OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011)
Articles
Giuseppe Ammendola Algumas tendências e perspectivas sobre globalização,
crescimento económico, igauldade e desenvolvimento (1-48)
Korinna Horta – Duas décadas após a Cimeira do Rio: quo vadis desenvolvimento
sustentável? (49-65)
José Manuel Freire Nogueira - Europa - a geopolítica da desunião (66-83)
Carlos BrancoAs Organizações não Governamentais na mediação de conflitos intra-
estaduais violentos: o confronto entre a teoria e a prática no processo de paz
moçambicano
(84-103)
Alexandre Carriço - A AVIC e o programa de investigação e desenvolvimento do J-20
(104-118)
Mateus Kowalsky O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de
resistência aos seus fundamentos (119-134)
Notes and Reflections
Nancy Elena Ferreira Gomes – BRICS: Brasil, potência emergente (135-140)
Hermínio Esteves – A Cooperação Europa/África (141-143)
Cristina Crisóstomo A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
O papel do Tribunal de Justiça da União Europeia (144-159)
Critical Reviews
Kagawa, Fumiyo et Selby, David (ed) (2011). Education and Climate Change. Living
and learning in interesting times. New York: Routledge: 259 pp - por Brígida Rocha
Brito (160-164)
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ALGUMAS TENDÊNCIAS E PERSPECTIVAS SOBRE GLOBALIZAÇÃO,
CRESCIMENTO ECONÓMICO, IGUALDADE E DESENVOLVIMENTO
Giuseppe Ammendola
email : ga17@nyu.edu
Doutorado em Itália e nos Estados Unidos como bolseiro Fullbgrigt. É consultor internacional
multilingue e orador. Escreve sobre finanças internacionais, comércio, gestão estratégica e
governação. É professor de cursos de pós-graduação na Universidade de Nova Iorque e professor
convidado em várias escolas de estudos pós-graduados em Itália. É editor e principal autor do
livro: "The European Union: Multidisciplinary Views" e de «From Creditor to Debtor: the US
Pursuit of Foreign Capital and country analysis “Italy”» in Michael Curtis (ed.) Western European
Politics and Government. É consultor nas áreas de gestão estratégica, marketing, avaliação de
planos de negócio e da escrita. Fez centenas de comunicações em várias línguas para decisores
de empresas, governos e instituições sem fins lucrativos, assim como para o público em geral em
todo o mundo sobre muitos aspectos da economia global. É Professor Convidado em Economia
Internacional na Cátedra Joseph Schumpeter na Universidade Autónoma de Lisboa.
Resumo
A economia mundial está hoje mais complexa do que nunca. Este artigo analisa alguns dos
enquadramentos utilizados na descrição, análise e previsão nas áreas do crescimento
económico, igualdade e desenvolvimento, ao mesmo tempo que destaca algumas
tendências importantes actuais e do passado. A escolha dos enquadramentos e das
tendências representa claramente uma opção do autor, necessariamente breve e subjectiva,
baseada na percepção da sua “utilidade” para a tomada de decisões públicas e privadas.
Este artigo começa por examinar o impacto do crescimento económico na classificação das
economias mundiais. Em seguida, procede-se à análise das formas como as economias dos
países podem ser encaradas no que respeita à facilidade com que fazem negócios, sua
adaptabilidade à abertura e mudança, e tipos de capitalismo adoptados. Na segunda parte,
a análise é direccionada para os problemas da desigualdade económica no seio e entre os
vários países do mundo e respectivos cidadãos. Na terceira secção, a análise recai sobre o
desenvolvimento, dando início a uma breve discussão sobre as vantagens de ir além do PIB,
levando em consideração o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como forma de medir
outras formas de progresso, tais como a educação e a saúde. Em seguida, é traçada a
evolução da economia do desenvolvimento e da assessoria prestada aos decisores políticos
dos países em desenvolvimento, analisando igualmente o papel desempenhado pelas
instituições nesses países e a controvérsia em torno da ajuda externa. O artigo termina com
uma análise sucinta de outras dimensões do desenvolvimento humano, tais como a
capacitação e a sustentabilidade.
O cenário emergente evidencia um mundo em que, de uma forma articulada, os decisores
têm de recorrer a uma pluralidade de conhecimentos para compreender as realidades com
as quais se confrontam, conceber e implementar boas políticas. Ao fazê-lo, têm de enfrentar
os desafios inerentes à impossibilidade de tomar decisões apropriadas de forma sequencial,
vendo-se frequentemente forçados a tomar decisões de segunda escolha e a utilizar, de
forma inteligente, as lições aprendidas a partir de países com contextos e restrições
geográficas, políticas, económicas, sociais, legais, tecnológicas e culturais muito diferentes.
Palavras-chave
Globalização; Crescimento Económico; Igualdade; Desenvolvimento; Tomada de Decisões
Como citar este artigo
Ammendola, Giuseppe (2011). "Algumas tendências e perspectivas sobre Globalização,
Crescimento Económic, Igualdade e Desenvolvimento”. JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art1
Artigo recebido em Setembro 2011 e aceite para publicação em Setembro 2011
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 1-48
Algumas tendências e perspectivas sobre globalização, crescimento económico, igualdade e desenvolvimento
Giuseppe Ammendola
2
ALGUMAS TENDÊNCIAS E PERSPECTIVAS SOBRE GLOBALIZAÇÃO,
CRESCIMENTO ECONÓMICO, IGUALDADE E DESENVOLVIMENTO
Giuseppe Ammendola
Introdução: desafios analíticos
No início da segunda década do século XXI, a economia mundial apresenta
características muito complexas, exibindo inúmeras tendências e colocando muitos
desafios aos decisores dos sectores público e privado. Além disso, abundam as
perspectivas e enquadramentos provenientes de várias disciplinas que têm por
objectivo descrever, analisar e prever a economia global ou aspectos específicos da
mesma, que se podem sobrepor, fazendo-o frequentemente. Em muitas ocaisões,
acresce o facto de que em inúmeras variáveis que os analistas têm que analisar tanto
as causas como os efeitos são as mais difíceis de distinguir, senão mesmo impossíveis.
São muitos os factores que estão na base desta complexidade. Seguramente, o
incremento do número de Estados-Nação, reflectido no aumento do número de Estados
com assento nas Nações Unidas, que de 51 em 1945, passou para 99 em 1960,
atingindo os 154 em 1980, situando-se actualmente em 193, tem amplificado a
magnitude dos problemas de compilação de informação e de análise das questões. Um
número maior de países significa, entre outras coisas, que há uma maior dificuldade
em avaliar a qualidade da informação apresentada junto de instituições internacionais,
como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o que faz com que seja mais difícil
estabelecer comparações e contrastes. Além disso, a mudança de países como a China
e a Índia, assim como os do antigo bloco soviético, para políticas de mercado livre, ou
mais livre, fez aumentar consideravelmente o nível das suas actividades económicas
internas, assim como o seu papel económico e a interacção com o resto do mundo. Por
outro lado, um aumento dos níveis de interacção entre todos os países tem sido
possível e encorajado graças aos enormes avanços tecnológicos nas comunicações e
transportes. Portanto, pode facilmente defender-se que os bens, capitais e pessoas
nunca foram tão móveis como actualmente, o que faz com que seja muito mais difícil
seguir-lhes os movimentos. Da mesma forma, o número de cientistas no mundo, que
são uma espécie de procuração para medir o fluxo de ideias e perspectivas de
desenvolvimento de produtos, nunca foi tão elevado como agora.
Dado que as economias mundiais estão, neste momento, mais integradas e
interdependentes do que nunca, e que esta interacção exibe uma complexidade cada
vez maior, torna-se importante tentarmos organizar as nossas ideias em relação às
mesmas. No presente artigo, procuraremos examinar a forma como alguns conceitos
chave e tendências associadas ao crescimento económico, igualdade e desenvolvimento
– discutidos por esta ordem – podem contribuir para a nossa compreensão da
economia mundial. A selecção dos enquadramentos é claramente subjectiva,
necessariamente limitada na sua abrangência (afinal de contas, trata-se de uma
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3
opção), e com base na percepção da sua utilidade para os decisores públicos e
privados
1
.
Crescimento Económico
Sobre o PIB e o crescimento
No início de 2011, era já claro que as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB) das economias mais desenvolvidas eram definitivamente menores do que as de
muitos países em desenvolvimento e com economias de transição. Isto está de acordo
com uma tendência observada durante os anos que precederam a Grande Recessão de
2007-2009 e da qual a economia mundial está actualmente a emergir
2
.
Mais especificamente, no início do novo milénio, a participação dos países ricos no PIB
mundial com base na paridade de poder de compra (PPC) era de dois terços, enquanto
que em 2010 esta percentagem tinha descido para cerca de metade, com muitos a
preverem a sua queda para os 40% nos próximos dez anos
3
. Um historiador económico
recordaria que isto indica sobretudo que os mercados emergentes estão a “aproximar-
se a passos largos"
4
. Afinal de contas, nos 18 séculos que precederam o ano de 1820,
estas economias representavam cerca de 80% do PIB mundial
5
.
Desde 1820, a partir do início da revolução industrial até à onda de globalização que
está associada à era do padrão-ouro entre 1870 e 1914, e até às várias décadas que se
seguiram à reconstrução após a segunda Guerra Mundial, a Europa (assim como o
relativamente lento número crescente daquilo a que chamamos países desenvolvidos,
incluindo, naturalmente, os Estados Unidos da América), apresentaram taxas de
crescimento muito maiores do que as dos países em desenvolvimento. Esta notória
supremacia económica, entre outros factores, conduziu a uma mudança marcante na
forma de pensar, levando as economias emergentes a adoptar uma orientação de livre
mercado conhecido por Consenso de Washington
6
.
O dinamismo recente exibido pelos mercados emergentes tem-se traduzido por uma
série de números, dos quais apresentamos alguns exemplos. Em primeiro lugar, do
aumento de 30% no número de desempregados em todo o mundo desde 2007 até aos
actuais 210 milhões previstos, só um quarto foi contabilizado pelos mercados
emergentes, com os restantes 75% a serem reclamados pelas economias avançadas
(FMI, 2010: 4).
Em segundo lugar, depois de se ter tornado a segunda maior economia mundial e
afirmado ter construído o computador mais rápido do mundo, a China deverá tornar-se,

1
Dada a influência profunda que as duas categorias de decisores exercem uma sobre a outra através dos
vários canais, considero que as suas necessidades de análise e de informação são bastante semelhantes.
Isto aplica-se sobretudo no caso das tendências e enquadramentos abordados neste artigo, devido ao
seu amplo contexto.
2
A Comissão de Ciclos de Negócios (The Business Cycle Committee) da Agência Nacional de Investigação
Económica (National Bureau of Economic Research) considera que a recessão nos Estados Unidos teve
início em Dezembro de 2007 e terminou em Junho de 2009. Veja-se o website do NBER: www.nber.org
3
The Economist (2010). As comparações do PIB entre países tornam-se complicadas pelas diferenças
entre as estimativas efectuadas em termos de valores nominais e as feitas numa base de PPC, que tem
por objectivo medir e comparar os poderes de compra de vários países.
4
Agtmael, Antoine (2007) é considerado o criador da expressão “mercados emergentes”.
5
The Economist (2006), reflectindo os trabalhos de Angus Maddison.
6
Criado como um conjunto de receitas a aplicar nos países da América Latina, estes princípios
rapidamente se estenderam ao resto do mundo em desenvolvimento.
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em 2011, o maior fabricante do planeta, ultrapassando os Estados Unidos (Franklin,
2010; Hille, 2010). Em terceiro lugar, muitos observadores prevêem que em breve, as
taxas de crescimento da Índia igualarão (ou mesmo superarão) os valores
impressionantes alcançados pela China. Em quarto lugar, prevê-se que, na próxima
década, cerca de 700 milhões de pessoas dos mercados emergentes ingressarão na
classe média, para grande alegria dos executivos de marketing de todo o mundo
7
. Por
último, o número de indivíduos com elevado rendimento líquido individual (HNWIs) na
zona da Ásia Pacífico atingiu os 3.3 milhões, ultrapassando pela primeira vez os
europeus (3.1 milhões)
8
.
Mercados emergentes
Não faltam tipologias para classificar as economias mundiais recorrendo ao seu
crescimento económico, realizado ou potencial. Já todos lemos sobre “o ocidente e o
resto”, ou expressões criadas anteriormente, tais como “a divisão Norte-Sul”, países
desenvolvidos versus os menos desenvolvidos (ou em desenvolvimento), ou mercados
emergentes, ou do primeiro, segundo ou terceiro mundo. Prevejo que a sintonia fina
deste tipo de classificações, com todas as suas implicações, constitua uma área de
debate interessante nos próximos meses e anos.
Em primeiro lugar, realizar-se-á um número cada vez maior de debates em torno do
rótulo “mercados emergentes”. Na primeira linha temos os países BRIC, ou seja, o
Brasil, a Rússia, a Índia, e a China. Esta sigla, originalmente criada por Goldman Sachs,
tem recentemente vindo a ser posta em causa. Alguns vão ao ponto de sugerir que a
Rússia deveria sair do grupo (devido aos seus problemas demográficos e de corrupção)
para admitir, por exemplo, a Indonésia, por ser um país cujas instituições sociais e
políticas estão a melhorar, e que conta com empresas inovadoras, rectidão fiscal e um
crescimento de 6% em 2010 (Farzad, 2010; Wooldridge, 2010). Para além dos BRIC,
ou BRIIC, se incluirmos a Indonésia, podemos traçar uma distinção entre os mercados
emergentes do tipo “esquecido” e que “podem rivalizar com os BRIC em termos de
prosperidade” e os mercados de “fronteira que apenas começam a sair das suas
crisálidas” (Wooldridge, 2010: 131).
Nesta tipologia, exemplos de países “esquecidos” incluem a África do Sul, o Botswana,
e as Ilhas Maurícias na África sub-equatorial, e, a norte, o Egipto, Marrocos, Tunísia, e
a Líbia, todos países com acesso ao grande veículo de oportunidades que é o
Mediterrâneo, uma vantagem que se estende igualmente à Turquia, que se propaga
geograficamente e culturalmente entre dois mundos diferentes
9
. A Arábia Saudita
poderá eventualmente ser incluída neste grupo, o mesmo acontecendo com o México,
especialmente se os problemas de criminalidade deste último forem controlados. Por
outro lado, “os mercados de fronteira” caracterizam-se por serem “mais pobres e

7
Wooldridge (2010: 131). Sobre as limitações associadas ao conceito de classe média, veja-se, no
entanto, Milanovic (2011: 171ff.)
8
A América do Norte, com 3.4 milhões, está apenas ligeiramente à frente. A definição de HNWIs aplica-se
aos indivíduos que têm activos para investimento de 1 milhão de dólares americanos ou mais. Veja-se
Capgemini e Merrill Lynch World Wealth Report (Relatório sobre a Riqueza Mundial) (2011). Na Lista da
Forbes, que também enumera o número crescente de indivíduos ricos provenientes dos mercados
emergentes, veja-se, por exemplo, Rappeport (2011).
9
Não existem grandes dúvidas de que os acontecimento que se têm vindo a registar no Norte de África
desde Dezembro de 2010 demonstraram que os riscos associados aos países na região poderão, no
geral, ter sido subestimados.
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arriscados que os “esquecidos” (Wooldridge, 2010: 132). Neste grupo poderemos
igualmente incluir países como o Sri Lanka, Bangladesh e Paquistão na Ásia, e o
Quénia, Nigéria e Ruanda em África (ibidem).
Não há dúvida que os investidores estrangeiros enfrentam riscos substanciais nestes
“mercados de fronteira”. As opiniões também podem mudar muito rapidamente.
Considerava-se que o Vietname estava extremamente bem posicionado para tirar à
China uma quantidade apreciável de empregos de outsourcing devido ao seu jovem
mercado de trabalho e aos elevados níveis de alfabetização (Wooldridge, 2010: 132).
Contudo, o incumprimento recente de um empréstimo bancário no valor de US $600
milhões por parte da sua maior empresa de construção naval estatal levou muitos a
prestarem uma atenção redobrada aos problemas orçamentais, bancários, de moeda, e
de transparência em geral do país (Nguyen, 2010; The Economist, 2011a).
Um Mundo a quatro velocidades
Outra categorização muito interessante, e que vale a pena monitorizar na sua
evolução, é a recentemente proposta da OCDE utilizando como base o quadro de
análise inicialmente apresentado por James Wolfensohn, ex-presidente do Banco
Mundial, que introduziu o conceito “Um Mundo a Quatro Velocidades”. (Wolfensohn,
2007; OECD, 2010: 32ff.) Nesta tipologia, o topo é ocupado pelo grupo de países
“ricos”, onde se incluem os Estados Unidos e a maioria dos países europeus, que nos
últimos 50 anos têm mantido uma liderança firme na economia mundial. O que é mais
notável é que, contendo apenas 20% da população do globo, estes países representam
cerca de 70-80% do rendimento mundial
10
. Na opinião de Wolfensohn, estes países
continuarão a aumentar os seus níveis de vida, enquanto o seu “predomínio
económico” é posto em causa pela segunda categoria de países (Wolfensohn, 2007).
Na minha opinião, nada simboliza melhor a erosão do poder económico do “grupo dos
ricos” que a crescente importância do Grupo dos Vinte (G-20), apesar das dúvidas
acerca da disposição e capacidade dos recém-chegados em acatar o fardo que advém
da liderança e governança global, o que faz com que muitos questionem a sua eficácia
presente e futura (Castañeda, 2010; Bremmer e Roubini, 2011).
O segundo nível, a que a OCDE chama “mercados convergentes”, é constituído por um
grupo de nações com rendimentos baixos e médios que têm vindo a registar taxas de
crescimento elevadas de forma consistente, de uma forma geral duas vezes mais do
que o grupo de países com rendimentos elevados. Neste grupo, que geralmente soube
tomar partido do processo de globalização, inscrevem-se, claramente, a Índia e a
China. O terceiro patamar caracteriza-se por taxas de crescimento mais lentas (mas
mais altas do que as registadas no grupo dos ricos). Apesar de, em geral, não
receberem ajuda internacional, a OCDE rotula-os de “países em dificuldade”,
igualmente devido às suas taxas de crescimento irregulares. O quarto grupo de países,
na sua maioria localizados na África Subsaariana, caracteriza-se pela estagnação ou
mesmo queda dos seus rendimentos, sendo mais vulneráveis aos caprichos da
globalização, como as alterações climáticas e os preços mais elevados dos bens. A
OCDE chama-lhes “pobres” e, com uma população total a raiar um bilião, constituem

10
OECD (2010: 32). Creio que é uma estimativa que tem que ser encarada como uma referência a
números nominais e não ao PPC.
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6
um fardo e um desafio para o resto do mundo
11
. Tendem a ser países onde a tarefa de
atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) vai ser mais árdua
12
.
A OCDE sublinha que esta classificação a quatro tem grande valor histórico, pois
centra-se na evolução dos países entre a década de 90 e a de 2000, não apresentando
avaliações de perspectivas ou potencialidades de um determinado país (OECD, 2010:
32). Contudo, a OCDE tentou estabelecer uma diferença entre as quatro categorias de
países (ricos, convergentes, em dificuldades, e pobres) em termos da sua integração
na economia global, recorrendo a um índice desenvolvido por Dreher (2006). Este
índice “resume” as várias dimensões da integração: a económica, que mede a
globalização económica a longo prazo em termos de fluxos de bens, capitais e
serviços
13
; a política, que se caracteriza pela disseminação de políticas
governamentais; e a social, expressa através da propagação de ideias, informação e
pessoas” (OECD, 2010: 38, a ênfase é minha).
Assim, a OCDE (ibidem) observa que o estudo de Dreher, que analisou 123 países
entre 1970 e 2000, aponta para a conclusão que, em média, os países que atingiram
níveis de globalização mais elevados alcançaram taxas de crescimento maiores: ou
seja, “ a globalização é boa para o crescimento” (Dreher, 2006: 1105). Ao aplicar a sua
metodologia ao mundo a quatro velocidades e usando dados de 2000-20077, a OCDE
afirma que os países ricos decididamente têm uma pontuação superior à dos pobres em
termos do índice geral e do sub-índice económico. Por outro lado, as diferenças entre
os países convergentes e os que se encontram em dificuldades são menos claras e até
mesmo contraditórias no que diz respeito aos sub-índices político e económico,
especialmente se acrescentarmos os países pobres a esta mistura.
Um exemplo ilustra a complexidade e a incerteza desta importante linha de
investigação. Entre 1990 e 2000, a participação do comércio no PIB dos países da
África Subsariana cresceu de 51% para 65%. Contudo, no mesmo período, a sua quota
de produção total diminuiu em um quarto (OECD, 2010: 39). No conjunto, a OCDE
conclui que os países convergentes parecem ter enfrentado os desafios da sua
integração na economia mundial melhor do que os países em dificuldades ou pobres
14
.
Dissociação
Uma questão que está intimamente ligada à das taxas de crescimento e da globalização
é a do “decoupling” (dissociação). Deixando de lado o velho e gasto ditado “Quando os
Estados Unidos se constipam, o resto do mundo fica com pneumonia” os adeptos da
dissociação acreditam que os mercados emergentes estão destinados a tornarem-se
cada vez menos dependentes das fortunas dos mercados desenvolvidos. Em vez de
dependerem dos países avançados como alvos das suas exportações, de acordo com a
teoria, com o tempo, os mercados emergentes irão tornar-se cada vez mais capazes e
propensos a confiar numa intensa procura interna. Assim, um estudo comparativo de

11
A lista das quatro categorias de países encontra-se em OECD (2010: 170-74).
12
Sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, veja-se infra.
13
Aliás, isto recorda-me uma definição útil de globalização económica na forma de integração entre países
em três mercados: bens; trabalho; e capitais. Veja-se Bordo, Taylor e Williamson (2003).
14
Como nos referiremos mais adiante, trata-se aqui de um problema de causalidade versus correlação
entre comércio e crescimento, mesmo que “na prática, a questão para um determinado país não é
integração na economia global, já que poucos têm qualquer hipótese de escolha nesta matéria, mas sim
como gerir essa integração” (OECD, 2010: 39).
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quatro recessões que tiveram lugar em economias avançadas em 1974-5, 1980-3,
1991-3, e 2001, demonstrou que as economias de mercado emergentes tiveram um
desempenho melhor nas duas últimas (Decressin, Scott, e Topalova, 2010: 13).
É importante notar que existem muitos estudos que afirmam que existe uma maior
integração dos países emergentes no comércio mundial e nos mercados de capitais e
que este facto “aparenta contradizer a teoria da dissociação” (Decressin, Scott, e
Topalova 2010: 15). Na realidade, e esta questão continuará a ser objecto de estudo
nos próximos meses e anos, é possível conciliar os conceitos aparentemente
contraditórios que as economias emergentes estão associadas às economias avançadas
e, no entanto, são menos afectadas pela recessão destas últimas. Uma forte
possibilidade é que os mercados emergentes se tenham aperfeiçoado na gestão
macroeconómica (Decressin, Scott, e Topalova, 2010: 15; Harrison e Sepúlveda,
2011).
No contexto da recente crise, por exemplo, a acumulação de grandes reservas de
moeda estrangeira em muitos mercados emergentes (o resultado de terem aprendido
uma lição dolorosa na crise da Ásia Oriental de 1998, quando a saída repentina do
“capital especulativo estrangeiro” causou estragos profundos) pode ter sido uma
grande ajuda
15
. Outro conjunto de pontos de vista afirma que, enquanto o PIB dos
países do Sul caiu menos do que o dos do Norte, o impacto social foi maior nos países
em desenvolvimento, devido ao seu menor rendimento per capita e à importância
relativamente maior da pobreza nas suas economias
16
.
Fazer negócios
Partindo da premissa de que o reforço da actividade empresarial contribui para o
crescimento económico, nos últimos anos os decisores públicos e privados têm
prestado muita atenção a uma classificação desenvolvida pelo Banco Mundial. Na sua
publicação anual Doing Business (Fazer Negócios), o Banco Mundial classifica 183
países de acordo com nove áreas relacionadas com o ciclo de vida de um negócio
(iniciar um negócio; tratar das licenças; registo de propriedade; obtenção de crédito;
protecção aos investidores; pagamento de impostos; comércio além-fronteiras;
celebração de contratos; e encerramento de um negócio)
17
. Embora impressionante, o
próprio Banco admite tratar-se de uma série de actividades bastante limitada no campo
da regulamentação e dos direitos, já que incide sobretudo na facilidade ou dificuldade
que os empresários locais enfrentam em realizar negócios. A gama de actividades
monitorizadas não mede os custos, benefícios ou a regulamentação numa perspectiva
social, da mesma forma que a Doing Business seguramente não mede todas as
dimensões com interesse para os investidores. Nomeadamente, “não mede, por
exemplo, o grau de segurança, a estabilidade macroeconómica, o nível de corrupção,
as qualificações profissionais da população, a força subjacente das instituições ou a
qualidade das infra-estruturas. Também não se concentra sobre os regulamentos que

15
Sobre a acumulação de reservas cambiais pelos países asiáticos veja-se Rajan (2010: 75ff).
16
Addison, Arndt, e Tarp (2010) referem uma crise tripla nas áreas das finanças, clima e subnutrição/fome
(devido ao aumento dos preços dos alimentos). Vitols (2010) também fala de uma crise tripla:
financeira; ecológica; e social.
17
O emprego de trabalhadores (que já não é classificado) e o “acesso à electricidade” (sobre a sua
disponibilidade) constituem duas áreas adicionais do ciclo de vida de uma empresa onde o Banco
estabelece indicadores, mas estes não estão incluídos no sistema de classificação descrito neste texto.
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8
se aplicam especificamente ao investimento estrangeiro”, ou na avaliação da robustez
do sistema financeiro ou da regulamentação do mercado (Banco Mundial, 2010: 13)
18
.
No entanto, este é exactamente o tipo de informação de carácter geral e de análise que
no futuro os investidores estrangeiros continuarão a procurar avidamente e que muitas
empresas particulares continuaram a tentar prestar
19
.
A construção de tipologias e a classificação de países em várias dimensões pode ajudar
a identificar tendências de menor duração, cuja continuidade ao longo do tempo teria
de ser monitorizada. Por exemplo, com base na comparação da regulamentação dos
negócios entre os vários países que o projecto Doing Business do Banco Mundial tem
vindo a realizar desde 2003, os autores desta publicação destacam várias tendências
para o exercício findo em Junho de 2010 (Banco Mundial, 2010: 2-3). Em primeiro
lugar, desde que a crise global fez aumentar o número de insolvências e controvérsias
em torno da dívida, dezasseis economias, na sua maioria na Europa Oriental e na Ásia
Central pertencentes ao grupo de rendimentos elevados da OCDE, reformaram as suas
políticas de insolvência e melhoraram os procedimentos judiciais de forma a garantir a
reaplicação e utilização rápida de activos, permitindo aos credores taxas de
recuperação mais elevadas. Segundo, no ano anterior houve uma melhoria substancial
nas economias do Leste Asiático e do Pacífico no campo da facilidade, em geral, em
empreender negócios. Terceiro, na África Subsariana, Meio Oriente e no Norte de
África, introduziram-se muitas reformas para promover o comércio, em grande medida
por causa dos processos de integração em curso nessas regiões, por exemplo, a União
Aduaneira da África Austral (Banco Mundial, ibidem). Quarto, tem havido um
movimento substancial a nível global para uma maior adopção de tecnologias de forma
“a facilitar os negócios, diminuir os custos das transacções, e aumentar a
transparência” (Banco Mundial, 2010: 3). Nesta área, os pontos de partida têm
importância, como referem os autores do relatório (Banco Mundial, 2010: 7). Por
exemplo, países como a “Finlândia e Singapura, que possuem sistemas de governação
electrónica eficientes e uma forte protecção legal dos direitos de propriedade, têm uma
margem menor para melhorar” do que países como a Itália, onde têm sido
implementadas “várias reformas reguladoras em áreas como a reforma judicial ou
insolvência, onde os resultados só serão conhecidos a longo prazo” (ibidem). Por
último, é de referir quão traiçoeiro o estabelecimento da causalidade pode ser na
análise da economia global. Referimo-nos anteriormente ao dilema sobre se é o
crescimento que conduz à integração, ou vice-versa. No caso do ambiente regulador
(medido através de indicadores de classificação judiciais, temporais e de movimento) e
respectivo impacto nas empresas, empregos e crescimento, a correlação poderá não
significar causalidade. Desenvolvimentos paralelos, como as reformas
macroeconómicas e/ou factores específicos do país poderão desempenhar um papel
importante (OECD, 2010: 39; Banco Mundial, 2010:7).
Contudo, no geral e apesar dos constrangimentos referidos, os critérios do Doing
Business constituem um outro conjunto de ferramentas úteis para se conhecer a forma
como as economias dos países funcionam. Curiosamente, na obra The Aid Trap (A
Armadilha da Ajuda), Hubbard e Duggan (2009) aplicam a estrutura ao Império

18
Para um exemplo de alguns dos desafios relacionados com a obtenção de informação e análises
relacionadas com o investimento directo estrangeiro na União Europeia, veja-se Ammendola (2008b).
19
Entre as empresas que prestam este tipo de informação e serviços de análises, destacam-se The
Economist Group, the Financial Times Group, Bloomberg, Reuters, e a Thomson Financial.
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Romano, que na opinião destes autores, teria recebido uma pontuação bastante
elevada (Hubbard and Duggan, 2009: 20).
Crescimento, abertura e mudança
A procura de taxas de crescimento mais elevadas poderá forçar os países a uma maior
abertura, podendo contudo resultar à custa da estabilidade. Um enquadramento
analítico interessante é o da Curva J de Ian Bremmer (Bremmer, 2006).
Resumidamente, Bremmer coloca duas variáveis num gráfico bidimensional: no eixo
horizontal traça a variável abertura, enquanto no eixo vertical coloca a variável
estabilidade. Como um país com uma liderança autoritária de desloca em direcção a
uma maior abertura política e económica relativamente ao resto do mundo, o seu nível
de estabilidade diminuiu e o risco de revolta contra o regime aumenta
20
. A certa altura,
a descida da estabilidade toca no fundo e aí começa de novo a subir à medida que as
vantagens da abertura se fazem sentir. É, obviamente, quando a abertura está
associada ao declínio em estabilidade que os riscos de revolta contra o Estado
autocrático são maiores.
O modelo de Bremmer apresenta desafios significativos, tais como a medição em
simultâneo da estabilidade e da abertura em geral, assim como os relativos à essência
específica da sociedade que está a ser analisada, a natureza do seu governo, e
capacidade de evoluir ao longo de uma linha de referência temporal mais incerta. Esses
desafios são evidentes na China, um país com uma população de 1,3 milhões de
habitantes que manifestam um desejo cada vez maior de mobilidade interna
(geográfica assim como social e cultural), com uma grande diversidade étnica e
religiosa e um regime político nascido numa era distinta que precisa de se adaptar a
um mundo cada vez mais integrado. No entanto, penso que o modelo é útil, pois
contribuiu para a nossa capacidade de compreensão da complexidade que nos rodeia
21
.
De uma forma distinta mas igualmente útil enquanto mecanismo explicativo e
possivelmente preditivo, é o outro modelo de “Curva J”, mais antigo, desenvolvido por
James C. Davies, que afirma que quando as expectativas das pessoas divergem muito
do que entendem serem as suas necessidades em termos de bens, estatuto e poder,
poderão revoltar-se (Davies, 1962)
22
. Os avanços nas telecomunicações decorridos
desde que Davies articulou a sua teoria, tornando mais fáceis as comparações entre as
condições de vida nos vários países, poderão, talvez, tornar as populações mais
conscientes da sua situação e, por isso, mais propensas a revoltas contra aqueles que
os governam. Isto explica claramente as medidas que os regimes políticos autoritários
tentam implementar para evitar a exposição “excessiva” e não filtrada às sociedades do
Ocidente.

20
Sobre a relação entre abertura ao comércio e crescimento económico, veja-se Rodrik, (2011: 166), que
atribui o sucesso da Coreia do Sul, do Taiwan, da Indonésia e das Ilhas Maurícias à decisão de reduzirem
as barreiras às importações apenas depois de terem construído capacidades produtivas significativas.
Veja-se em baixo a sequência das políticas adoptadas.
21
Para uma breve análise recente usando o seu modelo, veja-se Bremmer (2011).
22
A Curva J que se encontra nos livros de economia internacional tem a ver com os ajustamentos na
balança comercial decorrentes da mudança das taxas de câmbio.
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Tipos de capitalismo
A vitória do capitalismo sobre o comunismo, que a queda do Muro de Berlim em 1989
veio simbolizar (Baumol, Litan, e Schramm, 2007; Yergin e Stanislaw, 1998;
Fukuyama, 1992), foi, em larga medida, o resultado da decisão dos governos
centralizados de proporcionar taxas de crescimento económico comparáveis aos obtidos
pela economia de mercado. Mas o capitalismo não foi nem é homogéneo ou
indiferenciado, e qualquer aluno de Economia e crescimento mundial tem de olhar para
as várias formas da sua existência. Por exemplo, para os autores da obra “Good
Capitalism, Bad Capitalism” (O Bom e o Mau Capitalismo), existem quatro tipos de
capitalismo (Baumol, Litan, e Schramm, 2007: 60-92).
23
O primeiro é o Capitalismo de Estado, onde o Estado domina e tenta orientar o
mercado geralmente escolhendo vencedores. Os exemplos avançados pelos autores são
a Índia, a China e a maioria dos países do Sudeste Asiático. O segundo, o Capitalismo
Oligárquico, distingue-se do primeiro porque incide não tanto sobre o crescimento mas
na promoção dos interesses de um segmento muito pequeno da população, tipicamente
autocrata, sua família e grupo de amigos. Na opinião dos autores, os exemplos mais
marcantes encontram-se em grande parte da América Latina, em muitos Estados da
antiga União Soviética, em muitos países Africanos e na maior parte do Médio Oriente
árabe (mais uma vez os tumultos recentes nesta região vêm à memória). O terceiro
tipo é o Capitalismo das Grandes Empresas, onde as empresas gigantes já instaladas
desempenham as principais actividades económicas, onde, segundo os autores, se
incluem o Continente Europeu, o Japão, a Coreia, e partes de outras economias,
incluindo os Estados Unidos. O quarto, Capitalismo Empresarial, caracteriza-se pelo
papel extremamente importante desempenhado pelas pequenas empresas, visto como
crucial para a introdução de inovações radicais (tais como o telégrafo, o automóvel, o
avião, a electricidade e o ar condicionado) que transformam as economias e são
responsáveis por saltos repentinos na produtividade. Os Estados Unidos são o exemplo
por excelência deste tipo de capitalismo, e os autores encaram a Irlanda, Israel e o
Reino Unido como estando a atravessar (ou já atravessaram) o processo de
abandonarem o seu papel de Estado condutor de rebanhos em direcção a uma maior
ênfase nas actividades empreendedoras capazes de proporcionar efeitos externos muito
positivos.
Alguns pontos merecem destaque relativamente a esta tipologia quadripartida: em
primeiro lugar, o único elemento que todos os tipos de capitalismo abordados
verdadeiramente têm em comum é o reconhecimento do direito à propriedade privada.
Em segundo, a variante oligárquica do capitalismo é quase sempre muita negativa para
o crescimento e desenvolvimento, o que os autores sublinham e bem. Nada de bom
pode provir desta variante cujos níveis de intra e inter mobilidade são extremamente
baixos, e na qual o desperdício de talento humano que lhe está associado constitui uma
tragédia económica e social. Em terceiro lugar, é preciso sublinhar que nenhum país
apresenta apenas uma forma de capitalismo. Por exemplo, os Estados Unidos aduz uma
combinação de capitalismo de grandes empresas e de capitalismo empresarial, e a
Europa Continental e o Japão têm pequenos empresários inteligentes e inovadores.
Necessita igualmente de ser frisado que, ao longo do tempo, as fronteiras entre os

23
A literatura sobre o capitalismo é vasta e tem evoluído ao longo de vários séculos com o contributo de
vários estudiosos de diferentes áreas disciplinares. Um dos seus principais sub-componentes é
“variedades de capitalismo”” (Hall e Soskice, 2001), ao qual a tipologia aqui discutida, apesar de
distinta, pertence.
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vários tipos de capitalismo em qualquer país não são estanques. Por exemplo, alguns
poderão defender a ideia que o governo dos Estados Unidos está a tentar levar o país
em direcção a um tipo de capitalismo mais orientado pelo Estado, enquanto outros
poderão dizer que a China e a Índia estão a tentar promover uma cultura de “pequenos
empresários” e que a Rússia estará possivelmente a sair de um capitalismo oligárquico
em direcção a um Estado, enquanto oficialmente apoia as pequena e médias
empresas
24
. Assim, cada país tem a sua mistura única de três (ou até de quatro, se
incluirmos a variante indesejável oligárquica) ou de duas variantes de capitalismo e
essa combinação de facto varia ao longo do tempo.
Os desafios associados à criação e monitorização de indicadores efectivos destas quatro
categorias de capitalismo comprovam mais uma vez a complexidade da economia
mundial. Um dos objectivos centrais dos criadores desta tipologia é identificar as
medidas que os decisores políticos deverão adoptar a fim de assegurarem uma
economia inovadora, e que incluam: a criação de um ambiente no qual as empresas
enfrentem obstáculos reduzidos, tanto de entrada como de saída (pense-se nos
mercados de trabalho rígidos da Europa)
25
; a criação de um sistema eficaz de Estado
de Direito (com bons direitos de propriedade e contratuais), um sistema de patentes
equilibrado e um sistema fiscal que não seja excessivamente penalizador para os
empresários; a introdução de desincentivos contra formas improdutivas de
empreendorismo, como o comportamento criminoso, o lobbying político e processos
judiciais frívolos (mais visíveis nos Estados Unidos); a criação de políticas que evitem
que os empresários inovadores se transformem em cobradores de rendas que tentam
desencorajar as inovações disruptivas shumpeterianas. Esta última medida deveria ser
efectuada através de firmes leis da concorrência e da manutenção de um ambiente
competitivo, evitando também o proteccionismo comercial (Baumol, Litan, e Schramm,
2007). As três tipologias abrangentes acima descritas (Bremmer, 2006; Davies, 1962;
Baumol, Litan, e Schramm, 2007) demonstram que não se pode fazer qualquer análise
da economia mundial e dos Estados-Nação que a compõe ignorando o facto de que os
mercados e a produção existem em contextos políticos, sociais e culturais
26
.
Igualdade
Desigualdade nas economias desenvolvidas
Perspectivar o crescimento económico na relação com as suas causas e efeitos
distributivos é particularmente complexo. Enquanto em épocas de prosperidade
económica os debates sobre a igualdade podem ser relativamente moderados (por
causa do factor “uma maré alta eleva todos os barcos”, inevitavelmente, as crises
económicas ampliam a intensidade dos debates. No caso da Grande Recessão de 2007-
09, é necessário notar que se seguiu a um longo período de ganhos prolongados para

24
As dificuldades dos empresários na Rússia são reconhecidas pelos seus principais líderes. Neste sentido,
Wladimir Putin, citado por Baumol, Litan, e Schramm, (2007: 76).
25
Aqui, usou-se o critério e os indicadores utilizados no Doing Business por parecerem ser os mais
apropriados.
26
Uma maneira útil (e, ouso dizê-lo, natural) de analisar cada país de uma forma abrangente é a que
utilizam os colaboradores em Michael Curtis ed. Western European Politics and Government. Nessa obra,
na secção I que redigi (Ammendola, 2003), analisei o desenvolvimento politico da Itália (história,
sociedade, e cultura), os seus processos políticos e instituições (eleições, partidos políticos, grupos de
interesses, legislatura, governo, a presidência, administração pública e o sistema legal), e as políticas
públicas (escolhi política económica e política externa).
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os que auferiam rendimentos mais elevados em comparação com o resto da população,
conduzindo a custos elevados para os contribuintes que tiveram de resgatar as
instituições financeiras (demasiado importantes para falharem), onde indivíduos muito
bem pagos teriam estado a “apostar” escudados pela garantia implícita dos dinheiros
públicos. Se a estes elementos juntarmos o lento e nada impressionante processo de
recuperação (especialmente em termos de criação de emprego), torna-se difícil
imaginar que as questões da distribuição não se transformem numa componente
crescente do discurso político, económico e social nos próximos meses e anos
27
.
O livro de Richard Wilkinson e de Kate Pickett’s The Spirit Level (Wilkinson and Pickett,
2009), é dos mais controversos que foram publicados durante a Grande Recessão. O
argumento central da obra é que as sociedades igualitárias têm um desempenho
melhor em termos de problemas sociais. Os autores sustentam a sua teoria
comparando sociedades onde as disparidades de rendimentos são menores, como é o
caso dos países escandinavos e o Japão com outras, tais como os Estados Unidos e o
Reino Unido. Recorrendo a uma série de indicadores sociais e analisando dados de 23
dos países mais ricos do mundo e dos 50 Estados do EUA, os autores afirmam que “os
países onde as diferenças entre ricos e pobres são maiores têm... mais violência, taxas
de nascimentos entre adolescentes mais elevadas, maior obesidade, níveis de confiança
mais baixos, e níveis mais baixos de bem-estar infantil”, “ a vida em comunidade é
mais baixa e o número de pessoas nas prisões é mais elevado”
28
. Que melhor prova
precisamos da necessidade de intervenção do Estado para redistribuir os rendimentos e
nivelar os níveis de vida? Os apoiantes das ideias sociais-democratas rejubilaram.
Desde a sua publicação, vários críticos, tipicamente de direita, têm vido a denunciar as
limitações da análise bivariada que os dois autores utilizam (por contraste a uma
análise multivariada mais desejável) e o facto de terem ignorado os casos anómalos.
Acusaram igualmente os autores de não mencionarem o facto de as taxas de suicídios,
consumo de álcool, divórcio e infecção por HIV serem mais elevadas nos países mais
igualitários
29
. Os autores foram igualmente acusados de negligenciarem a importância
da cultura e da História, que constituem dimensões cruciais da individualidade de cada
país. Estas críticas são frequentemente associadas às acusações de que os argumentos
de Wilkinson and Pickett’s tendem a subestimar a complexidade da sociedade
30
.
Desigualdade na economia mundial
O estudo da desigualdade no mundo, semelhante ao do crescimento económico, é
extremamente complexo devido às dificuldades de recolha de informação (que varia
muito no tempo e no espaço), e aos inúmeros métodos sofisticados que podem ser
utilizados na sua análise
31
. Além disso, o facto de a desigualdade (possivelmente ainda
mais do que no caso do crescimento económico) se prestar a ser aprofundada por
estudiosos e teóricos provenientes de uma ampla variedade de disciplinas, se por um

