OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 3, n.º 1 (Primavera 2012), pp. 38-65

A ECONOMIA COSMOPOLITA GLOBAL, O EURO E A ECONOMIA

PORTUGUESA

Manuel Farto

mfarto@ual.pt

Professor Associado no Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa (UTL). Licenciado em Economia pelo ISEG, Doutor em Economia pela UTL por equivalência do doutoramento em Histoire de la Pensée Économique, obtido na Universidade de Paris-X, Nanterre. É Professor Visitante da Universidade de Orléans (França) e da Universidade Federal da Paraíba (Brasil), e subdirector da revista JANUS (UAL/Público).

Exerceu vários cargos públicos, designadamente de Chefe de Gabinete do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e Subdirector Geral do Ensino Superior e académicos, tendo sido Vice-Presidente do Conselho Directivo do ISEG.

Participou em várias conferências nacionais e internacionais e publicou vários artigos em revistas e livros. Os seus principais interesses de investigação são: Macroeconomia, Economia Internacional, História do Pensamento Económico e Politica económica

Resumo

Apesar das circunstâncias externas favoráveis a economia portuguesa desenvolveu na última década um modelo de desequilíbrio e dependência sustentado no desequilíbrio produção/consumo e financiado pelo exterior, que se traduziu num crescimento anémico, graves défices e dívidas explosivas, não se distinguindo, na sua natureza, dos modelos populistas latino-americanos do passado. Restrições relacionadas com a adopção do euro e política económicas inadequadas constituem-se como as causas determinantes deste processo e simultaneamente como barreiras à sua superação. A política de desvalorização interna/recessionista, erradamente apresentada como um substituto próximo da desvalorização externa/expansionista, subestima os efeitos recessivos sobre a procura e o seu agravamento em ambiente de forte endividamento, potenciando uma espiral deflacionista que tende a pôr em causa a política de austeridade, indispensável para reduzir os desequilíbrios existentes.

As dúvidas quanto aos benefícios do abatimento de todos os obstáculos (incluindo monetários) ao comércio livre entre países de desenvolvimento muito desigual, de há muito manifestadas por Friedrich List, revigoram-se. Na ausência de moeda, a soberania e discricionariedade da política orçamental reduzir-se-ão a favor de regras prescritas, limitando as políticas económicas a quadros micro e meso-económicos. Na inexistência de um mecanismo cambial autónomo, o sector exportador “sets the pace” no longo prazo ao crescimento da economia e dos salários, ao mesmo tempo que a impossibilidade de desvalorização tende a desenvolver processos cumulativos desequilibrantes só absorvidos pela ocorrência de crises. Limitar a ocorrência destas exige políticas salariais e sociais cadenciadas, elevar o ritmo de crescimento do produto e dos salários impõe o desenvolvimento de um sector exportador de elevado valor acrescentado. Tal é o estreito caminho da política e da estratégia que se apresenta à economia portuguesa.

Palavras chave:

Economia cosmopolita; euro; economia portuguesa; crise; desequilíbrio; deflação salarial; desvalorização; política macroeconómica; procura; sustentabilidade da dívida; crescimento

Como citar este artigo

Farto, Manuel (2012). "A economia cosmopolita global, o euro e a economia portuguesa”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 3, N.º 1, Primavera 2012. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n1_art2

Artigo recebido em Abril de 2012 e aceite para publicação em Maio de 2012

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A economia cosmopolita global, o euro e a economia portuguesa

Manuel Farto

A ECONOMIA COSMOPOLITA GLOBAL, O EURO E A ECONOMIA

PORTUGUESA

Manuel Farto

“These are the times that try men's souls“

(Thomas Paine, The Crisis I, December, 1776)

1. Introdução

As economias da periferia da Europa enfrentam hoje uma situação particularmente difícil que ameaça toda a Europa com importantes projecções na economia global. A economia grega entrou em efectiva bancarrota enquanto a portuguesa parece querer seguir um caminho dramaticamente semelhante. Compreender a natureza dos desequilíbrios que conformam a realidade da situação portuguesa e as condições da sua superação exige a consideração do quadro e das dinâmicas onde a economia portuguesa se insere. Proceder a uma reflexão sobre as políticas em curso para superar a actual crise e a discutir as condições de retoma a uma trajectória de crescimento económico e convergência real constituem igualmente objectivos do presente trabalho.

Começaremos por examinar e sistematizar o modo como se deu a inserção da economia portuguesa nas dinâmicas internacionais e em particular na área do euro da União Europeia definindo três períodos: a integração europeia e o progresso económico e social, o euro e a estagnação e a recessão e a dívida

No ponto 3 desenvolveremos uma reflexão que permite entender a natureza do modelo que se foi sistematizando na economia portuguesa, baseado no desequilíbrio fundamental entre produção e consumo que mimetiza o modelo de estagnação e dependência, com inevitáveis tendências explosivas, conhecidos em décadas anteriores noutros contextos e regiões.

Prosseguiremos com a análise da política económica que tem vindo a ser desenvolvida sobretudo na sua componente de deflação salarial que consideramos o eixo fundamental. Para além dos aspectos psicológicos, clarificaremos a diferença essencial entre a desvalorização externa/expansionista e a desvalorização interna/recessionista, sublinharemos a subestimação geralmente feita sobre os efeitos da redução dos salários na procura interna, sobretudo em situações de endividamento elevado, para constatar, enfim, a reduzida e duvidosa experiência actualmente existente sobre a implementação de tais políticas.

Finalmente, e antes de concluir, faremos uma digressão sobre as teorias dominantes sobre comércio externo que enaltecem os benefícios do comércio livre em todas as circunstâncias e a análise de Friedrich List em Sistema Nacional de Economia Política (1841) duvida destes benefícios quando existem diferenças substancias de desenvolvimento e produtividade o que é particularmente significativo em sistemas de padrão único. Clarificaremos seguidamente as consequências da inexistência de moeda

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e politica monetárias próprias para a política orçamental que tenderá a reger-se por regras com reduzido espaço para as políticas descricionárias. Procuraremos ainda mostrar que na ausência de mecanismo cambial autónomo o ritmo de crescimento das exportações “sets the pace” no longo prazo ao crescimento da economia, ao mesmo tempo que a impossibilidade de desvalorização tende a desenvolver processos cumulativos desequilibrantes só absorvidos pela ocorrência de crises. Limitar a ocorrência destas exige uma política salarial e social cadenciadas pelo progresso exportador e um Estado restrito na sua estrutura que não necessariamente nas suas funções.

2. A inserção da economia portuguesa nas dinâmicas internacionais

A primeira realidade que se apresenta à economia portuguesa é a de um contexto internacional caracterizado pela aceleração da globalização e pela sua inserção na área do euro da União Europeia. Por seu lado, a aceleração da globalização comporta várias vertentes das quais duas nos parecem essenciais, o desenvolvimento de uma nova geoeconomia e um crescimento da desigualdade na distribuição doméstica do rendimento, ambas estatisticamente observáveis.

A nova geoeconomia caracteriza-se pela reorientação da dinâmica de crescimento para novas áreas do globo, apoiada sobretudo no crescimento económico dos países emergentes (Farto e Morais 2008), relativamente às quais a nossa economia se encontra descentrada e com relações muito limitadas. Esta situação impede-nos de tirar proveito desta dinâmica de crescimento mas não evita a agudização da concorrência à escala global designadamente nos nossos mercados tradicionais e em faixas tecnológicas e padrões de especialização comparáveis.

Uma segunda característica deste processo de globalização relaciona-se com o desenvolvimento de uma acentuada pressão internacional à manutenção de sistemas de distribuição muito desiguais nos países emergentes de maior dinâmica de crescimento e ao crescimento da desigualdade interna em países desenvolvidos onde o capitalismo de há muito se apresenta com “um rosto humano” aumentando as pressões competitivas e limitando o desenvolvimento da procura1 (Farto e Morais 2008 e OCDE, 2010).

O segundo grande eixo da nossa inserção externa, que tem condicionado de maneira decisiva o actua processo de desenvolvimento, relaciona-se com a integração de Portugal na zona euro da União Europeia e em particular com as condicionantes ou escolhas de maior relevo. Referimo-nos em particular aos efeitos do alargamento, à adopção do euro e à orientação da política monetária seguida.

Neste processo de integração europeia podemos considerar três períodos da economia portuguesa: A primeira fase da nossa integração na União Europeia (EU), apoiada no choque favorável da oferta a nível internacional, alargamento dos mercados, investimento internacional e fundos estruturais, correspondeu a um período de forte crescimento da actividade económica. É o período da convergência que se desenvolveu até ao final da década de 90 (3º Trimestre de 1999). A segunda fase, de divergência corresponde à adesão à moeda única e está associada à estagnação

1Esta poderá fornecer uma importante razão para a explosão do endividamento designadamente da economia americana para manter padrões de vida que a nova distribuição do rendimento põe em causa.

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económica, ampliação de todos os desequilíbrios da economia portuguesa e endividamento galopante. A terceira fase na qual nos encontramos que corresponde a um período de recessão dramática.

A evolução das taxas de variação do produto interno bruto (PIB) apresentadas no gráfico que se segue, em especial a das taxas médias, ilustra claramente as três fases a que fazemos referência.

