OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp.
AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Carlos Branco
email: branco.cmm@gmail.com
Resumo
Este ensaio discute o papel das ONG na mediação de conflitos
Organizações Não Governamentais; mediação de conflitos; estratégias de mediação; conflito moçambicano; Comunidade de Santo Egídio; Track One and a Half Diplomacy; Track One Diplomacy; Track Two Diplomcy; conflitos intratáveis
Como citar este artigo
Branco, Carlos (2011). "As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos
Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art4
Artigo recebido em Dezembro de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2011
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As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos
AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Carlos Branco
Introdução
As Organizações Não Governamentais (ONG) têm procurado nas últimas duas décadas ampliar a sua intervenção no domínio da resolução de conflitos. Alguns autores defendem uma actuação alargada à totalidade do espectro da resolução de conflitos, desde a prevenção até ao peacebuilding, passando pela participação em processos formais de mediação (Tongeren, 2005; Baharvar, 2001)1, aquilo a que Susan Allen Nan designou por Track One and a Half Diplomacy (T1,5D) e que definiu como as actividades de intermediação levadas a cabo por actores não oficiais – nomeadamente ONG - junto de representantes oficiais de um governo envolvido num conflito, com o objectivo de promover a resolução pacífica do mesmo (Nan, 1999). A mediação do processo de paz moçambicano que levou aos acordos de Roma, em Outubro de 1992, na qual participou a comunidade de Santo Egídio é apontada frequentemente como um exemplo daquilo que poderá ser a participação de actores informais, e das ONG em particular, em processos de mediação formais.
Os defensores da participação das ONG em processos de mediação formais argumentam que os instrumentos tradicionais de negociação, mediação e gestão de conflitos falharam em conflitos intratáveis (Fisher, 1989; Saunders, 1997); a diplomacia tradicional tem grandes limitações e não é adequada a este tipo de conflitos; e, por isso, a solução
A participação das ONG em processos de mediação do tipo T1,5D tem sido insuficientemente estudada. Procuraremos com este trabalho contribuir para o debate e esclarecimento do tema, analisando a validade dos argumentos apresentados por aquela corrente de pensamento. Para tal, recorremos às formulações teóricas sobre mediação e estratégias de mediação desenvolvidas por Touval e Zartman (1985), que confrontaremos com a análise do processo de mediação de paz moçambicano, por ser recorrentemente utilizado como um exemplo daquilo que aquelas organizações podem fazer no capítulo da mediação.
1Nalguns casos designados erradamente por “negociação”. Negociação é uma relação a dois, enquanto mediação é uma relação pelo menos a três.
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Este ensaio tem, assim, dois objectivos principais: em primeiro lugar, tentar perceber se os intermediários informais e as ONG em particular, independentemente da sua origem (internacional ou nacional), são o tipo de mediador mais adequado para conduzir a mediação de conflitos
Para tal, começaremos por esclarecer o que são ONG, uma designação com vários significados e que necessita, por isso, de ser clarificada; de seguida efectuaremos uma apresentação dos postulados teóricos que nos servirão de referência para compreendermos quais as possibilidades (capacidades versus limitações) das ONG, Estados e organizações internacionais no campo da mediação; e, finalmente, revisitaremos o processo de paz moçambicano, procurando explicar as razões do seu sucesso e o comportamento dos diferentes intervenientes, à luz dos quadros teóricos apresentados, as quais residem, do nosso ponto de vista, numa explicação bem mais complexa daquela que é apresentada pelo mainstream, o qual atribui o mérito da mediação à Comunidade de Santo Egídio.
Organizações Não Governamentais: uma Possível Definição
A importância das ONG no plano internacional
No sistema das Nações Unidas,
2O relatório da ONU sobre governança global difundido em 1995 estimava a existência de vinte e nove mil
ONG internacionais (ONGI). O número de ONG nacionais é incomensuravelmente superior.
3Ainda sobre a definição de ONG ver também Gonçalves Pereira e Quadros (2000: 402) e Riquito (2001: 206). O Banco Mundial define ONG como "private organizations that pursue activities to relieve suffering, promote the interests of the poor, protect the environment, provide basic social services, or undertake community development" (Operational Directive 14.70). Num emprego mais lato, o termo ONG pode
organizações que dependem, no todo ou na parte, da caridade ou do serviço voluntário.
