OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 3, n.º 1 (Primavera 2012), pp.
Recensão Crítica
Dunoff, Jeffrey; Trachtman, Joel (eds.) (2009). Ruling the World? Constitutionalism, International Law, and Global Governance. Cambridge: Cambridge University Press
por Mateus Kowalski*
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito.
Autor de artigos e comunicações sobre teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de segurança.
Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta.
Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no domínio do Direito Internacional.
O constitucionalismo global surge como uma resposta jurídica à globalização – reconhecendo que a globalização deu expressão global a determinados fenómenos que vão além da esfera estadual, esta doutrina propõe mecanismos que lhes confiram regulação global no sentido da formação de uma ordem pública universal. No fundo, a proposta do constitucionalismo global oferece uma compensação normativa para os défices constitucionais estaduais induzidos pela globalização1. Este é um debate estrutural que, embora por enquanto se situe essencialmente no âmbito da teoria do Direito Internacional, tem uma implicação ampla na organização da sociedade internacional e na sua governação. É neste sentido que Allott refere que «o problema do constitucionalismo internacional é o desafio central com que se deparam os filósofos internacionalistas no século XXI»2. A obra Ruling the World? Constitutionalism, International Law, and Global Governance oferece um ponto de partida para situar este importante debate actual e para o estender a outras áreas do saber, como as Relações Internacionais.
Organizada por Jeffrey Dunoff – professor de Direito Internacional na Temple University
–e por Joel Trachtman – professor de Direito Internacional na Tufts University
*O autor agradece o apoio que lhe é conferido pela Fundação Calouste Gulbenkian para a realização do programa de Doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra.
1Peters, Anne (2009). «The Merits of Global Constitutionalism». Indiana Journal of Global Legal Studies. 16(2):
2Allott, Philip (2001). «The Emerging Universal Legal System». International Law Forum. 3(1):
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obra coletiva reúne contributos de treze autores de renome, num total de treze capítulos organizados em três partes distintas3. A primeira parte4 enquadra a narrativa do constitucionalismo global ao mesmo tempo que propõe uma estrutura analítica para a progressão no debate. Na segunda parte5 são analisadas as dimensões constitucionais de certos regimes internacionais específicos frequentemente apontados na literatura como afloramentos do constitucionalismo global: as Nações Unidas, a União Europeia e a Organização Mundial do Comércio. Finalmente, na terceira parte6, são abordadas algumas questões transversais que informam atualmente este debate: a relação com o constitucionalismo estadual, o pluralismo constitucional e a legitimidade democrática do constitucionalismo para além do Estado.
Na análise do constitucionalismo global, surge de imediato uma questão fundamental: “porquê constitucionalizar”? É de resto uma questão que Thomas Franck formula logo no prefácio. A resposta poderá estar na necessidade de complementar o constitucionalismo nacional, numa adequação à realidade globalizada a que os Estados por si não conseguem dar resposta. A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigência cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitucionais nacionais. A criação de uma ordem pública global constitucionalizada seria assim um imperativo da razão. É neste sentido que Andreas Paulus reconhece potencial no constitucionalismo global para que o mundo seja regido por regras de Direito que superem as lógicas de poder.
Embora possa existir uma bondade intrínseca veiculada pelos cultores desta doutrina em organizar a sociedade internacional de acordo com normas e princípios característicos das ordens constitucionais estaduais que limitem o poder e garantam os direitos fundamentais, a resposta ao “porquê constitucionalizar?” não termina aqui. Desde logo, porque esta construção doutrinal é também um reflexo da ansiedade que informa actualmente o Direito Internacional relativamente à sua natureza e ao seu valor. Tal como avisa Jeffrey Dunoff, o “discurso constitucional” pode ser uma reacção defensiva dos juristas internacionalistas. Por outro lado, o poder estruturante do liberalismo tem expressão actual no Direito Internacional7. E assim, conforme sublinha Joel Trachtman utilizando o exemplo da Organização Mundial do Comércio, a constitucionalização resulta igualmente de uma crescente necessidade de produção de Direito Internacional que promova a liberalização. Será neste sentido que David
3Além do prefácio por Thomas Franck - «International Institutions: Why Constitutionalize?».