 

 

Gráfico 1

 

 

 

 

Variações anuais e médias (taxas)

 

6

 

 

 

 

4

 

 

 

 

2

 

 

 

 

0

 

 

 

 

 

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

-2

 

 

 

 

-4

 

 

 

 

-6

EU (15)

Portugal

EU (15)

Portugal

 

Fonte: AMECO

 

 

 

2.1.A integração europeia e o progresso económico e social

O relançamento da actividade económica em 1985 deu-se num contexto que se assemelha a um pequeno milagre, criando ilusões quanto ao futuro. O “choque externoexprimiu-se na acção conjugada de vários acontecimentos designadamente a queda do dólar, a descidas das taxas de juro internacionais, a descida acentuada do preço do petróleo e das matérias-primas, ao mesmo tempo que internamente um bom ano agrícola e pluviométrico contribuiu para a redução das importações em especial no sector energético. Em consequência, a balança corrente (BC) apresentou um saldo positivo que levou o governo da época a prescindir da utilização de 185,7 milhões de DSE (Direitos de Saque Especiais), representando 40% do valor anteriormente acordado com o FMI (Farto e Mendonça, 2006).

Ao mesmo tempo que a integração na UE criava um movimento de expectativas favoráveis nos empresários portugueses, designadamente em relação às novas facilidades de acesso aos mercados europeus, algumas empresas internacionais assumiam uma confiança acrescida em relação às possíveis operações em território português, beneficiando em particular de uma mão-de-obra significativamente mais barata para o mesmo nível de formação e qualificação. Estas forças contribuíram decisivamente para um dos melhores período de desenvolvimento da economia portuguesa e seguramente o melhor do Portugal democrático.

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Portugal pode conciliar um forte impulso externo com o processo de integração e manter uma barreira de protecção fundamental: a moeda própria.

2.2. O euro e a estagnação

A partir de 2002 afirma-se claramente o período de estagnação e de divergência real da economia portuguesa. Apesar da possibilidade de acesso a amplos mercados, a vastos e variados meios de financiamento e de ter beneficiado, pelo menos inicialmente, de custos do trabalho relativamente baixos, vantagem que pouco a pouco se foi degradando ao longo do tempo, a economia portuguesa só muito insuficientemente tirou partido destes factores, mantendo uma fraca capacidade competitiva. A fragilidade e vulnerabilidade do sistema produtivo, assente numa especialização limitada e em actividades de tipo mais ou menos tradicional, de fraca produtividade e de pouco valor acrescentado, conduziram a uma competitividade reduzida e uma capacidade exportadora limitada decorrente da hipotrofia de sectores de bens e serviços transaccionáveis2.

A degradação das cotas das exportações portuguesas à escala global e à escala europeia (ainda que menos acentuada) e uma ligeira melhoria em termos de serviços à escala global (mas não europeia) configura uma perda lenta mas persistente da competitividade. A análise da evolução da taxa de câmbio real (calculada com base nos custos unitários da produção) das actividades transaccionáveis revela um padrão de progresso das economias do norte da europa e dificuldades competitivas das economias do Sul, designadamente Portugal que regista uma perda de competitividade na última década de cerca de 15% (Mateus, 2010).

A abertura ao exterior manteve uma pressão persistente sobre os sectores expostos à concorrência internacional, criando uma significativa assimetria no crescimento dos preços desfavorável ao sector dos bens transaccionáveis (Farto e Mendonça, 2006). A divergência entre o crescimento dos preços de produção para o conjunto da economia e o crescimento dos preços da exportação atingiu durante a década 7% o que significa um referencial para a formação dos preços e rendimentos muito mais restritivos para as actividades transaccionáveis. A maior inflação nos bens e serviços mais abrigados da concorrência externa permitiu drenar recursos de melhor qualidade para estas actividades reduzindo as potencialidades de desenvolvimento e o sucesso no sector dos bens transaccionáveis.

Écerto que houve factores externos desfavoráveis entre os quais integramos o alargamento a Leste e a política monetária do banco central europeu (BCE). O alargamento da UE a Leste acentuou a pressão competitiva sobre a nossa economia designadamente em segmentos industriais, tanto em países terceiros como no nosso próprio país, conduzindo a reduções drásticas da sua base produtiva ou simples destruição; ao mesmo tempo que novos países se assumiam como uma alternativa mais favorável para o investimento internacional. Os benefícios, que Portugal retirara inicialmente do alargamento, deslocavam-se agora para novos horizontes mais a Leste.

2A fraca tradição produtiva e industrial do país tem-se arrastado ao longo do tempo, associada a uma aversão ao risco empresarial persistente e a uma propensão a inovar frágil, à subestimação das actividades exportadoras e insuficiente importância atribuída à educação e cultura.

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A política monetária levada a cabo pelo BCE também contribuiu para o agravamento dos problemas do conjunto da zona euro e para a sua estagnação neste período com reflexo na economia portuguesa. Temos sustentado que a orientação restricionista da política monetária é inadequada para uma zona monetária não óptima como a existente actualmente. Consideramos em particular que um “target” de 2% para a inflação é objectivamente deflacionista (Farto, 2006 e 2009) não permitindo, sem reduções de salários nominais, os ajustamentos intersectoriais e inter-regionais que as dinâmicas económicas impõem.

Como podemos observar na tabela seguinte as variações do PIB desde a adopção do euro até 2008 são em muitos países significativamente inferiores às variações no período idêntico precedente. Irlanda e Portugal seriam nesta comparação os grandes perdedores, Grécia e Finlândia os grandes ganhadores. Todavia, se tomarmos um período mais alargado, até 2012, que compara com igual período anterior, só há perdedores, com notáveis resultados para Portugal e Irlanda mas igualmente com perdas importantes para um vasto conjunto de países. A crise e as hesitações da política monetária parecem estar a eliminar os ganhos que eventualmente pudessem ser imputados à moeda comum.

Tabela 1

País

89/98

99/08

Desvio

85/98

99/12

Desvio

 

 

 

 

 

 

 

Áustria

24,84

22,82

-2,02

36,07

25,80

-10,27

Bélgica

21,99

19,69

-2,30

37,82

21,18

-16,63

Finlândia

12,58

32,29

19,70

32,19

30,10

-2,09

France

16,07

17,59

1,52

32,77

18,63

-14,14

Alemanha

21,42

15,02

-6,40

36,02

17,24

-18,78

Grécia

16,66

37,08

20,42

24,07

13,52

-10,55

Irlanda

72,10

49,45

-22,66

94,85

40,10

-54,75

Itália

13,68

11,81

-1,87

29,98

5,98

-24,01

Luxemburgo

46,42

45,88

-0,54

99,35

42,95

-56,40

Holanda

30,77

21,40

-9,36

47,69

20,00

-27,70

Portugal

34,86

12,45

-22,42

68,49

5,52

-62,97

Espanha

25,48

34,02

8,54

51,67

27,46

-24,21

 

 

 

 

 

 

 

Regressando a Portugal, o que é verdadeiramente notável é que nem a política consumista dos portugueses apoiada em crédito barato nem a política económica e social fortemente expansionista foram suficientes para animar uma economia em movimento estagnante.

Todavia, se as políticas referidas não contribuíram para ultrapassar a tendência estagnacionista foram decisivas no desenvolvimento dos desequilíbrios que entretanto se foram aprofundando, conduzindo à presente crise que atravessamos. A política económica errou por acção na condução da política orçamental3, no desastre das

3Mantiveram-se políticas orçamentais expansionistas mesmo em períodos de expansão económica, quando se impunha a consolidação das contas públicas, persistiu-se nas bonificações ao crédito à habitação, ao

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parcerias público – privadas4 e nalgumas reformas mal conseguidas5, por omissão na ausência das reformas estruturais indispensáveis designadamente do mercado de trabalho e da justiça.

De facto, um conjunto de políticas populistas, desenvolvidas a destempo, contribuiu para o acentuar os desequilíbrios estruturais da economia designadamente para o descontrole da dívida interna e externa. “Portugal foi o primeiro país a violar o Pacto de Estabilidade logo em 2001. Desde então, violou-o todos os anos, se esquecermos as medidas extraordinárias, excepto em 2007 e 2008” (Neves, 2011: 217).

Diríamos em síntese que, entre os múltiplos factores que sempre influenciam uma economia, o euro e a política económica inadequada foram o pai e mãe de todos os problemas que presentemente enfrentamos. A adopção de uma moeda sem estado por um conjunto de países que prescindiram da sua própria moeda criou uma nova realidade não suficientemente testada, com consequências ainda não inteiramente observadas e analisadas designadamente em termos da condução da própria política económica.

2.3. A recessão e a dívida

O modelo em que assentou o crescimento da economia nas últimas décadas conduziu à estagnação do crescimento económico e à recessão, ao agravamento dos desequilíbrios, e, em particular, à incapacidade em assegurar o financiamento da economia e do estado em condições aceitáveis.

De facto, ao mesmo tempo que as tendências estagnacionistas da economia se faziam sentir, as novas condições monetárias6 que propiciavam melhor (e mais barato) recurso ao crédito e o acesso a dinheiro fácil obtido por via dos apoios comunitários7 acentuaram e desenvolveram atitudes e comportamentos de imitação, excessivamente consumistas, elevando a despesa das famílias e o endividamento. Esta preferência pelo presente, traduzida na redução da poupança e no aumento exuberante do consumo, que caracterizou o comportamento geral dos agentes económicos em Portugal, em particular os agentes públicos, sem correspondência no crescimento da capacidade produtiva nacional, conduziu ao desequilíbrio persistente das contas externas e públicas e ao consequente aumento das dívidas privadas e públicas, designadamente na componente externa.

mesmo tempo que a redução das taxas de juro embaratecia o custo do dinheiro, introduziu-se o denominado novo sistema retributivo da função pública induzindo subidas nos custos unitários do trabalho sem ter em conta a competitividade externa.

4O interesse público nem sempre foi devidamente salvaguardado enquanto a deterioração da Justiça veio contribuindo para o avolumar do caos na nossa vida colectiva, gerando enormes preocupações quanto ao devir do nosso sistema democrático.