4Idem. A definição adoptada não inclui as associações profissionais, de comércio e as fundações. 86
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de voluntários, também poderão ser designadas desse modo (OPV)5. As ONG adquirem personalidade jurídica por força do edifício normativo interno (Direito Privado e, em alguns casos, Direito Administrativo) do Estado de origem. Embora uma ONG possa ter uma vocação eminentemente internacional, a verdade é que a sua existência jurídica está condicionada pelo reconhecimento de um Estado, não sendo pacífica a sua personalidade jurídica em Direito Internacional.
No que respeita à categorização das ONG, as propostas avançadas pelos académicos também não têm primado pelo consenso. Por exemplo, Weiss e Gordenker (1996: 20) consideraram quatro tipos de ONG. O primeiro, o modelo mais ortodoxo, coincide com aquele que apresentámos anteriormente, isto é, uma organização privada de cidadãos separada dos governos mas activa em assuntos de natureza social, sem fins lucrativos e de âmbito transnacional. Os restantes três tipos, também apelidados de “desvios significativos”, por disporem de menor autonomia dos governos devem, por isso, ser diferenciados daquilo a que comummente chamamos ONG.
O primeiro, as QUANGO, Quase Organizações Não Governamentais, dispõe de uma relativa autonomia, que decresce em função da sua dependência financeira dos governos.
A ausência de consenso
5Para outras definições de ONG ver, por exemplo, Weiss e Gordenker (1996:
6Para mais informações sobre o International Rescue Committe consultar o sítio na Internet
http://www.theirc.org.
7Como as ONG variam imenso quanto ao seu objecto, filosofia, conhecimento e âmbito de actividade é possível
emergência ou para o desenvolvimento; a sua inspiração religiosa ou secular; a prioridade (delivery ou participation); ou a prioridade dedicada ao tipo de actividades que apoia (públicas ou privadas).
8Ainda sobre esta matéria Ian Gary, por exemplo, classifica as ONG simultaneamente quanto ao método e ao âmbito da sua actuação, considerando em ambos os casos duas categorias. Quanto ao método temos as hands off, que desenvolvem actividades de bastidores, como seja prestar serviços de aconselhamento, e as hands on que desenvolvem actividades no terreno. Quanto ao âmbito temos as ad hoc com a função de conter o conflito e mitigar os seus efeitos; e as sistémicas com a função de intervir no processo de transformação das mentalidades e das instituições. Ver Gary, I. (1996). “Confrontation,
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Serão objecto da nossa atenção as ONG passíveis de serem integradas no conceito mais ortodoxo, independentemente de estarem organizadas a nível nacional ou internacional. O nível a que se encontra organizada uma ONG não é despiciendo; há que atentar às implicações que isso pode ter na mediação de um conflito violento. São entidades essencialmente diferentes em termos de recursos e de conhecimento das sociedades afectadas pelos conflitos requerendo, por isso, um tratamento diferenciado. As ONG nacionais emanam da sociedade civil e dispõem de redes de informação, contactos e conhecimentos sobre a sociedade onde operam muito diferentes das grandes ONG internacionais. O nosso estudo
Mediação e Estratégias de Mediação
Antes de avançarmos na apresentação dos diferentes tipos de mediadores e estratégias de mediação, há que esclarecer duas questões cruciais: em primeiro lugar, o significado de Diplomacia de uma Via (T1D - mediação formal/oficial) e Diplomacia de duas Vias (T2D - mediação informal/não oficial), para podermos averiguar se a T1D é substituível com vantagem por outras formas de mediação como a T1,5D (já explicada) ou a T2D, e se os Estados são substituíveis pelas ONG ou por outros actores informais, na gestão de conflitos violentos;10 e, em segundo lugar, a necessidade de adaptar aqueles conceitos aos conflitos
O termo Diplomacia de uma Via (TD1)
A mediação do tipo T1,5D ocorre directamente entre mediadores não oficiais e os decisores de topo das partes, mas também com elementos influentes da sociedade ou do grupo em conflito. Com os decisores de topo,
African Political Economy, 23 (68):
9Muitas das ONG que se dedicam prioritariamente a outros domínios de actuação que não a resolução de conflitos, também se reclamam do direito de participar nesta actividade.
10Utilizaremos neste trabalho a definição de gestão de conflito proposta por Zartman e que consiste na eliminação da violência e de formas relacionadas com a violência para lidar com um conflito, deixando que a sua resolução seja efectuada ao nível político. Por outras palavras, fazer com que manifestações violentas sejam substituídas por manifestações políticas, para então se resolver, transformar e remover as causas do conflito (Zartman, 1997: 11).