27
O debate muito intenso nos Estados Unidos no verão de 2011 sobre o tecto da dívida pode ser visto
como atestante deste ponto.
28
A partir da entrevista a Mukul Devichand, “The Spirit Level: Britain’s new theory of everything
disponível em http://www.bbc.co.uk/news/uk-politics-11518509
. Para outros pontos de vista, veja-se
igualmente Bagehot (2010); The Economist (2009); The Economist (2011b); Coyle (2011).
29
Um destes críticos é Saunders (2010).
30
A refutação de Wilkinson e Pickett (2010a) está disponível em http://www.equalitytrust.org.uk
31
Veja-se, por exemplo, Silber (1999), Lall et al. (2007 pp. 135-69), e Cowell (2000). O website do Banco
Mundial (www.worldbank.org
) tem uma secção excelente sobre “Desigualdade no mundo”.
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lado a enriquece enquanto disciplina, por outro também contribui para a sua
complexidade
32
.
Relativamente à medição da desigualdade, os decisores privados e públicos facilitam as
suas vidas confiando principalmente num único indicador que é relativamente fácil de
compreender, o coeficiente de Gini. O coeficiente de Gini estende-se entre o valor zero
(igualdade total - o rendimento é idêntico para todas as pessoas) e um (desigualdade
total - uma pessoa detém todo o rendimento).
De forma mais ampla, entre as tipologias desenvolvidas para analisar igualdade global
de uma forma organizada, penso que a utilizada por Branko Milanovic, do Banco
Mundial, no seu livro The Haves and the Have-Nots é a mais útil e linear (Milanovic,
2011). Em primeiro lugar, há a desigualdade entre indivíduos pertencentes à mesma
nação. Em segundo lugar, há a desigualdade que se observa quando se estabelece uma
comparação entre países. E em terceiro lugar, há a desigualdade entre cidadãos do
mundo (Milanovic 2011). Examinemos cada uma delas mais detalhadamente, tendo em
consideração que todas estão interligadas
33
.
1. Desigualdade entre indivíduos dentro de uma nação é o tipo
que imediatamente nos vem ao pensamento, visto ser o que
observamos de uma forma mais directa, e que leva a três
grupos de questões fundamentais (Milanovic, 2011). O que é
que a determina? Irá a desigualdade aumentar em relação ao
crescimento e como sua consequência? O que acontece à
desigualdade quando o crescimento é zero ou negativo
(recessão)? Por seu turno, um segundo grupo de questões
encara a desigualdade como uma importante variável
independente. Assim, indo na direcção oposta da sondagem:
qual é o impacto da desigualdade no crescimento económico? E
na governança, captação de capital estrangeiro, nível de
educação da população (Milanovic, 2011: 5) ou na saúde? Um
terceiro grupo de questões gira em torno da ética. Milanovic
pergunta: “será a desigualdade aceitável apenas se elevar o
rendimento dos pobres?” E, muito frequentemente do ponto de
vista da mobilidade intrageracional e intergeracional: “Deveria
a desigualdade resultante da melhoria das circunstâncias
familiares de uma pessoa ser tratada de forma diferente da
desigualdade proveniente de um esforço maior e de um melhor
desempenho profissional?” (Milanovic, 2011: 5-6).
Basta olhar para uma dimensão, a da educação, entre as muitas propostas ou
implícitas nestas questões no caso dos Estados Unidos, para compreendermos a
dificuldade de realização das análises que conduzam à implementação de políticas
eficazes. Algumas pessoas pensam que uma das maiores fontes de desigualdade nos

32
Até as obras específicas sobre a igualdade económica são claramente influenciadas por outras
disciplinas. Veja-se, por exemplo, Sen (1997).
33
Rodrik (2011), Rajan (2010), Coyle (2011), e Spence (2011) oferecem uma visão que pode acrescentar
dimensões interessantes à tipologia e análises de Milanovic.
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Estados Unidos (e, provavelmente, noutros países) é o acesso desigual à educação, o
que cria uma vasta divisão entre os trabalhadores qualificados e não qualificados
(Rajan, 2010; Lemieux, 2006). Contudo, as tentativas de melhorar o acesso à
educação (incluindo as dirigidas aos negros e hispânicos) têm alcançado resultados
muito limitados (Rajan, 2010: 31). Além disso, há que notar que existe evidência
bastante significativa que nos países como o Reino Unido e Estados Unidos, a classe
social dos pais desempenha um papel mais relevante nas perspectivas educacionais das
crianças do que em países mais igualitários (Bagehot, 2010).
De forma geral, as estratégias de redistribuição e de tributação para combater a
desigualdade têm-se revelado extremamente difíceis de implementar, devido à
natureza cada vez mais polarizada do Congresso (Rajan 2010). Assim, os políticos
tentaram um caminho muito menos difícil de facilitar o acesso ao crédito para
segmentos socioeconómicos mais baixos da população, e ao fazê-lo, “criaram” uma
classe de proprietários que compraram casas, que de outra forma não o poderiam ter
feito, e facilitaram um nível de consumo insustentável (Rajan, 2010), cujo impacto, sob
a forma de securitização e endividamento excessivo, se tornou evidente no início da
recente recessão global.
A hipótese avançada por Simon Kuznets em 1955 (Kuznets, 1955; Milanovic, 2011:
83ff.) merece igualmente destaque pela sua relação com a desigualdade dentro de uma
nação. Indo muito mais além das ideias de Alexis de Tocqueville (Milanovic 2011: 7),
Kuznets referiu a existência de uma curva U invertida que mostra a evolução da
desigualdade ao longo do tempo. À medida que uma sociedade se desenvolve a partir
da sua fase agrária, onde a desigualdade é baixa, rumo à fase da industrialização, o
aumento da urbanização (claro que o exemplo da China nos vem à memória) aliado à
industrialização provoca o aumento da desigualdade.
Isto acontece “tanto porque a produtividade e rendimentos provenientes do sector não
agrícola são mais elevados e porque nas próprias cidades a diferenciação de
rendimentos é maior (mais profissões, uma maior variedade de competências).”
(Milanovic 2011: 89). Kuznets prossegue afirmando que a massificação da educação e
o aumento de políticas sociais como a segurança social, subsídio de desemprego e
assistência social, conduzem a uma redistribuição entre as classes. Centenas de artigos
científicos têm sido dedicados a testar esta hipótese de Kuznets.
De forma geral, Milanovic sublinha que durante a Revolução Industrial, os países da
Europa Ocidental e os Estados Unidos exibiram um padrão que se coadunava com o
avançado por Kuznets. Os Estados Unidos, por exemplo, atingiram o pico da
desigualdade nos anos 20 do século XX (a expressão “loucos anos vinte” vem-nos à
mente), para diminuir nas décadas que se seguiram. Contudo, nos últimos 25 anos,
temos vindo a assistir a uma inversão na tendência de diminuição da desigualdade, não
apenas nos Estados Unidos mas em toda a Europa (Milanovic, 2011: 91). Para o
estudante da globalização, esta tendência para uma crescente desigualdade precisa de
ser examinada à luz do papel desempenhado pelo comércio nos mercados emergentes
(The Economist, 2008). Mais especificamente, a visão tradicional dos economistas de
que o impacto do comércio na distribuição de rendimentos nas economias avançadas
não é importante está a ser seriamente repensada. A visão tradicional centra-se na
inovação tecnológica e na forma como beneficia os trabalhadores qualificados. Mais
recentemente, as explicações que incidem sobretudo no facto dos salários serem muito
mais baixos nos mercados emergentes, exercendo assim pressão para uma diminuição
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dos salários pagos no Ocidente, têm aumentado. (The Economist, 2008; Krugman,
2008; Blinder, 2006; Harrison, McLaren, e McMillan, 2010). Enquanto a evidência se
encontra ainda sob forte debate, não pode haver dúvida de que a opinião dos EUA, que
antecipou esta reviravolta graças a alguns economistas de renome, há anos que se
convenceu de que a globalização prejudica os trabalhadores. Esta é uma questão que
inevitavelmente tem assumido proeminência após o início da recente crise global, e
estou convencido que continuará a tê-la.
2. A desigualdade entre países, do tipo que costumamos
reparar quando viajamos ou vemos os noticiários (Milanovic,
2011: x), constitui o segundo tipo de desigualdade na tipologia
que estamos a analisar.
Uma das questões mais interessantes nesta área de investigação prende-se com o
contributo que o estudo da desigualdade tem para oferecer à nossa compreensão sobre
o sucesso do crescimento económico experienciado pelos países em desenvolvimento
que referi anteriormente. Por exemplo, utilizando conjuntos de dados construídos pelo
falecido historiador económico Angus Maddison, Milanovic estabelece uma comparação
interessante entre a Grã-Bretanha e a China. Enquanto em 1820 o PIB per capita da
Grã-Bretanha era três vezes superior ao da China, actualmente, e apesar do facto de a
Grã-Bretanha já não ser o país mais rico do mundo e da China ter crescido a taxas
espectaculares nas últimas três décadas, essa diferença aumentou seis vezes. Ainda
mais revelador,o rácio entre os [países] mais ricos e mais pobres do mundo
aumentou para mais de 100 para 1” (Milanovic, 2011: 100). Assim, uma leitura atenta
de Milanovic acrescenta umas nuances necessárias à História da “ascensão do resto”
descrita no início deste artigo. Por exemplo, nas últimas duas décadas do século XX,
enquanto a América Latina e a Europa de Leste estagnaram ou pioraram e a África de
forma geral perdeu rendimentos, o Ocidente apresentou taxas de crescimento
consideráveis. Assim, neste aspecto, verificou-se aquilo que os historiadores
económicos caracterizariam por contínuas “divergências de rendimentos” entre as
economias avançadas e o resto do mundo
34
. Contudo, se olharmos para as diferenças
de rendimentos entre Estados e as ajustarmos à dimensão da sua população, a China,
e, mais recentemente, a Índia diminuíram consideravelmente a desigualdade,
desenvolvimento que tem uma natureza de “convergência” a nível global. Neste
sentido, devo acrescentar que a recente crise económica global também reforçou esta
tendência mundial.
De qualquer forma, as diferenças de rendimentos per capita entre as economias
avançadas e os mercados emergentes são ainda excessivamente altas em termos
absolutos. De facto, apesar do crescimento económico espectacular verificado nos
últimos anos nos países não ocidentais referido anteriormente, este tipo de diferença
constitui, na maior parte dos casos, uma motivação que leva as pessoas a emigrar para
países industrialmente mais avançados. Contudo, a sua chegada a esses países
constitui motivo de preocupação pelo possível impacto que poderão ter na descida dos
salários, especialmente entre os trabalhadores menos qualificados, e esta é uma das

34
Milanovic (2011: 100ff.). Sobre os vários aspectos da convergência e divergência veja-se, por exemplo
Spence (2011); Lindert e Williamson ( 2001); Coyle (2011). Veja-se igualmente infra.
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principais razões pela qual a imigração é bastante regulamentada (se bem e
eficazmente já é outra história) em todos os países industrializados
35
.
Não se trata apenas da importância do movimento de pessoas, bens e serviços em
termos de desigualdade e crescimento económico. Os fluxos financeiros também são
importantes. Em poucas palavras, ao contrário da previsão inerente à teoria económica
tradicional de que o capital deveria fluir dos países ricos para os países pobres, na
realidade o que tem estado a acontecer na actual globalização é o oposto
36
. Este
paradoxo, conhecido por “Paradoxo de Lucas”, tem merecido explicações a vários
níveis, incluindo o risco soberano e assimetrias de informação (Alfaro, Kalemli-Ozcan, e
Volosovych, 2005). No entanto, afigura-se razoável pensar que frequentemente
existem várias causas em simultâneo e que, entre elas, as explicações institucionais
devem desempenhar um papel significativo
37
. Tal como um estudo de grande impacto
frisou: “…durante o período entre 1970 e 2000, a baixa qualidade institucional [nos
países pobres] é a principal explicação para o “Paradoxo de Lucas”. (Alfaro , Kalemli-
Ozcan, and Volosovych 2005).
É igualmente de extrema importância notar que as ligações entre o fluxo de capitais
entre fronteiras, o aumento crescente de grandes desequilíbrios globais (especialmente
se continuarem a aumentar em percentagem do PIB), a distribuição de rendimentos e o
crescimento económico continuarão a ser objecto de acalorados debates. E não poderia
ser de outra forma, dado que as entradas e saídas de capitais permitem mudar a
calendarização e os modos dos padrões de consumo e de investimento, tendo, por isso,
um inevitável impacto na distribuição de rendimentos intergeracionais e
intrageracionais tanto nos países devedores como nos credores
38
.
3. Desigualdade entre os cidadãos do mundo ou desigualdade
global é a terceira categoria proposta por Milanovic (2011) com
base no trabalho que desenvolveu com os colegas no Banco
Mundial. Basicamente, é a soma das duas categorias
anteriormente referidas: desigualdade entre indivíduos dentro
de uma nação e desigualdade entre nações. Milanovic (2011:
149) refere que os dados para esta última podem ser bastante
bem calculados desde o início do século XIX e de forma

35
Aliás, gostaria de salientar que uma das razões pelas quais na era da globalização anterior (1870-1914)
as barreiras à imigração eram muito menores em comparação com as colocadas actualmente, era
porque os imigrantes não podiam beneficiar das regalias da redistribuição do Estado social moderno, pois
eram basicamente inexistentes. Não existia uma base local de cidadãos beneficiários que se opunham
aos recém-chegados.
36
Em vez disso, na era de globalização anterior a teoria aplicava-se, com o capital a fluir dos países ricos
para os pobres. Milanovic, (2011: 106).
37
O conceito de “instituições”, referido em vários contextos neste artigo, tem sido objecto de um grande
estudo por parte de Douglass C. North, um dos homens mais associados às teorias institucionais da
economia. Na palestra que proferiu ao receber o Prémio Nobel, declarou que “as instituições … restrições
concebidas por humanos e que estruturam a interacção entre humanos …são feitas de restrições formais
(regras, leis, constituições), restrições informais (normas de comportamento, convenções e códigos de
conduta auto-impostos), e pelas suas características de execução. Em conjunto definem a estrutura de
incentivos das sociedades e, especificamente, das economias. As instituições e a tecnologia utilizada
determinam os custos das transacções da transformação que se somam aos custos da produção” (North,
1993). North reconheceu o contributo de Ronald Coase (1960) em fazer a “ligação crucial entre
instituições, custos de transacção e a teoria neoclássica.” (North, 1993).
38
Em termos de balança de pagamentos, as considerações em conta corrente constituem o outro lado da
moeda do balanço de capitais. Veja-se qualquer obra importante sobre economia internacional e Wolf
(2010) e Ammendola (1994).
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adequada relativamente a algumas sociedades mais antigas,
como no caso do Império Romano
39
.
No caso da desigualdade dentro da mesma nação, os dados de
confiança “são muito mais recentes” (Milanovic, 2011: 149). De
forma a medir a desigualdade global, o desafio residia em
compilar um conjunto de dados que englobasse pelo menos
80% da população mundial e respectivos rendimentos.
Milanovic refere habilmente que foi apenas a partir do momento
em que os inquéritos às famílias foram disponibilizados, desde a
década de oitenta do século XX na China, União Soviética
(graças ao glasnost) e África, que os dados puderam ser
compilados.
Com as ressalvas habituais relativamente ao carácter definitivo, há uma descoberta
que, na minha opinião, se destaca entre todas as que Milanovic referiu. Olhando para
um “típico” país desenvolvido, a média de rendimentos auferidos pelos 10% da
população com rendimentos mais elevados dividido pelos 10% da população com
rendimentos mais baixos raramente ultrapassa os dez em um. No que diz respeito aos
dados sobre a desigualdade global já referida, o rácio é de 80 para um
40
. O mundo
como um todo é, portanto, muito desigual, e estas estatísticas acrescentam uma
dimensão global às motivações para a pura emigração “inter-país” mencionadas
anteriormente.
Desenvolvimento
Para além do PIB
Os contextos de análise e as perspectivas apresentadas até agora esclarecem alguns
aspectos do crescimento económico e da desigualdade. De forma explícita ou implícita,
também apontam para outras considerações que precisam de ser feitas e para questões
que têm que ser colocadas de forma a melhorar o nosso entendimento sobre estes
fenómenos. Gostaria, sobretudo, de enfatizar neste ponto as limitações que o PIB
apresenta enquanto medida de aferição (Samuelson e Nordhaus, 2001; Coyle 2011;
Norberg, 2011).
Acima de tudo existe o problema da inclusão. Entre as actividades consideradas no
cálculo do PIB, existem itens que são questionáveis sob um ponto de vista ético
(apesar de serem frequentemente incluídas), tais como o fabrico de armas, a venda de
produtos do tabaco, e os gastos com as prisões. Claramente, este tipo de actividades
extravasa a esfera da assistência social
41
. Ainda mais importante, é o que não entra

39
Mais uma vez agradeço a obra pioneira de Angus Maddison. Veja-se Maddison (2007), especialmente as
páginas 11-68.
40
Milanovic (2011: 152), refere igualmente que o coeficiente de Gini do conjunto global de dados
mencionados é de cerca de 70, muito maior do que o da maioria das sociedades desiguais, como a África
do Sul e o Brasil, que são cerca de 60.
41
De uma forma um tanto ou quanto enganosa, actividades como as ligadas à reconstrução de áreas
destruídas pelo terramoto no Japão serão contabilizadas como um aumento do PIB, embora essa
reconstrução não conduza a uma melhoria espectacular do nível de vida, mas seja apenas o restaurar de
uma situação que já existia anteriormente (a menos que os novos edifícios sejam mais resistentes aos
terramotos).
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nos cálculos do PIB. Exemplos incluem a melhoria na qualidade dos produtos, na sua
maioria resultantes de avanços tecnológicos (pense-se nos computadores) que nunca
são incluídas nas estatísticas do PIB. Além disso, há actividades com valor, tais como
assistência parental, a preparação de refeições, o tratamento de roupa, e as limpezas
ao domicílio que muitas vezes não são pagas e que, por consequência, não são
computadas nos cálculos do PIB. Muitas das actividades realizadas numa economia
informal, tal como o trabalho feito por imigrantes ilegais, troca de serviços, jogos de
azar, tráfico de drogas e prostituição são também deliberadamente excluídas, porque
algumas delas são ”por consenso social, bens ‘maus’ e não ‘bons’”(Samuelson e
Nordhaus, 2001:449)
42
.
O PIB também apresenta limitações relativamente ao que não é concebido para ser
medido. Para corrigir esta deficiência, há mais de 20 anos, e no primeiro Relatório de
Desenvolvimento Humano (RDH), o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas
(PNUD) avançou com uma nova abordagem que evitava a “concentração apenas em
alguns indicadores de progresso económico (tal como o produto nacional bruto per
capita)“: Contabilidade de Desenvolvimento Humano (PNUD 2010: vi).
Esta abordagem “propunha uma análise sistemática de uma informação extremamente
rica sobre a forma como os seres humanos de cada sociedade vivem e que tipo de
liberdades substantivas gozam” (Ibidem). Assim, já na década de noventa, se
conceptualizava o desenvolvimento humano “como um processo de ‘alargamento das
escolha das pessoas’ e que enfatizava a liberdade de ser saudável, educado e de gozar
um nível de vida digno” (PNUD 2010: 2)
43
.
Torna-se claro que a substituição de um único número como o PIB com uma infinidade
de tabelas teria sido inútil sob o ponto de vista da concisão e da facilidade de uso.
Assim, um índice simples, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), foi concebido
como uma ferramenta para competir com o PIB, acrescentando aos índices dos
rendimentos nacionais, os de esperança de vida e de alfabetização.
Talvez a descoberta mais importante que surgiu de uma análise ao IDH ao longo do
tempo é que no geral as pessoas têm mais saúde, são mais educadas e mais ricas do
que em 1990. O IDH mundial cresceu 18% desde 1990, e 41% desde 1970. O RDH de
2010 acrescenta que “os países pobres estão a aproximar-se dos países ricos no IDH.
Esta convergência e estreitamento da divisória sugere um quadro muito mais optimista
do que uma perspectiva que se limita às tendências nos rendimentos, onde a
divergência continua” (PNUD, 2010: 3). Esta dicotomia convergência/divergência
insere-se numa análise com muitos qualificadores. Nem todos os países têm tido um
“progresso rápido” no IDH, e as melhorias mais lentas têm-se verificado nos países da
África Subsaariana (profundamente afectados pela propagação do HIV) e nos países da
antiga União Soviética (com as suas taxas de mortalidade de adultos elevadas) (PNUD,
2010: ibidem). Mas, no geral, o progresso tem sido considerável na generalidade dos

42
Aliás, uma das maneiras de tentar medir a dimensão da economia paralela é através da quantidade e
crescimento da moeda em circulação. Neste aspecto, o facto de quase 75% de todas as notas de 100
dólares circularem fora dos Estados Unidos atesta a importância do dólar nesta componente questionável
da economia mundial (Eichengreen, 2011: 2). Curiosamente, numa opinião expressa há mais de uma
década, a “decisão da União Europeia de emitir notas grandes constituiu um passo agressivo para
abocanhar uma grande fatia da procura de moeda estrangeira segura por parte dos países em
desenvolvimento.” (Rogoff, 1998: 264).
43
Curiosamente, a mudança de perspectiva ocorreu ao mesmo tempo que o colapso do Comunismo. Sobre
o desenvolvimento humano, o sistema socialista e o conceito de “agência” (que analisaremos mais à
frente) veja-se Ivanov e Peleah (2010).
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países em termos de educação, um pouco menos a nível de saúde, e muito mais
variável em termos de rendimentos (PNUD, 2010: 25).
O facto de, das 13 histórias de sucesso com altas taxas de crescimento durante longos
períodos desde 1950, que mereceu o destaque da respeitada Comissão Spence sobre
Crescimento e Desenvolvimento (CCD), só quatro (China, Indonésia, Coreia do Sul e
Omã) fazem parte da lista dos 10 que subiram mais rapidamente no IDH entre 1970 e
2010 (PDNU, 2010: 28, 29, e 120, nota 13; Brady e Spence, 2010). Este é um exemplo
de como o conceito de convergência é muito ilusório e discutível. Por outro lado, o
PNUD, a Comissão Spence, o Banco Mundial e vários governos de países desenvolvidos
estão de acordo na constatação de que, mesmo na presença de regimes políticos
semelhantes, existe uma variação razoável nos resultados do crescimento e ainda
quanto à inexistência de uma receita geral para a obtenção de um crescimento
sustentado (PNUD, 2010: 21). Esta visão, confirmada pelos êxitos económicos do
Brasil, China e Índia, percebe-se melhor se levarmos em consideração a evolução do
pensamento económico, tema que iremos abordar em seguida de forma sucinta.
A economia do desenvolvimento
A interacção de conceitos mais amplos, tais como crescimento económico, igualdade,
desenvolvimento humano, e as políticas associadas à sua melhoria formam parte
integrante do estudo da economia do desenvolvimento, que inclui pobreza e
instituições. Este campo da investigação, basicamente o estudo das economias que o
Banco Mundial designa por países de rendimentos médios e baixos, “tem feito um uso
excelente da teoria económica, métodos econométricos, sociologia, antropologia,
ciência política, biologia, e da demografia, e floresceu como uma das áreas mais
enérgicas das ciências sociais” (Ray, 2008). Mais uma vez, o meu objectivo é identificar
alguns dos princípios fundamentais organizacionais e intelectuais que emergem da
literatura sobre o tema. Neste sentido, traçar um breve panorama da evolução do
pensamento sobre a economia do desenvolvimento afirma-se como uma forma natural
de organizarmos as nossas ideias.
O Consenso sobre o Desenvolvimento
O fim da Segunda Guerra Mundial marcou o início de um longo processo de
descolonização com os novos Estados independentes a aderirem a várias estratégias
orientadoras de desenvolvimento, cruciais e interligadas (Nayyar 2008; Birdsall, De la
Torre, Caicedo, 2010; Kondonassis, 2011). Primeiro, houve um esforço nítido de limitar
a integração na economia mundial, em grande parte devido à experiência negativa das
antigas colónias pela dependência de exportação de matérias-primas, cujos preços nas
duas décadas anteriores tinham sido severamente afectados pela depressão.
Em segundo lugar, em resultado da escassez cambial, tornou-se necessário produzir
manufactura nacional, e a industrialização por substituição de importações (ISI)
tornou-se um objectivo primordial. A fim de implementar estas duas estratégias, de
várias formas e a vários níveis, utilizaram-se as seguintes ferramentas: nacionalização
de bancos e de empresas; subsidiação de indústrias emergentes; controle de taxas de
juro e da concessão de crédito; controle de preços; quotas e taxas sobre as
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20
importações; e planeamento centralizado
44
. Assim, uma terceira estratégia, a de
conceder ao Estado um papel muito maior, acompanhou as duas primeiras. Esta
estratégia encontrou justificação na literatura inicial sobre o desenvolvimento
(Rosenstein-Rodan, 1943; Gerschnkron, 1962; Hirschman, 1958; e Rostow, 1959), que
não acreditava que os mercados pudessem funcionar devidamente nos países em
desenvolvimento e que, em vez disso, acreditava que o objectivo principal de
acumulação de capital podia ser melhor alcançado pelo Estado (Birdsall, De la Torre e
Caicedo, 2010). O raciocínio por detrás desta visão era que o Estado, ao implementar
as políticas keynesianas concebidas para remediar as falhas do mercado, trouxera o
Ocidente de volta do abismo económico da depressão.
As organizações internacionais como o Banco Mundial (uma criação keynesiana)
também adoptaram a abordagem centrada no Estado. Além disso, o rápido progresso
económico da União Soviética, que, entre outros, fez com que fosse visto como um
concorrente em pé de igualdade com os Estados Unidos nos jogos de angariação de
influências e aliados em todo o mundo, e até em termos de liderança na corrida
espacial, reforçou a posição do planeamento central.
O consenso sobre a necessidade de controlo da economia pelo Estado, de limitar a
internacionalização, e o enfoque na industrialização manteve-se aceso pela memória da
relação de subordinação entre os países desenvolvidos e os menos desenvolvidos
(recorrendo à terminologia da época). Estas memórias eram muito avivadas pelas
construções intelectuais associadas à teoria da dependência (por exemplo, Gunder
Frank, 1967) e à noção de declínio dos termos comerciais dos produtos primários
produzidos na “periferia” em benefício dos consumidores dos países ricos situados no
“centro” da economia mundial
45
.
Este “Consenso sobre o Desenvolvimento” dominou desde o final da década de 40 até
ao início dos anos 70 (Nayyar, 2008). A sua popularidade não surpreende, já que desde
meados dos anos 50 até ao início da década de 70, muitos países em desenvolvimento,
não muito diferentes dos países desenvolvidos, tiveram taxas de crescimento mais
rápidas do que anteriormente. Grande parte deste crescimento deveu-se ao facto de
terem recuperado o seu atraso, tal como os países europeus foram diminuindo a
distância que os separava dos Estados Unidos, mas com a vantagem de virem de muito
atrás. Assim, para os países desenvolvidos, “o simples acrescentar de uma indústria e a
expansão da sua agricultura comercial fazia uma grande diferença no seu desempenho”
(Yusuf et al. 2009: 10).
A ortodoxia económica associada ao Consenso sobre o Desenvolvimento e as técnicas
(tais como tabelas de input e de output) que lhe estão associadas atingiram uma
posição muito elevada (Yusuf et al, 2009: 11). Além disso, a criação da Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em 1964, como
contrapeso ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) controlado pelo Ocidente,
assim como a criação do Grupo G77 (que actualmente inclui 131 países) foram uma
forma de atestar o poder crescente dos países em desenvolvimento.

44
Birdsall, De la Torre e Caicedo (2010). Aqui é também de notar que este modelo de desenvolvimento
económico de consenso estava mais voltado para dentro na América Latina e nas Caraíbas do que no
Leste Asiático.
45
Esta é a conhecida tese de Prebisch-Singer, e o aumento do preço das matérias-primas previstas num
futuro próximo irá provavelmente dar origem a debates e a que se repense o assunto.
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A questão da pobreza também assumiu maior proeminência. Inspirado pela declaração
de guerra à pobreza feita pelo Presidente dos Estados Unidos Lyndon B. Johnson, em
1964, Robert McNamara (que fizera parte da Administração de Johnson uma década
antes), Presidente do Banco Mundial, em 1973 conduziu a instituição a uma postura
decididamente mais agressiva na luta contra a pobreza, que levaria, em 1978, à
publicação do primeiro Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Esta publicação
aumentaria a visibilidade das questões sobre o desenvolvimento nas décadas
seguintes, e tornou-se uma referência devido às suas análises e recomendações
políticas, levando igualmente à produção de outras publicações, como o Relatório de
Desenvolvimento Humano publicado pelo PNUD e referido anteriormente.
Por último, na esteira da quadruplicação dos preços do petróleo em 1973-74, muitos
países desenvolvidos acharam que poderiam organizar-se em cartéis de produtores de
outras mercadorias e, assim, duplicar os sucessos obtidos pela OPEP. Esta sensação de
poder e de maior potencial económico, que também permeou muitos líderes do Sul e
que estava igualmente na base do seu apelo para uma Nova Ordem Económica
Internacional (NOEI), estava destinada a durar pouco tempo.
O Consenso de Washington
À medida que a incerteza económica e os tumultos se materializavam em todo o
mundo ao longo da década de 1970, começou-se a repensar seriamente o
desenvolvimento
46
. Muitos começaram a questionar as teorias de Kuznets, segundo as
quais o crescimento económico no Sul a certa altura conduziria a uma diminuição da
desigualdade, e também a duvidar do mérito do modelo de crescimento proposto por
Solow, segundo o qual o crescimento mais rápido dos países pobres levaria à sua
convergência com os países desenvolvidos (Saad-Filho, 2010: 1).
Por volta da mesma altura, os dois países mais populosos no campo do planeamento
centralizado, a China e a Índia, começaram a ser encarados como exemplo de tudo o
que podia correr mal (Nayyar, 2008). Além disso, à medida que se tornou cada vez
mais claro que a organização de cartéis de produtores como a OPEP seria cada vez
mais difícil, a unidade dos países do Sul começou progressivamente a ser posta em
causa devido à divisão nítida, em termos de interesses, entre os países em
desenvolvimento exportadores e importadores de petróleo. Por último, mas da maior
importância, nas economias avançadas, onde o optimismo e fé na inevitabilidade do
progresso económico tinham sido abalados pela estagflação e altas taxas de
desemprego, a doutrina keynesiana que até então predominara deu lugar ao
monetarismo.
Este repensar da teoria e políticas macroeconómicas repercutiu-se para além do mundo
dos especialistas em economia devido a alterações na arena política, com Margaret
Thatcher e Ronald Reagan a chegarem ao poder defendendo uma agenda que

46
É importante registar que os problemas económicos da década de 1970 (por exemplo, a estagflação no
Ocidente, a flutuação dos preços das mercadorias e dos mercados financeiros, e a sensação generalizada
de que o progresso económico das décadas anteriores havia parado) “na falta de instituições políticas
testadas, os modos de sucessão política aceites, e as regras para a partilha de poder e de riqueza entre
os grupos heterogéneos” contribuíram de forma significativa para transformar “muitas das novas
nações”” em “campos de batalha para as rivalidades entre facções, elites e entre grupos étnicos e
tribos.” (Yussuf et al., 2009: 14).
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incorporava teorias monetaristas que devolveram aos mercados o papel de equilibrar a
oferta e a procura, encorajando a inovação e o crescimento económico. A preocupação
com as quebras dos mercados tinha dado ênfase às falhas dos governos. O
pensamento sobre o desenvolvimento não poderia deixar de ser afectado por esta
mudança de paradigma em direcção ao neoliberalismo nos países industrializados.
Anos mais tarde, em 1990, John Williamson compilou uma lista de dez orientações de
políticas a aplicar no desenvolvimento das economias de mercado, que reflectia essa
mudança e ficou conhecida por “Consenso de Washington” (WC)
47
.
As dez orientações originais eram:
1. Disciplina fiscal
2. Reorientação das despesas públicas
3. Reformas fiscais
4. Liberalização financeira
5. Taxas de câmbio unificadas e competitivas
6. Liberalização do comércio
7. Abertura ao investimento directo estrangeiro
8. Privatização
9. Desregulamentação
10. Garantia dos direitos de propriedade
Cada um destes itens significou e significa algo (muito ou pouco) diferente para os
vários economistas ou políticos (Rodrik, 2006; Spence, 2011; Saad-Filho, 2010;
Birdsall, De la Torre e Caicedo 2010). Mas, em geral, e no seu todo, os princípios
contidos nestas receitas políticas sugerem uma ligação com as convicções políticas,
ideológicas e económicas das “revoluções Thatcher-Reagan”.
Houve igualmente a necessidade de combater a “lista interminável de loucuras políticas
às quais as nações pobres tinham sucumbido” durante o Consenso do
Desenvolvimento, e a lista do CW continha, aos olhos de qualquer economista
competente, “as verdades óbvias da profissão: ponha os seus saldos macroeconómicos
em ordem, mantenha o Estado afastado dos negócios, dê rédea solta aos mercados.
‘Estabilize, privatize, e liberalize’ tornou-se a fórmula dos... tecnocratas... e dos líderes
políticos” alvo destes conselhos (Rodrik, 2006: 973).
Basicamente, e tal como refere o Relatório de Desenvolvimento Mundial de 1981, havia
uma grande necessidade de ajustamento estrutural que tinha que ser feita com recurso
a políticas macroeconómicas e microeconómicas (Yusuf et al., 2009: 28), sem dúvida
ambos com o mesmo objectivo de criar um ambiente mais favorável ao crescimento
económico. As primeiras, políticas macroeconómicas, destinavam-se a estabilizar a

47
Existe grande desacordo em torno da expressão “Consenso de Washington” por parte dos proponentes e
opositores da lista de políticas. Veja-se, por exemplo, Williamson (1999; 2004). No conjunto, Williamson
assume a sua distância a partir de uma aplicação muito rígida das orientações prescritivas propostas.
Basicamente, considera-se um compilador mais do que um apoiante da lista na sua íntegra. A lista que
usamos aqui é a de Rodrik (2006).
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economia, tendo as políticas fiscais o objectivo de diminuir a procura, e as políticas
cambiais o de canalizar uma maior parte dos recursos económicos para as exportações.
Para além de reduzir os desequilíbrios internos e externos, as políticas de estabilização
procuravam reduzir a inflação (Yusuf et al., 2009: 29). Quanto às políticas
microeconómicas, incluíam a desregulamentação, a privatização das empresas estatais,
a racionalização de entidades do sector público e redução dos salários públicos, e a
remoção do controlo sobre os preços, medidas essas que tinham o objectivo de
eliminar as distorções no funcionamento do mercado livre (Yusuf et al., ibidem).
Avaliação do Consenso de Washington
Qualquer avaliação destas políticas beneficiará de uma leitura atenta de Economic
Growth in the 1990s: Learning from a Decade of Reform, um estudo publicado pelo
Banco Mundial em 2005 (Banco Mundial, 2005), que incidiu no período entre o início da
década de noventa, quando o Decálogo do Consenso de Washington tinha alcançado
um estatuto elevado entre conselheiros políticos, e a data da sua publicação.
Para começar, “houve várias surpresas negativas” (Banco Mundial, 2005: 8). Por
exemplo, a transição das economias comunistas e centralmente planeadas para
economia capitalistas provou ser muito mais difícil do que o inicialmente previsto, com
um colapso de output muito mais profundo e de duração imprevisível. Se, por um lado,
referia que, por exemplo, a República Checa, a Hungria e a Polónia (que, não por
coincidência, beneficiavam do processo de integração Europeia), se encontravam em
recuperação, por outro lado lia-se que “ levará anos, e em alguns casos décadas, para
que os países da antiga União Soviética recuperem os níveis de rendimento per capita
existentes no início da transição” (Banco Mundial, 2005: 8). Além disso, o relatório
acrescentava que relativamente à África Subsaariana, e apesar das boas políticas de
reformas, a ajuda externa, o alívio da dívida, melhorias na governação, bom ambiente
externo, e algumas histórias de sucesso modesto como as de Moçambique, Tanzânia e
Uganda, não se tinha dado nenhuma descolagem importante. O relatório referia
também que as crises financeiras dos anos 90 tinham sido menos previsíveis que as
das décadas anteriores, dando como exemplos o México em 1994-95, a Coreia,
Malásia, Tailândia e Indonésia em 1997-98 (o que ensinou muitos países em
desenvolvimento a constituir um grande fundo de reservas em moeda estrangeira,
como referi anteriormente), Rússia e Brasil em 1998, a Turquia em 2001, e a Argentina
em 2001-02 (Banco Mundial, 2005: 8). Por último, mas não menos importante, houve
surpresas negativas na América Latina que, em 1990, tinha rejeitado definitivamente a
lógica do Consenso de Desenvolvimento a favor da estabilização macroeconómica, rigor
fiscal, liberalização do comércio e privatização (Banco Mundial, ibidem)
48
. Enquanto se
alcançaram sucessos importantes na luta contra a inflação desde o início da década de
90, os resultados em termos de crescimento foram desapontantes, e a década assistiu
a um crescimento menor do PIB per capita em comparação com os EUA do que no
período entre 1950 e 1980 (Birdsall, De la Torre e Caicedo, 2010: 3; Rodrik, 2006:
975). Os especialistas em assuntos da América Latina tiveram dificuldade em

48
A nível das finanças, as políticas de liberalização foram mais agressivas e mais modestas na área da
fiscalidade e praticamente não existentes no campo dos mercados de trabalho (Birdsall, De la Torre e
Caicedo, 2010). Por mais complicado que o quadro se apresente, há poucas dúvidas de que a nova
ortodoxia foi amplamente adoptada e instrumental em demonstrar que a região merecia receber alívio
da dívida através do Plano Brady. Veja-se Marangos (2009).
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compreender exactamente o que correra mal. Independentemente disso, o sentimento
de desencanto na região para com o Consenso de Washington certamente aumentou
em consequência das crises financeiras no Equador (1999-2000), no Uruguai (2002),
na República Dominicana (2003), para além da que afectou a Argentina que acabei de
referir (Birdsall, De la Torre e Caicedo, 2010).
Juntamente com estas surpresas negativas, como Rodrik (2006) inteligentemente
refere, registou-se o progresso inesperado na frente da pobreza global. Mais digno de
nota, de acordo com as previsões do Banco Mundial (Chen e Ravallion, 2004), em
2001, o número de pessoas que viviam com um dólar por dia era de 1.1 bilião, o que
representa uma queda de quase 400 milhões em comparação com os vinte anos
anteriores. Em grande medida isto resulta do crescimento económico rápido alcançado
pela China e pela índia
49
.
Em termos da avaliação, os partidários do Consenso de Washington teriam alguma
dificuldade em atribuir o sucesso económico vivido pelas duas nações mais populosas
do mundo às políticas orientadoras. Isto deve-se ao facto da narrativa centrada nos
dois gigantes que despertaram de um sono prolongado para um novo amanhecer de
liberalização económica em 1978 (China) e em 1991 (Índia) é extremamente simplista
(Nayyar, 2008: 274), deixando de fora o período de “quase estagnação” entre 1900-
50, quando a China e a Índia se encontravam entre “as economias mais abertas e
desreguladas do mundo” (Nayyar 2008: 274). Por outro lado, minimiza as taxas de
crescimento do PIB entre 1950 e 1980 tanto na China (5%) como na Índia (3.6%)
(ibidem). Ao referir o extraordinário crescimento anual das taxas do PIB na China
(9.7%) e na Índia (5.8%) entre 1981 e 2005, a narrativa inspirada no Consenso de
Washington de liberalização económica e de abertura à globalização colide com as
actuais políticas nacionais de desenvolvimento (ibidem). Nomeadamente, recorrendo a
integração estratégica activa (e não passiva) na economia mundial (Nayyar, 2008),
estas duas nações praticaram “níveis elevados de protecção comercial, ausência de
privatização, vastas políticas industriais, e políticas fiscais e financeiras frouxas ao
longo de toda a década de noventa” (Rodrik, 2006: 975)
50
.
Instituições
As instituições são importantes para o estudo da economia e da globalização
51
, mas a
ênfase do Consenso de Washington incidia sobre as mudanças políticas em vez das
condições institucionais necessárias para que essas mudanças tivessem um efeito
positivo e duradouro (Rodrik, 2006). As coisas começaram a mudar durante e após o
breve mandato de Joseph Stiglitz (1997-1999) como economista principal do Banco
Mundial, um defensor influente da escola “nova economia institucional” (Saad-Filho
2010). Esta escola distancia-se da ênfase neoclássica na concorrência e na perfeição
dos mercados em direcção à “configuração institucional da actividade económica,

