OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
UMA RELEITURA CRÍTICA DO CONSENSO EM TORNO
DO “SISTEMA VESTEFALIANO”
Luís Moita
Professor Catedrático e Director do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, Director do OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores
e de JANUS.NET,
Foi
Resumo
A Guerra dos 30 anos que devastou a Europa entre 1618 e 1648 foi um conflito complexo onde se misturaram dimensões religiosas, interesses das potências da época, rivalidades dinásticas e rebeliões dos príncipes contra o Imperador do Sacro Império Romano- Germânico. A Paz de Vestefália, que lhe pôs termo, é consensualmente entendida como um marco decisivo na história das relações internacionais e a generalidade dos autores situa aí a origem do moderno sistema de
Palavras chave:
Paz de Vestefália, soberania, território, sistema vestefaliano,
Como citar este artigo
Moita, Luís (2012). "Uma releitura crítica do consenso em torno do «sistema vestefaliano»". JANUS.NET
Artigo recebido em 25 de Junho de 2012; aceite para publicação em 5 de Novembro de 2012
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
UMA RELEITURA CRÍTICA DO CONSENSO EM TORNO
DO “SISTEMA VESTEFALIANO”
Luís Moita1
Quem percorre a bibliografia especializada dos estudos de Relações Internacionais, logo se familiariza com uma convicção generalizada: a de que os Tratados de Vestefália de 1648 teriam assinalado a origem do moderno sistema de
Na literatura da especialidade facilmente encontramos afirmações enfáticas como esta: “Em 1648, os artífices da paz de Vestefália estavam longe de imaginar que acabavam de criar uma nova ordem mundial”2, ou como esta outra: “A Paz de Westfália conquistou o estatuto de momento fundador do actual sistema político de Estados soberanos”3, ou ainda: “A Paz de Vestefália, para o melhor e para o pior, assinala o fim de uma época e o início de outra. Ela representa o majestoso portal que leva do velho para o novo mundo”4.
De maneira menos simplificada, alguns autores expõem com inteligência a complexidade das dimensões presentes na representação do fenómeno “Vestefália” e a multiplicidade de significados que ele encerra. Um bom exemplo dessa abordagem é esta página do grande jurista
“O termo “Vestefália” é usado para representar um acontecimento, uma ideia, um processo e uma lista normativa. Como acontecimento, Vestefália
1Este texto faz parte de um projecto de investigação desenvolvido no quadro do OBSERVARE (Observatório de Relações Exteriores), da Universidade Autónoma de Lisboa. Um agradecimento especial é devido aos colegas que o leram e o melhoraram com as suas sugestões e encorajamentos, designadamente António Hespanha, Brígida Brito, José Subtil e Luís Tomé da UAL, bem como José Manuel Pureza da Universidade de Coimbra, Giusepppe Ammendola da New York University e Reginaldo Mattar Nasser da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2Arnaud Blin, 1648, La Paix de Westphalie ou la naissance de l’Europa politique moderne, Bruxelles: Éditions Complexe, 2006, p. 166.
3João Marques de Almeida. “A paz de Westfália, a história do sistema de Estados modernos e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional, vol. 2, n.º 18
4Leo Gross. “The Peace of Wesphalia,
18
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
mundial que, com algumas alterações, se mantém até hoje. Como ideia, Vestefália
Por mais respeitáveis e mais fundamentados que sejam estes pontos de vista, a verdade é que eles se colocam no interior de um vasto consenso formado entre os estudiosos de Relações Internacionais. Temos porém a convicção de que semelhante consenso6 é, pelo menos, discutível, podendo mesmo
A Guerra dos 30 anos
A Guerra dos 30 anos, que devastou a Europa central entre 1618 e 1648 (basta ver que grande parte da população alemã terá sido sacrificada), foi um conflito de grande envergadura e de natureza compósita. Foi simultaneamente uma guerra religiosa, um confronto entre as potências da época, um choque entre interesses dinásticos e uma
5Richard Falk (2002). “Revisiting Westphalia, Discovering
6São tantas as expressões deste consenso que se torna supérfluo
7A expressão é do académico brasileiro Lucas Freire, professor na Universidade inglesa de Exeter, que em 2008 proferiu uma conferência em Belo Horizonte sobre “O Impacto de Westphalia na Montagem de uma
Nova Ordem na Política Mundial”, disponível em http://exeter.academia.edu/lucasfreire/Papers/196168/O_Impacto_de_Westphalia_na_Montagem_de_um a_Nova_Ordem_na_Politica_Mundial, consultada em 11/12/2011 (com autorização expressa do autor para o citar).
19
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
rebelião dos príncipes alemães contra o Imperador do Sacro Império Romano- Germânico (constituindo uma espécie de guerra civil no interior do espaço germânico). Estas dimensões
Antes de mais,
Esta última referência permite fazer a transição para o ponto seguinte: a Guerra dos 30 anos não foi apenas uma guerra de religião, foi também um confronto entre as potências da época. A entrada da Suécia no conflito
8Nesta breve síntese não cabem pormenores sobre a evolução do conflito, como seja a distinção entre os vários períodos que se sucedem: período
20
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
alcançado e que a França saiu reforçada do conflito ao ponto de se transformar na nação dominante da época, também graças ao grande desenvolvimento interno promovido pelo mercantilismo de Colbert no reinado de Luís XIV. Em síntese, portanto, a Guerra dos 30 anos significou um afrontamento entre as principais potências europeias do século XVII, no quadro das numerosas convulsões a afrontamentos que entre elas tiveram lugar nesse período da transição do séc. XVI para o XVII: basta recordar o cerco dos turcos a Viena em 1529 e as guerras de décadas contra o Império otomano, ou a guerra da Espanha na Flandres (entre 1560 e 1648, dita Guerra dos 80 anos), ou a guerra da França contra a Espanha (que só terminou em 1659 com o Tratado dos Pirenéus).
