OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 84-103

AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS INTRA-ESTADUAIS VIOLENTOS: O CONFRONTO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA NO PROCESSO DE PAZ MOÇAMBICANO

Carlos Branco

email: branco.cmm@gmail.com

Major-General do Exército Português

Resumo

Este ensaio discute o papel das ONG na mediação de conflitos intra-estaduais violentos. Com base na análise do processo de paz moçambicano, procurou-se perceber se os actores informais e as ONG, em particular, seriam os mais adequados para mediar aquele tipo de conflitos, conforme defendido por alguns. Contrariando aquela corrente de pensamento, o autor defende que a diplomacia oficial ainda continua a ser a mais adequada para liderar a mediação de conflitos intra-estaduais violentos. Nos casos em que se utilizam múltiplos recursos (multitrack), como foi o caso moçambicano, os actores formais e os Estados, em particular, continuam a desempenhar um papel decisivo e incontornável por disporem de recursos não acessíveis aos actores informais. A diplomacia informal pode complementar a formal, mas não a substitui, desempenhando sempre um papel secundário e de apoio

Palavras-chave

Organizações Não Governamentais; mediação de conflitos; estratégias de mediação; conflito moçambicano; Comunidade de Santo Egídio; Track One and a Half Diplomacy; Track One Diplomacy; Track Two Diplomcy; conflitos intratáveis

Como citar este artigo

Branco, Carlos (2011). "As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos intra-estaduais violentos: o confronto entre a teoria e a prática no processo de paz moçambicano”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011.

Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art4

Artigo recebido em Dezembro de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2011

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As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos intra-estaduais violentos Carlos Branco

AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS INTRA-ESTADUAIS VIOLENTOS: O CONFRONTO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA NO PROCESSO DE PAZ MOÇAMBICANO

Carlos Branco

Introdução

As Organizações Não Governamentais (ONG) têm procurado nas últimas duas décadas ampliar a sua intervenção no domínio da resolução de conflitos. Alguns autores defendem uma actuação alargada à totalidade do espectro da resolução de conflitos, desde a prevenção até ao peacebuilding, passando pela participação em processos formais de mediação (Tongeren, 2005; Baharvar, 2001)1, aquilo a que Susan Allen Nan designou por Track One and a Half Diplomacy (T1,5D) e que definiu como as actividades de intermediação levadas a cabo por actores não oficiais – nomeadamente ONG - junto de representantes oficiais de um governo envolvido num conflito, com o objectivo de promover a resolução pacífica do mesmo (Nan, 1999). A mediação do processo de paz moçambicano que levou aos acordos de Roma, em Outubro de 1992, na qual participou a comunidade de Santo Egídio é apontada frequentemente como um exemplo daquilo que poderá ser a participação de actores informais, e das ONG em particular, em processos de mediação formais.

Os defensores da participação das ONG em processos de mediação formais argumentam que os instrumentos tradicionais de negociação, mediação e gestão de conflitos falharam em conflitos intratáveis (Fisher, 1989; Saunders, 1997); a diplomacia tradicional tem grandes limitações e não é adequada a este tipo de conflitos; e, por isso, a solução encontra-se no recurso aos intermediários informais, os quais são particularmente aptos para resolver este tipo de conflitos. O nosso argumento é exactamente o oposto. Defendemos que a diplomacia oficial (T1D) ainda continua a ser a mais adequada para liderar a mediação de conflitos intra-estaduais violentos. Nos casos em que se utilizam múltiplos recursos (multitrack), como foi o caso moçambicano, os actores formais e os Estados, em particular, continuam a desempenhar um papel decisivo e incontornável por disporem de recursos não acessíveis aos actores informais. A diplomacia informal pode complementar a formal, mas não a substitui.

A participação das ONG em processos de mediação do tipo T1,5D tem sido insuficientemente estudada. Procuraremos com este trabalho contribuir para o debate e esclarecimento do tema, analisando a validade dos argumentos apresentados por aquela corrente de pensamento. Para tal, recorremos às formulações teóricas sobre mediação e estratégias de mediação desenvolvidas por Touval e Zartman (1985), que confrontaremos com a análise do processo de mediação de paz moçambicano, por ser recorrentemente utilizado como um exemplo daquilo que aquelas organizações podem fazer no capítulo da mediação.

1Nalguns casos designados erradamente por “negociação”. Negociação é uma relação a dois, enquanto mediação é uma relação pelo menos a três.

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Este ensaio tem, assim, dois objectivos principais: em primeiro lugar, tentar perceber se os intermediários informais e as ONG em particular, independentemente da sua origem (internacional ou nacional), são o tipo de mediador mais adequado para conduzir a mediação de conflitos intra-estaduais violentos; e, em segundo, no caso de uma constatação negativa, verificar, à luz das formulações teóricas referidas, qual o tipo de actor – Estados e/ou Organizações Internacionais – poderá ser mais apropriado para mediar esses conflitos com base, em ambas as situações, na análise do processo de paz moçambicano.

Para tal, começaremos por esclarecer o que são ONG, uma designação com vários significados e que necessita, por isso, de ser clarificada; de seguida efectuaremos uma apresentação dos postulados teóricos que nos servirão de referência para compreendermos quais as possibilidades (capacidades versus limitações) das ONG, Estados e organizações internacionais no campo da mediação; e, finalmente, revisitaremos o processo de paz moçambicano, procurando explicar as razões do seu sucesso e o comportamento dos diferentes intervenientes, à luz dos quadros teóricos apresentados, as quais residem, do nosso ponto de vista, numa explicação bem mais complexa daquela que é apresentada pelo mainstream, o qual atribui o mérito da mediação à Comunidade de Santo Egídio.

Organizações Não Governamentais: uma Possível Definição

A importância das ONG no plano internacional tem-se intensificado nos últimos 20 anos, nomeadamente naquilo que geralmente se designa por resolução de conflitos. Elas tornaram-se parceiros de primeira grandeza na resposta internacional às emergências humanitárias, aos abusos e violações dos Direitos Humanos e aos esforços de reconstrução e reconciliação das sociedades afectadas por conflitos ou desastres naturais, que impedem o seu normal funcionamento2. Trabalham em muitos casos como entidades subcontratadas pela ONU, pela UE e pelos governos. As grandes diferenças entre algumas destas organizações (interesses, dinâmicas organizacionais e filosóficas, capacidades, acesso aos órgãos de poder e de informação, recursos económicos, etc.) têm dificultado uma definição consensual. Acresce-se o facto de as fronteiras conceptuais serem por vezes de contornos pouco precisos. Nem sempre é fácil distinguir, por exemplo, uma associação cívica ou uma organização de caridade de uma ONG.

No sistema das Nações Unidas, considera-se ONG qualquer entidade voluntária e sem fins lucrativos organizada a nível local, nacional ou internacional, actuando por vontade própria e dirigida por pessoas unidas em torno de um interesse comum3. Na verdade, as ONG dedicam-se ao apoio e à protecção de sectores da sociedade negligenciados pelos governos ou pelas instituições oficiais4. Por se tratarem de organizações privadas

2O relatório da ONU sobre governança global difundido em 1995 estimava a existência de vinte e nove mil

ONG internacionais (ONGI). O número de ONG nacionais é incomensuravelmente superior.