49
Veja-se igualmente a secção sobre desigualdade, em cima. Sobre a dificuldade da contagem do número
de pobres no mundo, veja-se Chandy e Gertz (2011), cujas previsões indicam que em 2015, cerca de
600 milhões de pessoas viverão com menos que 1.25 dólares por dia.
50
Esta rejeição da aplicação dos princípios do Consenso de Washington às políticas actuais empreendidas
pela China e pela Índia não é muito diferente da experiência dos tigres asiáticos de “formas de
intervenção estratégicas e políticas não ortodoxas para alcançar objectivos convencionais” (Nayyar,
2008: 273).
51
Não é demais repetir que as instituições desempenham um papel crucial em todos os tipos de análises
sobre a economia mundial e têm importância em todos os tópicos discutidos e abordados neste artigo.
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importância das imperfeições do mercado, e potenciais resultados decorrentes das
diferenças ou mudanças nas instituições” (Saad-Filho 2010: 3).
Rodrick (2006: 978) compilou uma lista de 10 reformas, claramente não exaustiva, e
sujeita a alterações com base nas preferências dos conselheiros e decisores políticos:
governança empresarial; anti-corrupção; mercados de trabalho flexíveis; acordos da
OMC; códigos e normas financeiras; abertura “prudente” de contas de capital; regimes
cambiais não intermédios; bancos centrais independentes/metas de inflação; redes de
segurança social; e redução estratégica da pobreza. Esta lista, descrita por muitos
como uma “segunda geração de reformas”, aliada às dez políticas prescritivas originais,
foi apelidada “Consenso de Washington Alargado” (Rodrik, 2006) ou “Pós-Consenso de
Washington” (Saad-Filho, 2010).
Esta versão alargada (20 itens) tenta resolver problemas como o da liberalização
económica sem que haja instituições fiscais apropriadas para compensar a perda de
receitas, ou quando existem mercados de capitais que financiam os sectores em
crescimento de forma inadequada e autoridades aduaneiras incompetentes ou
desonestas (Rodrik, 2006). As soluções apresentam-se através da intervenção discreta
do Estado “numa variedade muito mais abrangente de políticas sociais e económicas
que as efectuadas com o CW” (Saad-Filho, 2010)
52
.
Importa salientar que é muito difícil encontrar uma ligação entre uma concepção
institucional específica e o crescimento económico (Rodrik, 2006; Spence, 2011; Banco
Mundial, 2005; PNUD, 2010; Rodrik, 2011)
53
. Além disso, “a função institucional não
determina exclusivamente a forma institucional”, como refere Rodrik, dando como
exemplos as experiências chinesas e russas em meados da década de 90 (Rodrik,
2006: 979). A forma institucionalizada dos direitos de propriedade de tipo ocidental
vigente na Rússia deveria ter conduzido, numa primeira instância, a fluxos de
investimento muito mais consideráveis do que na China, onde o sistema de propriedade
pública estava assente em vilas e aldeias. Contudo, o que aconteceu foi o oposto,
muito provavelmente porque os investidores preferiram lidar com as realidades talvez
menos rentáveis mas mais seguras da China, do que com as incertezas decorrentes de
direitos de propriedade mal protegidos na Rússia à mercê do critério de tribunais locais
que não eram de confiança (Rodrik, 2006: 979).
Não devemos igualmente esquecer que a China iniciou as suas rápidas taxas de
crescimento a finais da década de 70 sem ter efectuado quaisquer alterações aos seus
direitos de propriedade ou sistema comercial, e que a “transição da Índia para um
elevado crescimento nos anos 80 não foi precedida (ou acompanhada) por mudanças
institucionais assinaláveis”. Estes factos, juntamente com outras experiências
nacionais, parecem apontar para as limitações de uma abordagem que requer que as
mudanças institucionais sejam implementadas antes de tudo o resto (Rodrik, 2006:
980). Esta é uma questão mais vasta, a da “sequenciação” correcta das políticas, que é
um desafio encontrado em todas as estratégias de crescimento e desenvolvimento e

52
A procura de um novo “consenso” não pára. Por exemplo, pode ler-se sobre o “Consenso de Beijing”
(Huang, 2011) ou sobre o “Consenso BeST (Bejing-Seoul-Tóquio)” (Lee e Mathews, 2010).
53
O desenho institucional como o que assistimos nos últimos anos na União Europeia merece grande
atenção pelas lições que dá aos países que estejam a considerar ou a atravessar qualquer tipo de
processo de integração noutras regiões do mundo. Veja-se, por exemplo, Ammendola (2008a).
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que está a conduzir a um consenso emergente em direcção à necessidade de se estar
preparado para uma rápida mudança de orientação (Spence, 2011)
54
.
Ajuda externa
O outro grande grupo de conceitos que vou mencionar de seguida prende-se com a
ajuda externa. Vista por alguns como o terceiro pilar da segurança nacional dos EUA
(mas certamente não só dos EUA), logo a seguir aos pilares da política externa e da
defesa, a ajuda externa é uma dimensão central no debate sobre o desenvolvimento.
Num olhar muito rápido sobre a sua evolução, é da maior importância referir aqui o
maior programa de ajuda aos negócios alguma vez implementado, o Plano Marshall
(Hubbard and Duggan, 2009: 90). O Plano Marshall concedeu financiamento aos
governos europeus, que por sua vez o emprestava a empresas privadas cujos
pagamentos seriam então utilizados pelos governos para restaurar infra-estruturas
públicas, ao mesmo tempo que implementavam outras medidas para encorajar o sector
empresarial (Hubbard e Duggan, 2009: 90-1)
55
. O Plano ajudou a reconstruir a Europa
e fê-la regressar a uma funcionalidade económica sólida, ao mesmo tempo que deu aos
Estados Unidos acesso a mercados importantes, bem como aliados para as suas
políticas de defesa e externa. Criou as bases para o multilateralismo liderado pelos EUA
e, sem dúvida, contribuiu para alargar os direitos dos cidadãos em ambos os lados do
Atlântico. Assim, já que a ajuda externa teve tanto êxito na Europa, porque é que a sua
magia não funciona “nos outros sítios”? (Moyo, 2009: 13).
A lógica adoptada na concessão de ajuda externa fora da Europa foi influenciada pela
necessidade de apoiar os líderes (independentemente do grau de autocracia) que
estavam do lado de quem concedia a ajuda durante a Guerra Fria e pelo Consenso
sobre o Desenvolvimento referido anteriormente. Assim, a ajuda foi empregue
sobretudo no financiamento de projectos estruturais e industriais de grande dimensão,
tais como estradas, pontes, caminhos-de-ferro, barragens, centrais eléctricas e
sistemas de esgotos, negligenciando as questões institucionais em causa, tais como a
forma como os projectos seriam geridos, operacionalizados e mantidos“ (Ghani and
Lockhart, 2009: 89).
A saúde e a educação, que como vimos são componentes cruciais do IDH, durante
muito tempo não foram consideradas capazes de proporcionar retornos económicos
adequados (Ghani e Lockhart, ibidem). O seu estatuto elevou-se quando se deu a
mudança de atitude relativa ao alívio da pobreza apoiada por Robert McNamara, que
também induziu o Banco Mundial a apoiar projectos de desenvolvimento agrícolas e
rurais de menor dimensão. Apesar de, em 1973, o Banco Mundial ter ultrapassado os
Estados Unidos como o maior doador aos países em desenvolvimento (Moyo, 2010:
17), um conceituado crítico alega que esta “mudança de prioridades” não teve o tempo

54
Sobre a análise de políticas em geral, veja-se o livro de Brewer e de Leon (1983). Na sua opinião, o
processo político atravessa seis fases (Iniciação, Estimativa, Selecção, Implementação, Avaliação e
Encerramento). Usei o seu modelo para analisar as questões das finanças internacionais e de tributação
com importância significativa para os decisores públicos e privados. Veja-se Ammendola (1994).
55
Este é um discurso que se opõe à “visão equivocada” típica que o Plano Marshall distribuiu as
necessidades básicas gratuitamente e construiu as infra-estruturas. Pelo contrário, “para poderem ser
abrangidos pelo Plano, os países tinham que conduzir uma série de políticas de promoção do sector
empresarial para garantir que os negócios locais pudessem usufruir igualmente dos empréstimos”
(Hubbard e Duggan, 2009:xi). A importância do bom funcionamento das instituições é mais uma vez
evidente.
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suficiente para se desenvolver e implementar de uma forma abrangente” (Saad-Filho,
2010: 3).
Nos anos 80, os fundos excedentários dos países exportadores de petróleo,
especialmente os que “absorvem pouco” (países com populações pequenas)
instalaram-se em muitos países em desenvolvimento através dos bancos
internacionais, países cujo risco em termos de crédito foi provavelmente subestimado
devido ao boom generalizado das mercadorias. Quando as taxas de juro subiram em
função das medidas adoptadas pelos Estados Unidos para combater a inflação, as
dificuldades nos pagamentos de juros de dívida, na sua maioria com taxas variáveis,
originou uma vaga de incumprimentos nos países do Sul, e a declaração do México,
em Agosto de 1982, de incapacidade de pagar a dívida serviu de gatilho. A resposta à
crise centrou-se na reestruturação da dívida, que, como Moyo (2010: 19) assinalou,
“constituiu uma reincarnação do modelo de ajuda, com as instituições Bretton Woods…
a reclamarem uma posição central na capacidade de maiores credores das economias
emergentes”. Desta forma, e a partir do início dos anos 80a, um número crescente de
países com baixos rendimentos passou a beneficiar de repetidos reescalonamentos em
termos de concessões (Gunter, 2003: 91-117).
O objectivo de romper o ciclo de alterações repetidas aos termos da dívida tornou-se
assim uma preocupação permanente. A sua importância é realçada pelo facto de, no
final da década de 80, quando o Consenso de Washington tinha sido acordado, a dívida
dos mercados emergentes ascendia a pelo menos 1 trilião de dólares (Moyo, 2010: 22).
No lado positivo para os mutuários, deve assinalar-se que, como resultado do perdão
da dívida por parte dos credores, e de um clima de taxas de juro mais vantajoso, a
tendência ao longo dos anos 90 caracterizou-se por uma diminuição dos juros nos
pagamentos sobre a dívida externa (Banco Mundial, 2005: 72).
Contudo, é igualmente importante assinalar que o crescimento económico dos países
devedores e a sua capacidade de pagar a dívida não beneficiaram da prioridade que o
Banco Mundial (possivelmente não muito diferente da adoptada por outras instituições
financeiras oficiais) atribuiu ao volume dos empréstimos, mais do que à qualidade dos
projectos a que se destinavam. Pelo menos até o início dos anos 90 (Ghani e Lockhart,
2010: 96).
É provavelmente justo dizer que na década de 90, todos os elementos que actualmente
influenciam a ajuda externa, incluindo o cansaço dos doadores, a importância da boa
governanção, e o papel das celebridades (Moyo, 2010) estavam frequentemente
interligados a uma indistinguível “teia de relações entre dadores multilaterais e
bilaterais, agências das Nações Unidas, empresas privadas e ONGs”. (Ghani e Lockhart,
2010: 97).
Não admira que, neste momento, nos vejamos confrontados com uma vasta literatura
sobre a ajuda externa, que, vale a pena repetir, é também parte integrante do debate
sobre o desenvolvimento global. Uma forma extremamente útil, se bem que
necessariamente simplificada, de categorizar a ajuda externa ao longo destas linhas
gerais é-nos fornecida pelas opiniões opostas sobre o assunto, avançadas pelos que por
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um lado partilham os pontos de vista de Jeffrey Sachs, e pelos que, por outro, apoiam
a opinião de William Easterly
56
. Examinemo-las.
Desenvolvimento, prós e contras da ajuda externa
Posto de forma resumida, Jeffrey Sachs, Professor na Universidade da Columbia e
Presidente do seu Instituto da Terra (Earth Institute) é um apoiante entusiasta da
ajuda externa. Para ele, quanto mais melhor. William Easterly, que lecciona na
Universidade de Nova Iorque, onde também co-dirige o Instituto de Investigação sobre
o Desenvolvimento (Development Research Institute) mostra-se, por sua vez, muito
céptico. Na sua opinião, o historial da ajuda externa é, no mínimo, pouco
impressionante.
Jeffrey Sachs quer colocar um fim à pobreza, especialmente a que afecta os
“extremamente pobres”, um bilião de pessoas que lutam pela sua sobrevivência todos
os dias
57
. Ele acredita que os países mais pobres do mundo (a sua maioria situados na
África Subsariana) estão envolvidos numa “armadilha de pobreza”, mediante a qual
todos os rendimentos são gastos no consumo, nada restando para a poupança, e onde
é virtualmente impossível recolher fundos de alguma relevância através da cobrança de
impostos e assim investir em infra-estruturas. Para além disso, esses países têm que
conviver com o peso da dívida maciça.
Apesar de reconhecer muitos dos excessos cometidos no passado, Sachs relativiza a
importância das explicações para a situação actual destes países, que se centram na
exploração por parte do Ocidente (nas suas formas colonialista e neocolonialista) e no
papel desempenhado pela Guerra Fria. Ele acredita que o desenvolvimento económico
não é um jogo de onde se parta de um número zero, e que a verdadeira história traduz
taxas de crescimento diferentes (Sachs, 2005: 31)
58
. Mas, mais importante ainda,
Sachs minimiza o papel desempenhado pela corrupção, afirmando que “países africanos
relativamente bem governados, como o Gana, o Malawi, o Mali e o Senegal, não
conseguiram prosperar, ao passo que sociedades na Ásia, onde se sabe existir
corrupção em larga escala, como o Bangladesh, Índia, Indonésia e Paquistão
registaram um crescimento económico rápido” (Sachs, 2005: 191).
Especialmente no caso de África, é a interacção desfavorável entre factores geográficos
e económicos, tal como a ausência de rios navegáveis que se dirijam para os oceanos,
a falta de irrigação, a irregularidade das chuvas, uma população extremamente
concentrada em áreas fechadas com parcos recursos (Collier, 2006), agricultores sem
“acesso a estradas, mercados, e adubos” e solos exaustos, que verdadeiramente
importa (Sachs 2005: 208). Assim, Sachs acrescenta que “na falta de transportes,
telecomunicações, clínicas e fertilizantes, a relação entre a fome, a doença e a pobreza
só se aprofundou” (Sachs, 2005: ibidem).

56
Apesar de serem representativas do debate geral, as opiniões destes dois autores sobre a ajuda externa
nem sempre são claramente partilhadas na íntegra pelos seus apoiantes. Existem muitas diferenças e
nuances. Contudo, a dicotomia, que engloba também as considerações mais abrangentes sobre a
economia do desenvolvimento, não deixa de ser muito útil como ferramenta organizacional intelectual.
57
Sachs (2005: 18). Regra geral, os países usam definições distintas de pobreza; as organizações
internacionais e estudiosos normalmente usam uma base de 1 ou 2 dólares por dia (Spence, 2011: 45).
58
É claro que as taxas de natalidade muito elevadas nos países pobres têm que ser levadas em
consideração nesta análise, e Sachs, se bem que reconhecendo os avanços nesta matéria em muitos
países (por exemplo, no Bangladesh a taxa de fecundidade caiu de 6.6 em 1975 para apenas 3.1 em
2000), neste sentido fala de uma “armadilha demográfica”. Veja-se Sachs (2005: 64-5).
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A partir desta armadilha de pobreza, a única saída não é através dos conselhos típico
oferecido pelo FMI e pelo Banco Mundial influenciados pelo Consenso de Washington.
As suas políticas de ajustamento estrutural, tais como privatização,
desregulamentação, mercado livre e apertar o cinto (anteriormente mencionadas)
impõem um fardo que com frequência é excessivamente pesado para os mais pobres
dos países em desenvolvimento. Em vez disso, Sachs defende que estas políticas
devem ser acompanhadas “por reformas comerciais nos países ricos, cancelamento da
dívida” e, mais importante ainda, pelo “aumento da ajuda estrangeira para
investimentos em infra-estruturas básicas” (Sachs, 2005: 80).
Além disso, deve haver apoio acrescido aos oito Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio (MDGs) proclamados pelas Nações Unidas em Nova Iorque em 2000: erradicar
a pobreza extrema e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a igualdade
entre os sexos e a autonomia das mulheres; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a
saúde materna; combater o HIV/SIDA, a malária, e outras doenças; garantir a
sustentabilidade ambiental; estabelecer uma parceria global para o desenvolvimento
59
.
Para atingir estes objectivos, Sachs quer que o Ocidente adira ao compromisso
assumido pelos chefes de Estado de cinquenta grandes nações em Monterrey, México,
em Março de 2002, de amparar o movimento apoiado por todos os países
desenvolvidos de aumentar o nível de ajuda pública ao desenvolvimento (APD) para
0.7% do PIB
60
.
William Easterly (2006) não se mostra insensível ao sofrimento dos que vivem em
pobreza extrema. Argumenta que é uma tragédia que haja crianças a morrerem de
doenças cuja prevenção e cura custa incrivelmente pouco numa base per capita. Por
exemplo, mosquiteiros para colocar nas camas e assim impedir que as crianças fiquem
infectadas com malária custa apenas 4 dólares. Isto é uma tragédia, acrescenta, que
chama a atenção de “visionários, celebridades, presidentes, ministros da economia,
burocratas, e até mesmo de exércitos (Easterly, 2006: 4).
Contudo, Easterly afirma que há uma outra tragédia que aflige os pobres do mundo, e
prende-se com a falta de compreensão que ainda demonstramos para com estas
histórias de pobreza extrema, doença e subnutrição, apesar dos $2.3 triliões de dólares
gastos nas últimas cinco décadas. Por outras palavras, apesar desta enorme quantia
gasta na ajuda externa, “o Ocidente … ainda não conseguiu arranjar os mosquiteiros de
4 dólares par dar às famílias pobres”? (Easterly, 2006). Na opinião de Easterly, esta é a
tarefa mais importante: não parar a ajuda externa, mas parar as más práticas óbvias
que o Ocidente tem adoptado até à data. Para isso, explica que é fundamental
percebermos a diferença entre o que ele chama “Planners” (os que planeiam) e
Searchers” (os que procuram).
Para ele, os Planners são pessoas como Jeffrey Sachs, que acreditam em grandes
projectos, como o Projecto do Milénio e nas capacidades do Gabinete do Secretário-
Geral das Nações Unidas de coordenar as actividades das agências da ONU, do Banco
Mundial, do FMI e dos doadores. Easterly considera que os Planners têm uma
abordagem “top-down” (de cima para baixo) em relação ao desenvolvimento, com as

59
Sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (MDGs), veja-se, por exemplo,
http://www.un.org/millenniumgoals/
60
Em 2010 apenas cinco dos países mais industrializados tinha excedido o rácio de 0.7%: Noruega,
Luxemburgo, Suécia, Dinamarca e Países baixos. Veja-se http://webnet.oecd.org/oda2010/
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suas teorias de “big-push” (empurrão forte), bebendo simultaneamente da teoria de
Rosenstein-Rodan sobre o desenvolvimento e do conceito de “take off” de Rostow,
cheios de boas intenções sem fazer qualquer ideia como motivar seja quem for para as
implementar, criando expectativas sem assumir qualquer responsabilidade, sem
capacidade de determinar o que é necessário fornecer e com falta de conhecimentos
específicos sobre o terreno. Para Easterly, estes são factores subjacentes ao falhanço
geral inegável da ajuda externa.
Easterly sublinha que, por outro lado, os Searchers (como ele) são pessoas muito mais
pragmáticas. Não se deixam guiar por concepções globais abrangentes e procuram,
pelo contrário, descobrir o que funciona no terreno através do método da tentativa e do
erro. Sabem que nunca têm respostas a priori e assumem responsabilidade pelos seus
erros, centrados no cliente e guiando-se pela procura (Easterly, 2006: 5 ff.). Easterly
minimiza a importância da “armadilha da pobreza”. Na sua opinião, a má governação é
responsável pela lentidão do crescimento. Para além disso, acrescenta, mesmo num
ambiente de boas políticas, não existe evidência de que a ajuda funcione de facto
(Easterly 2006: 48). O que provavelmente funciona, escreve, são os planos de pequena
dimensão, as abordagens graduais, a tentativa e o erro, e um enfoque nas pessoas e
não nos governos. Esta é a visão analítica de um Searcher.
Outras diferenças no debate
Delineadas desta forma, estas duas posições e discursos formam a base para destacar
as divisões entre os que têm opiniões mais radicais, no que poderemos caracterizar
como termos ideológicos.
“À esquerda de Jeffrey Sachs situam-se os apoiantes das estratégias do crescimento
pró-pobres (PPG) (Saad-Filho, 2010; McKinley, 2009). Trata-se de um grupo que, ao
analisar a evolução debatida anteriormente desde o Consenso sobre o Desenvolvimento
até ao Consenso de Washington e ao Pós-Consenso de Washington Alargado, acredita
que nos finais da década de 90, a maioria dos especialistas do desenvolvimento era
forçado a concordar “que a redução da pobreza e a redistribuição não eram
subprodutos espontâneos do crescimento, ou fruto da correcção de desequilíbrios
macroeconómicos ou de melhorias nas políticas macroeconómicas e de governanção.
Em vez disso, a pobreza tem que ser abordada directamente através de um conjunto
de instrumentos económicos e sociais” (Saad-Filho, 2011: 8).
Assim, surge outra divisão conceptual (Saad-Filho, 2011: 8; Zepeda, 2011) entre os
que acreditam que o PPG deveria incidir sobre o crescimento económico que reduza a
pobreza (Ravallion, 2004; Ravallion e Chen, 2003), e os que crêem que essas medidas
não são suficientes. Estes últimos (Kakwani, Khandker e Son, 2004) pensam que ao se
ir mais além do que apenas a pobreza absoluta, torna-se necessário pensar num PPG
centrado no aumento da parcela de rendimentos dos pobres. Por outras palavras, os
pobres precisam de beneficiar proporcionalmente mais do que o resto da população
(Zepeda, 2011), numa lógica claramente redistributiva.
A confluência de pontos de vista ao longo do tempo entre os intelectuais mais
facilmente associados a esta divisão, Ravallion and Kakwani, significa que actualmente
ambos apoiam a ideia de um crescimento mais rápido com o objectivo de melhorar o
nível de vida dos pobres em termos absolutos com melhorias relativas acrescidas em
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comparação com os que não são pobres. Esta é uma convergência no debate que
alguns interpretam (Saad-Filho, 2010; McKinley, 2009) como uma desistência
indesejável de facto dos objectivos de redistribuição.
Na mesma linha, um dos críticos mais proeminentes (Saad-Filho: 10) critica a
abordagem adoptada por publicações como a do Banco Mundial, Economic Growth in
the 1990s (Banco Mundial, 2005) e a da Comissão para o Crescimento e
Desenvolvimento, The Growth Report: Strategies for Sustained Growth and Inclusive
Development
61
. Estes relatórios “ostensivamente evitam avançar com planos de
desenvolvimento” (que eu diria serem de carácter geral em vez de uma “preferência de
um Planner”) e, em vez disso, destacam as virtudes da experiência, as reformas
selectivas, o ecletismo, a experimentação, o meio-termo e o aprender fazendo” (que se
me afigura semelhante a uma “lista de desejos dos Searchers”) e, mais importante
ainda, atribuem pouca ou nenhuma importância às questões da distribuição (Saad-
Filho, 2010: 10).
O crescimento inclusivo (Spence, 2011: 87-88; Banco Mundial, 2009), que é um
conceito incluído no Relatório da Comissão de Crescimento, é igualmente criticado por
seguir a lógica do Consenso de Washington e da sua versão Alargada (Saad-Filho,
2010: 17). Segundo as palavras de representantes do Banco Mundial, enquanto “a
abordagem pró-pobres se interessa sobretudo pelo bem-estar dos pobres… o
crescimento inclusivo preocupa-se com oportunidades para a maioria dos
trabalhadores, tanto pobres como trabalhadores da classe média” (Banco Mundial,
2009: 1)
62
. Voltando à distinção entre a diferença absoluta e a relativa mencionada
anteriormente (Ravallion 2004 vs. Kakwani, Khandker, e Son 2004), o crescimento
inclusivo é, portanto, congruente com a definição absoluta de crescimento pró-pobres.
Por seu lado, a definição relativa (preferida por aqueles que partilham as opiniões de
Saad-Filho e de McKinley’s sobre a necessidade de se concentrar na desigualdade e na
redistribuição) é criticada pelo Banco Mundial (2009: 3) porque “poderia conduzir a
resultados sub-óptimos tanto para as famílias pobres como para as não pobres”.
Ao longo do espectro ideológico, “à direita” de William Easterly situam-se os
académicos com uma visão mais céptica. Partilham a sua opinião que “a ajuda não
atingiu os objectivos”, tais como: “promoção do crescimento económico rápido,
mudanças nas políticas governamentais para facilitar os mercados, e promoção de
governos democráticos e honestos” (Lal, 2006). Contudo, embora demonstrem
igualmente nutrir grande antipatia pelos “planners”, os que sustentam esta visão
também tendem a pensar que “as agências de ajuda responsáveis pelas tarefas
específicas através da avaliação rigorosa de resultados” não cumpriram os objectivos
(Lal, 2006), apesar de mais transparência, feedback, e responsabilização almejados por
pessoas como Easterly
63
. As agências de ajuda são basicamente irreformáveis (Lal,

61
Constituída por um grupo independente de decisores políticos, líderes empresariais e académicos, o
trabalho da Comissão foi apoiado pelo Banco Mundial, a Hewlett Foundation, e pelos governos da
Austrália, Holanda, Suécia e Reino Unido. Veja-se CGD (2008: 13).
62
Os termos deste debate reflectem uma discussão semelhante sobre “igualdade de oportunidades versus
igualdade de resultados” que encontramos nas economias avançadas e à qual a crise económica e
respectivas consequências conferiu maior visibilidade.
63
Curiosamente, Lal (2006) observa que quando os projectos típicos são concluídos, os responsáveis pelos
empréstimos seguiram em frente nas suas vidas, enquanto as suas carreiras beneficiaram do volume e
não da qualidade dos projectos. Este desfasamento temporal faz-me lembrar um padrão observado nos
empréstimos irresponsáveis concedidos por funcionários dos bancos comerciais aos governos e que
esteve na base da Crise da Dívida do Terceiro Mundo que explodiu na década de oitenta.
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2006; Sorens, 2009; Lal, 2005), formando parte de uma vasta empresa internacional
no seio da qual um número significativo de profissionais, que Graham Hancock (1989)
designa por “Os Senhores da Pobreza”, leva uma boa vida (Lal, 2006).
Numa linha de raciocínio semelhante, Dambisa Moyo considera que a ajuda externa é
prejudicial para os países que a recebem. Na sua obra (Moyo, 2009), que se centra
sobretudo em África mas que contém reflexos que se aplicam a todo o mundo, a autora
distingue entre ajuda de emergência, ajuda de beneficência, e ajuda sistemática.
Embora não revele ser grande apoiante das duas primeiras, é o terceiro tipo, que
envolve pagamentos directos por parte dos governos ocidentais ou de instituições
multilaterais como o Banco Mundial aos governos dos países pobres, que lhe merecem
as maiores críticas.
Isto acontece porque, em termos de dimensão, a ajuda pública directa aos governos
diminuiu a importância dos outros dois tipos de ajuda. Para além disso, a ajuda
sistemática aos governos revela-se ainda mais importante se acrescentarmos (como a
autora o faz) aos contributos públicos os empréstimos atribuídos a título de concessão.
A autora afirma que esta é uma inclusão necessária devido ao esbatimento da distinção
entre pagamentos e empréstimos concessionais, engendrados pela tendência do
“perdão”, que as celebridades promovem de forma tão visível (Moyo, 2009). Alguns
autores (Vreeland, 2003; Sorens, 2009) defendem que aqueles que pensam que o FMI
e o Banco Mundial estão fortemente influenciados pelos EUA e o Ocidente tendem a
ignorar que as condições associadas a empréstimos do FMI são, na realidade,
procuradas pelos países beneficiários. Desta forma, os seus líderes podem implementar
as reformas económicas impopulares que pretendem sem sofrer a reacção adversa dos
eleitores
64
. De forma resumida, este grupo de intelectuais acredita que o factor decisivo
relativamente ao desenvolvimento dos países pobres não é a ajuda externa mas sim a
sua vontade de “fazer o que é correcto” (Lal, 2006), com confiança nos mercados e nas
suas próprias instituições melhoradas
65
.
Alguma evidência empírica
É evidente que os que são a favor de mais ajuda e os que querem menos ou mesmo a
sua eliminação justificam as suas posições graças a uma literatura de cariz empírico
sobre a eficácia da ajuda, que chega a conclusões muito distintas. Por exemplo, Arndt,
Jones e Tarp (2010) afirmam que a evidência generalizada e as suas próprias
conclusões demonstram que a eliminação ou redução dramática da ajuda externa seria
um erro, dado que, a longo prazo, o auxílio tem um efeito causal positivo e importante
no crescimento. Mekasha e Tarp (2011) defendem que, numa perspectiva de meta-
análise, as consequências da ajuda no crescimento são positivas e significativas. Feeny
e McGillivray (2011) são da mesma opinião e afirmam que um “grande empurrão” em
ajuda externa não está necessariamente sujeito a retornos decrescentes e “pode
conduzir a aumentos do crescimento económico, e por extensão, à redução da pobreza”
(ibidem: 63).

64
Isto faz-me lembrar a culpa que os líderes nacionais colocaram sobre as instituições da UE quando
tiveram de implementar medidas para cumprir com as normas europeias.
65
Por exemplo, Moyo (2009) defende que se contraiam empréstimos nos mercados internacionais,
comércio acrescido com os Chineses, mais microcrédito, mais remessas e poupança interna. Estes
mecanismos deviam substituir a ajuda externa, que deveria chegar ao fim dentro de cinco anos. Veja-se
igualmente Ammendola (2010).
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Por seu turno, Doucouliagos e Paldam (2011), ao analisarem décadas de investigação,
ressaltam que “em média os fluxos de ajuda agregada ao desenvolvimento são
ineficazes na criação de crescimento” (Ibidem:403). Chong, Gradstein e Calderon
(2009) confirmam a existência desta ineficácia mesmo quando as boas instituições
estão presentes. Além disso, acrescentam que a ajuda externa não parece melhorar a
qualidade das instituições democráticas e que “por si só não parece ter um efeito
estatisticamente significativo sobre a desigualdade e na redução da pobreza” (Ibidem:
79).
É curioso que Kalyvitis e Vlachaki (2011) concluam que existe uma relação negativa
entre a ajuda externa e a democracia, que é menos forte quando os fluxos de ajuda se
seguem à liberalização económica. Rajan e Subramanian (2008) consideram que a
ajuda não faz aumentar ou diminuir o crescimento económico de forma significativa,
que não aparenta ser mais eficaz em ambientes políticos ou geográficos mais
favoráveis, e que não existe qualquer evidência de que certos tipos de ajuda sejam
mais eficazes do que outros. Rajan e Subramanian (2011) chegaram igualmente à
conclusão que os fluxos de ajuda provavelmente afectam negativamente a
competitividade de um país destinatário através das taxas de câmbio por causa da
valorização da moeda
66
.
As conclusões de Garces-Ozanne (2011) são as mais emblemáticas sobre as
dificuldades em chegar a conclusões simples neste campo de investigação. A autora
afirma que a ajuda provavelmente não é uma boa promotora do crescimento
económico e que as boas políticas económicas e humanas não parecem ter efeitos
significativos e únicos sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Contudo,
considera que “quando as políticas económicas e humanas conseguem interagir com a
ajuda, os indicadores da eficácia da ajuda na promoção dos Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio tornam-se mais robustos” (Ibidem: 37).
À luz de tudo o que examinámos até agora, a multiplicidade de factores para avaliar a
concepção de políticas para o desenvolvimento é realmente assustadora. O quadro de
análise conhecido por “diagnóstico do crescimento” que nos últimos anos tem vindo a
ganhar popularidade crescente, tenta lidar com essa complexidade.
Diagnóstico do crescimento
Os estudiosos mais estreitamente associados com a abordagem do “diagnóstico do
crescimento”, Ricardo Hausmann, Dany Rodrik, e Andrés Velasco (doravante, HRV,)
referem que os políticos, “quando se lhes apresenta um rol de reformas necessárias”,
tais como as mencionadas anteriormente ao debatermos o Consenso de Washington e
a sua Versão Alargada e até o Consenso do Desenvolvimento anterior, “… ou tentam
resolver todos os problemas ao mesmo tempo, ou então iniciam reformas que não são
vitais para o potencial de crescimento dos países” (HRV, 2006: 12). Estas reformas por

66
Para os que estão familiarizados com a literatura sobre este assunto, este constitui um exemplo
importante da “doença holandesa”. Outra variante da doença, normalmente muito mais importante,
encontra-se associada aos danos causados por outros tipos de exportações pela valorização da moeda
resultante da exportação substancial de outros recursos naturais. Os danos que a riqueza provinda dos
recursos naturais pode causar ao crescimento económico e ao desenvolvimento são conhecidos por
“maldição dos recursos”.
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vezes “atravessam-se no caminho umas das outras, com uma reforma numa área a
criar distorções não previstas noutra área” (Ibidem)
67
.
Os defensores da abordagem do diagnóstico de crescimento afirmam, pelo contrário,
que é muito melhor tentar identificar os principais constrangimentos cuja remoção
permitiria “um surto de crescimento” (Felipe and Usui, 2008: 2). No quadro
desenvolvido por HRV (2005), usa-se uma árvore decisória para examinar o problema
dos baixos níveis de investimento privado e do empreendorismo. HRV (2006: 13)
explicam que “num país de baixos rendimentos, a actividade económica deve ser
restringida, pelo menos, por um dos seguintes factores: ou o custo do financiamento é
demasiado elevado; ou o retorno privado sobre o investimento é muito baixo. Se o
problema se prende com um retorno baixo sobre os investimentos (HRV usam o El
Salvador como exemplo), “por sua vez isso provavelmente deve-se ou a retornos
económicos (sociais) baixos ou a uma grande distância entre os retornos sociais e os
privados (aquilo a que chamamos baixa apropriação privada).”No caso do preço
elevado do financiamento (HRV dão o Brasil como exemplo), a árvore decisória
encontra-se igualmente dividida em dois ramos: más finanças internacionais; e más
finanças locais.
Descer de um ramo da árvore para outro leva o investigador a examinar factores muito
variados, tais como a geografia, as infra-estruturas, o capital físico e humano, as
instituições, e a governanção (Felipe e Usui, 2008). Em cada nó, o investigador
pergunta “que tipo de sinal de diagnóstico é que a economia emitiria se o hipotético
constrangimento fosse efectivamente o elo de ligação?” (Rodrik, 2010: 35). À medida
que se vai saltando de galho em galho, vamos adquirindo níveis de desagregação cada
vez maiores, e Rodrik (2006: 984) afirma que a vantagem de percorrer os muitos
caminhos associados à análise de diagnóstico, mesmo de “forma rudimentar", “pode
por vezes revelar lacunas importantes ou insuficiências nos pacotes de reformas
tradicionais”.
O segundo passo no diagnóstico do crescimento é a concepção das políticas mais
apropriadas para aliviar os constrangimentos (Rodrik, 2010; Rodrik, 2006). Há um
princípio que se destaca: “direccione a resposta política para o mais perto possível da
origem da distorção” (Rodrik, 2006: 984). Por exemplo, se as limitações ao crédito
constituírem um constrangimento importante, e se isto se traduzir por amplos spreads
bancários, encoraje a concorrência no sector bancário (ibidem).
Os apoiantes do diagnóstico de crescimento estão conscientes das dificuldades de
concepção e de implementação de reformas efectivas, especialmente à luz do facto de
os países em desenvolvimento se depararem com desafios maiores e maiores
constrangimentos do que as nações desenvolvidas. Os constrangimentos de ligação
mudam ao longo dos tempos e as políticas podem interagir umas com as outras de
forma adversa. Isto está de acordo com o amplo consenso referido anteriormente em
conexão com a avaliação da década de 90, onde era extremamente difícil encontrar
uma ligação entre, por um lado, o projecto institucional e/ou políticas específicas e, por
outro, o crescimento. Mais especificamente, os conselhos de política económica
concedidos aos decisores públicos sugeriram o abandono da lógica de boas práticas
(que vale sempre a pena estudar numa perspectiva teórica) a favor de práticas de
segunda linha, realistas e de experimentação, conscientes de que um sistema

67
Este é claramente uma questão frequentemente associada à sequenciação.
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económico poderá não responder a políticas de forma previsível (Zagha, Nankani e Gill,
2006; Rodrik, 2008; Rodrik, 2010).
Neste momento, o diagnóstico do crescimento parece ser uma ferramenta muito
importante para os profissionais do desenvolvimento. Uma das críticas que lhe são
dirigidas por alguém que, de outra forma, considera que a abordagem tem muito
mérito, é que “se concentra exclusivamente no crescimento económico”. (Felipe e Usui:
7). Esta forma de pensar insere-se no debate que aborda as limitações do PIB e a
forma como se modifica ao longo dos tempos, não apenas enquanto medida da
actividade económica, mas, mais importante, do bem-estar e desenvolvimento
humano.
Mais sobre o desenvolvimento humanos
Todas as formas de Organizações (governamentais e não-governamentais, nacionais e
internacionais, com ou sem fins lucrativos) publicam informação sobre o estado de
muitos tipos de desenvolvimento humano e frequentemente fornecem indicadores e
classificações de países. Alguns indicadores são, inevitavelmente, uma grande fonte de
controvérsia, resultante, por exemplo, da forma como foram construídos, de problemas
de aferição, ou consoante o verdadeiro objectivo da entidade emissora. Prosseguiremos
a nossa breve análise anterior sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do
PNUD que utilizarei para tecer mais algumas considerações sobre o desenvolvimento
humano em geral.
A necessidade de alargar o conceito de desenvolvimento humano já se faz sentir há
algum tempo. Por exemplo, o Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 2010,
referindo-se ao RDH de 1990, relembra os leitores como este último “sublinhava que o
desenvolvimento é liberdade, tanto a nível da escolha humana (liberdade de
oportunidades) como processo participativo (liberdades de processo)” (PNUD, 2010:
12). A distinção, inicialmente feita por Amartya Sen (2002), por outras palavras,
separa “as liberdades que nos concedem maiores oportunidades de alcançar as coisas
que valorizamos (liberdade de oportunidades)" das que “garantem que o processo
através do qual as coisas acontecem é justo (liberdades de processo)” (Klugman,
Rodríguez e Choi, 2011: 264). Assim, verificou-se que o IDH pode actualmente
caracterizar-se como um processo de liberdade de oportunidades, e que os autores do
RDH de têm consciência da necessidade de levar em consideração as liberdades de
processo (ibidem), que incluem capacitação e práticas democráticas (PNUD, 2010: 23).
O RHD 2010 aborda “o empowerment, a equidade e a sustentabilidade” porque
“encontram-se entre os componentes intrínsecos da liberdade dos indivíduos de levar
uma vida a qual tenham motivo para valorizar” (PNUD 2010: 65). A principal conclusão
do RDH em relação a estas três dimensões é que a sua relação com o IDH não é
imediatamente directa. Por outras palavras, há uma falta de correlação geral entre o
IDH, o empowerment e a sustentabilidade. Em relação à desigualdade, o padrão
mostra que existe uma relação negativa com o IDH, e que esta relação apresenta uma
variação considerável. Assim, no conjunto, “os países poderão ter um IDH elevado e
não ser democráticos, ser injustos e insustentáveis - da mesma forma que poderão ter
um IDH baixo e ser relativamente democráticos, justos e sustentáveis” (PNUD, 2010:
65).
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Empowerment. Empowerment é um conceito que suscita grande controvérsia a nível
da literatura, tanto em termos de definição como de medição (Klugman, Rodríguez e
Choi, 2011: 264). No RDH de 2010, e na esteira da definição proposta por Sen (1985),
o empowerment caracteriza-se por exigir tanto acção “a capacidade das pessoas de
moldar os seus próprios destinos” e “estruturas institucionais de apoio” (mais uma vez
as instituições vêm à baila) (PNUD, 2010: 23).
Neste contexto, a tecnologia tem sido uma importante fonte de mudança. No final de
2010 existiam 2 biliões de utilizadores da Internet em todo o mundo (o dobro de
2005), dos quais 1.2 biliões se encontram nos países em desenvolvimento
68
. Existem
ainda importantes diferenças regionais com a Europa apresentando 65 utilizadores por
cada 100 habitantes, as Américas 55, a Comunidade de Estados Independentes 46, os
Estados Árabes 24.9, a Ásia e o Pacífico 21.9, e a África 9.6. É interessante notar que a
China, com mais de 420 milhões, é o país com maior número de utilizadores da
Internet. Ainda mais impressionantes são os dados relativos ao acesso à tecnologia
celular móvel. O mundo em desenvolvimento aumentou a sua quota de subscrições de
assinaturas móveis de 53% do total de assinantes móveis no final de 2005 para 73%
no final de 2010, com a África a apresentar o maior potencial de crescimento e as
economias avançadas a atingir um nível de saturação ou de quase saturação. Se a
estas tecnologias juntarmos a televisão por satélite, a capacidade das pessoas de
fazerem escolhas informadas, de ganhar voz e de responsabilizar os governos
decididamente aumentou (UNDP, 2010), como a chamada Primavera Árabe poderá
atestar, apesar dos que têm sérias dúvidas (Morozov, 2011) sobre o impacto
democratizante da Internet sobre a acção dos governos, e outros (Wu, 2010)
exprimam as mesmas reticências relativamente à responsabilização do comportamento
empresarial.
Os redactores do RDH 2010 também referem que a globalização está a conduzir a uma
maior transmissão internacional das questões e preocupações, e que esse facto é
evidenciado a partir de uma tendência a partir de muitas outras: o número de
organizações internacionais aumentou cinco vezes entre 1970 e 2010, para um número
estimado de 25000 (PNUD 2010: 68).
Estabelecer a distinção entre Estados democráticos e não democráticos torna-se
igualmente difícil. Independentemente deste facto, e fazendo uso de uma “definição
minimalista” de democracia, o RDH afirma que no geral, o número de países IDH que
são democracias passou de menos de um terço no início da década de 70 para quase
50% em 1996, e para mais de 60% em 2008 (PNUD, 2010: 68). Destacam-se duas
tendências: (1) a maioria dos países com um IDH muito elevado são democracias; e
(2) dos países com um IDH baixo nenhum era uma democracia em 1990, enquanto
actualmente um número ligeiramente superior a 30% se encontra nessa categoria
(ibidem).
Esta tendência para uma maior democratização traz consigo um aumento dos
processos participativos locais e uma melhor inclusão política para muitos movimentos
baseados na identidade (por exemplo, grupos autóctones na América Latina e no
Caribe, ou as castas mais baixas na Índia nos Estados individuais) (PNUD, 2010: 70).
Este crescimento generalizado na capacitação enquanto tendência precisa de ser

68
Todos os dados sobre a Internet e telefones móveis foram extraídos da International
Telecommunications Union The World in 2010 Facts and Figures (disponível em http://www.itu.int
).
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qualificado pelo facto de “a democracia abranger uma série de acordos institucionais e
de configurações de poder – e de nem as autocracias serem monolíticas”, e que os
“níveis de violações de direitos humanos reportados permaneceu virtualmente
inalterado a nível global nos últimos 40 anos” (PNUD 2010: 69, 71)
69
.
Desigualdade. O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2010 acrescentou
recentemente uma dimensão às três originais do IDH – rendimento, saúde e educação
- a desigualdade. Aproveitando o facto de haver actualmente mais acesso aos dados do
que há 20 anos, desenvolveram-se novos índices, designados por IDH, ajustados à
Desigualdade, o Índice de Qualidade de Género (com conclusões que apontam para
dados interessantes, se bem que negativos, em termos da capacitação de mulheres na
zona do Cáucaso e na Ásia Central) e o Índice Multidimensional de Pobreza. A principal
constatação, apesar de não contradizer no geral o que discutimos antes relativamente
à desigualdade, e com as advertências habituais sobre lacunas na informação, é que os
“avanços na redução das desigualdades no mundo têm sido limitados, com alguns
reveses sérios. A desigualdade de rendimentos está a aumentar na maioria dos países,
com excepção da América Latina e do Caribe” (PNUD, 2010 :77).
Vulnerabilidade e sustentabilidade. O desenvolvimento de países e de pessoas é
vulnerável quando pode entrar em declínio devido a uma série de riscos, tais como
“choques agregados ou acidentes individuais” (PNUD, 2010: 78)
70
. Para efeitos de
análise, é útil observar como os riscos podem afectar indivíduos (por exemplo, a perda
de emprego), comunidades (por exemplo, cheias ou sismos), ou países (por exemplo,
crises financeiras) (PNUD, 2010: 78), onde claramente o impacto é sentido desde o
local até ao global mas onde as lições apreendidas são cada vez mais partilhadas por
uma comunidade global de estudiosos e profissionais, cada vez mais e melhor
conectada entre si.
A sustentabilidade é um conceito muito debatido e intimamente ligado à
vulnerabilidade. O RHD 2010 usa a definição da Comissão Brundtland de
desenvolvimento sustentável como sendo “o progresso que atenta às necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas
próprias necessidades” (PNUD 2010: 78). Neumayer (2010) observa que esta definição
coloca no mesmo barco a equidade intrageracional e intergeracional e lamenta que as
questões da equidade sejam geralmente preteridas na maior parte dos debates sobre
sustentabilidade. A maioria dos defensores dos pobres concorda com esta opinião.

