OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp.
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS
FUNDAMENTOS
Mateus Kowalski
email: mateus.kowalski@gmail.com
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra, Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito. Autor de artigos e comunicações sobre Teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de segurança. Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é investigador na área da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta. Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no domínio do Direito Internacional
Resumo
A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é referido como a instituição paradigmática da concepção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em particular,
Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também por isso, ainda paira alguma expectativa e até cepticismo sobre o sucesso da sua missão, saber o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e retribuição penal e de construção da paz depende em grande medida da resistência dos seus alicerces teóricos. É argumentado que, apesar do discurso de sustentação aparentemente sólido radicado no universalismo, as respostas que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias devido, em grande medida, às insuficiências estruturais que a caracterizam. O artigo, que pretende apontar pistas de reflexão sobre o tema, afere, primeiro, sobre a competência do universalismo jurídico para sustentar o “seu” TPI face àquelas problemáticas. Em seguida, identifica elementos que possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como o da teoria crítica, que possa contribuir para o desenvolvimento de um discurso que confira ao Tribunal uma maior sustentabilidade teórica.
Tribunal Penal Internacional; Direito Internacional; Universalismo; Teoria Crítica
Como citar este artigo
Kowalski, Mateus (2011). "O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de
resistência aos seus fundamentos”. JANUS.NET
N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art6
Artigo recebido em Julho de 2011 e aceite para publicação em Outubro de 2011
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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS
FUNDAMENTOS
Mateus Kowalski
1. Introdução
A implementação da ideia de que qualquer indivíduo onde quer que se encontre e independentemente do seu estatuto oficial pode ser responsabilizado por crimes de relevância para toda a humanidade é uma ruptura com o paradigma vestfaliano de que cabe a cada Estado julgar (ou não) os “seus”. Após a
A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal internacional. O Tribunal é mesmo referido como a instituição paradigmática da concepção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Conforme referem Bogdandy e Dellavalle, «no contexto global, o progresso deste projecto de uma verdadeira ordem pública internacional e de um verdadeiro Direito Internacional assenta actualmente e em larga medida no destino do Direito Penal Internacional» (2008: 2). Contudo, as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em particular,
Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também por isso, ainda paira alguma expectativa e até cepticismo sobre o sucesso da sua missão, saber o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e retribuição penal e de construção da paz depende em grande medida da resistência dos
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seus alicerces teóricos. É argumento do presente estudo que, apesar do discurso de sustentação aparentemente sólido radicado na perspectiva universalista, as respostas que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias devido, em grande medida, às insuficiências estruturais que a caracterizam. Assim, sujeitar o TPI a um teste de resistência no que respeita aos seus fundamentos teóricos permite identificar os seus pontos de tensão e, simultaneamente, procurar outros campos teóricos que possam produzir um discurso que o acolha e sustente.
O presente estudo, que pretende apontar pistas de reflexão sobre a temática, aferirá, primeiro, a competência do discurso do universalismo jurídico para sustentar o “seu” TPI face àquelas problemáticas. Em seguida, procurará identificar elementos que possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como o da teoria crítica, que assim lhe possa eventualmente conferir maior sustentabilidade teórica.
2. O Universalismo e o TPI
A teorização sobre a universalidade da ordem pública e, em especial, o debate actual em torno da sua constitucionalização, é, ao nível do Direito Internacional, um expoente da racionalidade moderna que caracteriza o pensamento liberal dominante. Por sua vez, a narrativa da paz liberal, em cuja agenda o TPI se inscreve,
Ao contrário do que acontece com as concepções conservadoras do Direito Internacional, as correntes que se congregam no universalismo defendem que uma ordem pública internacional é possível e recomendável, quando não mesmo uma construção lógica induzida pela razão (Dellavalle, 2010). Estas correntes partilham uma concepção universal da ordem pública, dotada de um núcleo normativo fundamental que é comum aos actores internacionais e instituições para a acção colectiva em prol de objectivos universais. Para o universalismo, o Direito Internacional deve, pois, regular de forma abrangente a sociedade internacional nas várias dimensões da actuação humana que não se confinem à jurisdição do Estado e relativamente aos seus vários actores, designadamente o indivíduo. Para se atingir este objectivo é necessária a cooperação e integração parcial entre Estados (idealmente democráticos), num processo devidamente enquadrado por organizações internacionais.
