OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 3, n.º 1 (Primavera 2012), pp. 183-187

Recensão Crítica

Dunoff, Jeffrey; Trachtman, Joel (eds.) (2009). Ruling the World? Constitutionalism, International Law, and Global Governance. Cambridge: Cambridge University Press

por Mateus Kowalski*

mateus.kowalski@gmail.com

Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito.

Autor de artigos e comunicações sobre teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de segurança.

Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta.

Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no domínio do Direito Internacional.

O constitucionalismo global surge como uma resposta jurídica à globalização – reconhecendo que a globalização deu expressão global a determinados fenómenos que vão além da esfera estadual, esta doutrina propõe mecanismos que lhes confiram regulação global no sentido da formação de uma ordem pública universal. No fundo, a proposta do constitucionalismo global oferece uma compensação normativa para os défices constitucionais estaduais induzidos pela globalização1. Este é um debate estrutural que, embora por enquanto se situe essencialmente no âmbito da teoria do Direito Internacional, tem uma implicação ampla na organização da sociedade internacional e na sua governação. É neste sentido que Allott refere que «o problema do constitucionalismo internacional é o desafio central com que se deparam os filósofos internacionalistas no século XXI»2. A obra Ruling the World? Constitutionalism, International Law, and Global Governance oferece um ponto de partida para situar este importante debate actual e para o estender a outras áreas do saber, como as Relações Internacionais.

Organizada por Jeffrey Dunoff – professor de Direito Internacional na Temple University

e por Joel Trachtman – professor de Direito Internacional na Tufts University –, esta

*O autor agradece o apoio que lhe é conferido pela Fundação Calouste Gulbenkian para a realização do programa de Doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra.

1Peters, Anne (2009). «The Merits of Global Constitutionalism». Indiana Journal of Global Legal Studies. 16(2): 397-411.

2Allott, Philip (2001). «The Emerging Universal Legal System». International Law Forum. 3(1): 12-17, 16.

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obra coletiva reúne contributos de treze autores de renome, num total de treze capítulos organizados em três partes distintas3. A primeira parte4 enquadra a narrativa do constitucionalismo global ao mesmo tempo que propõe uma estrutura analítica para a progressão no debate. Na segunda parte5 são analisadas as dimensões constitucionais de certos regimes internacionais específicos frequentemente apontados na literatura como afloramentos do constitucionalismo global: as Nações Unidas, a União Europeia e a Organização Mundial do Comércio. Finalmente, na terceira parte6, são abordadas algumas questões transversais que informam atualmente este debate: a relação com o constitucionalismo estadual, o pluralismo constitucional e a legitimidade democrática do constitucionalismo para além do Estado.

Na análise do constitucionalismo global, surge de imediato uma questão fundamental: “porquê constitucionalizar”? É de resto uma questão que Thomas Franck formula logo no prefácio. A resposta poderá estar na necessidade de complementar o constitucionalismo nacional, numa adequação à realidade globalizada a que os Estados por si não conseguem dar resposta. A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigência cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitucionais nacionais. A criação de uma ordem pública global constitucionalizada seria assim um imperativo da razão. É neste sentido que Andreas Paulus reconhece potencial no constitucionalismo global para que o mundo seja regido por regras de Direito que superem as lógicas de poder.

Embora possa existir uma bondade intrínseca veiculada pelos cultores desta doutrina em organizar a sociedade internacional de acordo com normas e princípios característicos das ordens constitucionais estaduais que limitem o poder e garantam os direitos fundamentais, a resposta ao “porquê constitucionalizar?” não termina aqui. Desde logo, porque esta construção doutrinal é também um reflexo da ansiedade que informa actualmente o Direito Internacional relativamente à sua natureza e ao seu valor. Tal como avisa Jeffrey Dunoff, o “discurso constitucional” pode ser uma reacção defensiva dos juristas internacionalistas. Por outro lado, o poder estruturante do liberalismo tem expressão actual no Direito Internacional7. E assim, conforme sublinha Joel Trachtman utilizando o exemplo da Organização Mundial do Comércio, a constitucionalização resulta igualmente de uma crescente necessidade de produção de Direito Internacional que promova a liberalização. Será neste sentido que David

3Além do prefácio por Thomas Franck - «International Institutions: Why Constitutionalize?».