3Ainda sobre a definição de ONG ver também Gonçalves Pereira e Quadros (2000: 402) e Riquito (2001: 206). O Banco Mundial define ONG como "private organizations that pursue activities to relieve suffering, promote the interests of the poor, protect the environment, provide basic social services, or undertake community development" (Operational Directive 14.70). Num emprego mais lato, o termo ONG pode aplicar-se a qualquer organização sem fins lucrativos independente de governos. As ONG são tipicamente

organizações que dependem, no todo ou na parte, da caridade ou do serviço voluntário.

4Idem. A definição adoptada não inclui as associações profissionais, de comércio e as fundações. 86

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de voluntários, também poderão ser designadas desse modo (OPV)5. As ONG adquirem personalidade jurídica por força do edifício normativo interno (Direito Privado e, em alguns casos, Direito Administrativo) do Estado de origem. Embora uma ONG possa ter uma vocação eminentemente internacional, a verdade é que a sua existência jurídica está condicionada pelo reconhecimento de um Estado, não sendo pacífica a sua personalidade jurídica em Direito Internacional.

No que respeita à categorização das ONG, as propostas avançadas pelos académicos também não têm primado pelo consenso. Por exemplo, Weiss e Gordenker (1996: 20) consideraram quatro tipos de ONG. O primeiro, o modelo mais ortodoxo, coincide com aquele que apresentámos anteriormente, isto é, uma organização privada de cidadãos separada dos governos mas activa em assuntos de natureza social, sem fins lucrativos e de âmbito transnacional. Os restantes três tipos, também apelidados de “desvios significativos”, por disporem de menor autonomia dos governos devem, por isso, ser diferenciados daquilo a que comummente chamamos ONG.

O primeiro, as QUANGO, Quase Organizações Não Governamentais, dispõe de uma relativa autonomia, que decresce em função da sua dependência financeira dos governos. Incluem-se nas QUANGO as organizações contratadas pelos governos e que lhe fornecem serviços especializados como é, por exemplo, o caso do International Rescue Committee6; o segundo, as DONGO, Organizações Não Governamentais Criadas por Doadores, é criado para fins muito específicos e concretos (por exemplo, a desminagem no Afeganistão e apoio às Mulheres); e, finalmente, as GONGO, Organizações Não Governamentais Organizadas por Governos, actuam como verdadeiros agentes de políticas nacionais. Neste último caso, parece evidente a actuação das ONG como lunga manus de um Estado, sendo difícil considerá-las como ONG.

A ausência de consenso repete-se quando se trata de adoptar uma taxinomia. Utilizando como critério de catalogação o âmbito da actuação7, podemos considerar ONG que se dedicam ao alívio do sofrimento humano, à promoção da educação, aos cuidados de saúde, ao desenvolvimento económico, à protecção ambiental, à monitorização do cumprimento dos Direitos Humanos, à resolução de conflitos, etc., actividades que não se esgotam nesta lista (Aall, Miltenberger & Weiss, 2005: 89). Não obstante a tremenda variedade, podemos classificar as ONG que trabalham em zonas de conflito segundo quatro actividades principais: assistência humanitária, Direitos Humanos, construção da sociedade civil e democrática e resolução de conflitos. Os seus mandatos e actividades estendem-se pelas diferentes fases do ciclo de vida de um conflito, isto é, ainda antes dos primeiros sinais de violência até à consolidação da paz.8

5Para outras definições de ONG ver, por exemplo, Weiss e Gordenker (1996: 18-21) e Aall (2000: 124).

6Para mais informações sobre o International Rescue Committe consultar o sítio na Internet

http://www.theirc.org.

7Como as ONG variam imenso quanto ao seu objecto, filosofia, conhecimento e âmbito de actividade é possível classificá-las segundo várias tipologias consoante: a sua maior vocação para a ajuda de

emergência ou para o desenvolvimento; a sua inspiração religiosa ou secular; a prioridade (delivery ou participation); ou a prioridade dedicada ao tipo de actividades que apoia (públicas ou privadas).

8Ainda sobre esta matéria Ian Gary, por exemplo, classifica as ONG simultaneamente quanto ao método e ao âmbito da sua actuação, considerando em ambos os casos duas categorias. Quanto ao método temos as hands off, que desenvolvem actividades de bastidores, como seja prestar serviços de aconselhamento, e as hands on que desenvolvem actividades no terreno. Quanto ao âmbito temos as ad hoc com a função de conter o conflito e mitigar os seus efeitos; e as sistémicas com a função de intervir no processo de transformação das mentalidades e das instituições. Ver Gary, I. (1996). “Confrontation,

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Serão objecto da nossa atenção as ONG passíveis de serem integradas no conceito mais ortodoxo, independentemente de estarem organizadas a nível nacional ou internacional. O nível a que se encontra organizada uma ONG não é despiciendo; há que atentar às implicações que isso pode ter na mediação de um conflito violento. São entidades essencialmente diferentes em termos de recursos e de conhecimento das sociedades afectadas pelos conflitos requerendo, por isso, um tratamento diferenciado. As ONG nacionais emanam da sociedade civil e dispõem de redes de informação, contactos e conhecimentos sobre a sociedade onde operam muito diferentes das grandes ONG internacionais. O nosso estudo centra-se nas ONG que se dedicam prioritariamente à resolução de conflitos, independentemente de poderem desenvolver actividades noutros domínios9.

Mediação e Estratégias de Mediação

Antes de avançarmos na apresentação dos diferentes tipos de mediadores e estratégias de mediação, há que esclarecer duas questões cruciais: em primeiro lugar, o significado de Diplomacia de uma Via (T1D - mediação formal/oficial) e Diplomacia de duas Vias (T2D - mediação informal/não oficial), para podermos averiguar se a T1D é substituível com vantagem por outras formas de mediação como a T1,5D (já explicada) ou a T2D, e se os Estados são substituíveis pelas ONG ou por outros actores informais, na gestão de conflitos violentos;10 e, em segundo lugar, a necessidade de adaptar aqueles conceitos aos conflitos intra-estaduais. Em muitos casos não poderemos falar de Governos mas tão somente das lideranças das diferentes facções, as quais, frequentemente, não ocupam quaisquer funções na hierarquia do Estrado.

O termo Diplomacia de uma Via (TD1) refere-se à diplomacia governamental oficial, ou "à técnica da acção do Estado que reside essencialmente num processo onde a comunicação de um governo se dirige directamente ao aparelho de decisão do outro" (Lerche, S., Lerche, C. e Said, A., 1994), sendo conduzida pelos representantes oficiais de um Estado e envolvendo a interacção com outro Estado (ou os dirigentes de topo das facções litigantes). O termo Diplomacia de Duas Vias (T2D) tem a ver com interacções não oficiais, informais entre membros de grupos ou de nações adversárias, interacções essas orientadas para a resolução de conflitos11. A T2D é um domínio que acolhe vários conceitos e expressões como seja a Resolução Interactiva de Conflitos e as workshops de Resolução Analítica de Problemas, diálogo sustentado e os designados processos de paz multinível.