5As reformas da administração pública através da criação de um número significativo de Institutos, novos ou por transformação de Direcções Gerais, e alargamento de funções sociais sem ter em conta a situação real da economia nacional conduziram ao aumento das “gorduras” do Estado. As tentativas levadas a cabo em relação à fiscalidade e justiça produziram os mesmos resultados: o aumento dos desequilíbrios estruturais e dos custos de contexto da economia portuguesa.

6A adesão ao euro tem sido por vezes questionada a diversos títulos. É hoje claro e indiscutível que algumas das suas consequências negativas, em particular nos efeitos gerados sobre a competitividade externa da economia, não terão sido suficientemente levadas em linha de conta.

7O acesso relativamente fácil a fundos comunitários contribuiu para o desenvolvimento da corrupção, do clientelismo político e da subsídio - dependência e influenciou atitudes consumistas que contribuíram para a redução da poupança e para o aumento sustentado de novas necessidades, satisfeitas através de uma importação crescente.

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Portugal é hoje inequivocamente um grande devedor, em relação ao PIB, à escala internacional, quaisquer que sejam os critérios utilizados. A figura apresenta um retrato da evolução da dívida pública portuguesa (DP), em milhões de euros, que triplicou desde 2000 ultrapassando o valor do PIB e da posição do investimento internacional que permite igualmente a percepção do insustentável crescimento da dívida externa, particularmente visível na evolução da variável Outro Investimento (OI). A posição do investimento (PI) reflecte ainda a estagnação do investimento directo (IDE) e a queda conjuntural do investimento em carteira (IC).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gráfico 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dívida Pública e Posição do Investimento Internacional

 

 

 

 

 

 

200000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

180000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

160000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

140000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

120000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

100000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

80000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

60000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

40000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

20000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

0

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3-1-2000

7-1-2000

11-1-2000

3-1-2001

7-1-2001

11-1-2001

3-1-2002

7-1-2002 11-1-2002 3-1-2003

7-1-2003

11-1-2003 3-1-2004

7-1-2004

11-1-2004 3-1-2005 7-1-2005 11-1-2005 3-1-2006

7-1-2006

11-1-2006

3-1-2007

7-1-2007 11-1-2007

3-1-2008

7-1-2008

11-1-2008

3-1-2009

7-1-2009

11-1-2009

3-1-2010

7-1-2010

11-1-2010

3-1-2011

7-1-2011

Fonte: Banco de Portugal

 

 

 

 

PI

 

IDE

 

IC

 

 

OI

 

 

 

DP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Preocupante ainda tem sido a dinâmica recente do seu agravamento, implícito no gráfico. Em termos de dívida pública, Portugal situava-se em 2011 em 7º lugar numa amostra de 38 países, integrando um grupo rico e poderoso de países e acompanhando de perto a Irlanda, Grécia e Espanha, para além dos EUA e do Reino Unido, os quais registaram agravamentos do rácio da dívida ainda mais graves do que Portugal entre 2009 e 2011 (Farto, 2011a).

Assim, o elevado nível da divida e o seu agravamento dramático recente, tanto no plano governamental como no plano externo, tornaram-se uma bomba relógio de hora imprecisa mas fatal que condiciona de maneira notável qualquer estratégia de política económica, obrigando a uma orientação recessiva no presente e exigindo a libertação de recursos para manter um elevado serviço da dívida no futuro.

3. Um modelo explosivo de estagnação e desequilíbrio

A sistematização do percurso da economia portuguesa nas últimas décadas permitiu constatar a partir da adesão ao euro de duas tendências claras: um crescimento anémico, praticamente estagnação, e o desenvolvimento de desequilíbrios importantes

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e persistentes nas contas públicas e externas. Importa agora precisar a natureza das relações dominantes que se foram desenvolvendo ao longo deste percurso.

3.1O desenvolvimento do desequilíbrio fundamental entre produção e consumo

Se compararmos a capacidade de criar riqueza medida pelo PIB com o nível de consumo português podemos observar que na geração de riqueza Portugal representa 64,6% da média da UE27 enquanto no consumo se situa em 67,3%. Esta diferença, expressão porventura das nossas preferências individuais e colectivas, constitui um indicador muito expressivo dos enormes desequilíbrios acumulados e dá indicações da dimensão da correcção necessária.

Gráfico 3

Fonte: AMECO

Como foi anteriormente referido, a perda de moeda e de política monetária alargou dramaticamente o desequilíbrio tendencial do modelo seguido, tornando-o insustentável. Ao aumentar a pressão da procura, com a queda das taxas de juro a juntar-se ao persistente afluxo de fundos estruturais e a défices orçamentais permanentes, a adesão de Portugal ao euro e a consequente perda da política cambial alargou a pressão importadora e sobre-dimensionou o sector de bens não transaccionáveis. Nestas condições, as nossas empresas revelaram-se incapazes de compensar através da produção nacional uma procura ao exterior sempre crescente, impulsionada por comportamentos de imitação e politicas que alimentaram uma exuberância consumista sem precedentes, gerando por consequência um desequilíbrio externo crescente e persistente.

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Uma análise que conduz a resultados semelhantes pode ser conduzida em termos da comparação entre a evolução dos salários e a evolução da produtividade como faz, por exemplo, João César das Neves que resume: “… as nossas dificuldades externas e endividamento não resultam de produzirmos pouco, mas de ganharmos demais para o que produzimos” (Neves, 20011:165).

3.2Um modelo de estagnação, desequilíbrio e dependência

Como vimos a economia portuguesa teve um dos mais fracos crescimentos do PIB da última década apenas ultrapassando a Itália e o Haiti. Esta estagnação do produto contribuiu para sistematizar o desequilíbrio fundamental entre a produção e o consumo financiado pelo progressivo aumento da divida externa. Este modelo, em si próprio, não nos traz nenhuma novidade essencial. Ele não difere fundamentalmente do modelo de dependência desenvolvido por muitas economias no passado designadamente por muitas das economias, então ditas em vias de desenvolvimento, como o Brasil ou Argentina, entre outros, e pela própria economia portuguesa antes da integração.

Embora simplificando, podemos considerar que existem dois subgrupos com características económicas bem diferenciadas na área do euro. O centro, representado pela Alemanha com uma economia de produtividade elevada, tecnologia moderna e excedentes na balança corrente e um segundo bloco constituído por países como Portugal de produtividade baixa, tecnologia elementar e défices externos elevados e persistentes na balança corrente. No primeiro grupo, existe um comportamento que conduz a uma propensão a poupar elevada das famílias e de uma forte propensão exportadora, assente numa rica tradução industrial, exportação que se dirige, designadamente, para os países periféricos do Sul da Europa. Inversamente, os países do sul têm dificuldade em colocar nos mercados no norte, apesar da sua dimensão e importância, bens e serviços que interessem a estes mercados de modo a compensar o movimento anteriormente descrito.

Desta maneira as relações económicas entre estes dois grupos de países não pareceriam, enquanto tal, muito promissoras dada a assimetria referida. Todavia, os sistemas bancários das duas regiões resolvem o problema, com os do centro a recolherem as poupanças das famílias locais e a emprestarem aos bancos do sul que por sua vez emprestam às famílias, investidores e Estados periféricos. Naturalmente existe um pressuposto de credibilidade dos países do Sul que assumem a promessa de pagar o capital e um juro periódico.

Este mecanismo de troca de bens e financiamento presentes por promessas de pagamento futuros, ao contrário do que possa parecer, tem potencialidades enormes. A razão está no facto de ambos os lados (ou interesses de ambos os lados) dele beneficiaram8. Os países do centro beneficiaram na medida em que este mecanismo contribuiu para um crescimento elevado e reduzido desemprego nesta região, enquanto as suas famílias acumulavam activos financeiros, os países da periferia beneficiaram, podendo grupos significativos da população usufruir de estilos de vida que de outro modo não teriam, pelo menos neste período.

8É evidente uma responsabilidade comum. Ambas as regiões beneficiaram da situação. Os países do centro, na ânsia de fazerem negócio e lucros emprestaram com enorme facilidade subestimando riscos, os da periferia, desejando os mesmos bens que os do norte já usufruíam, endividavam-se subestimando as dificuldades futuras.

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Este mecanismo, que permitiu manter um sistema de trocas muito assimétrico, tende a engendrar um tipo de relações económicas que provocam o desenvolvimento de desequilíbrios muito sérios como agora constatamos e apenas alguns, poucos, pressentiram. Desde logo, uma tendência para o atrofiamento das estruturas produtivas nacionais impondo-se de forma clara os receios que tinham levado (List, 2006) a defender um proteccionismo para a aprendizagem. O confronto total prematuro entre estruturas produtivas muito diferenciadas qualitativamente não poderia senão redundar numa persistente fragilização da estrutura produtiva de menor qualidade e menos desenvolvida, alargando o lag de competitividade dos países do Sul da Europa face aos outros países designadamente do Norte9.

A existência da moeda única funcionou como um amplificador dos desequilíbrios na medida em que os países do sul contraiam empréstimos sucessivos nas mesmas condições dos países do norte, sendo a percepção do risco entre as duas regiões percebidas durante muito tempo como a mesma, motivando taxa de juro baixa em ambas as regiões. A taxa de juro do BCE do conjunto da eurozone relativamente baixas conduziu a um boom dos empréstimos dos países do sul que se endividaram fortemente (mais pelo Estado, como na Grécia, ou mais pelos privados, como na Espanha ou Irlanda, ou mais ou menos distribuído como Portugal), ao mesmo tempo que os países do norte acumulam pilhas de activos financeiros.

Em grande medida, este tipo de relações já existiam antes da adesão à comunidade europeia mas a integração desenvolveu e aprofundou, sem qualquer mudança significativa, o modelo preexistente. Sustentaremos que, no essencial, estamos perante um tipo de relações que poderíamos denominar de dependência pela forte analogia com o modelo dominante em muitos países em vias de desenvolvidos em décadas anteriores10.