Os ideais de Kant de um Direito cosmopolita e de uma república mundial fundada na razão conformam o ponto de partida do entendimento universalista da ordem pública, hoje dominante e com expressões marcantes na doutrina liberal vigente. O processo mental subjectivo próprio de cada indivíduo determinado pela razão passa a ser o elemento comum que fundamenta o universalismo.
A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigência cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitucionais nacionais. Surge, assim, a proposta do constitucionalismo global como forma apologética do universalismo de racionalidade objectiva. O constitucionalismo global é porventura a mais importante alteração estrutural dos últimos tempos no âmbito da teoria do Direito Internacional, tendo vindo a marcar de forma prevalecente o debate na disciplina (Machado, 2006). No fundo, a proposta do constitucionalismo global oferece uma
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compensação normativa para os défices constitucionais estaduais induzidos pela globalização (Peters, 2009).
O TPI
No que respeita ao primeiro, a acção penal é um poder tradicionalmente característico do núcleo de soberania do Estado. O TPI significa uma ruptura com este postulado clássico: o poder penal passa a poder ser exercido também numa ordem que está além da esfera pública estadual. Este poder penal internacional não carece de uma autorização pelos Estados. O inquérito, o mandado de detenção ou o julgamento podem ser despoletados por uma decisão do Tribunal, podendo mesmo ser contrária à vontade dos Estados que tenham jurisdição primária sobre o caso. Assim é nas situações em que a jurisdição tenha sido estabelecida pelo Procurador ou pelo Conselho de Segurança, nos termos do artigo 13.º do Estatuto do TPI, o que pode mesmo implicar assumir a jurisdição face a Estados que não são Parte no Estatuto. O que se traduz no reforço da ordem pública internacional
No que respeita ao segundo aspecto, será de realçar que o Tribunal desenvolve a sua acção centrado no indivíduo. Desde logo na medida em que prossegue, através da justiça, os objectivos da protecção e promoção dos direitos humanos e da restrição do recurso à força e minoração dos seus efeitos ao nível das populações civis. No quadro do TPI, estes são objectivos que traduzem uma preocupação com a dignidade universal da pessoa humana, uma preocupação atribuível à comunidade internacional e não tão- somente ao Estado. Mas a centralização no indivíduo tem também outras manifestações importantes, como seja a capacidade de intervenção dos indivíduos no processo penal internacional. Ora, nenhuma das partes no processo é um Estado: antes, são, por um lado o Procurador e, por outro, o réu1. Depois, o inquérito pelo Procurador pode ter origem em comunicações de organizações
3. Críticas ao TPI e a Resposta do Universalismo
Actualmente têm persistido algumas críticas duras ao TPI relativas aos seus fundamentos e que, de alguma forma, reflectem uma preocupação com a imposição de soluções
1A designação dos casos que decorrem perante o TPI reflecte a ideia de um sistema acusatório internacional em que as partes são o Procurador e o réu. A título de exemplo, o primeiro caso do TPI tem a designação de Prossecutor v. Thomas Lubanga Dilo.
2Artigo 15.º do Estatuto do TPI.
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perspectiva universalista uma argumentação que procura rebater aquelas críticas e sustentar o TPI através de um discurso de racionalidade objectiva.
3.1. A Dependência face ao Conselho de Segurança
A crítica de que a acção do Tribunal se encontra excessivamente dependente do Conselho de Segurança e que, portanto, é em larga medida determinada por critérios políticos e não por critérios jurídicos de atribuição de competência, é uma preocupação que remete para um aspecto estatutário. Efectivamente, o poder do Conselho de Segurança sobre a acção do TPI
O artigo 13.º, al. b) estabelece que o Conselho de Segurança pode submeter ao Procurador uma situação em que existam indícios de terem sido cometidos crimes graves de competência do TPI. Assim, das sete situações em apreciação3, duas foram submetidas por aquele órgão. Este poder conferido ao Conselho de Segurança tem merecido, desde os trabalhos preparatórios do Estatuto do TPI, várias objecções: desde a denúncia da perda de independência e credibilidade do Tribunal que tal significa, passando pela defesa de que o Conselho de Segurança não tem competência em matéria de justiça penal internacional nos termos da Carta das Nações Unidas ou até pela acusação de que tal cria uma situação de selectividade no estabelecimento da jurisdição (Yee, 1999).