A mediação do tipo T1,5D ocorre directamente entre mediadores não oficiais e os decisores de topo das partes, mas também com elementos influentes da sociedade ou do grupo em conflito. Com os decisores de topo, trata-se de mediação directa, consulta e facilitação da designada resolução inter-activa de problemas levada a cabo por

Co-operation or Co-optation: NGO’s and the Ghanian State During Structure Adjustment”, in Review of

African Political Economy, 23 (68): 149-169.

9Muitas das ONG que se dedicam prioritariamente a outros domínios de actuação que não a resolução de conflitos, também se reclamam do direito de participar nesta actividade.

10Utilizaremos neste trabalho a definição de gestão de conflito proposta por Zartman e que consiste na eliminação da violência e de formas relacionadas com a violência para lidar com um conflito, deixando que a sua resolução seja efectuada ao nível político. Por outras palavras, fazer com que manifestações violentas sejam substituídas por manifestações políticas, para então se resolver, transformar e remover as causas do conflito (Zartman, 1997: 11).

11FISHER, R.J. (1997: 261).

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mediadores não oficiais; com os cidadãos influentes da sociedade procura-se facilitar a resolução de problemas e/ou desenvolver medidas de confidence-building. Como podemos verificar, as técnicas utilizadas pela T1,5D e a T2D são semelhantes e nalguns casos as mesmas. Existe, contudo, uma diferença de relevo que separa os dois conceitos, a qual se prende com a natureza dos actores envolvidos: no caso da T1,5D os protagonistas das partes são os decisores de topo, enquanto na T2D são grupos influentes na sociedade, ou que se espera que possam vir a sê-lo.

A teoria de Resolução de Conflitos consagra vários tipos de mediadores assim como estratégias de mediação. É enorme a multiplicidade de actores que se podem constituir como mediadores, desde indivíduos a título particular, representantes de governos, personalidades políticas e religiosas de elevado prestígio, actores regionais, ONG e Organizações Internacionais, grupos ad hoc e Estados, trazendo cada um deles para a negociação os seus interesses, percepções e recursos (Bercovitch, 1997). A estratégia de mediação a adoptar por um mediador reflecte sempre aqueles elementos, os quais diferem substancialmente quer se trate de um indivíduo, Estados ou instituições e organizações12. Tendo em conta o objectivo do trabalho, dedicaremos a nossa atenção apenas às características de mediação formais levadas a cabo pelos Estados e pelas instituições/organizações - nas quais se inserem as organizações regionais e internacionais - e informais levadas a cabo pelas ONG.

Das várias tipologias de estratégias de mediação propostas pelos académicos, adoptámos a que foi desenvolvida por Touval e Zartman e que considera três categorias de comportamento, a serem considerados de forma ascendente e gradativa e que conseguem descrever de uma forma compreensiva as acções dos mediadores: comunicativas, formulativas e manipulativas (Touval e Zartman, 1985). A adopção de uma determinada estratégia não significa que se implementem todas as tarefas que ela consagra. Bastam algumas delas. As estratégias de nível superior incluem normalmente tarefas das estratégias de nível inferior.

Nas estratégias comunicativas, o mediador pode comportar-se de uma ou mais das seguintes formas: estabelecer contactos entre as partes, ganhar o seu crédito e confiança, procurar formas de as pôr em contacto, identificar os assuntos e os interesses subjacentes à disputa e ajudar a clarificar a situação. Neste tipo de estratégia os mediadores evitam tomar partido, procuram criar empatia com os litigantes e proporcionar-lhes informação importante que aqueles não disponham. Poderão também transmitir mensagens entre as partes, encorajá-las a iniciarem uma comunicação substantiva e permitir que os interesses de todas elas sejam objecto de discussão.

As estratégias formulativas são mais exigentes do que as comunicativas, tanto para os mediadores como para as partes. Para além de alguns comportamentos típicos das estratégias comunicativas, os mediadores formulativos podem escolher os locais das rondas negociais, controlar o ritmo e a formalidade das mesmas (o regimento), controlar o envolvimento físico subjacente às negociações; assegurar a privacidade da mediação, sugerir procedimentos, sublinhar interesses comuns das partes, reduzir tensões e controlar os momentos em que as reuniões devem ocorrer. Segundo esta lógica de actuação, o mediador que adopta uma estratégia formulativa deve lidar, em

12Considera-se estratégia de mediação, um plano, uma abordagem ou um método que um mediador giza para resolver uma disputa (Kolb, 1983: 24), in Bercovitch, op. cit.: 136.

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primeiro lugar, com assuntos simples, estruturar a agenda, ajudar a estabelecer as condições que permitam construir um resultado aceitável pelos litigantes; ajudá-los a salvar a face (quando for caso disso), manter o processo negocial centrado nos assuntos críticos não o deixando resvalar para quezílias supérfluas e secundárias, efectuar propostas e sugestões substantivas e sugerir concessões que as partes litigantes possam ter de fazer.

No topo das estratégias encontramos as manipulativas, as mais exigentes das três tanto para os mediadores como para as partes. Para além do que já foi mencionado relativamente às duas estratégias anteriores, os mediadores manipulativos podem ter ainda a responsabilidade de manter as partes à mesa das negociações, exercer a sua acção de modo a alterar-lhes as expectativas quanto aos termos de um possível acordo e, ao mesmo tempo, consciencializá-las do custo da ausência do mesmo. O mediador manipulativo é também responsável por fornecer e filtrar a informação a dar; ajudar a desfazer compromissos anteriormente assumidos; recompensar as partes pelas concessões que efectuem, e pressioná-las para serem flexíveis, prometendo-lhes recursos ou ameaçando terminar com o processo negocial; oferecer-se para verificar o cumprimento dos acordos; adicionar incentivos ou ameaçar punições, e ameaçar retirar-se da mediação.

A opção de adoptar um determinado comportamento ou seguir uma estratégia de mediação e não outra, não é obra do acaso. É influenciada por factores próprios do conflito e do mediador. São muitos os factores que podem determinar a escolha de uma estratégia. Mas para serem eficazes, a estratégia de mediação e o comportamento do mediador devem estar em consonância com os seus interesses e a natureza do conflito (Bercovitch, 1997). Segundo Bercovitch, a prática tem demonstrado, por exemplo, que as estratégias de mediação comunicativas tendem a ser mais eficazes em conflitos de baixa intensidade, enquanto que as estratégias manipulativas em conflitos de alta intensidade13. Mas por outro lado, para serem eficazes, as estratégias de mediação, para além de reflectirem a realidade do conflito, têm igualmente de espelhar os recursos do mediador. Não é mediador manipulativo quem quer, mas sim quem pode.

Apesar da comunidade científica não reunir consenso sobre as estratégias de mediação mais eficazes – uns argumentam que são as estratégias de comunicação – facilitação (Burton, 1969; Kelman, 1992) –, os dados estatísticos indicam que estratégias de mediação mais musculadas do tipo formulativo – manipulativo (Touval e Zartman, 1985) são as que produzem melhores resultados.