3.3.Os limites: um modelo explosivo

O tipo de modelo a que fazemos referência pode ser representado pela equação: Ek-Sk

=(S-I) +(T-G) +(X-Z)11 com (Ek-Sk)> 0, (S-I) <0, (T-G) <0 e (X-Z) <0, que exprime o financiamento externo do défice de poupança, do défice do Estado e do défice corrente, podendo deduzir-se analiticamente as condições que colocam as dívidas numa trajectória explosiva que não raras vezes desemboca em graves crises financeiras com repercussões políticas imprevisíveis.

9Na última década a Alemanha teve um crescimento dos salários mais lento do que a produtividade ao contrário do que se verificou nos países do Sul da Europa pelo que a competitividade das duas regiões se ampliou notavelmente.

10A tentação de comparar o nosso modelo de crescimento com o que é por vezes conhecido como modelo populista latino-americano é enorme. Na base do modelo encontra-se uma moeda sobrevalorizada, frequentemente associada a uma fixação de paridade em relação a uma moeda forte, e défices orçamentais importantes que permitem elevar o emprego, os salários reais e o bem-estar dos trabalhadores acima da produtividade do trabalho sem os progressos estruturais adequados na economia. Este modelo não sendo sustentável acaba sempre por gerar desequilíbrios que fatalmente conduzem ao seu esgotamento e mesmo ao colapso.

11Nesta expressão, Ek e Sk representam os fluxos financeiros de entrada e saída; S e I a poupança e investimento privados; T e G a receita e despesa pública; X e Z as exportações e importações.

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Há um limite para o funcionamento deste sistema? Sem dúvida, mas é impossível prever o momento da explosão12. Basicamente a divida interna torna-se explosiva quando a taxa de juro real for maior do que a taxa de crescimento económico e a dívida externa quando se verificar a) défices sistemáticos na conta corrente, b) fluxo positivos de empréstimos e financiamentos e c) a taxa de juro externa aumentar.

Éfácil constatar que todas estas condições estavam reunidas no Brasil do final dos anos 90 como estão reunidas hoje em países como Grécia e Portugal. O ministro brasileiro Delfim Neto sustentava que “As dívidas não foram feitas para serem pagas, mas para serem roladas”. É em parte verdade, mas um problema sério começa quando o mercado financeiro se nega a fazer a “rolagem” da dívida em condições aceitáveis para o país

Estas dificuldades manifestam-se num conjunto de situações bem conhecidas, designadamente nas sobras de títulos nos leilões internos e externos e nas subidas das taxas de juro para níveis insustentáveis que acabam por impor reestruturações da dívida interna e externa, aplicações compulsórias e confiscos, queda das bolsas, privatizações, desvalorização da moeda e recessão, numa palavra na crise13.

Será inevitável a explosão da dívida neste modelo numa zona monetária como a do euro? Não necessariamente. Se uma zona monetária se comporta politicamente como um país (seja institucionalmente uma federação ou não), assumindo uma solidariedade ilimitada a todos os seus membros, as restrições à condução da política económica e mesmo ao crescimento não serão fundamentais, embora não se assegure necessariamente uma convergência real. O desmantelamento de todos os obstáculos, designadamente monetários, ao comércio livre implicará que os desequilíbrios económicos que ocorram nas economias menos competitivas serão compensados pela comunidade, no seu conjunto, que deverá manter, de maneira mais ou menos persistente, um fluxo de transferência unilaterais para as economias menos desenvolvidas, financiando os desequilíbrios orçamentais e externos que se tendem a gerar.

Todavia, se não for este o caso14, isto é, se os países mais desenvolvidos temem que défices orçamentais importantes e persistentes em todos os países acabem por criar um problema de estabilidade monetária ou que aqueles défices apenas em alguns possam criar instabilidade monetária e dificuldades políticas entre os diversos países, o mais provável é que a zona monetária acabe por assumir uma solidariedade limitada que tenderá a excluir a não-aceitação do financiamento de défices orçamental e/ou a mutualização da dívida. É o que ocorre presentemente na zona do euro com todas as consequências.

12Entra em dificuldades quando alguns investidores, e depois outros, começam a temer que a divida se está a tornar insustentável como ocorreu com a Grécia recentemente. Quando esta opinião se torna significativa é a crise, quando se torna dominante o sistema entra em colapso.

13Na crise da dívida soberana europeia o governo alemão e dos outros países credores perceberam que os bancos poderiam realizar duras perdas pondo em risco as poupanças das famílias dos países do norte, impondo a salvação dos bancos para proteger as poupanças das famílias e evitar o risco de pânico que poderia provocar o colapso de um sistema bancário europeu já fragilizado pela crise do sub-prime. Assim, disponibilizaram-se a conceder novos empréstimos desde que duros programas de austeridade fossem levados à prática nos países devedores: disciplina fiscal, cortes nas despesas governamentais, aumentos de taxas e impostos, reformas estruturais e deflação salarial. Bailouts na Grécia, Irlanda e Portugal providenciaram a liquidez necessária para que as economias continuassem a funcionar.

14Naturalmente, os países que precisam de ajuda os menos posicionados para reivindicar uma solidariedade ilimitada.

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4. A crise económica portuguesa e política económica

Vimos que o modelo de crescimento que se consolidou na economia portuguesa e mesmo as características da crise actual não comportam diferenças fundamentais em relação a outras situações conhecidas da literatura e história económica internacional, designadamente no Portugal do passado. Há todavia diferenças fundamentais de contexto que fazem toda a diferença nas respostas que podem ser dadas. Referimo-nos em particular aos níveis atingidos pela dívida (pública e externa) e à impossibilidade de uma política monetária própria decorrente da integração na zona do euro. Estas duas restrições são absolutamente fundamentais quando se aborda o problema da definição de uma política económica apropriada.

No passado havia um padrão que se podia tomar como referência, o programa de medidas sugerido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em circunstâncias semelhantes de cuja aplicação resultou um vasto conhecimento das suas virtudes e limitações. Todavia, as restrições referidas colocam em causa uma boa parte do programa standard, designadamente a desvalorização da moeda, peça central no referido programa15, exigindo uma reflexão aprofundada sobre a política económica actualmente em implementação nos países com dificuldades na gestão da dívida soberana.

Neste quadro, a política económica parece orientar-se hoje fundamentalmente em 3 eixos: a consolidação orçamental para limitar de maneira drástica as necessidades de financiamento público e criar condições de sustentabilidade da dívida pública, a deflação salarial como duplo objectivo de reduzir a despesa pública (no caso dos salários do sector) e melhorar através da redução de custos a competitividade externa da economia, e a implementação de um conjunto de reformas estruturais de cariz liberalizante, (incluindo privatizações e flexibilização do mercado de trabalho) com o propósito de introduzir eficiência e promover o crescimento económico.

Claramente, as reformas estruturais, ainda que o governo português nelas coloque as suas melhores expectativas, pelas suas características e timings próprios, não produzirão efeitos significativos sobre a economia nos períodos mais recentes e dificilmente se pode antecipar a dimensão efectiva dos seus efeitos.

A consolidação orçamental desenvolve-se, é preciso sublinhar, num ritmo e com uma arquitectura das medidas a tomar que dependem em grande parte da pressão dos credores, designadamente pelas autoridades internacionais que os substituem ou que enquanto tal se constituem (FMI, BCE, UE). Esta política comporta as medidas habituais de aumentos de impostos e redução de algumas despesas e taxas como a Taxa Social Única (TSU) mas, para além disso, faz um apelo como nunca no passado à deflação salarial dos trabalhadores e pensionistas. É este instrumento que reteremos aqui.

15Neste contexto, num pacote de medidas com um sentido geral de austeridade que integrava o controlo da procura, a elevação da taxa de juro, com o propósito de atrair capital, e outras medidas de emergência ditadas pelas circunstâncias, emergia a desvalorização da moeda como uma política susceptível de contribuir decisivamente para a recuperação da competitividade perdida.

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4.1.A deflação salarial

Iniciemos este ponto com uma precisão. Apesar dos efeitos poderem ser semelhantes, convém distinguir o que chamaríamos de deflação salarial forçada quando um país não detentor de moeda própria é obrigado a reduzir salários aos funcionários públicos e pensões por incapacidade de fazer face às suas obrigações de deflação salarial voluntária quando esta se apresenta como uma política, isto é, como um instrumento para alcançar alguns objectivos de carácter económico designadamente a redução do desemprego e o aumento da competitividade. É sobretudo neste sentido que encararemos os próximos desenvolvimentos.

A redução de salários para além do impacto socioeconómico da redução do poder de compra provoca um importante sentimento de injustiça relativa, minando a coesão social. Este efeito, subliminar e difícil de medir, ainda que frequentemente subestimado, não é de modo nenhum negligenciável nos comportamentos e atitudes dos trabalhadores. J. M. Keynes na Teoria Geral do Emprego do juro e da Moeda (1936) constata uma diferença fundamental entre o efeito de uma baixa de salários reais e do poder de compra provocada pela inflação, que tem efeitos relativamente neutros nos salários relativos e na percepção da justiça16, e o efeito da redução dos salários nominais em relação aos quais “… there is, as a rule, no means of securing a simultaneous and equal reduction of money-wages in all industries… [e por consequência]… it is in the interest of workers to resist to a reduction in their own particular case” (Keynes, 1973: 264).