Qualquer destas críticas tem subjacente que a submissão de casos ao TPI está sujeita a critérios de decisão política diferente dos critérios de admissibilidade próprios de um órgão jurisdicional como o TPI. A tudo isto acresce o facto de dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, três deles – a China, os Estados Unidos da América e a Rússia – não serem Parte no Estatuto do Tribunal. Uma vez que dispõem de direito de veto4, qualquer situação que ocorra no seu território ou que envolva nacionais seus nunca teria, certamente, qualquer possibilidade de ser submetida ao Tribunal. O que reforça a ideia de que o exercício da jurisdição do Tribunal pode ser selectivo, em função das dinâmicas próprias do Conselho de Segurança.
O poder do Conselho de Segurança previsto no artigo 16.º do Estatuto é, todavia, aquele que tem sido apontado como constituindo a ingerência política mais grave. Nos termos daquela disposição, o Conselho de Segurança pode decidir suspender um inquérito ou procedimento criminal em curso no TPI por um período de doze meses renovável. O Conselho de Segurança chegou mesmo a aprovar resoluções conferindo imunidade em abstracto a pessoas envolvidas em operações de paz ao serviço de um Estado que não seja Parte no Estatuto do TPI5. Pode mesmo ser argumentado que se trata de uma modificação do Estatuto de Roma pelo Conselho de Segurança (Jain, 2005). O que, por um lado, choca com o propósito de combate à impunidade pelos mais graves crimes internacionais e, por outro, demonstra todo o alcance da intervenção que o Conselho de Segurança está disposto a empreender. Várias organizações
3Incluindo a situação relativa à Costa do Marfim cuja admissibilidade se encontra, ao tempo destes
escritos, em apreciação pelo 2.º Juízo de Instrução.
4Vide artigos 27.º, n.º 3 da Carta das Nações Unidas e 13.º, al. b) do Estatuto do TPI.
5Vide, por exemplo as Resoluções S/RES/1422, de 12 de Julho de 2002, e S/RES/1487, de 12 de Junho de 2003.
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a promiscuidade entre acção jurisdicional e lógica política como prejudicial para a justiça penal internacional (Bourdon, 2000). Poderia, antes, ter sido privilegiado um mecanismo de concertação e diálogo entre o Conselho de Segurança e o Tribunal (Bourdon, 2000).
No caso do crime de agressão, o papel do Conselho de Segurança vai ainda mais longe. A conferência de revisão do Estatuto do TPI, que decorreu em Kampala, em 2010, introduziu o crime de agressão – não definido inicialmente no Estatuto – estabelecendo que o exercício de jurisdição pelo Tribunal depende de uma prévia determinação pelo Conselho de Segurança de que houve um acto de agressão6.
A esta perspectiva crítica do papel do Conselho de Segurança face ao TPI está subjacente uma preocupação com o exercício de funções por um órgão executivo, centrado no círculo estrito dos seus membros permanentes e sem verdadeiros mecanismos de controlo político ou jurisdicional (Kowalski, 2010). Preocupação para a qual o próprio discurso do universalismo não fornece resposta.
Todavia, uma análise da problemática pela perspectiva do universalismo produz argumentos que relegam aquelas críticas para um plano secundário e que salientam, ao invés, a evolução na conformação da ordem pública internacional. Assim, no que se refere à capacidade do Conselho de Segurança em submeter uma situação ao Tribunal ela representa, desde logo, a possibilidade do TPI julgar crimes relacionados com Estados que não são Parte no Estatuto e sobre os quais não poderia de outra forma exercer a sua jurisdição. Mais do que tudo, a intervenção do Conselho de Segurança prevista no artigo 13.º, al. b) é um mecanismo que permite contornar a vontade dos Estados e, assim, alargar a jurisdição do Tribunal. Uma vez que são Parte no Estatuto apenas 116 Estados, o mecanismo de submissão pelo Conselho de Segurança assegura, potencialmente, que o Tribunal possa julgar crimes cometidos em qualquer local por qualquer pessoa. Por outro lado, o Conselho de Segurança tem, efectivamente, capacidade para assuntos de ordem penal, como aliás argumentou o Tribunal Penal Internacional para a
No que respeita ao mais polémico poder de suspensão do inquérito ou procedimento criminal em curso, a narrativa do universalismo argumentará que este foi um mecanismo de compromisso negocial necessário: haveria que existir um equilíbrio entre a acção do Tribunal e a responsabilidade principal do Conselho de Segurança na manutenção da paz e segurança internacionais. Aliás, analisados os trabalhos preparatórios, o artigo 16.º retira poder ao Conselho de Segurança face ao estabelecido no projecto de Estatuto elaborado pela Comissão de Direito Internacional que serviu de base para as negociações8. O então artigo 23.º, n.º 3 daquele projecto estabelecia que o TPI não poderia iniciar qualquer procedimento relativamente a uma situação que estivesse em apreciação no Conselho de Segurança ao abrigo da capítulo VII da Carta,
6Vide UN Depository Notification
notificação pelo Procurador da sua intenção em abrir um inquérito relativo a um acto de agressão.
