OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 119-134

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS

FUNDAMENTOS

Mateus Kowalski

email: mateus.kowalski@gmail.com

Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito. Autor de artigos e comunicações sobre Teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de segurança. Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta. Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no domínio do Direito Internacional

Resumo

A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é referido como a instituição paradigmática da concepção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em particular, têm-lhe sido apontadas um conjunto de críticas essenciais, tais como a dependência face ao Conselho de Segurança, sugerindo ingerência política num órgão penal, ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas ao Tribunal situações relativas a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a sua selectividade. Estas são críticas que põe em causa os fundamentos do TPI.

Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também por isso, ainda paira alguma expectativa e até cepticismo sobre o sucesso da sua missão, saber o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e retribuição penal e de construção da paz depende em grande medida da resistência dos seus alicerces teóricos. É argumentado que, apesar do discurso de sustentação aparentemente sólido radicado no universalismo, as respostas que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias devido, em grande medida, às insuficiências estruturais que a caracterizam. O artigo, que pretende apontar pistas de reflexão sobre o tema, afere, primeiro, sobre a competência do universalismo jurídico para sustentar o “seu” TPI face àquelas problemáticas. Em seguida, identifica elementos que possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como o da teoria crítica, que possa contribuir para o desenvolvimento de um discurso que confira ao Tribunal uma maior sustentabilidade teórica.

Palavras-chave

Tribunal Penal Internacional; Direito Internacional; Universalismo; Teoria Crítica

Como citar este artigo

Kowalski, Mateus (2011). "O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de

resistência aos seus fundamentos”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2,

N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art6

Artigo recebido em Julho de 2011 e aceite para publicação em Outubro de 2011

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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 119-134

O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de resistência aos seus fundamentos Mateus Kowalski

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS

FUNDAMENTOS

Mateus Kowalski

1. Introdução

A implementação da ideia de que qualquer indivíduo onde quer que se encontre e independentemente do seu estatuto oficial pode ser responsabilizado por crimes de relevância para toda a humanidade é uma ruptura com o paradigma vestfaliano de que cabe a cada Estado julgar (ou não) os “seus”. Após a Guerra-fria foram criados diversos tribunais penais internacionais, designadamente os tribunais ad hoc para a ex- Jugoslávia e para o Ruanda, e um tribunal penal de carácter permanente, o Tribunal Penal Internacional (doravante “TPI”). O poder deixou de constituir um escudo de impunidade como anteriormente. Os líderes envolvidos em conflitos aprenderam a temer a justiça penal internacional como uma “espada de Dâmocles”. Por outro lado, a criação de jurisdições penais internacionais, nas suas diversas formas, passou a ser um método para a consolidação da paz em situações de pós-conflito enquanto mecanismo de justiça restaurativa.

A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é mesmo referido como a instituição paradigmática da concepção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Conforme referem Bogdandy e Dellavalle, «no contexto global, o progresso deste projecto de uma verdadeira ordem pública internacional e de um verdadeiro Direito Internacional assenta actualmente e em larga medida no destino do Direito Penal Internacional» (2008: 2). Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em particular, têm-lhe sido apontadas um conjunto de críticas essenciais, de que são exemplo representativo a dependência face ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, sugerindo ingerência política num órgão penal, ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas ao Tribunal situações relativas a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a sua selectividade. Estas são críticas que põe em causa os fundamentos do TPI no quadro do universalismo.

Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também por isso, ainda paira alguma expectativa e até cepticismo sobre o sucesso da sua missão, saber o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e retribuição penal e de construção da paz depende em grande medida da resistência dos

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seus alicerces teóricos. É argumento do presente estudo que, apesar do discurso de sustentação aparentemente sólido radicado na perspectiva universalista, as respostas que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias devido, em grande medida, às insuficiências estruturais que a caracterizam. Assim, sujeitar o TPI a um teste de resistência no que respeita aos seus fundamentos teóricos permite identificar os seus pontos de tensão e, simultaneamente, procurar outros campos teóricos que possam produzir um discurso que o acolha e sustente.

O presente estudo, que pretende apontar pistas de reflexão sobre a temática, aferirá, primeiro, a competência do discurso do universalismo jurídico para sustentar o “seu” TPI face àquelas problemáticas. Em seguida, procurará identificar elementos que possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como o da teoria crítica, que assim lhe possa eventualmente conferir maior sustentabilidade teórica.

2. O Universalismo e o TPI

A teorização sobre a universalidade da ordem pública e, em especial, o debate actual em torno da sua constitucionalização, é, ao nível do Direito Internacional, um expoente da racionalidade moderna que caracteriza o pensamento liberal dominante. Por sua vez, a narrativa da paz liberal, em cuja agenda o TPI se inscreve, assume-se como uma concepção universalista de base racional (Richmond, 2008).

Ao contrário do que acontece com as concepções conservadoras do Direito Internacional, as correntes que se congregam no universalismo defendem que uma ordem pública internacional é possível e recomendável, quando não mesmo uma construção lógica induzida pela razão (Dellavalle, 2010). Estas correntes partilham uma concepção universal da ordem pública, dotada de um núcleo normativo fundamental que é comum aos actores internacionais e instituições para a acção colectiva em prol de objectivos universais. Para o universalismo, o Direito Internacional deve, pois, regular de forma abrangente a sociedade internacional nas várias dimensões da actuação humana que não se confinem à jurisdição do Estado e relativamente aos seus vários actores, designadamente o indivíduo. Para se atingir este objectivo é necessária a cooperação e integração parcial entre Estados (idealmente democráticos), num processo devidamente enquadrado por organizações internacionais.