Mapa 1 – O Sacro Império
Neste afrontamento, as rivalidades dinásticas tiveram um peso significativo. Os interesses das Casas reinantes das monarquias europeias eram tradicionalmente geridos por uma política de matrimónios que materializavam alianças, mas com frequência entravam em rota de colisão. Em pleno século XVII a principal hostilidade partiu da poderosa dinastia dos Bourbons que governava a França desde o séc. XVI, com Henrique IV, contra a famosa dinastia dos Habsburgos, a Casa de Áustria10. Esta, que haveria de mais tarde ocupar o trono do Império
9Fonte:
10Sobre os Habsburgos escreve Koenigsberger: “Já no século XV o imperador Habsburgo Frederico I
adoptou o lema AEIOU, Austria est imperare orbi universo (Alles Erdreich ist Österreich untertan: todo o
orbe está submetido a Áustria)” - H.G. Koenigsberger “Marte y Venus: Guerra y relaciones internacionales de la Casa de Áustria” Revista Pedralbes, 19 (1999),
21
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
imperador do Sacro Império. Deixa como herança o império a seu irmão Fernando I e a Espanha a seu filho Filipe II.
Mapa 2 – Os domínios dos Habsburgos11
Quando a Guerra dos 30 anos começa em 1618, é contra este Imperador que se ergue a rebelião dos príncipes do espaço germânico. O Sacro Império
A Paz de Vestefália
Esta sintética recordação dos principais factos da Guerra dos 30 anos e dos vários níveis de conflitos que nela se sobrepuseram,
11Fonte:
22
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Tratados de Vestefália, o que faremos com recurso a diversas fontes,
Como é bem sabido, a Paz de Vestefália17 foi consagrada por dois Tratados assinados em simultâneo em 24 de Outubro de 1648, um deles em Münster (com 120 parágrafos) e o outro em Osnabrück (organizado em 17 capítulos). Em ambos, um dos signatários
éo Imperador do Sacro Império
Logicamente, os Tratados – que beneficiaram da mediação da Sereníssima República de Veneza – decidiram o fim da guerra pondo termo ao conflito religioso19. Ordenaram a cessação das hostilidades com precisas instruções às chefias militares, decretaram uma amnistia geral de todas as anteriores infracções e perturbações, regularam as restituições e a redistribuição dos bens materiais em conformidade com as novas partilhas de poder e proclamaram solenemente o estabelecimento de “uma paz cristã,
12O texto original em latim, bem como numerosas traduções antigas dos Tratados, estão disponíveis em Die Westfälischen Friedensverträge vom 24. Oktober 1648. Texte und Übersetzungen (Acta Pacis Westphalicae. Supplementa electronica,1):
13Tome premier, Bruxelles: Meline, Cans et Compagnie. Esta edição de 1837 é remodelada e completada por F. Schoell, Embaixador da Prússia em França, que no longo prefácio justifica as alterações a que procedeu. Disponível em http://www.google.pt/books?id=k0KtAAAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt- PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, consultada em 23/4/2011.
14Paris, Imprimerie de la Harpe, 1806, disponível em http://books.google.pt/books?id=rWEPAAAAQAAJ&pg=PP7&dq=ancillon+tableau+tome+quatrième&hl=pt
15Disponível em http://www.raco.cat/index.php/Pedralbes/issue/view/8335/showToc., consultada em 27/5/2011.
16Os leitores de alemão podem encontrar uma enorme riqueza de informação no portal “Wesfälische
Geschichte”emhttp://www.lwl.org/westfaelische- geschichte/portal/Internet/input_felder/langDatensatz_ebene4.php?urlID=461&url_tabelle=tab_websegm ente#bd1, consultado em 17/2/2012.
17Para uma breve síntese em português, ver Hermínio Esteves e Nancy Gomes “O Congresso de Vestefália”, JANUS 2008, p.
18Dado o período excepcionalmente prolongado das negociações, os principais intervenientes que iniciaram o processo negocial morreram antes de verem o fruto do acordo e só os seus descendentes foram signatários dos Tratados: pelo Império, Fernando II e Fernando III; pela França, Luís XIII e Luís XIV; pela Suécia, Gustavo Adolfo e a rainha Cristina.
19Embora a paz tenha sido precária. Basta ver que em 1685 Luís XIV de França revogou o édito de Nantes pelo qual Henrique IV em 1598 assegurava a tolerância para com os protestantes. Não só as perseguições religiosas prosseguiram, como o século seguinte é marcado por importantes conflitos, desde as guerras de sucessão na Europa até às de colonização de outros continentes.
23
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
universal e perpétua”20. Ficava doravante defendida a liberdade de consciência em matéria religiosa e ninguém poderia ser perseguido pelas suas convicções. Cada um dos príncipes optaria livremente entre a tradicional fé cristã e a “Confissão de Augsburgo”
Regulado nestes termos o essencial da questão religiosa, os Tratados de Vestefália contêm um grande número de disposições relativas aos arranjos territoriais ditados pela correlação de forças resultante do prolongado conflito. Aí assistimos ao habitual jogo das potências: a guerra tinha então como consequência natural a expansão geográfica do vencedor e a retracção territorial do vencido. Assim, o Imperador e a Casa de Áustria cedem à França um certo número de bispados (Metz, Toul, Verdun...), de cidades livres, burgos, castelos, minas, pastagens... e de regiões como a Alsácia. Pelo seu lado, a rainha da Suécia obteve significativos ganhos territoriais, com relevo para uma parte da Pomerânia, mas também a cidade e o porto de Wismar, o arcebispado de Bremen e a cidade de Wilshofen e assim por diante. Como se vê, tudo em detrimento do Sacro Império. Nestes arranjos geopolíticos, adquire também relevo o reconhecimento formal da independência de dois importantes territórios: as Províncias Unidas da Flandres (a Holanda), já emancipadas do domínio espanhol, e a Confederação Suíça, representada pela cidade de Basileia em nome dos restantes cantões23.
Como vimos, esta correlação de forças das potências
Mas não foi este o único aspecto da fragilização do papel do Imperador Habsburgo. A verdade é que o antigo Sacro Império
20Afirmação consagrada nos primeiros artigos de ambos os Tratados.
21Esta expressão já era usada em situações antecedentes e não é retomada literalmente pelos Tratados de Vestefália. Muitas vezes é deficientemente traduzida por “tal a região, tal a religião”, valorizando a pertença territorial, mas o seu verdadeiro significado é o de “tal o príncipe, tal a religião”.
22Embora as cidades imperiais possam manter as duas religiões – ver art. V, 11 do Tratado de Osnabrück. Este mesmo Tratado pormenoriza as garantias quanto à possibilidade de se deslocar quem não concorda com a religião do príncipe: é assegurada aos “súbditos dos Estados que não sejam da religião do senhor do território a faculdade de mudar de residência” (art. V, 12), gozando desta possibilidade por um período não inferior a cinco anos.