4Contributos de Jeffrey Dunoff, Joel Trachtman - «A Functional Approach to International Constitutionalization» (3-35); David Kennedy - «The Mystery of Global Governance» (37-68); Andreas Paulus - «The International Legal System as a Constitution» (69-109).

5Contributos de Michael Doyle - «The UN Charter - a Global Constitution?» (113-132); Bardo Fassbender - «Rediscovering a Forgotten Constitution: Notes on the Place of the UN Charter in the International Legal Order» (133-147); Neil Walker - «Reframing EU Constitutionalism» (149-176); Jeffrey Dunoff - «The Politics of Internationalism Constitutions: The Curious Case of the World Trade Organization»; Joel Trachtman - «Constitutional Economics of the World Trade Organization» (206-229).

6Contributos de: Stephen Gardbaum - «Human Rights and International Constitutionalism» (233-257);

Mathias Kumm - «The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship between Constitutionalism in and beyond the State» (258-324); Daniel Halberstam - «Constitutional Heterarchy: The Centrality of Conflict in the European Union and the United States» (326-355); Miguel Poiares Maduro - «Courts and Pluralism: Essay on a Theory of Judicial Adjudication in the Context of Legal and Constitutional Pluralism» (356-379); Samantha Besson - «Whose Constitution(s)? International Law, Constitutionalism, and Democracy» (381-407).

7Koskenniemi, Martti (2005). From Apology to Utopia: The Structure of International Legal Argument.

Cambridge: Cambridge University Press.

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Kennedy alerta para o facto da “metáfora” do constitucionalismo incorrer no risco de oferecer uma plataforma institucional a partir da qual se poderá propagar uma universalização ética, quando o necessário seria um pluralismo ético.

A existência de uma ordem constitucional global é todavia uma premissa desta doutrina. Tal como refere Bardo Fassbender, não se trata de um exercício de criação, mas antes de revelação ou de redescoberta (e, acrescente-se, evetual desenvolvimento progressivo). Pelo contrário, David Kennedy defende que a ordem constitucional global terá ainda que ser criada.

Em todo o caso, a obra assume aquela premissa e apresenta três exemplos tradicionalmente identificados na literatura como manifestações do constitucionalismo global. O primeiro exemplo reconduz-se à Carta das Nações Unidas. Quer Michael Doyle quer Bardo Fassbender, partindo de um exercício porventura algo formal de comparação com a “constituição-tipo” (a estadual), reconhecem na Carta das Nações Unidas a “Constituição da comunidade internacional”. Esta é uma questão estrutural à qual esta doutrina dedica, compreensivelmente, uma especial atenção. A possibilidade da Carta das Nações Unidas assumir este estatuto permite não só encarar a Carta como matriz da ordem pública internacional, mas também conceber as Nações Unidas como centro da governação global. Em segundo lugar, a União Europeia é frequentemente invocada como modelo do constitucionalismo para além do Estado, ao qual Neil Walker e também Daniel Halberstam se referem. Contudo, tem também sido defendido, com alguma propriedade, que não pode servir de modelo para o constitucionalismo global devido às suas especificidades e características únicas – trata-se de um processo regional assente num consenso político e cultural8. Além do mais, a presente crise política de integração que a União Europeia vive demonstra o quão difícil é “constitucionalizar” para além do Estado. Finalmente, o terceiro exemplo reconduz-se à Organização Mundial do Comércio. Se Joel Trachtman admite que se trata de uma parte da matriz constitucional internacional, já Jeffrey Dunoff adopta uma posição um pouco mais cautelosa ao recusar que aquela Organização possa ser considerada uma entidade constitucionalizada, embora aceite que possa vir a ser considerada como tal quando existir maior abertura e participação. Para além destes três exemplos, seria relevante que a obra dedicasse igualmente uma atenção específica ao Tribunal Penal Internacional e ao Conselho de Segurança enquanto reflexos de uma tendência para a criação de “órgãos de soberania” no contexto da ordem pública global.