7Prosecutor v. Duško Tadić, ICTY – Appeals Chamber, Decision on the Defense Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, 2 October 1995.
8Vide International Law Commission (1997). Yearbook of the International Law Commission: 1994, II(2).
New York: United Nations.
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a menos que este decidisse em contrário. Após intensas negociações, no que ficou conhecido como o “compromisso de Singapura”, foi invertida a forma de intervenção do Conselho de Segurança, passando este a agir apenas quando pretenda suspendar o procedimento.
Por outro lado, ainda, é um facto que até ao momento o Conselho de Segurança nunca usou o poder de suspender um inquérito ou procedimento criminal em curso. Alguns Estados Africanos têm até exercido grande pressão para que o Conselho de Segurança exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 16.º do Estatuto do TPI, nomeadamente face à situação do Sudão (Darfur) em que Omar Al Bashir, Presidente do Sudão, se encontra acusado de genocídio, de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra. O que demonstraria a responsabilidade e a cautela com que o Conselho de Segurança encara este seu poder.
Assim, para esta concepção, lidas aquelas disposições no contexto mais abrangente do exercício da acção penal internacional, a intervenção do Conselho de Segurança resulta de um consenso necessário para a edificação do TPI, significando um mal relativo, quando não mesmo um benefício. Seguindo esta linha de raciocínio, e apesar da abundante literatura que refere argumentos como a vulnerabilidade de nacionais dos Estados Unidos da América ou até a inexistência de julgamento por júri como causa para aquele Estado não ser Parte no Estatuto, Schabas defende que o busílis estará antes na excessiva independência do TPI face ao Conselho de Segurança (2004).
3.2. A Selectividade no exercício da Jurisdição
Uma outra crítica forte que se tem feito ouvir essencialmente ao nível político- diplomático e que tem gerado alguma hostilidade por Estados Africanos relativamente ao TPI respeita a um aspecto factual: até ao presente apenas foram submetidas ao TPI situações relativas a África. Tal denotaria selectividade na acção do Tribunal.
Todas as sete situações referidas ao TPI dizem respeito apenas a Estados Africanos: ao Uganda, à República Democrática do Congo, à República Centro Africana, ao Sudão (Darfur), ao Quénia, à Líbia e à Costa do Marfim. Esta constatação, factual e indesmentível, tem fomentado a acusação de que o TPI não é imparcial no estabelecimento da sua jurisdição, acompanhada de denúncias, pelo menos implícitas, de
Estas acusações têm congregado o protesto de vários Estados de África, mais ou menos unidos numa posição comum, que se tem manifestado essencialmente através da União Africana. Na sequência da emissão do mandado de detenção pelo TPI contra Omar Al Bashir
9Vide “15th AU Summit – Press Release 104: ‘Decisions on the 15th AU Summit’”, 29 July 2010. 125
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Estados cumprissem o mandado de detenção e entregassem o Presidente do Sudão ao Tribunal. A União Africana reagiu de forma grave contrapondo com decisões tomadas por aquela organização e argumentando que ela melhor conhece a realidade da região10, assumindo assim uma atitude de rejeição face a uma ingerência neo- colonialista. Mais recentemente, a emissão de um mandado de detenção pelo TPI contra o líder Líbio Muammar Gaddafi levou a União Africana a pedir aos seus Estados Membros que ignorassem aquele mandado. Como que sintetizando as preocupações de vários Estado Africanos, o Presidente da Comissão da União Africana, Jean Ping, referiu que o TPI é discriminatório porque apenas se ocupa de crimes cometidos em África, ignorando os cometidos pelas “potências ocidentais” no Iraque, Afeganistão e Paquistão11.