23Mas sobre isto, ver as reservas quanto à “independência” da Holanda e da Confederação Helvética formuladas por Andreas Osiander em “Sovereignty, International Relations,and the Westphalian Myth”, International Organization 55, 2, Spring 2001,
24
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
sentido, em Vestefália
Segundo a opinião corrente, a importância histórica da Paz de Vestefália estaria justamente nesta transição: o ocaso definitivo da antiga ordem europeia (medieval) e a emergência de uma nova ordem (moderna) baseada não já na nebulosa de um pretenso reino universal cristão – a República Cristã
Uma releitura crítica
Sem dúvida, os Tratados de Münster e Osnabrück assinalaram um momento importante da história europeia, por todas as razões anteriormente recordadas. O Congresso de Vestefália foi uma longa negociação de três anos e significou uma espécie de conferência
Todavia, não nos parece que o conjunto destas alterações geopolíticas na cena europeia autorize que se fale de “sistema vestefaliano”,
A ideia de
Muitos historiadores fazem remontar a este período a consolidação do
“Entre os finais do século XV e do século XVII a maior parte dos Estados europeus testemunhou uma centralização da autoridade militar e política, habitualmente sob um monarca (mas nalguns casos sob um príncipe local ou um oligarca mercantil), acompanhada por um aumento
24Ver Jacques Le Goff (1983). A civilização do Ocidente Medieval, volume II, Lisboa: Editorial Estampa,
trad. Manuel Ruas, p. 19 e ss: “a Cristandade é bicéfala. Tem duas cabeças: o papa e o imperador. Mas a história medieval é mais feita das suas desinteligências e das suas lutas que dos seus entendimentos”; e mais à frente: “O bicefalismo da Cristandade medieval é menos o bicefalismo do papa e do imperador que o do papa e do rei
25Não é possível ignorar os numerosos debates e controvérsias em torno da ideia da “modernidade” do Estado. Sobre isso, pode
25
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
dos poderes e métodos de imposição fiscal do Estado e executada por uma burocracia muito mais elaborada. (...) Houve várias causas para esta evolução da
Quando refere “filósofos e escritores”, certamente Kennedy está a sugerir nomes como Maquiavel, aquele que provavelmente terá sido o primeiro a usar – ainda no início do séc. XVI – o termo “Estado”27 na acepção moderna da palavra, ou Grotius que em 1625
–em plena Guerra dos 30 anos – publica a sua obra magistral O direito da guerra e da paz, onde identifica os Estados como sujeitos de uma ordem jurídica, lançando os fundamentos do direito internacional (ius gentium)28. Mais tarde, já depois da Paz de Vestefália, em 1651, o filósofo inglês Thomas Hobbes desenvolve uma elaborada teoria do Estado no seu célebre Leviatã29.
Mas os Tratados de Münster e Osnabrück terão inaugurado o
26Kennedy (1988), p. 99.
27Logo na primeira linha de O Príncipe, Lisboa: Publicações
28Consultada na sua edição francesa (1999), Le droit de la guerre et de la paix, Paris : Presses
Universitaires de France, trad. P.
29Editado em português pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, com tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa (1995).
30É seguramente o caso português: “Portugal não teve origem (…) numa formação étnica, mas numa realidade
31Todavia, é de ter em conta a opinião de Raymond Aron: “A neutralidade ou laicidade do Estado, na
Europa, foi uma consequência das Guerras de Religião” – Paix et guerre entre les nations, Paris: Calman-
Lévy (1984), p. 374. No mesmo sentido, ver: “O Renascimento, o declínio da Igreja de Roma, o
desenvolvimento das ideias humanistas preparam a laicização dos sentimentos nacionais”: Jacques
26
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Estado moderno. Os Tratados em causa poderão ter minado raízes seculares da sacralização do poder político, contudo o seu efeito mais imediato não é o laicismo das instituições, mas precisamente o seu contrário, a saber, a confessionalização da pertença a uma comunidade política, na base do princípio já citado cuius regio, eius religio.
Aliás, a observação do mapa político da Europa deste período permite conclusões interessantes. A Ocidente e a Norte, vemos uma série de reinos, alguns deles razoavelmente consolidados na sua identidade e na sua delimitação territorial, como é o caso dos reinos da Escócia e da Inglaterra, da França e das Províncias Unidas, de Portugal e da Espanha, da Dinamarca e da Suécia. A Leste, além do reino polaco- lituano, predominam os impérios, com relevo para o russo e o
Mapa 3 – A Europa em 160032
Huntzinger (1991). Introdução às Relações Internacionais, Lisboa: PE Edições, trad. Carlos Aboim de Brito, p. 87.
32Fonte: http://perso.numericable.fr/alhouot/alain.houot/Hist/ancien_R/ancienr7.html, consultada em 28/2/2012.
27
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Mapa 4 – A Europa em 1660 33
Com efeito, a relativa emancipação pelos príncipes da tutela do imperador, ao fragmentar o espaço político, veio atrasar dois séculos a emergência do Estado alemão34. Em boa verdade, precisamos de esperar até aos meados do séc. XIX para assistirmos à unificação de dois países europeus de primeira grandeza, a Itália em
33Fonte: http://www.zum.de/whkmla/region/xeurope1718.html, consultada em 28/2/2012.