Bercovitch analisou também as características de três categorias de mediadores: indivíduos, Estados e instituições/organizações. Os mediadores individuais representam-se a si mesmos (académicos, ex - chefes de Estado, figuras proeminentes de organizações internacionais, etc.), não representando oficialmente nada; não são membros de um governo nem detêm cargos políticos. A mediação informal inicia-se normalmente quando os mediadores se envolvem num conflito por sua própria iniciativa. Agindo a título individual, a actuação destes mediadores baseia-se exclusivamente em estratégias de comunicação e de facilitação14, preocupando-se fundamentalmente com a qualidade da interacção entre as partes e com a criação de

13Idem: 138.

14Ibidem: 140.

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um ambiente propício para a gestão do conflito15. Este tipo de mediação poderá ser de extrema utilidade para apoiar uma futura mediação formal abrindo em muitos casos as portas a conversações formais. As sugestões e ideias que surgem na T2D podem ser levadas para a mesa de negociações da T1D.

Quando se fala de mediação levada a cabo por Estados, há que começar por distinguir entre pequenos e grandes. Devido à sua reduzida dimensão e presumível falta de poder ou influência, os Estados pequenos não representam uma ameaça para as partes e encontram-se geralmente bastante bem posicionados para mediar esperando, normalmente, ser convidados para tal. Quando intervêm, tendem a confinar a sua actuação a conflitos regionais, e as suas estratégias tendem a ser, na maioria dos casos, estratégias baseadas no diálogo e na comunicação. Os Estados pequenos são muito úteis neste tipo de mediação16.

Para os grandes Estados, a motivação para mediar é normalmente diferente; usam a mediação como um veículo para proteger ou promover os seus interesses.17 Ao disporem de uma grande panóplia de recursos, a amplitude de estratégias à sua disposição aumenta, podendo seleccionar as que mais lhes convêm, situação que não está ao alcance dos pequenos Estados. Podem utilizar uma grande variedade de estímulos (positivos ou negativos); gerar e orientar o ímpeto das negociações na direcção de um acordo; e ainda alterar-lhes as motivações, os comportamentos e as expectativas. Os Estados são capazes, mais do que qualquer outro actor, de reunir os recursos necessários para o sucesso de um processo de mediação. Eles possuem leverage e usam a influência política e social ao seu dispor para persuadir os litigantes a fazerem concessões e a reformularem os seus objectivos estratégicos na direcção de um acordo.

A participação das organizações internacionais e regionais em processos de mediação tem sido igualmente objecto de estudo. Em 1994, Touval publicou um artigo na Foreign Affairs sobre as limitações da ONU no domínio da mediação, no qual referia que as mediações levadas a cabo por aquela Organização são bem sucedidas apenas quando os beligerantes se encontram exaustos e as potências externas aos conflitos não têm vontade para continuarem a apoiar os seus clientes, cuja utilidade se exauriu com o fim da Guerra Fria18. Mas Touval vai mais longe e generaliza as conclusões relativas ao comportamento da ONU como mediador às organizações internacionais, de um modo geral, afirmando que estas têm características inerentes que as tornam incapazes de serem mediadores eficazes de disputas internacionais complexas19. Touval refere que as organizações internacionais têm grande dificuldade em efectuar algumas funções básicas exigidas a um mediador eficaz, devido à ausência de leverage política significativa sobre as partes, à falta de credibilidade das suas promessas e à inflexibilidade negocial resultante dos seus lentos e complexos processos de decisão. Estas limitações estão impregnadas no seu ADN e fazem da parte da natureza intrínseca das organizações internacionais. E ninguém consegue alterar esta realidade.

As organizações internacionais medeiam apenas nos termos que os Estados que as integram desejam e com o material e recursos diplomáticos que estes lhes

15Ibidem: 147.

16Ibidem: 142.

17Ibidem, Bercovitch citando Touval: 142.

18TOUVAL, Saadia (1994). “Why the UN Fails”, Foreign Affairs, Setembro/Outubro: 44.

19Idem: 45.

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disponibilizam20. As conversações multilaterais requerem um processo de consulta e coordenação entre os membros de essas organizações. Um mediador tem de ser capaz de influenciar os beligerantes de modo a levá-los a alterarem as suas posições. Necessita, antes de mais, de leverage a qual deriva dos recursos militares e económicos que as grandes potências têm em abundância, e que as Organizações regionais ou internacionais não dispõem, encontrando-se à mercê da boa vontade dos Estados que as compõem. A ONU nem sequer pode utilizar os meios das instituições financeiras e de comércio internacionais. Para tal continua a depender das decisões dos Estados-membros. O problema da falta de leverage e de recursos aplica-se igualmente a todos os mediadores informais.

As suas vulnerabilidades são percebidas e exploradas pelos beligerantes, os quais duvidam da sua capacidade para cumprir tanto as promessas de apoio como as ameaças de punição. Devido aos sistemas de decisão que lhe são peculiares, é muito difícil às organizações internacionais conduzirem negociações dinâmicas, reagirem com rapidez, agarrarem oportunidades e terem a flexibilidade necessária para ajustar posições e propostas que lhes permitam acompanhar convenientemente o desenrolar dos acontecimentos. Uma vez adoptada uma estratégia de mediação não é fácil alterá- la de modo a poder responder rapidamente a alterações de situação. As organizações internacionais adoptam apenas as medidas à volta das quais é possível construir consensos, reflectindo lógicas de menor denominador comum21.

As organizações internacionais são particularmente úteis no papel de facilitador de comunicação entre as partes ajudando a uma maior compreensão das posições adversárias e à clarificação das suas preocupações, mas não se encontram concebidas para disputas difíceis. As organizações internacionais não dispõem de condições para levarem a cabo estratégias de mediação manipulativas.

As ONG não desfrutam da legitimidade das organizações internacionais para mediar, sendo o seu comportamento na mediação de conflitos violentos idêntico ao dos restantes mediadores informais. Recorrendo à lógica argumentativa anteriormente utilizada, ao contrário dos Estados, por disporem de recursos muito limitados, as ONG têm um número muito exíguo de estratégias ao seu alcance, encontrando-se as alternativas circunscritas às estratégias de comunicação e facilitação, orientadas para a qualidade da interacção entre as partes e para a manutenção de um ambiente favorável à gestão do conflito. O facto de passarem agora a falar com os decisores de topo - numa lógica T1,5 - não altera esta realidade. Dificilmente terão, como os Estados, capacidade para alterar o comportamento, as expectativas e os objectivos estratégicos das partes em conflito.

Para o conseguir, é necessário possuir uma capacidade de persuasão que não se esgote no diálogo e na comunicação. Para influenciar o curso de um conflito violento, a mediação não se pode limitar a gerar e partilhar informação; tem de usar estratégias mais assertivas que permitam alterar o modo de as partes pensarem e interagirem22. Por outro lado, há que ter em conta o ambiente em que decorre a mediação. A gestão

20Contudo, isto não significa que as organizações internacionais e a ONU, em particular, não possam desempenhar um papel importante, especialmente quando a sua actuação é coordenada com os esforços dos Estados. Existem outras razões, nomeadamente servir de colchão e assim proteger os Estados de danos que possam ser causados por processos de peacemaking falhados.

21TOUVAL, Saadia, op. cit.: 53.

22Idem: 146.