Neste sentido, a União Africana tem repetidamente tentado que o Conselho de Segurança das Nações Unidas suspenda o procedimento que corre no TPI contra Omar Al Bashir12, por via do expediente previsto no artigo 16.º do Estatuto do TPI. Uma vez que o Conselho de Segurança não se tem mostrado aberto a suspender o procedimento, a União Africana chegou a propor uma emenda ao artigo 16.º no sentido de, quando o Conselho de Segurança não queira agir, permitir a transferência daquela competência para a Assembleia Geral das Nações Unidas13 onde a suspensão de um processo gozaria de condições mais favoráveis para ser aprovada.
As motivações para estas críticas são essencialmente políticas. A elas o discurso radicado no universalismo responde com critérios de estrita observância do Estatuto do TPI no qual são Parte trinta e dois Estados Africanos, fazendo deste o grupo mais representado.
Assim, e desde logo, assinala que a complementaridade é um princípio que informa o exercício da jurisdição pelo TPI. Significa, nos temos do artigo 1.º do Estatuto, que o TPI é complementar das jurisdições penais nacionais, exercendo a sua jurisdição apenas quando aquelas não queiram ou não tenham capacidade genuína para julgar. O não ter capacidade para julgar, que pode determinar a intervenção complementar do TPI, inclui os casos em que os suspeitos hajam sido abrangidos por uma amnistia (Cassese, 2008). Esta posição subsidiária face às jurisdições nacionais pretende igualmente incentivar os Estados a iniciar procedimentos criminais quando estejam em causa crimes de extrema gravidade (Kleffner, 2008). Este princípio de complementaridade
Logo, se o Tribunal iniciou procedimentos criminais no âmbito daquelas situações em Estados Africanos
10Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.
11Vide Associated Press “African Union calls on Member States to Disregard ICC Arrest Warrant Against Libya’s Gadhafi”, 2 July 2011.
12Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.
13Vide “Report on the Ministerial Meeting on the Rome Statute of the International Criminal Court (ICC)”, AU Executive Council Document EX.CL/568 (XVI), 29 January 2010.
14São os casos do Uganda, da República Democrática do Congo, da República Centro Africana ou da Costa do Marfim.
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Estatuto – como por exemplo o Sudão ou Líbia – não pode merecer crítica, na medida em que tal possibilidade resulta do próprio Estatuto com o intuito de evitar situações de impunidade.
Posto isto, a acusação de selectividade apenas faria agora sentido se se argumentasse que outras situações noutras partes do globo deveriam também ser submetidas ao Tribunal. Neste caso já não estaria em causa a justeza dos casos em apreciação relativos a situações em África mas antes a injustiça de outras situações permanecerem impunes. Ademais, a verdade é que foram ou estão ainda a ser examinadas outras situações pelo Tribunal, em concreto pelo Gabinete do Procurador, incluindo relativas a outras regiões para além de África, designadamente sobre factos ocorridos no Afeganistão, na Colômbia, na Geórgia, na Guiné, no Iraque, na Palestina, na Venezuela, na Nigéria, nas Honduras ou na República da Coreia. O exame preliminar obedece a critérios gerais e abstractos estabelecidos pelo Procurador com base no Estatuto do Tribunal15, o que impede formalmente qualquer selectividade ou discriminação na decisão de iniciar ou não procedimentos criminais numa determinada situação.
4. As Insuficiências do Universalismo: Haverá Alternativa?
Os dois grupos de críticas a que se aludiu merecem da narrativa do universalismo uma resposta aparentemente segura e convincente, formulada em torno de argumentos
As críticas, insuficiências e necessidades não cumpridas da teoria universalista, e em especial no campo do constitucionalismo global, levam à necessidade de sondar novos caminhos para o Direito Internacional, enquanto ciência jurídica. A abordagem pós- positivista, nomeadamente a radicada na teoria crítica, já mais desenvolvida noutras ciências sociais, incluindo nas Relações Internacionais, pode oferecer um caminho para repensar o Direito Internacional. Em particular no que respeita ao TPI, importará identificar alguns elementos fundamentais do Tribunal que permitam uma sua leitura e sustentação além das insuficiências do universalismo.
4.1. As Insuficiências do Universalismo
Desenhar a ordem pública internacional sob a régua e o esquadro do universalismo, e em especial do constitucionalismo global, observando o estadual, é um processo que se arrisca a redundar numa promessa falhada para o Direito Internacional e para o sistema social internacional que procura regular, até porque não é possível estabelecer um paralelo entre as preocupações e os mecanismos de resposta de um e de outro (Uruena, 2009). Na ilustração de Koskenniemi, o constitucionalismo global é lido intuitivamente à imagem do constitucionalismo interno: «tratados multilaterais como
15Vide “Draft Policy Paper on Preliminary Examinations”, 4 October 2010,
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legislação; tribunais internacionais como o poder jurisdicional independente; o Conselho de Segurança como a polícia» (2005a: 117).