Os ideais de Kant de um Direito cosmopolita e de uma república mundial fundada na razão conformam o ponto de partida do entendimento universalista da ordem pública, hoje dominante e com expressões marcantes na doutrina liberal vigente. O processo mental subjectivo próprio de cada indivíduo determinado pela razão passa a ser o elemento comum que fundamenta o universalismo.

A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigência cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitucionais nacionais. Surge, assim, a proposta do constitucionalismo global como forma apologética do universalismo de racionalidade objectiva. O constitucionalismo global é porventura a mais importante alteração estrutural dos últimos tempos no âmbito da teoria do Direito Internacional, tendo vindo a marcar de forma prevalecente o debate na disciplina (Machado, 2006). No fundo, a proposta do constitucionalismo global oferece uma

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compensação normativa para os défices constitucionais estaduais induzidos pela globalização (Peters, 2009).

O TPI enquadra-se de forma evidente nesta concepção universalista de matriz liberal. O que se torna visível a dois níveis: por um lado, no exercício da justiça penal para além do Estado e, por outro, na valorização do indivíduo enquanto sujeito relevante das relações sociais internacionais.

No que respeita ao primeiro, a acção penal é um poder tradicionalmente característico do núcleo de soberania do Estado. O TPI significa uma ruptura com este postulado clássico: o poder penal passa a poder ser exercido também numa ordem que está além da esfera pública estadual. Este poder penal internacional não carece de uma autorização pelos Estados. O inquérito, o mandado de detenção ou o julgamento podem ser despoletados por uma decisão do Tribunal, podendo mesmo ser contrária à vontade dos Estados que tenham jurisdição primária sobre o caso. Assim é nas situações em que a jurisdição tenha sido estabelecida pelo Procurador ou pelo Conselho de Segurança, nos termos do artigo 13.º do Estatuto do TPI, o que pode mesmo implicar assumir a jurisdição face a Estados que não são Parte no Estatuto. O que se traduz no reforço da ordem pública internacional dotando-a de uma jurisdição de competência penal, à semelhança do que acontece nas ordens estaduais.

No que respeita ao segundo aspecto, será de realçar que o Tribunal desenvolve a sua acção centrado no indivíduo. Desde logo na medida em que prossegue, através da justiça, os objectivos da protecção e promoção dos direitos humanos e da restrição do recurso à força e minoração dos seus efeitos ao nível das populações civis. No quadro do TPI, estes são objectivos que traduzem uma preocupação com a dignidade universal da pessoa humana, uma preocupação atribuível à comunidade internacional e não tão- somente ao Estado. Mas a centralização no indivíduo tem também outras manifestações importantes, como seja a capacidade de intervenção dos indivíduos no processo penal internacional. Ora, nenhuma das partes no processo é um Estado: antes, são, por um lado o Procurador e, por outro, o réu1. Depois, o inquérito pelo Procurador pode ter origem em comunicações de organizações não-governamentais, as quais contribuem, igualmente, na recolha da prova testemunhal e documental. Importa igualmente sublinhar que um funcionário internacional, o Procurador do TPI, pode por sua própria iniciativa abrir um inquérito2. Finalmente, as vítimas são uma figura interventiva no processo, assumindo um papel semelhante ao que lhes é atribuído ao nível penal estadual.

3. Críticas ao TPI e a Resposta do Universalismo

Actualmente têm persistido algumas críticas duras ao TPI relativas aos seus fundamentos e que, de alguma forma, reflectem uma preocupação com a imposição de soluções ético-normativas “ocidentais” de matriz liberal. Elas são essencialmente de duas ordens: estatutária e factual. Tenham elas origem em razões próprias do seu estatuto jurídico ou em motivações políticas do quotidiano, é possível identificar na

1A designação dos casos que decorrem perante o TPI reflecte a ideia de um sistema acusatório internacional em que as partes são o Procurador e o réu. A título de exemplo, o primeiro caso do TPI tem a designação de Prossecutor v. Thomas Lubanga Dilo.

2Artigo 15.º do Estatuto do TPI.

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perspectiva universalista uma argumentação que procura rebater aquelas críticas e sustentar o TPI através de um discurso de racionalidade objectiva.

3.1. A Dependência face ao Conselho de Segurança

A crítica de que a acção do Tribunal se encontra excessivamente dependente do Conselho de Segurança e que, portanto, é em larga medida determinada por critérios políticos e não por critérios jurídicos de atribuição de competência, é uma preocupação que remete para um aspecto estatutário. Efectivamente, o poder do Conselho de Segurança sobre a acção do TPI encontra-se previsto no Estatuto do Tribunal, nomeadamente nos seus artigos 13.º e 16.º.

O artigo 13.º, al. b) estabelece que o Conselho de Segurança pode submeter ao Procurador uma situação em que existam indícios de terem sido cometidos crimes graves de competência do TPI. Assim, das sete situações em apreciação3, duas foram submetidas por aquele órgão. Este poder conferido ao Conselho de Segurança tem merecido, desde os trabalhos preparatórios do Estatuto do TPI, várias objecções: desde a denúncia da perda de independência e credibilidade do Tribunal que tal significa, passando pela defesa de que o Conselho de Segurança não tem competência em matéria de justiça penal internacional nos termos da Carta das Nações Unidas ou até pela acusação de que tal cria uma situação de selectividade no estabelecimento da jurisdição (Yee, 1999).