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de conflitos violentos tem como pressuposto um ambiente de violência e insegurança generalizada, não muito propício para a resolução interactiva de conflitos ou para workshops de resolução de conflitos, o qual é substancialmente diferente do ambiente que se vive numa situação de peacebuilding, pós conflito violento, numa situação de segurança estável mais favorável à actuação das ONG.

O facto de o mediador ser uma ONG nacional ou internacional tem significados diferentes. O alcance do envolvimento da sociedade civil em processos de mediação, nomeadamente através de ONG que emanem dessa mesma sociedade civil, tem de ser avaliada com cautela. Trata-se de uma ideia apelativa que se desmorona pelo facto dos conflitos violentos objecto desta intervenção ocorrerem normalmente em sociedades pré-modernas, sem uma sociedade civil activa, ou em sociedades mais desenvolvidas em que as organizações da sociedade civil foram destruídas pela violência, reduzindo à ínfima dimensão a possibilidade de influenciar seja o que for.23 A possibilidade de lhes dar relevo no seio de um conflito violento não passa de uma construção fantasiosa. Bem intencionada mas inútil, como a prática tem demonstrado à saciedade.

A Mediação do Conflito Moçambicano: Actores e Estratégias

Uma vez apresentado o quadro teórico necessário à análise passaremos, então, ao estudo de caso identificando os actores envolvidos na mediação, o papel desempenhado e as estratégias de mediação adoptadas por cada um deles. Socorremo- nos do livro de Cameron Hume, “Ending the Mozambique’s War”, em que o autor faz uma cronologia detalhada das conversações de paz e fornece pistas cruciais para se entender o papel e as estratégias adoptadas pelos diferentes intervenientes24.

Mas antes de prosseguirmos, temos que inserir o conflito moçambicano no contexto histórico internacional e no quadro político regional que se vivia no final da década de oitenta. Nem as super-potências nem os países vizinhos apoiavam a continuação da guerra. Com o fim da Guerra-fria e, consequentemente, o termo das ligações que cada uma das facções tinha com as grandes potências, terminava o apoio político e financeiro ao esforço de guerra. Em 1990, nenhum governo da região estava preparado para manter e apoiar os seus aliados moçambicanos. A situação política regional tinha- se tornado propícia à resolução do conflito. Exaustos e sem recursos, ambos os contendores se aperceberam que não tinham condições para vencer o conflito; a situação encontrava-se naquilo a que Touval e Zartman chamaram impasse doloroso, uma situação madura para ser mediada e, por isso, favorável ao sucesso da mediação.

A escolha do mediador foi o primeiro obstáculo que se teve de ultrapassar. A selecção teria de recair em alguém que reunisse a confiança de ambas as partes. Chissano pretendia conversações directas sem intervenção de mediadores, ao que Dlhakama se opunha. Para Chissano, o papel dos actores externos devia limitar-se ao de bons ofícios. Por seu lado, Dlhakama pretendia como mediadores os bispos moçambicanos.

23O conflito da Bósnia é um flagrante desta situação. A tentativa de promover a alternativa muçulmana secular liderada por Adil Zulfikarpasic e Muhamed Filipovic, ao extremismo do partido liderado por Izetbegovic não resultou desmoronando-se no sectarismo que atravessou a sociedade no início da década de noventa, do século XX. Situação idêntica ocorreu na Somália, na mesma altura.

24Hume era o 2.º na cadeia hierárquica da missão norte-americana no Vaticano no momento em que decorreriam as conversações de paz em Roma. Simultaneamente, foi observador e participante activo no processo de paz.

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Após contratempos vários e iniciativas abortadas, com o acordo do Vaticano e o apoio financeiro e diplomático do Governo italiano, a Comunidade de Santo Egídio organizou a primeira ronda negocial que decorreu nas suas instalações em Roma, em Julho de 1990. Esta ronda negocial teve a participação de três entidades. Para além da Comunidade Santo Egídio, contou com as igrejas moçambicanas e o Governo italiano.

Cada uma daquelas entidades estava representada no grupo que, na altura, tinha ainda o estatuto de observador e que mais tarde se viria a tornar no grupo de mediação: a Comunidade de Santo Egídio por Andrea Riccardi e Don Matteo Zuppi, a Conferência Episcopal por D. Jaime Gonçalves, e o Governo italiano por Mário Rafaelli. Este grupo vai manter-se intacto até ao final das conversações.

No final da primeira ronda negocial, o embaixador Rafaelli concedeu uma entrevista à Rádio do Vaticano em que explicou o papel desempenhado pelos Governos do Quénia e do Zimbabué, atribuindo-lhes o mérito pela aproximação das posições das partes a qual levou ao início de conversações directas. Na prática, estas foram possíveis devido à acção conjugada de vários actores - Governo italiano, Comunidade de Santo Egídio e Igreja moçambicana.25 Não se entendendo sobre a escolha do Estado africano a convidar para mediador, as partes acabariam por concordar na solução dos quatro observadores que na prática já funcionavam como mediadores (a mediação seria uma acção colectiva).

A solução de mediação encontrada permitiu contornar os obstáculos colocados tanto pelo Governo como pela RENAMO. Esta formulação adaptava-se aos desígnios do Governo, ou seja, um mediador que tivesse um papel menor e sem capacidade manipulativa, e às exigências de mediação da RENAMO, ou seja, um mediador em vez de negociações bilaterais. Não tendo a Igreja e a Comunidade de Santo Egídio seguido uma estratégia de mediação própria, analisaremos apenas a estratégia adoptada pelo grupo de mediação onde aquela ONG se encontrava representada. Já a participação do Governo italiano nas conversações de paz terá de ser analisada em separado.

Foram muitos os actores que contribuíram para se chegar ao Acordo de Paz assinado em Roma, a 4 de Outubro de 1992. Para além do grupo de mediação constituído pelos representantes das Igrejas moçambicanas, da Comunidade de Santo Egídio e do Governo italiano, há a considerar a colaboração de vários Estados. Destaca-se um grupo de dois governos particularmente activos, embora com papéis diferentes, a Itália e os Estados Unidos da América (EUA). Com um papel igualmente importante, mas mais distante, o Quénia, Zimbabué e Malawi; e numa fase posterior das conversações em que se discutiam assuntos militares, os países que se vieram a constituir como observadores do processo de paz: França, Portugal e Reino Unido conjuntamente com os EUA. Há ainda a referir que a ONU também se juntou às conversações com o estatuto de observador, mas mais orientada para discutir os aspectos da implementação das matérias acordadas. E, finalmente, Tiny Rowland, um homem de negócios inglês, presidente do grupo Lonrho que detinha fortes interesses mineiros no Zimbabué, e que pôs os seus jactos à disposição dos mediadores e das partes para as frequentes viagens que tiveram de efectuar.

25HUME, Cameron (1994). Ending the Mozambique’s War. The Role of Mediation and Good Offices, Washington, D.C., United States Institute of Peace: 35.