Compreende-se assim que esta redução tenha sido durante muito tempo considerada pelos economistas uma quase impossibilidade. Desde logo J. M. Keynes que assume expressamente que os trabalhadores oferecem uma firme resistência à baixa de salários sustentando mesmo a sua quase impossibilidade num ambiente democrático. “It is only in a highly authoritarian society, where sudden, substantial, all-round changes could be decreed that a flexible wage policy could function with success17 (Keynes, 1973: 269)

Mas, mesmo autores não keynesianos, embora considerando este comportamento dos trabalhadores não racional, admitem essa resistência como um facto. A globalização18, além de ter desenvolvido uma repartição do rendimento em desfavor do trabalho, introduziu uma alteração nas relações de força que tem facilitado uma certa “vulgarização” da redução de salários nominais, erodindo a relação salarial moderna e progressista a favor da sua condição de base mercantil, a mercadoria força de trabalho tipificada por K. Marx no livro I de O Capital (1867).

De resto, o próprio O. Blanchard (2006), que recomenda esta terapia para a economia portuguesa, nota que as descidas nos salários nominais levantam problemas psicológicos e legais o que pode levar a equacionar a possibilidade de reduzir as taxas para a segurança social, reduzindo os custos do trabalho por esta via, podendo manter

16O sentimento de injustiça amplia-se naturalmente se existem outros factores adicionais como um grande desequilíbrio distributivo e/ou se as responsabilidades pela gravidade da situação podem ser associadas a certos sectores, como o financeiro, usufruindo de rendimentos mais elevados ou a políticos suposta ou realmente detentores de mordomias.

17Também por isso usa na TG a unidade de salário como unidade de medida das variáveis macroeconómicas.

18Com o lançamento no mercado de trabalho global de um exército de mão-de-obra proveniente de países durante muito tempo sujeitos a ditaduras, com reduzidos salários e poucos direitos, a correlação de forças alterou-se fortemente em desfavor dos trabalhadores dos países mais desenvolvidos.

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os volumes de impostos retidos através, por exemplo, da elevação do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) o que sustenta o autor se apresenta difícil dado que já é elevada no quadro da UE19.

Para além destas considerações gerais, três impactos maiores da redução de salários, igualmente presentes na análise aprofundada sobre esta matéria levada a cabo por Keynes na Teoria Geral (TG), justificam hoje a nossa atenção: os impactos sobre a competitividade externa, os efeitos sobre a procura e sobre as dívidas.

4.2.A reposição da competitividade: desvalorização externa vs. desvalorização interna

O caminho para resolver de maneira positiva o problema do sobre-endividamento público e privado e o desequilíbrio externo é o estabelecimento de uma trajectória de crescimento económico. Como os governos e famílias tem a suas despesas limitadas pelas elevadas dívidas a sua procura não poderão deixar de se deprimir, a reposição dos padrões de competitividade num ambiente de austeridade torna-se, de facto, o único caminho possível para aumentar as exportações e o produto. Reencontramos uma situação idêntica à das crises do passado.

Os efeitos de uma desvalorização da moeda em regimes de câmbios fixos ou semifixos parecem claros e estão solidamente adquiridos. Desvalorizando a moeda as exportações tornam-se mais competitivas e importações mais caras. Isto conduz a uma maior procura dos bens exportados, uma redução da procura de importações, melhorando o equilíbrio da balança corrente. Assim, a medida vai no sentido de desenvolver efeitos expansionistas sobre a economia, designadamente sobre o produto e emprego, podendo eventualmente engendrar alguns efeitos colaterais de tipo inflacionista devido à importação de produtos a preços mais elevados em termos de moeda nacional.

Naturalmente, a melhoria da competitividade através da desvalorização dependerá sempre do perfil exportador do país, isto é do tipo e qualidade dos bens produzidos pelos países e pelos seus concorrentes potenciais20.

Apesar disso, se excluirmos uma possível habituação do sector exportador e/ou a eventual tendência para a formação de sobre-lucros nestes sectores não se observam outros efeitos colaterais negativos em consequência da desvalorização, dai fazer parte da panóplia de medidas standard das políticas económicas promovidas designadamente pelas instituições internacionais como o FMI. Mais, o incremento das exportações contribui para atenuar os efeitos negativos do outro conjunto de medidas de austeridade sobre a procura, tendendo ainda a gerar efeitos psicológicos positivos sobre as expectativas dos diversos agentes económicos.

Na impossibilidade, para um país em concreto, de usar este instrumento numa união monetária para a reposição da competitividade, a política económica orientou-se para o instrumento supostamente alternativo da desvalorização interna. Olivier Blanchard,

19O governo pode ainda aumentar o tempo de trabalho sem aumento de compensação salarial. Neste caso reduz o custo unitário do trabalho sem necessariamente reduzir os salários nominais, ainda que possa ter algum efeito negativo sobre o emprego.

20Um grave problema surgirá se os produtos de exportação são tais que a exportação não se eleva mesmo a preços mais reduzidos. É designadamente o que poderá ocorrer com os países periféricos da EU.

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entre outros, sustenta que “The same result can be achieves however, at least on paper, through a decrease in the nominal wage and the price of non-tradables, while the price of tradables remains the same” (Blanchard, 2006: 19).

Embora menos seguro, Keynes também não excluía o possível efeito de uma baixa de salários sobre o comércio externo. “If we are dealing with an unclosed system, and the reduction of money-wages is a reduction relatively to money-wages abroad… it will tend to increase the balance of trade”21 (Keynes, 1973: 262).

Apesar das reservas que o próprio Blanchard enuncia, acaba por sustentar em relação a Portugal que “A decrease in nominal wages sounds exótic, but it can substantially reduce the unemployment cost of the ajustement” (Blanchard, 2006: 24). Dado que a moderação salarial é insuficiente no quadro “inflacionista” moderado da zona euro para reduzir em tempo útil os desequilíbrios existentes, a redução de salários, mais forte no sector público, permitiria, juntamente com outras medidas, reduzir substancialmente os défices orçamentais, contribuindo simultaneamente para a melhoria da competitividade da economia e o desenvolvimento de uma trajectória para o equilíbrio nas duas vertentes.

Mas nós temos razões para considerar que a deflação salarial não é um substituto para a desvalorização externa porque os efeitos expansionistas desta última sobre a procura interna estão nos antípodas dos efeitos deflacionistas sobre a mesma procura resultantes da redução de salários e que estes efeitos, admitidos por Blanchard, são muito mais importantes do que geralmente é admitido pelos defensores desta política.

4.3.A redução dos salários e a procura interna

O processo de desvalorização interna com o propósito de promover a competitividade começa geralmente com a redução dos salários da função pública, o que desde logo provoca uma redução da despesa pública e a melhoria da situação orçamental, para se generalizar em seguida ao conjunto da economia, traduzindo-se por uma redução dos custos de produção designadamente dos bens transaccionáveis fomentando a produção e a substituição de importações e reduzindo o desequilíbrio externo. Até este ponto os efeitos podem revelar-se semelhantes aos que poderiam ser obtidos pela desvalorização externa, caso fosse possível.

A dificuldade é que a história não termina aqui, desenvolvendo-se importantes efeitos colaterais. O efeito da redução de salários nominais sobre a procura interna, sublinhada por Keynes no cap. 19 da Teoria Geral, é indiscutível dado que quebra dos salários sobretudo nas classes de médios rendimentos tem um efeito muito forte sobre a procura interna, penalizando fortemente a produção e o emprego. Este efeito adiciona- se, de resto, às outras medidas de consolidação orçamental como o aumento de impostos na redução do rendimento disponível das famílias22.

A conjugação de todos estes efeitos poderá exercer efeitos devastadores sobre a procura, designadamente sobre a procura à produção nacional com os consequentes

21The greater strength of the traditional belief in the efficacy of a reduction in money-wages as a means of increasing employment in Great Britain, as compared with the United States, is probably attributable to the later being, comparatively ourselves, as a closed system” (Keynes, 1936: 262).

22Estes efeitos poderão ainda ser agravados quando a deflação salarial é acompanhada por uma inflação nos bens de procura generalizada e inelástica como a energia, transportes e alimentação.

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efeitos sobre o emprego23. Esta é uma diferença fundamental entre os dois tipos de desvalorização interna e externa. Enquanto esta última tem efeitos expansionistas sobre o emprego e a actividade económica a desvalorização interna poderá traduzir-se por um longo e penoso processo deflacionista, reduzindo preços, produção, salários e rendimentos.

Épreciso ainda observar que esta espiral deflacionista poderá tornar-se mais facilmente uma realidade no caso de uma economia sobre - endividada.

4.4.A desvalorização interna em ambiente de forte endividamento

Os efeitos da deflação na dívida e suas consequências foram há muito sublinhados por vários autores. A propósito do aumento real do valor da dívida Keynes afirmava: “On the other hand, the depressing influence on entrepreneurs of their greater burden of debt may partly offset any cheerful reactions from the reduction of wages. Indeed if the fall of wages and prices goes far, the embarrassment of those who are heavily indebted may soon reach the point of insolvency, - with severely adverse effects on investment. Moreover the effet of a lower price-level on the real burden of the National Debt and hence on the taxation is likely to prove very adverse to business confidence” (Keynes, 1973: 264).

Estes efeitos tornam-se particularmente importantes no actual contexto em que os países nesta situação enfrentam elevadas dívidas privadas e públicas. A deflação, sobretudo salarial, aumenta o peso da dívida privada e pública, elevando os rácios da dívida em relação ao PIB. Esta é sem dúvida a principal armadilha que estes países enfrentam não sendo seguro que, como sublinhava I. Fisher, os esforços para reduzir a divida não conduzam ao seu agravamento. É por isso que o caminho por ele proposto é exactamente o inverso, isto é a inflação: “… the ways are either via laissez faire (bank- ruptcy) or scientific medication (reflation), and reflation might just as well have been in the first place” (1933: 349) uma vez que a inflação tende a gerar o efeito inverso, reduzindo o peso das dívidas e beneficiando os devedores, designadamente empresas.

Dada a redução do rendimento disponível e consequente aumento do peso das dívidas as famílias reduzem ainda mais as suas despesas ou entram em incumprimento agravando os problemas do sector bancário.

