OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 144-159
Notas e Reflexões
A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – O
papel do Tribunal de Justiça da União Europeia
Cristina Crisóstomo
email: anacristinaborges@zonmail.pt
Licenciada em Direito (UAL), Mestre em Direito (Faculdade de Direito de Lisboa),
Pós Graduada em Direito Comunitário e Direito da Integração (Instituto Europeu Faculdade de
Direito de Lisboa). Docente universitária e coordenadora da Pós Graduação em Direito Bancário e
dos Seguros. Tem larga experiência como consultora e formadora, tem colaborado com as mais
diversas entidades, designadamente DECO, INA, CES e Ordem dos Advogados e em projectos
transnacionais. É Perita do Comité Económico e Social Europeu para as questões do Direito do
Consumo e Direito Bancário e da Odysseus Academic Network
– Observatório da Liberdade de Circulação de trabalhadores.
O texto originário dos tratados constitutivos das três comunidades Europeias não
incluíam qualquer referência à tutela dos direitos fundamentais. O direito comunitário
originário pretendia ser mais um “bill of powers” do que um “bill of rights”. Entendia-se
não ser esse o objecto dos tratados constitutivos das comunidades
1
, fazendo parte, por
um lado, dos textos constitucionais dos Estados Membros e, por outro, do âmbito das
atribuições do Conselho da Europa
2
.
Porém, o processo de integração europeu conduziu à criação de uma estrutura jurídica
supranacional, muito para além do que estava previsto nos Tratados Constitutivos e
acabaria por gerar, tanto uma situação de potencial conflito com os Direitos
Constitucionais nacionais, quanto a necessidade de procurar mecanismos que permitam
à interpenetração das distintas ordens jurídicas. Originalmente concebido de forma
sectorial e adstrito apenas às áreas económicas e comerciais, adquiriu com o tempo,
uma dimensão bem mais ampla do que a concebida pelos seus fundadores. Ao longo
deste processo, a questão jurídica sempre foi fundamental, isto porque a instituição de
um Mercado Comum (objectivo original da Comunidade Económica Europeia em 1957)
pressupôs não apenas etapas “negativas” de integração regional, tais como a abolição
de barreiras alfandegárias e não alfandegárias ao comercio interno do bloco, mas
também etapas “positivas”, tais como a elaboração de um acervo jurídico comum em
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1
Tratado que instituí a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), Tratado que instituí a
Comunidade Económica Europeia (1957) e Tratado que instituí a Comunidade da Energia Atómica (1957)
2
Fundado em 5 de Maio de 1949, tem como principal propósito a defesa dos direitos humanos, o
desenvolvimento e a estabilidade político-social da Europa. No seio desta organização foi instituído o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a quem cabe a aplicação da Convenção Europeia dos Direitos
Humanos.
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áreas como a proteção dos trabalhadores, do consumidor e do meio ambiente, entre
outros. Por outro lado, a integração europeia sempre possuiu uma forte componente
jurídica, na medida em que desde o início foi “rule oriented”, ou seja, baseada em
procedimentos que ocorrem dentro de parâmetros jurídicos, os quais restringiram,
sensivelmente, a utilização de mecanismos meramente políticos no relacionamento
mútuo dos Estados-membros.
Sob a perspectiva jurídico-institucional, a característica do processo de integração mais
surpreendente sempre foi, sem dúvida, a supranacionalidade que indica também uma
situação política sui-generis, em que Estados soberanos aceitam a imposição de
decisões tomadas pela organização, mesmo quando estas não correspondem aos seus
interesses particulares. A dinâmica de integração e a progresso dos Tratados
Constitutivos ampliou consideravelmente a transferência de competências, tanto
quatitativas quanto qualitativas, dos Estados em favor da União. A UE dispõe
atualmente de competências em sectores que se estendem da agricultura, siderurgia,
energia atómica, concorrência, política do trabalho, social, fiscal, económica e
monetária, política comercial e de desenvolvimento, pesquisa e tecnologia, educação,
transportes, cultura, meio ambiente, até as disposições sobre política externa, de
segurança e de defesa comum, e políticas de emigração e asilo. Desta forma, as
competências e os deveres da UE abrangem quase todos os sectores de atuação
estatal, expandindo-se, em larga medida, para além dos limites de uma integração
meramente sectorial ou económica, incluindo a zona sensível dos direitos
fundamentais.