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As Igrejas

Tanto académicos como praticantes têm negligenciado nas suas análises o papel das elites religiosas – Apostólica Romana e Anglicana – na gestão do conflito moçambicano, o qual remonta ao ano de 1984, quando tiveram lugar as primeiras conversações entre o Governo e a RENAMO. É neste contexto que o Conselho Cristão Moçambicano (CCM) estabelece a “Comissão para a Paz e Reconciliação” (CPR) com o objectivo de explorar possíveis espaços de diálogo e facilitar a comunicação entre os litigantes. O CCM continuou durante toda a segunda metade da década a actuar nos bastidores sem, contudo, conseguir grandes progressos.

A disponibilidade manifestada pelas autoridades quenianas para mediarem um eventual processo de paz foi aproveitada pela CCM para dialogar com os líderes da RENAMO. A iniciativa de paz promovida pelas lideranças das Igrejas torna-se pública e Chissano mandata a CPR, chefiada pelo Bispo anglicano D. Dinis Sengulane, para negociar com os líderes da RENAMO os termos de uma amnistia. Dava-se a coincidência da liderança da FRELIMO ser maioritariamente anglicana e a da RENAMO maioritariamente católica26. O ano de 1988 marca o início de uma actividade diplomática intensa que levaria à paz em 1992. A actividade diplomática em curso não impede, contudo, o prosseguimento dos combates. No início de 1989, os líderes das Igrejas moçambicanas

católica e anglicana – lançaram uma segunda iniciativa para explorar os contactos já existentes. O Cardeal D. Alexandre dos Santos, o Arcebispo D. Jaime Gonçalves, o Bispo Dinis Sengulane e o Pastor Jeremias Mucache (Presidente da CCM) encontraram- se com Chissano para o persuadir a iniciar o diálogo com a RENAMO27.

Chissano anuiu a que os clérigos se encontrassem com representantes da RENAMO, desde que fora de Moçambique, o que aconteceu mas sem resultados tangíveis.28 Em 1989, fazendo eco do chamamento do clero moçambicano, o Papa João Paulo II apelou publicamente à reconciliação nacional. No início de 1989, a CCM e o Arcebispo Católico do Maputo encontraram-se com representantes da facção norte-americana da RENAMO (elementos da RENAMO residentes nos Estados Unidos); e altos dignitários da Igreja Católica moçambicana, entre eles D. Jaime Gonçalves, reuniram-se com Dhlakama sem o consentimento de Chissano.

Mas a insistência dos líderes religiosos acabou por surtir algum efeito. Em Agosto de 1989, a pedido de Chissano, entregaram a Dlhakama, em Nairobi, um documento com 12 pontos; ao qual Dlhakama respondeu, entregando-lhes um outro para Chissano com 16 pontos29. Este utilizou os bons ofícios dos líderes religiosos como a via para se definirem as condições em que se iriam entabular negociações directas. Paralelamente aos bons ofícios dos líderes religiosos decorriam outras iniciativas protagonizadas pela diplomacia queniana e norte-americana também com o intuito de convencer as partes a entrarem em negociações directas. O empenhamento do clero na obtenção da paz prolonga-se por todo o período negocial, encontrando-se as Igrejas moçambicanas sempre presentes nas conversações através de D. Jaime Gonçalves, que, recordamos, integrou o grupo de mediação.

26Hume, Cameron, op. cit.: 27. “…A RENAMO enviou outra mensagem para a Santa Sé…explicando que ao contrário da liderança da FRELIMO, muitos de nós, …incluindo o nosso Presidente, são católicos…”

27Idem. Tinha havido uma iniciativa anterior, em 1988, promovida pelo Presidente Arap Moi, do Quénia, que convidou Chissano e Mugabe para um encontro em Nairobi para se explorar a possibilidade de negociações.

28Ibidem.

29Ibidem: 28.

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A Comunidade de Santo Egídio

Com base nos resultados obtidos pelos bons ofícios dos quatro líderes religiosos e dos governos africanos, dos quais se destacam Quénia, Malawi e Zimbabué, e explorando as ligações de longa data entre o Arcebispo D. Jaime Gonçalves e o Governo Italiano,30 a Comunidade de Santo Egídio promoveu em Julho de 1990 o primeiro encontro directo entre representantes da FRELIMO e da RENAMO, em Roma, a qual se transformou no epicentro da actividade diplomática. São dados passos significativos rumo à paz durante as negociações levadas a cabo nos meses de Outubro e Novembro de 1991: a FRELIMO e a RENAMO reconhecem-se mutuamente e acordam o futuro papel da ONU;

ératificado o direito da RENAMO a exercer actividade política partidária, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (GPA)31.

A Comunidade de Santo Egídio desempenhou um papel importante na criação das condições físicas para a realização das conversações. Para além de disponibilizar o seu quartel-general, acolhendo as delegações das partes às conversações, assegurou o apoio político, logístico e financeiro do Governo italiano necessário à realização das conversações. Integrou o grupo de mediação com dois representantes, um deles o seu presidente. Utilizando as palavras de Chester Crocker, as pessoas de Santo Egídio fizeram história através da sua intervenção inicial. Os seus esforços criaram uma massa crítica de factos e um momentum que fez com os decisores formais (T1D) tivessem matéria para apoiar32. Mas do ponto de vista negocial, pouco mais fez do que isso.

O Grupo de Mediação

A estratégia de mediação adoptada pelo grupo de mediação foi do tipo Comunicativo. O grupo contribuiu para que se mantivesse o diálogo entre as partes e que as relações de hostilidade e animosidade se tivessem transformado em relações de cooperação, ajudando através do diálogo à reconciliação das partes. Para além dos bons ofícios prestados durante todo o processo negocial, o grupo de mediação fez propostas e ajudou os litigantes a encontrar alternativas.

A shuttling diplomacy foi uma prática recorrente não só junto das delegações das facções em Roma, como noutros locais, junto dos dirigentes máximos das partes com o objectivo de acordar as agendas das reuniões e a sequência dos assuntos a serem discutidos, ou desbloquear situações mais complexas para as quais os chefes das delegações em Roma não tinham autoridade delegada para se pronunciarem. O grupo de mediação deslocou-se, por exemplo, ao Malawi, em Novembro de 1990, para se encontrar com Dlhakama afim de desbloquear o impasse que estava a impedir a obtenção do acordo de cessar-fogo. Na maioria das vezes, estas acções eram complementadas, de uma forma concertada, pela diplomacia dos Estados, o que se veio a revelar bastante eficaz33.

30D. Gonçalves foi a ligação chave que levou à mediação italiana. A sua amizade com os membros da Comunidade de Santo Egídio tinha mais de 20 anos quando o então jovem padre a estudar em Roma se tornou próximo daquela organização religiosa. Uns anos mais tarde recorreu à ajuda da Comunidade para pressionar o Governo moçambicano a abdicar da sua posição anticlerical.

31Hume, Cameron, op. cit.: 79

32Idem: xii.

33O exemplo dado por HUME na p. 63 ilustra perfeitamente esta complementaridade e coordenação.

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Os mediadores formulativos controlam a agenda e, por conseguinte, podem alterar a ordem dos trabalhos, estabelecer prazos e controlar o ritmo e a formalidade das reuniões; podem alterar o número de participantes nas conversações, trazer mais actores para o processo para ter mais interesses representados na mesa de conversações. Mas não foi este o caso. A marcação das reuniões e a identificação dos assuntos a serem discutidos eram feitas sempre com o consentimento das partes.