A sedução do projecto do constitucionalismo global deve ser refreada por um exercício crítico atento. Desde logo, porque no actual quadro das relações sociais internacionais o projecto se arrisca a potenciar a dinâmica de lógicas de poder, que já influenciam os mecanismos mais ou menos institucionalizados, mais ou menos informais, das relações sociais internacionais. Por isso, Zolo alerta para os perigos do constitucionalismo global centrado na Carta das Nações Unidas que pode redundar numa excessiva concentração de poderes tornando «a protecção internacional de direitos e a prossecução da paz ainda mais precárias» (1997: 121). Apesar da dominância do liberalismo, desafectado é certo de relações de poder simplificadas, a verdade é que as relações sociais internacionais ainda são dominadas por uma lógica estatocentrica, que procura influenciar a governação global em função de interesses próprios, formando um “bloco hegemónico”.
O poder estruturante do liberalismo tem correspondência no Direito Internacional actual (Koskenniemi, 2005b). A teoria do Direito Internacional tem, aliás, assumido o Direito (ou a norma) e o poder (ou realidade política) como os dois eixos de referência. Esta, assim assumida, dupla dimensão do Direito Internacional
àrealidade política que evite a utopia de soluções sem correspondência social (Koskenniemi, 2005b).
A agenda e manifestações liberais estão claramente ainda infiltradas, embora mais subliminarmente – devido à estrutura internacional ser mais complexa – por lógicas de poder. No quadro da concepção universalista, o liberalismo oferece uma capa teórica que confere uma racionalidade científica que legitima a prossecução dos interesses individuais pelos Estados com maior capacidade para o fazer –
Contudo este entendimento metodológico, e de certa maneira ideológico, radica numa premissa incorrecta: a de que a realidade política e social é imutável (Cox, 1981). A crítica a este modo liberal propicia, como refere Cox, «um guia de acção estratégica para provocar uma ordem alternativa» (1981: 130).
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4.2. O
Para algumas concepções
A teoria crítica, verificando as insuficiências de ideias de partida de verdade única, bem como da ontologia e epistemologia universalista ortodoxa, pretende
O pensamento
Ao nível do Direito Internacional o processo de crítica, subjacente à abordagem pós- positivista, tomou duas grandes linhas distintas: por um lado, a que advoga uma redefinição teórica, sem cortar totalmente com o sistema existente – corrente influenciada pela Escola de Frankfurt16; por outro lado, a que professa uma ruptura total com a modernidade onde seria impossível aproveitar qualquer base para a nova teorização necessária17. Sem pretender desenvolver este aspecto, que aqui não encontra lugar, importa, em todo o caso, desmistificar a ideia de que a teoria crítica implique necessariamente a condenação do Direito Internacional (Carty, 1991) e que, assim, a desconstrução signifique destruição.