34A historiografia alemã tem tendência para salientar este facto, ao contrário da francesa que o omite com facilidade. O estudo dessa historiografia permite esta conclusão: “A partir do início do séc. XIX, a percepção contestatária da paz
54,tambémdisponívelem http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/criti_12907839_2000_num_9_1_1621, consultada em 6/3/2012. No mesmo sentido: “A fragmentação alemã pulverizou o poder dos Habsburgos de Viena e possibilitou que a dinastia dos Hohenzollern, fundada na Prússia e no Brandeburgo, ao receber os territórios do norte do Sacro Império, desse início à sua política de grande rivalidade com ‘os áustrias’. Essa estratégia dos Hohenzollern teve um dos pontos mais significativos na constituição da União Aduaneira Alemã (Zollverein), por iniciativa prussiana, no século XIX” – Marcílio Toscano Franca Filho, “Historia y razón del paradigma westfaliano”, Revista de Estudios Políticos, 131, Madrid, enero/marzo 2006,
35“Os nacionalistas alemães argumentaram que o tratado de paz impediu o estabelecimento de uma unidade alemã e condenou a Alemanha a dois séculos de impotência, em benefício da França” – J.H. Elliott, “Europa después da la Paz de Westfalia”, Revista Pedralbes, 19 (1999),
28
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
O que se consolida em Vestefália é, provavelmente, não tanto o
“(…) o Estado muda de forma: é o nascimento do Estado principesco. As
Esta possível evolução do Estado principesco para o moderno
A ideia de soberania e de jurisdição territorial
Dificilmente se compreende a frequência com que os manuais de Relações Internacionais referenciam aos Tratados de Münster e Osnabrück a suposta origem do Estado soberano. A explicação para essa frequência poderá estar no facto de, como vimos, muitas unidades políticas da Europa central adquirirem por esta altura uma relativa autonomia em relação à tutela imperial da Casa de Áustria. De algum modo, a proliferação de principados autónomos37 significou o alastramento de poderes dotados de algumas prerrogativas de soberania, parcialmente libertos dos poderes medievais supremos, do papa e do imperador.
Tais prerrogativas vêm explicitadas nos Tratados de Münster e de Osnabrück:
“Que eles gozem sem contradição do direito de sufrágio em todas as deliberações relativas aos assuntos do Império; sobretudo quando se tratar de fazer ou interpretar leis, declarar guerra, impor um tributo, ordenar recrutamento e instalação de soldados, construir para o público novas fortalezas nas terras dos Estados ou reforçar as antigas guarnições; (…) que sobretudo cada Estado do Império goze livre e perpetuamente do direito de fazer entre si, e com estrangeiros, alianças que visem a manutenção e a segurança de cada um, na condição
Westfalia como lieu de mémoire en Alemania y Europa”, Revista Pedralbes, 19 (1999),
36O. Cit., p. 87.
37Embora formalmente continuassem a “prestar obediência e fidelidade a sua Majestade Imperial” (§ 22 do Tratado de Münster = art. IV, 14 do Tratado de Osnabrück).
29
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
todavia de que estas alianças não sejam contra o Imperador e o Império, nem contra a paz pública, nem principalmente contra esta transacção, e que sejam feitas sem prejuízo, em todas as coisas, do juramento que liga cada um ao Imperador e ao Império”.38
A capacidade legislativa, a cobrança de impostos, a mobilização militar e a autoridade para fazer a guerra – são outras tantas aptidões do poder soberano. Por fim, a direito a estabelecer alianças é mais uma prerrogativa, carregada de simbolismo, da relativa soberania dos príncipes. Eis quanto basta para numerosos autores considerarem a Paz de Vestefália como a génese do Estado soberano.
Mas esta conclusão é provavelmente precipitada e de deficiente fundamentação. O conceito e a prática da soberania é reconhecidamente anterior a Vestefália39. Desde os finais da Idade Média na Europa circulava a expressão rex in regno suo est imperator:
“A partir do início do séc. XII, os canonistas ingleses e espanhóis, tal como os franceses, negam que os seus reis sejam súbditos dos imperadores e estejam submetidos às leis imperiais. (...) Em 1208, um canonista declarou que ‘todo o rei tem no seu reino os mesmos poderes que o imperador do império’”40.
E é bem conhecida a influência do pensamento de Jean Bodin na teorização do conceito de soberania, designadamente na sua obra de 1576 Les six livres de la République41, setenta anos anterior ao Congresso de Vestefália. Também já remonta a esse mesmo séc. XVI a tese de Maquiavel acerca da soberania do príncipe:
“Quando Maquiavel publicou O Príncipe em 1527, fez a primeira análise global da sociedade internacional (...). Começa por recordar que os principados não reconhecem lei ou poder que lhe sejam superiores,
38§ 63 do Tratado de Münster = Art. VIII, 2 do Tratado de Osnabrück: “Gaudeant sine contradictione iure suffragii in omnibus deliberationibus super negociis Imperii, praesertim ubi leges ferendae vel interpretandae, bellum decernendum, tributa indicenda, delectus aut hospitationes militum instituendae, nova munimenta intra statuum ditiones exstruenda nomine publico veterave firmanda praesidiis nec non ubi pax aut foedera facienda aliave eiusmodi negotia peragenda fuerint. (…) Cumprimis vero ius faciendi inter se et cum exteris foedera pro sua cuiusque conservatione ac securitate singulis statibus perpetuo liberum esto, ita tamen, ne eiusmodi foedera sint contra Imperatorem et Imperium pacemque eius publicam vel hanc imprimis transactionem fiantque salvo per omnia iuramento, quo quisque Imperatori et Imperio obstrictus est”.
39Ver o profundo estudo de Dieter Wyduckel, “La Soberanía en la Historia de la Dogmática Alemana”, trad.
do alemão para o espanhol, disponível em http://www.unioviedo.es/constitucional/fundamentos/primero/pdf/wyducke.pdf, consultado em 2/1/2012: “As origens da soberania como uma ideia juridicamente relevante podem ser reconduzidas a três raízes: uma de direito romano comum, outra de direito canónico eclesiástico e, finalmente, outra de direito monárquico e do Estado” (p. 2).
40Jacques Le Goff, o.cit. p. 21.
41O
consultada em 2/3/2012. Para uma leitura mais fácil, ver em http://classiques.uqac.ca/classiques/bodin_jean/six_livres_republique/six_livres_republique.html, consultada em 2/3/2012.
30
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
declarando assim a inutilidade da herança cultural da República Cristã medieval”42.
Acresce que o modelo de soberania então vigente revestia a forma de absolutismo real ou principesco43, longe portanto da configuração política do futuro “Estado moderno”, onde a soberania já não será detida pelo monarca, mas antes pela Nação concebida como um colectivo que delega nos seus representantes o direito a governar (mais à frente retomaremos este tema).
Poderá
Mais ainda, é discutível que se consagre nestes Tratados a pura e simples soberania dos príncipes. O historiador alemão da Universidade de Marburg, Klaus Malettke, explicita com grande rigor em que consiste a nova prerrogativa dos Estados do Império mas também quais os limites da sua autoridade, começando aliás por citar E. Böckenförde:
“«Quando o direito a estabelecer alianças se vem juntar à superioridade territorial, daí não resulta apenas um direito régio suplementar, mas um verdadeiro poder exterior. (…) Os dois elementos
42Adriano Moreira (1997). Teoria das Relações Internacionais, 2.ª edição, Coimbra: Almedina p. 256.