Qualquer destas críticas tem subjacente que a submissão de casos ao TPI está sujeita a critérios de decisão política diferente dos critérios de admissibilidade próprios de um órgão jurisdicional como o TPI. A tudo isto acresce o facto de dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, três deles – a China, os Estados Unidos da América e a Rússia – não serem Parte no Estatuto do Tribunal. Uma vez que dispõem de direito de veto4, qualquer situação que ocorra no seu território ou que envolva nacionais seus nunca teria, certamente, qualquer possibilidade de ser submetida ao Tribunal. O que reforça a ideia de que o exercício da jurisdição do Tribunal pode ser selectivo, em função das dinâmicas próprias do Conselho de Segurança.

O poder do Conselho de Segurança previsto no artigo 16.º do Estatuto é, todavia, aquele que tem sido apontado como constituindo a ingerência política mais grave. Nos termos daquela disposição, o Conselho de Segurança pode decidir suspender um inquérito ou procedimento criminal em curso no TPI por um período de doze meses renovável. O Conselho de Segurança chegou mesmo a aprovar resoluções conferindo imunidade em abstracto a pessoas envolvidas em operações de paz ao serviço de um Estado que não seja Parte no Estatuto do TPI5. Pode mesmo ser argumentado que se trata de uma modificação do Estatuto de Roma pelo Conselho de Segurança (Jain, 2005). O que, por um lado, choca com o propósito de combate à impunidade pelos mais graves crimes internacionais e, por outro, demonstra todo o alcance da intervenção que o Conselho de Segurança está disposto a empreender. Várias organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos têm, aliás, apontado

3Incluindo a situação relativa à Costa do Marfim cuja admissibilidade se encontra, ao tempo destes

escritos, em apreciação pelo 2.º Juízo de Instrução.

4Vide artigos 27.º, n.º 3 da Carta das Nações Unidas e 13.º, al. b) do Estatuto do TPI.

5Vide, por exemplo as Resoluções S/RES/1422, de 12 de Julho de 2002, e S/RES/1487, de 12 de Junho de 2003.

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a promiscuidade entre acção jurisdicional e lógica política como prejudicial para a justiça penal internacional (Bourdon, 2000). Poderia, antes, ter sido privilegiado um mecanismo de concertação e diálogo entre o Conselho de Segurança e o Tribunal (Bourdon, 2000).

No caso do crime de agressão, o papel do Conselho de Segurança vai ainda mais longe. A conferência de revisão do Estatuto do TPI, que decorreu em Kampala, em 2010, introduziu o crime de agressão – não definido inicialmente no Estatuto – estabelecendo que o exercício de jurisdição pelo Tribunal depende de uma prévia determinação pelo Conselho de Segurança de que houve um acto de agressão6.

A esta perspectiva crítica do papel do Conselho de Segurança face ao TPI está subjacente uma preocupação com o exercício de funções por um órgão executivo, centrado no círculo estrito dos seus membros permanentes e sem verdadeiros mecanismos de controlo político ou jurisdicional (Kowalski, 2010). Preocupação para a qual o próprio discurso do universalismo não fornece resposta.

Todavia, uma análise da problemática pela perspectiva do universalismo produz argumentos que relegam aquelas críticas para um plano secundário e que salientam, ao invés, a evolução na conformação da ordem pública internacional. Assim, no que se refere à capacidade do Conselho de Segurança em submeter uma situação ao Tribunal ela representa, desde logo, a possibilidade do TPI julgar crimes relacionados com Estados que não são Parte no Estatuto e sobre os quais não poderia de outra forma exercer a sua jurisdição. Mais do que tudo, a intervenção do Conselho de Segurança prevista no artigo 13.º, al. b) é um mecanismo que permite contornar a vontade dos Estados e, assim, alargar a jurisdição do Tribunal. Uma vez que são Parte no Estatuto apenas 116 Estados, o mecanismo de submissão pelo Conselho de Segurança assegura, potencialmente, que o Tribunal possa julgar crimes cometidos em qualquer local por qualquer pessoa. Por outro lado, o Conselho de Segurança tem, efectivamente, capacidade para assuntos de ordem penal, como aliás argumentou o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia no caso Tadić7. Um outro argumento em favor desta opção é de que assim o Conselho de Segurança deixaria de constituir tribunais penais ad hoc, como aconteceu nos casos da ex-Jugoslávia e do Ruanda (Cassese, 2008).

No que respeita ao mais polémico poder de suspensão do inquérito ou procedimento criminal em curso, a narrativa do universalismo argumentará que este foi um mecanismo de compromisso negocial necessário: haveria que existir um equilíbrio entre a acção do Tribunal e a responsabilidade principal do Conselho de Segurança na manutenção da paz e segurança internacionais. Aliás, analisados os trabalhos preparatórios, o artigo 16.º retira poder ao Conselho de Segurança face ao estabelecido no projecto de Estatuto elaborado pela Comissão de Direito Internacional que serviu de base para as negociações8. O então artigo 23.º, n.º 3 daquele projecto estabelecia que o TPI não poderia iniciar qualquer procedimento relativamente a uma situação que estivesse em apreciação no Conselho de Segurança ao abrigo da capítulo VII da Carta,

6Vide UN Depository Notification C.N.651.2010.TREATIES-8, 29 November 2010. O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição se o Conselho de Segurança não se pronunciar num prazo de seis meses após a

notificação pelo Procurador da sua intenção em abrir um inquérito relativo a um acto de agressão.