69
Uma dimensão do empowerment que creio irá assumir uma importância crescente como área de
investigação (e também à luz da importância da crise global e das consequências que irá ter nas nossas
vidas) é a investigação sobre a felicidade. Curiosamente, o RDH HDR 2010 reconhece que “a felicidade
não é totalmente explicada pelo rendimento ou … pelo IDH” e afirma considerar que a “felicidade”
“complementa outras medidas de bem-estar [e] não é uma única medida” (RDH, 2010: 22) Em termos
da sua relevância para as políticas públicas, pensar na felicidade significa enfrentar e tecer em conjunto,
de forma eficaz, questões como: problemas de definição e de medida (Wilkinson, 2007), a utilidade de
inquéritos isolados e para efeitos de comparação entre países (Kenny, 2011), o problema do excesso de
escolhas nas sociedades capitalistas (Schwartz, 2004) ou não (Wilkinson, 2007), os elementos
tendenciosos dos índices de felicidade em comparação com a natureza mais objectiva do PIB (Norberg,
2010), e a capacidade que os seres humanos têm de se adaptarem à prosperidade e à adversidade
(Graham, 2010).
70
Neste contexto, ocorre-me a distinção entre sensibilidade e vulnerabilidade estabelecida por Keohane e
Nye em Power and Interdependence. Para estes autores, a sensibilidade prende-se com os níveis de
resposta na ausência de uma mudança política, enquanto a vulnerabilidade tem a ver com os custos
incorridos mesmo depois de mudanças na política.
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Neumayer estabelece igualmente uma distinção interessante entre a sustentabilidade
fraca e a sustentabilidade forte. Os defensores da sustentabilidade fraca consideram as
formas naturais de capital, e outras, como basicamente substituíveis e afirmam que é o
valor total do stock de capital que deve ser preservado. Os apoiantes da
sustentabilidade forte avançam que certas formas de capital não são substituíveis, e
que a sua importância é tanta que a sua diminuição não pode ser compensada “pelos
investimentos noutras formas de capital, como os produzidos (fabricados) pelo ser
humano e o capital humano” (Neumayer, 2010: 4).
Com o objectivo de assegurar a sustentabilidade ambiental – um dos oito Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio - as Nações Unidas (2011) destaca algumas tendências
interessantes
71
. Uma das mais importantes é o facto de as emissões de dióxido de
carbono (CO2) terem aumentado de 21.8 biliões de toneladas métricas (TMO) em 1990
para 30.1 em 2008
72
. Mas especificamente, as emissões produzidas pelos países em
desenvolvimento subiram de 6.8 para 16.0 TMO, enquanto nos países desenvolvidos
desceram de 15 TMO para 13.9 TMO. É interessante observarmos que desde 1990, as
emissões por unidade de produção “baixaram mais de 36% nas regiões desenvolvidas e
cerca de 8% nas regiões em desenvolvimento” (Nações Unidas, 2011: 50). Além disso,
em 2008 as regiões em desenvolvimento emitiram 0.58 quilos de CO2 por dólar de
produção económica, enquanto as emissões correspondentes das regiões desenvolvidas
foi de 0.38 quilos (Nações Unidas, ibidem). Por outro lado, nas regiões desenvolvidas,
em 2008 as emissões de CO2 per capita foram apenas 2.9 toneladas métricas contra as
11.2 emitidas nas regiões desenvolvidas (Nações Unidas, ibidem). Nos próximos anos,
o debate em torno das emissões absolutas de cada país (com a culpa residindo nos
países em desenvolvimento, especialmente a China) e das emissões per capita (com a
culpa residindo nos países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos) irá
seguramente intensificar-se
73
.
Entre outras tendências importantes relacionadas com a sustentabilidade ambiental,
destacam-se as seguintes: (Nações Unidas 2010 e 2011): taxa de desflorestação,
apesar de estar a descer devido aos programas de replantação de árvores, é ainda
preocupantemente elevada; conseguiram-se quedas impressionantes a nível global nos
níveis de consumo de substâncias destruidoras do ozono desde meados da década de
80, claramente um sucesso para os países desenvolvidos e para os em
desenvolvimento; os avanços na área da redução da perda da biodiversidade não são
satisfatórios, com o declínio das espécies em termos de população e de alcance, os
dados indicando que esta situação é mais preocupante nos países em desenvolvimento;
os desafios continuam a fazer-se sentir na área das pescas (pesca excessiva, poluição e
perda de habitat) e também relativamente à necessidade de colmatar as lacunas a
nível do saneamento básico entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento,
assim como relativamente ao saneamento urbano e rural, a assumpção do objectivo do