43Sobre a natureza e a evolução do absolutismo, vale a pena consultar a análise presente em http://www.wikiberal.org/wiki/Absolutisme, consultada em 2/3/2012.
44Ver Tucídides (1987). História da Guerra do Peloponeso, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, trad. de Mário da Gama Kury.
45Ver, por exemplo, o que escreve Stéphane Beaulac em “The Westphalian Legal Orthodoxy – Myth or Reality?”, Journal of the History of International Law, 2:
46Klaus Malettke, «Les traités de paix de Westphalie et l'organisation politique du Saint Empire romain germanique»,
31
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Uma nova precisão complementar é trazida pela historiadora francesa da Sorbonne, Claire Gantet, a qual,
“Estudos recentes vieram mostrar, por um lado, que a palavra escolhida para «soberania» pela historiografia nacionalista correspondia nos tratados aos termos superioritas/Landeshoheit, que designavam uma ‘qualidade específica de governo’ num território sem afectar de modo algum a lealdade para com o Império e o Imperador; e, por outro lado, que a cláusula que atribuía aos Estados do Império a possibilidade de estabelecer alianças não conduziu ao desmembramento da Alemanha: a restrição aposta a este direito – as alianças não deveriam ser dirigidas contra o Império ou contra o Imperador – tiveram um alcance considerável”47.
Por tudo isto parece razoavelmente infundada a tese de referenciar a Vestefália a origem do Estado soberano48.
A anterior citação de Klaus Malettke aborda uma dimensão importante, já que uma outra concepção corrente situa na Paz de Vestefália a origem do “Estado territorializado”. O autor refere a “superioridade territorial”, o jus territoriale49, mas acrescenta que estas prescrições
“não revestem certamente um sentido constitutivo, na medida em que não introduzem qualquer novidade no Império. Mas ao estipular oficialmente ‘o poder territorial dos Estados do Império’ elas preveniam definitivamente todas as tendências favoráveis à transformação do Império num sistema monárquico”50.
A nosso ver, tem havido frequente desfocagem na presunção de que os Tratados de Münster e Osnabrück significariam um ponto de viragem na territorialização das unidades políticas. Existiu certamente, como já visto, uma demarcação territorial das pertenças religiosas definidas pelos príncipes, mas Vestefália não “inventou” o território como espaço de referenciação política, nem criou a fronteira como delimitação geográfica do exercício do poder. Um dos autores que tem trabalhado sobre este tema,
consultado em 6/3/2012. A citação é de Ernst W. Böckenförde, «Der Westfälische Frieden. Das Bündnisrecht der Reichsstände», Der Staat, nº 8, 1969,
47O.cit. p.
48Para uma melhor compreensão deste tema da soberania, ver T.J. Biersteker e C. Weber (1996) State sovereignty as social construct, Cambridge: University Press. Logo na p. 2 pode
49Ver Art. VIII do Tratado de Osnabrück.
50Malettke, o.cit., pp.
32
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Bertrand Badie, afirma enfaticamente que a “bela época da territorialidade terá provavelmente atingido o seu apogeu quando se concluía o tratado de Vestefália”51, mas antes tinha escrito de forma mais cautelosa:
“Ninguém ousaria pretender que nos meados do séc. XVII a paz de Vestefália tivesse inaugurado uma ordem territorial rigorosa que de seguida não sofresse nem contestação nem inversão. A afirmação seria ingénua, tanto mais quanto lógicas imperiais e lógico
Em boa verdade, nunca se clarifica suficientemente o significado da suposta “concepção vestefaliana do território”. Sabemos que se refez então o desenho geopolítico da Europa, sabemos igualmente que foi meticulosa a partilha territorial que passou a demarcar a confissão dos príncipes, como sabemos finalmente que foi reconhecido aos súbditos o direito de emigrar para se identificar com a sua comunidade de crentes. Mas nada disso legitima que se atribua à paz de 1648 a nascença do Estado cuja soberania se estende por determinado território53.
A ideia de “nova ordem” e de “sistema vestefaliano”
Retomemos o nosso ponto de partida que referia o consenso estabelecido entre a generalidade dos especialistas em relações internacionais, segundo o qual a Paz de Vestefália teria dado origem ao Estado nacional, soberano, laico, territorializado, numa palavra, ao Estado moderno. A ser assim, com razão esse evento teria inaugurado uma nova ordem internacional. Fomos questionando os fundamentos destas convicções, argumentando que em meados do século XVII estamos longe do Estado moderno. Embora seja assinalável a transição em contraponto da sociedade medieval, só mais tarde, como veremos, o
51B. Badie (1995). La fin des territoires, Paris: Fayard, p. 45.
52Ib. p. 13.
53Ver no importante artigo de Benno Teschke, “Theorizing the Westphalian System of States: International
Relations from Absolutism to Capitalism”, European Journal of International Relations 2002 Vol. 8(1): 5-
48, a abordagem a esta questão: “Eu sugiro que a propriedade monárquica impôs uma lógica territorial bastante diferente na configuração espacial da geopolítica do início da era moderna. Primeiro, a territorialidade continuou a ser uma série de práticas dinásticas privadas de acumulação territorial e de circulação, frustrando uma identidade genérica ou a imutabilidade entre estado e território. Segundo, dada a natureza imperfeita da soberania absolutista e a sobrevivência de práticas feudais e patrimoniais, a territorialidade continuou a ser
33
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
terras), absolutamente distinta da futura legitimidade do moderno
Apesar de todas estas contraindicações, muitos autores reafirmam a novidade trazida pelo chamado “sistema vestefaliano”, um sistema que seria tão consistente que teria subsistido quase até tempos recentes55. As características desse “sistema” supostamente homogéneo são fáceis de inventariar através das análises correntes: seria um sistema estatocêntrico, formado – como temos repetido – por Estados nacionais soberanos, iguais entre si, resguardados pelo princípio da não ingerência, com administrações centralizadas e instituições secularizadas; as relações entre estes actores estatais seguiam o princípio do equilíbrio do poder e seriam regidas pelo direito internacional; por fim, o sistema seria eurocêntrico, deixando de fora continentes inteiros sujeitos à colonização.
