uma Monstruosidade” (monstro simile) que, não obstante, tende mais a um “sistema de Estados” (ie., aliança militar) do que a uma monarquia unificada. Eulau (1941: 657-

658)comenta o procedimento humanista que tende a tal conclusão:

O método de Pufendorf [...] consistia em deduções jurísticas e lógicas a partir de presuppostos concebidos a priori. Ele aceitava incondicionalmente as visões de Bodin e de Hobbes acerca da unidade absoluta e da completa independência do Estado soberano. Da natureza do Estado assim concebida, ele deduziu sua soberania; da natureza da soberania, a sua indivisibilidade; e, da sua indivisibilidade, a monstruosidade de qualquer Estado supostamente composto de outros Estados. Um Estado não pode conter outros Estados em si.

A prescrição feita por Pufendorf é simplesmente uma coordenação maior entre os membros do Império para que este cumpra de fato o propósito de uma aliança militar e passe a ser um sistema efetivo de Estados.

Leibniz, por sua vez, não se contentava com a visão tradicional de soberania. Criticando Hobbes pela a-historicidade de sua formulação “visto que nenhum povo civilizado na Europa é governado pelas leis que ele propôs” (Leibniz, 1988: 118), o autor sugere que “a situação do Imperador é um pouco mais elevada do que normalmente se pensa” (Leibniz, 1988: 111). Ele explica a emergência de Estados e do Império a partir da necessidade de coordenação da administração de grandes territórios. Observa que o direito de jurisdição territorial (Landeshoheit) dos Príncipes que conseguem liderar um exército próprio e que controlam uma porção considerável de terra corresponde à soberania que se encontra em tantos países fora do Império (Leibniz, 1988: 114-117). Ele diferencia entre confederação (aliança militar) e união, observando que nesse último pacto existe uma “administração permanente” central “com algum poder sobre os membros [...]. Aqui, eu digo, existe um Estado” (Leibniz, 1988: 117). Em relação à ‘monstruosidade’ indicada por Pufendorf, a resposta de Leibniz (1988: 119) é que “monstros similares têm sido mantidos pelos holandeses e pelos poloneses e pelos ingleses e até mesmo pelos espanhois e franceses”. Em Pufendorf, a ideia tradicional de soberania é mantida como o axioma de todo o sistema, levando à classificação do Império como uma solução sub-ótima para o dilema entre controle e liberdade, e esse problema só pode ser resolvido a partir do contrato entre as partes para que o sistema completo se torne mais eficiente. Já em Leibniz, a proposta aritmética é a de se livrar do caráter unitário da soberania, dividindo-a entre a parte central e as partes secundárias. Em virtude dessa operação fracionária, o Império pode ser classificado como um Estado soberano, uma espécie de antecessor do Estado federativo.

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VI. Comentários Finais

O motivo clássico de forma/matéria informou a visão escolástica de Natureza, sintetizada sob o domínio da Graça. As ideias centrais de natureza/graça, acompanhadas do primado aristotélico do todo sobre as partes, e do cosmopolitismo estoico, serviram de quadro de referência para o pensamento político medieval e escolástico posterior, incluindo a noção de Cristandade e o equacionamento das relações entre a jurisdição universal política do Sacro Império e o governo espiritual do Papado. A síntese dos motivos básicos medievais seguiu seu curso sob a autoridade institucional da Igreja até o início da Era Moderna, mas a Reforma possibilitou alternativas no humanismo cristão e no pensamento protestante em geral. Embora boa parte dos protestantes tenha mantido uma surpreendente semelhança com o pensamento católico-romano, os reformados desenvolveram um sistema ontológico pluralista, derivando a partir daí uma visão da sociedade que se conformasse à radicalidade de seus pressupostos bíblicos. Já no humanismo clássico, uma teorização mais secularizada a respeito da natureza combinada com elementos matemáticos delimitou em método e em conteúdo a teoria política. Com o problema de conciliar o ideal de controle e o ideal de liberdade inerentes a esse novo motivo básico, os humanistas jamais escaparam das questões últimas relacionadas à Origem da existência, coerência e diversidade do cosmos. A análise de ‘longo prazo’ efetuada aqui possibilitou ilustrar como esses pressupostos de caráter religioso informam tacitamente um modelo ontológico do qual a teorização em um campo especial depende. Explícitos ou implícitos, esses pressupostos de religação pré-teórica com as ideias transcendentais de Origem sempre influenciaram o pensamento político ‘internacionalista’.

O Sacro Império Romano-Germânico, bem como noções gerais relacionadas ao ordenamento internacional, incluindo a unidade e a diversidade das comunidades políticas, servem como um objeto mais ou menos estável de comparação entre as diversas correntes de pensamento. Não se tratou, aqui, de uma história do Império ou do ‘internacional’, embora esta análise possa potencialmente contribuir para esses temas ao jogar luz sobre a formação histórica de ideias a respeito do Império e do ‘internacional’ em torno de seus pressupostos mais básicos. A correspondência entre essas ideias e o Império ou o ‘internacional’ reais são, diante disso, questões interessantes, mas secundárias. O principal ponto levantado foi o de explorar a noção reformacional de que existe uma forte ligação entre os pressupostos últimos do pensamento teórico, frutos de uma inclinação a determinado conjunto de ideias transcendentais de Origem, e suas implicações na análise especializada de um objeto dado. É difícil negar o impacto dessa relação no caso das ‘visões do Império’ e do ‘internacional’ no início da Era Moderna. Nesse período surgiram teorias pertencentes a diversas das correntes de pensamento apontadas aqui, todas com algo a dizer acerca do ordenamento generalizado da política entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ e da função do Império no esquema geral. A própria natureza do pensamento político ‘internacionalista’, como lembra Keene (2005: 10), envolve questões sobre coerência e diversidade da comunidade política. Se, assim, a investigação ontológica é inescapável

como permanece até hoje (Cf. Wight, 2006) — a raiz das diversas ontologias nos motivos básicos religiosos do pensamento teórico é também merecedora de nossa atenção.

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Lucas G. Freire

Problemas ontológicos são sempre atuais em qualquer disciplina especializada. Quando se trata de um domínio como o das relações internacionais, sob constante mudança em seu objeto e seu modo de estudo, tais questões são efetivamente bem-vindas. As implicações do argumento levantado aqui para a historiografia disciplinar das Relações Internacionais e do Direito Internacional ficam em suspenso, mas é razoável pensar que há um potencial considerável, porém, pouco explorado até o momento. Desde a herança antiga até o início da Era Moderna, o pensamento político internacionalista se mostrou intrinsecamente filosófico e religioso em suas fundações. Qualquer noção sobre o ‘internacional’ preservará algo dessas raízes profundas. Embora isso tenha ocorrido de diferentes formas ao longo do tempo, nada indica que nos desvencilhamos por completo dessa dimensão fundamental da teorização. Pode ser que todo o pensamento contemporâneo sobre o ‘internacional’ compartilhe um só conjunto humanista de motivos básicos e que pressuponha uma certa neutralidade e autonomia do raciocínio teórico. Essa é uma questão que ainda deve ser respondida. Contudo, se for esse o caso, é nesse pressuposto que se encontrará a inclinação do pensamento contemporâneo a uma Origem.

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