7Prosecutor v. Duško Tadić, ICTY – Appeals Chamber, Decision on the Defense Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, 2 October 1995.

8Vide International Law Commission (1997). Yearbook of the International Law Commission: 1994, II(2).

New York: United Nations.

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a menos que este decidisse em contrário. Após intensas negociações, no que ficou conhecido como o “compromisso de Singapura”, foi invertida a forma de intervenção do Conselho de Segurança, passando este a agir apenas quando pretenda suspendar o procedimento.

Por outro lado, ainda, é um facto que até ao momento o Conselho de Segurança nunca usou o poder de suspender um inquérito ou procedimento criminal em curso. Alguns Estados Africanos têm até exercido grande pressão para que o Conselho de Segurança exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 16.º do Estatuto do TPI, nomeadamente face à situação do Sudão (Darfur) em que Omar Al Bashir, Presidente do Sudão, se encontra acusado de genocídio, de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra. O que demonstraria a responsabilidade e a cautela com que o Conselho de Segurança encara este seu poder.

Assim, para esta concepção, lidas aquelas disposições no contexto mais abrangente do exercício da acção penal internacional, a intervenção do Conselho de Segurança resulta de um consenso necessário para a edificação do TPI, significando um mal relativo, quando não mesmo um benefício. Seguindo esta linha de raciocínio, e apesar da abundante literatura que refere argumentos como a vulnerabilidade de nacionais dos Estados Unidos da América ou até a inexistência de julgamento por júri como causa para aquele Estado não ser Parte no Estatuto, Schabas defende que o busílis estará antes na excessiva independência do TPI face ao Conselho de Segurança (2004).

3.2. A Selectividade no exercício da Jurisdição

Uma outra crítica forte que se tem feito ouvir essencialmente ao nível político- diplomático e que tem gerado alguma hostilidade por Estados Africanos relativamente ao TPI respeita a um aspecto factual: até ao presente apenas foram submetidas ao TPI situações relativas a África. Tal denotaria selectividade na acção do Tribunal.

Todas as sete situações referidas ao TPI dizem respeito apenas a Estados Africanos: ao Uganda, à República Democrática do Congo, à República Centro Africana, ao Sudão (Darfur), ao Quénia, à Líbia e à Costa do Marfim. Esta constatação, factual e indesmentível, tem fomentado a acusação de que o TPI não é imparcial no estabelecimento da sua jurisdição, acompanhada de denúncias, pelo menos implícitas, de neo-colonialismo.

Estas acusações têm congregado o protesto de vários Estados de África, mais ou menos unidos numa posição comum, que se tem manifestado essencialmente através da União Africana. Na sequência da emissão do mandado de detenção pelo TPI contra Omar Al Bashir tem-se assistido a uma reacção dura contra a tentativa do Tribunal em julgar líderes Africanos, designadamente de Estados que não são Parte no Estatuto do TPI. Na 15.ª Cimeira da União Africana, os seus Estados Membros reiteraram que não cooperariam com o Tribunal na detenção e entrega de Omar Al Bashir. Por outro lado, recusaram um estreitamento da cooperação com o TPI ao rejeitarem a abertura de um gabinete de ligação em Adis Abeba9. As viagens do Presidente do Sudão a Estados terceiros que são Parte no Estatuto do Tribunal têm igualmente gerado alguma tensão. Na polémica viagem de Omar Al Bashir ao Chade e ao Quénia, o TPI exigiu que aqueles

9Vide “15th AU Summit – Press Release 104: ‘Decisions on the 15th AU Summit’”, 29 July 2010. 125

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Estados cumprissem o mandado de detenção e entregassem o Presidente do Sudão ao Tribunal. A União Africana reagiu de forma grave contrapondo com decisões tomadas por aquela organização e argumentando que ela melhor conhece a realidade da região10, assumindo assim uma atitude de rejeição face a uma ingerência neo- colonialista. Mais recentemente, a emissão de um mandado de detenção pelo TPI contra o líder Líbio Muammar Gaddafi levou a União Africana a pedir aos seus Estados Membros que ignorassem aquele mandado. Como que sintetizando as preocupações de vários Estado Africanos, o Presidente da Comissão da União Africana, Jean Ping, referiu que o TPI é discriminatório porque apenas se ocupa de crimes cometidos em África, ignorando os cometidos pelas “potências ocidentais” no Iraque, Afeganistão e Paquistão11.

Neste sentido, a União Africana tem repetidamente tentado que o Conselho de Segurança das Nações Unidas suspenda o procedimento que corre no TPI contra Omar Al Bashir12, por via do expediente previsto no artigo 16.º do Estatuto do TPI. Uma vez que o Conselho de Segurança não se tem mostrado aberto a suspender o procedimento, a União Africana chegou a propor uma emenda ao artigo 16.º no sentido de, quando o Conselho de Segurança não queira agir, permitir a transferência daquela competência para a Assembleia Geral das Nações Unidas13 onde a suspensão de um processo gozaria de condições mais favoráveis para ser aprovada.

As motivações para estas críticas são essencialmente políticas. A elas o discurso radicado no universalismo responde com critérios de estrita observância do Estatuto do TPI no qual são Parte trinta e dois Estados Africanos, fazendo deste o grupo mais representado.