71
Os dados e tendências aqui mencionados fazem parte de uma avaliação periódica do progresso feito em
direcção à concretização dos ODM. Veja-se Nações Unidas (2010; 2011)
72
Sobre os méritos de um “imposto de carbono” em relação aos do ““fixação de limites, leilão, e venda”
veja-se, por exemplo http://www.thebulletin.org/web-dition/roundtables/carbon-tax-vs-cap-and-trade
73
Dois índices de sustentabilidade parecem reflectir adequadamente estas duas posições opostas. O Índice
Planeta Feliz (Happy Planet Index) criado pela New Economics Foundation considera que a pegada
ecológica dos países em desenvolvimento é “leve” e que a dos países desenvolvidos é “pesada”
(Norberg, 2010). O Índice de Sustentabilidade Ambiental (Environmental Sustainability Index),
concebido pelo Center for Environmental Law and Policy at Yale University, basicamente chega a
conclusões opostas (Norberg, 2010).
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Milénio (ODM) de diminuir para metade o número de pessoas sem acesso a água
potável até 2015, mas as preocupações sobre a qualidade da água no futuro
permanecem.
Todas estas áreas estão muito interligadas ao estado da economia mundial, pois as
políticas de conservação e de sustentabilidade acarretam custos económicos.
Efectivamente, é nas alturas de crise económica que, enquanto a utilização de recursos
naturais poderá diminuir, as preocupações ambientais tendem a tornar-se menos
importantes para os políticos e eleitores.
Conclusão
As tendências apresentados neste artigo confirmam a complexidade da globalização.
Descrever, analisar e prever os aspectos da economia mundial, tais como o
crescimento económico, a igualdade e o desenvolvimento, é simultaneamente
necessário e difícil. Torna-se difícil criar instituições eficazes, as causas e efeitos são
frequentemente difíceis de discernir, e os decisores são muitas vezes obrigados a tomar
decisões complexas na hora, o que impossibilita a condução de políticas de forma
continuada. As melhores políticas têm muitas vezes que dar lugar às de segunda
opção, em virtude da complexa interacção de uma miríade de factores em constante
mutação.
Duas observações gerais têm que ser feitas para além do âmbito deste artigo. A
primeira é que a complexidade é também agravada pela rapidez da mudança. As
opiniões sobre a estabilidade dos países e das suas perspectivas económicas podem
alterar-se rapidamente, e as acções e instrumentos de dívida que emitem, assim como
o valor das suas moedas, podem oscilar muito, estando sujeitos a repentinas avaliações
de mercado sobre a relação entre risco e retorno. De facto, é esta extrema
complexidade que nos deveria alertar para não esperarmos aumentos contínuos,
rápidos, suaves e praticamente inevitáveis e automáticos dos rendimentos per capita
para todos, ou mesmo apenas alguns países em desenvolvimento. Para poderem
alcançar o crescimento de uma forma sustentável de um ponto de vista económico e
especialmente ambiental, os decisores terão que ser muito inteligentes e colaborar
mais uns com os outros, dentro e fora das fronteiras. Para além disso, não esqueçamos
que as tendências e enquadramentos abordados serão os que irão ser afectados pelas
lições que a crise global e as consequências que de aí advirão continuarão a ensinar aos
líderes tanto dos países desenvolvidos como dos que estão em desenvolvimento. Esta
aprendizagem irá fluir em ambas as direcções, da mesma forma que o fará entre
decisores públicos e privados. A capacidade e, mais importante ainda, a vontade de
verdadeiramente compreender estas lições e de as adaptar a realidades distintas
assumirão uma grande importância para a economia mundial nos próximos meses e
anos vindouros.
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DUAS DÉCADAS APÓS A CIMEIRA DO RIO:
QUO VADIS DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?
Korinna Horta
email : korinna.horta@gmail.com
Doutorada em Estudos do Desenvolvimento (Universidade de Londres), mestre em Estudos
Latino-Americanos e Economia Internacional (Universidade Johns-Hopkins), e licenciada em
Ciências Sociais (Universidade Nova de Lisboa). Foi Bolseira (Yale University Stimson Fellow) e
Professora Convidada em universidades nos EUA e na Europa. Consultora do Instituto de
Investigação para o Desenvolvimento Social da ONU e de outras organizações internacionais,
trabalhou como cientista sénior no Environmental Defense Fund, Washington, D.C. (1990-2009).
Trabalha em finanças internacionais, ambiente e direitos humanos na Urgewald. Desde 2010 é
membro do Compliance Review Panel no Inter-American Development Bank. Entre as suas
publicações destacam-se artigos para o Yale Journal for International Affairs, o Harvard Human
Rights Journal, e o New Scientist, entre outras publicações periódicas. Publicou um livro sobre
instituições financeiras internacionais e biodiversidade e foi co-autora de uma obra sobre Timor
Leste. Escreveu artigos independentes para jornais e contribuiu com capítulos para livros sobre
direitos humanos, politicas ambientais globais e instituições financeiras internacionais.
Resumo
A agência de desenvolvimento mais influente do mundo – o Grupo Banco Mundial (GBM) - é
o actor principal no financiamento para o desenvolvimento e desempenha um papel central
nos esforços globais de protecção do meio ambiente. Depois da Cimeira da Terra no Rio em
1992, esta instituição foi responsável por todos os projectos de investimento do Global
Environment Facility (GEF), então criado para servir de mecanismo financeiro interino da
Convenção das Nações Unidos sobre Alterações Climáticas e Biodiversidade. A promessa de
que o GEF conduziria à “ecologização” do financiamento para o desenvolvimento ainda não
foi concretizada. Mais recentemente, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre
Alterações Climáticas nomeou o GBM como administrator interino do recém criado Fundo
Verde do Clima (Green Climate Fund), que pretende mobilizar cerca de US$ 100 biliões por
ano até 2020. Enquanto que o Grupo Banco Mundial desempenha este papel crítico nos
esforços amabientais globais, a sua principal activtidade continua a ser a concessão de
empréstimos para o desenvolvimento, onde se incluem o financiamento de grandes
projectos infra-estruturais, agronegócios e barragens de grande dimensão, para além de
investimento em gás, petróleo e mineração. Esta carteira de empréstimos regulares para o
desenvolvimento está frequentemente em desacordo com a sustentabilidade ambiental. Por
exemplo, apesar da importância crescente do financiamento climático, o apoio a projectos
de combustíveis fósseis continua a dominar os empréstimos que a instituição concede ao
sector energético. Outra área relacionada com o clima, em que o Banco Mundial está
envolvido e desempenha um papel pioneiro, é fazer avançar o REDD+, uma iniciativa que
tem por objectivo reduzir a emissão de gases efeito de estufa a nível global através da
integração de esforços que visam proteger as áreas de floresta nos mercados globais de
carbono. Em última análise, o seu sucesso dependerá da forma como abordará as questões
sensíveis, tais como a propriedade da terra, a governança de florestas e a distribuição
equitativa de benefícios. Em conclusão, este artigo analisa a cultura empresarial subjacente
e a dificuldade em reconciliar a sustentabilidade ambiental e social com o interesse da
instituição em alcançar as metas de financiamento.
Palavras-chave
Financiamento internacional; Desenvolvimento e Ambiente; Banco Mundial; Rio + 20
Como citar este artigo
Horta, Korinna (2011). "
Duas décadas após a Cimeira do Rio: Quo Vadis
desenvolvimento sustentável",
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2,
N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art2
Artigo recebido em Julho de 2011 e aceite para publicação em Agosto de 2011
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Duas décadas após a Cimeira do Rio: quo vadis desenvolvimento sustentável?
Korinna Horta
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DUAS DÉCADAS APÓS A CIMEIRA DO RIO:
QUO VADIS DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?
Korinna Horta
A Cimeira da Terra que se realizou no Rio de Janeiro em 1992, também conhecida por
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(CNUMAD), prometeu inaugurar uma nova era na qual o crescimento económico e a
sustentabilidade ambiental estariam intimamente interligados e se reforçariam
mutuamente. Havia a esperança de que os 108 chefes de Estado reunidos no Rio
lançariam um novo regime de cooperação internacional de forma a transformar a nossa
abordagem sobre o desenvolvimento, proteger o clima mundial e a biodiversidade.
Com a aproximação do 20º aniversário da CNUMAD, que reunirá delegados de todo o
mundo de novo no Rio, é fundamental tentarmos compreender melhor o que foi
realizado até à data. Aqui, o foco incide sobre o Grupo Banco Mundial (GBM), a
instituição de desenvolvimento mais proeminente do mundo, com uma adesão de 187
países e uma pesada carga burocrática encarregue de gerir diariamente os seus
assuntos. O GBM tem desempenhado um papel central ao longo das últimas duas
décadas nos esforços de financiamento destinados a promover o desenvolvimento
sustentável e a solucionar os problemas ambientais globais, tais como as alterações
climáticas e a perda da biodiversidade.
Na sequência da publicação do seu relatório seminal sobre "Meio Ambiente e
Desenvolvimento" no ano da Conferência do Rio
1
, o Grupo Banco Mundial aprovou
uma missão que tinha o duplo objectivo de promover a redução da pobreza e o
desenvolvimento sustentável. A nova declaração de missão baseou-se no
reconhecimento de que o combate à pobreza está inseparavelmente ligado à protecção
ambiental e uma melhor gestão dos recursos naturais.
Considerado como um centro de conhecimento global, as ideias do Grupo Banco
Mundial exercem uma influência considerável sobre os outros agentes financeiros
públicos envolvidos. Instituições como os Bancos Regionais de Desenvolvimento e as
Agências Bilaterais de Ajuda tendem a seguir sua liderança. Mais recentemente, alguns
dos maiores bancos do sector privado, os bancos signatários dos Princípios do Equador,
comprometeram-se a adoptar padrões de desempenho ambiental e social da
International Finance Corporation (IFC), o ramo do Grupo Banco Mundial que empresta
directamente ao sector privado.
Este artigo analisa os compromissos do GBM relativamente às políticas e iniciativas
ambientais na sua qualidade de líder nesta matéria à escala global. Examina
brevemente o papel da instituição no centro do financiamento para os objectivos
ambientais globais. Seguir-se-á uma apreciação dos principais negócios do Grupo
1
Banco Mundial (1992). Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, Desenvolvimento e Ambiente,
Washington, D.C.
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Banco Mundial no financiamento ao desenvolvimento e uma análise do GBM no quadro
das salvaguardas ambientais e sociais. Far-se-á uma breve alusão aos custos da
isenção de empréstimos e do escrutínio dos seus impactos ambientais e sociais. Dado o
crescente papel do GBM no financiamento climático, este artigo analisa os empréstimos
aos projectos de investimento no sector da energia e as oportunidades e riscos
associados do apoio do Grupo Banco Mundial ao REDD +, uma iniciativa destinada a
reduzir as emissões de gases com efeito estufa através da integração da protecção das
florestas tropicais nos mercados de carbono globais. Por último, este artigo analisa a
cultura empresarial subjacente e a dificuldade em conciliar a sustentabilidade ambiental
e social com o interesse da instituição, guiado pela oferta e vontade de alcançar metas
de financiamento.
Um Gestor dos Fundos Ambientais Globais
Antes da CNUMAD em 1992, e novamente agora no contexto da Convenção Quadro das
Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC), o Grupo Banco Mundial
posicionou-se como instituição chave no financiamento ambiental. Desempenha um
papel fundamental tanto no Global Environment Facility (GEF) como no Green Climate
Fund (GCF), criados no início de 1990 e em 2010, respectivamente. Ambos são
mecanismos de transferências financeiras de Norte para Sul com o intuito de enfrentar
os desafios da cooperação ambiental internacional.
duas décadas, à medida que os preparativos para a Cimeira da Terra no Rio se
desenrolavam, os países mais desenvolvidos mostravam-se ansiosos por demonstrar o
seu compromisso em financiar os esforços dos países em desenvolvimento na resolução
de importantes problemas ambientais globais, como as alterações climáticas e a perda
da biodiversidade. A maioria dos países em desenvolvimento, por outro lado, via-se
confrontada com muitas outras necessidades, não considerando os problemas
ambientais globais como uma grande prioridade. No entanto, queriam utilizar as
preocupações ambientais dos países do Norte e a possibilidade de usufruírem de
transferências financeiras acrescidas para financiar as suas prioridades económicas e
ambientais, nacionalmente identificadas (Fairman, 1996: 69).
Um aspecto talvez ainda mais importante era o facto de os governos do Norte e do Sul
não se entenderem sobre a estrutura de governanção de um fundo destinado a abordar
os problemas ambientais globais. Os países em desenvolvimento teriam preferido a
criação de uma nova instituição na qual todos os Estados tivessem idêntico direito de
voto.
Mas, no início da década de 1990, e novamente na presente década, os países
desenvolvidos insistiam em recotrre às instituições existentes para canalizar o
financiamento ambiental. A sua clara preferência foi e continua a ser o GBM, onde as
quotas de voto são proporcionais às contribuições financeiras que os países fazem para
a instituição, o que assegura o predomínio dos países desenvolvidos. Em antecipação
da Cimeira do Rio, o Conselho de Administração do Banco Mundial aprovou uma
resolução em 1991 que estabelecia a criação do Global Environment Facility (GEF) e
colocava os países do G7 claramente na dianteira da tomada de decisões sobre as
transferências financeiras para o ambiente de Norte para o Sul.
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Contudo, perante as dúvidas manifestadas pelos países em desenvolvimento sobre uma
estrutura na qual a maioria tinha uma voz muito limitada, o GEF convidou o Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA) a integrar o GEF num processo tripartido. Também
inovou ao criar um Conselho do GEF no qual a representação dos países em
desenvolvimento se viu reforçada, e as decisões exigiam uma 'dupla maioria', ou seja,
uma maioria composta tanto por doadores do Norte como por países beneficiários do
Sul. Na prática, porém, as reuniões bianuais do Conselho do GEF e as suas instâncias
realizavam-se por consenso.
O poder real, pelo menos durante a primeira década do GEF, estava nas mãos do GBM,
que administrava, fornecia o secretariado e assumia a responsabilidade de todos os
projectos de investimento do GEF, enquanto o PNUD e o PNUMA se limitavam a prestar
assistência técnica ou a conduzir estudos ambientais. O GEF reforçou as credenciais do
Banco Mundial como instituição ambientalmente responsável e ajudou a estabelecer a
sua liderança numa área de crescente interesse para as populações dos principais
países doadores (Fairman, 1996: 72).
Durante a primeira década de existência, o GEF obteve financiamento de cerca de 4
biliões de dólares, uma soma insignificante quando comparada com as exigências dos
países em desenvolvimento, ou com a média anual de empréstimos de mais 20 biliões
de dólares por ano concedidos pelo Banco Mundial. De forma a racionalizar as suas
limitações de financiamento, os doadores promoveram o GEF como um "Cavalo de
Tróia" ambiental, e como uma forma de integrar e tornar as prioridades ambientais no
objectivo principal de todas as actividades do Grupo Banco Mundial e dos seus dois
sócios menores. A integração era considerada uma forma de fazer com que as
pequenas somas do GEF fossem mais longe mediante a “ambientalização” mais lata do
desenvolvimento.
Mas a integração no objectivo principal o se realizou (Fairman 1996:82). Através do
financiamento do GEF, o Banco Mundial tem abordado os indícios de problemas
ambientais específicos, mas os fundos do GEF não contribuíram para empréstimos em
sectores como a energia, silvicultura e agro-indústria, que são fundamentais para a
protecção do clima e da biodiversidade (Young, 2002: 215, Horta 1998: 3). Uma
avaliação oficial encomendada pelo GEF em 1998 chegou à mesma conclusão. A sua
recomendação prioritária foi a necessidade de integrar objectivos ambientais na
carteira geral de financiamentos globais do GBM, por exemplo, afastando-se dos
empréstimos energéticos convencionais para passar a desempenhar um novo papel no
financiamento das tecnologias de energia sustentável (Garrett et al, 1998: XV).
Tanto a Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas como a Convenção
das Nações Unidas sobre a Biodiversidade adoptaram o GEF como mecanismo de
financiamento interino em 1992. Mas o GEF nunca foi directamente responsável
perante as Convenções e, apesar dos seus festejos iniciais por ser o resultado concreto
da Conferência do Rio de 1992, a sua importância tem diminuído nos últimos anos.
Recentemente, numa iniciativa semelhante à da criação do GEF, o Banco Mundial
assumiu-se como um dos protagonistas financeiros na área das alterações climáticas.
Em causa estão cerca de 100 biliões de dólares anuais até 2020, provindos tanto de
fontes públicas como privadas, para ajudar os países em desenvolvimento na mitigação
de efeitos ou na adaptação às alterações climáticas. Em antecipação de novos fluxos
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financeiros substanciais, em 2008, o Banco Mundial lançou o seu Quadro Estratégico
sobre Alterações Climáticas e o Desenvolvimento, concebido para servir de modelo à
canalização de financiamento em larga escala para os países em desenvolvimento, de
forma a cobrir o custo adicional e os riscos para o desenvolvimento decorrentes das
alterações climáticas
2
.
Mais uma vez, a antecipação por parte do Banco Mundial dos entendimento dos
doadores parece ter valido a pena. Na Conferência das Partes (COP), uma cimeira
sobre alterações climáticas realizada em Cancún em Dezembro de 2010, o Banco
Mundial foi nomeado para servir de mandatário interino de um novo Fundo Verde do
Clima (GCF). As modalidades exactas da acção do GCF e o papel do Grupo Banco
Mundial, como administrador interino, ainda estão por determinar nas negociações
internacionais em curso.
Os governos dos países desenvolvidos continuam a considerar o Grupo Banco Mundial
como a instituição mais adequada para gerir com prudência fiscal grandes fluxos de
financiamento. A forma como o Banco Mundial, enquanto administrador interino do
GCF, irá transcender as tradicionais relações doador-receptor e tornar-se um
instrumento do princípio da UNFCCC que estabelece responsabilidades comuns mas
diferenciadas, e que reconhece a dívida ecológica dos países do Norte para com o Sul, é
ainda uma questão em aberto. Uma questão adicional também ainda em aberto é o
impacto do crescente papel da China no Conselho de Administração do Grupo Banco
Mundial. Enquanto o papel do G7 sobre este Conselho ainda é predominante, a China
substituiu recentemente a Alemanha como terceira maior accionista da instituição,
depois dos Estados Unidos e do Japão.
Perante a difícil situação económica dos países doadores tradicionais na sequência da
pós-crise financeira, a expectativa é que o financiamento público de governos doadores
para o GCF ialavancar contribuições maiores por parte de fontes privadas. O uso de
mercados de carbono, fundos de cobertura e de uma variedade de outros instrumentos
financeiros mais ou menos opacos será considerado, a fim de cumprir a meta de
transferência de 100 biliões de dólares por ano até 2020.
Enquanto o papel do Banco Mundial está ainda a ser debatido e a questão sobre se os
fundos do GCF serão complementados por empréstimos do Banco Mundial continua por
responder, o Banco Mundial desempenhará um papel influente como administrador
interino do GCF e como líder do financiamento para o desenvolvimento. As próximas
secções deste trabalho irão examinar mais detalhadamente a forma como o Grupo
Banco Mundial aborda as preocupações ambientais na sua actividade regular de credor
mais influente do mundo para o desenvolvimento.
Um Quadro de Salvaguarda Ambiental e Social
"Se o Banco Mundial foi um problema no passado, ele pode e vai ser uma grande força
na procura de soluções para o futuro"
3
, declarou o então presidente do Banco Mundial
Barber B. Conable ao anunciar a criação de um Departamento de Meio Ambiente de
2
Banco Mundial (2008). Desenvolvimento e Alterações Climáticas Quadro Estratégico para o Grupo do
Banco Mundial, Washington, D.C.
3
Discurso de Barber B. Conable, Presidente do Grupo do Banco Mundial, ao World Resources Institute,
Washington, D.C., 5 de Maio de 1987.
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nível superior em 1987. A promessa deste novo departamento foi que as preocupações
ambientais seriam integradas em todos os empréstimos e actividades da política do
Banco. Em grande parte espicaçado pelas críticas públicas aos principais programas do
Banco Mundial, exemplificadas pela Polonoroeste no Brasil e pela Transmigração na
Indonésia, que se tornaram exemplos emblemáticos da destruição de florestas tropicais
e do empobrecimento das populações locais, o Banco reconheceu que devia adoptar o
meio ambiente como causa própria.
No centro do compromisso do Banco Mundial situam-se dez Políticas de Salvaguarda
Ambiental e Social, bem como uma nova Política de Acesso à Informação adoptada em
2010, que se baseia na presunção de que a maioria dos documentos deve ser
disponibilizada ao público para aumentar a transparência e os resultados positivos para
o desenvolvimento
4
.
As Políticas de Salvaguarda abrangem uma ampla gama de tópicos, incluindo desde a
avaliação ambiental e o realojamento involuntário dos povos indígenas e florestas
5
. As
políticas foram concebidas de forma a que se evitasse que as pessoas e o meio
ambiente fossem prejudicados em projectos apoiados pelo Banco, tais como o
desenvolvimento de infra-estruturas, centrais eléctricas e grandes barragens,
requerendo auscultação às pessoas afectadas na avaliação de impactos ambientais,
incorporação de seus pontos de vista nos planos de realijoamento e participação dos
povos indígenas no desenvolvimento de planos destinados a beneficiá-los.
Ao contrário de sua Estratégia Ambiental, que é uma orientação voluntária para
funcionários do Banco, as políticas de salvaguarda são obrigatórias. Isso significa que
indivíduos ou comunidades que se sintam afectados negativamente por um projecto
financiado pelo Banco podem apresentar queixa ao Painel de Inspecção do Banco
Mundial e exercer pressão para que os seus problemas tenham solução sempre que as
Políticas de Salvaguarda não sejam devidamente respeitadas.
Actualmente, o Banco Mundial iniciou um processo para actualizar e consolidar o seu
Quadro de Políticas de Salvaguarda, pois o sistema actual é considerado complicado e
moroso. Este processo deverá estar concluído em 2012. Enquanto a actualização das
políticas é inerentemente uma boa ideia, há uma preocupação entre as organizações da
sociedade civil que, sob o disfarce da "desobstrução do sistema", haja o risco de minar
o actual quadro regulamentar, em vez de o reforçar e alargar.
A International Finance Corporation (IFC), ramo importante do sector privado do Banco
Mundial, tem uma Política de Sustentabilidade e Padrões de Desempenho distintos para
os seus clientes do sector privado, que acaba de sofrer uma grande revisão
6
.
Tanto as Políticas de Salvaguarda como os Padrões de Desempenho abrangem apenas
a área, cada vez menor, de projectos de financiamento tradicionais. No caso da IFC,
por exemplo, 47% dos seus actuais empréstimos é agora canalizado através de
4
Para obter informações detalhadas sobre o acesso às informações, por favor consulte-se
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/PROJECTANDOPERATIONS/EXTINFODISCLOSURE/0,,menu
PK:64864911~pagePK:4749265~piPK:4749256~theSitePK:5033734,00.html , Acedido em 13 de Maio de
2011.
5
Para uma lista de Políticas de Salvaguarda, veja-se
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/PROJECTS/EXTPOLICIES/EXTSAFEPOL/0,,menuPK:584441
~pagePK:64168427~piPK:64168435~theSitePK:584435,00.html, Acedido em 13 de Maio de 2011.
6
Para informações adicionais consulte-se
http://www.ifc.org/ifcext/media.nsf/content/SelectedPressRelease?OpenDocument&UNID=0ADE5C1923D
C4CF48525788E0071FAAA. Acedido em 13 de Maio de 2011.
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intermediários financeiros, que não estão sujeitos ao mesmo grau de escrutínio
ambiental e social. Quanto ao financiamento do sector público do Banco Mundial, cerca
de 50% é actualmente dedicado a conceder empréstimos para reformas macro-políticas
e apoio directo ao orçamento de governos de países em desenvolvimento. Estes
empréstimos estão isentos de considerações sobre o impacto ambiental e social.
O Preço das Isenções
O ambiente é mais do que um sector específico. É transversal aos vários sectores, pois
as actividades, tanto ao nível de projectos como ao nível da macro-política, têm
impactos no meio ambiente e nos recursos naturais. Enquanto o Banco Mundial tinha
prometido incluir o ambiente na sua esfera de actividade, assegurando que as
preocupações ambientais seriam incorporadas em toda a sua carteira de actividades
7
,
as políticas de salvaguarda ambiental e social apenas foram aplicadas a operações
específicas de investimento.
O ajustamento estrutural, que surgiu em força na década de 1980 quando a
combinação da queda dos preços das mercadorias e o crescente défice do sector
público levou à escalada de contracção davida por parte de muitos países, é um caso
a apontar. Os empréstimos foram concedidos em troca da adopção, por parte dos
governos, de um conjunto de reformas-padrão de política económica, onde se incluíram
a desregulamentação, a privatização, a e a liberalização do comércio, e que ficou
conhecido por Consenso de Washington. Todas estas medidas de reforma económica
têm implicações ambientais e sociais que não foram adequadamente avaliadas e
levadas em consideração.
Um exemplo seria a diminuição do papel do Estado nas economias nacionais apoiadas
por empréstimos de ajustamento estrutural. Uma consequência não intencional foi a
redução da capacidade nacional e local de gerir os problemas ambientais, tais como
lidar com a desflorestação e a poluição da água. Os potenciais impactos que este facto
teve nos meios de subsistência locais e de saúde pública não foram considerados
(Saprin, 2004).
Um relatório do Banco Mundial datado de 2000 reconheceu que os empréstimos às
reformas de políticas macro económicas orientadas para o crescimento tiveram um
impacto altamente negativo sobre as capacidades nacionais. "As décadas em se fizeram
ajustamento também assistiram a uma deterioração significativa da qualidade das
instituições públicas, à desmoralização dos funcionários públicos e ao declínio da
eficácia da prestação de serviços em muitos países" (Banco Mundial, 2000: 37).
O termo ajustamento estrutural foi substituído em 2004 pela noção de empréstimo
para políticas de desenvolvimento, alargando o Consenso de Washington de forma a
incluir institution-building, ênfase na boa governança e alertas sobre as forças
corrosivas da corrupção.
Terá isto contribuído para uma maior atenção para com a sustentabilidade ambiental?
De acordo com o Grupo Independente de Avaliação (IEG) do próprio Banco Mundial, tal
não aconteceu. Num relatório publicado em 2008, afirma que o Banco não tinha uma
perspectiva sistemática de sustentabilidade ambiental em toda a sua política e
7
Banco Mundial (1995). Mainstreaming the Environment, Washington, D.C.: 3.
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instrumentos financeiros. Acrescenta ainda que os Documentos de Estratégia de Luta
contra a Pobreza e outros de análise e/ou concessão de empréstimos não tinham
atribuído uma prioridade suficiente ao meio ambiente e à gestão dos recursos naturais
(Grupo Independente de Avaliação, 2008: 5).
A área de financiamento do comércio constitui um exemplo ilustrativo dos elevados
custos ambientais e sociais de isentar determinadas categorias de empréstimos do
Quadro de Salvaguardas. Por exemplo, a International Finance Corporation do GBM
concedeu empréstimos comerciais para apoiar empresas que exportam mercadorias
específicas, como o óleo de palma, que actualmente tem uma procura muito elevada
dada a importância crescente dos biocombustíveis na matriz energética de muitos
países. Os impactos ambientais e os direitos humanos deste tipo de investimento
tornaram-se tão problemáticos que, em 2009, o presidente do Banco Mundial Zoellick
estabeleceu uma moratória sobre os investimentos relacionados com o óleo de palma e
outras mercadorias cultivadas em grandes plantações de monocultura. Esta decisão foi
o resultado de uma auditoria realizada pela Provedoria da International Finance
Corporation na sequência de alegações por parte da sociedade civil de desflorestação
maciça e de violação de direitos humanos ligados ao apoio da IFC a uma instalação
comercial do Grupo Wilmar, uma das maiores empresas de plantação do mundo com
extensas explorações na Indonésia e na Malásia. A auditoria confirmou a negligência
grave da IFC, bem como a violação de normas ambientais e sociais: "Devido ao facto
das pressões comerciais terem dominado o processo de avaliação da IFC, o resultado
foi que as devidas avaliações ambientais e sociais não se realizaram conforme era
exigido”
8
.
Dificuldades na Implementação: Projectos de Investimento
As Políticas de Salvaguarda do Banco Mundial e os Padrões de Desempenho do IFC
aplicam-se ao financiamento de projectos tradicionais, tais como investimentos no
desenvolvimento de infra-estruturas e petróleo, gás e mineração. A seguir,
consideraremos sucintamente os investimentos no sector de energia e de apoio ao
REDD+, que ambos são particularmente sensíveis à problemática das alterações
climáticas.
Empréstimos ao Sector Energético
Os Relatórios Anuais mais recentes do Banco Mundial sublinharam as ligações
existentes entre as alterações climáticas e a pobreza. O relatório de 2009 afirmava que
"As Alterações Climáticas irão afectar mais gravemente as populações mais pobres e os
países mais pobres, potencialmente invertendo cadas de conquistas do
desenvolvimento..."
9
. O Relatório Anual de 2010 enfatiza novamente que as alterações
climáticas colocam os ganhos realizados na luta contra a pobreza, nas vidas e nos
meios de subsistência de biliões de pessoas em risco.
Actualmente, a abordagem às alterações climáticas tornou-se um dos estandartes das
actividades do Grupo do Banco Mundial (Banco Mundial, 2008). Os governos doadores
8
Compliance Advisor Ombundsman (CAO), Auditoria dos Investimentos do IFC no Wilmar Trading,
Relatório de Auditoria, Washington, D.C., 19 de Junho de 2009: 2.
9
Banco Mundial (2009). Relatório Anual 2009, Washington: 20.
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encorajaram este desenvolvimento, assumindo o compromisso de doar 6,1 biliões de
dólares adicionais aos Fundos de Investimento Climático geridos pelo Banco Mundial
em 2008
10
.
Esta bem-vinda mudança, que atribui maior importância às alterações climáticas, teria
constituído uma oportunidade única de reformar a carteira do Grupo Banco Mundial e
assegurar que todas as suas actividades de atribuição ou não de crédito o
consistentes com os objectivos de protecção climática. No entanto, se a nova Estratégia
sobre o Sector Energético da instituição, actualmente a ser preparada, contempla o
apoio crescente às pessoas pobres em termos de acesso à energia e ao
desenvolvimento baseado em baixas emissões de carbono, o Banco Mundial continua a
ser um importante financiador de projectos de combustíveis fósseis. Os empréstimos
aos projectos de carvão, o mais poluente de todos os combustíveis fósseis, atingiram
níveis recorde nos últimos anos
11
. A central eléctrica a carvão Medupi, situada na África
do Sul e a maior operação do Banco Mundial em África em 2010, constitui um dos mais
recentes e controversos investimentos do Banco Mundial.
A central eléctrica Medupi é financiada através de um empréstimo do Banco Mundial de
3,75 biliões de dólares à Eskom Holding, Ltd., uma empresa estatal sul-africana (Banco
Mundial, 2010: 20), que financia a central eléctrica a carvão que produz 4.800 MW,
sendo assim uma das maiores do mundo. O financiamento inclui ainda 200 milhões de
dólares para energias renováveis, o que constitui uma pequena fracção do investimento
total.
A fábrica Medupi usará carvão super-crítico, que queima o carvão de forma mais
eficiente do que as termoeléctricas a carvão normais. Mas isso não a torna uma "opção
de baixo carbono" e irá condenar a África do Sul a queimar carvão nas próximas
décadas. O próprio Banco estima que, trabalhando na sua potência xima, a Medupi
libertará 30 milhões de toneladas de CO
2
por ano, embora afirme que o aumento líquido
das emissões de CO
2
será consideravelmente menor, porque o projecto irá proporcionar
o acesso energético aos pobres e substituir geradores a diesel, velas e querosene
12
.
Mas as ONGs sul-africanas e as pessoas afectadas ainda não se mostraram
convencidas, tendo enviado uma queixa ao Painel de Inspecção do Banco Mundial, onde
afirmam que o projecto irá provocar poluição maciça e causar danos significativos na
sua saúde, modos de vida e no meio ambiente
13
. Além disso, consideram que o
projecto é um subsídio às grandes empresas, que pouco farão para fornecer energia às
populações locais. De acordo com Bobby Peek, Director da ONG GroundWork na África
do Sul, "Este projecto destina-se a garantir o fornecimento ininterrupto de energia às
grandes corporações, tais como fundições e indústrias de mineração a preços especiais
acordados secretamente. Não é para os milhões de pessoas pobres que não podem
10
Comunicado de Imprensa do Banco Mundial, 26 de Setembro de 2008,
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/NEWS/0,,contentMDK:21916602~pagePK:34370~piPK:344
24~theSitePK:4607,00.html Acedido em 19 de Maio de 2011.
11
Meinhard-Gibbs, Heike e Bast, Elizabeth (com Kretzman, Steve), World Bank Group Energy Financing
Energy for the Poor?, Oil Change International, Washington, Outubro de 2010, disponível em
http://priceofoil.org/wp-content/uploads/2010/10/ociwbgenergyaccessfin.pdf
12
Banco Mundial, Documento de Avaliação do Projecto (Project Appraisal Document), Relatório 53425-
ZA, Washington, 19 de Março de 2010: 49.
13
O pedido do Painel de Investigação encontra-se disponível em
http://siteresources.worldbank.org/EXTINSPECTIONPANEL/Resources/Request_for_Inspection_(PUBLIC).p
df. Acedido em 23 de Maio de 2011.
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pagar ou não têm acesso à electricidade. A África do Sul não precisa deste
empréstimo
14
.
O Painel de Inspecção do Banco Mundial realizou uma visita de campo inicial e
encontrou provas suficientes para justificar uma investigação alargada de possíveis
violações das Políticas de Salvaguarda Ambiental e Social
15
. A investigação deverá estar
concluída no final de 2011.
muitos anos que os investimentos do Grupo Banco Mundial em petróleo, gás e
mineração o objecto de controvérsia por causa da sua associação com a degradação
ambiental, violação dos direitos humanos e corrupção. A fim de solucionar alguns
desses problemas, em 2000, o Banco Mundial contratou a Extractive Industries Review
(EIR), dirigido por Emil Salim, um ex-ministro do Ambiente da Indonésia. A missão da
EIR era fornecer um conjunto de recomendações para orientar os investimentos do
Grupo Banco Mundial no sector extractivo, com o objectivo de garantir a sua
compatibilidade com a redução da pobreza e o desenvolvimento sustentável. O
relatório da EIR, publicado em 2003, recomendou a suspensão imediata de todos os
investimentos em carvão e uma eliminação gradual, de forma mais ampla, dos
investimentos em combustíveis fósseis. Além disso, apelou à melhoria do diálogo, ao
respeito pelos direitos humanos, aos processos participativos na tomada de decisões e
às boas práticas ambientais em projectos extractivos (EIR, 2003). Mas até à data, os
empréstimos à extracção de combustíveis fósseis, incluindo carvão, continuam a
desempenhar um papel dominante na carteira energética do GBM e as recomendações
do EIR continuam por implementar.
Numa escala mais ampla, o Grupo Independente de Avaliação (IEG) do GBM analisou a
sustentabilidade ambiental de uma carteira de investimentos do GBM de 400,000
milhões de dólares para os anos 1990-2007. A avaliação concluiu que, embora a
atenção para com o ambiente tenha aumentado ao longo desses anos, o Grupo Banco
Mundial o tinha posto em prática as considerações de sustentabilidade ambiental ao
conceder empréstimos para a construção de grandes barragens, agro-negócios,
gasodutos e outros projectos (Grupo Independente de Avaliação, 2008).
Mudanças Climáticas e Florestas: Oportunidades e Riscos do REDD+
A destruição das florestas tropicais representa aproximadamente 17% das emissões de
gases com efeito estufa gerados pela actividade humana. A ideia inicial do REDD
(Redução das Emissões da Desflorestação e Degradação Florestal) era que, ao
compensar os países em desenvolvimento pela diminuição das suas taxas de
desflorestação, criar-se-iam oportunidades rentáveis e de curto prazo para estabilizar o
clima mundial. Além disso, traria outros benefícios, tais como a protecção da
biodiversidade e a criação de rendimentos para o desenvolvimento económico
16
.
14
Bank Information Center (2010). Comunicado de Imprensa, "South Africans say ‘no’ to Eskom coal“,
Washington, 6 de April.
15
Declaração de Roberto Lenton, presidente to Painel de Inspecção. Disponível em
http://siteresources.worldbank.org/EXTINSPECTIONPANEL/Resources/Final_Elig_Rpt_for_Disclosure.pdf.
Acedido em 23 de Maio de 2011.
16
São vários os documentos sobre o REDD+ disponíveis no Center for International Forestry Research
(CIFOR) em URL http://www.cifor.cgiar.org.
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Compensar os países que reduzissem as suas taxas de desflorestação a partir de uma
dada base (a desflorestação que teria acontecido de qualquer maneira) corria o risco de
estimular incentivos perversos. Alguns governos poderiam ter decidido acelerar as
taxas de desflorestação nos seus países, a fim de se qualificarem para receber
pagamentos mais elevados. Para resolver este problema, REDD transformou-se na
REDD+, que também contempla a compensação de actividades que contribuam para a
conservação florestal, gestão florestal sustentável e aumento das reservas de carbono.
A REDD+ apresenta tantas oportunidades como riscos. As oportunidades são a abertura
de espaço político para abordar questões de governanção, corrupção e direito à terra,
bem como encontrar soluções para as causas subjacentes à desflorestação. Do lado de
risco encontram-se as questões de especulação imobiliária, a expulsão de populações
dependentes da floresta, a perda de sistemas de conhecimento tradicionais e a fraude e
corrupção resultantes da protecção de interesses que procuram lucrar com negócios de
carbono rentáveis. Além disso, o risco de que a procura endémica de aluguer em
países com sistemas de governanção pobres levará a que a REDD + ganhe pontos que
não representam reduções genuínas de emissões de CO
2
(Lohmann, 2009).
A Forest Carbon Partnership Facility (FCPF) do Banco Mundial é a iniciativa mais
importante de todas as relacionadas com a REDD+. Entrou em vigor em Junho de 2008
e consiste de duas partes: um mecanismo REDD-Readiness para preparar os países
para a REDD, e um Fundo de Carbono para encorajar transacções de financiamento de
carbono
17
. O Fundo de Carbono, que está programado para tornar-se plenamente
operacional em 2011, permitirá aos países participarem nos mercados globais de
carbono. O objectivo é que os países vendam as suas Reduções de Emissões (REs) a
compradores que sintam ser mais rentável comprar REs do que satisfazer as suas
próprias metas de redução de emissões através de meios tecnológicos ou outros.
O FCPF estabeleceu vários critérios que devem ser incluídos nos mecanismos de
Preparação do REDD+, incluindo consultas à sociedade civil e aos povos indígenas. De
acordo com a Carta do FCPF, as Políticas de Salvaguarda Ambiental e Social do Banco
Mundial incluem-se nas iniciativas de REDD+, embora haja ambiguidade relativamente
ao facto da salvaguarda se aplicar às fases de planeamento ou só mais tarde, durante a
implementação dos projectos (Forest Carbon Partnership Facility, 2011).
A Floresta da Bacia do Congo é a segunda maior depois da Amazónia e representa uma
das regiões onde o FCPF está a abrir caminho em termos da implementação do REDD+.
Um dos países clientes é a República Democrática do Congo (RDC), que abrange mais
da metade da floresta da Bacia do Congo. A RDC é um exemplo crítico de como as
preparações para a implementação do REDD+ na prática o difíceis. As instituições
são fracas e não estão presentes em grandes áreas do país. As questões relativas à
propriedade da terra, direitos de utilização de recursos e de partilha dos benefícios
decorrentes dos pagamentos do REDD+ continuam por resolver (Horta, 2009).
A República Democrática do Congo tem um historial muito mau de utilização do
rendimento da sua enorme riqueza de minerais e outros recursos naturais para fins de
redução da pobreza. As organizações da sociedade civil na região estão preocupadas
com o facto de a agricultura itinerante ser considerada um condutor primário da
desflorestação, enquanto a indústria madeireira e de mineração de larga escala são
17
Para mais informações sobre o website do FCPF consulte-se http://www.forestcarbonpartnership.org/fcp/
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deixadas à margem do problema. Poderemos estar perante um cenário no qual os
pobres serão culpabilizados pela desflorestação enquanto os benefícios do REDD +
revertem para os interesses poderosos.
Na RDC como noutros, sítios, senecessário um enorme esforço para garantir que os
rendimentos provenientes do REDD+ serão partilhados com as populações que vivem
nas áreas de floresta (Sunderlin et al, 2008).
A experiência do próprio Banco Mundial no sector florestal da RDC o é encorajadora.
Em 2007, o seu Painel de Inspecção investigou os investimentos florestais na RDC, e o
relatório concluiu que as actividades do Banco se concentravam na produção de
madeira industrial, tendo ignorado as questões ambientais e socioeconómicas, incluindo
as necessidades dos cerca de 40 milhões de pessoas que dependem dos recursos
florestais para subsistir (Painel de Inspecção, 2007).
Um problema central para o FCPF do Banco Mundial é que o seu calendário acelerado
para ajudar os países na preparação para o REDD+, e a participarem nos mercados de
carbono, não é facilmente conciliável com a necessidade de ampla participação e
fortalecimento das instituições nacionais, que exigem prazos mais longos.
Uma cultura empresarial em desacordo com a sustentabilidade
Tal como este texto procurou demonstrar, a agenda ambiental do Grupo Banco Mundial
continua por concluir. A falta de coerência política é ilustrada pelo papel crescente do
GBM no financiamento climático e, simultaneamente, pelo seu financiamento para o
desenvolvimento em larga escala de combustíveis fósseis, que condena os países em
desenvolvimento a elevadas emissões de gás com efeito estufa durante as próximas
décadas.
O Grupo de Avaliação Independente (IEG) do Banco Mundial documentou um programa
de investimento estático e problemático no sector energético, no qual os incentivos à
concessão de empréstimos extremamente necessários para a eficiência energética e
energia renovável não avançam (IEG, 2008: ix). A IEG também tem apelado para
avaliações ambientais e económicas de investimentos em energias mais rigorosas, bem
como à reformulação do sistema de incentivo internos do GBM.
Nas últimas duas décadas, os relatórios de avaliação do IEG, bem como as conclusões
e recomendações de ambos os Painéis internos e externos e Comissões, têm fornecido
valiosos contributos com o objectivo de melhorar a sustentabilidade ambiental das
operações do Grupo Banco Mundial. Mas o GBM tem principalmente percorrido um
caminho que tem sido alvo de sérias críticas (IEG, 2008: xxv).
Como explicar a falta de coerência entre o discurso oficial sobre o ambiente e as
decisões de financiamento real?
O problema central foi identificado em 1992 por Willi Wapenhans, um antigo Vice-
Presidente do Banco Mundial, que se referiu à "cultura de aprovação" (de empréstimos)
institucional como um obstáculo fundamental à melhoria da qualidade do crédito
concedido (Wapenhans, 1992). Os incentivos dados ao pessoal interno baseiam-se na
movimentação do dinheiro e não em resultados reais em termos de redução da pobreza
ou promoção do desenvolvimento sustentável. A falta de atenção prestada aos
resultados reais tem sido documentada em vários relatórios de avaliação interna, que
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têm consistentemente apontado graves deficiências no acompanhamento e supervisão
das operações apoiadas pelo GBM (OED, 2000; OED, 2002; IEG, 2008). Mas os
resultados da avaliação não levaram a mudanças significativas.
O ex-funcionário do Banco Mundial Steve Berkman descreve a situação numa
linguagem extremamente vivida: "Obcecados com a movimentação de dinheiro para
avançarmos nas nossas próprias carreiras, de alguma forma esquecemos as nossas
responsabilidades fiduciárias e a simples lógica antiquada, à medida que aprovámos
empréstimo após empréstimo, enriquecendo os corruptos e assegurando que os pobres
permanecem em situação de pobreza" (Berkman, 2010: 159).
As actuais mudanças geopolíticas a nível global, com o poder crescente da China, Índia,
Brasil e de outras potências em desenvolvimento, estão igualmente a fazer com que
estes países tenham um poder crescente no Conselho de Administração Executivo do
Banco Mundial. A importância das potências emergentes conduziu à implementação
de novas tendências, como o uso de sistemas do país, ou seja, a substituição das
Políticas de Salvaguardas do Banco Mundial pelas normas ambientais e sociais
existentes nos países mutuários. Isso poderia até ser positivo, desde que a
responsabilização pública seja integrada nestes sistemas. No entanto, se a abordagem
implícita nos sistemas dos países impedir a monitorização independente dos impactos
ambientais e sociais, então esse sistema i servir principalmente para mobilizar
grandes quantidades de dinheiro com fraca responsabilização dos responsáveis.
O desenvolvimento sustentável continuará a ser, em grande parte, evasivo, enquanto
as forças políticas e económicas que impulsionam práticas insustentáveis não forem
objecto de uma abordagem. Até que ponto os governos dos países desenvolvidos ou os
novos poderes no cenário global, com uma voz importante no Banco Mundial, irão
desenvolver a vontade política de combater as causas profundas dos problemas
ambientais que assolam o nosso planeta é uma questão que permanece em aberto.
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Korinna Horta
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 66-83
EUROPA - A GEOPOLÍTICA DA DESUNIÃO
José Manuel Freire Nogueira
email: nogueira.jmf@gmail.com
Major-General do Exército reformado.
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa (UNL).
Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Sociedade de Geografia de Lisboa
Resumo
Existem forças que actuando à escala do tempo longo e mantendo-se quase inalteradas,
imprimem traços nas sociedades e nas nações que as tornam mais ou menos propensas a
determinados comportamentos. Entre elas, está a geografia física que constitui como que o
palco da História e tem nela profunda influência. Os europeus de hoje enfrentam desafios
que resultam das suas próprias percepções e dos seus diferentes hábitos culturais, forjados
por séculos ou mesmo milénios de conflitos motivados pela religião, pelas visões tribais ou
pelas barreiras linguísticas, reforçados pelo relevo compartimentado, pela existência ou não
de grandes vias fluviais, ou pela benignidade ou pelo rigor do clima.
De facto, a união dos europeus que foi frequentemente tentada por via da força, encontrou
um novo alento com o fim da Guerra Mundial, numa construção pacífica sem paralelo
histórico. Mas, à medida que essa união se alargou e aprofundou, foi-se degradando o
cimento agregador que parece resistir mal aos ventos das crises. Reforçar aquilo que nos
une, apenas será possível se tomarmos consciência do que nos separa.
Portugal, país quase milenar e que desde cedo se autojustificou fora do espaço europeu,
enfrenta mais uma crise de sobrevivência. Compreender as possíveis saídas para além da
“espuma dos dias” e do politicamente correcto, é hoje um exercício de cidadania
.
Palavras-chave
Forças profundas; geografia e política; as várias “Europas”; pobreza e riqueza das nações
Como citar este artigo
Nogueira, José Manuel Freire (2011). "
Europa - A Geopolítica da desunião"
JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em
data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art3
Artigo recebido em Maio de 2011 e aceite para publicação em Outubro de 2011
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 66-83
Europa - a Geopolítica da desunião
José Manuel Freire Nogueira
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EUROPA - A GEOPOLÍTICA DA DESUNIÃO
José Manuel Freire Nogueira
Pareceu a muitos observadores desprevenidos, incluindo altos responsáveis políticos,
que, aquando do alargamento da União Europeia a Leste tornado possível pela
implosão do bloco soviético, tal representava o reencontro da Geopolítica com a
História da Europa. Volvidos quase vinte anos, o que vemos é uma realidade
multifacetada, em boa parte egoísta e nacionalista, ancorada em antigas raízes e que,
pelo contrário, parece apostada em voltar a demonstrar que, no continente europeu, o
encontro da Geopolítica com a História não tem, habitualmente, um final feliz.
De facto, hoje, o futuro da União Europeia parece bem mais sombrio do que então.
Basta ler os jornais ou ouvir as notícias para compreender que a crise financeira fez
ressurgir velhos egoísmos e a fé de muitos europeus no futuro da União está abalada
1
,
mais do que depois do “duche frio” que constituiu, ainda bem pouco, a rejeição por
franceses e holandeses, de um passo importante da construção europeia. Também hoje
vemos franjas importantes da população de algumas nações do Norte e também do Sul
duvidarem das vantagens da permanência numa união que lhes trás, a uns tantos
custos, e a outros tantos sacrifícios. No entanto, não há grandes razões para espanto.
Efectivamente, as sociedades são um produto complexo. Se, por um lado, os nexos de
causalidade são difíceis de estabelecer e por outro, a larga margem de indeterminação
que caracteriza todas as acções humanas as podem conduzir em várias direcções,
parece indiscutível que existe um conjunto de circunstâncias que, actuando à escala do
tempo longo, as modelam com determinados traços que, sem lhes determinarem o
rumo, as tornam mais ou menos propensas a determinados comportamentos. o as
forças profundas segundo a feliz definição de Pierre Renouvin
2
.
Entre elas aqui se incluem, além de algumas e nem todas das consideradas por
Renouvin
3
, outras, que embora não consideradas pelo historiador, parecem ao autor
como essenciais como enquadrantes da análise
4
: o elas a História (com os seus
mitos, as suas solidariedades, a sua auto-imagem, bem como as suas hostilidades), o
“Temperamento” (os hábitos culturais, o grau de rigidez da sociedade, a atitude
perante o poder e a adversidade), a Língua (verdadeiro genoma oral que, como alguns
sustentam, contribui para estruturar o pensamento), a Religião (com os seus códigos
de conduta, favorecendo certos comportamentos e valores, enquanto desfavorece
outros), as formas sociais infranacionais como o Clã, a Tribo e a Etnia (para as quais as
1
Entre muitos, citam-se os múltiplos comentários semanais do embaixador Cutileiro no Expresso e, em
particular a edição de 14 de Maio de 2011, onde um vasto número de articulistas dá largas ao seu
pessimismo, também as declarações do ex-chanceler Kohl ao receber o prémio Henry Kissinger da
American Academy de Berlim (Maio 2011), ou o que escreveu em Maio, José Ignacio Torreblanca, director
of the Madrid Office of the European Council on Foreign Relations (em www.german-foreign-policy.com,
acedido em 25-05-11
2
Renouvin, Pierre (1991). « Les Forces Profondes » in Introduction á L’Histoire des Relations
Internationale, Paris: Armand Colin, 4ª Ed.
3
Renouvin considerou como Forças Profundas, os factores geográficos, as condições demográficas, as
forças económicas e financeiras, o sentimento nacional, os nacionalismos e o sentimento pacifista.
4
Nogueira, José Manuel Freire (2011). O Método Geopolítico Alargado Persistências e Contingências em