Desde cedo se constatou a necessidade de criar um sistema eficaz de proteção dos
direitos fundamentais a nível comunitário no qual a elaboração de um catálogo de
direitos fundamentais seria parte essencial, catálogo esse ausente dos Tratados
instituidores das comunidades.
O AUE
3
, que constituiu a primeira alteração de grande envergadura dos tratados
originários, revê o Tratado da Roma com o objectivo de relançar a integração europeia
e concluir a realização do mercado interno. Veio alterar as regras de funcionamento das
instituições europeias e alarga as competências comunitárias, nomeadamente, no
âmbito da investigação e desenvolvimento, do ambiente e da política externa comum,
no qual se inscreveu, no preâmbulo do ato, pela primeira vez, uma fórmula genérica de
declaração de direitos:
DECIDIDOS a promover conjuntamente a democracia, com base
nos direitos fundamentais reconhecidos nas constituições e
legislações dos estados-membros, na Convenção de Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta
Social Europeia, nomeadamente a liberdade, a igualdade e a
justiça social…
4
.
Ainda assim, entre avanços e recuos, só com o Tratado de Maastricht se viria a
concretizar uma tutela mais ou menos efetiva de direitos fundamentais no seio da
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3
Assinado no Luxemburgo a 17 de Fevereiro de 1986.
4
Preâmbulo do Acto Único Europeu.
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União, plasmada no então artigo F, nº 2 que passou a vincular a União Europeia ao
respeitos dos “direitos fundamentais tal como os garante a convenção europeia de
salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (…) e tal como
resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados–Membros, enquanto
princípios gerais do direito comunitário”.
Acresce que a previsão de um estatuto de cidadania da União, reconhecido a todos os
cidadãos dos Estados-membros e envolvendo a titularidade de certos direitos, incluindo
direitos políticos (artigos 17º a 22º do Tratado da Comunidade Europeia) constituiu um
catálogo de modificações importantes, alargadas, no seu âmbito de aplicação, pelos
Tratados de Amesterdão e de Nice, mas que falharam o objectivo de dotar as
comunidades europeias de um catálogo de direitos fundamentais.
Porém, a elaboração de um catálogo de direitos fundamentais só ficou decidida no
Conselho Europeu de Colónia de 3 e 4 de Junho de 1999, cujas especificidades ficaram
estabelecidas no anexo IV ao Documento das conclusões da Presidência, de onde
destacamos a seguinte passagem:
“... Na presente fase da evolução da União, impõe-se elaborar
uma carta dos direitos fundamentais na qual fiquem
consignados, com toda a evidência, a importância primordial de
tais direitos e o seu alcance para os cidadãos da União”.
Pretendia-se, assim, tornar visíveis os direitos dos cidadãos e para os cidadãos,
mediante um catálogo de direitos fundamentais dotado de primazia normativa, força
jurídica vinculativa e aplicabilidade directa, não se pretendia, no entanto, alterar as
competências comunitárias em matéria de direitos humanos. O conteúdo da futura
carta deveria reflectir o acquis comunitário e europeu em matéria de direitos
fundamentais e deveria conter três grandes categorias de direitos:
Os direitos e liberdades pessoais, tal como garantidos pela Convenção Europeia
para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e nas
tradições constitucionais comuns aos Estados-membros.
Os direitos próprios dos cidadãos comunitários, no fundo os direitos associados
ao estatuto de cidadania da União e por esta razão reservados aos cidadãos dos
Estados-membros ( já previstos no Tratado que institui a Comunidade
Europeia).
Os direitos de natureza económica e social, tal como estavam consagrados na
Carta Social Europeia e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais
dos Trabalhadores.
Por outro lado, a elaboração da Carta seria participada pelas principais instituições da
União e contaria com o contributo dos parlamentos nacionais.
Numa primeira análise ao projecto de catálogo de direitos fundamentais, podemos
retirar desde logo duas conclusões: que a Carta não foi concebida com o intuito de
ampliar as competências da União e que o Conselho Europeu de Colónia tornava bem
explícito que a questão de atribuir carácter vinculativo à Carta ficaria adiada sem prazo
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específico ao afirmar: “...Posteriormente, estudar-se-á a oportunidade e,
eventualmente, o modo como a Carta deverá ser integrada nos Tratados...”.
Desta forma, assumiu-se um compromisso meramente político sem carácter
vinculativo.