11FISHER, R.J. (1997: 261).
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mediadores não oficiais; com os cidadãos influentes da sociedade
A teoria de Resolução de Conflitos consagra vários tipos de mediadores assim como estratégias de mediação. É enorme a multiplicidade de actores que se podem constituir como mediadores, desde indivíduos a título particular, representantes de governos, personalidades políticas e religiosas de elevado prestígio, actores regionais, ONG e Organizações Internacionais, grupos ad hoc e Estados, trazendo cada um deles para a negociação os seus interesses, percepções e recursos (Bercovitch, 1997). A estratégia de mediação a adoptar por um mediador reflecte sempre aqueles elementos, os quais diferem substancialmente quer se trate de um indivíduo, Estados ou instituições e organizações12. Tendo em conta o objectivo do trabalho, dedicaremos a nossa atenção apenas às características de mediação formais levadas a cabo pelos Estados e pelas instituições/organizações - nas quais se inserem as organizações regionais e internacionais - e informais levadas a cabo pelas ONG.
Das várias tipologias de estratégias de mediação propostas pelos académicos, adoptámos a que foi desenvolvida por Touval e Zartman e que considera três categorias de comportamento, a serem considerados de forma ascendente e gradativa e que conseguem descrever de uma forma compreensiva as acções dos mediadores: comunicativas, formulativas e manipulativas (Touval e Zartman, 1985). A adopção de uma determinada estratégia não significa que se implementem todas as tarefas que ela consagra. Bastam algumas delas. As estratégias de nível superior incluem normalmente tarefas das estratégias de nível inferior.
Nas estratégias comunicativas, o mediador pode
As estratégias formulativas são mais exigentes do que as comunicativas, tanto para os mediadores como para as partes. Para além de alguns comportamentos típicos das estratégias comunicativas, os mediadores formulativos podem escolher os locais das rondas negociais, controlar o ritmo e a formalidade das mesmas (o regimento), controlar o envolvimento físico subjacente às negociações; assegurar a privacidade da mediação, sugerir procedimentos, sublinhar interesses comuns das partes, reduzir tensões e controlar os momentos em que as reuniões devem ocorrer. Segundo esta lógica de actuação, o mediador que adopta uma estratégia formulativa deve lidar, em
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primeiro lugar, com assuntos simples, estruturar a agenda, ajudar a estabelecer as condições que permitam construir um resultado aceitável pelos litigantes;
No topo das estratégias encontramos as manipulativas, as mais exigentes das três tanto para os mediadores como para as partes. Para além do que já foi mencionado relativamente às duas estratégias anteriores, os mediadores manipulativos podem ter ainda a responsabilidade de manter as partes à mesa das negociações, exercer a sua acção de modo a
A opção de adoptar um determinado comportamento ou seguir uma estratégia de mediação e não outra, não é obra do acaso. É influenciada por factores próprios do conflito e do mediador. São muitos os factores que podem determinar a escolha de uma estratégia. Mas para serem eficazes, a estratégia de mediação e o comportamento do mediador devem estar em consonância com os seus interesses e a natureza do conflito (Bercovitch, 1997). Segundo Bercovitch, a prática tem demonstrado, por exemplo, que as estratégias de mediação comunicativas tendem a ser mais eficazes em conflitos de baixa intensidade, enquanto que as estratégias manipulativas em conflitos de alta intensidade13. Mas por outro lado, para serem eficazes, as estratégias de mediação, para além de reflectirem a realidade do conflito, têm igualmente de espelhar os recursos do mediador. Não é mediador manipulativo quem quer, mas sim quem pode.
Apesar da comunidade científica não reunir consenso sobre as estratégias de mediação mais eficazes – uns argumentam que são as estratégias de comunicação – facilitação (Burton, 1969; Kelman, 1992)
Bercovitch analisou também as características de três categorias de mediadores: indivíduos, Estados e instituições/organizações. Os mediadores individuais
13Idem: 138.
14Ibidem: 140.
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um ambiente propício para a gestão do conflito15. Este tipo de mediação poderá ser de extrema utilidade para apoiar uma futura mediação formal abrindo em muitos casos as portas a conversações formais. As sugestões e ideias que surgem na T2D podem ser levadas para a mesa de negociações da T1D.