Portugal e no Mundo, Lisboa: IESM.
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sociedades, mesmo as supostamente mais avançadas, regridem por vezes em períodos
de crise), às quais parece vantajoso juntar, além dos dados pertinentes da Geografia
Humana e dos aspectos fundamentais da conjuntura o cenário quase imutável onde se
desenrola a vida das sociedades, ou seja, a Geografia Física, bases do método de
análise geopolítico
5
.
A Europa é um excelente caso de estudo
Habitada milhares de anos por povos relativamente estáveis cuja história é
razoavelmente bem conhecida, é por demais evidente que a sua geografia política
radica em factores que a diferenciam de outras regiões do mundo mas igualmente se
traduzem em profundas diferenças internas. A História da Europa é, com efeito,
extremamente turbulenta e feita de regionalismos que resistem consistentemente aos
sonhos imperiais que, com alguma regularidade, ressurgem no seu palco. Com
excepção do império romano (que apenas dominou a bacia mediterrânica e a parte
temperada da Europa do Ocidente) ou dos Habsburgos que exerceram um domínio
relativamente fraco sobre a Europa Central, nenhum deles permaneceu para além do
efémero. Carlos Magno, Carlos V, a França dos séculos XVII e XVIII, Napoleão, Hitler,
todos eles à cabeça de impérios continentais, esbarraram na sede de autonomia
nacional ou mesmo local que parece caracterizar os europeus e que encontra uma
explicação, entre tantas outras, na tese do francês Castex do “perturbador
continental”
6
, em que se previa a derrota das pulsões hegemónicas continentais.
Não é, de facto, em vão que o feudalismo pôde persistir na Europa durante quase mil
anos, ou que a Alemanha tenha estado dividida em mais de trezentas unidades
políticas até à unificação do século XIX, e que a Itália apenas se tenha unido e
consolidado em período igualmente recente, ou que, mesmo hoje, a Europa seja o
continente que contém o segundo maior mero de Estados, apesar das suas
reduzidas dimensões. Não é também em vão que o moderno Estado-Nação tenha sido
inventado pelos europeus, invenção posteriormente exportada para o resto do mundo,
que a desunião e o cantonalismo parecem ser a matriz histórica dos europeus e a
guerra, uma das suas instituições mais perenes. Ódios e egoísmos nacionais (ou
mesmo locais) ressurgem quando pareciam apaziguados. Uma força profunda que é
perigoso ignorar.
Porque os europeus são profundamente diferentes uns dos outros. A sua matriz
cultural gerou-se num longo processo que lhes acentuou as diferenças. No Sul, a
benignidade da Natureza possibilitou o florescimento precoce da civilização. Numa
manifestação clara da teoria do “desafio e da resposta” enunciada por Toynbee
7
, o
europeu do Sul não teve que enfrentar os animais ferozes ou as agruras da Natureza,
pelo que a pressão para actuar em grupo foi muito inferior àquela que actuou sobre o
europeu do Norte, onde a sobrevivência individual dependia da força do grupo. Ainda
hoje, o individualismo egoísta e a desorganização são marcas do meridional, enquanto
5
Isto pouco, ou nada, tem que ver com o sentido corrente da palavra Geopolítica, termo que tendo sido
abusivamente apropriado por Henry Kissinger nos anos setenta do século passado – sem nunca o definir –
passou a ser uma espécie de sinónimo do uso do poder nas relações internacionais, gerando uma
confusão terminológica que apenas favorece a ignorância. Para isso já existia, e ainda existe, a Estratégia
ou no extremo, a Geoestratégia.
6
Castex, Raoul (1935). Théories Stratégiques, V, Paris.
7
Toynbee, Arnold (1934-1961). A Study of History, 12 volumes, Oxford University Press.
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a Norte impera a disciplina e a organização. O professor português Políbio de Almeida
(1932-2008) ao tentar definir o comportamento dos três grandes grupos étnicos
europeus (eslavos, germanos e latinos) salientava que o amorfismo próprio do
germano isolado termina quando ele se agrupa e assim, a associação que é para o
germano fonte de realização é para o latino, pelo contrário, motivo de desconfiança. O
individualismo deste último confunde-se com um certo orgulho, vaidade e desejo de
brilhar mesmo com prejuízo do grupo ao qual possa pertencer. Fazendo apelo à
geografia do sul da Europa como factor estruturante, Políbio de Almeida declarou
mesmo que a sociabilidade do latino se limita aos pequenos grupos e é avessa ao
planeamento centralizado
8
.
Os trabalhos do psicólogo social holandês Hofstede
9
revelam características
semelhantes, embora o façam segundo um ângulo diferente. A “distância ao poder”
(que, para ele, entre outras coisas, significava o grau de rigidez da sociedade em que a
influência do estatuto à nascença determina a posição social) seria, segundo ele, maior
nas sociedades em que predominou a tradição romana e menor naquelas em que se
manteve o igualitarismo germânico.
O que se terá passado em Inglaterra parece um clara demonstração dos argumentos
psicólogo social. Aí, as legiões chamadas pelo imperador Honório no ano 402 para
defender Roma acabaram por nunca regressar. A retirada, que se julgava temporária,
foi afinal, definitiva deixando os Bretões impotentes perante as incursões dos Saxões
e dos Anglos que, a partir da queda de Roma transformaram as suas incursões em
migração. A sociedade dos bretões desapareceu em pouco tempo, pois ao contrário de
outros pontos do antigo império, na Bretanha não terá havido assimilação entre os
romano-bretões e os novos senhores germânicos. Os vestígios da ordem romana foram
banidos, sendo substituída por uma sociedade germânica, mais primitiva mas mais
igualitária. Hofstede salienta que, entre os Germanos o poder do chefe era subordinado
à assembleia dos homens livres. Para o psicólogo social, um indicador histórico de
pequena distância ao poder. Muito mais tarde, em 1215, o rei João, em conflito com os
seus barões, outorgou a Magna Carta. Como salienta Hofstede, este documento,
considerado o fundador das liberdades inglesas, representa a vitória dos direitos dos
homens livres no seguimento da velha tradição dos povos germânicos
10
. A pequena
distância ao poder mergulharia assim profundamente na História de Inglaterra.
Da tradição romana derivaria também a elevada necessidade de “controlo da
incerteza” (necessidade de tudo prever e codificar) comum a todos os povos latinos
que existe em muito menor grau nos povos do Norte, onde além disso, são diferentes
dois outros factores igualmente postos em evidência por Hofstede: “individualismo”
forte no Norte (frontalidade nas relações e a aceitação de que existem ganhadores e
perdedores) bem como elevada “masculinidade” (com a glorificação da competição e
do sucesso, exigindo também a punição severa dos prevaricadores) que se opõe à
“feminilidade” (onde se evita o confronto e a humilhação) característica das sociedades
do Sul.
8
Almeida, Políbio de (1994). “A casa comum europeia” in Ensaios de Geopolítica, Lisboa: ISCSP: 211-216.
9
Hofstede, Geert (1980). Culture´s consequences: international differences in work-related values.
London: Sage Publications.
10
Hofstede, op. cit: 100.
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A ngua é outra marca distintiva. Embora derivadas do grande grupo indo-europeu, as
línguas europeias acabaram por divergir mais ou menos profundamente (processo
aprofundado pelas grandes migrações do primeiro milénio) de tal forma que o seu
linguajar cedo se tornou ininteligível mesmo para os seus vizinhos mais próximos,
desenvolvendo-se assim um “cantonalismo linguístico”
11
que reforçou as identidades
locais que, nalguns casos se vieram mais tarde a agregar em nações, por vezes
através da imposição duma língua comum. Daí a necessidade crescente de uma “língua
franca” para comunicação inter grupal que, regra geral, apenas esteve ao alcance das
elites, mantendo-se a ngua própria para a comunicação intra grupal. Tal foi o papel
do Latim, do Francês e é, hoje, claramente, o de um Inglês que, pela primeira vez está
ao alcance duma larga massa de indivíduos. Sintomaticamente, trata-se duma ngua
europeia mas, em que tudo se passa como se ela fosse de origem extra europeia,
que as razões da sua adopção se relacionam com o enorme poder dos Estados Unidos
de onde irradiam os modelos culturais, as modas, os critérios de gestão e o poder
militar. Note-se que a mesma língua, quando usada pelos britânicos num período em
que tinham poder semelhante ao dos norte-americanos de hoje (descontem-se a
ausência das facilidades de comunicação existentes hoje em dia) nunca teve um papel
relevante como internacional veículo de comunicação extra muros.
A religião, por seu lado, se forjou identidades, foi também motivo para as maiores
fracturas.
A matriz religiosa da Europa é, sem dúvida, judaico-cristã. O cristianismo, depois de
penetrar na sociedade romana, demorou apenas três séculos a difundir-se pelo mundo
mediterrânico e pelas zonas à beira das terras da oliveira e da vinha. Com efeito, o rito
católico está profundamente ligado ao pão (trigo), ao vinho (videiras) e ao azeite
(oliveiras), que o mesmo é dizer, a uma zona geográfica específica
12
. A sua expansão
para Norte obrigou mesmo à extensão das vinhas até à Bélgica e à Inglaterra, em
contradição com as exigências naturais da sua vegetação, para satisfazer as
necessidades da celebração da missa. Mas, como nota o geógrafo francês, Albert
Demangeon
13
, à medida que os transportes se tornaram menos onerosos, a cultura da
vinha não tardou a recuar em direcção aos locais mais de acordo com as suas
necessidades de vegetação e maturidade: O ensolarado Sul.
Muitos anos mais tarde, com o fim da Idade Média, a cristandade que obedecia ao
papa de Roma enfrentou profundas tensões que acabaram por se materializar numa
rotura que seguiu, aproximadamente, os antigos limites setentrionais do império
romano, uma muito antiga e forte linha de divisão cultural. A Norte dessa linha, regra
geral, a Reforma implantou o protestantismo e uma forma diferente de ver o Mundo,
sem obediência ao papado romano. Foi aí, com ritos muito mais simplificados e
austeros, não ligados à geografia mediterrânica, numa Europa mais rígida, mais fria
como não pensar na geografia? que se desenvolveu um tipo de sociedade que
acabou por ter um papel preponderante no Mundo. Max Weber, com razão ou sem ela,
quis mesmo ver nessa separação a razão do nascimento do espírito capitalista.
Segundo Weber, o protestantismo, ao santificar o trabalho e a vida diária em
detrimento da espera pela recompensa depois da morte, terá, juntamente com o
11
Ainda hoje coexistem com as línguas oficiais dos Estados, dialectos locais falados por pequenos grupos. É
o caso, em Portugal, do Mirandês, reconhecido oficialmente.
12
Chauprade, Aymeric (2003). Géopolitique, constantes et changements dans l’histoire, Paris: Ellipses: 298.
13
Demangeon, Albert (1952). Problèmes de Geographie Humaine, Paris: Armand Colin.
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avanço científico, contribuído para a “descriminalização” do lucro e a sacralização do
trabalho, opinião que completa com a observação de que quase todos os grandes
homens de negócios da Alemanha do seu tempo eram protestantes, particularmente
calvinistas
14
.
No Sudeste da Europa, uma terceira divisão, ela também fruto de antiquíssimas
fronteiras culturais resultante do Cisma do Oriente que, na sequência de insanáveis
conflitos entre o imperador do Oriente e o Papa que reflectiam o choque do mundo
greco-bizantino com o mundo latino-germânico deu-se o Cisma do Oriente que
separou desde 1054 e até hoje, as duas igrejas, ficando a igreja ortodoxa subordinada
ao Patriarca de Constantinopla. Quando a própria Constantinopla caiu sob domínio
turco (1453) a cabeça da ortodoxia transferiu-se para Kiev e depois para Moscovo.
Afinal, pelo menos, três, ou talvez mesmo quatro, “Europas”.
O papel das formas infranacionais de organização, mesmo das mais elementares, não
é menor. O clã, baseado em laços de parentesco, é um agrupamento humano
estruturado e básico que é simultaneamente, o mais antigo e o primeiro quando
territorializado a assumir um significado protogeopolítico. Nesse caso, é ao nível do
clã que se gera o primeiro relacionamento social entre o Homem e o seu território, por
outras palavras, é ao nível do clã que nasce o embrião da geopolítica. Sucessivamente
agrupado em tribos e em etnias, o clã ainda hoje se mantém nalgumas sociedades
humanas, como é o caso de algumas zonas de África, ou num exemplo bem conhecido
no Mundo Ocidental, nos célebres clãs escoceses que revelam, ainda hoje, um
surpreendente grau de coesão. A tribo, sendo menos coesa que o clã, já que resulta da
junção de vários clãs, contém o embrião da unidade política e como tal é considerada a
justo título. Efectivamente, as primeiras manifestações políticas tal como hoje as
entendemos um povo, uma chefia, um território coincidem com organizações
tribais. As tribos acabaram por se federar em nações. Mas foi um processo muito longo
e a coincidência das fronteiras nacionais com as fronteiras dos Estados é um fenómeno
relativamente recente. Direitos hereditários, históricos ou de conquista, sobrepuseram-
se demoradamente ao “direito dos povos disporem de si próprios”, sendo apenas na
esteira das modificações sociais e políticas espoletadas pela revolução francesa que se
iniciou a chamada “primavera dos povos”. Tido como causa primária de guerra (bem
expressa em vários dos célebres 14 pontos do presidente Wilson
15
) a não coincidência
do Estado com a Nação foi fortemente restringida após a Primeira Guerra Mundial,
quando o mapa político da Europa (e de outras partes do Mundo) foi redesenhado em
conferências internacionais. Mas, no Mundo contemporâneo, muitos Estados não o
constituídos por uma só nação e muito menos por uma etnia. Fora da Europa, é
certo, alguns Estados verdadeiras construções artificiais são mesmo constituídos,
directamente, por tribos cuja ligação é apenas a de um conglomerado.
Com efeito, quando artificialmente agrupadas em Estados, muitas etnias o resistem
às tensões sociais, demográficas, políticas e religiosas que se vão desenvolvendo, por
vezes independentemente da vontade dos homens. A História incluindo a
contemporânea está recheada de conflitos inter-étnicos. Mas a profunda resistência
das formas primitivas da organização humana, é bem melhor demonstrada nos locais
14
Weber, Max (2001). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Barcarena: Presença (orig. de 1920).
15
Snell, John L. (1954). "Wilson on Germany and the Fourteen Points", in The Journal of Modern History,
Vol. 26, No. 4, The University of Chicago Press, Dec: 364-369.
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onde o Estado se revela demasiado frágil para cumprir as suas funções básicas os
Estados falhados e onde a sociedade regride às suas identidades mais primitivas,
sejam elas a etnia, a tribo, ou mesmo o clã. O estilhaçar da antiga Jugoslávia, ou mais
recentemente, os acontecimentos na bia, constituem uma demonstração
desanimadora para todos os que acreditavam na marcha inexorável do progresso.
Finalmente, a geografia sica e dentro dela, em primeiro lugar, os factores climáticos.
O historiador David Landes discorreu longamente sobre o tema
16
. Segundo ele, a
Europa, particularmente a sua parte ocidental, goza de condições privilegiadas: os
Invernos são suficientemente frios para impedir a propagação das doenças e
suficientemente suaves para um bom equilíbrio entre o Homem e o meio. A
pluviosidade distribui-se ao longo do ano, criando condições de fertilidade que
dificilmente se encontram em outro lugar. Teria sido mesmo este fornecimento
uniforme e moderadamente abundante de água que, conjugado com baixos índices de
evaporação, livraram os europeus da tirania prevalecente, designadamente, nas
“civilizações fluviais”, onde as indispensáveis obras de irrigação geraram poderes
centrais e autoritários que a Europa não conheceu.
Estas condições excepcionais favoreceram os europeus com colheitas boas e
relativamente uniformes, conjugados com grandes rebanhos e densas florestas. Desta
conjugação quase única, nasceram civilizações sedentárias que criavam gado que se
veio a revelar maior e mais forte do que no resto do Mundo, além de produzir
fertilizante natural mais saudável do que aquele, à base de fezes humanas, que era
utilizado na Ásia. O poderoso cavalo europeu foi, assim, capaz de arcar com o pesado
cavaleiro medieval, irresistível numa carga e durante muitos anos imbatível num
combate convencional
17
. Foi também a força do animal europeu que permitiu mais
eficazes trabalhos pesados e o transporte de bens, tal como, mais tarde mas de
enormes consequências, o reboque de artilharia para o campo de batalha.
Em consequência, os europeus tiveram acesso a uma dieta mais rica, crescendo cada
vez mais fortes e relativamente livres dos vermes que atormentavam a China e a
Índia. Mais fortes, portanto, não os animais mas também os homens. O domínio
europeu que mais tarde se estendeu pelo mundo, deveu-se, em grande parte, às
desigualdades da natureza.
Mas esta pujança resulta também de outros impulsos. Paul Kennedy, o prestigiado
autor da “Ascensão e Queda das Grandes Potências” salienta que, no princípio do
século XVI nada faria supor que os pequenos Estados da Europa Ocidental se viessem
a impor aos grandes centros de poder de então: a China Ming, o império Otomano, o
império Mongol, a Moscóvia e o Japão. Teria sido a ausência de uma autoridade central
única – para Kennedy um feliz resultado da queda do império romano e da das
características geográficas recortadas e compartimentadas da Europa, onde não
existem grandes planícies a dominar ou bacias hidrográficas gigantes rodeadas de
zonas férteis capazes de impor um pensamento uniforme que teria sido responsável
pelo enorme grau de liberdade e pelos relativamente poucos entraves à mudança que
16
Landes, David S. (2005). A Riqueza e a Pobreza das Nações Porque são algumas tão ricas e outras tão
pobres, Lisboa: Gradiva, 7ª Edição (ed. orig. de 1998).
17
Detiveram, nomeadamente, a investida muçulmana em direcção à Europa central que utilizava os
ligeiros cavalos árabes – na batalha de Poitiers em 732. Em 1187, os muçulmanos tiveram a sua desforra
quando os cavaleiros de Saladino, montados em ligeiros corcéis, destroçaram em Hattin uma força de
cruzados, montada em pesados cavalos blindados que tinham transportado os seus pesados cavaleiros
durante todo o dia sob um sol abrasador.
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teriam produzido a espiral de progresso científico e cnico que conduziu à supremacia
do Ocidente
18
.
Com tais ferramentas, não é de espantar que, durante um período bastante alargado a
Europa tenha dominado o Mundo. No entanto, a pujança dos europeus virou-se contra
eles próprios e serviu também para acicatar as suas rivalidades. Como mesmo um
superficial olhar sobre a História demonstra, os povos da Europa parecem nunca ter
aspirado a amplas uniões.
Tendo já sido discutidos os aspectos não geográficos e climáticos (embora fortemente
influenciados pela geografia física) que parecem estar na base de tal situação, chegou
a vez de olhar para a geografia sica, cuja perenidade não deixa de se manifestar um
pouco por todo o lado na Europa como, aliás, no resto do mundo onde continua a
actuar como força profunda. Não será demais notar que junto da Europa se encontram
ilhas de grandes dimensões cuja massa crítica foi suficiente para gerar nações
insulares, com o seu pico sentimento de excepção e de isolamento. Particularmente,
a Grã-Bretanha que foi sede de poder marítimo, materializando a superioridade
europeia enquanto se mantinha à ilharga do continente.
Na Europa existem, igualmente, uma série de grandes penínsulas e é sabido que estas
têm tendência a autonomizar-se do continente
19
ou mesmo a unir-se politicamente
20
.
De facto, todas as grandes penínsulas da Europa albergam, desde longa data, um ou
mais Estados independentes, este último caso justificado por barreiras geográficas
(caso da Escandinávia) ou culturais (caso da península Ibérica). Abertas ao Atlântico ou
ao Mediterrâneo, todas elas foram sede de poderes marítimos, com a mentalidade
típica destes poderes que, cerca de 2500 anos, tinha chamado a atenção do
historiador grego Tucídides
21
e que se diferencia fortemente da mentalidade continental
que prevalece na Europa nuclear.
Igualmente, a orografia da Europa é caracterizada pela profusão de cadeias
montanhosas que, ou compartimentam o espaço (entre tantos outros, o caso dos
Pirinéus), ou constituem zonas de estabelecimento de povos montanheses (caso da
Suíça). Em qualquer dos casos, constituíram durante milénios barreiras sicas à fácil
circulação, facilitando também a defesa e inviabilizando assim os grandes impérios. São
também originadoras de verdadeiros “cantões culturais”, já que a cultura montanhesa
tende a diferir daquela que, normalmente, predomina na planície. Foi, entre outras
razões, esta orografia que permitiu que pequenas – por vezes pequeníssimas!
unidades políticas subsistissem até hoje. São marcas que o progresso acabará talvez
por esbater, mas que é ilusão ignorar.
As bacias fluviais da Europa têm também o seu papel, bem demonstrado pelos
geógrafos alemães da primeira metade do século XX. Não existindo um grande rio
estruturante como o Nilo, o Eufrates, ou o rio Amarelo, os poderes e a riqueza da
Europa concentraram-se ao longo de rios grandes rios navegáveis que possibilitaram
18
Kennedy, Paul (1987). The Rise and Fall of the Great Powers, New Yokr: Random House: 3-30.
19
Ratzel, Friedrich (1987). La Géographie Politique, Fayard: 107.
20
Chauprade, Aymeric, op.cit: 126-153.
21
Tucídides (2010). História da Guerra do Peloponeso, tradução de Raul Rosado Fernandes e Grabriela
Granwher, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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a circulação de bens a baixo preço. O Danúbio tem Viena, o tem Milão, o Reno tem
Amesterdão e Frankfurt e o Tamisa tem Londres
22
.
Mais uma vez, a geografia separa o Norte e o Sul da Europa que, com excepção do vale
do Pó, não possui nenhum grande rio utilizável pelo comércio. Como possível
consequência, os povos do Sul, quando desenvolveram o seu próprio comércio fizeram-
no à distância e por via marítima, desfavorecidos pela natureza que lhes não deu a
possibilidade de ligar os seus portos com o interior que, de outro modo, se poderia ter
desenvolvido. Deste modo, o Norte da Europa tornou-se mais urbano, industrial e
tecnocrático, enquanto o Sul tende a ser mais rural, agrícola e menos desenvolvido
industrialmente. Num mundo que privilegia os valores do Norte, o anteriormente
civilizado e refinado Sul fica, por agora, a constituir uma espécie de periferia.
Existem assim várias Europas” e, dentro delas, uma variada gama de Estados que,
tendo resistido às vicissitudes da História, mantêm ciosamente as suas prerrogativas
de Estados-Nação. Não faltaram as ambições de impor a unidade pela força. Mas
mesmo quando o seu poder militar era esmagador, todas esbarraram na rebeldia
daqueles que teimavam em ser autónomos.
As últimas duas grandes tentativas de cariz militar vieram da Alemanha e o seu poder
era tão forte que foram necessárias intervenções extra-europeias para repor a ordem
anterior ou pelo menos, algo que se lhe assemelhava. Também a mais recente
tentativa, desta vez não militar, teve na Alemanha um dos principais impulsionadores.
Um pouco de recuo analítico parece útil para a sua melhor compreensão.
Os alemães, tendo padecido em grande escala do “cantonalismo do tipo europeu” até
1870, começaram os passos para a sua própria unidade por uma união aduaneira que,
potenciando factores geográficos e culturais comuns, não tardou a produzir os
resultados desejados. Foi talvez um sucesso excessivo, na medida em que, a breve
trecho, a Alemanha se tornou na principal potência europeia (a população cresceu 65
por cento entre 1871 e 1914 e nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha
produzia duas vezes mais aço do que a Grã-Bretanha…
23
) não tardando a revelar
ambições hegemónicas.
Foi um sonho que correu mal e a Alemanha vencida foi obrigada a assinar o humilhante
tratado de Versalhes em 1919, uma chaga para o orgulho nacional alemão. O objectivo
de guerra, definido em Setembro de 1914 pelo chanceler Bethmann-Hollweg de formar
uma união aduaneira que fosse da França à Polónia e que afastasse do continente
europeu a Grã-Bretanha e a Rússia, e teorizado por Friedrich Nauman (1860-1919) em
1915 com o seu livro Mitteleuropa
24
, falhara totalmente.
Quando em 1926 a Alemanha foi admitida na Sociedade das Nações, o seu governo
pacifista, que lutava com profundas dificuldades internas e com os demónios do
revanchismo, não tardou (1929), pela voz de Gustav Stresemann
25
a propor a criação
dos Estados Unidos da Europa.
22
Zeihan, Peter (2010). STATFOR, 21 Dezembro.
23
Desfargues, Philipe Moureau (2003). Introdução à Geopolítica, Lisboa: Gradiva: 70-71.
24
Corresponde à Europa Central. No entanto, o conceito, além de prever o controlo político directo de quase
toda a região, preconizava um controlo económico por parte da Alemanha até ao Cáucaso (incluía
também a Ucrânia e os Balcãs) e que se poderia estender até Bagdade.
25
Gustav Stresemann (1878-1929), chanceler em 1923 e ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha
entre 1923 e 1929, foi prémio Nobel da Paz em 1926, conjuntamente com o seu colega francês Aristide
Briand, devido ao seu papel no Tratado de Locarno.
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Mas, nesse mesmo ano, o crash da Bolsa de Nova Iorque, ao mergulhar o Mundo em
enorme crise, calou também as vozes do bom senso e libertou os demónios do
nacionalismo e do racismo. Dez anos depois, o Mundo assistia ao desencadear da maior
hecatombe da História. Dela resultou, não nova derrota da Alemanha (de novo foi
necessário o Mundo para a vencer), como a ruína da Europa e o seu ocaso na cena
mundial.
Ainda durante a guerra, os juristas alemães construíram o que pensavam ser um novo
modelo de relacionamento entre os Estados. Nele, algumas das mais perenes e
negativas matrizes do pensamento germânico marcavam presença. Elaborado pelo
jurista Carl Schmitt (1888-1985) que dirigiu o Instituto de Guerra para a Política e
Direito Internacional, o projecto de Tratado entre a Alemanha, Itália e o Japão sobre a
configuração dos Grandes Espaços na Europa e na Grande Ásia Oriental, desenhava um
Mundo extraordinariamente diferente daquele que veio a ser criado pela Declaração de
S. Francisco e pelos princípios de Bretton Woods
26
.
Os Grandes Espaços seriam articulados em Comunidades de Estados, sob a orientação
dum Estado Director que se reservava o direito de impor, no seu interior, as suas
próprias concepções políticas. Nasceria assim uma entidade menos unitária que o
Estado mas mais coesa
27
. Abaixo do Estado Director de cada Comunidade de Estados
encontrar-se-iam Estados independentes, mas de soberania limitada. Em teoria, a
adesão destes Estados para a qual seriam convidados todos os Estados
geograficamente localizados no interior do Grande Espaço seria voluntária e regida
por um tratado bilateral entre o Estado Director e cada um dos Estados aderentes
(artigo 3º). As relações com os Estados não aderentes seriam reguladas pelo Direito
Internacional.
Numa antevisão interessante, o Tratado referia a existência e reconhecimento do
Direito Internacional, do Direito Interno dos Estados e criava dentro de cada
Comunidade de Estados uma nova figura: o Direito Comunitário. É claro que o
aproveitamento desta figura pelos inimigos da ideia de Comunidade Europeia,
escamoteia, justamente, a enorme diferença entre as duas concepções: a adesão à CEE
ou à UE resultou dum acto volitivo e não de uma imposição pela força, como muito
bem salientou Mario Losano
28
.
Apesar de todos os receios que um possível ressurgimento da Alemanha causava aos
seus antigos adversários, ou talvez por causa disso, quando surgiu a nova autonomia
política alemã a República Federal da Alemanha (RFA) os fundadores do Benelux,
juntamente com a França, a própria RFA e a Itália resolveram, em 1952, pôr em
conjunto os meios industriais que, tradicionalmente, sustentavam os aparelhos
militares, criando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), dando origem à
primeira das comunidades europeias.
No mesmo ano, os mesmos países tentaram ir mais longe e integrar os próprios
aparelhos militares. Foi assinado o Tratado de Paris que criava a segunda comunidade
europeia a Comunidade Europeia de Defesa (CED) que acabou por abortar ao ser
rejeitada pelo parlamento francês.
26
Note-se que a diferença é mais formal do que real. Os blocos político-estratégicos da Guerra-Fria tinham
o seu Estado Director e, muitos dos membros mais fracos, tinham, realmente, uma soberania limitada.
27
Losano, Mario G. (2006). “Il Mondo secondo Hitler”, in Limes. Rivista italiana di geopolitica, n. 5: 238.
28
Losano, Mario, op. cit: 248.
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Com isso, a importância da NATO saiu reforçada e, garantido o “escudo” norte-
americano, a Europa pôde dedicar-se ao desenvolvimento económico.
Em 1958, pelo Tratado de Roma, os 6 países da CECA assinavam o tratado da
Comunidade Económica Europeia (CEE) que, tendencialmente, criaria um espaço
económico comum. No mesmo ano, outro meio de fazer a guerra, o átomo, era
colocado em comum pelo tratado EURATOM, passando, assim, a existir, 3 comunidades
europeias. Desde aí a CEE não deixou de se alargar e aprofundar.
Tratou-se de uma construção sem paralelos históricos e cujos êxitos são inegáveis e
sem precedentes no continente europeu e cujos pressupostos se mantiveram até ao
terramoto político de 1989. Nunca tanta prosperidade e cooperação entre europeus
ocidentais foram possíveis durante tanto tempo. O conflito inter-estadual parecia
definitivamente afastado, para não falar da guerra.
Mas em 1989, o Mundo mudou. Como é habitual, na altura apenas se falou dos
“dividendos da paze dos radiosos amanhãs. O espectacular recuo da URSS cobriu a
profunda alteração que se deu na Europa. De facto, suscitando, embora, antigos
receios em França, no Reino Unido e na Rússia, receios que tinham motivado no século
XX, a “Triple Entente” em 1907, a cooperação franco-russa dos anos 30 e a partição e
ocupação da Alemanha após 1945 (Mitterrand chegou mesmo a acalentar o sonho de
cooperar com Gorbachev para impedir a reunificação alemã, sob o olhar complacente
da Sr.ª Tatcher
29
), a Alemanha reunificou-se, na esteira da queda do muro de Berlim.
Com um quadro internacional profundamente alterado, o projecto europeu que
começara por um grande “Zollverein” (designação da união aduaneira iniciada em 1834
na Alemanha sob a égide da Prússia e que acabou por facilitar a criação do II Reich)
embora com a finalidade de “pacificar” a Alemanha e tornar a guerra impensável, foi
mesmo transformado em União Europeia em Maastricht em 1992.
A impotência europeia perante a crise da Jugoslávia – a cacofonia começara logo com o
reconhecimento unilateral pela nova Alemanha reunificada da Eslovénia e da Croácia
empurrou os propugnadores da ideia europeia e do ressurgimento do velho continente
como um actor mundial, para novos saltos em frente. Os progressos teóricos obtidos
em Amesterdão, Helsínquia, Nice e, finalmente, em Lisboa, possibilitaram a criação
duma fachada de direcção política, duma caricatura de política externa comum, bem
como duma espécie de estrutura militar destinada a tarefas menores as missões de
Petersberg.
Se comparados com o grande êxito da CEE, as ambições de aprofundamento da União
não têm produzido resultados brilhantes. Ao incorporar uma gama muito vasta de
Países com tradições, culturas, interesses, fidelidades e hostilidades por vezes bem
diversas – e ao tentar alargar a sua acção para além da cooperação económica, a UE, e
perdoe-se a simplificação aqui efectuada para efeitos analíticos, enfrenta dois dilemas
básicos: ou executa a política acordada entre os seus membros mais poderosos, ou
devido à grande divergência de alguns interesses nacionais e regionais restringe-se,
por via de regra, ao consensual, ou seja, ao menor denominador comum
30
.
29
Kissinger, Henry (1996). Diplomacia, Lisboa: Gradiva: 100-102.
30
A analogia com a Confederação Helvética que mantém ciosamente a sua neutralidade, equilibrando as
forças centrífugas que, inevitavelmente, resultariam de um alinhamento que desagradaria a uma das suas
minorias linguísticas, tem ocorrido a muitos.
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Também o método, seguido até aqui na construção europeia decisão de “cima para
baixo”, excluindo as supostamente pouco esclarecidas massas parece ter atingido os
seus limites, que elas exigem crescentemente ser ouvidas, mas quando consultadas
inviabilizam frequentemente o aprofundamento da construção europeia, por vezes,
reconheça-se, apenas para “punirem” os seus governos nacionais. O que não facilita as
coisas, favorecendo, antes pelo contrário, a renacionalização das políticas e o renascer
dos egoísmos nacionais. grandes eventos unificadores parecem ser capazes de
ressuscitar a dos europeus, mas a realidade e a imaginação dos Homens teimam em
não os produzir.
Pelo contrário, a recente crise financeira veio pôr a nu uma série de fragilidades
estruturais e trouxe à superfície as várias “Europas” que subjazem às construções
teóricas. Simplificando muito para efeitos de análise (a realidade é demasiado
complexa e multifacetada para poder ser abordada num texto desta dimensão),
basicamente, uma Europa do Norte, fria, protestante e economicamente florescente
que, tendo tirado enormes vantagens da moeda única, vem recusando a solidariedade
àqueles que percepciona como os anárquicos países do Sul os quais, com a cegueira
característica dos que não valorizam a previsão e o planeamento
31
, viveram a ilusão de
ser nórdicos sem o ser e abdicaram dos seus mais elementares aparelhos produtivos,
adoptando também modos de vida que não são os seus, ao mesmo tempo que
delapidavam uma riqueza que não possuíam.
Uma terceira “Europa”, ainda mais continental e encravada, ainda e sempre temerosa
da Rússia (o peso da História e da posição geográfica) posiciona-se a Leste e tende a
subordinar-se aos interesses alemães, enquanto olha com preocupação para as
crescentes relações entre a Alemanha e a ssia que ressuscitam velhos espectros
históricos, parecendo acreditar bem mais na eventual protecção norte-americana do
que na solidariedade europeia e nos seus incipientes mecanismos de defesa
32
.
Receios que se não circunscrevem à Europa de Leste. Efectivamente, o que se passa a
nível planetário parece justificar todos os receios. , também as dificuldades parecem
favorecer velhos egoísmos e o regresso das políticas de poder que são delas um
inevitável corolário. Halford Mackinder teorizava em 1904, num texto clássico do
pensamento geopolítico
33
, que uma aliança entre a Alemanha e a ssia criaria tal
conjugação de poder que as potências marítimas se veriam excluídas da Eurásia.
Contra esse pesadelo o Reino Unido e os EUA se bateram na I Guerra Mundial e é
legitimo supor que foi para de novo o impedir que os Estados Unidos intervieram na
Europa a partir de 1942. A NATO, geopoliticamente justificada por Mackinder em
1943
34
, voltou a servir a mesma finalidade. Hoje, com uma escola geopolítica russa que
visa a reconstituição imperial e o renascimento dos panismos
35
, os europeus têm
evidentes razões para se preocupar de novo, em especial quando os EUA se parecem
desinteressar das questões europeias. Por quanto tempo?
31
Segundo o critério de Hall quanto à organização do tempo, as sociedades dividem-se em “monocronistas
“(onde a organização do tempo é sequencial e as actividades a desenvolver seguem um fluxo cronológico
e ordenado) e policronistas” (onde existe a tendência para realizar várias actividades ao mesmo tempo
sem ordenação prévia da sequência). Edward Hall, Understanding Cultural Differences - Germans, French
and Americans, Yarmouth, Maine, 1993
32
Friedman, George (2011). Visegrad: A new European Military Force, STRATFOR, 17 Maio.
33
Mackinder, Halford J. (1904). “The Geographical Pivot of History” in Geographical Journal 23.
34
Mackinder, Halford J. (1943). “The Round World and the winning of peace” in Foreign Affairs nº 2.
35
Dugin, Alexandr (2010). A Grande Guerra dos Continentes, Antagonista (original de 2005).
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Neste cenário, a Europa distrai-se com as questões financeiras e não lhe sobra nem
energia nem visão para cuidar da sua amachucada união. O alargamento deixou de
fazer parte da retórica e suspeita-se que existe a percepção de ele que traria mais
problemas que benefícios, que poderia importar para o seio da União fracturas e
rivalidades que poderiam tornar os problemas actuais em algo ainda mais espinhoso de
resolver. Assim, as velhas divisões tornam-se, de novo, muito claras e radicam, pelo
menos em parte, em factores culturais e geográficos que acima se procuraram
explicitar. Mesmo que se trate apenas de percepções e não de realidades concretas, a
diferença não é grande. esperança para a Europa ou os velhos fantasmas o
regressar?
O que se passa na Hungria (lembremos, igualmente, a cisão da Checoslováquia), na
Finlândia, na Dinamarca (que revogou unilateralmente o Acordo de Schengen) ou, de
forma diferente, na Bélgica grandes motivos para circunspecção. Não pela mão
de partidos nacionalistas, a etnia e a História regressam em força, mesmo na
Alemanha, onde se proclamou a falência do multiculturalismo e se promulgaram leis
de cidadania alemã que lembram períodos mais sombrios da História recente. Não
convirá esquecer que, em 1944, quando nem a propaganda podia escamotear o
calamitoso decurso da guerra para a Alemanha, um artigo intitulado “O fim da Europa?”
publicado na revista do MNE alemão Berlin Rom Tokio sublinhava que qualquer que
fosse a reorganização da Europa depois do conflito, a Alemanha continuaria a ser um
Estado Director ou Estado Guia, sob pena do desmembramento da Europa
36
.
Será a isso que estamos a assistir?
Ambos os Helmuth (Kohl e Schmidt), que governaram a Alemanha durante 24 anos,
temiam esse futuro. Convencidos de que os dirigentes que se lhes seguiriam (não
na Alemanha) se o lembrariam da guerra e voltariam aos nacionalismos do século
XIX, recomendavam que se acelerasse a construção europeia como panaceia contra
novo desastre. Schmidt ia mesmo mais longe: para ele, a Alemanha nunca deveria ter
armas nucleares, nem pertencer ao Conselho de Segurança da ONU, pois demonstrara
do que era capaz quando “deixada à solta”
37
.
Nem foi preciso tanto tempo. O egoísmo não tardou a vir à superfície. Logo em 1991,
durante a primeira Guerra do Iraque, o próprio Kohl recusou considerar um ataque
com mísseis sobre a Turquia como um ataque à NATO
38
, recusando a solidariedade que
faz a força de uma aliança. Pouco mais tarde, como referido, a Alemanha, sem
qualquer concertação com os seus parceiros, reconheceu unilateralmente a
independência da Croácia e da Eslovénia e foi-se convertendo a uma lógica de
favorecimento dos seus próprios interesses económicos, situação particularmente clara
nos Balcãs. A franqueza tem, no entanto, limites e em Maio de 2010, o presidente
Kholer foi obrigado a resignar após ter declarado, no Afeganistão, que a intervenção
das forças armadas alemãs tinha por objectivo proteger os interesses económicos
alemães
39
.
36
Losano, Mario, “Il Mondo secondo Hitler”, cit: 243-247.
37
Cutileiro, José (2010). “O Mundo dos Outros – Natal em Março” in Expresso, 23 Dezembro.
38
Huntigton, Samuel P. (1999). O Choque das Civilizações, Gradiva: Lisboa: 162.
39
New York Times-Europe, 31 Maio, 2010.
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De facto, é muito difícil contrariar as forças profundas que poderão apenas ser paciente
e persistentemente contornadas. Esta tem sido uma lição desanimadoramente difícil de
entender pelos que, ignorando-as, tal como as crianças na praia, constroem castelos
de areia convencidos de que estes poderão resistir à força da maré.
Num continente que inventou o Estado-Nação, que continua retalhado em ltiplas
soberanias
40
, onde o egoísmo dos cidadãos é expresso democraticamente e tem força
de lei, as uniões voluntaristas de topo têm dificuldade em vingar, embora,
naturalmente, nada seja impossível. O processo de construção europeia qualquer
que venha a ser o figurino em que venha, eventualmente, a estabilizar além dum
sonho mobilizador que ultrapasse as meras questões económicas (nunca está,
evidentemente, excluída uma nova agregação negativa pelo medo de terceiros),
precisa de tempo e pode ser conseguido à escala de várias gerações, exigindo
também que as finalidades sicas do Estado a Segurança e o Bem-Estar possam
ser exercidas num clima de acalmia, de pacífica convivência e de prosperidade interna.
É evidente que o futuro da Europa tem, no campo puramente teórico, várias soluções.
Sem pretender fazer aqui uma análise exaustiva de todas as possíveis variantes,
abordar-se-ão apenas três possibilidades: A primeira, apenas impensável alguns
anos, é do fim da União. Quer ela revista a forma do regresso puro às políticas
nacionalistas do século XIX, quer apenas se trate de restringir a União a um clube dos
mais ricos, dele excluindo as periferias, a tendência para o regresso, desta vez às
claras, do(s) Estado(s)-Director(es)
41
seria uma inevitabilidade. Sem dúvida que os
agrupamentos geopolíticos “naturais” seriam favorecidos por esta solução. Resta saber
o destino dos elos mais frágeis: Reduzidos a uma espécie de Estados de soberania
limitada ao pior estilo da visão de Carl Schimtt, poderiam tentar congregar-se entre si
em conjuntos geopolíticos naturais, embora tal futuro dificilmente seja realizável
devido às grandes diferenças que continuariam a existir entre eles. A pobreza é má
conselheira…Dentro do cenário anterior existe ainda a possibilidade da procura de
solidariedades externas, possibilidade que se crê mais realista para Estados com
ligações históricas extra-europeias. O Reino Unido (que não faz parte da moeda única)
é um claro modelo dessa possibilidade, com a sua ligação especial aos EUA e o seu
tradicional afastamento das políticas continentais, cujas hegemonias quase sempre
combateu. Um forte declínio europeu pode levar alguns Estados da actual União a
trilhar de novo os caminhos do passado.
Outra possibilidade é, obviamente, o aprofundamento da União segundo o modelo
federal, ultrapassando o modelo inter-governamental que tem revelado uma forte
tendência para o Estado ou grupo de Estados Directores, como afinal, almejavam os
“pais fundadores”. Essa solução talvez permitisse ir para além do Estado Pós-
Moderno
42
que, afinal na prática, perpetua a noção de que sendo os Estados iguais,
uns são-no mais do que outros. Ela poderia também responder à fraca solidariedade
que as várias “Europas” têm vindo a demonstrar umas com as outras e exigiria, pelo
menos, uma governação económica da União.
40
O nível de coesão, máximo no clã, diminui à medida que se alarga a escala social e é mínimo entre as
nações, nível em que, normalmente, o cimento agregador mais eficaz é a existência de um inimigo
comum.
41
Atente-se nas palavras do presidente Cavaco Silva em Outubro de 2011 na sua intervenção no Instituto
Universitário de Florença.
42
Conceito defendido, entre outros, por Cooper, Robert (2000). The Post-Modern State and the World
Order, Demos.
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Existe, no entanto, outra alternativa, esta fortemente provocadora, mas talvez,
igualmente, promissora: Insistiu-se anteriormente na força das formas infranacionais
de organização social. Não sem razão, que elas subjazem em todas as sociedades e
com Estados que são consabidamente grandes demais para as pequenas coisas e
pequenos demais para as grandes, os localismos tendem, embora noutro plano, a
ganhar força
43
. Talvez por isso mesmo seja necessário ultrapassar o Estado-Nação,
mesmo o pós-moderno, e voltar a alguma forma (as recorrências na História nunca
revestem a mesma forma) de tribo e aos localismos, os quais, duma forma, aliás,
confusa e tacteante vão emergindo sem uma lógica geopolítica que lhes dê, por
enquanto, coerência. Se aliarmos a isto a inegável alteração interna que as políticas
europeias provocaram no interior dos Estados, aos hábitos de livre-circulação, à clara
disputa do monopólio do poder dos Estados por grupos transnacionais, sejam eles
grupos financeiros, movimentos sociais ou de opinião, teremos talvez o cadinho fértil
que propicia a mudança.
Será que o continente que inventou o Estado-Nação poderá igualmente decretar o seu
óbito? Será que a cooperação é possível pelo consenso dos valores e da cultura, como
uma obra recente pretende, embora com enormes lacunas, ter sido, afinal, o modelo
prevalecente na Grécia Antiga
44
? Será que a paz é possível pelo simples consenso, pela
“interdependência complexa” (uma liberdade tomada aqui com as ideias de Nye e
Keohane
45
) e sem uma forte hegemonia tutelar? Ou será que, afinal, e dando razão
aos chamados pensadores da escola “realista”, as forças profundas condicionam de tal
forma a natureza humana que estaremos condenados a repetir-nos?
Importa agora reflectir, ainda que brevemente, sobre o papel de Portugal neste
tabuleiro de interesses cruzados. Portugal é um dos mais antigos países europeus e
certamente, o que de entre eles possui as fronteiras mais antigas. Nunca tendo sofrido
tentativas secessionistas – mesmo quando teve mais que um poder político eles
lutavam pelo mesmo poder central
46
pode bem dizer-se que possui um grau
invejável de coesão nacional, qualidade tanto mais notável quanto não radica em
nenhuma diferenciação geográfica marcante (se exceptuarmos a sua posição), mas
fundamentalmente em factores linguísticos e culturais. Mas a posição merece um
pouco mais de reflexão. Efectivamente, é a posição de Portugal que possibilitou
óbvio que não determinou) a vocação marítima, é da posição que resulta um clima
mais benigno do que na generalidade do mini-continente Ibérico e é da posição que
resulta que o país se tenha constituído muito cedo como uma plataforma de apoio aos
poderes marítimos que desde então, de uma forma mais ou menos directa o tutelaram.
Como país do sul, temperado embora pela forte influência da sua fachada atlântica
Portugal ostenta a maioria de todos os defeitos e qualidades dos povos do Sul,
nomeadamente o “Policronismo” (ligado ao tradicional “desenrascanço”). Classificado
por Hofstede entre os países em que reina a maior “Distância ao Poder”,
43
Tema referido por vários autores: Entre outros, ver o excelente ensaio de Roldão, Ana Margarida (2001).
“Da Europa das Nações à Europa das Regiões” in Informação Internacional, Análise Económica e Política,
Ribeiro, José Félix (coord). Ministério do Planeamento, Departamento de Prospectiva e Planeamento, vol
I: pp. 307-335, ou Chauprade, Aymeric Géopolitique, op cit: 810- 833.
44
Low, Polly (2007). Interstate Relations in Classical Greece: Morality and Power, Cambridge: Cambridge
University Press.
45
Keohane, Robert e Nye, Joseph (1997). Power and Interdependence: World Politics in Transition, Boston:
Little, Brown and Company.
46
Nogueira, José M. Freire (2004). As guerras Liberais Uma reflexão Estratégica sobre a História de
Portugal, Lisboa: Cosmos/IDN: 289-290
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“Feminilidade”, “Colectivismo” bem como grande necessidade de desenvolver
mecanismos de Controlo da Incerteza”
47
que segundo o psicólogo social radicariam na
herança romana foi, em determinado período da sua História, capaz de prosseguir com
notável constância e determinação uma expansão que ainda hoje espanta e
igualmente, capaz de lançar pontes interculturais e interétnicas que manteve até aos
dias de hoje
48
.
Persistentemente pobre em recursos naturais, viveu durante séculos da exploração dos
recursos dos seus territórios extra-europeus e quando tal possibilidade terminou, não
tardou a virar-se para a Europa, ao arrepio de uma tradição pluricentenária. Como
recém-convertido, prosseguiu com zelo os objectivos das políticas comuns tendo,
nomeadamente, ido mais longe que a maioria dos Estados europeus no
desmantelamento do seu sector primário, o que o coloca numa situação
particularmente vulnerável perante a crise por que passa a União.
Historicamente ligado ao mar, o país viu-se dirigido durante as últimas décadas
principalmente por antigos emigrados, cegos pela miragem europeia para quem o mar
representava o saudosismo do Império e assim, uma outrora relativamente numerosa
marinha mercante e pesqueira a que estava associada uma indústria de construção e
reparação navais desapareceu, talvez por muito tempo.
Recentemente, o país parece ter redescoberto o mar. Dotado de uma ZEE de enormes
dimensões que desperdiçou e cujos direitos estão em parte em mãos comunitárias
(art.º do tulo I Domínios e competências da União, Tratado de Lisboa), Portugal
pugna pela extensão da sua plataforma continental que, alimentando alguma
megalomania, multiplicaria o país por quarenta! Mas, por enquanto, a exploração de
tão vastos recursos é meramente retórica. De facto, multiplicam-se as declarações
políticas, os congressos e os artigos de opinião, mas faltam as acções concretas.
De um modo geral mal administrado e vivendo de empréstimos (uma tradição do
século XIX que entrou forte pelo século XX até ao Estado Novo, tendo sido retomada
pela III República…) o país não pode, de facto, sonhar com políticas independentes,
muito menos num domínio em que os apetites dos “Grandes” da Europa não deixará
de se manifestar. O grande Oceano, onde jazem riquezas incalculáveis, parece, assim,
destinado a constituir uma moeda de troca com outros apoios essenciais, venham eles
de onde vierem
49
.
De facto, Portugal parece o se sair muito bem de nenhum dos cenários de evolução
traçados. O fim da União não será certamente o fim de Portugal, mas a
renacionalização de algumas políticas levará, muito provavelmente, à associação. Se
um cenário tão catastrófico levar ao estilhaçar do Estado espanhol, um federalismo
Ibérico poderá, eventualmente, subsistir e com ele, um Estado que, pelo menos em
nome, será Portugal
50
. Mas esse Estado terá, talvez intactas, as suas ligações extra-
47
www.tamas.com/samples/.../Hofstede_Hall.pdf , acedido em 23-09-2011
48
Salientado, em especial pelo brasileiro Freyre, Gilberto (2001). Casa Grande e Senzala, Lisboa: Livros do
Brasil, ed. (original de 1933).
49
Uma análise aprofundada da Geopolítica de Portugal poderá ser encontrada em Nogueira, José M. F. O
Método Geopolítico Alargado, op it.
50
O embaixador Franco Nogueira anteviu uma situação deste tipo no livro em que se despediu da política e
até da vida. Escrevia então, “que um fracasso do Mercado Comum seria, antes de mais e desde logo, o
mercado comum ibérico, isto é um mercado comum entre dois parceiros muito desiguais, um dos quais,
sendo três ou quatro vezes mais forte, facilmente dominaria o outro. Seria o Mercado Comum Peninsular,
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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 66-83
Europa - a Geopolítica da desunião
José Manuel Freire Nogueira
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europeias, duma forma que nenhuma putativa nação hispânica pode igualar.
Poderemos dar a volta à História?
Talvez a melhor solução para Portugal seja o aprofundamento da União Europeia pela
via federal. se exprimiram as fortes reservas que este cenário merece do ponto de
vista da propensão geopolítica, mas ele não é, naturalmente impossível. Uma espécie
de “Arkansas” europeu (mas trazendo consigo um enorme espaço marítimo e
afinidades transcontinentais e garantidas as representações das minorias subjacentes a
um modelo federal) é obviamente melhor que um Estado exíguo
51
, ao qual poderemos
estar condenados com o fim do projecto europeu.
Na terceira hipótese, Portugal parece sair-se comparativamente melhor. Pelas suas
pequenas dimensões e coesão, o país seria uma região natural com suficiente massa
crítica numa Europa das Regiões, maior talvez do que aquela que hoje possui a Bélgica
na Europa das Nações.
Finalmente, e saltando para o reino da utopia, não podendo contrariar a geografia
física, o país poderá, apesar de tudo, estabelecer-se como parcela europeia duma
entidade pluricontinental, como aliás aconselhava o hábil Talleyrand ao conde Palmela,
durante a Conferência de Viena em 1815, a propósito do futuro estatuto do Brasil
52
. A
História está longe de ter terminado…
Ficam aqui mais interrogações que respostas, mas encontrá-las, com realismo,
recusando o determinismo e pensando “out of the box”, é a responsabilidade das elites
europeias de hoje, nela incluindo, evidentemente, as portuguesas. O falhanço pode
custar-nos, a todos, muitíssimo mais caro que aquilo que podemos pagar.
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51
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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 84-103
AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS INTRA-ESTADUAIS VIOLENTOS: O CONFRONTO ENTRE A
TEORIA E A PRÁTICA NO PROCESSO DE PAZ MOÇAMBICANO