Uma leitura
16Vide entre outros: Habermas, Jürgen (1984). The Theory of Communicative Action, vol. 1: Reason and
the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press; Habermas, Jürgen (1987). The Theory of
Communicative Action, vol. 2: Lifeworld and System – a Critique of Functionalist Reason. Boston: Beacon Press; Habermas, Jürgen (2008). «A Political Constitution for the Pluralist World Society?». In Jürgen Habermas (ed.), Between Naturalism and Religion. Cambridge: Polity Press,
17Vide entre outros: Koskenniemi, Martti (2005). From Apology to Utopia: The Structure of International
Legal Argument. Cambridge: Cambridge University Press; Kennedy, David (2004). «Speaking Law to
Power: International Law and Foreign Policy Closing Remarks». Wisconsin International Law Journal. 23(1),
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Internacional assente num paradigma
A ontologia deste Direito Internacional não é apenas a realidade objectiva ou “empírica”, mas também a sua representação subjectiva, de base normativa e intencionalidade transformadora, em que o quotidiano e a empatia são conceitos operacionais. Um Direito Internacional que pretende ser factor de transformação não pode simplesmente romper com a realidade política e dela fazer tábua rasa. Precisa primeiro de a compreender, para depois a desconstruir e então ensaiar uma crítica no sentido da construção de um sistema alternativo. Por isso, embora haja uma ruptura com os postulados teóricos das concepções ortodoxas do Direito Internacional, a crítica não pode contudo
4.3. Elementos para uma Leitura do TPI num Quadro
O pensamento
Os dois grupos de críticas a que se aludiu anteriormente, hoje muito audíveis, poderiam, e em certa medida são, também alimentados pelo discurso da teoria crítica. Contudo, existem elementos que caracterizam de forma fundamental o TPI e que podem servir de ponto de partida para informar uma construção
O Procurador, ou melhor, o Gabinete do Procurador18, é responsável por receber informações sobre crimes da competência do Tribunal a fim de as examinar e para conduzir investigações e exercer a acção penal junto do Tribunal. O Procurador goza de autonomia em relação ao Tribunal e de independência na determinação de iniciar um inquérito, de investigar e de acusar indivíduos pela prática dos crimes sob jurisdição do TPI, sempre sujeito, naturalmente, a posterior apreciação pelo juízo competente. No que respeita a crimes cometidos no território ou por um nacional de um Estado que é Parte no Estatuto, o Procurador exerce aqueles poderes motu proprio. Esta é, aliás, considerada uma das conquistas importantes para as organizações
18Nos termos do artigo 42.º do Estatuto do TPI, o Procurador preside ao órgão “Gabinete do Procurador”.
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A figura do Procurador do TPI não encontra paralelo no sistema internacional.
Por seu turno, organizações e indivíduos da sociedade civil têm deixado uma marca decisiva no Tribunal, essencialmente relativamente a três aspectos: a constituição do TPI, a colaboração na investigação e recolha de provas, e ainda na promoção do papel do Tribunal e do objectivo de universalidade do seu Estatuto. Os dois primeiros aspectos merecem uma especial referência.
O contributo da sociedade civil na criação do Tribunal e mesmo na elaboração do seu Estatuto constitui um marco na formação do Direito Internacional e na constituição de organizações internacionais (Glasius, 2006). É significativo que na conferência diplomática que adoptou, em Roma, a 17 de Julho de 1998, o Estatuto do TPI estivessem acreditadas duzentas e trinta e sete organizações
A intervenção de organizações
A estes dois elementos de reflexão se poderia acrescentar um outro que respeita ao conteúdo do princípio da complementaridade de jurisdição do TPI.
19Vide UN Document A/CONF.183/INF/3, 5 J’une 1998.
20Até Maio de 2011 o Gabinete do Procurador havia recebido cerca de 4898 comunicações com algum tipo de conexão com a jurisdição do Tribunal. Fonte: TPI –
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5. Conclusão
A criação do TPI deve ser perspectivada não apenas como uma inovação mas, acima de tudo, como uma conquista civilizacional em prol da defesa da dignidade da pessoa humana e da promoção da paz. O longo caminho percorrido tem contribuído também para uma mudança de paradigma do Direito Internacional e das Relações Internacionais cujo foco se vai afastando dos Estados e se vai recentrando no indivíduo. Todavia, este é um longo caminho que se está ainda a percorrer.
Ao fim de quase dez anos de funcionamento do Tribunal, os resultados –
O TPI vive ainda o seu estado de graça. Contudo, o risco de marginalização tem vindo a aumentar. A conferência de revisão de Kampala de 2010 foi um aviso: o sol ainda não se tinha posto no Lago Vitória no último dia da conferência e já existiam divergências quanto à aplicação do que havia sido aprovado. Aliás, até hoje nenhum Estado se vinculou às emendas então adoptadas, incluindo a relativa à tipificação do crime de agressão.
A reflexão sobre os ideais que sustentam o TPI deve ser permanente de modo a criar um discurso de legitimação ética que lhe confira efectiva capacidade de resistência e de transformação. Mas para que haja legitimação, é preciso antes de tudo que aconteça a crítica, a desconstrução e a desocultação. Por isso também, a esperança no TPI possa estar ligada à esperança na reflexão crítica e na vontade de todos os actores internacionais nela participarem.
As considerações apresentadas no presente estudo são propostas que pretendem contribuir para uma reflexão sobre a sustentabilidade teórica do TPI no actual quadro universalista de matriz liberal. Na sequência, aceitar que o TPI possa ser em determinada medida desenvolvido segundo uma perspectiva
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