Quando se fala de mediação levada a cabo por Estados, há que começar por distinguir entre pequenos e grandes. Devido à sua reduzida dimensão e presumível falta de poder ou influência, os Estados pequenos não representam uma ameaça para as partes e
Para os grandes Estados, a motivação para mediar é normalmente diferente; usam a mediação como um veículo para proteger ou promover os seus interesses.17 Ao disporem de uma grande panóplia de recursos, a amplitude de estratégias à sua disposição aumenta, podendo seleccionar as que mais lhes convêm, situação que não está ao alcance dos pequenos Estados. Podem utilizar uma grande variedade de estímulos (positivos ou negativos); gerar e orientar o ímpeto das negociações na direcção de um acordo; e ainda
A participação das organizações internacionais e regionais em processos de mediação tem sido igualmente objecto de estudo. Em 1994, Touval publicou um artigo na Foreign Affairs sobre as limitações da ONU no domínio da mediação, no qual referia que as mediações levadas a cabo por aquela Organização são bem sucedidas apenas quando os beligerantes se encontram exaustos e as potências externas aos conflitos não têm vontade para continuarem a apoiar os seus clientes, cuja utilidade se exauriu com o fim da Guerra Fria18. Mas Touval vai mais longe e generaliza as conclusões relativas ao comportamento da ONU como mediador às organizações internacionais, de um modo geral, afirmando que estas têm características inerentes que as tornam incapazes de serem mediadores eficazes de disputas internacionais complexas19. Touval refere que as organizações internacionais têm grande dificuldade em efectuar algumas funções básicas exigidas a um mediador eficaz, devido à ausência de leverage política significativa sobre as partes, à falta de credibilidade das suas promessas e à inflexibilidade negocial resultante dos seus lentos e complexos processos de decisão. Estas limitações estão impregnadas no seu ADN e fazem da parte da natureza intrínseca das organizações internacionais. E ninguém consegue alterar esta realidade.
As organizações internacionais medeiam apenas nos termos que os Estados que as integram desejam e com o material e recursos diplomáticos que estes lhes
15Ibidem: 147.
16Ibidem: 142.
17Ibidem, Bercovitch citando Touval: 142.
18TOUVAL, Saadia (1994). “Why the UN Fails”, Foreign Affairs, Setembro/Outubro: 44.
19Idem: 45.
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disponibilizam20. As conversações multilaterais requerem um processo de consulta e coordenação entre os membros de essas organizações. Um mediador tem de ser capaz de influenciar os beligerantes de modo a
As suas vulnerabilidades são percebidas e exploradas pelos beligerantes, os quais duvidam da sua capacidade para cumprir tanto as promessas de apoio como as ameaças de punição. Devido aos sistemas de decisão que lhe são peculiares, é muito difícil às organizações internacionais conduzirem negociações dinâmicas, reagirem com rapidez, agarrarem oportunidades e terem a flexibilidade necessária para ajustar posições e propostas que lhes permitam acompanhar convenientemente o desenrolar dos acontecimentos. Uma vez adoptada uma estratégia de mediação não é fácil alterá- la de modo a poder responder rapidamente a alterações de situação. As organizações internacionais adoptam apenas as medidas à volta das quais é possível construir consensos, reflectindo lógicas de menor denominador comum21.
As organizações internacionais são particularmente úteis no papel de facilitador de comunicação entre as partes ajudando a uma maior compreensão das posições adversárias e à clarificação das suas preocupações, mas não se encontram concebidas para disputas difíceis. As organizações internacionais não dispõem de condições para levarem a cabo estratégias de mediação manipulativas.
As ONG não desfrutam da legitimidade das organizações internacionais para mediar, sendo o seu comportamento na mediação de conflitos violentos idêntico ao dos restantes mediadores informais. Recorrendo à lógica argumentativa anteriormente utilizada, ao contrário dos Estados, por disporem de recursos muito limitados, as ONG têm um número muito exíguo de estratégias ao seu alcance,
Para o conseguir, é necessário possuir uma capacidade de persuasão que não se esgote no diálogo e na comunicação. Para influenciar o curso de um conflito violento, a mediação não se pode limitar a gerar e partilhar informação; tem de usar estratégias mais assertivas que permitam alterar o modo de as partes pensarem e interagirem22. Por outro lado, há que ter em conta o ambiente em que decorre a mediação. A gestão
20Contudo, isto não significa que as organizações internacionais e a ONU, em particular, não possam desempenhar um papel importante, especialmente quando a sua actuação é coordenada com os esforços dos Estados. Existem outras razões, nomeadamente servir de colchão e assim proteger os Estados de danos que possam ser causados por processos de peacemaking falhados.