O low-profile da mediação conduzida pelo grupo de mediação tinha pouca influência sobre elas; não tinha poder para conferir legitimidade diplomática a qualquer acordo; e dispunha de uma capacidade muito reduzida para sustentar o processo de implementação que estava a ser arquitectado34. Nalguns momentos e nalguns aspectos, o comportamento do grupo de mediação teve laivos de estratégia formulativa: aconselhavam as delegações em aspectos técnicos, ajudando-os a identificar, a expandir e a seleccionar possíveis opções35.

Mas quando a flexibilidade das partes desaparecia e o grupo de mediação perdia o controlo da agenda36, este tinha que se socorrer de actores externos com maior capacidade de persuasão sobre elas, isto é, recorrer ao auxilio da diplomacia de uma via, principalmente dos Governos norte-americano e italiano. O mesmo ocorreu quando se teve que discutir assuntos de natureza técnica, nomeadamente militar, para os quais os membros do grupo de mediação não dispunham de conhecimentos.

Os Estados

A actuação do grupo de mediação foi seguida de perto e complementada, em permanência, pela diplomacia de vários Estados, sobretudo quando se tratava de resolver assuntos de maior complexidade ou quando as partes se mostrassem mais renitentes em chegar a acordo. Governos africanos e ocidentais foram necessários em vários momentos das conversações para: ultrapassar impasses entre os chefes das delegações sedeados em Roma; actuar junto dos líderes de topo; criar legitimidade e definir datas limite; e forçar a convergência de opinião em assuntos que de outro modo ainda estariam por resolver37. Segundo Chester Crocker, a actuação discreta dos diplomatas oficiais foi essencial na formulação da sequência dos assuntos a serem tratados e na definição do caminho a seguir nas matérias militares e constitucionais dos acordos38.

Na vanguarda destas iniciativas esteve a diplomacia italiana, incansável a promover e a organizar inúmeros encontros dos líderes das facções e a assegurar a presidência da Comissão de Verificação Conjunta (JVC), através do seu embaixador em Maputo39. A Itália esteve também profundamente envolvida em várias acções de bons ofícios e de shuttle diplomacy, mobilizando para tal o seu embaixador em Maputo que se encontrou várias vezes com Dlhakama e com Chissano40. Para além disso, o Governo italiano

34Idem: 95.

35Ibidem: 73.

36Ibidem: 62.

37Ibidem: xi.

38Ibidem.

39Pelos vistos, o único que ignorava o papel instrumental da diplomacia italiana no apoio às conversações era o próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, quando em Fevereiro de 1992 sugeriu que a Itália também se juntasse às conversações como um observador oficial. HUME, op. cit.: 90.

40Idem: 127.

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arcou com grande parte das despesas, nomeadamente viagens e estadia das delegações, e com a cobertura política da mediação. No início de 1992, o Parlamento italiano autorizou o Governo a usar até 1% do seu orçamento de ajuda externa em proveito do processo de paz. Para além do seu representante no grupo de mediação, houve um envolvimento directo e efectivo do Governo e da diplomacia italiana no processo de mediação.

Os Estados Unidos desempenharam igualmente um papel crucial desde o início das conversações, proporcionando aconselhamento técnico, encorajamento e apoio público ao processo de paz. Destacaram uma equipa composta por pessoal do Departamento de Estado que acompanhou permanentemente a evolução das conversações, e que prestou um apoio decisivo ao grupo de mediação, muito em particular à delegação da RENAMO, em áreas técnicas que requeriam o concurso de especialistas. Para ajudar a ultrapassar algumas dificuldades negociais, elementos desta equipa, actuando em tandem com o grupo de mediação, reuniam separadamente com as delegações para as convencer a adoptarem posições mais flexíveis.

O envolvimento norte-americano não se limitou à equipa que acompanhou as conversações. Em momentos de impasse, os Estados Unidos intervieram a um nível “elevado”, “aconselhando” as partes, em particular a RENAMO, a moderarem as suas posições. A presença dos Estados Unidos nas negociações foi determinante devido à “capacidade de persuasão” que dispunham sobre os litigantes, a RENAMO em particular. Os Governos italiano e americano, especialmente este último, seguiram uma estratégia formulativa que nalguns casos assumiu contornos típicos de estratégia manipulativa.

Apartir de Outubro de 1991, o apoio norte-americano à mediação tornou-se mais activo, aumentando significativamente o envolvimento da sua diplomacia nas conversações. Tanto o Secretário de Estado Adjunto para os Assuntos Africanos, Herman Cohen, como o seu auxiliar, Jeffrey Davidow, passaram a encontrar-se mais frequentemente não só com os líderes das facções, numa diplomacia paralela à do grupo de mediação, para os “ajudar” a dar passos mais céleres e determinados rumo à paz, mas também com dirigentes africanos cujo contributo para o processo de paz pudesse ser importante. O envolvimento da diplomacia norte-americana foi ainda essencial para assegurar a presença da ONU na implementação do acordo de segurança, garantindo a ligação com o Conselho de Segurança.

Acolaboração de vários Estados vizinhos com o grupo de mediação foi igualmente importante. Complementando a sua acção, colocaram pressão sobre Dlhakama e Chissano para não abandonarem o diálogo e tomarem decisões concretas. Vários estadistas africanos ajudaram o grupo de mediação na fase final das conversações. Mugabe terá sido, porventura, o dirigente africano mais importante nesta tarefa. Em Setembro de 1992, o grupo de mediação pediu a Mugabe ajuda para se ultrapassar mais um impasse negocial. As delegações em Roma não eram capazes de chegar a um acordo quanto à dimensão das Forças Armadas, à reforma da polícia e do serviço de segurança e à forma como se organizar a administração civil nas áreas controladas pela RENAMO. Mugabe arranjou um encontro de Chissano com Dlhakama, no Botswana, onde se acordou criar uma comissão para supervisionar os serviços de segurança.

Quando se começaram a discutir os assuntos militares e o modo de os implementar, o Governo italiano assumiu um papel ainda mais proeminente proporcionando ao grupo

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de mediação especialistas para orientarem e dirigirem a discussão. Isto obrigou a introduzir alterações na estrutura das conversações, nomeadamente o aumento da dimensão das delegações para passarem a contemplar equipas de especialistas militares, incluindo aqueles proporcionados pelos países observadores (França, Portugal, Reino Unido e EUA)41.

Tornou-se evidente a conveniência de envolver nas conversações um núcleo duro de países que pudesse fornecer ao grupo de mediação e às delegações, não só conselho técnico sobre estes assuntos, mas que pudesse também vir a contribuir com forças militares para a implementação do acordo de paz, para além da participação da própria ONU. Exceptuando o caso de Itália e dos EUA, os restantes actores estatais pautaram o seu comportamento mais pela facilitação de contactos explorando a capacidade de persuasão que determinados líderes africanos tinham sobre os seus parceiros moçambicanos.