Assim, e desde logo, assinala que a complementaridade é um princípio que informa o exercício da jurisdição pelo TPI. Significa, nos temos do artigo 1.º do Estatuto, que o TPI é complementar das jurisdições penais nacionais, exercendo a sua jurisdição apenas quando aquelas não queiram ou não tenham capacidade genuína para julgar. O não ter capacidade para julgar, que pode determinar a intervenção complementar do TPI, inclui os casos em que os suspeitos hajam sido abrangidos por uma amnistia (Cassese, 2008). Esta posição subsidiária face às jurisdições nacionais pretende igualmente incentivar os Estados a iniciar procedimentos criminais quando estejam em causa crimes de extrema gravidade (Kleffner, 2008). Este princípio de complementaridade contrapõe-se à primazia de que gozam os tribunais ad hoc para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda face às respectivas jurisdições penais nacionais.

Logo, se o Tribunal iniciou procedimentos criminais no âmbito daquelas situações em Estados Africanos fê-lo porque ou foram os próprios Estados a referir a situação – o que acontecem na maioria das situações14 – ou porque existiam indícios fortes da prática de crimes graves de relevância para toda a comunidade internacional e os Estados com jurisdição primacial não quiseram ou não puderam genuinamente julgar. O facto de o Tribunal se encontrar a apreciar situações referentes a Estados que não são Parte no

10Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.

11Vide Associated Press “African Union calls on Member States to Disregard ICC Arrest Warrant Against Libya’s Gadhafi”, 2 July 2011.

12Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.

13Vide “Report on the Ministerial Meeting on the Rome Statute of the International Criminal Court (ICC)”, AU Executive Council Document EX.CL/568 (XVI), 29 January 2010.

14São os casos do Uganda, da República Democrática do Congo, da República Centro Africana ou da Costa do Marfim.

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Estatuto – como por exemplo o Sudão ou Líbia – não pode merecer crítica, na medida em que tal possibilidade resulta do próprio Estatuto com o intuito de evitar situações de impunidade.

Posto isto, a acusação de selectividade apenas faria agora sentido se se argumentasse que outras situações noutras partes do globo deveriam também ser submetidas ao Tribunal. Neste caso já não estaria em causa a justeza dos casos em apreciação relativos a situações em África mas antes a injustiça de outras situações permanecerem impunes. Ademais, a verdade é que foram ou estão ainda a ser examinadas outras situações pelo Tribunal, em concreto pelo Gabinete do Procurador, incluindo relativas a outras regiões para além de África, designadamente sobre factos ocorridos no Afeganistão, na Colômbia, na Geórgia, na Guiné, no Iraque, na Palestina, na Venezuela, na Nigéria, nas Honduras ou na República da Coreia. O exame preliminar obedece a critérios gerais e abstractos estabelecidos pelo Procurador com base no Estatuto do Tribunal15, o que impede formalmente qualquer selectividade ou discriminação na decisão de iniciar ou não procedimentos criminais numa determinada situação.

4. As Insuficiências do Universalismo: Haverá Alternativa?

Os dois grupos de críticas a que se aludiu merecem da narrativa do universalismo uma resposta aparentemente segura e convincente, formulada em torno de argumentos lógico-dedutivos e que pretende a sustentabilidade do Tribunal enquanto elemento estruturante da ordem pública internacional. Contudo, se se fizer deslocar o foco da crítica para a construção universalista em si, será o quadro teórico da ordem pública internacional em que se faz situar o Tribunal que estará então a ser posto em causa. O TPI poderá ver-se desprovido de sustentabilidade teórica e encontrar-se em risco de desagregação ou pelo menos em risco de vir a ser relegado para um plano secundário no sistema internacional quando o seu estado de graça terminar.

As críticas, insuficiências e necessidades não cumpridas da teoria universalista, e em especial no campo do constitucionalismo global, levam à necessidade de sondar novos caminhos para o Direito Internacional, enquanto ciência jurídica. A abordagem pós- positivista, nomeadamente a radicada na teoria crítica, já mais desenvolvida noutras ciências sociais, incluindo nas Relações Internacionais, pode oferecer um caminho para repensar o Direito Internacional. Em particular no que respeita ao TPI, importará identificar alguns elementos fundamentais do Tribunal que permitam uma sua leitura e sustentação além das insuficiências do universalismo.

4.1. As Insuficiências do Universalismo

Desenhar a ordem pública internacional sob a régua e o esquadro do universalismo, e em especial do constitucionalismo global, observando o estadual, é um processo que se arrisca a redundar numa promessa falhada para o Direito Internacional e para o sistema social internacional que procura regular, até porque não é possível estabelecer um paralelo entre as preocupações e os mecanismos de resposta de um e de outro (Uruena, 2009). Na ilustração de Koskenniemi, o constitucionalismo global é lido intuitivamente à imagem do constitucionalismo interno: «tratados multilaterais como

15Vide “Draft Policy Paper on Preliminary Examinations”, 4 October 2010, www.icc-cpi.int. 127

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legislação; tribunais internacionais como o poder jurisdicional independente; o Conselho de Segurança como a polícia» (2005a: 117).