21TOUVAL, Saadia, op. cit.: 53.
22Idem: 146.
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de conflitos violentos tem como pressuposto um ambiente de violência e insegurança generalizada, não muito propício para a resolução interactiva de conflitos ou para workshops de resolução de conflitos, o qual é substancialmente diferente do ambiente que se vive numa situação de peacebuilding, pós conflito violento, numa situação de segurança estável mais favorável à actuação das ONG.
O facto de o mediador ser uma ONG nacional ou internacional tem significados diferentes. O alcance do envolvimento da sociedade civil em processos de mediação, nomeadamente através de ONG que emanem dessa mesma sociedade civil, tem de ser avaliada com cautela.
A Mediação do Conflito Moçambicano: Actores e Estratégias
Uma vez apresentado o quadro teórico necessário à análise passaremos, então, ao estudo de caso identificando os actores envolvidos na mediação, o papel desempenhado e as estratégias de mediação adoptadas por cada um deles. Socorremo- nos do livro de Cameron Hume, “Ending the Mozambique’s War”, em que o autor faz uma cronologia detalhada das conversações de paz e fornece pistas cruciais para se entender o papel e as estratégias adoptadas pelos diferentes intervenientes24.
Mas antes de prosseguirmos, temos que inserir o conflito moçambicano no contexto histórico internacional e no quadro político regional que se vivia no final da década de oitenta. Nem as
A escolha do mediador foi o primeiro obstáculo que se teve de ultrapassar. A selecção teria de recair em alguém que reunisse a confiança de ambas as partes. Chissano pretendia conversações directas sem intervenção de mediadores, ao que Dlhakama se opunha. Para Chissano, o papel dos actores externos devia
23O conflito da Bósnia é um flagrante desta situação. A tentativa de promover a alternativa muçulmana secular liderada por Adil Zulfikarpasic e Muhamed Filipovic, ao extremismo do partido liderado por Izetbegovic não resultou
24Hume era o 2.º na cadeia hierárquica da missão
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Após contratempos vários e iniciativas abortadas, com o acordo do Vaticano e o apoio financeiro e diplomático do Governo italiano, a Comunidade de Santo Egídio organizou a primeira ronda negocial que decorreu nas suas instalações em Roma, em Julho de 1990. Esta ronda negocial teve a participação de três entidades. Para além da Comunidade Santo Egídio, contou com as igrejas moçambicanas e o Governo italiano.
Cada uma daquelas entidades estava representada no grupo que, na altura, tinha ainda o estatuto de observador e que mais tarde se viria a tornar no grupo de mediação: a Comunidade de Santo Egídio por Andrea Riccardi e Don Matteo Zuppi, a Conferência Episcopal por D. Jaime Gonçalves, e o Governo italiano por Mário Rafaelli. Este grupo vai
No final da primeira ronda negocial, o embaixador Rafaelli concedeu uma entrevista à Rádio do Vaticano em que explicou o papel desempenhado pelos Governos do Quénia e do Zimbabué,
A solução de mediação encontrada permitiu contornar os obstáculos colocados tanto pelo Governo como pela RENAMO. Esta formulação
Foram muitos os actores que contribuíram para se chegar ao Acordo de Paz assinado em Roma, a 4 de Outubro de 1992. Para além do grupo de mediação constituído pelos representantes das Igrejas moçambicanas, da Comunidade de Santo Egídio e do Governo italiano, há a considerar a colaboração de vários Estados.
25HUME, Cameron (1994). Ending the Mozambique’s War. The Role of Mediation and Good Offices, Washington, D.C., United States Institute of Peace: 35.
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As Igrejas
Tanto académicos como praticantes têm negligenciado nas suas análises o papel das elites religiosas – Apostólica Romana e Anglicana – na gestão do conflito moçambicano, o qual remonta ao ano de 1984, quando tiveram lugar as primeiras conversações entre o Governo e a RENAMO. É neste contexto que o Conselho Cristão Moçambicano (CCM) estabelece a “Comissão para a Paz e Reconciliação” (CPR) com o objectivo de explorar possíveis espaços de diálogo e facilitar a comunicação entre os litigantes. O CCM continuou durante toda a segunda metade da década a actuar nos bastidores sem, contudo, conseguir grandes progressos.