Do mesmo modo, as empresas que produzem para mercado interno com receitas menores, mesmo em ambiente de redução de custos, terão igualmente dificuldades acrescidas para honrar compromissos do passado e manter o emprego.

Os governos enfrentam igualmente maiores dificuldades em lidar com uma situação em que as receitas estão em diminuição e o rácio da divida em crescimento com a redução do denominador.

Os efeitos sobre as expectativas dos agentes económicos e sobre o investimento são igualmente muito negativas e terrivelmente constrangedoras para o crescimento e para o emprego. A situação tenderá a complicar-se mais ainda se vários países desenvolverem simultaneamente esta mesma estratégia de desvalorização interna e promoção das exportações.

23Agravada pela impossibilidade de utilização da política orçamental neste contexto sugerida, de resto, por O. Blanchard para compensar os efeitos negativos da política de deflação salarial.

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Temos, assim, fortes razões para supor que os efeitos depressivos sobre a procura agregada resultantes de uma política deflacionista tenderão a ser mais importantes do que habitualmente se admite, não se podendo excluir uma espiral deflacionista.

Claramente, enquanto a desvalorização externa tende a restaurar a competitividade e o equilíbrio externo a um nível mais elevado do produto, do rendimento e do emprego, a desvalorização interna tende a restaurar os equilíbrios referidos a um nível inferior destas variáveis. Mais, o caminho deveria ser exactamente o inverso, o da inflação e não da deflação, mas essa é uma escolha que não depende directamente dos portugueses.

Chegamos assim a um resultado particularmente incerto. Não sabemos a que nível da produção, emprego e qualidade de vida se realizarão os equilíbrios das contas públicas e o equilíbrio externo e menos ainda se este equilíbrio permite evitar em Portugal a explosão da divida verificada na Grécia mas sabemos que se verificarão para um nível mais baixo do produto, do emprego e do bem-estar das populações com custos tremendos e consequências imprevisíveis.

4.5.A desvalorização interna e deflação. A experiência

Ao contrário das políticas de desvalorização externa cujos contornos e efeitos prováveis estavam mais ou menos estabelecidos as políticas de desvalorização interna e de deflação não fornecem até agora experiências que possam gerar algum optimismo.

No regime de padrão ouro usava-se a deflação para ajustar os défices comerciais. Mas um estudo recente do Banco Mundial (BM) não revela razões para optimismo, pelo menos nas economias modernas. A experiência de 183 países no período entre 1980 e 2008 não se encontram muitos episódios de deflação sustentada e por consequência razões para pessimismo24.

Os resultados dos processos de deflação sobre a competitividade não são evidentes e estão sempre associados a períodos de reduzida actividade económica, por vezes com grandes quebras com o consequente cortejo de perda de produto, de emprego, de capacidade produtiva e de qualidade de vida25.

Mais encorajadora parece ser a experiencia recente da Alemanha pós-reunificação com um processo de “wage planification”. Admite-se geralmente que tenha tido efeitos positivos sobre a competitividade da economia embora outros factores como a aposta num padrão de especialização industrial cada vez mais sofisticado, designadamente em produtos de qualidade e luxo, possa ter pesado mais do que propriamente a contenção salarial26.

24Banco Mundial (2011). “Sovereign Debt and the Financial Crisis: Will This Time Be Different?”, edited by

Carlos Primo Braga and Gallina Vincelette.

25A Argentina, como os países periféricos, perdeu competitividade nos anos 90 quando fixou o peso ao dólar e sustentou três anos de deflação até ao colapso da economia e do “peg” ao dólar. Na zona monetária CFA (Communauté Financière Africaine) a média de inflação entre 1986 e 1993 foi 0,3% e alguns países observaram alguma deflação no fim do período mas que não restaurou a competitividade, acabando com uma grande desvalorização em 1994. Na crise económica sueca dos anos 90 e para acesso da Finlândia à UE em 1995 os resultados são igualmente de efeitos duvidosos.

26A Comissão Europeia (2010) sublinha que o dinamismo dos mercados de exportação da Alemanha explicam quase completamente o crescimento médio anual de 7,3% do volume das exportações alemãs entre 1999-2008 enquanto a contribuição de preços mais competitivos motivado pela contenção salarial não terá excedido 0,3% ao ano. A razão está no padrão de especialização da indústria alemã em produtos

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Alguns autores notam que a "wage planification” levada a cabo pela Alemanha não deixou de ter igualmente efeitos, embora de sentido contrário, sobre as economias dos outros países do euro. “Excessive wage restraint in Germany will … put pressure on wages policy in the other EU countries in the medium term. The fact that inflation in Germany is lower than the EU average means that price competitiveness of German producers in the european market is constantly increasing” (Eckhard Hein et al., 2004).

A deflação salarial ganhou popularidade recentemente durante a recessão 2008-2010 quando vários países (Estónia, Letónia e Lituânia) a utilizaram com o objectivo de restaurar a competitividade e equilibrar os orçamentos nacionais. Em meados da década passada estes países fizeram o “peg” ao euro, desenvolvendo “booms” mas perderam competitividade. Com a crise de 2008 o produto caiu severamente naqueles países que apesar disso mantiveram o “peg” e aplicaram políticas de austeridade, começando as suas economias agora a dar sinais de crescimento apoiadas nas exportações após intervenção do FMI e de uma brutal quebra no produto.

Os gráficos que se seguem apresentam a evolução do produto (taxa de variação) e do desemprego nos três países do Báltico, Irlanda, Portugal e Grécia. Em relação ao produto é visível uma dupla tendência no que concerne à trajectória da crise. Uma trajectória em V dos três países bálticos e da Irlanda (menos cavado) e uma trajectória em U prolongado que no caso português tem uma contratendência em 2010 por efeito de uma política extraordinariamente expansionista que muito contribuiu para o forte agravamento das contas públicas.

 

 

 

 

 

 

 

Gráfico 4

 

15

PIB (tva)

 

 

 

 

Taxa de Desemprego

Estonia

 

 

 

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

 

 

20

Greece

 

 

 

 

 

 

 

Ireland

 

 

 

 

 

 

 

 

18

 

 

 

 

 

 

 

 

Latvia

5

 

 

 

 

 

 

 

16

 

 

 

 

 

 

 

Lithuania

 

 

 

 

 

 

 

 

14

 

 

 

 

 

 

 

 

Portugal

0

 

 

 

 

 

 

 

12

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

 

 

10

 

-5

 

 

 

 

 

 

Estonia

 

 

 

 

 

 

 

8

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

-10

 

 

 

 

 

 

Greece

6

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Latvia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

-15

 

 

 

 

 

 

Lithuania

2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Portugal

0

Fonte: FMI, WEO,

-20

Fonte: FMI, WEO, 09/2011

 

Irlanda

2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

 

 

 

 

 

 

 

09/2011

A leitura das taxas de desemprego vai no mesmo sentido, apenas se mantendo tendências de agravamento em Portugal e Grécia, onde acelerou de forma dramática.

Das experiências conhecidas verifica-se que não é seguro que a baixa de salários nos países periféricos da Europa aumentem a sua competitividade face a países mais competitivos e aos países emergentes de mais baixos salários, podendo simplesmente ocorrer um fenómeno de concorrência limitada entre si com ganho para o que

que as mais dinâmicas economias emergentes querem equipamento informáticos, infra-estruturas de transporte secundária.

comprar (automóveis de luxo, máquinas, etc.). Nesta equação os preços são matéria

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conseguir impor salários mais baixos. Mas, nas condições da crise soberana de Portugal e Grécia há um factor geralmente inexistente em contextos exteriores que não tem sido devidamente levado em consideração e no qual nós insistimos: o nível da dívida atingido por estes países.

Não havendo experiência da utilização da desvalorização interna e da deflação em ambiente de forte endividamento e dadas as considerações teóricas anteriormente desenvolvidas não é improvável que uma espiral deflacionista recessiva possa vir a provocar situações de colapso social e politico.

5. As condições de crescimento sustentado

A questão mais profunda que preocupa subliminarmente as mentes nos países periféricos da Europa é certamente a de saber se os seus países têm condições para se manter integrados na economia cosmopolita do euro, i.e. se conseguem não apenas estabilizar as suas economias mas ainda retomar uma trajectória de crescimento que lhes permita no mínimo não divergir. Esta questão é particularmente importante no caso de Portugal, dada a anemia do crescimento registada na última década apesar das condições muito favoráveis de que desfrutou, ambiente externo favorável, apoios externos da União Europeia, políticas orçamentais de cariz expansionista e ausência de restrições de liquidez.

5.1.Globalização, integração, crescimento e convergência

Com a adopção do euro todos as barreiras à concorrência no interior desta área foram abatidas, criando-se todas as condições para uma avaliação da tese defendida pelas teorias dominantes do comércio internacional de que da livre concorrência resultam necessariamente benefícios para todos, designadamente para os países menos competitivos, em condições idênticas às de um sistema de padrão-ouro.

Na verdade, a julgar pelos resultados analíticos fornecidos pelas teorias económicas dominantes não deveriam existir obstáculos fundamentais ao desenvolvimento dos países do Sul da Europa mesmo no quadro do movimento de globalização e de integração europeu. Com efeito, estão bem estabelecidas as teorias que conduzem à defesa do comércio livre como resultado fundamental. Seja para beneficiar de diferenças relativas de produtividade (D. Ricardo), de diferenças de dotações factoriais (Heckscher-Olhin-Samuelson) seja tirar partido de economias de escala ou diferenciação de produtos, os países tem em geral vantagem no desenvolvimento das suas relações de comércio com outros países.