A sedução do projecto do constitucionalismo global deve ser refreada por um exercício crítico atento. Desde logo, porque no actual quadro das relações sociais internacionais o projecto se arrisca a potenciar a dinâmica de lógicas de poder, que já influenciam os mecanismos mais ou menos institucionalizados, mais ou menos informais, das relações sociais internacionais. Por isso, Zolo alerta para os perigos do constitucionalismo global centrado na Carta das Nações Unidas que pode redundar numa excessiva concentração de poderes tornando «a protecção internacional de direitos e a prossecução da paz ainda mais precárias» (1997: 121). Apesar da dominância do liberalismo, desafectado é certo de relações de poder simplificadas, a verdade é que as relações sociais internacionais ainda são dominadas por uma lógica estatocentrica, que procura influenciar a governação global em função de interesses próprios, formando um “bloco hegemónico”.

O poder estruturante do liberalismo tem correspondência no Direito Internacional actual (Koskenniemi, 2005b). A teoria do Direito Internacional tem, aliás, assumido o Direito (ou a norma) e o poder (ou realidade política) como os dois eixos de referência. Esta, assim assumida, dupla dimensão do Direito Internacional transformou-o num imediato instrumento dos Estados e, cada vez mais, como um factor essencial de conformação da sociedade internacional. Daí decorre uma preocupação em assegurar um equilíbrio entre Direito e poder, entre legitimação e resistência (Krisch, 2005): por um lado, assegurar um distanciamento entre o Direito e a realidade política que evite a apologia política e a liberdade absoluta do Estado; por outro, a aproximação do Direito

àrealidade política que evite a utopia de soluções sem correspondência social (Koskenniemi, 2005b).

A agenda e manifestações liberais estão claramente ainda infiltradas, embora mais subliminarmente – devido à estrutura internacional ser mais complexa – por lógicas de poder. No quadro da concepção universalista, o liberalismo oferece uma capa teórica que confere uma racionalidade científica que legitima a prossecução dos interesses individuais pelos Estados com maior capacidade para o fazer – leia-se, com maior poder. A lógica de “solução de problemas” característica do liberalismo e hoje predominante na teoria e na prática do Direito Internacional pode servir uma estratégia de dominação. Assim, actuando como se as estruturas reflectissem efectivamente uma determinada colectânea de ideias verdadeira e única, resolvem-se os problemas que afectam o funcionamento das normas, processos e instituições, e consideram-se inamovíveis as estruturas. De um tal processo resulta a estabilização dessas normas, processos e instituições, bem como a cristalização das estruturas, que porventura estão na raiz do problema, sem procurar uma alternativa. O poder e a verdade alimentam-se, assim, mutuamente (Foucault, 1980).

Contudo este entendimento metodológico, e de certa maneira ideológico, radica numa premissa incorrecta: a de que a realidade política e social é imutável (Cox, 1981). A crítica a este modo liberal propicia, como refere Cox, «um guia de acção estratégica para provocar uma ordem alternativa» (1981: 130).

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4.2. O Pós-Positivismo no Direito Internacional

Para algumas concepções pós-positivistas, o universalismo é possível, e eventualmente desejável. Mas afasta-se, do ponto de vista epistemológico, da ideia de uma racionalidade universal que permita a objectivação universal da realidade. A teoria crítica põe em causa a possibilidade central do conhecimento objectivo, que as sociedades e os indivíduos são parte de uma ordem natural ou que o conhecimento apenas pode ser adquirido através da experiência (Hollis, 1996). Proclama, pois, que o objecto de percepção (a realidade empírica), seja no âmbito das relações jurídicas, sociais, políticas, económicas ou culturais, é indissociável da sua percepção pelo sujeito que a procura apreender, analisar e explicar.

A teoria crítica, verificando as insuficiências de ideias de partida de verdade única, bem como da ontologia e epistemologia universalista ortodoxa, pretende superá-las com recurso ao conceito central de emancipação. O discurso ético leva a uma maior liberdade e emancipação, desprendido da camisa-de-forças vestfaliana, que nunca permite ver verdadeiramente para além do Estado. A alternativa pós-positivista da teoria crítica tem, assim, capacidade de resistir ao universalismo de base racional enquanto forma de hegemonia ao lhe conferir uma maior representatividade (Hoffman, 1988). O conhecimento, o discurso, a igualdade de oportunidades ou a justiça são elementos éticos que servem de blindagem contra a hegemonia.

O pensamento pós-positivista estimula uma leitura multidisciplinar das relações sociais internacionais, em especial ao nível das Relações Internacionais e do Direito Internacional. O impulso da teoria crítica aplicada à Ciência Política, em particular às Relações Internacionais, vem beber a outras ciências sociais onde a teoria social crítica se encontra mais desenvolvida e mais presente no pensamento específico (George, 1994). Esta é porventura, um dos mais importantes desenvolvimentos na teoria contemporânea das Relações Internacionais (Richmond, 2008): o abandono da apologia do eterno presente e a procura de uma maior riqueza teórica (Pureza, 1999).

Ao nível do Direito Internacional o processo de crítica, subjacente à abordagem pós- positivista, tomou duas grandes linhas distintas: por um lado, a que advoga uma redefinição teórica, sem cortar totalmente com o sistema existente – corrente influenciada pela Escola de Frankfurt16; por outro lado, a que professa uma ruptura total com a modernidade onde seria impossível aproveitar qualquer base para a nova teorização necessária17. Sem pretender desenvolver este aspecto, que aqui não encontra lugar, importa, em todo o caso, desmistificar a ideia de que a teoria crítica implique necessariamente a condenação do Direito Internacional (Carty, 1991) e que, assim, a desconstrução signifique destruição.