A 15 e 16 de Outubro do mesmo ano, em Tampere, foi concretizado o enunciado no
Conselho de Colónia e decidida a constituição de uma convenção para a elaboração da
Carta projectada em Colónia, convenção essa que pela primeira vez juntou, num
processo directo, o contributo dos representantes dos governos e parlamentos
nacionais para a elaboração do direito da União. Tendo reunido pela primeira vez em
Dezembro desse ano e aprovado o projecto final em 2 de Outubro de 2000 em Nice.
Todo o processo de redacção dos direitos fundamentais, na forma de Carta, foi
desenvolvido por representantes dos governos nacionais, da Comissão Europeia e por
deputados dos parlamentos nacionais e europeu. Presidido por Roman Herzog, ex-
presidente da RFA e do respectivo Tribunal Constitucional alemão, este processo
apresenta uma inovação, uma vez que se assistiu à participação dos parlamentos
nacionais e dos governos nacionais, reforçando, desde logo, ao nível do processo
decisório, a visibilidade e a legitimidade do catálogo de direitos fundamentais, bem
como a expressão das várias sensibilidades europeias.
Com efeito, o Conselho Europeu de Tampere fixou o princípio da publicidade dos
debates e dos documentos apresentados, assim, todos os documentos da presidência
da Convenção, bem como todos os contributos dos participantes e de outros grupos se
encontram disponíveis na internet.
A Convenção concluiu os seus trabalhos e apresentou o projecto de Carta na sua
versão final em 2 de Outubro de 2000, a fim de permitir ao Conselho Europeu debater
o texto no decorrer da cimeira informal de 13 e 14 de Outubro de 2000, em Biarritz,
tendo obtido parecer favorável. De igual modo, o Parlamento Europeu também se
pronunciou favoravelmente sobre o texto, a 14 de Novembro de 2000 e a 7 de
Dezembro, do mesmo ano, desta forma a Carta dos Direitos Fundamentais foi
proclamada pelas três instituições.
A Carta resulta da existência de um acervo em matéria de protecção dos direitos
fundamentais, quer ao nível dos Estados-membros e das suas tradições constitucionais,
que consubstancia os princípios gerais de direito comunitário, quer ao nível
internacional, com o novo paradigma de soberania assente na necessidade de partilhar
responsabilidade na tutela destes direitos. Pretende, ainda, plasmar os direitos de
cidadania europeia, designadamente, a Carta Comunitária dos Direitos Sociais
Fundamentais dos Trabalhadores e a Carta Social Europeia, dando assim consagração
formal à vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça no âmbito dos Direitos
Fundamentais. Transforma-se num instrumento jurídico comunitário, gozando da sua
tutela e sindicância e ultrapassando a esfera meramente estadual.
As principais funções cometidas à Carta são funções de carácter geral, enquanto
instrumento que legitima a acção política da União e o correspectivo aumento da
segurança jurídica e a necessária visibilidade e aproximação dos cidadãos a este
acervo.
Porém, podemos ainda identificar objectivos específicos, a Carta enquanto mecanismo
de controlo e de regulação do exercício das competências comunitárias, sendo que tal
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não significa o aumento das competências da União, mas antes a forma como elas
devem ser exercidas, permitindo assim a sindicância por parte das instâncias
jurisdicionais competentes.
A vinculação formal à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a respectiva
submissão ao controlo do Tribunal de Justiça, bem como a clarificação da
compatibilidade entre a Carta e as Constituições nacionais, não pressupõe modificações
no direito constitucional nacional, mas antes surge como critério de interpretação.
Ainda enquanto critério de orientação, nas relações da União e restante comunidade
internacional, designadamente, ao nível da Política Externa e a Segurança Comum, nas
relações com países terceiros e mais especificamente nas relações com os Estados do
alargamento.
Finalmente, a Carta garante a salvaguarda de direitos já existentes ao nível da
Convenção e desta forma gera uma correspondência e integração destes direitos no
acervo da União.
Não obstante a sua proclamação solene no Conselho Europeu de Nice em 2000, a Carta
manteve a sua natureza jurídica não vinculativa até 2007, altura em que o Tratado de
Lisboa lhe conferiu força obrigatória reconhecendo o seu valor jurídico ao nível dos
Tratados.