Em grande parte, estes tópicos já foram submetidos a crítica e acabámos de recapitular o fundamento duvidoso de muitas destas dimensões. Na impossibilidade de explorar aqui todas as vertentes deste possível “sistema”, vamos
Antes de mais, a ideia de “sistema” internacional merece um comentário breve. É sabido que as correntes neorrealistas privilegiam a análise sistémica das relações internacionais e que os estudiosos desta área científica se reportam com frequência ao conceito de sistema,
54Basta ver a violenta reacção do Papa Inocêncio X aos Tratados de Vestefália, tornada pública em Roma a 20 de Novembro de 1648: os acordos representaram uma “ofensa gravíssima à religião católica, à devoção divina, à Sé Apostólica e romana e às outras igrejas menores e às ordens eclesiásticas”, por isso “são sem valor, nulos, injustos e como tais devem ser por todos considerados”. Texto italiano disponível na íntegra em http://it.wikipedia.org/wiki/Pace_di_Vestfalia, consultado em 20/3/2012.
55Ou mesmo até aos nossos dias. Ver, por exemplo, afirmações como esta: “O surgimento nos finais do século XX de um sistema internacional global pela primeira vez na história, em substituição do sistema eurocêntrico que vigorou desde o Tratado de Vestefália de 1648 até ao século XX (….)” – J.E. Dougherty, R.L. Pfaltzgraff, Jr. (2003). Relações Internacionais – As teorias em confronto, Lisboa: Gradiva, trad. M.F. Ferreira, M.S. Ferro, M.J. Ferreira, p. 141. De modo igualmente sintomático,
56 Para uma análise comparativa do sistema de Filadélfia ver Daniel Deudney “Binding sovereigns: authorities, structures and geopolitics in Philadelphian Systems”, in T.J. Biersteker e C. Weber, o.c., pp.
34
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Sistema estatocêntrico?
A nossa convicção, porém, é a de que o ordenamento europeu posterior a Vestefália não corresponde a um sistema homogéneo estatocêntrico. A situação que prevalece desde a segunda metade do século XVII é essencialmente compósita, nela coincidindo Estados nacionais razoavelmente consolidados nessa qualidade, sobrevivências do Sacro Império que manteve muitas das suas estruturas, e centenas de outras unidades políticas gozando de diferentes graus de autonomia. Basta ver a diversidade de designações dessas unidades para entender o que atrás referimos como pulverização do espaço geopolítico europeu: Senhorias, Cidades imperiais, Condados, Baronias, Principados, Ducados, Landgraviatos, Vales imperiais, Reinos, Cidades livres, Arquiducados, Marcas, Abadias, Bispados, Arcebispados, Marquesados e ainda Bailiados, territórios da ordem teutónica submetidos à autoridade de um juiz58.
O já citado historiador alemão da Universidade de Marburg, Klaus Malettke, descreve nestes termos o panorama do espaço germânico da altura:
“O conjunto do Império compreendia nos meados do século XVII bem mais de um milhar de unidades políticas distintas mais ou menos autónomas. Este conjunto agrupava, por um lado, cerca de trezentos Estados ou formações similares, cujos senhores – príncipes eleitores laicos e eclesiásticos, príncipes, condes e abades imperiais, magistrados das cidades livres do Império – possuíam a superioridade territorial nos seus domínios e detinham a dependência imediata do Império, quer dizer gozavam do direito de representação e participação nas Dietas do Império. Por outro lado, incluía igualmente a cavalaria do Império, que não tinha assento nem voto na Dieta do Império, mas dispunha da superioridade territorial nos seus pequenos, ou mesmo microterritórios, senhorias particularmente privilegiadas que ultrapassavam de longe o número de mil”59.
E acrescenta citando R. Vierhaus: “Nesta medida, pode justamente
entre o estabelecimento da União
57Por exemplo, Bertrand Badie, o.cit. p. 42, onde escreve: “Esta soberania vai até ao direito de se federar (jus foederationis)”, aparentemente confundindo o direito de aliança com a possibilidade de uma federação de Estados.
58A única fonte onde conseguimos identificar a lista dos Estados do Sacro Império
em
59O.cit. p. 116.
60Ib. p. 117.
35
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
continuou a funcionar como tribunal do Império garantindo coesão e estabilidade61. Além de que “um exame mais pormenorizado dos poderes governamentais do Imperador põe em evidência uma repartição bipartida. Os direitos de majestade eram exercidos pelo Imperador, seja em comum com os Estados do Império, seja sozinho”62. E estas perspectivas são amplamente corroboradas por estudos de dois especialistas, um deles do canadiano Stéphane Beaulac, em artigo, já atrás citado, no Journal of the History of International Law, em 200063, e outro do alemão Andreas Osiander, que escreveu em 2001 na revista International Organisation64. Sintomaticamente cada um destes artigos, cuja riqueza é impossível de resumir aqui, se refere de modo explícito ao “mito vestefaliano”, desconstruindo, de modo abundantemente documentado, o consenso vigente na literatura da especialidade.
Em suma, após os Tratados de Münster e Osnabrück, existiam na Europa diversas formações políticas, umas vezes separadas, outras sobrepostas, de natureza ora estatal, ora imperial, ora de pequena escala e mesmo sob forma de
Equilíbrio do poder?
Uma outra dimensão recorrentemente atribuída aos tratados de 1648 é a do equilíbrio do poder, o célebre balance of power. Segundo alguns, este é mesmo um dos pilares essenciais da Paz de Vestefália65, sendo que “ainda durante as negociações, o princípio do equilíbrio do poder já havia sido percebido como a regra para a ‘montagem’ procedural das alianças”66.
Não cremos que se possa duvidar deste ponto de vista, já que quase todas as fontes convergem para destacar o seu fundamento histórico. Segundo Ancillon, “esta paz foi um ensaio do sistema de
61Ib. pp. 120 ss.
62Ib. p. 124. Os itálicos são do autor. No final do seu artigo, o historiador, referenciando o pensamento de vários outros autores, conclui na p. 144: “O Império conservou a sua estrutura hierárquica e não se decompôs numa confederação de Estados. (…) Só nos anos
63S. Beaulac, o.cit.
64Andreas Osiander, “Sovereignty, International Relations, and the Westphalian Myth” in International Organization 55, 2, Spring 2001,
65A expressão é de Arnaud Blin em “La paix de Westphalie : le nouvel ordre mondial”, Revista Historia (2006) em
66L. Freire, o. cit., p. 20. Vale a pena chamar a tenção para a ideia de “montagem” do sistema internacional desenvolvida no texto deste autor.