Uma leitura pós-positivista permite afirmar que o Direito Internacional pode ser diferente daquele que é construído pela teoria e pela prática ortodoxa do liberalismo, e certamente do realismo. Daqui pode brotar uma nova concepção do Direito

16Vide entre outros: Habermas, Jürgen (1984). The Theory of Communicative Action, vol. 1: Reason and

the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press; Habermas, Jürgen (1987). The Theory of

Communicative Action, vol. 2: Lifeworld and System – a Critique of Functionalist Reason. Boston: Beacon Press; Habermas, Jürgen (2008). «A Political Constitution for the Pluralist World Society?». In Jürgen Habermas (ed.), Between Naturalism and Religion. Cambridge: Polity Press, 312-352.

17Vide entre outros: Koskenniemi, Martti (2005). From Apology to Utopia: The Structure of International

Legal Argument. Cambridge: Cambridge University Press; Kennedy, David (2004). «Speaking Law to

Power: International Law and Foreign Policy Closing Remarks». Wisconsin International Law Journal. 23(1), 173-181.

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Internacional assente num paradigma pós-positivista: acentuar no Direito Internacional a dimensão teórica crítica e assim constituir um verdadeiro sistema ético-normativo e um discurso autorizado legitimador e conformador de uma sociedade internacional menos oligárquica e mais igual (Pureza, 1998).

A ontologia deste Direito Internacional não é apenas a realidade objectiva ou “empírica”, mas também a sua representação subjectiva, de base normativa e intencionalidade transformadora, em que o quotidiano e a empatia são conceitos operacionais. Um Direito Internacional que pretende ser factor de transformação não pode simplesmente romper com a realidade política e dela fazer tábua rasa. Precisa primeiro de a compreender, para depois a desconstruir e então ensaiar uma crítica no sentido da construção de um sistema alternativo. Por isso, embora haja uma ruptura com os postulados teóricos das concepções ortodoxas do Direito Internacional, a crítica não pode contudo alhear-se da realidade objectiva (as normas, os factos, as instituições, os processos) sobre a qual pretende actuar.

4.3. Elementos para uma Leitura do TPI num Quadro Pós-Positivista

O pensamento pós-positivista, em especial no quadro da teoria crítica, pode levar a uma desconstrução desagregadora das organizações internacionais actuais, especialmente se lida por concepções de ruptura do pós-modernismo: Koskenniemi defende como alternativa à ordem internacional actual o desenvolvimento do Direito Internacional através do empowerment de grupos independentes fora das organizações internacionais (2004); Kennedy, por sua vez, defende que o TPI foi “uma má ideia” (Moore, 2005). Sem pretender no presente estudo encetar um diálogo sobre o pós- modernismo, dir-se-á, contudo que existem alguns elementos do Tribunal que merecem alguma reflexão sobre se não podem ser aceites e trabalhados segundo uma abordagem pós-positivista, em especial no âmbito da teoria crítica.

Os dois grupos de críticas a que se aludiu anteriormente, hoje muito audíveis, poderiam, e em certa medida são, também alimentados pelo discurso da teoria crítica. Contudo, existem elementos que caracterizam de forma fundamental o TPI e que podem servir de ponto de partida para informar uma construção pós-positivista que acolha o Tribunal num discurso de emancipação e transformação ancorado em ideais radicados na dignidade da pessoa humana. A figura do Procurador e o papel da sociedade civil são exemplos de tais elementos, a que aqui apenas se pretende aludir enquanto proposta para reflexões posteriores.

O Procurador, ou melhor, o Gabinete do Procurador18, é responsável por receber informações sobre crimes da competência do Tribunal a fim de as examinar e para conduzir investigações e exercer a acção penal junto do Tribunal. O Procurador goza de autonomia em relação ao Tribunal e de independência na determinação de iniciar um inquérito, de investigar e de acusar indivíduos pela prática dos crimes sob jurisdição do TPI, sempre sujeito, naturalmente, a posterior apreciação pelo juízo competente. No que respeita a crimes cometidos no território ou por um nacional de um Estado que é Parte no Estatuto, o Procurador exerce aqueles poderes motu proprio. Esta é, aliás, considerada uma das conquistas importantes para as organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos e para as vítimas (Bourdon, 2000).

18Nos termos do artigo 42.º do Estatuto do TPI, o Procurador preside ao órgão “Gabinete do Procurador”.

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A figura do Procurador do TPI não encontra paralelo no sistema internacional. Trata-se de um funcionário internacional que exerce uma competência penal, de forma independente, podendo investigar, acusar e ordenar a detenção de indivíduos de qualquer nacionalidade, independentemente do seu cargo oficial e até da vontade concreta dos Estados. O estatuto do Procurador e as suas competências constituem um elemento de ruptura com a ordem vestfaliana. Por outro lado, o exercício autónomo das suas competências contribui para o desenvolvimento do sistema social internacional por via de postulados ético-normativos centrados na dignidade da pessoa humana.

Por seu turno, organizações e indivíduos da sociedade civil têm deixado uma marca decisiva no Tribunal, essencialmente relativamente a três aspectos: a constituição do TPI, a colaboração na investigação e recolha de provas, e ainda na promoção do papel do Tribunal e do objectivo de universalidade do seu Estatuto. Os dois primeiros aspectos merecem uma especial referência.