Aliás, neste domínio, o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em Dezembro de 2009,
já previa a adesão à Convenção, estando a Comissão munida de um mandato para este
efeito, assim o programa de Estocolmo, adoptado pelo Conselho Europeu de 11 de
Dezembro de 2009, previa também ele, a adesão rápida da União à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, consolidando desta forma o quadro jurídico de
protecção dos direitos fundamentais no acquis da União. O programa plurianual de
Estocolmo
5
(vigora entre 2010 e 2014) tem como missão aprofundar os avanços
alcançados no âmbito do Espaço de Liberdade Segurança e Justiça e concentrar a
atenção nos interesses e necessidades ligados à cidadania. O desafio consistirá em
alcançar um equilíbrio entre a necessidade de assegurar o respeito dos direitos e
liberdades fundamentais do individuo e a necessidade de garantir a segurança na
Europa. Por outro lado, o Programa de Estocolmo prevê que a União Europeia adira
“rápidamente” à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, tendo a Comissão Europeia apresentado um projecto de
decisão do Conselho da União Europeia no sentido de a autorizar a negociar o acordo
de adesão da União à Convenção.
6
O estatuto da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, só recentemente e, com a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ficou claro no seio da ordem jurídica
comunitária, em bom rigor, em Março de 2010.
Para trás, ficou uma longa experiência, baseada na jurisprudência do Tribunal de
Justiça de aplicação dos direitos fundamentais.
Na verdade, o escopo essencialmente económico dos tratados, ainda que alienando a
questão da proteção dos direitos fundamentais, permitiu que, por força das regras de
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5
Adoptado pelo Conselho Europeu a 11 de Dezembro de 2009, EUCO 6/09 – Conclusões.
6
Documento de Reflexão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre determinados aspectos da adesão
da União Europeia à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais.
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conformação das liberdades económicas, os direitos, tutelados pela ordem jurídica
comunitária, se repercutissem na esfera jurídica dos cidadãos europeus. Ainda que
indireta e instrumentalmente, estes direitos foram sendo regulados e assumindo um
papel fundamental no acervo comunitário, nomeadamente, o direito à não
discriminação em razão da nacionalidade, o direito de livre circulação e de acesso ao
exercício de uma profissão ou atividade económica no território de um Estado-membro
e a liberdade de estabelecimento, da mesma forma que eram previstos alguns direitos
económicos e sociais, como a igualdade de salário entre homem e mulheres.
Na ausência de uma declaração de direitos, coube ao Juiz comunitário, partindo de uma
apreciação casuística, a definição de um modelo comunitário de tutela dos direitos
fundamentais.
Importa, assim, analisar o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia na jurisdição
dos direitos fundamentais que antecipou a expressa consagração destes direitos como
uma verdadeira política comunitária, resultado do carácter vinculativo que o Tratado de
Lisboa atribui à carta.
A evolução da sua jurisprudência ilustra a contribuição do Tribunal de Justiça para a
criação de um espaço jurídico que diz respeito aos cidadãos, protegendo os direitos que
a legislação da União lhes confere em diferentes aspectos da sua vida quotidiana. Desta
forma, ao decidir que o respeito dos direitos fundamentais é parte integrante dos
princípios gerais de direito, cujo respeito lhe incumbe garantir, contribuiu também de
forma considerável para o aumento dos níveis de protecção desses mesmos direitos
O Tribunal de Justiça da União incluí o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e tribunais
especializados, cabe ao TJUE, composto por estas três jurisdições, a principal missão de
apreciar a legalidade dos actos da União e assegurar o integral cumprimento dos
Tratados bem como zelar pela interpretação e aplicação uniforme do direito da União.
O TJUE ao longo dos anos foi criando, através da sua jurisprudência, a obrigação dos
legisladores, das administrações e dos juízes nacionais aplicarem plenamente o direito
da União no interior das respectivas esferas jurisdicionais e de protegerem os direitos
conferidos aos cidadãos europeus. Esta jurisprudência consolidou o princípio do
primado do Direito Comunitário e do efeito direto do direito da União Europeia.
O aprofundamento normativo do processo de integração, intimamente relacionado com
a afirmação do primado e do efeito direto, como critérios básicos de articulação entre a
ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas nacionais, inculcou na generalidade
das normas comunitárias a característica da imediatividade. O primado e o efeito direto
da norma comunitária conferem ao particular o direito de exigir a sua aplicação em
detrimento da norma nacional contrária.