67O.cit.. p. 257.
36
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
“Tal como o Conde Salvius reportou com exaltação aos seus superiores no Congresso a finais de 1646: ‘As pessoas começam a encarar o poder da Suécia como sendo perigoso para o «equilíbrio de poder» (Gleichgewicht). A primeira regra em política é que a segurança de todos depende do equilíbrio dos indivíduos. Quando alguém começa a
Não obstante esta evidência, também aqui, como se vê, se pode questionar a originalidade dos Tratados de Vestefália, já que a prática de impedir a excessiva hegemonia de uma potência através de coligações entre os seus rivais tem antiquíssimas raízes históricas. São inúmeros os antecedentes de situações em que, na ausência de uma “ordem” assegurada por um sistema imperial e anteriormente a qualquer sistema de segurança colectiva, o sistema de equilíbrio do poder visa assegurar a estabilidade do relacionamento entre as potências. Quanto a isso podemos recordar que, já no século XVIII, o conhecido filosofo escocês David Hume escreveu um interessante ensaio integrado num conjunto Essays, Moral, Political, and Literary, sobre o balance of power, onde recorda grande número de episódios que evidenciam este princípio, desde a antiguidade mais remota69.
Mesmo neste domínio se pode colocar alguma dúvida acerca da ligação directa entre a Paz de Vestefália e o princípio do equilíbrio do poder.
68Geoffrey Parker (1988). The Thirty Years' War. New York: Routlege & Kegan Paul Inc. p. 184.
69Textodisponívelem http://www.econlib.org/library/LFBooks/Hume/hmMPL30.html#Part%20II,%20Essay%20VII,%20OF%20 THE%20BALANCE%20OF%20POWER, consultado em 8/3/2012.
70Pela sua riqueza, vale a pena transcrever esta passagem completa: “Desde o século XVIII, a opinião dominante da historiografia era a de que os dois tratados de Vestefália de 24 de Outubro de 1648 entre o Império e a França de um lado e o Império e a Suécia do outro, constituíam o fundamento do sistema e do direito internacional moderno na Europa. Este sistema de Vestefália era, segundo a opinião tradicional, fundado nos princípios da soberania absoluta e da igualdade jurídica dos Estados – sobretudo no plano confessional – bem como na teoria do equilíbrio na Europa, the balance of power. Em consequência, todos os ingredientes essenciais do ius publicum europaeum que se articularia durante o resto do séc. XVII e o séc. XVIII estavam já presentes. Os tratados de Vestefália anunciavam portanto o período de extrema liberdade e da soberania dos Estados.
Mais recentemente, alguns historiadores puseram em causa esta opinião tradicional e chegaram a conclusões discordantes. Em primeiro lugar, o especialista alemão das relações internacionais dos séculos XVII e XVIII, Heinz Duchardt, escreveu em 1989 que o sistema de equilíbrio europeu não emana dos tratados de Vestefália, mas que só emergiu na Europa a partir do fim do séc. XVII quando o forte impulso
37
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
assim admitir que o princípio do balance of power está certamente presente na própria lógica da Guerra dos 30 anos e no reordenamento europeu que dela resultou, sem que isso todavia signifique que tenha existido em rigor um “sistema vestefaliano”, do qual esse princípio fosse uma das componentes originais.
Conclusão
Temos falado de desfocagem para significar o anacronismo presente na tradicional convicção de que os Tratados de Vestefália de 1648 estiveram na origem do moderno sistema de
Existe um debate acerca da origem do sistema internacional de Estados nacionais e a verdade é que alguns autores situam a sua génese em tempos mais recuados72, enquanto outros o fazem remontar ao Congresso de Viena de 1815.
Pela nossa parte, temos preferência pela tese segundo a qual o
da França forçou os outros Estados da Europa ocidental contra a França de Luís XIV
71O.cit., pp.
72Por exemplo: Fábio Pestana Ramos, “O sistema Westfaliano e as relações internacionais na Europa”, Para entender a história... ISSN
73O.cit., p. 281.
38
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
“Eu defendo que o sistema vestefaliano se caracterizava por relações
Se o panorama europeu dos meados do século XVII era assim dominado por formações políticas assentes numa estrutura
Não é possível desenvolver aqui esse interessante tema, mas em 2009 tivemos ocasião de apresentar uma comunicação ao Congresso da Internationale Gesellschaft Hegel- Marx für dialektisches Denken (Lisboa,
Por outro lado, a transição para a modernidade do
74O. cit., p. 6.
75Luís Moita, “Espaços económicos e configurações políticas”, D. Losurdo, J.
39
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Daqui se infere que o moderno sistema de
Uma abordagem deste tipo é necessariamente crítica do consenso em torno da paz de Vestefália como momento fundador da moderna ordem internacional. Estamos pois inclinados a fazer nossa a conclusão de Lucas Freire: “Embora fique claro que Westphalia não foi completamente insignificante, também não se pode elevar a série de eventos ao status de marco inicial do mundo político moderno”76.
Por todas as razões aduzidas, julgamos aconselhável evitar as expressões “Estado vestefaliano” ou “sistema vestefaliano”.
Referências Bibliográficas
Obras antigas
Ancillon, M.F. Tableau des révolutions du système politique en Europe depuis la fin du quinzième siècle de Paris, Imprimerie de la Harpe, (1806), disponível em http://books.google.pt/books?id=rWEPAAAAQAAJ&pg=PP7&dq=ancillon+tableau+tome
Bodin, Jean. Les six livres de la République,
Grotius, Hugo. Le droit de la guerre et de la paix, Paris : Presses Universitaires de France, (1999), trad. P.
Hobbes, Thomas. Leviatã, Lisboa: Imprensa
Hume, David. Essays, Moral, Political, and Literary , disponível em http://www.econlib.org/library/LFBooks/Hume/hmMPL30.html#Part%20II,%20Essay% 20VII,%20OF%20THE%20BALANCE%20OF%20POWER, consultado em 8/3/2012.
Koch,
disponívelem http://www.google.pt/books?id=k0KtAAAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt- PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, consultada em 23/4/2011.