A disponibilidade manifestada pelas autoridades quenianas para mediarem um eventual processo de paz foi aproveitada pela CCM para dialogar com os líderes da RENAMO. A iniciativa de paz promovida pelas lideranças das Igrejas
–católica e anglicana – lançaram uma segunda iniciativa para explorar os contactos já existentes. O Cardeal D. Alexandre dos Santos, o Arcebispo D. Jaime Gonçalves, o Bispo Dinis Sengulane e o Pastor Jeremias Mucache (Presidente da CCM) encontraram- se com Chissano para o persuadir a iniciar o diálogo com a RENAMO27.
Chissano anuiu a que os clérigos se encontrassem com representantes da RENAMO, desde que fora de Moçambique, o que aconteceu mas sem resultados tangíveis.28 Em 1989, fazendo eco do chamamento do clero moçambicano, o Papa João Paulo II apelou publicamente à reconciliação nacional. No início de 1989, a CCM e o Arcebispo Católico do Maputo
Mas a insistência dos líderes religiosos acabou por surtir algum efeito. Em Agosto de 1989, a pedido de Chissano, entregaram a Dlhakama, em Nairobi, um documento com 12 pontos; ao qual Dlhakama respondeu,
26Hume, Cameron, op. cit.: 27. “…A RENAMO enviou outra mensagem para a Santa Sé…explicando que ao contrário da liderança da FRELIMO, muitos de nós, …incluindo o nosso Presidente, são católicos…”
27Idem. Tinha havido uma iniciativa anterior, em 1988, promovida pelo Presidente Arap Moi, do Quénia, que convidou Chissano e Mugabe para um encontro em Nairobi para se explorar a possibilidade de negociações.
28Ibidem.
29Ibidem: 28.
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A Comunidade de Santo Egídio
Com base nos resultados obtidos pelos bons ofícios dos quatro líderes religiosos e dos governos africanos, dos quais se destacam Quénia, Malawi e Zimbabué, e explorando as ligações de longa data entre o Arcebispo D. Jaime Gonçalves e o Governo Italiano,30 a Comunidade de Santo Egídio promoveu em Julho de 1990 o primeiro encontro directo entre representantes da FRELIMO e da RENAMO, em Roma, a qual se transformou no epicentro da actividade diplomática. São dados passos significativos rumo à paz durante as negociações levadas a cabo nos meses de Outubro e Novembro de 1991: a FRELIMO e a RENAMO
ératificado o direito da RENAMO a exercer actividade política partidária, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (GPA)31.
A Comunidade de Santo Egídio desempenhou um papel importante na criação das condições físicas para a realização das conversações. Para além de disponibilizar o seu
O Grupo de Mediação
A estratégia de mediação adoptada pelo grupo de mediação foi do tipo Comunicativo. O grupo contribuiu para que se mantivesse o diálogo entre as partes e que as relações de hostilidade e animosidade se tivessem transformado em relações de cooperação, ajudando através do diálogo à reconciliação das partes. Para além dos bons ofícios prestados durante todo o processo negocial, o grupo de mediação fez propostas e ajudou os litigantes a encontrar alternativas.
A shuttling diplomacy foi uma prática recorrente não só junto das delegações das facções em Roma, como noutros locais, junto dos dirigentes máximos das partes com o objectivo de acordar as agendas das reuniões e a sequência dos assuntos a serem discutidos, ou desbloquear situações mais complexas para as quais os chefes das delegações em Roma não tinham autoridade delegada para se pronunciarem. O grupo de mediação
30D. Gonçalves foi a ligação chave que levou à mediação italiana. A sua amizade com os membros da Comunidade de Santo Egídio tinha mais de 20 anos quando o então jovem padre a estudar em Roma se tornou próximo daquela organização religiosa. Uns anos mais tarde recorreu à ajuda da Comunidade para pressionar o Governo moçambicano a abdicar da sua posição anticlerical.
31Hume, Cameron, op. cit.: 79
32Idem: xii.
33O exemplo dado por HUME na p. 63 ilustra perfeitamente esta complementaridade e coordenação.
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Os mediadores formulativos controlam a agenda e, por conseguinte, podem alterar a ordem dos trabalhos, estabelecer prazos e controlar o ritmo e a formalidade das reuniões; podem alterar o número de participantes nas conversações, trazer mais actores para o processo para ter mais interesses representados na mesa de conversações. Mas não foi este o caso. A marcação das reuniões e a identificação dos assuntos a serem discutidos eram feitas sempre com o consentimento das partes.