Não se exclui evidentemente que a par dos benefícios possam existir custos associados às reestruturações produtivas necessárias para alcançar os benefícios referidos. Desde logo entre sectores com aumento da produção de sectores exportadores e redução de sectores concorrentes com a importação (Ricardo e H-O-S), declínio dos sectores mais intensivos em trabalho e expansão de sectores mais intensivos em capital e/ou trabalho qualificado no caso dos países mais avançados, com consequências sobre a distribuição do rendimento em principio a favor do factor mais escasso. Nos modelos mais recentes, estes resultados não são fundamentalmente postos em causa embora importantes “nuances” possam aparecer. Alguns sustentam que a intensificação do

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comércio internacional com a globalização reafectam recursos não apenas entre sectores mas igualmente intra-sectores, fomenta o desenvolvimento das empresas de maior produtividade e o declínio ou encerramento, das de menor produtividade em todos os sectores exportadores líquidos ou não, podendo segundo alguns, gerar ganhos para todos os factores produtivos27.

De há muito este optimismo livre cambista ocupa uma posição dominante na literatura económica28 o que não exclui interpretações heterodoxas sobre esta matéria como a Friedrich List. Este autor, precursor da Escola Histórica Alemã, que confronta a Escola Clássica Inglesa, merece, apesar de ter sido relativamente esquecido pelo pensamento económico moderno, ser recordado no momento actual designadamente porque interpela, igualmente, o pensamento dominante contemporâneo.

Aanálise de List situa-se numa perspectiva histórico-evolucionista que se exprime através de uma definição de estádios de desenvolvimento e que conduz a dois resultados que sublinhamos, usando as palavras do autor: “(1) Ficou claro para mim que a concorrência livre entre duas nações muito avançadas na cultura só podia ter resultados benéficos se ambas estivessem a um nível aproximadamente igual de formação industrial;… (2) e que uma nação que, por infeliz destino, estivesse muito atrasada na sua indústria, comércio e navegação, possuindo, de resto, os recursos mentais e materiais para a sua formação, tinha primeiro que se tornar capaz por esforço próprio antes de poder concorrer livremente com nações mais avançadas. Numa palavra, descobri a diferença entre economia cosmopolita e política” (List, 2006: 40).

F. List não era, todavia, nem anti-europeu nem anti-globalização, opondo simplesmente à teoria do valor da Escola Clássica uma teoria das forças produtivas que sustenta que a riqueza de um país reside mais nos factores potenciais e estruturantes do que no valor criado num dado momento, exigindo-se a criação de um conjunto de condições prévias ao pleno confronto concorrencial. “Uma nação como a Inglesa, cuja força de manufactura ganhou enorme avanço em relação a todas as outras nações, mantém e alarga melhor a sua supremacia na manufactura e no comércio através de um comércio o mais livre possível" (List, 2006: 110).

De passagem, aquele autor denuncia ainda a suposta neutralidade científica cientificidade do pensamento clássico. “Daí a preferência de esclarecidos economistas ingleses pela liberdade comercial absoluta, e a aversão de sensatos economistas de outros países à aplicação deste princípio nas condições actuais mundiais” (List, 2006: 110).

Apoiando a sua análise na força do argumento histórico o autor germânico recorda a orientação e os resultados da acção do Conde da Ericeira nos seguintes termos: “ Portugal, todavia, com um ministro sábio e forte, fazia uma tentativa de estabelecer uma indústria de manufactura, cujo sucesso inicial nos espanta” (List, 2006: 190) para contrastar as potencialidades do desenvolvimento manufactureiro português com as consequências do Tratado de Methuen para Portugal. “Imediatamente após a

27Para uma síntese recente ver Manteu, Cristina (2008).

28A situação é muito menos evidente ao nível da política económica das organizações internacionais sobretudo se excluirmos os níveis comunicacionais e propagandísticos. A história do GATT ou da OMC é tanto a história do incremento da comunicação liberal como a manutenção/institucionalização de obstáculos ao livre-cambismo da teoria dominante, não sendo difícil de detectar os beneficiários da liberalização e dos proteccionismos.

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consumação deste contrato comercial, Portugal foi inundado de manufacturas inglesas. E a primeira consequência desta inundação foi a repentina e completa ruína das fábricas portuguesas” (List, 2006: 192). “A agricultura e a indústria, o comércio e a navegação em Portugal, em vez de aumentarem com o intercâmbio com a Inglaterra, afundavam-se mais e mais” (List, 2006: 197).

Esta análise de F. List surge confortada quando a compaginamos com alguns factos históricos posteriores bem conhecidos. Na verdade, todos os casos de sucesso de países menos desenvolvidos em termos da obtenção de um ritmo sustentado de crescimento e convergência real das suas economias, desde a industrialização da Alemanha aos novos países industrializados da Ásia (NICs) e actuais países emergentes, tiveram sempre como base uma inteligente e hábil gestão dos obstáculos de vário tipo (tarifários, não-tarifários e monetários) combinados com uma política prudente de abertura ao exterior.

Ora, com a adopção do euro todos as barreiras à concorrência no interior desta área foram abatidas, criando-se todas as condições para uma avaliação da tese defendida pelas teorias dominantes do comércio internacional de que da livre concorrência resultam necessariamente benefícios para todos, designadamente para os países menos competitivos, restaurando-se as condições idênticas às de um sistema de padrão-ouro. Resta saber se o optimismo da Escola Clássica prevalecerá na prática sobre o pessimismo da Escola Alemã.

5.2.As condicionantes teóricas e políticas dos espaços integrados

Não merece qualquer sublinhado a constatação de que a política económica se altera fundamentalmente quando um país prescinde da sua própria moeda e assume a moeda de um espaço integrado. Desde logo a perda da taxa de câmbio como variável de ajustamento da economia face ao exterior limita de maneira fundamental a capacidade de gerir a economia e de modo a manter a competitividade externa da mesma. Mas a ausência de moeda própria implica ainda o aumento de dificuldades e restrições na gestão das políticas de crédito e de preços o que limita a capacidade de ajustamento das variáveis-preço face a desequilíbrios que se venham a verificar, sejam eles de origem externa ou interna.

O salário nominal tornado a única variável - preço flexível não poderá responder a choques assimétricos senão à custa de processos deflacionistas dolorosos e de quebras de coesão social que podem assumir proporções imprevisíveis. O mesmo é dizer: não existem mecanismos automáticos social e politicamente aceitáveis que acomodem os necessários desequilíbrios que necessariamente tendem a surgir numa economia em crescimento.

Épreciso notar que a perda de soberania resultante da decisão de aderir a uma zona monetária estende-se de maneira menos directa a outras variáveis e à política económica, limitando-as de forma mais ou menos importante com especial incidência na política orçamental. Este aspecto tem sido muito mal compreendido por certos países, sobretudo pelos que desenvolveram uma tradição de défices públicos persistentes.

Nas condições de solidariedade limitada, anteriormente referida, a política orçamental, numa zona monetária, tenderá a realizar-se através de regras, assumidas no caso da

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UE nos denominados Programas de Estabilidade e Crescimento (PECs), que limitam de maneira considerável a política discricionária. Normalmente, será definido um corredor centrado num défice estrutural de certo montante. Isto significa que abdicar da soberania monetária é aceitar uma soberania orçamental limitada. Claramente, se o país possui uma dívida e serviço da dívida elevados não haverá seguramente qualquer margem para a política orçamental discricionária.

A única possibilidade de se poder conduzir uma política orçamental discricionária em períodos recessivos, expressão de uma certa dose de soberania, é a de manter o saldo orçamental e a sua dívida numa área de conforto que lhe permita aumentar significativamente a despesa em períodos de recessão. O equilíbrio orçamental aparece como a referência tendencial quando se pretende algum espaço de soberania orçamental.

O Estado, na medida em que afecta um volume significativo de recursos na economia continuará a ter um lugar importante mas de tipo qualitativo, exprimindo diferentes escolhas entre usos alternativos num quadro de equilíbrio orçamental (ou quase) de longo prazo ao mesmo tempo que a natureza e estrutura do Estado se devem conformar à restrição de soberania referida.

Com a redução do papel da política macroeconómica tanto em termos de estímulo à actividade económica em geral como nas suas funções de estabilização, o crescimento (ou melhor a sua insuficiência) passa a ser um problema passível de ser tratado apenas numa perspectiva microeconómica e mesoeconómica, reduzindo-se substancialmente a esfera de acção da política económica. Tal é a principal consequência no plano da política económica da perda de soberania no plano monetário.

5.3.Exportação, crescimento e equilíbrio de longo prazo em espaços integrados

A ausência de moeda própria impede que o mecanismo da taxa de câmbio reponha os equilíbrios entre bens transaccionáveis e não transaccionáveis, afectando os recursos entre estes dois sectores. Assim, tenderão a desenvolver-se efeitos cumulativos num sentido ou noutro conforme as estruturas económicas e as políticas dos diferentes países. Os países que desenvolverem excedentes comerciais tenderão a reforçar a sua estrutura produtiva investindo mais, captando mais e melhores recursos a preços mais baixos não só para os sectores exportadores mas para o conjunto da economia, melhorando o próprio enquadramento dos sectores exportadores e o seu potencial de crescimento. Em sentido contrário, os países que desenvolvem défices comerciais, sobretudo os pequenos países, tenderão a enfrentar preços fixados internacionalmente, frequentemente desfavoráveis, fracos rendimentos, que contribuem para inibir o desenvolvimento da produção de bens transaccionáveis, dificuldades crescentes na captação de recursos de qualidade e/ou a preços aceitáveis, gerando desequilíbrios persistentes e mesmo agravamento até que nova crise reponha os equilíbrios perdidos. Evidentemente, o processo descrito é em tudo idêntico às situações que tendem a ocorrer num sistema de câmbios fixos. Mas há uma diferença fundamental. Enquanto neste sistema se pode lançar mão da desvalorização da moeda antes que os desequilíbrios se agudizem gravemente, num sistema de moeda única esta possibilidade não existe. Neste quadro só as crises reporão os equilíbrios económicos de longo prazo, criando condições para que a economia se recomponha. “As crises são

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soluções violentas e momentâneas das contradições existentes, erupções violentas que restabeleçam temporariamente os desequilíbrios perdidos” (Marx, 18. /1976). Naturalmente os desequilíbrios tenderão a surgir espontaneamente por acção das dinâmicas económicas embora a sua amplitude possa alargar-se (como aconteceu no caso Português e Grego) ou reduzir-se em função das políticas implementadas. Neste particular, é fundamental não contribuir para que um excesso de despesa designadamente do Estado amplifique os desequilíbrios. A despesa salarial e social deve ter em conta a sobredeterminação referida e evoluir de acordo com o próprio crescimento da produção nacional. Pode pressionar esta temporariamente mas não dela se afastar persistentemente.