(1993), Nações e nacionalismo, Lisboa: Gradiva, para quem “As raízes do nacionalismo mergulham efectivamente, de forma muito profunda, nos requisitos estruturais distintivos da sociedade industrial” (p. 60).
76O. cit., p. 22.
40
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Maquiavel, Niccolò. O Príncipe, Lisboa: Publicações
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília: Editora da Universidade de Brasília (1987)., trad. Mário da Gama Kury.
Artigos e livros
Almeida, João Marques de (1998). “A paz de Westfália, a história do sistema de Estados modernos e a teoria das relações internacionais”, Política Internacional, vol. 2, n.º 18
Badie, Bertrand (1995). La fin des territoires, Paris: Fayard.
Beaulac, Stéphane (2000). “The Westphalian Legal Orthodoxy – Myth or Reality?”, Journal of the History of International Law, 2:
Biersteker, T.J. e Weber C. (1996), State sovereignty as social construct, Cambridge: University Press.
Blin, Arnaud. (2006). 1648, La Paix de Westphalie ou la naissance de l’Europe politique moderne, Bruxelles: Éditions Complexe.
Blin, Arnaud (2006). “La paix de Westphalie : le nouvel ordre mondial”, Revista Historia (2006) em
Deudney, Daniel (1996). “Binding sovereigns: authorities, structures and geopolitics in Phhiladelphian Systems”, in T.J. Biersteker e C. Weber, o.c., pp.
Dougherty, J.E. e Pfaltzgraff, Jr R.L. (2003). Relações Internacionais – As teorias em confronto, Lisboa: Gradiva, trad. M.F. Ferreira, M.S. Ferro, M.J. Ferreira.
Duchhardt, Heinz (1999). “La paz de Westfalia como lieu de mémoire en Alemania y Europa”, Revista Pedralbes, 19 (1999),
Elliott, J.H. (1999). “Europa después da la Paz de Westfalia”, Revista Pedralbes, 19 (1999),
Esteves, Hermínio e Gomes, Nancy (2008). “O Congresso de Vestefália”, JANUS 2008, p.
Falk, Richard (2002). “Revisiting Westphalia, Discovering
Franca Filho, Marcílio Toscano (2006). “Historia y razón del paradigma westfaliano”, Revista de Estudios Políticos, 131, Madrid, enero/marzo 2006,
Frasier, Nancy (2009). Scales of Justice, New York: Columbia University Press.
Freire, Lucas. “O Impacto de Westphalia na Montagem de uma Nova Ordem na
PolíticaMundial”,disponívelem http://exeter.academia.edu/lucasfreire/Papers/196168/O_Impacto_de_Westphalia_na_ Montagem_de_uma_Nova_Ordem_na_Politica_Mundial, consultada em 11/12/2011.
Gantet, Claire (2000). “Le ‘tournant westphalien’”, Critique Internationale, 2000, n.º 9,
também |
disponível |
em |
|
|
|
41 |
|
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/criti_12907839_2000_num_9 _1_1621, consultada em 6/3/2012.
Gellner, E. (1993), Nações e nacionalismo, Lisboa: Gradiva trad. Inês Vaz Pinto.
Genet,
Gross, Leo (1948). “The Peace of Wesphalia,
Hespanha, António M. (1999). “O Estado Moderno na recente historiografia portuguesa” in A génese do Estado Moderno no Portugal
EDIUAL.
Huntzinger, Jacques (1991), Introdução às Relações Internacionais, Lisboa: PE Edições, trad. Carlos Aboim de Brito.
Kennedy, Paul (1989). The Rise and Fall of the Great Powers. Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000, London: Fontana Press.
Koenigsberger, H.G. (1999). “Marte y Venus: Guerra y relaciones internacionales de la Casa de Áustria”, Revista Pedralbes, 19 (1999),
Le Goff, Jacques (1983). A civilização do Ocidente Medieval, volume II, Lisboa: Editorial Estampa, trad. Manuel Ruas.
Lesaffer, Randall (2005). “Paix et guerre dans les grands traités du
Malettke, Klaus (2001). «Les traités de paix de Westphalie et l'organisation politique du Saint Empire romain germanique »,
Mattoso, José (1998). A Identidade Nacional, Lisboa: Gradiva.
Moita, Luís (2009). “Espaços económicos e configurações políticas”, D. Losurdo, J.
Moreira, Adriano (1997). Teoria das Relações Internacionais, 2.ª edição, Coimbra: Almedina.
Osiander, Andreas (2001).“Sovereignty, International Relations,and the Westphalian Myth”, International Organization 55, 2, Spring 2001,
Parker, Geoffrey (1988). The Thirty Years' War. New York: Routlege & Kegan Paul Inc.
Pedralbes, Revista d’Història Moderna, da Universidade de Barcelona Disponível em http://www.raco.cat/index.php/Pedralbes/issue/view/8335/showToc., consultada em 27/5/2011.
Pureza, José Manuel (1998). “Eternalizing Westphalia? International Law in a Period of Turbulence”, Nação e Defesa, Outono 1998 – nº 87 – 2ª série, pp.
42
JANUS.NET,
ISSN:
Vol. 3, n.º 2 (outono 2012), pp.
Uma releitura crítica do consenso em torno do "sistema vestefaliano"
Luís Moita
Ramos, Fábio Pestana (2010). “O sistema Westfaliano e as relações internacionais na Europa”, Para entender a história... ISSN
Raymond Aron (1984), Paix et guerre entre les nations, Paris:
Teschke, Benno (2002). “Theorizing the Westphalian System of States: International Relations from Absolutism to Capitalism”, European Journal of International Relations 2002 Vol. 8 (1):
Wyduckel, Dieter. “La Soberanía en la Historia de la Dogmática Alemana”, trad. do
alemão para o espanhol, disponível em http://www.unioviedo.es/constitucional/fundamentos/primero/pdf/wyducke.pdf, consultado em 2/1/2012.
Fontes da Cartografia:
http://perso.numericable.fr/alhouot/alain.houot/Hist/ancien_R/ancienr7.html, consultada em 28/2/2012.
http://www.zum.de/whkmla/region/xeurope1718.html, consultada em 28/2/2012.
Sítios da web
http://www.lwl.org/westfaelische-
http://www.wikiberal.org/wiki/Absolutisme. http://it.wikipedia.org/wiki/Pace_di_Vestfalia.
http://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_des_%C3%89tats_du_Saint- Empire_romain_germanique.
43