O contributo da sociedade civil na criação do Tribunal e mesmo na elaboração do seu Estatuto constitui um marco na formação do Direito Internacional e na constituição de organizações internacionais (Glasius, 2006). É significativo que na conferência diplomática que adoptou, em Roma, a 17 de Julho de 1998, o Estatuto do TPI estivessem acreditadas duzentas e trinta e sete organizações não-governamentais provenientes de todo o mundo19. Aquelas organizações tiveram mesmo influência directa na redacção de algumas das disposições do Estatuto através de uma actuação comunicativa nos trabalhos (Struett, 2008).

A intervenção de organizações não-governamentais na comunicação de informações sobre crimes de jurisdição do TPI20 e na investigação de casos é um outro aspecto que mostra a relevância da sociedade civil no funcionamento do Tribunal. As organizações não-governamentais sempre tiveram um contacto muito próximo e imediato com violações graves de direitos humanos, documentando-as e denunciando-as. O contacto privilegiado com vítimas e testemunhas tem sido de grande importância na sua protecção e na recolha de prova. O seu contributo para a denúncia e para a investigação de alguns casos pode, pois, ser decisivo (HRF, 2004). De referir que a atribuição expressa pelo artigo 15.º. n.º 2 do Estatuto de um papel às organizações não-governamentais constitui um marco na institucionalização internacional da sociedade civil. É igualmente significativo que aquelas informações sejam tratadas pelo Gabinete do Procurador ao qual compete, pelo menos numa primeira fase, qualificar a sua relevância no contexto de um inquérito ou de um procedimento criminal.

A estes dois elementos de reflexão se poderia acrescentar um outro que respeita ao conteúdo do princípio da complementaridade de jurisdição do TPI. Trata-se de desenvolver a aplicação deste princípio no sentido de procurar formas locais, incluindo formas tradicionais quando existam, de realização da justiça. Existe, aliás, uma tendência recente para a matização do diálogo entre paz versus justiça no quadro do Tribunal e o consequente enfoque na procura de novas formas de justiça de proximidade (Ambos et al., 2009) complementares ao TPI.

19Vide UN Document A/CONF.183/INF/3, 5 J’une 1998.

20Até Maio de 2011 o Gabinete do Procurador havia recebido cerca de 4898 comunicações com algum tipo de conexão com a jurisdição do Tribunal. Fonte: TPI – www.icc-cpi.int.

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5. Conclusão

A criação do TPI deve ser perspectivada não apenas como uma inovação mas, acima de tudo, como uma conquista civilizacional em prol da defesa da dignidade da pessoa humana e da promoção da paz. O longo caminho percorrido tem contribuído também para uma mudança de paradigma do Direito Internacional e das Relações Internacionais cujo foco se vai afastando dos Estados e se vai recentrando no indivíduo. Todavia, este é um longo caminho que se está ainda a percorrer.

Ao fim de quase dez anos de funcionamento do Tribunal, os resultados – leia-se, sem rodeios, condenações – são ainda inexistentes, contribuindo para o avolumar das críticas e para alimentar um discurso de cepticismo até há algum tempo esmagados pelo entusiasmo quase desmedido que rodeava o Tribunal, quer ao nível académico quer ao nível político-diplomático ou ainda da sociedade civil. As críticas estruturais que lhe são apontadas, designadamente relativas à sua dependência face a um órgão oligárquico do realismo e que representa uma ordem caduca – o Conselho de Segurança – e sobre a sua actuação selectiva tendo, até hoje, como alvo único os Estados Africanos, corroem os seus fundamentos. A acusação que está subjacente a estas críticas é a da imposição global de padrões ético-normativos de matriz liberal. Mesmo se a crítica de selectividade seja inspirada até mais numa lógica particularista estatocentrica do que segundo uma perspectiva universalista, a verdade é que é a ordem pública internacional conforme perspectivada pelo universalismo que é posta em causa. As respostas do universalismo são eficazes, mas passam nos testes de resistência apenas na estrita medida da insuficiência do próprio universalismo.

O TPI vive ainda o seu estado de graça. Contudo, o risco de marginalização tem vindo a aumentar. A conferência de revisão de Kampala de 2010 foi um aviso: o sol ainda não se tinha posto no Lago Vitória no último dia da conferência e já existiam divergências quanto à aplicação do que havia sido aprovado. Aliás, até hoje nenhum Estado se vinculou às emendas então adoptadas, incluindo a relativa à tipificação do crime de agressão.

A reflexão sobre os ideais que sustentam o TPI deve ser permanente de modo a criar um discurso de legitimação ética que lhe confira efectiva capacidade de resistência e de transformação. Mas para que haja legitimação, é preciso antes de tudo que aconteça a crítica, a desconstrução e a desocultação. Por isso também, a esperança no TPI possa estar ligada à esperança na reflexão crítica e na vontade de todos os actores internacionais nela participarem.

As considerações apresentadas no presente estudo são propostas que pretendem contribuir para uma reflexão sobre a sustentabilidade teórica do TPI no actual quadro universalista de matriz liberal. Na sequência, aceitar que o TPI possa ser em determinada medida desenvolvido segundo uma perspectiva pós-positivista, e não simplesmente marginalizado, é importante não apenas para o próprio Tribunal como também para o desenvolvimento de uma teoria do Direito Internacional que – em conjunto com as Relações Internacionais – receba o impacto das insuficiências do universalismo jurídico de matriz liberal e seja capaz de oferecer uma alternativa viável, emancipadora e transformadora. Determinar se tal é verdadeiramente possível poderá passar por uma análise contextualizada a partir dos elementos de reflexão propostos.

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