Uma consequência importante no plano analítico deve ser sublinhada. No longo prazo o sector de bens transaccionáveis “sets the pace” à produção de todas as outras riquezas e sectores. O potencial de crescimento da economia depende fundamentalmente do potencial de crescimento do sector transaccionável, ver exportador.

A forte relação entre o crescimento económico e a variação das exportações é bem conhecida com uma forte correlação (0,86) a nível mundial, apresentando-se igualmente de maneira bem expressiva no gráfico que se segue (à esquerda). Esta correlação é igualmente muito forte na maior parte dos países do euro (12) com excepção de Portugal, Grécia e Espanha como se pode observar no gráfico da direita.

 

 

 

 

 

Gráfico 5

 

 

Produto e Exportação Mundial

 

Exportação/PIB

 

 

6

 

 

1

 

PIB

 

y = 0,2655x + 1,2983

0,9

 

 

5

R² = 0,7333

 

 

0,8

 

do

 

4

 

 

0,7

 

 

 

 

0,6

 

crescimento

 

3

 

 

 

 

 

 

0,5

 

 

 

2

 

 

0,4

 

 

 

 

 

0,3

 

 

 

1

 

 

 

 

 

 

 

0,2

 

 

 

0

 

 

0,1

 

de

 

 

 

0

 

 

 

 

 

 

-10

-1

0

10

20

 

-20

 

Taxa

 

-2

 

 

 

 

 

 

-3

 

 

 

 

Taxa de crescimento das exportações

Correlação

Fonte: AMECO

Fonte:FMI

 

 

 

 

 

Mas o que queremos verdadeiramente sublinhar é esta característica de que numa economia sem moeda própria o ritmo de crescimento de equilíbrio de longo prazo da economia tenderá a ser determinado pelo ritmo de crescimento do sector exportador. Do mesmo modo, a evolução dos salários médios da economia não poderá deixar de estar em linha, no longo prazo com a evolução da produtividade e salários do sector exportador. A capacidade de desenvolver um modelo exportador de elevado valor acrescentado decidirá da possibilidade de aproximação da economia portuguesa às mais desenvolvidas.

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Este resultado associa-se à profunda alteração na natureza e dimensão dos instrumentos de acção dos governos para apoiar as economias, colocando estas fundamentalmente dependentes de si próprias, mais precisamente do que poderíamos denominar de factores endógenos de crescimento como o território e recursos, população e conhecimento, carácter e iniciativa, preferências individuais, institucionais etc. Em particular, as políticas dirigidas ao investimento designadamente ao investimento directo estrangeiro são fundamentais. Mas “Em vez de políticas de atracção de largo espectro…é preferível adoptar políticas específicas, selectivamente orientadas e bem focadas nos projectos-alvo mais interessantes, particularmente projectos que produzam em Portugal bens e serviços exportáveis…” (Pinto: 252).

Em todo o caso, todas as políticas devem estar ao serviço de uma estratégia clara. Só o desenvolvimento da sofisticação das estratégias e operações empresariais, em especial nos sectores de bens transaccionáveis, e das preferências individuais e institucionais a favor da produção nacional permitirão, conjugadamente, a criação de condições renovadas de crescimento sustentado da economia portuguesa. Embora não assegurando necessariamente qualquer convergência real da economia portuguesa aquela estratégia é condição necessária para evitar a estagnação que marcou a última década da economia portuguesa e evitar um contínuo empobrecimento a que um fardo de dívida e de juros nos parece ter condenado.

A menor influência directa do Estado na economia não significa a impossibilidade total de influenciar alguns dos factores que denominámos de exógenos. Significa que a possibilidade de afectar recursos em áreas que possam estimular o crescimento depende agora muito significativamente da dimensão e qualidade do Estado e dos seus sectores29 e que a capacidade de influenciar muitos dos factores endógenos referidos, como a capacidade e iniciativa empresarial e certas preferências pessoais e institucionais, ficam dependentes do desenvolvimento de estratégias e acções imaginativas mas eficazes na fronteira do quadro legal comunitário. Esta possibilidade dá especial relevo à necessidade de uma reorientação da procura para a produção nacional o que dificilmente poderá ocorrer pelo simples funcionamento automático dos mecanismos de mercado. O Homem de Estado tem de saber “como as forças produtivas duma nação inteira são despertadas, multiplicadas, protegidas, o que as enfraquece, ou adormece ou mesmo mata…” (List, 1841/2006: 581).

6. Conclusão

A análise da economia ao longo das últimas décadas mostra que a economia do país progrediu, é certo, mas apresenta alguns traços que parecem permanecer secularmente na nossa história. A pimenta das Índias, o ouro do Brasil, as remessas dos emigrantes e o financiamento externo da Europa (fundos estruturais e empréstimos) contribuíram fundamental para alimentar gastos mais ou menos sumptuosos como as sedas, a construção de conventos, as guerras ou a o exuberante consumo duradouro de gama elevada. Só não serviram, no passado como hoje, para criar uma base produtiva capaz de sustentadamente manter um progresso económico de acordo com as aspirações dos portugueses.

29Um Estado austero, pequeno e flexível tenderá, nestas circunstâncias, a deixar mais espaço para as funções sociais e de fomento desenvolvidas pelo Estado, limitará os factores de corrupção nas suas diversas formas típicas ou mitigadas e obrigará a uma estrutura de fiscalidade mais competitiva.

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O desenvolvimento na última década de um modelo explosivo de estagnação, desequilíbrio e dependência, baseado num nível insuficiente de produção em relação a um consumo excessivo, financiado pelo exterior, de características explosivas, muito semelhante ao que se desenvolveu em muitos países da américa latina duas décadas antes, acabou por atingir o colapso quando as condições de financiamento da divida se tornaram insustentáveis e a União Europeia se negou a uma solidariedade ilimitada.

Este colapso tornou indispensável uma política de estabilização marcada pela forte austeridade designadamente de desvalorização salarial. Mas esta política subestima largamente os efeitos depressivos sobre a procura agregada, em especial em contexto de forte endividamento, ameaçando conduzir a economia para uma espiral deflacionista que pode pôr em causa os próprios objectivos de consolidação orçamental e ameaçar a estabilidade social e política. Assim, nem a teoria nem as experiências, muito limitadas, ajudam a clarificar os caminhos que se abrem. Saber se a economia portuguesa vai encontrar os caminhos da retoma e recuperação ou se simplesmente se vai enredar numa espiral recessionista que a conduzirá a uma estagnação e depressão é uma questão fundamental e tem uma resposta simples: não sabemos.

As condições de crescimento sustentado e crescimento real nos países periféricos integrados no euro tornam-se uma questão fundamental, em particular após a anemia do crescimento registada na última década apesar das condições muito favoráveis de que desfrutou tanto em termos da conjuntura e apoios internacionais como em termos das políticas expansionistas internas. A evolução recente da economia portuguesa, mas igualmente outras experiencias internacionais, parecem mais de acordo com as análises pessimistas de F. List sobre as consequências negativas do abatimento completo dos obstáculos à concorrência entre países de níveis de produtividade e desenvolvimento muito desiguais do que às teorias optimistas das vantagens do comércio livre em todas as circunstâncias.

No quadro do euro, sem política monetária e com uma política orçamental conduzida por regras, a política orçamental discricionária só se torna possível numa banda muito estreita através da criação de uma zona de conforto a ser mobilizada em períodos de recessão. A actividade económica em geral não encontra nenhum espaço de fomento na política macroeconómica pelo que deve ser promovido através de uma política microeconómica e mesoeconómica.

Por outro lado, na ausência de mercado cambial, o crescimento do sector exportador no longo prazo sets the pace” à produção de todas as outras riquezas e sectores enquanto a evolução da sua produtividade tende a servir de referência de equilíbrio para os salários do conjunto da economia. Políticas públicas de moderação salarial e social, bem como um Estado estrito na sua estrutura para manter a abrangência das suas funções, tornam-se necessárias para evitar a ampliação dos desequilíbrios que a dinâmica económica tende a gerar, os quais, na ausência de sistemas de preços que os corrijam, conduzirão inevitavelmente à sua resolução pela crise.

A adopção de um ponto de vista da Economia Nacional, que promova o estímulo dos factores “endógenos” e procure tirar partido dos benefícios da União Europeia de modo a manter uma trajectória de progresso, apesar de políticas europeias nem sempre convergentes e adequadas à nossa situação particular, torna-se indispensável. A construção de um modelo de uma economia exportadora de elevado valor acrescentado surge como a estratégia necessária ao crescimento estável do produto, dos salários e

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do bem-estar. Tornar possível este desiderato é o desafia que se coloca às autoridades, empresários e trabalhadores portugueses. Se este caminho não garantir a convergência real da economia portuguesa permitirá mantê-la num clube de ricos, mesmo que em declínio no crescimento e desorientado nas políticas.

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