4Contributos de Jeffrey Dunoff, Joel Trachtman - «A Functional Approach to International Constitutionalization»
5Contributos de Michael Doyle - «The UN Charter - a Global Constitution?»
6Contributos de: Stephen Gardbaum - «Human Rights and International Constitutionalism»
Mathias Kumm - «The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship between Constitutionalism in and beyond the State»
7Koskenniemi, Martti (2005). From Apology to Utopia: The Structure of International Legal Argument.
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Kennedy alerta para o facto da “metáfora” do constitucionalismo incorrer no risco de oferecer uma plataforma institucional a partir da qual se poderá propagar uma universalização ética, quando o necessário seria um pluralismo ético.
A existência de uma ordem constitucional global é todavia uma premissa desta doutrina. Tal como refere Bardo Fassbender, não se trata de um exercício de criação, mas antes de revelação ou de redescoberta (e,
Em todo o caso, a obra assume aquela premissa e apresenta três exemplos tradicionalmente identificados na literatura como manifestações do constitucionalismo global. O primeiro exemplo
Um dos grandes desafios com que o constitucionalismo global se depara é com a constante (mas impossível) comparação, e até competição, com o constitucionalismo estadual. Para superar as dificuldades que daqui resultam, Mathias Kumm introduz no discurso sobre o constitucionalismo um novo paradigma – o cosmopolita. Desta forma, o constitucionalismo passaria a ser concebido num horizonte cosmopolita, e já não meramente estadual. Estaria assim aberto o caminho para uma perspectiva pluralista da ordem pública global no que respeita à relação entre o Direito interno dos Estados e o Direito Internacional, superando as explicações insuficientes e conflituosas oferecidas pelas teses monistas e dualista. É nesta linha que Stephen Gardbaum conclui que o sistema internacional dos direitos humanos não se limita a replicar o catálogo de direitos fundamentais das constituições estaduais: existe diferença entre o que são os direitos da pessoa humana e o que são os direitos dos cidadãos de um Estado. De igual
8Peters, Anne (2006). «Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental
International Norms and Structures». Leiden Journal of International Law. 19:
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modo, Miguel Poiares Maduro defende que os tribunais deverão adaptar as suas formas de argumentação e o seu papel institucional ao novo contexto constitucional em que se situam. A sempre actual e muito debatida questão da legitimidade do Direito Internacional pode também encontrar aqui caminhos novos. A este propósito, Samantha Besson refere a vantagem de uma forma pluralista de legitimidade ínsita ao constitucionalismo internacional que requere a implementação de requisitos democráticos e constitucionais aos níveis tanto nacional, como regional e internacional.
A obra Ruling the World? é pois um interessante contributo para perceber a governação global na linguagem do constitucionalismo. Uma doutrina que é em si um desafio teórico exigente. Mas a sedução intelectual do projecto do constitucionalismo global deve ser refreada por um exercício crítico atento. Desde logo, porque no actual quadro das relações sociais internacionais o projecto se arrisca a potenciar a dinâmica de lógicas de poder, que já influenciam os mecanismos mais ou menos institucionalizados, mais ou menos informais, das relações sociais internacionais. Neste caso, a intenção de limitar o poder e criar uma dinâmica internacional com primado no Direito pode antes
Existe nesta obra uma aparente intenção de empreender um debate aberto sobre o constitucionalismo global – a própria interrogação que lhe serve de título, Ruling the World?, parece
Ruling the World? é um contributo importante para o debate sobre o constitucionalismo global. Contudo, também é verdade que esta obra não oferece uma resposta definitiva à pergunta que lhe serve de título.
9Zolo, Danilo (1997). Cosmopolis: Prospects for World Government. Cambridge: Polity Press.
10Ibidem, 121.
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