Carlos Branco
email: branco.cmm@gmail.com
Major-General do Exército Português
Resumo
Este ensaio discute o papel das ONG na mediação de conflitos intra-estaduais violentos.
Com base na análise do processo de paz moçambicano, procurou-se perceber se os actores
informais e as ONG, em particular, seriam os mais adequados para mediar aquele tipo de
conflitos, conforme defendido por alguns. Contrariando aquela corrente de pensamento, o
autor defende que a diplomacia oficial ainda continua a ser a mais adequada para liderar a
mediação de conflitos intra-estaduais violentos. Nos casos em que se utilizam múltiplos
recursos (multitrack), como foi o caso moçambicano, os actores formais e os Estados, em
particular, continuam a desempenhar um papel decisivo e incontornável por disporem de
recursos não acessíveis aos actores informais. A diplomacia informal pode complementar a
formal, mas não a substitui, desempenhando sempre um papel secundário e de apoio
Palavras-chave
Organizações Não Governamentais; mediação de conflitos; estratégias de mediação; conflito
moçambicano; Comunidade de Santo Egídio; Track One and a Half Diplomacy; Track One
Diplomacy; Track Two Diplomcy; conflitos intratáveis
Como citar este artigo
Branco, Carlos (2011). "As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos
intra-estaduais violentos: o confronto entre a teoria e a prática no processo de paz
moçambicano”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art4
Artigo recebido em Dezembro de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2011
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As Organizações Não Governamentais na mediação de conflitos intra-estaduais violentos
Carlos Branco
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AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS NA MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS INTRA-ESTADUAIS VIOLENTOS: O CONFRONTO ENTRE A
TEORIA E A PRÁTICA NO PROCESSO DE PAZ MOÇAMBICANO
Carlos Branco
Introdução
As Organizações Não Governamentais (ONG) têm procurado nas últimas duas décadas
ampliar a sua intervenção no domínio da resolução de conflitos. Alguns autores
defendem uma actuação alargada à totalidade do espectro da resolução de conflitos,
desde a prevenção até ao peacebuilding, passando pela participação em processos
formais de mediação (Tongeren, 2005; Baharvar, 2001)
1
, aquilo a que Susan Allen Nan
designou por Track One and a Half Diplomacy (T1,5D) e que definiu como as
actividades de intermediação levadas a cabo por actores não oficiais nomeadamente
ONG - junto de representantes oficiais de um governo envolvido num conflito, com o
objectivo de promover a resolução pacífica do mesmo (Nan, 1999). A mediação do
processo de paz moçambicano que levou aos acordos de Roma, em Outubro de 1992,
na qual participou a comunidade de Santo Egídio é apontada frequentemente como um
exemplo daquilo que poderá ser a participação de actores informais, e das ONG em
particular, em processos de mediação formais.
Os defensores da participação das ONG em processos de mediação formais
argumentam que os instrumentos tradicionais de negociação, mediação e gestão de
conflitos falharam em conflitos intratáveis (Fisher, 1989; Saunders, 1997); a
diplomacia tradicional tem grandes limitações e não é adequada a este tipo de
conflitos; e, por isso, a solução encontra-se no recurso aos intermediários informais, os
quais são particularmente aptos para resolver este tipo de conflitos. O nosso
argumento é exactamente o oposto. Defendemos que a diplomacia oficial (T1D) ainda
continua a ser a mais adequada para liderar a mediação de conflitos intra-estaduais
violentos. Nos casos em que se utilizam múltiplos recursos (multitrack), como foi o
caso moçambicano, os actores formais e os Estados, em particular, continuam a
desempenhar um papel decisivo e incontornável por disporem de recursos não
acessíveis aos actores informais. A diplomacia informal pode complementar a formal,
mas não a substitui.
A participação das ONG em processos de mediação do tipo T1,5D tem sido
insuficientemente estudada. Procuraremos com este trabalho contribuir para o debate e
esclarecimento do tema, analisando a validade dos argumentos apresentados por
aquela corrente de pensamento. Para tal, recorremos às formulações teóricas sobre
mediação e estratégias de mediação desenvolvidas por Touval e Zartman (1985), que
confrontaremos com a análise do processo de mediação de paz moçambicano, por ser
recorrentemente utilizado como um exemplo daquilo que aquelas organizações podem
fazer no capítulo da mediação.
1
Nalguns casos designados erradamente por “negociação”. Negociação é uma relação a dois, enquanto
mediação é uma relação pelo menos a três.
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Este ensaio tem, assim, dois objectivos principais: em primeiro lugar, tentar perceber
se os intermediários informais e as ONG em particular, independentemente da sua
origem (internacional ou nacional), são o tipo de mediador mais adequado para
conduzir a mediação de conflitos intra-estaduais violentos; e, em segundo, no caso de
uma constatação negativa, verificar, à luz das formulações teóricas referidas, qual o
tipo de actor Estados e/ou Organizações Internacionais poderá ser mais apropriado
para mediar esses conflitos com base, em ambas as situações, na análise do processo
de paz moçambicano.
Para tal, começaremos por esclarecer o que são ONG, uma designação com vários
significados e que necessita, por isso, de ser clarificada; de seguida efectuaremos uma
apresentação dos postulados teóricos que nos servirão de referência para
compreendermos quais as possibilidades (capacidades versus limitações) das ONG,
Estados e organizações internacionais no campo da mediação; e, finalmente,
revisitaremos o processo de paz moçambicano, procurando explicar as razões do seu
sucesso e o comportamento dos diferentes intervenientes, à luz dos quadros teóricos
apresentados, as quais residem, do nosso ponto de vista, numa explicação bem mais
complexa daquela que é apresentada pelo mainstream, o qual atribui o mérito da
mediação à Comunidade de Santo Egídio.
Organizações Não Governamentais: uma Possível Definição
A importância das ONG no plano internacional tem-se intensificado nos últimos 20
anos, nomeadamente naquilo que geralmente se designa por resolução de conflitos.
Elas tornaram-se parceiros de primeira grandeza na resposta internacional às
emergências humanitárias, aos abusos e violações dos Direitos Humanos e aos esforços
de reconstrução e reconciliação das sociedades afectadas por conflitos ou desastres
naturais, que impedem o seu normal funcionamento
2
. Trabalham em muitos casos
como entidades subcontratadas pela ONU, pela UE e pelos governos. As grandes
diferenças entre algumas destas organizações (interesses, dinâmicas organizacionais e
filosóficas, capacidades, acesso aos órgãos de poder e de informação, recursos
económicos, etc.) têm dificultado uma definição consensual. Acresce-se o facto de as
fronteiras conceptuais serem por vezes de contornos pouco precisos. Nem sempre é
fácil distinguir, por exemplo, uma associação vica ou uma organização de caridade de
uma ONG.
No sistema das Nações Unidas, considera-se ONG qualquer entidade voluntária e sem
fins lucrativos organizada a vel local, nacional ou internacional, actuando por vontade
própria e dirigida por pessoas unidas em torno de um interesse comum
3
. Na verdade,
as ONG dedicam-se ao apoio e à protecção de sectores da sociedade negligenciados
pelos governos ou pelas instituições oficiais
4
. Por se tratarem de organizações privadas
2
O relatório da ONU sobre governança global difundido em 1995 estimava a existência de vinte e nove mil
ONG internacionais (ONGI). O número de ONG nacionais é incomensuravelmente superior.
3
Ainda sobre a definição de ONG ver também Gonçalves Pereira e Quadros (2000: 402) e Riquito (2001:
206). O Banco Mundial define ONG como "private organizations that pursue activities to relieve suffering,
promote the interests of the poor, protect the environment, provide basic social services, or undertake
community development" (Operational Directive 14.70). Num emprego mais lato, o termo ONG pode
aplicar-se a qualquer organização sem fins lucrativos independente de governos. As ONG são tipicamente
organizações que dependem, no todo ou na parte, da caridade ou do serviço voluntário.
4
Idem. A definição adoptada não inclui as associações profissionais, de comércio e as fundações.
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de voluntários, também poderão ser designadas desse modo (OPV)
5
. As ONG adquirem
personalidade jurídica por força do edifício normativo interno (Direito Privado e, em
alguns casos, Direito Administrativo) do Estado de origem. Embora uma ONG possa ter
uma vocação eminentemente internacional, a verdade é que a sua existência jurídica
está condicionada pelo reconhecimento de um Estado, não sendo pacífica a sua
personalidade jurídica em Direito Internacional.
No que respeita à categorização das ONG, as propostas avançadas pelos académicos
também não têm primado pelo consenso. Por exemplo, Weiss e Gordenker (1996: 20)
consideraram quatro tipos de ONG. O primeiro, o modelo mais ortodoxo, coincide com
aquele que apresentámos anteriormente, isto é, uma organização privada de cidadãos
separada dos governos mas activa em assuntos de natureza social, sem fins lucrativos
e de âmbito transnacional. Os restantes três tipos, também apelidados de “desvios
significativos”, por disporem de menor autonomia dos governos devem, por isso, ser
diferenciados daquilo a que comummente chamamos ONG.
O primeiro, as QUANGO, Quase Organizações Não Governamentais, dispõe de uma
relativa autonomia, que decresce em função da sua dependência financeira dos
governos. Incluem-se nas QUANGO as organizações contratadas pelos governos e que
lhe fornecem serviços especializados como é, por exemplo, o caso do International
Rescue Committee
6
; o segundo, as DONGO, Organizações Não Governamentais Criadas
por Doadores, é criado para fins muito específicos e concretos (por exemplo, a
desminagem no Afeganistão e apoio às Mulheres); e, finalmente, as GONGO,
Organizações Não Governamentais Organizadas por Governos, actuam como
verdadeiros agentes de políticas nacionais. Neste último caso, parece evidente a
actuação das ONG como lunga manus de um Estado, sendo difícil considerá-las como
ONG.
A ausência de consenso repete-se quando se trata de adoptar uma taxinomia.
Utilizando como critério de catalogação o âmbito da actuação
7
, podemos considerar
ONG que se dedicam ao alívio do sofrimento humano, à promoção da educação, aos
cuidados de saúde, ao desenvolvimento económico, à protecção ambiental, à
monitorização do cumprimento dos Direitos Humanos, à resolução de conflitos, etc.,
actividades que não se esgotam nesta lista (Aall, Miltenberger & Weiss, 2005: 89). Não
obstante a tremenda variedade, podemos classificar as ONG que trabalham em zonas
de conflito segundo quatro actividades principais: assistência humanitária, Direitos
Humanos, construção da sociedade civil e democrática e resolução de conflitos. Os seus
mandatos e actividades estendem-se pelas diferentes fases do ciclo de vida de um
conflito, isto é, ainda antes dos primeiros sinais de violência até à consolidação da paz.
8
5
Para outras definições de ONG ver, por exemplo, Weiss e Gordenker (1996: 18-21) e Aall (2000: 124).
6
Para mais informações sobre o International Rescue Committe consultar o sítio na Internet
http://www.theirc.org.
7
Como as ONG variam imenso quanto ao seu objecto, filosofia, conhecimento e âmbito de actividade é
possível classificá-las segundo várias tipologias consoante: a sua maior vocação para a ajuda de
emergência ou para o desenvolvimento; a sua inspiração religiosa ou secular; a prioridade (delivery ou
participation); ou a prioridade dedicada ao tipo de actividades que apoia (públicas ou privadas).
8
Ainda sobre esta matéria Ian Gary, por exemplo, classifica as ONG simultaneamente quanto ao método e
ao âmbito da sua actuação, considerando em ambos os casos duas categorias. Quanto ao método temos
as hands off, que desenvolvem actividades de bastidores, como seja prestar serviços de
aconselhamento, e as hands on que desenvolvem actividades no terreno. Quanto ao âmbito temos as ad
hoc com a função de conter o conflito e mitigar os seus efeitos; e as sistémicas com a função de intervir
no processo de transformação das mentalidades e das instituições. Ver Gary, I. (1996). “Confrontation,
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Serão objecto da nossa atenção as ONG passíveis de serem integradas no conceito
mais ortodoxo, independentemente de estarem organizadas a nível nacional ou
internacional. O vel a que se encontra organizada uma ONG não é despiciendo;
que atentar às implicações que isso pode ter na mediação de um conflito violento. São
entidades essencialmente diferentes em termos de recursos e de conhecimento das
sociedades afectadas pelos conflitos requerendo, por isso, um tratamento diferenciado.
As ONG nacionais emanam da sociedade civil e dispõem de redes de informação,
contactos e conhecimentos sobre a sociedade onde operam muito diferentes das
grandes ONG internacionais. O nosso estudo centra-se nas ONG que se dedicam
prioritariamente à resolução de conflitos, independentemente de poderem desenvolver
actividades noutros domínios
9
.
Mediação e Estratégias de Mediação
Antes de avançarmos na apresentação dos diferentes tipos de mediadores e estratégias
de mediação, há que esclarecer duas questões cruciais: em primeiro lugar, o significado
de Diplomacia de uma Via (T1D - mediação formal/oficial) e Diplomacia de duas Vias
(T2D - mediação informal/não oficial), para podermos averiguar se a T1D é substituível
com vantagem por outras formas de mediação como a T1,5D (já explicada) ou a T2D, e
se os Estados o substituíveis pelas ONG ou por outros actores informais, na gestão
de conflitos violentos;
10
e, em segundo lugar, a necessidade de adaptar aqueles
conceitos aos conflitos intra-estaduais. Em muitos casos não poderemos falar de
Governos mas o somente das lideranças das diferentes facções, as quais,
frequentemente, não ocupam quaisquer funções na hierarquia do Estrado.
O termo Diplomacia de uma Via (TD1) refere-se à diplomacia governamental oficial, ou
cnica da acção do Estado que reside essencialmente num processo onde a
comunicação de um governo se dirige directamente ao aparelho de decisão do outro"
(Lerche, S., Lerche, C. e Said, A., 1994), sendo conduzida pelos representantes oficiais
de um Estado e envolvendo a interacção com outro Estado (ou os dirigentes de topo
das facções litigantes). O termo Diplomacia de Duas Vias (T2D) tem a ver com
interacções não oficiais, informais entre membros de grupos ou de nações adversárias,
interacções essas orientadas para a resolução de conflitos
11
. A T2D é um domínio que
acolhe vários conceitos e expressões como seja a Resolução Interactiva de Conflitos e
as workshops de Resolução Analítica de Problemas, diálogo sustentado e os designados
processos de paz multinível.
A mediação do tipo T1,5D ocorre directamente entre mediadores não oficiais e os
decisores de topo das partes, mas também com elementos influentes da sociedade ou
do grupo em conflito. Com os decisores de topo, trata-se de mediação directa, consulta
e facilitação da designada resolução inter-activa de problemas levada a cabo por
Co-operation or Co-optation: NGO’s and the Ghanian State During Structure Adjustment”, in Review of
African Political Economy, 23 (68): 149-169.
9
Muitas das ONG que se dedicam prioritariamente a outros domínios de actuação que não a resolução
de conflitos, também se reclamam do direito de participar nesta actividade.
10
Utilizaremos neste trabalho a definição de gestão de conflito proposta por Zartman e que consiste na
eliminação da violência e de formas relacionadas com a violência para lidar com um conflito, deixando
que a sua resolução seja efectuada ao nível político. Por outras palavras, fazer com que manifestações
violentas sejam substituídas por manifestações políticas, para então se resolver, transformar e remover
as causas do conflito (Zartman, 1997: 11).
11
FISHER, R.J. (1997: 261).
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mediadores não oficiais; com os cidadãos influentes da sociedade procura-se facilitar a
resolução de problemas e/ou desenvolver medidas de confidence-building. Como
podemos verificar, as técnicas utilizadas pela T1,5D e a T2D são semelhantes e nalguns
casos as mesmas. Existe, contudo, uma diferença de relevo que separa os dois
conceitos, a qual se prende com a natureza dos actores envolvidos: no caso da T1,5D
os protagonistas das partes são os decisores de topo, enquanto na T2D são grupos
influentes na sociedade, ou que se espera que possam vir a sê-lo.
A teoria de Resolução de Conflitos consagra vários tipos de mediadores assim como
estratégias de mediação. É enorme a multiplicidade de actores que se podem constituir
como mediadores, desde indivíduos a título particular, representantes de governos,
personalidades políticas e religiosas de elevado prestígio, actores regionais, ONG e
Organizações Internacionais, grupos ad hoc e Estados, trazendo cada um deles para a
negociação os seus interesses, percepções e recursos (Bercovitch, 1997). A estratégia
de mediação a adoptar por um mediador reflecte sempre aqueles elementos, os quais
diferem substancialmente quer se trate de um indivíduo, Estados ou instituições e
organizações
12
. Tendo em conta o objectivo do trabalho, dedicaremos a nossa atenção
apenas às características de mediação formais levadas a cabo pelos Estados e pelas
instituições/organizações - nas quais se inserem as organizações regionais e
internacionais - e informais levadas a cabo pelas ONG.
Das várias tipologias de estratégias de mediação propostas pelos académicos,
adoptámos a que foi desenvolvida por Touval e Zartman e que considera três
categorias de comportamento, a serem considerados de forma ascendente e gradativa
e que conseguem descrever de uma forma compreensiva as acções dos mediadores:
comunicativas, formulativas e manipulativas (Touval e Zartman, 1985). A adopção de
uma determinada estratégia o significa que se implementem todas as tarefas que ela
consagra. Bastam algumas delas. As estratégias de nível superior incluem normalmente
tarefas das estratégias de nível inferior.
Nas estratégias comunicativas, o mediador pode comportar-se de uma ou mais das
seguintes formas: estabelecer contactos entre as partes, ganhar o seu crédito e
confiança, procurar formas de as pôr em contacto, identificar os assuntos e os
interesses subjacentes à disputa e ajudar a clarificar a situação. Neste tipo de
estratégia os mediadores evitam tomar partido, procuram criar empatia com os
litigantes e proporcionar-lhes informação importante que aqueles não disponham.
Poderão também transmitir mensagens entre as partes, encorajá-las a iniciarem uma
comunicação substantiva e permitir que os interesses de todas elas sejam objecto de
discussão.
As estratégias formulativas são mais exigentes do que as comunicativas, tanto para
os mediadores como para as partes. Para além de alguns comportamentos típicos das
estratégias comunicativas, os mediadores formulativos podem escolher os locais das
rondas negociais, controlar o ritmo e a formalidade das mesmas (o regimento),
controlar o envolvimento físico subjacente às negociações; assegurar a privacidade da
mediação, sugerir procedimentos, sublinhar interesses comuns das partes, reduzir
tensões e controlar os momentos em que as reuniões devem ocorrer. Segundo esta
lógica de actuação, o mediador que adopta uma estratégia formulativa deve lidar, em
12
Considera-se estratégia de mediação, um plano, uma abordagem ou um método que um mediador giza
para resolver uma disputa (Kolb, 1983: 24), in Bercovitch, op. cit.: 136.
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primeiro lugar, com assuntos simples, estruturar a agenda, ajudar a estabelecer as
condições que permitam construir um resultado aceitável pelos litigantes; ajudá-los a
salvar a face (quando for caso disso), manter o processo negocial centrado nos
assuntos críticos não o deixando resvalar para quezílias supérfluas e secundárias,
efectuar propostas e sugestões substantivas e sugerir concessões que as partes
litigantes possam ter de fazer.
No topo das estratégias encontramos as manipulativas, as mais exigentes das três
tanto para os mediadores como para as partes. Para além do que já foi mencionado
relativamente às duas estratégias anteriores, os mediadores manipulativos podem ter
ainda a responsabilidade de manter as partes à mesa das negociações, exercer a sua
acção de modo a alterar-lhes as expectativas quanto aos termos de um possível acordo
e, ao mesmo tempo, consciencializá-las do custo da ausência do mesmo. O mediador
manipulativo é também responsável por fornecer e filtrar a informação a dar; ajudar a
desfazer compromissos anteriormente assumidos; recompensar as partes pelas
concessões que efectuem, e pressioná-las para serem flexíveis, prometendo-lhes
recursos ou ameaçando terminar com o processo negocial; oferecer-se para verificar o
cumprimento dos acordos; adicionar incentivos ou ameaçar punições, e ameaçar
retirar-se da mediação.
A opção de adoptar um determinado comportamento ou seguir uma estratégia de
mediação e não outra, não é obra do acaso. É influenciada por factores próprios do
conflito e do mediador. São muitos os factores que podem determinar a escolha de
uma estratégia. Mas para serem eficazes, a estratégia de mediação e o comportamento
do mediador devem estar em consonância com os seus interesses e a natureza do
conflito (Bercovitch, 1997). Segundo Bercovitch, a prática tem demonstrado, por
exemplo, que as estratégias de mediação comunicativas tendem a ser mais eficazes em
conflitos de baixa intensidade, enquanto que as estratégias manipulativas em conflitos
de alta intensidade
13
. Mas por outro lado, para serem eficazes, as estratégias de
mediação, para além de reflectirem a realidade do conflito, têm igualmente de espelhar
os recursos do mediador. Não é mediador manipulativo quem quer, mas sim quem
pode.
Apesar da comunidade científica não reunir consenso sobre as estratégias de mediação
mais eficazes uns argumentam que o as estratégias de comunicação facilitação
(Burton, 1969; Kelman, 1992) –, os dados estatísticos indicam que estratégias de
mediação mais musculadas do tipo formulativo manipulativo (Touval e Zartman,
1985) são as que produzem melhores resultados.
Bercovitch analisou também as características de três categorias de mediadores:
indivíduos, Estados e instituições/organizações. Os mediadores individuais
representam-se a si mesmos (académicos, ex - chefes de Estado, figuras proeminentes
de organizações internacionais, etc.), não representando oficialmente nada; não são
membros de um governo nem detêm cargos políticos. A mediação informal inicia-se
normalmente quando os mediadores se envolvem num conflito por sua própria
iniciativa. Agindo a título individual, a actuação destes mediadores baseia-se
exclusivamente em estratégias de comunicação e de facilitação
14
, preocupando-se
fundamentalmente com a qualidade da interacção entre as partes e com a criação de
13
Idem: 138.
14
Ibidem: 140.
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um ambiente propício para a gestão do conflito
15
. Este tipo de mediação poderá ser de
extrema utilidade para apoiar uma futura mediação formal abrindo em muitos casos as
portas a conversações formais. As sugestões e ideias que surgem na T2D podem ser
levadas para a mesa de negociações da T1D.
Quando se fala de mediação levada a cabo por Estados, que começar por distinguir
entre pequenos e grandes. Devido à sua reduzida dimensão e presumível falta de poder
ou influência, os Estados pequenos não representam uma ameaça para as partes e
encontram-se geralmente bastante bem posicionados para mediar esperando,
normalmente, ser convidados para tal. Quando intervêm, tendem a confinar a sua
actuação a conflitos regionais, e as suas estratégias tendem a ser, na maioria dos
casos, estratégias baseadas no diálogo e na comunicação. Os Estados pequenos são
muito úteis neste tipo de mediação
16
.
Para os grandes Estados, a motivação para mediar é normalmente diferente; usam a
mediação como um veículo para proteger ou promover os seus interesses.
17
Ao
disporem de uma grande panóplia de recursos, a amplitude de estratégias à sua
disposição aumenta, podendo seleccionar as que mais lhes convêm, situação que não
está ao alcance dos pequenos Estados. Podem utilizar uma grande variedade de
estímulos (positivos ou negativos); gerar e orientar o ímpeto das negociações na
direcção de um acordo; e ainda alterar-lhes as motivações, os comportamentos e as
expectativas. Os Estados são capazes, mais do que qualquer outro actor, de reunir os
recursos necessários para o sucesso de um processo de mediação. Eles possuem
leverage e usam a influência política e social ao seu dispor para persuadir os litigantes
a fazerem concessões e a reformularem os seus objectivos estratégicos na direcção de
um acordo.
A participação das organizações internacionais e regionais em processos de mediação
tem sido igualmente objecto de estudo. Em 1994, Touval publicou um artigo na Foreign
Affairs sobre as limitações da ONU no domínio da mediação, no qual referia que as
mediações levadas a cabo por aquela Organização o bem sucedidas apenas quando
os beligerantes se encontram exaustos e as potências externas aos conflitos não têm
vontade para continuarem a apoiar os seus clientes, cuja utilidade se exauriu com o fim
da Guerra Fria
18
. Mas Touval vai mais longe e generaliza as conclusões relativas ao
comportamento da ONU como mediador às organizações internacionais, de um modo
geral, afirmando que estas têm características inerentes que as tornam incapazes de
serem mediadores eficazes de disputas internacionais complexas
19
. Touval refere que
as organizações internacionais têm grande dificuldade em efectuar algumas funções
básicas exigidas a um mediador eficaz, devido à ausência de leverage política
significativa sobre as partes, à falta de credibilidade das suas promessas e à
inflexibilidade negocial resultante dos seus lentos e complexos processos de decisão.
Estas limitações estão impregnadas no seu ADN e fazem da parte da natureza
intrínseca das organizações internacionais. E ninguém consegue alterar esta realidade.
As organizações internacionais medeiam apenas nos termos que os Estados que as
integram desejam e com o material e recursos diplomáticos que estes lhes
15
Ibidem: 147.
16
Ibidem: 142.
17
Ibidem, Bercovitch citando Touval: 142.
18
TOUVAL, Saadia (1994). “Why the UN Fails”, Foreign Affairs, Setembro/Outubro: 44.
19
Idem: 45.
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disponibilizam
20
. As conversações multilaterais requerem um processo de consulta e
coordenação entre os membros de essas organizações. Um mediador tem de ser capaz
de influenciar os beligerantes de modo a levá-los a alterarem as suas posições.
Necessita, antes de mais, de leverage a qual deriva dos recursos militares e
económicos que as grandes potências têm em abundância, e que as Organizações
regionais ou internacionais não dispõem, encontrando-se à mercê da boa vontade dos
Estados que as compõem. A ONU nem sequer pode utilizar os meios das instituições
financeiras e de comércio internacionais. Para tal continua a depender das decisões dos
Estados-membros. O problema da falta de leverage e de recursos aplica-se igualmente
a todos os mediadores informais.
As suas vulnerabilidades são percebidas e exploradas pelos beligerantes, os quais
duvidam da sua capacidade para cumprir tanto as promessas de apoio como as
ameaças de punição. Devido aos sistemas de decisão que lhe são peculiares, é muito
difícil às organizações internacionais conduzirem negociações dinâmicas, reagirem com
rapidez, agarrarem oportunidades e terem a flexibilidade necessária para ajustar
posições e propostas que lhes permitam acompanhar convenientemente o desenrolar
dos acontecimentos. Uma vez adoptada uma estratégia de mediação não é fácil alterá-
la de modo a poder responder rapidamente a alterações de situação. As organizações
internacionais adoptam apenas as medidas à volta das quais é possível construir
consensos, reflectindo lógicas de menor denominador comum
21
.
As organizações internacionais são particularmente úteis no papel de facilitador de
comunicação entre as partes ajudando a uma maior compreensão das posições
adversárias e à clarificação das suas preocupações, mas não se encontram concebidas
para disputas difíceis. As organizações internacionais não dispõem de condições para
levarem a cabo estratégias de mediação manipulativas.
As ONG não desfrutam da legitimidade das organizações internacionais para mediar,
sendo o seu comportamento na mediação de conflitos violentos idêntico ao dos
restantes mediadores informais. Recorrendo à lógica argumentativa anteriormente
utilizada, ao contrário dos Estados, por disporem de recursos muito limitados, as ONG
têm um mero muito exíguo de estratégias ao seu alcance, encontrando-se as
alternativas circunscritas às estratégias de comunicação e facilitação, orientadas para a
qualidade da interacção entre as partes e para a manutenção de um ambiente
favorável à gestão do conflito. O facto de passarem agora a falar com os decisores de
topo - numa lógica T1,5 - não altera esta realidade. Dificilmente terão, como os
Estados, capacidade para alterar o comportamento, as expectativas e os objectivos
estratégicos das partes em conflito.
Para o conseguir, é necessário possuir uma capacidade de persuasão que não se esgote
no diálogo e na comunicação. Para influenciar o curso de um conflito violento, a
mediação não se pode limitar a gerar e partilhar informação; tem de usar estratégias
mais assertivas que permitam alterar o modo de as partes pensarem e interagirem
22
.
Por outro lado, há que ter em conta o ambiente em que decorre a mediação. A gestão
20
Contudo, isto não significa que as organizações internacionais e a ONU, em particular, não possam
desempenhar um papel importante, especialmente quando a sua actuação é coordenada com os esforços
dos Estados. Existem outras razões, nomeadamente servir de colchão e assim proteger os Estados de
danos que possam ser causados por processos de peacemaking falhados.
21
TOUVAL, Saadia, op. cit.: 53.
22
Idem: 146.
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de conflitos violentos tem como pressuposto um ambiente de violência e insegurança
generalizada, não muito propício para a resolução interactiva de conflitos ou para
workshops de resolução de conflitos, o qual é substancialmente diferente do ambiente
que se vive numa situação de peacebuilding, pós conflito violento, numa situação de
segurança estável mais favorável à actuação das ONG.
O facto de o mediador ser uma ONG nacional ou internacional tem significados
diferentes. O alcance do envolvimento da sociedade civil em processos de mediação,
nomeadamente através de ONG que emanem dessa mesma sociedade civil, tem de ser
avaliada com cautela. Trata-se de uma ideia apelativa que se desmorona pelo facto dos
conflitos violentos objecto desta intervenção ocorrerem normalmente em sociedades
pré-modernas, sem uma sociedade civil activa, ou em sociedades mais desenvolvidas
em que as organizações da sociedade civil foram destruídas pela violência, reduzindo à
ínfima dimensão a possibilidade de influenciar seja o que for.
23
A possibilidade de lhes
dar relevo no seio de um conflito violento não passa de uma construção fantasiosa.
Bem intencionada mas inútil, como a prática tem demonstrado à saciedade.
A Mediação do Conflito Moçambicano: Actores e Estratégias
Uma vez apresentado o quadro teórico necessário à análise passaremos, então, ao
estudo de caso identificando os actores envolvidos na mediação, o papel
desempenhado e as estratégias de mediação adoptadas por cada um deles. Socorremo-
nos do livro de Cameron Hume, “Ending the Mozambique’s War”, em que o autor faz
uma cronologia detalhada das conversações de paz e fornece pistas cruciais para se
entender o papel e as estratégias adoptadas pelos diferentes intervenientes
24
.
Mas antes de prosseguirmos, temos que inserir o conflito moçambicano no contexto
histórico internacional e no quadro político regional que se vivia no final da década de
oitenta. Nem as super-potências nem os países vizinhos apoiavam a continuação da
guerra. Com o fim da Guerra-fria e, consequentemente, o termo das ligações que cada
uma das facções tinha com as grandes potências, terminava o apoio político e
financeiro ao esforço de guerra. Em 1990, nenhum governo da região estava preparado
para manter e apoiar os seus aliados moçambicanos. A situação política regional tinha-
se tornado propícia à resolução do conflito. Exaustos e sem recursos, ambos os
contendores se aperceberam que não tinham condições para vencer o conflito; a
situação encontrava-se naquilo a que Touval e Zartman chamaram impasse doloroso,
uma situação madura para ser mediada e, por isso, favorável ao sucesso da mediação.
A escolha do mediador foi o primeiro obstáculo que se teve de ultrapassar. A selecção
teria de recair em alguém que reunisse a confiança de ambas as partes. Chissano
pretendia conversações directas sem intervenção de mediadores, ao que Dlhakama se
opunha. Para Chissano, o papel dos actores externos devia limitar-se ao de bons
ofícios. Por seu lado, Dlhakama pretendia como mediadores os bispos moçambicanos.
23
O conflito da Bósnia é um flagrante desta situação. A tentativa de promover a alternativa muçulmana
secular liderada por Adil Zulfikarpasic e Muhamed Filipovic, ao extremismo do partido liderado por
Izetbegovic não resultou desmoronando-se no sectarismo que atravessou a sociedade no início da
década de noventa, do século XX. Situação idêntica ocorreu na Somália, na mesma altura.
24
Hume era o 2 na cadeia hierárquica da missão norte-americana no Vaticano no momento em que
decorreriam as conversações de paz em Roma. Simultaneamente, foi observador e participante activo no
processo de paz.
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Após contratempos vários e iniciativas abortadas, com o acordo do Vaticano e o apoio
financeiro e diplomático do Governo italiano, a Comunidade de Santo Egídio organizou
a primeira ronda negocial que decorreu nas suas instalações em Roma, em Julho de
1990. Esta ronda negocial teve a participação de três entidades. Para além da
Comunidade Santo Egídio, contou com as igrejas moçambicanas e o Governo italiano.
Cada uma daquelas entidades estava representada no grupo que, na altura, tinha ainda
o estatuto de observador e que mais tarde se viria a tornar no grupo de mediação: a
Comunidade de Santo Egídio por Andrea Riccardi e Don Matteo Zuppi, a Conferência
Episcopal por D. Jaime Gonçalves, e o Governo italiano por Mário Rafaelli. Este grupo
vai manter-se intacto até ao final das conversações.
No final da primeira ronda negocial, o embaixador Rafaelli concedeu uma entrevista à
Rádio do Vaticano em que explicou o papel desempenhado pelos Governos do Quénia e
do Zimbabué, atribuindo-lhes o mérito pela aproximação das posições das partes a qual
levou ao início de conversações directas. Na prática, estas foram possíveis devido à
acção conjugada de rios actores - Governo italiano, Comunidade de Santo Egídio e
Igreja moçambicana.
25
Não se entendendo sobre a escolha do Estado africano a
convidar para mediador, as partes acabariam por concordar na solução dos quatro
observadores que na prática funcionavam como mediadores (a mediação seria uma
acção colectiva).
A solução de mediação encontrada permitiu contornar os obstáculos colocados tanto
pelo Governo como pela RENAMO. Esta formulação adaptava-se aos desígnios do
Governo, ou seja, um mediador que tivesse um papel menor e sem capacidade
manipulativa, e às exigências de mediação da RENAMO, ou seja, um mediador em vez
de negociações bilaterais. Não tendo a Igreja e a Comunidade de Santo Egídio seguido
uma estratégia de mediação própria, analisaremos apenas a estratégia adoptada pelo
grupo de mediação onde aquela ONG se encontrava representada. a participação do
Governo italiano nas conversações de paz terá de ser analisada em separado.
Foram muitos os actores que contribuíram para se chegar ao Acordo de Paz assinado
em Roma, a 4 de Outubro de 1992. Para além do grupo de mediação constituído pelos
representantes das Igrejas moçambicanas, da Comunidade de Santo Egídio e do
Governo italiano, a considerar a colaboração de vários Estados. Destaca-se um
grupo de dois governos particularmente activos, embora com papéis diferentes, a Itália
e os Estados Unidos da América (EUA). Com um papel igualmente importante, mas
mais distante, o Quénia, Zimbabué e Malawi; e numa fase posterior das conversações
em que se discutiam assuntos militares, os países que se vieram a constituir como
observadores do processo de paz: França, Portugal e Reino Unido conjuntamente com
os EUA. ainda a referir que a ONU também se juntou às conversações com o
estatuto de observador, mas mais orientada para discutir os aspectos da
implementação das matérias acordadas. E, finalmente, Tiny Rowland, um homem de
negócios inglês, presidente do grupo Lonrho que detinha fortes interesses mineiros no
Zimbabué, e que pôs os seus jactos à disposição dos mediadores e das partes para as
frequentes viagens que tiveram de efectuar.
25
HUME, Cameron (1994). Ending the Mozambique’s War. The Role of Mediation and Good Offices,
Washington, D.C., United States Institute of Peace: 35.
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As Igrejas
Tanto académicos como praticantes têm negligenciado nas suas análises o papel das
elites religiosas – Apostólica Romana e Anglicana na gestão do conflito moçambicano,
o qual remonta ao ano de 1984, quando tiveram lugar as primeiras conversações entre
o Governo e a RENAMO. É neste contexto que o Conselho Cristão Moçambicano (CCM)
estabelece a “Comissão para a Paz e Reconciliação” (CPR) com o objectivo de explorar
possíveis espaços de diálogo e facilitar a comunicação entre os litigantes. O CCM
continuou durante toda a segunda metade da década a actuar nos bastidores sem,
contudo, conseguir grandes progressos.
A disponibilidade manifestada pelas autoridades quenianas para mediarem um eventual
processo de paz foi aproveitada pela CCM para dialogar com os líderes da RENAMO. A
iniciativa de paz promovida pelas lideranças das Igrejas torna-se pública e Chissano
mandata a CPR, chefiada pelo Bispo anglicano D. Dinis Sengulane, para negociar com
os líderes da RENAMO os termos de uma amnistia. Dava-se a coincidência da liderança
da FRELIMO ser maioritariamente anglicana e a da RENAMO maioritariamente
católica
26
. O ano de 1988 marca o início de uma actividade diplomática intensa que
levaria à paz em 1992. A actividade diplomática em curso não impede, contudo, o
prosseguimento dos combates. No início de 1989, os deres das Igrejas moçambicanas
católica e anglicana lançaram uma segunda iniciativa para explorar os contactos já
existentes. O Cardeal D. Alexandre dos Santos, o Arcebispo D. Jaime Gonçalves, o
Bispo Dinis Sengulane e o Pastor Jeremias Mucache (Presidente da CCM) encontraram-
se com Chissano para o persuadir a iniciar o diálogo com a RENAMO
27
.
Chissano anuiu a que os clérigos se encontrassem com representantes da RENAMO,
desde que fora de Moçambique, o que aconteceu mas sem resultados tangíveis.
28
Em
1989, fazendo eco do chamamento do clero moçambicano, o Papa João Paulo II apelou
publicamente à reconciliação nacional. No início de 1989, a CCM e o Arcebispo Católico
do Maputo encontraram-se com representantes da facção norte-americana da RENAMO
(elementos da RENAMO residentes nos Estados Unidos); e altos dignitários da Igreja
Católica moçambicana, entre eles D. Jaime Gonçalves, reuniram-se com Dhlakama sem
o consentimento de Chissano.
Mas a insistência dos líderes religiosos acabou por surtir algum efeito. Em Agosto de
1989, a pedido de Chissano, entregaram a Dlhakama, em Nairobi, um documento com
12 pontos; ao qual Dlhakama respondeu, entregando-lhes um outro para Chissano com
16 pontos
29
. Este utilizou os bons ofícios dos deres religiosos como a via para se
definirem as condições em que se iriam entabular negociações directas. Paralelamente
aos bons ofícios dos líderes religiosos decorriam outras iniciativas protagonizadas pela
diplomacia queniana e norte-americana também com o intuito de convencer as partes a
entrarem em negociações directas. O empenhamento do clero na obtenção da paz
prolonga-se por todo o período negocial, encontrando-se as Igrejas moçambicanas
sempre presentes nas conversações através de D. Jaime Gonçalves, que, recordamos,
integrou o grupo de mediação.
26
Hume, Cameron, op. cit.: 27. “…A RENAMO enviou outra mensagem para a Santa Sé…explicando que ao
contrário da liderança da FRELIMO, muitos de nós, …incluindo o nosso Presidente, são católicos…”
27
Idem. Tinha havido uma iniciativa anterior, em 1988, promovida pelo Presidente Arap Moi, do Quénia,
que convidou Chissano e Mugabe para um encontro em Nairobi para se explorar a possibilidade de
negociações.
28
Ibidem.
29
Ibidem: 28.
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A Comunidade de Santo Egídio
Com base nos resultados obtidos pelos bons ofícios dos quatro líderes religiosos e dos
governos africanos, dos quais se destacam Quénia, Malawi e Zimbabué, e explorando
as ligações de longa data entre o Arcebispo D. Jaime Gonçalves e o Governo Italiano,
30
a Comunidade de Santo Egídio promoveu em Julho de 1990 o primeiro encontro directo
entre representantes da FRELIMO e da RENAMO, em Roma, a qual se transformou no
epicentro da actividade diplomática. São dados passos significativos rumo à paz
durante as negociações levadas a cabo nos meses de Outubro e Novembro de 1991: a
FRELIMO e a RENAMO reconhecem-se mutuamente e acordam o futuro papel da ONU;
é ratificado o direito da RENAMO a exercer actividade política partidária, com a
assinatura do Acordo Geral de Paz (GPA)
31
.
A Comunidade de Santo Egídio desempenhou um papel importante na criação das
condições sicas para a realização das conversações. Para além de disponibilizar o seu
quartel-general, acolhendo as delegações das partes às conversações, assegurou o
apoio político, logístico e financeiro do Governo italiano necessário à realização das
conversações. Integrou o grupo de mediação com dois representantes, um deles o seu
presidente. Utilizando as palavras de Chester Crocker, as pessoas de Santo Egídio
fizeram história através da sua intervenção inicial. Os seus esforços criaram uma massa
crítica de factos e um momentum que fez com os decisores formais (T1D) tivessem
matéria para apoiar
32
. Mas do ponto de vista negocial, pouco mais fez do que isso.
O Grupo de Mediação
A estratégia de mediação adoptada pelo grupo de mediação foi do tipo Comunicativo. O
grupo contribuiu para que se mantivesse o diálogo entre as partes e que as relações de
hostilidade e animosidade se tivessem transformado em relações de cooperação,
ajudando através do diálogo à reconciliação das partes. Para além dos bons ofícios
prestados durante todo o processo negocial, o grupo de mediação fez propostas e
ajudou os litigantes a encontrar alternativas.
A shuttling diplomacy foi uma prática recorrente não junto das delegações das
facções em Roma, como noutros locais, junto dos dirigentes máximos das partes com o
objectivo de acordar as agendas das reuniões e a sequência dos assuntos a serem
discutidos, ou desbloquear situações mais complexas para as quais os chefes das
delegações em Roma não tinham autoridade delegada para se pronunciarem. O grupo
de mediação deslocou-se, por exemplo, ao Malawi, em Novembro de 1990, para se
encontrar com Dlhakama afim de desbloquear o impasse que estava a impedir a
obtenção do acordo de cessar-fogo. Na maioria das vezes, estas acções eram
complementadas, de uma forma concertada, pela diplomacia dos Estados, o que se
veio a revelar bastante eficaz
33
.
30
D. Gonçalves foi a ligação chave que levou à mediação italiana. A sua amizade com os membros da
Comunidade de Santo Egídio tinha mais de 20 anos quando o então jovem padre a estudar em Roma se
tornou próximo daquela organização religiosa. Uns anos mais tarde recorreu à ajuda da Comunidade
para pressionar o Governo moçambicano a abdicar da sua posição anticlerical.
31
Hume, Cameron, op. cit.: 79
32
Idem: xii.
33
O exemplo dado por HUME na p. 63 ilustra perfeitamente esta complementaridade e coordenação.
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Os mediadores formulativos controlam a agenda e, por conseguinte, podem alterar a
ordem dos trabalhos, estabelecer prazos e controlar o ritmo e a formalidade das
reuniões; podem alterar o número de participantes nas conversações, trazer mais
actores para o processo para ter mais interesses representados na mesa de
conversações. Mas não foi este o caso. A marcação das reuniões e a identificação dos
assuntos a serem discutidos eram feitas sempre com o consentimento das partes.
O low-profile da mediação conduzida pelo grupo de mediação tinha pouca influência
sobre elas; não tinha poder para conferir legitimidade diplomática a qualquer acordo; e
dispunha de uma capacidade muito reduzida para sustentar o processo de
implementação que estava a ser arquitectado
34
. Nalguns momentos e nalguns
aspectos, o comportamento do grupo de mediação teve laivos de estratégia
formulativa: aconselhavam as delegações em aspectos técnicos, ajudando-os a
identificar, a expandir e a seleccionar possíveis opções
35
.
Mas quando a flexibilidade das partes desaparecia e o grupo de mediação perdia o
controlo da agenda
36
, este tinha que se socorrer de actores externos com maior
capacidade de persuasão sobre elas, isto é, recorrer ao auxilio da diplomacia de uma
via, principalmente dos Governos norte-americano e italiano. O mesmo ocorreu quando
se teve que discutir assuntos de natureza técnica, nomeadamente militar, para os quais
os membros do grupo de mediação não dispunham de conhecimentos.
Os Estados
A actuação do grupo de mediação foi seguida de perto e complementada, em
permanência, pela diplomacia de vários Estados, sobretudo quando se tratava de
resolver assuntos de maior complexidade ou quando as partes se mostrassem mais
renitentes em chegar a acordo. Governos africanos e ocidentais foram necessários em
vários momentos das conversações para: ultrapassar impasses entre os chefes das
delegações sedeados em Roma; actuar junto dos líderes de topo; criar legitimidade e
definir datas limite; e forçar a convergência de opinião em assuntos que de outro modo
ainda estariam por resolver
37
. Segundo Chester Crocker, a actuação discreta dos
diplomatas oficiais foi essencial na formulação da sequência dos assuntos a serem
tratados e na definição do caminho a seguir nas matérias militares e constitucionais dos
acordos
38
.
Na vanguarda destas iniciativas esteve a diplomacia italiana, incansável a promover e a
organizar inúmeros encontros dos líderes das facções e a assegurar a presidência da
Comissão de Verificação Conjunta (JVC), através do seu embaixador em Maputo
39
. A
Itália esteve também profundamente envolvida em várias acções de bons ofícios e de
shuttle diplomacy, mobilizando para tal o seu embaixador em Maputo que se encontrou
várias vezes com Dlhakama e com Chissano
40
. Para além disso, o Governo italiano
34
Idem: 95.
35
Ibidem: 73.
36
Ibidem: 62.
37
Ibidem: xi.
38
Ibidem.
39
Pelos vistos, o único que ignorava o papel instrumental da diplomacia italiana no apoio às conversações
era o próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, quando em Fevereiro de 1992 sugeriu que a
Itália também se juntasse às conversações como um observador oficial. HUME, op. cit.: 90.
40
Idem: 127.
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arcou com grande parte das despesas, nomeadamente viagens e estadia das
delegações, e com a cobertura política da mediação. No início de 1992, o Parlamento
italiano autorizou o Governo a usar a 1% do seu orçamento de ajuda externa em
proveito do processo de paz. Para além do seu representante no grupo de mediação,
houve um envolvimento directo e efectivo do Governo e da diplomacia italiana no
processo de mediação.
Os Estados Unidos desempenharam igualmente um papel crucial desde o início das
conversações, proporcionando aconselhamento técnico, encorajamento e apoio blico
ao processo de paz. Destacaram uma equipa composta por pessoal do Departamento
de Estado que acompanhou permanentemente a evolução das conversações, e que
prestou um apoio decisivo ao grupo de mediação, muito em particular à delegação da
RENAMO, em áreas técnicas que requeriam o concurso de especialistas. Para ajudar a
ultrapassar algumas dificuldades negociais, elementos desta equipa, actuando em
tandem com o grupo de mediação, reuniam separadamente com as delegações para as
convencer a adoptarem posições mais flexíveis.
O envolvimento norte-americano não se limitou à equipa que acompanhou as
conversações. Em momentos de impasse, os Estados Unidos intervieram a um nível
“elevado”, “aconselhando” as partes, em particular a RENAMO, a moderarem as suas
posições. A presença dos Estados Unidos nas negociações foi determinante devido à
“capacidade de persuasão” que dispunham sobre os litigantes, a RENAMO em
particular. Os Governos italiano e americano, especialmente este último, seguiram uma
estratégia formulativa que nalguns casos assumiu contornos típicos de estratégia
manipulativa.
A partir de Outubro de 1991, o apoio norte-americano à mediação tornou-se mais
activo, aumentando significativamente o envolvimento da sua diplomacia nas
conversações. Tanto o Secretário de Estado Adjunto para os Assuntos Africanos,
Herman Cohen, como o seu auxiliar, Jeffrey Davidow, passaram a encontrar-se mais
frequentemente não com os líderes das facções, numa diplomacia paralela à do
grupo de mediação, para os “ajudar” a dar passos mais céleres e determinados rumo à
paz, mas também com dirigentes africanos cujo contributo para o processo de paz
pudesse ser importante. O envolvimento da diplomacia norte-americana foi ainda
essencial para assegurar a presença da ONU na implementação do acordo de
segurança, garantindo a ligação com o Conselho de Segurança.
A colaboração de vários Estados vizinhos com o grupo de mediação foi igualmente
importante. Complementando a sua acção, colocaram pressão sobre Dlhakama e
Chissano para não abandonarem o diálogo e tomarem decisões concretas. Vários
estadistas africanos ajudaram o grupo de mediação na fase final das conversações.
Mugabe terá sido, porventura, o dirigente africano mais importante nesta tarefa. Em
Setembro de 1992, o grupo de mediação pediu a Mugabe ajuda para se ultrapassar
mais um impasse negocial. As delegações em Roma não eram capazes de chegar a um
acordo quanto à dimensão das Forças Armadas, à reforma da polícia e do serviço de
segurança e à forma como se organizar a administração civil nas áreas controladas pela
RENAMO. Mugabe arranjou um encontro de Chissano com Dlhakama, no Botswana,
onde se acordou criar uma comissão para supervisionar os serviços de segurança.
Quando se começaram a discutir os assuntos militares e o modo de os implementar, o
Governo italiano assumiu um papel ainda mais proeminente proporcionando ao grupo
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de mediação especialistas para orientarem e dirigirem a discussão. Isto obrigou a
introduzir alterações na estrutura das conversações, nomeadamente o aumento da
dimensão das delegações para passarem a contemplar equipas de especialistas
militares, incluindo aqueles proporcionados pelos países observadores (França,
Portugal, Reino Unido e EUA)
41
.
Tornou-se evidente a conveniência de envolver nas conversações um cleo duro de
países que pudesse fornecer ao grupo de mediação e às delegações, não conselho
técnico sobre estes assuntos, mas que pudesse também vir a contribuir com forças
militares para a implementação do acordo de paz, para além da participação da própria
ONU. Exceptuando o caso de Itália e dos EUA, os restantes actores estatais pautaram o
seu comportamento mais pela facilitação de contactos explorando a capacidade de
persuasão que determinados líderes africanos tinham sobre os seus parceiros
moçambicanos.
A ONU e Outros Actores Não Estatais
Colaboraram também no processo de paz, mas de forma muito diferente a ONU e Tiny
Rowland. Na listagem dos actores que participaram no processo de paz teremos
inevitavelmente que incluir a ONU, não esquecendo, entre outras coisas
particularmente importantes que liderou, a coordenação com governos chave na região
e a organização de uma conferência de doadores em Maputo. Para implementar os
Acordos era necessário mobilizar a contribuição de outros actores para uma pool de
recursos. Uma vez assinado o acordo de paz tratava-se agora de o implementar,
passando o papel da ONU a ser crucial.
Os trâmites dessa implementação tinham de ser negociados com a própria ONU. Ao
contrário do grupo de mediação, o Secretário-Geral da ONU podia agora lidar com as
partes a partir de uma posição institucional forte, a qual incluía normas de execução