Um dos grandes desafios com que o constitucionalismo global se depara é com a constante (mas impossível) comparação, e até competição, com o constitucionalismo estadual. Para superar as dificuldades que daqui resultam, Mathias Kumm introduz no discurso sobre o constitucionalismo um novo paradigma – o cosmopolita. Desta forma, o constitucionalismo passaria a ser concebido num horizonte cosmopolita, e já não meramente estadual. Estaria assim aberto o caminho para uma perspectiva pluralista da ordem pública global no que respeita à relação entre o Direito interno dos Estados e o Direito Internacional, superando as explicações insuficientes e conflituosas oferecidas pelas teses monistas e dualista. É nesta linha que Stephen Gardbaum conclui que o sistema internacional dos direitos humanos não se limita a replicar o catálogo de direitos fundamentais das constituições estaduais: existe diferença entre o que são os direitos da pessoa humana e o que são os direitos dos cidadãos de um Estado. De igual

8Peters, Anne (2006). «Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental

International Norms and Structures». Leiden Journal of International Law. 19: 579-610.

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modo, Miguel Poiares Maduro defende que os tribunais deverão adaptar as suas formas de argumentação e o seu papel institucional ao novo contexto constitucional em que se situam. A sempre actual e muito debatida questão da legitimidade do Direito Internacional pode também encontrar aqui caminhos novos. A este propósito, Samantha Besson refere a vantagem de uma forma pluralista de legitimidade ínsita ao constitucionalismo internacional que requere a implementação de requisitos democráticos e constitucionais aos níveis tanto nacional, como regional e internacional.

A obra Ruling the World? é pois um interessante contributo para perceber a governação global na linguagem do constitucionalismo. Uma doutrina que é em si um desafio teórico exigente. Mas a sedução intelectual do projecto do constitucionalismo global deve ser refreada por um exercício crítico atento. Desde logo, porque no actual quadro das relações sociais internacionais o projecto se arrisca a potenciar a dinâmica de lógicas de poder, que já influenciam os mecanismos mais ou menos institucionalizados, mais ou menos informais, das relações sociais internacionais. Neste caso, a intenção de limitar o poder e criar uma dinâmica internacional com primado no Direito pode antes ver-se cooptada – porventura ingenuamente – por outro tipo de interacções de poder dominantes. Tornar-se-ia no monstro Leviatã ocultado por um manto de legitimidade conferido pelo Direito Internacional. Valerá aqui a pena invocar, por exemplo, a crítica mordaz tecida por Zolo à tese que apelidou de “cosmopolitismo jurídico”9. O autor chama a atenção para o facto da disparidade entre a elite dos poucos países poderosos e ricos e a massa dos países débeis e pobres não poder ser resolvida somente com recurso aos «instrumentos de engenharia institucional e menos ainda através dos do ‘constitucionalismo global’»10. Zolo sublinha que mesmo a mais liberal e democrática forma de constitucionalismo global permanecerá uma ficção uma vez que os órgãos com poder coercivo no contexto da ordem internacional coincidem com a estrutura militar constituída por um pequeno grupo de potências que se encontram isentas de qualquer controlo jurisdicional.

Existe nesta obra uma aparente intenção de empreender um debate aberto sobre o constitucionalismo global – a própria interrogação que lhe serve de título, Ruling the World?, parece indicá-lo. Contudo, a obra é antes representativa do debate que decorre no seio desta doutrina sem abrir verdadeiramente espaço para opiniões fraturantes que contestem os seus fundamentos ou os seus propósitos. Os autores que contribuíram para a obra aderem, na sua maioria, à doutrina do constitucionalismo global – embora com perspectivas nem sempre coincidentes e alguns apontamentos críticos, quase todos encaram o constitucionalismo global como um caminho válido a explorar (sendo certo que a posição ultra cética de David Kennedy contrasta claramente com as restantes). Por outro lado, apesar de abordar um tema que assenta numa ideia de adesão a um paradigma tendencialmente universal, a obra traduz uma visão marcadamente “ocidental”, na medida em que os autores são todos oriundos dos EUA e da Europa.

Ruling the World? é um contributo importante para o debate sobre o constitucionalismo global. Contudo, também é verdade que esta obra não oferece uma resposta definitiva à pergunta que lhe serve de título.

9Zolo, Danilo (1997). Cosmopolis: Prospects for World Government. Cambridge: Polity Press.

10Ibidem, 121.

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Como citar esta Recensão

Kowalski, Mateus (2012). Recensão Crítica de Dunoff, Jeffrey; Trachtman, Joel (eds.) (2009). Ruling the World? Constitutionalism, International Law, and Global Governance. Cambridge: Cambridge University Press, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 3, N.º 1, Primavera 2012. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n1_rec1

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