O
Mas quando a flexibilidade das partes desaparecia e o grupo de mediação perdia o controlo da agenda36, este tinha que se socorrer de actores externos com maior capacidade de persuasão sobre elas, isto é, recorrer ao auxilio da diplomacia de uma via, principalmente dos Governos
Os Estados
A actuação do grupo de mediação foi seguida de perto e complementada, em permanência, pela diplomacia de vários Estados, sobretudo quando se tratava de resolver assuntos de maior complexidade ou quando as partes se mostrassem mais renitentes em chegar a acordo. Governos africanos e ocidentais foram necessários em vários momentos das conversações para: ultrapassar impasses entre os chefes das delegações sedeados em Roma; actuar junto dos líderes de topo; criar legitimidade e definir datas limite; e forçar a convergência de opinião em assuntos que de outro modo ainda estariam por resolver37. Segundo Chester Crocker, a actuação discreta dos diplomatas oficiais foi essencial na formulação da sequência dos assuntos a serem tratados e na definição do caminho a seguir nas matérias militares e constitucionais dos acordos38.
Na vanguarda destas iniciativas esteve a diplomacia italiana, incansável a promover e a organizar inúmeros encontros dos líderes das facções e a assegurar a presidência da Comissão de Verificação Conjunta (JVC), através do seu embaixador em Maputo39. A Itália esteve também profundamente envolvida em várias acções de bons ofícios e de shuttle diplomacy, mobilizando para tal o seu embaixador em Maputo que se encontrou várias vezes com Dlhakama e com Chissano40. Para além disso, o Governo italiano
34Idem: 95.
35Ibidem: 73.
36Ibidem: 62.
37Ibidem: xi.
38Ibidem.
39Pelos vistos, o único que ignorava o papel instrumental da diplomacia italiana no apoio às conversações era o próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, quando em Fevereiro de 1992 sugeriu que a Itália também se juntasse às conversações como um observador oficial. HUME, op. cit.: 90.
40Idem: 127.
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arcou com grande parte das despesas, nomeadamente viagens e estadia das delegações, e com a cobertura política da mediação. No início de 1992, o Parlamento italiano autorizou o Governo a usar até 1% do seu orçamento de ajuda externa em proveito do processo de paz. Para além do seu representante no grupo de mediação, houve um envolvimento directo e efectivo do Governo e da diplomacia italiana no processo de mediação.
Os Estados Unidos desempenharam igualmente um papel crucial desde o início das conversações, proporcionando aconselhamento técnico, encorajamento e apoio público ao processo de paz. Destacaram uma equipa composta por pessoal do Departamento de Estado que acompanhou permanentemente a evolução das conversações, e que prestou um apoio decisivo ao grupo de mediação, muito em particular à delegação da RENAMO, em áreas técnicas que requeriam o concurso de especialistas. Para ajudar a ultrapassar algumas dificuldades negociais, elementos desta equipa, actuando em tandem com o grupo de mediação, reuniam separadamente com as delegações para as convencer a adoptarem posições mais flexíveis.
O envolvimento
Apartir de Outubro de 1991, o apoio
Acolaboração de vários Estados vizinhos com o grupo de mediação foi igualmente importante. Complementando a sua acção, colocaram pressão sobre Dlhakama e Chissano para não abandonarem o diálogo e tomarem decisões concretas. Vários estadistas africanos ajudaram o grupo de mediação na fase final das conversações. Mugabe terá sido, porventura, o dirigente africano mais importante nesta tarefa. Em Setembro de 1992, o grupo de mediação pediu a Mugabe ajuda para se ultrapassar mais um impasse negocial. As delegações em Roma não eram capazes de chegar a um acordo quanto à dimensão das Forças Armadas, à reforma da polícia e do serviço de segurança e à forma como se organizar a administração civil nas áreas controladas pela RENAMO. Mugabe arranjou um encontro de Chissano com Dlhakama, no Botswana, onde se acordou criar uma comissão para supervisionar os serviços de segurança.
Quando se começaram a discutir os assuntos militares e o modo de os implementar, o Governo italiano assumiu um papel ainda mais proeminente proporcionando ao grupo
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de mediação especialistas para orientarem e dirigirem a discussão. Isto obrigou a introduzir alterações na estrutura das conversações, nomeadamente o aumento da dimensão das delegações para passarem a contemplar equipas de especialistas militares, incluindo aqueles proporcionados pelos países observadores (França, Portugal, Reino Unido e EUA)41.