Acontece, porém, que como destinatário direto do comando normativo comunitário, o
particular pode vir a ser afectado na sua qualidade de titular de direitos reconhecidos
pela Constituição nacional ou pelas convenções internacionais aplicáveis,
designadamente no que toca aos Direitos Fundamentais.
Assim, o Tribunal de Justiça viu-se perante um dilema, abdicar do primado sempre que
estivesse em causa a força vinculativa dos Direitos Fundamentais, ou, não abdicar da
natureza incondicional e absoluta da exigência do primado. Da análise da
Jurisprudência do Tribunal de Justiça, podemos afirmar que, num primeiro momento,
se optou por uma visão agnóstica, por mais relevantes que fossem os direitos
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fundamentais na sua forma constitucional ou internacional, o juiz comunitário não os
reconhecia como parâmetros de apreciação da validade dos atos comunitários.
O Tribunal de Justiça entendeu que deveria zelar pela imposição do primado e a
eliminação de quaisquer excepções que o pudessem relativizar ou enfraquecer, ainda
que sacrificando preceitos constitucionais sobre direitos fundamentais ou regras
internacionais sobre Direitos do Homem, não permitindo ao individuo a invocação da
sua constituição ou de instrumentos internacionais para se opor à aplicação de um ato
comunitário potencialmente restritivo de Direitos Fundamentais. Desta forma, o
Tribunal de Justiça rejeitou a tutela autónoma dos Direitos Fundamentais.
Podemos afirmar que o Tribunal violava o próprio Tratado, na medida em que, o art.
19º do TUE concebe o tribunal como o órgão de “garantia do respeito do direito”. Ora,
por legado histórico ou por força da experiência constitucional vigente, o direito
consubstancia a proclamação e a tutela efetiva dos Direitos Fundamentais.
Esta posição do Tribunal de Justiça sofre uma alteração importante, com o Acórdão de
12 de Novembro de 1969, proferido no caso Stauder, que consubstancia a passagem
de uma fase ”agnóstica” para uma fase de reconhecimento ativo dos Direitos
Fundamentais, “… compreendidos nos princípios gerais do direito comunitário, cujo
respeito é assegurado pelos tribunais
7
.
A “comunitarização” dos Direitos Fundamentais, por referência aos princípios gerais de
direito, já tinha sido aventada pelo advogado Geral Lagrange no caso Comptoirs. Por
outro lado, não podemos deixar de sublinhar que é o próprio Tratado, no art. 340º
(TUE) que reconhece os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-membros em
matéria de responsabilidade extra contractual.
No domínio sensível dos Direitos Fundamentais iria revelar-se extremamente profícuo o
recurso aos princípios gerais de direito como técnica de integração e autonomização de
direitos e liberdades consagrados nos sistemas nacionais. Trata-se até de uma proteção
reforçada, dado que os princípios gerais primam sobre o direito comunitário derivado e
sobre os próprios Tratados sempre que acolham direitos inerentes à dignidade da
pessoa humana, os quais pela sua força ético-jurídica são insusceptíveis de derrogação.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça vem dar um contributo importante para a
determinação de uma noção material de princípios gerais de direito ínsitos nas
tradições constitucionais dos Estados-membros e integrados na estruturas e nos
objectivos do acervo comunitário
8
.
O Tribunal de Justiça avoca para si, em colaboração com os tribunais nacionais, a tutela
dos Direitos Fundamentais, dando início a uma terceira fase na jurisprudência
comunitária
9
, caracterizada pela determinação de um critério materialmente amplo de
Direitos Fundamentais. As tradições constitucionais comuns, as próprias constituições
dos Estados-membros, bem como os instrumentos internacionais relativos aos Direitos
do Homem, aos quais os Estados-membros hajam aderido ou cooperado, formam um
vasto conjunto normativo de revelação dos Direitos Fundamentais que devem ser
garantidos pelo juiz comunitário em cooperação com os tribunais nacionais. Como

7
Acórdão Stauder,Proc.29/69, de 12 de Novembro de 1969, Relatório TJC 1969, pág. 419.
8
Acórdão Internationale Handelsgesellsschaft, Proc. 11/70, de 12 de Dezembro de 1970, Relatório do
TJC1970, pág.1125.
9
Acórdão Nold II, Proc. 4/73, de 14 de Maio de 1974, Relatório TJC 1974, pág. 491.