A ONU e Outros Actores Não Estatais

Colaboraram também no processo de paz, mas de forma muito diferente a ONU e Tiny Rowland. Na listagem dos actores que participaram no processo de paz teremos inevitavelmente que incluir a ONU, não esquecendo, entre outras coisas particularmente importantes que liderou, a coordenação com governos chave na região e a organização de uma conferência de doadores em Maputo. Para implementar os Acordos era necessário mobilizar a contribuição de outros actores para uma pool de recursos. Uma vez assinado o acordo de paz tratava-se agora de o implementar, passando o papel da ONU a ser crucial.

Os trâmites dessa implementação tinham de ser negociados com a própria ONU. Ao contrário do grupo de mediação, o Secretário-Geral da ONU podia agora lidar com as partes a partir de uma posição institucional forte, a qual incluía normas de execução permanente para o peacekeeping, a gestão de programas de ajuda humanitária, uma rede de Estados doadores de dinheiro e pessoal, e o requisito da autorização do CS.42 Como referido do antecedente, Tiny Rowland desempenhou um papel nada negligenciável ao proporcionar transporte aéreo às delegações e aos líderes moçambicanos quando e onde foi necessário.

Conclusões

A análise do processo de paz moçambicano conduziu-nos a quatro conclusões fundamentais. Em primeiro lugar, o caso estudado não ilustra empiricamente a tese de que os intermediários informais e as ONG em particular são o tipo de mediador mais adequado para conduzir a mediação de conflitos intra-estaduais violentos. A mediação do processo de paz moçambicano não se pode considerar uma acção de T1,5D e muito menos de T2D43. Como tal, não pode ter validade empírica para sustentar tal tese. Reduzir as conversações de paz moçambicanas ao papel desempenhado pela

41É neste contexto que em Junho de 1992, na 10ª ronda negocial, é aprovado o convite à França, Portugal, Reino Unido, EUA e ONU para integrarem as conversações com o estatuto de observadores.

42Ibidem: 139.

43Crocker sublinhou que as negociações do caso de Moçambique não foram de modo algum um caso puro de T2D. Ibidem: xi.

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Comunidade de Santo Egídio é factualmente incorrecto, porque esta nunca se chegou a constituir verdadeiramente como um mediador44.

Em segundo lugar, a mediação da paz foi um processo multi-track no qual os Estados tiveram um papel decisivo. Verificámos não ser igualmente correcto atribuir o mérito da iniciativa de paz à Comunidade de Santo Egídio e ao Vaticano, em detrimento do papel exercido pelos Estados, dos quais se salientaram o italiano e americano. O arranjo de mediação colectiva adoptado, incluindo representantes de um Estado para além de uma ONG e de uma Igreja, foi sem dúvida sui generis. Mas devido aos limitados recursos à sua disposição, a capacidade do grupo de mediação para influenciar e persuadir as facções litigantes era bastante limitada. Sempre que surgia algum impasse cuja resolução se afigurava mais difícil, o grupo de mediação teve de se socorrer da diplomacia dos Estados influentes dotados dos recursos que lhe faltavam (principalmente Itália, EUA e Zimbabué). Na prática o que prevaleceu foi a diplomacia dos Estados.

Em terceiro lugar, à luz do processo de paz moçambicano, verificámos que as ONG e os processos de TD2 podem, de uma forma geral, complementar a acção dos agentes tradicionais (Estados e Organizações Internacionais), mas encontram-se ainda muito longe de os poderem substituír ou mesmo de poderem actuar em pé de igualdade. Por faltar às ONG a legitimidade, a capacidade ou a estabilidade dos Estados soberanos, estes ainda continuam a desempenhar um papel incontornável e insubstituível, atestanto assim a primordialidade da mediação formal na gestão de conflitos violentos.

Em quarto lugar, o caso moçambicano veio mostrar o potencial de reconciliação das designadas fontes de poder social, nomeadamente as ideológicas, neste caso com expressão na religião e nas elites religiosas (Mann, 1986), um tema cuja aplicação à resolução de conflitos tem sido insuficientemente estudado e que escapa ao objecto deste trabalho. Para o êxito das conversações de paz muito contribuíram as elites católica e anglicana que actuaram de uma forma concertada junto dos dirigentes da FRELIMO e da RENAMO, seus correligionários religiosos. Não só a maioria da liderança da RENAMO era católica, como foi atrás referido, como a liderança da FRELIMO tinha muitos seguidores da Igreja anglicana. Se Chissano ou Dhlakama fossem muçulmanos, a influência das elites religiosas cristãs sobre eles teria sido completamente diferente. Procurando explorar o sucesso do caso Moçambique – mal compreendido e mal estudado, – a Comunidade de Santo Egídio tentou mais tarde envolver-se na mediação do conflito no Kosovo, sem qualquer resultado. Escapava-lhe uma interpretação correcta dos acontecimentos em Moçambique.

Pensamos que as conclusões a que chegámos após analisar o caso moçambicano podem ser generalizadas. Ao contrário do defendido por algumas correntes de pensamento, o caso em apreço vem confirmar empiricamente o nosso argumento e a importância crucial da T1D na gestão de conflitos violentos. Nestes casos, a T2D pode apoiar os esforços da diplomacia, mas desempenhará sempre um papel secundário e de apoio. A T2D e, por conseguinte, a acção desenvolvida pelas ONG pode ser particularmente importante noutras fases da vida de um conflito, por exemplo, durante o peacebuilding, no apoio à reconciliação entre grupos desavindos. Não se pode

44Como referido ao longo do texto, a Comunidade de Santo Egídio apenas contribuiu com dois elementos para o grupo de mediação, o qual integrava um representante da Igreja moçambicana e outro do Governo italiano.

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substimar de modo algum o papel destas organizações, por exemplo, em acções de natureza humanitária ou no apoio à reconstrução de sociedades dilaceradas pela guerra, mas não na mediação de conflitos violentos. O envolvimento directo de ONG na mediação de conflitos violentos não tem sido comum, mas os poucos casos em que participaram não se podem considerar sucessos. O registo das intervenções das ONG neste campo fala por si45.

Os conceitos T1,5D e T2D são construções muito apelativas, mas de utilidade questionável quando aplicados à gestão de conflitos violentos. O mesmo se pode dizer relativamente ao envolvimento da sociedade civil em processos de mediação de conflitos violentos. Uma ideia, igualmente apelativa, que se desmorona se tivermos em conta que os conflitos violentos ocorrem tendencialmente em sociedades pré- modernas, sem uma sociedade civil activa, ou em sociedades mais desenvolvidas mas em que as organizações da sociedade civil foram destruídas pela violência, reduzindo a sua eventual capacidade de influenciar e persuadir à ínfima dimensão.

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Weiss, T. e Gordenker, L. (1996). NGOs, The UN, and Global Governance, Boulder: Lynne Rienner Publishers.

45Entre outros, salientamos as conversações entre o Governo nigeriano e os líderes rebeldes do Biafra, durante o conflito 1967-70, sob os auspícios dos Quakers; a desastrosa experiência da Comunidade de S. Egídio no Uganda, em meados dos anos 90; uma coligação de ONG’s na mediação de um cessar-fogo no Sudão, na década de 70; o Conselho Inter-religioso na Serra Leoa; e outras ONG’s na Abcázia, Ossétia do Sul e Transnístria.

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