A ONU e Outros Actores Não Estatais
Colaboraram também no processo de paz, mas de forma muito diferente a ONU e Tiny Rowland. Na listagem dos actores que participaram no processo de paz teremos inevitavelmente que incluir a ONU, não esquecendo, entre outras coisas particularmente importantes que liderou, a coordenação com governos chave na região e a organização de uma conferência de doadores em Maputo. Para implementar os Acordos era necessário mobilizar a contribuição de outros actores para uma pool de recursos. Uma vez assinado o acordo de paz
Os trâmites dessa implementação tinham de ser negociados com a própria ONU. Ao contrário do grupo de mediação, o
Conclusões
A análise do processo de paz moçambicano
41É neste contexto que em Junho de 1992, na 10ª ronda negocial, é aprovado o convite à França, Portugal, Reino Unido, EUA e ONU para integrarem as conversações com o estatuto de observadores.
42Ibidem: 139.
43Crocker sublinhou que as negociações do caso de Moçambique não foram de modo algum um caso puro de T2D. Ibidem: xi.
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Comunidade de Santo Egídio é factualmente incorrecto, porque esta nunca se chegou a constituir verdadeiramente como um mediador44.
Em segundo lugar, a mediação da paz foi um processo
Em terceiro lugar, à luz do processo de paz moçambicano, verificámos que as ONG e os processos de TD2 podem, de uma forma geral, complementar a acção dos agentes tradicionais (Estados e Organizações Internacionais), mas
Em quarto lugar, o caso moçambicano veio mostrar o potencial de reconciliação das designadas fontes de poder social, nomeadamente as ideológicas, neste caso com expressão na religião e nas elites religiosas (Mann, 1986), um tema cuja aplicação à resolução de conflitos tem sido insuficientemente estudado e que escapa ao objecto deste trabalho. Para o êxito das conversações de paz muito contribuíram as elites católica e anglicana que actuaram de uma forma concertada junto dos dirigentes da FRELIMO e da RENAMO, seus correligionários religiosos. Não só a maioria da liderança da RENAMO era católica, como foi atrás referido, como a liderança da FRELIMO tinha muitos seguidores da Igreja anglicana. Se Chissano ou Dhlakama fossem muçulmanos, a influência das elites religiosas cristãs sobre eles teria sido completamente diferente. Procurando explorar o sucesso do caso Moçambique – mal compreendido e mal estudado, – a Comunidade de Santo Egídio tentou mais tarde
Pensamos que as conclusões a que chegámos após analisar o caso moçambicano podem ser generalizadas. Ao contrário do defendido por algumas correntes de pensamento, o caso em apreço vem confirmar empiricamente o nosso argumento e a importância crucial da T1D na gestão de conflitos violentos. Nestes casos, a T2D pode apoiar os esforços da diplomacia, mas desempenhará sempre um papel secundário e de apoio. A T2D e, por conseguinte, a acção desenvolvida pelas ONG pode ser particularmente importante noutras fases da vida de um conflito, por exemplo, durante o peacebuilding, no apoio à reconciliação entre grupos desavindos. Não se pode
44Como referido ao longo do texto, a Comunidade de Santo Egídio apenas contribuiu com dois elementos para o grupo de mediação, o qual integrava um representante da Igreja moçambicana e outro do Governo italiano.
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substimar de modo algum o papel destas organizações, por exemplo, em acções de natureza humanitária ou no apoio à reconstrução de sociedades dilaceradas pela guerra, mas não na mediação de conflitos violentos. O envolvimento directo de ONG na mediação de conflitos violentos não tem sido comum, mas os poucos casos em que participaram não se podem considerar sucessos. O registo das intervenções das ONG neste campo fala por si45.
Os conceitos T1,5D e T2D são construções muito apelativas, mas de utilidade questionável quando aplicados à gestão de conflitos violentos. O mesmo se pode dizer relativamente ao envolvimento da sociedade civil em processos de mediação de conflitos violentos. Uma ideia, igualmente apelativa, que se desmorona se tivermos em conta que os conflitos violentos ocorrem tendencialmente em sociedades pré- modernas, sem uma sociedade civil activa, ou em sociedades mais desenvolvidas mas em que as organizações da sociedade civil foram destruídas pela violência, reduzindo a sua eventual capacidade de influenciar e persuadir à ínfima dimensão.
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45Entre outros, salientamos as conversações entre o Governo nigeriano e os líderes rebeldes do Biafra, durante o conflito
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