permanente para o peacekeeping, a gestão de programas de ajuda humanitária, uma
rede de Estados doadores de dinheiro e pessoal, e o requisito da autorização do CS.
42
Como referido do antecedente, Tiny Rowland desempenhou um papel nada
negligenciável ao proporcionar transporte aéreo às delegações e aos líderes
moçambicanos quando e onde foi necessário.
Conclusões
A análise do processo de paz moçambicano conduziu-nos a quatro conclusões
fundamentais. Em primeiro lugar, o caso estudado não ilustra empiricamente a tese de
que os intermediários informais e as ONG em particular são o tipo de mediador mais
adequado para conduzir a mediação de conflitos intra-estaduais violentos. A mediação
do processo de paz moçambicano não se pode considerar uma acção de T1,5D e muito
menos de T2D
43
. Como tal, não pode ter validade empírica para sustentar tal tese.
Reduzir as conversações de paz moçambicanas ao papel desempenhado pela
41
É neste contexto que em Junho de 1992, na 10ª ronda negocial, é aprovado o convite à França, Portugal,
Reino Unido, EUA e ONU para integrarem as conversações com o estatuto de observadores.
42
Ibidem: 139.
43
Crocker sublinhou que as negociações do caso de Moçambique não foram de modo algum um caso puro
de T2D. Ibidem: xi.
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Comunidade de Santo Egídio é factualmente incorrecto, porque esta nunca se chegou a
constituir verdadeiramente como um mediador
44
.
Em segundo lugar, a mediação da paz foi um processo multi-track no qual os Estados
tiveram um papel decisivo. Verificámos não ser igualmente correcto atribuir o mérito da
iniciativa de paz à Comunidade de Santo Egídio e ao Vaticano, em detrimento do papel
exercido pelos Estados, dos quais se salientaram o italiano e americano. O arranjo de
mediação colectiva adoptado, incluindo representantes de um Estado para além de uma
ONG e de uma Igreja, foi sem vida sui generis. Mas devido aos limitados recursos à
sua disposição, a capacidade do grupo de mediação para influenciar e persuadir as
facções litigantes era bastante limitada. Sempre que surgia algum impasse cuja
resolução se afigurava mais difícil, o grupo de mediação teve de se socorrer da
diplomacia dos Estados influentes dotados dos recursos que lhe faltavam
(principalmente Itália, EUA e Zimbabué). Na prática o que prevaleceu foi a diplomacia
dos Estados.
Em terceiro lugar, à luz do processo de paz moçambicano, verificámos que as ONG e os
processos de TD2 podem, de uma forma geral, complementar a acção dos agentes
tradicionais (Estados e Organizações Internacionais), mas encontram-se ainda muito
longe de os poderem substituír ou mesmo de poderem actuar em de igualdade. Por
faltar às ONG a legitimidade, a capacidade ou a estabilidade dos Estados soberanos,
estes ainda continuam a desempenhar um papel incontornável e insubstituível,
atestanto assim a primordialidade da mediação formal na gestão de conflitos violentos.
Em quarto lugar, o caso moçambicano veio mostrar o potencial de reconciliação das
designadas fontes de poder social, nomeadamente as ideológicas, neste caso com
expressão na religião e nas elites religiosas (Mann, 1986), um tema cuja aplicação à
resolução de conflitos tem sido insuficientemente estudado e que escapa ao objecto
deste trabalho. Para o êxito das conversações de paz muito contribuíram as elites
católica e anglicana que actuaram de uma forma concertada junto dos dirigentes da
FRELIMO e da RENAMO, seus correligionários religiosos. Não a maioria da liderança
da RENAMO era católica, como foi atrás referido, como a liderança da FRELIMO tinha
muitos seguidores da Igreja anglicana. Se Chissano ou Dhlakama fossem muçulmanos,
a influência das elites religiosas cristãs sobre eles teria sido completamente diferente.
Procurando explorar o sucesso do caso Moçambique mal compreendido e mal
estudado, a Comunidade de Santo Egídio tentou mais tarde envolver-se na mediação
do conflito no Kosovo, sem qualquer resultado. Escapava-lhe uma interpretação
correcta dos acontecimentos em Moçambique.
Pensamos que as conclusões a que chegámos após analisar o caso moçambicano
podem ser generalizadas. Ao contrário do defendido por algumas correntes de
pensamento, o caso em apreço vem confirmar empiricamente o nosso argumento e a
importância crucial da T1D na gestão de conflitos violentos. Nestes casos, a T2D pode
apoiar os esforços da diplomacia, mas desempenhará sempre um papel secundário e de
apoio. A T2D e, por conseguinte, a acção desenvolvida pelas ONG pode ser
particularmente importante noutras fases da vida de um conflito, por exemplo, durante
o peacebuilding, no apoio à reconciliação entre grupos desavindos. o se pode
44
Como referido ao longo do texto, a Comunidade de Santo Egídio apenas contribuiu com dois elementos
para o grupo de mediação, o qual integrava um representante da Igreja moçambicana e outro do
Governo italiano.
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substimar de modo algum o papel destas organizações, por exemplo, em acções de
natureza humanitária ou no apoio à reconstrução de sociedades dilaceradas pela
guerra, mas não na mediação de conflitos violentos. O envolvimento directo de ONG na
mediação de conflitos violentos não tem sido comum, mas os poucos casos em que
participaram não se podem considerar sucessos. O registo das intervenções das ONG
neste campo fala por si
45
.
Os conceitos T1,5D e T2D são construções muito apelativas, mas de utilidade
questionável quando aplicados à gestão de conflitos violentos. O mesmo se pode dizer
relativamente ao envolvimento da sociedade civil em processos de mediação de
conflitos violentos. Uma ideia, igualmente apelativa, que se desmorona se tivermos em
conta que os conflitos violentos ocorrem tendencialmente em sociedades pré-
modernas, sem uma sociedade civil activa, ou em sociedades mais desenvolvidas mas
em que as organizações da sociedade civil foram destruídas pela violência, reduzindo a
sua eventual capacidade de influenciar e persuadir à ínfima dimensão.
Bibliografia
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45
Entre outros, salientamos as conversações entre o Governo nigeriano e os líderes rebeldes do Biafra,
durante o conflito 1967-70, sob os auspícios dos Quakers; a desastrosa experiência da Comunidade de
S. Egídio no Uganda, em meados dos anos 90; uma coligação de ONG’s na mediação de um cessar-fogo
no Sudão, na década de 70; o Conselho Inter-religioso na Serra Leoa; e outras ONG’s na Abcázia,
Ossétia do Sul e Transnístria.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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A AVIC E O PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO
E DESENVOLVIMENTO DO J-20*
Alexandre Carriço
email: Manuel.Carrico@defesa.pt
Tenente-Coronel de Infantaria, Mestre em Relações Internacionais,
Doutorando em Relações Internacionais com especialização em Estudos Asiáticos.
Assessor do Instituto da Defesa Nacional
Resumo
O fabrico de um caça de geração (J-20) por parte da China era visto como uma
inevitabilidade mais de uma década, consubstanciando um salto qualitativo ao nível da
investigação e desenvolvimento por parte do sector da aviação militar chinesa.
Este e outros saltos tecnológicos dados na última década pela indústria de aviação tanto
civil como militar, foram resultado em grande parte de projectos nacionais de apoio ao
desenvolvimento da educação, investigação e tecnologia bem como da transferência
indirecta de tecnologia europeia, norte-americana, ucraniana, brasileira, israelita, e russa,
bem como, e não menos importante, da reestruturação e reconversão do sector da indústria
de defesa efectuada durante a década de noventa e a primeira metade da década do culo
vinte e um.
O presente artigo efectua uma análise geral ao processo de investigação e desenvolvimento
do caça J-20.
* Este artigo não representa a perspectiva do Instituto da Defesa Nacional sobre o tema
analisado, sendo da responsabilidade exclusiva do autor.
Palavras-chave
China; indústria de defesa; sector de aviação; defesa nacional; J-20
Como citar este artigo
Carriço, Alexandre (2011). "A AVIC e o programa de investigação e desenvolvimento do J-
20”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art5
Artigo recebido em Junho de 2011 e aceite para publicação em Julho de 2011
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A AVIC e o programa de investigação e desenvolvimento do J-20
Alexandre Carriço
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A AVIC E O PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO
E DESENVOLVIMENTO DO J-20*
Alexandre Carriço
Introdução
As fotografias oficiais divulgadas em 11 de Janeiro de 2011 do “primeiro voo” de teste
do novo caça furtivo JXX (J-20) da Força Aérea do Exército Popular de Libertação
(FAEPL) desencadearam uma profusão de análises e de reacções umas mais
cautelosas, outras mais alarmistas - ao nível dos diversos establishments e think tanks
políticos e militares tanto asiáticos como norte-americanos sobre as implicações
estratégicas regionais do fabrico e futura entrada ao serviço do J-20.
O timing do anúncio público e da divulgação das respectivas fotos não foi inocente
(como nada o é quando tem a chancela oficial do Zhongnanhai), tendo sido feita uma
natural correlação directa com a visita a Pequim por parte do Secretário da Defesa
norte-americano Robert Gates, que decorreu entre 9 e 12 de Janeiro.
1
Na realidade a forma como todo o processo se desenrolou levanta algumas questões
curiosas para quem acompanha e monitoriza não apenas a imprensa oficial, como web
sites, blogs e micro-blogs chineses genéricos ou dedicados a assuntos de defesa.
Através do cruzamento sistemático desta informação, por vezes dispersa e algo
incongruente, torna-se possível vislumbrar e delinear eventuais mecânicas operativas
relativas à metodologia de divulgação do voo experimental” do J-20 através da
internet, com as primeiras fotos do protótipo em testes de pista no aeroporto militar de
Chengdu a começarem a surgir a 22 de Dezembro de 2010, três semanas antes da
visita de Robert Gates e o deo a ser disponibilizado no próprio dia do voo
2
, o que no
que concerne ao progresso no programa de testes de caças de geração foi muito
antes do que era expectável pela maioria dos especialistas ocidentais.
Independentemente destes desenvolvimentos, apenas surpreendentes para os menos
atentos, o fabrico de um caça de geração por parte da China era visto como uma
inevitabilidade mais de uma década, sendo reforçada por declarações recentes,
como as do Tenente-General He Weirong
3
que sugeriam um elevado grau de confiança
1
É interessante notar que o voo de teste do J-20 a 11 de Janeiro foi efectuado exactamente três anos
depois do primeiro teste anti-satélite e um ano depois do primeiro teste com um míssil anti-balístico por
parte da China. Segundo alguns blogs militares chineses, o futuro Presidente da China, Xi Jinping
(actualmente vice-Presidente da Comissão Militar Central) e Wu Bangguo (do Comité Permanente do
Politburo) terão estado em Chengdu no dia 10 de Janeiro, mas devido às más condições meteorológicas
o teste de voo foi adiado para o dia seguinte.
2
Através do site http://www.56.com
3
Por exemplo, em Novembro de 2009, o vice-Chefe de Estado-Maior da Força Aérea do Exército Popular
de Libertação, Tenente-General He Weirong, afirmou numa entrevista à cadeia televisiva estatal CCTV
que a quarta geração de caças chineses (quinta em termos ocidentais) iria em breve entrar em fase de
testes, podendo estar ao serviço dentro de oito a dez anos (Sweetman, 2011). Entenda-se por entrada
ao serviço ter pelo menos um Regimento equipado com este avião e tripulações que completaram o
treino básico no mesmo.
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A AVIC e o programa de investigação e desenvolvimento do J-20
Alexandre Carriço
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do Exército Popular de Libertação (EPL) nos avanços entretanto alcançados neste
projecto.
Estes assinaláveis saltos tecnológicos dados na última década pela indústria de aviação
chinesa tanto civil
4
como militar, foram resultado em grande parte de projectos
nacionais de apoio ao desenvolvimento da educação, investigação e tecnologia
(Programa 863
5
, Programa 973
6
, Projecto 511
7
e Projecto 211
8
) bem como da
transferência indirecta de tecnologia europeia (através da aquisição de aviões
comerciais da Airbus), norte-americana (aquisição de aviões da Boeing), ucraniana
(parceria com a Antonov), brasileira (aviões da Embraer), israelita (o caça J-10 foi
desenvolvido com base no caça Lavi, o qual tem muita tecnologia norte-americana
oriunda do F-16) e russa (acordos de co-produção dos caças Su-27, de importação de
Su-30 e de aviões de transporte Il-76) (Tsai, 2003: 158-162), bem como, e não menos
importante, da reestruturação e reconversão do sector da indústria de defesa da China
(Stratfor, 2011).
9
Mesmo assim, ainda existem obstáculos tecnológicos de monta para os engenheiros
aeronáuticos chineses, particularmente ao nível dos motores, bastando para tal
atendermos ao facto de os caças J-10 e J-11 (versão chinesa do Su-27 mas com licença
de co-produção) serem equipados na sua esmagadora maioria respectivamente com
motores Lyulka-Saturn AL-31F e AL-31-117S, de fabrico russo.
Por outro lado, e sabendo-se que a tecnologia stealth (furtiva) é mais difícil de
desenvolver eficazmente, nomeadamente ao nível das emissões térmicas dos motores,
essenciais para a não detecção das aeronaves tanto por radar como por sensores de
infra-vermelhos, este poderá ser um dos vários grandes desafios que os engenheiros
da Chengdu Aircraft Industry Corporation (CAIC) continuarão a enfrentar.
Não obstante estas dificuldades, os progressos chineses nesta área têm sido notáveis,
de tal forma que conjuntamente com o modelo russo Sukhoi PAK FA ou T-50 - também
em fase de testes e com a entrada ao serviço prevista entre 2015 e 2017 contribuem
para que a China e a Rússia alimentem a crescente pressão do complexo industrial
norte-americano (via Lockheed Martin, Boeing e Pratt & Whitney) no sentido de o
Departamento de Defesa não se limitar a adquirir “apenas” 187 caças furtivos F-22
Raptor, mas que reforce também o financiamento relativo à aquisição do F-35
(Hartung, 2010).
4
Está em fase de testes o avião comercial de fabrico totalmente chinês o ARJ21-700 (construído pela
AVIC), cujo protótipo inicial foi mostrado ao público em Novembro de 2010 aquando do festival e
exposição aeronáutica de Zuhai (Deng, 2011).
5
Este Plano visa o desenvolvimento de novas tecnologias através da cooperação civil-militar. É gerido pelo
Ministério da Ciência e Tecnologia, sendo uma resposta chinesa ao programa Strategic Defense Initiative
norte-americano e ao Eureka da União Europeia (Feigenbaum, 2003: 160-170).
6
Programa Nacional de Investigação.
7
Programa da Comissão para a Ciência, Tecnologia e Indústria de Defesa Nacional (COCTIDN) para
formação e treino de quadros de investigadores para a I&D no âmbito da defesa.
8
Programa do Ministério da Educação destinado a aperfeiçoar a qualidade de ensino e de investigação em
cem universidades chinesas.
9
O governo chinês anunciou em 24 de Fevereiro de 2011 que irá investir nos próximos cinco anos 227.3
mil milhões de dólares no sector da aviação onde se insere a expansão da frota de aviões comerciais dos
actuais 2600 para 4500 em 2015 (Stratfor, 2011a). Aquando da visita da Presidente Dilma Rouseff a
Pequim em Abril de 2011, foi assinado um acordo de aquisição de 35 aviões E190 da Embraer e de co-
produção do modelo Legacy 600 entre a Embraer e a AVIC (Stratfor, 2011b).
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A AVIC e o programa de investigação e desenvolvimento do J-20
Alexandre Carriço
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O presente artigo efectua uma análise geral ao processo de investigação e
desenvolvimento do caça J-20, elencando alguns desafios futuros relativos à sua
produção.
Considerações sobre o processo de Investigação e Desenvolvimento do
J-20
O processo de investigação e desenvolvimento (I&D) do J-20 (cuja denominação oficial
ainda não foi divulgada) iniciou-se pouco mais de duas décadas (1989) na AVIC,
mais concretamente num das suas subsidiárias: a Chengdu Aircraft Industry
Corporation (Fischer, 2011: 54). Em 2001, documentos da empresa, analisavam as
vantagens aerodinâmicas das configurações de asas fixas e em delta ainda que
projectadas a partir da base ventral da fuselagem e não lateral como a apresentada
pelo J-20 (Fischer, 2010).
Nestes documentos, e segundo alguns especialistas, o claras as similaridades com o
malogrado design soviético do MiG 1.42, sendo possível que a Rússia tenha
providenciado estes planos, ao abrigo da cooperação militar bilateral existente, ainda
que Moscovo inicialmente tenha recusado participar num programa de desenvolvimento
conjunto do MiG 1.42 (Dzouza, 2011a e Tsai, 2003: 171). Se tal aconteceu, e de forma
a sossegar os sectores mais conservadores do complexo militar-industrial russo - que
vêem com desconfiança o aprofundamento desta cooperação, e pretendem
salvaguardar a competitividade e o valor acrescentado de empresas estatais como a
Sukhoi - poderemos extrapolar uma possível justificação para a decisão do Kremlin em
ceder os planos parciais do MiG 1.42 porque já tinha optado por avançar com o
desenvolvimento do mais sofisticado Sukhoi T-50.
É também possível que a CAIC tenha tido algum apoio de engenharia da sua rival
estatal a Shenyang Aircraft Corporation (SAC), que no icio da década também estava
a desenvolver um projecto similar (J-9) e que em 2007 por decisão política, razões de
economia de escala e de gestão de recursos poderá ter suspendido este programa (de
nome 2-03) e transferido o know-how para a CAIC e autorizando o início da produção
dos primeiros protótipos.
10
Com efeito, a SAC possui uma melhor experiência
acumulada no design e construção de caças com dois motores, como a família J-11
(versão chinesa do Su-27) que produz sob licença russa, ainda que tenha tido
problemas quanto aos motores como analisaremos mais à frente.
Crê-se que o protótipo do J-20 cujas imagens do “primeiro voo” foram tão divulgadas e
mediatizadas, seja o primeiro de uma série de protótipos (estão confirmados dois mas
deve existir um terceiro
11
) que serão fabricados, sendo possível que a versão final para
produção venha a ter algumas diferenças marcantes relativas a este primeiro modelo.
12
Não é crível que o J-20 seja um “demonstrador de tecnologia” como alguns
comentadores afirmaram, dada a importância operacional que a entrada ao serviço
deste modelo de avião poderá vir a ter na consolidação da estratégia chinesa de
10
Dedução do autor a partir de uma conversa com um oficial superior da Força Aérea do EPL aquando de
uma visita a Shenyang em Novembro de 2007. Cf. (Fischer, 2011: 54).
11
Ao abrigo da estratégia de “três movimentos num jogo de xadrez” (Sanbuqi) que estabelece que devem
ser construídos três protótipos de cada modelo para um dos três ciclos de I&D: investigação preliminar;
desenvolvimento de design, teste, revisão e finalização do design; e produção inicial (Stokes, 2009: 10).
12
Ao contrário dos protótipos de outros caças chineses que são pintados de cor amarela, os do J-20
apresentaram-se com uma pintura verde.
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negação do acesso a forças norte-americanas às áreas marítimas e ao espaço aéreo
associado à primeira cadeia de ilhas do Pacífico (Thompson, 2011).
As características tecnológicas e aviónicas específicas do J-20 são desconhecidas, ainda
que sejam avançadas algumas indicações gerais (s.a., 2011a). O facto de um dos dois
protótipos ter dois motores FWS-10 (possivelmente substituídos no futuro pelo motor
WS-15 ou equivalente) sugere que terá um grande raio de acção (cerca de 1200 km) e
uma razoável capacidade de transporte de bombas e mísseis dada as suas dimensões
sugeridas por alguns especialistas através da comparação das fotos publicadas face a
um camião cisterna que se encontra na pista (Kahotih, 2011).
O desenho da sua fuselagem parece apontar para um baixo perfil e assinatura
electromagnética e térmica perante os radares. No entanto as asas em forma de delta
de geometria variável e a existência de pequenas asas fixas na junção ao cockpit
(canards) picas de modelos de geração como o Typhoon, o Gripen ou o Rafale
tornam-no muito similar ao Su-42 que privilegia o desempenho e a manobrabilidade
em detrimento da furtividade pelo que este design não parece ser o mais indicado para
este propósito, a que se adiciona a retaguarda do avião, na área dos motores, que
aparenta ser também pouco furtiva quanto ao desenho.
Não obstante a presença das canards, o design desta área do avião parece indicar
alguma preocupação com a aquisição de alguma vantagem táctica em caso de
combates aéreos para além do horizonte visual ou em missões de ataque ao solo,
minimizando a sua detecção por parte das defesas anti-aéreas (s.a., 2011b).
Adicionalmente, o facto de ter dois intakes laterais supersónicos e orientáveis em vez
do mais tradicional e mecanicamente mais complexo intake de geometria variável
denota uma clara similaridade com o F-35 norte-americano; se juntarmos a forma do
nariz do avião (cockpit incluído) e a dissimulação interna na fuselagem dos sistemas de
armas (típicas do design do F-22) torna-se absolutamente notória uma clara intenção
em reduzir a assinatura da aeronave perante os radares.
Quanto aos sistemas de armas, sistemas aviónicos e radares bem como aos motores,
uma leitura de sites e revistas especializadas revelam possibilidades e versões
demasiado gerais, as quais no entanto merecem uma breve referência.
Para a maioria dos especialistas o festival aéreo de Zuhai e o CIDEX 2010 são um bom
aferidor respectivamente do potencial de desenvolvimento da indústria aeronáutica e
electrónica chinesa na área dos mísseis de precisão sejam eles ar-ar ou ar-terra,
referindo que existem vários modelos que foram expostos em Zuhai que podem
apresentar um elevado grau de compatibilidade com a missão e as capacidades do J-
20, sendo o mesmo aplicável aos sistemas aviónicos, os quais têm tido no caça J-10B
uma boa plataforma de teste e de aperfeiçoamento.
13
No que respeita às questões de aerodinâmica é quase consensual a rápida e
consistente evolução da China nesta área, pelo que não se apontam obstáculos
inultrapassáveis para o J-20.
13
Em 2006 um modelo de cockpit do J-20 foi exposto em Zuhai (Fischer, 2011: 54).
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No entanto existem duas áreas onde tais obstáculos e dificuldades o notórios: a dos
materiais compósitos “furtivos” e a dos motores.
14
Quanto aos materiais compósitos
pode-se afirmar que a China tem capacidade autónoma de fabrico de polímeros de
carbono, titânio e outros compostos passíveis de aplicação com modificações nos caças
de 5ª geração, graças em parte às parcerias comerciais com a Airbus e a Boeing.
15
Este processo iniciou-se na década de noventa através do estabelecimento de linhas de
montagem de aviões comerciais da McDonell Douglas em Xangai e através da posterior
transferência de tecnologia em troca da aquisição de largas dezenas de aviões tanto à
Boeing como à Airbus para reforçar as frotas das companhias aéreas chinesas (Gill e
Kim, 1995: 88-89).
Actualmente existem algumas joint-ventures entre a AVIC, a General Electric e a Good
rich com vista ao fabrico de peças para o novo avião comercial C-919. O Harbin
Industrial Aviation Group (HIAG) é um fornecedor de materiais compósitos para o A350
da Airbus.
16
A AVIC tem uma parceria com a Hexcel e a Boeing no que concerne à
produção dos mesmos materiais, reforçada pela aquisição em Dezembro de 2009 da
empresa austríaca de materiais compósitos Fischer Advanced Composite Components.
A Shanghai Aircraft Industrial Corporation (SAIC) é responsável pelo fabrico de toda a
fuselagem de alumínio e de lítio para os aviões da série C da Bombardier, bem como
pelo fornecimento de peças para a CESSNA e para a Boeing. A Baoji e a Hong Yuan são
dois dos maiores produtores mundiais de titânio, fornecendo 95% das necessidades da
indústria de aviação chinesa (Andersen, 2008).
Adicionalmente e dada a expansão do mercado da aviação comercial chinesa, foi criada
em Maio de 2008 a China Commercial Aircraft Company (COMAC) sediada em Xangai
com o objectivo de competir com a Boeing e a Airbus no mercado internacional a partir
de 2020, e resulta de uma parceria entre a Comissão do Conselho de Estado para a
Administração e Supervisão de Activos, o município de Xangai via Grupo empresarial
Guosheng –, o Grupo Baosteel, a Aluminum Corporation, a Sinochem e a AVIC (Liu,
2008: 16-18). Esta última injectará até 2015, 1.52 mil milhões de dólares e será
responsável pelo fabrico dos motores dos vários modelos - através da Shanghai Aircraft
Manufacturing Factory e da filial de Xangai do First Aircraft Institute - o primeiro dos
quais será para o avião destinado a trajectos regionais não superiores a 1800 km (ARJ-
21) e posteriormente para o avião comercial para voos de longo curso (C-919), para
além do fabrico de helicópteros civis de transporte (Perrett, 2010). Os projectos dos
dois aviões irão trazer um valor acrescentado à indústria de aviação chinesa pois serão
os primeiros projectos a forçar a indústria a gerir uma sofisticada rede internacional de
mais de quinze fornecedores de peças e componentes. A importância conferida a esta
empresa deduz-se imediatamente pelo facto de o seu presidente e vice-presidente,
14
Para Richard Aboulafia, analista do US Teal Group, existem pelo menos onze sistemas de apoio
essenciais para operar um avião de combate, dos quais referimos apenas sete: bom planeamento de
missões, elevado nível de treino e de profissionalismo dos pilotos, elevado nível de preparação técnica do
pessoal de manutenção em terra, sistemas de armas sofisticadas, avançados sistemas electrónicos e de
radar reforçado por um bom sistema de comando e controlo e um sistema fiável de reabastecimento em
voo. Este autor afirma que a China só é proficiente num: o do fabrico da estrutura do avião não contando
com os motores. Este autor está redondamente enganado (Aboulafia, 2011).
15
O plano de criação da COMAC foi aprovado em Fevereiro de 2007 pelo Congresso Nacional do Povo que
delegou num comité preparatório liderado pela COCTIDN a entrada em funcionamento da empresa até
final de 2008 (Cliff et al, 2011).
16
Até 2016 a China irá adquirir 300 aviões A320 da Airbus que serão totalmente montados no país tendo o
consórcio europeu estabelecido uma nova joint-venture para a produção de materiais compósitos para o
A350XWB em Harbin (Lu, 2007).
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respectivamente Zhang Qingmei e Jia Zhuanglong, terem sido o ex-director e vice-
director da COCTIDN, e de He Dongfeng (outro dos directores) ter sido gestor da
Fábrica 211 da China Academy of Lauch Technology e da indústria espacial sediada em
Sichuan.
Estas nomeações ilustram o facto de o programa de investigação e construção de um
avião comercial de longo curso ter sido definido como uma das dezasseis prioridades
inscritas no Programa Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico de
Médio/Longo Prazo (2006-2020), não sendo de estranhar a situação de a COMAC estar
sob a dependência directa do Conselho de Estado.
Estes recentes desenvolvimentos e acordos firmados pelo governo chinês no âmbito da
aviação comercial materializarão certamente um novo upgrade no spin off tecnológico
que a indústria de aviação chinesa poderá obter, pois alguma desta tecnologia tem
aplicação militar, particularmente no J-20.
17
Por fim, na área do desenvolvimento dos motores de propulsão verifica-se uma quase
unanimidade da maioria dos especialistas relativamente aos problemas relacionados
com a tecnologia de fabrico dos motores de elevado desempenho, a qual apesar das
melhorias assinaláveis ainda continua a ser o “calcanhar de Aquiles” da indústria de
aviação chinesa.
Da análise do vídeo
18
e das várias fotos do voo experimental do J-20, é notório o facto
de este ter levantado voo numa distância mais curta que os J-10 que utilizam a mesma
pista, e sem necessidade de recorrer aos afterburners, denunciando um upgrade dos
motores FWS-10, eventualmente a versão FWS-10G que gera uma potência similar à
dos motores AL-31 de fabrico russo e que também poderão ter sido montados no
segundo protótipo do J-20.
19
É compreensível que o EPL não quisesse arriscar o teste de voo de um dos seus mais
emblemáticos projectos para mais divulgando-o publicamente - sem um motor-base
que lhe inspirasse confiança, ainda que com perda de furtividade (neste caso muito
provavelmente o FWS-10), pois se podem descobrir problemas de fiabilidade nos
motores após estes serem instalados nos aviões e testados em situações de voo
durante inúmeras horas. Assim poderá ser interessante acompanhar os sucessivos
emolumentos dos vários protótipos do J-20 que serão produzidos, particularmente
quanto aos motores que os equiparão: o WS-10G, o WS-15 ou o 117S (de fabrico russo
e que a CAIC adquiriu em pequeno número em 2007).
Neste contexto é curioso notar que o segundo voo do J-20, efectuado em 17 de Abril de
2011 (que coincidiu com o 60º aniversário da criação da indústria de aviação chinesa),
foi efectuado no mesmo aeroporto militar de Chengdu, durou 85 minutos e faz parte de
uma série de testes iniciais destinados a calibrar o avião em termos de estabilidade,
manobrabilidade e desempenho. As fotos disponíveis indicam que os motores deste
17
Aquando da visita a França em Novembro de 2010 e aos Estados Unidos em Janeiro de 2011, Hu Jintao
assinou acordos para o sector da aviação comercial chinesa no total de 30.4 e 45 mil milhões de dólares
respectivamente (Wang, 2011).
18
Disponível em http://www.educatedearth.net/video.php?id=4518 [18 de Janeiro de 2011].
19
Convém aqui referir que os caças J-10 e J-11 ainda dependem dos motores AL-31F de fabrico russo. Os
novos J-11B que entraram recentemente ao serviço em dois Regimentos (um da Marinha e outro da
Força Aérea) estão equipados com os novos motores FWS-10A, fabricados pela Shenyang Liming (ou
fábrica 606), a qual é conhecida entre os seus pares chineses pelos enormes problemas técnicos que tem
enfrentado no fabrico de motores, tanto por razões de controlo de qualidade como de gestão deficiente
dos projectos, os quais têm sofrido atrasos sistemáticos.
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modelo são idênticos ao do utilizado no primeiro voo em Janeiro, o que pode indiciar
que ou é o mesmo protótipo que voou em Janeiro ou que os dois protótipos têm os
mesmos motores, como indiciado anteriormente.
No entanto parece-nos que a China não pretende depender de outros países no que
concerne ao fornecimento de componentes para a geração de caças. Tendo em
atenção as recentes acusações russas quanto à reversão de tecnologia no que respeita
ao J-11 e J-15 que levaram à redução na compra de Su-30MK, crê-se que o Kremlin
não venha a autorizar a venda de mais motores sofisticados como o 117S/Al-41 - que
equipa o Su T-50 (s.a., 2011c).
Existe assim um caminho difícil - mas não necessariamente moroso - até os fabricantes
chineses atingirem a qualidade de produção da General Electric, da Pratt & Whitney ou
da Rolls Royce, podendo ser interessante verificar a que empresa será atribuída o
fabrico dos motores do J-20. Neste ponto colocam-se duas possibilidades mais
prováveis: o Shenyang Aeroengine Research Institute (não confundir com a Shenyang
Liming) ou a Xi’an Aeroengine PLC (também conhecida por fábrica 410).
Se a escolha recair sobre a primeira opção então poderemos estar perante uma decisão
com base em critérios de natureza técnica associados à capacidade tecnológica
instalada para aperfeiçoar o actual motor, pois o Instituto poderá beneficiar do know-
how adquirido para o transferir para outros projectos de motores que tem em
desenvolvimento, como o QC-280, WS-10G e WS-10-118.
A escolha da segunda opção poderá ter por base critérios de fiabilidade da fábrica 410
que tem vindo a produzir em massa os fiáveis motores WS-9 para o caça JH-7 e é
responsável pelo fornecimento de metade dos componentes do motor WS-10, dos
bypass para os motores do avião de transporte pesado Y-20 e pelo fabrico do motor
WS-15 (o mais forte candidato a equipar o J-20) o qual deverá em breve estar pronto a
ser fabricado em série. O recente anúncio de que a fábrica 410 assinou uma joint-
venture com a Nexcelle (da General Electric) para produzir o avião comercial de
passageiros COMAC C-919, poderá ser mais um trunfo no sentido da empresa melhorar
os seus mecanismos de gestão de projectos e de controlo de qualidade (s.a., 2011d).
No entanto, poder-se-á assim questionar porque é o governo não encerra a Liming e
transfere toda a produção para a Xi’an Aeroengine PLC ou outro fabricante, em
benefício do aprofundamento do processo de consolidação do sector da aviação, visto
que 2007 a fábrica Guizhou Honglin da CAIC adquiriu os planos do motor WS-10
procedendo à construção de uma versão mais “vitaminada”.
Uma explicação possível poderá ter a ver com a intenção de fomentar a competição no
mercado interno onde também coexistem outros fabricantes ao nível da Liming, como a
Guizhou Liyang ou o Chengfa Group (fábrica 420). Outra terá a ver com o impacto
sócio-económico negativo que daí poderia advir para a cidade de Shenyang (pivot do
rust belt chinês) e que foi bastante flagelada pelo desemprego durante a década de
noventa devido à reestruturação do sector siderúrgico nacional. uma análise mais
profunda das capacidades técnicas reais das potencialidades de uma e outra – algo que
ultrapassa o âmbito deste artigo é que permiti entrever possíveis razões
justificativas para a continuidade, por enquanto, desta opção por parte do Conselho de
Estado.
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No âmbito do conglomerado que é a AVIC, o projecto do J-20 parece ter catapultado a
Chengdu Aircraft Industry Corporation e o seu Instituto 611 para uma posição de
primazia face à Shenyang Aircraft Corporation e ao Instituto 601, a qual já se estava a
delinear quando a CAIC venceu a SAC na competição pelo desenvolvimento e produção
do caça J-10, bem como pelos contratos de exportação do J-7 e do JF-17 (com a SAC a
ficar-se pelo desenvolvimento e produção de variantes do J-8 que sempre teve
problemas técnicos nos subsistemas de radar e de mísseis só recentemente
solucionados).
20
Estes projectos - mais particularmente o do J-10 - foram como que um “Programa
Apolo” para a indústria de aviação chinesa, lançando uma nova e inteira geração de
engenheiros (actualmente com pouco mais de trinta anos)
21
na complexidade dos
processos de investigação, desenvolvimento e produção de aviões militares, a qual será
a espinha dorsal da I&D da China durante as próximas duas décadas.
Esta experiência acumulada será valiosa e muito mais potenciada à medida que estes
engenheiros atingem uma maior maturidade e know-how na resolução de problemas
associados a estes tipos de projectos. Nesta óptica, e para a CAIC, the best is yet to
come.
No entanto é justo ressalvar que a SAC
22
fez um esforço muito meritório na produção
do Su-27 a partir dos planos fornecidos pela Rússia, tendo num curto espaço de tempo
conseguido iniciar a produção dos J-11B e J-11Bs, o que gerou alguma surpresa nos
parceiros russos e acusações de reversão de tecnologia.
23
Na verdade, o J-11B tem tido
enormes problemas ao vel dos motores WS-10A fabricados pela Shenyang Liming,
havendo indícios técnicos que apontam que só em 2011 é que se iniciou a produção em
maior número do J-11B.
Não obstante esta poderá ser uma mais-valia futura, visto que a SAC tem estado a
desenvolver e a testar o protótipo do J-15
24
e a sua experiência no fabrico de ligas de
titânio e alumínio de alta qualidade empregues no J-11 foram, são e serão essenciais
para o projecto do J-20.
Ainda assim, a publicitação do voo do J-20 lançou algumas desconfianças quanto à
capacidade autóctone chinesa em desenvolver este protótipo num relativamente curto
espaço de tempo e sem recurso a assistência técnica externa, tendo em consideração
as referências de modelos anteriores (figura 1).
25
20
Estima-se que o J-10 tenha um custo unitário de 27.8 milhões de dólares contra os 18.8 milhões do F-16
C/D. Já o J-20 deverá ter um custo entre os 100 e 120 milhões contra os 143 milhões do F-22 e os 11.1
do F-35A e menos de 100 milhões do Su T-50 (Dsouza, 2011b).
21
Conversa do autor em Pequim com um Oficial Superior da Força Aérea do EPL em Outubro de 2007.
22
Fundada em 1951 foi pioneira no fabrico de aviões de combate chineses apoiando a criação de outras
empresas como a CAIC. A sua grande pecha é a pouca capacidade de inovação demonstrada muitas das
vezes pelo quase copy-paste ou reversão de tecnologia.
23
Reversão de tecnologia que havia sido anteriormente efectuada com o MiG-21 que aplicou no J-7. Na
verdade julgamos que o que deve ser realçado é a curta curva de aprendizagem que os engenheiros da
SAC demonstraram na assimilação do design e no fabrico de elementos estruturais do avião de alumínio
como de titânio (You, 1999: 159).
24
Também conhecido por J-18 tem como modelo de base o Su-33 e muito provavelmente entrará ao
serviço em 2015, sendo locados ao porta-aviões Varyag que está em fase final de remodelação em
Dalian. No final de Abril foi noticiado que este modelo teria efectuado voos de teste a partir de uma base
aérea na Mongólia Interior (s.a., 2011e).
25
Por exemplo, o primeiro protótipo do F-22 surgiu em 1991 (após quinze anos de estudos) com o primeiro
avião a entrar ao serviço em 2003. As estimativas relativas ao F-35 apontam para uma década entre o
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Figura 1 – O Ciclo de Investigação, Desenvolvimento e Produção de Aviões para a FAEPL
De facto começaram a surgir vários comentários, a maioria das quais indiciando a forte
possibilidade de Pequim ter adquirido planos e tecnologia através de processos de
espionagem industrial e militar, mas minimizando o facto de os Estados Unidos
disponibilizarem muita e relevante informação tecnológica sensível através de fontes
abertas, o que permite à China direccionar as suas actividades de espionagem para
alvos muito específicos (Gorma et al, 2011).
Uma dessas suspeitas recai sobre os materiais compósitos utilizados na fuselagem, cuja
investigação e desenvolvimento pode ter sido facilitada através da obtenção de partes
do F-117 - nomeadamente da fuselagem com inerente análise da cobertura e técnica
de pintura empregues, da tecnologia de dissimulação térmica e de radiação dos
motores e análise dos sistemas de navegação (Fischer, 2010: 35) - abatido pelos
sérvios em 1999 aquando da campanha da NATO de bombardeamento aéreo do
Kosovo, durante a qual a embaixada da China em Belgrado foi inadvertidamente
bombardeada. Dadas as relações de proximidade e cooperação entre a Sérvia, a China
e a Rússia é muito provável que muitas partes do F-117 tenham seguido para Pequim e
Moscovo (Gertz, 2011).
Também não é de menosprezar os benefícios resultantes da cooperação com Israel
relativa ao caça Lavi e ao J-10 (denominação israelita e chinesa, respectivamente)
ambos muito baseados na tecnologia do F-16, a qual ainda que não tenha influenciado
o desenvolvimento do J-20 pode ter gerado sinergias em termos de know-how
autóctone.
primeiro protótipo e a entrada ao serviço, o que é compreensível dado o facto de ser um caça furtivo de
descolagem vertical.
P
Protótipo
PI
Produção Inicial
PS
Produção
em Série
P S
P PI PS
P PI PS
P PI PS
P PI PS
P PI PS
P PI PS
P PI?
P PI?
J- 20
J-15
J-11
J-10
J-8
J-7
J-6
J-5
H-6
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Por último, os cada vez mais divulgados casos de ciber-espionagem chinesa,
nomeadamente a alegada obtenção por parte de hackers chineses de mais de três
terabytes de informação não classificada do Departamento de Defesa norte-americano
onde constava informação sobre tecnologia furtiva, tendo também dez anos atrás
penetrado na rede interna de um centro militar norte-americano localizado na Califórnia
e dedicado à investigação e desenvolvimento de tecnologia furtiva - ironicamente
chamado de China Lake deve também ter fornecido muita informação vital para o
projecto do J-20.
26
Considerações finais
A nova metodologia adoptada por Pequim no âmbito da reestruturação e modernização
da sua indústria de defesa e da aviação em particular baseia-se na escolha criteriosa de
projectos que considera como prioritários, conferindo-lhes neste caso uma base de
financiamento quase ilimitado através do Fundo de Investigação de Armas e
Equipamento, do Fundo de Tecnologias Transversais de Defesa (ambos do DGA), do
Fundo de Inovação da China Aerospace Corporation e dos Programas 863 e 973
(Stokes, 2009: 11).
No entanto, e à medida que o país se torna mais próspero e com uma capacidade
industrial e tecnológica mais sofisticada, é muito provável que esta estratégia venha a
ser alterada tornando-se mais ampla quanto aos seus objectivos. Os sectores militares
da indústria electrónica, da aviação, da construção naval e espacial lideram
actualmente os processos de inovação beneficiando de uma estreita colaboração com
os congéneres no sector civil, fruto de um processo de integração top-down iniciado em
finais da década de noventa e aprofundado desde 2003.
Pelos dados disponíveis e progressos organizacionais e tecnológicos efectuados na
última década, através dos múltiplos indicadores de aferição da evolução tecnológica -
como os orçamentos relativos à I&D, investimento privado, número de patentes,
publicações científicas, produtos comercializados, qualidade dos recursos humanos,
liderança, flexibilidade organizacional e gestão empresarial - permitem neste momento
inferir a continuação de um rápido progresso nestes sectores da indústria de defesa
durante a próxima década.
27
No sector mais inclusivo da indústria de aviação estes desenvolvimentos permitiram à
China dar um salto qualitativo no âmbito da I&D e da produção de aviões de combate e
de transporte, como o demonstram o J-10, o J-11 e mais recentemente os protótipos
do J-15 e do J-20.
Neste último caso, e por mais impressionante que tenha sido esta evolução autóctone,
deve-se realçar a elevada probabilidade de a China ter tido acesso a partes do F-117
26
Veja-se os relatórios anuais do U.S. Defense Security Service intitulados Technology Collection Trends in
the U.S. Defense Industry e estão disponíveis em http://www.dss.smil.mil. Os relatórios desta agência
do Pentágono responsável por investigar actividades de espionagem em território norte-americano, ainda
que não refiram os países que levam a cabo tais actividades, agrupam-nos em regiões, com a China a
ficar na do Nordeste da Ásia, região onde é maior o número de acções de espionagem detectadas,
deixando implícito a preponderância da China.
27
As verbas destinadas à I&D têm vindo a aumentar a uma média de 25.5% ao ano desde 2006. Em 2009
investiu 89.9 mil milhos de dólares contra os 46 mil milhões de 2006. Numa reunião que juntou os mais
de 300 institutos de investigação do EPL e que ocorreu em Abril de 2011, foram aprovadas as áreas
prioritárias de I&D para o 12º Plano Quinquenal (2011-2015) onde se insere sem dúvida o J-20 (Luo,
2011).
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abatido em 1999 e a planos parcelares de fabrico de caças de geração dos Estados
Unidos através de ciber-intrusão, o que terá facilitado e encurtado o processo de I&D
da AVIC.
Igualmente, os acordos de co-produção dos Su-27 foram um marco importante, pois
permitiram à SAC e indirectamente à CAIC, melhorarem os seus sistemas internos de
gestão de projectos e de qualidade, ao mesmo que lançaram uma geração de jovens
engenheiros aeronáuticos em crash projects de quase on job training, cuja experiência
acumulada reflectiu-se no J-10 e será demonstrada nas próximas duas décadas em
projectos mais sofisticados como o J-15 e o J-20.
Se adicionarmos a prioridade atribuída em termos de financiamento a este tipo de
projectos de grande visibilidade, é muito provável que o J-20 entre ao serviço da FAEPL
antes de 2018 - ano apontado pela maioria dos especialistas o que consubstanciará
um impacto mais psicológico que verdadeiramente estratégico no plano regional.
28
Não obstante, tal poderá obrigar - num primeiro plano a que países como a Rússia e
os Estados Unidos - e num segundo plano - a Índia
29
, o Japão e a Coreia do Sul a
reequacionem, respectivamente, quer os planos de construção quer os de aquisição de
aviões de combate de geração como o Su T-50 (ou PAK-FA) e o F-22, numa nova
mas agora “mais furtiva” faceta da actual corrida regional a sofisticados sistemas de
armas, dinâmica da qual a Europa está completamente afastada (Bitzinger, 2011), não
se prevendo que venha a envolver-se, independentemente da liturgia e da retórica
política associada ao discurso da União Europeia como um actor global de segurança e
defesa e mais especificamente em termos de hard security na região asiática.
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28
Para uma excelente análise sobre este potencial impacto estratégico veja-se (Kopp, 2011).
29
Em Setembro de 2010 a Índia assinou com a Rússia um memorando de entendimento com vista ao
desenvolvimento e produção conjunta de 250 caças de geração PAK-FA, num valor inicial para cada
uma das partes da ordem dos 6 mil milhões de dólares (Shukla, 2010).
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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS
FUNDAMENTOS
Mateus Kowalski
email:
mateus.kowalski@gmail.com
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra,
Mestre em Direito Internacional e Licenciado em Direito. Autor de artigos e comunicações sobre
Teoria do Direito Internacional, o sistema das Nações Unidas, direitos humanos e assuntos de
segurança. Docente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é investigador na área
da justiça penal internacional (Observatório de Relações Exteriores), e na Universidade Aberta.
Conselheiro jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal,
no domínio do Direito Internacional
Resumo
A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal
internacional. O Tribunal é referido como a instituição paradigmática da concepção
universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública internacional
reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção liberal dominante que
marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações Internacionais. Contudo,
as críticas que são apontadas ao universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição
global de instituições e padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em
particular, têm-lhe sido apontadas um conjunto de críticas essenciais, tais como a
dependência face ao Conselho de Segurança, sugerindo ingerência política num órgão penal,
ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas ao Tribunal situações relativas
a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a sua selectividade. Estas são críticas
que põe em causa os fundamentos do TPI.
Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também por
isso, ainda paira alguma expectativa e até cepticismo sobre o sucesso da sua missão, saber
o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e retribuição penal e de
construção da paz depende em grande medida da resistência dos seus alicerces teóricos. É
argumentado que, apesar do discurso de sustentação aparentemente sólido radicado no
universalismo, as respostas que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias
devido, em grande medida, às insuficiências estruturais que a caracterizam. O artigo, que
pretende apontar pistas de reflexão sobre o tema, afere, primeiro, sobre a competência do
universalismo jurídico para sustentar o “seu” TPI face àquelas problemáticas. Em seguida,
identifica elementos que possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como
o da teoria crítica, que possa contribuir para o desenvolvimento de um discurso que confira
ao Tribunal uma maior sustentabilidade teórica.
Palavras-chave
Tribunal Penal Internacional; Direito Internacional; Universalismo; Teoria Crítica
Como citar este artigo
Kowalski, Mateus (2011). "O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de
resistência aos seus fundamentos”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2,
N.º 2, Outono 2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_art6
Artigo recebido em Julho de 2011 e aceite para publicação em Outubro de 2011
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O Tribunal Penal Internacional. Reflexões para um teste de resistência aos seus fundamentos
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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
REFLEXÕES PARA UM TESTE DE RESISTÊNCIA AOS SEUS
FUNDAMENTOS
Mateus Kowalski
1. Introdução
A implementação da ideia de que qualquer indivíduo onde quer que se encontre e
independentemente do seu estatuto oficial pode ser responsabilizado por crimes de
relevância para toda a humanidade é uma ruptura com o paradigma vestfaliano de que
cabe a cada Estado julgar (ou não) os “seus”. Após a Guerra-fria foram criados diversos
tribunais penais internacionais, designadamente os tribunais ad hoc para a ex-
Jugoslávia e para o Ruanda, e um tribunal penal de carácter permanente, o Tribunal
Penal Internacional (doravante “TPI”). O poder deixou de constituir um escudo de
impunidade como anteriormente. Os líderes envolvidos em conflitos aprenderam a
temer a justiça penal internacional como uma espada de mocles”. Por outro lado, a
criação de jurisdições penais internacionais, nas suas diversas formas, passou a ser um
método para a consolidação da paz em situações de pós-conflito enquanto mecanismo
de justiça restaurativa.
A constituição do TPI, em 2002, representa o expoente da evolução da justiça penal
internacional. O Tribunal é mesmo referido como a instituição paradigmática da
concepção universalista do Direito Internacional, que pretende uma ordem pública
internacional reforçada e que se inscreve no quadro mais abrangente da construção
liberal dominante que marca actualmente quer o Direito Internacional quer as Relações
Internacionais. Conforme referem Bogdandy e Dellavalle, «no contexto global, o
progresso deste projecto de uma verdadeira ordem pública internacional e de um
verdadeiro Direito Internacional assenta actualmente e em larga medida no destino do
Direito Penal Internacional» (2008: 2). Contudo, as críticas que são apontadas ao
universalismo, nomeadamente no que respeita à imposição global de instituições e
padrões normativos liberais, têm também reflexo no TPI. Em particular, têm-lhe sido
apontadas um conjunto de críticas essenciais, de que são exemplo representativo a
dependência face ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, sugerindo ingerência
política num órgão penal, ou o facto de até ao presente apenas terem sido submetidas
ao Tribunal situações relativas a África, o que por sua vez induz a desconfiança sobre a
sua selectividade. Estas o críticas que e em causa os fundamentos do TPI no
quadro do universalismo.
Numa altura em que o Tribunal ainda não terminou nenhum julgamento e que, também
por isso, ainda paira alguma expectativa e a cepticismo sobre o sucesso da sua
missão, saber o que esperar do TPI no âmbito das suas funções de prevenção e
retribuição penal e de construção da paz depende em grande medida da resistência dos
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seus alicerces teóricos. É argumento do presente estudo que, apesar do discurso de
sustentação aparentemente sólido radicado na perspectiva universalista, as respostas
que esta teoria oferece não são plenamente satisfatórias devido, em grande medida, às
insuficiências estruturais que a caracterizam. Assim, sujeitar o TPI a um teste de
resistência no que respeita aos seus fundamentos teóricos permite identificar os seus
pontos de tensão e, simultaneamente, procurar outros campos teóricos que possam
produzir um discurso que o acolha e sustente.
O presente estudo, que pretende apontar pistas de reflexão sobre a temática, aferirá,
primeiro, a competência do discurso do universalismo jurídico para sustentar o “seu”
TPI face àquelas problemáticas. Em seguida, procurará identificar elementos que
possam ser explorados num enquadramento mais complexo, como o da teoria crítica,
que assim lhe possa eventualmente conferir maior sustentabilidade teórica.
2. O Universalismo e o TPI
A teorização sobre a universalidade da ordem pública e, em especial, o debate actual
em torno da sua constitucionalização, é, ao nível do Direito Internacional, um expoente
da racionalidade moderna que caracteriza o pensamento liberal dominante. Por sua
vez, a narrativa da paz liberal, em cuja agenda o TPI se inscreve, assume-se como uma
concepção universalista de base racional (Richmond, 2008).
Ao contrário do que acontece com as concepções conservadoras do Direito
Internacional, as correntes que se congregam no universalismo defendem que uma
ordem pública internacional é possível e recomendável, quando não mesmo uma
construção lógica induzida pela razão (Dellavalle, 2010). Estas correntes partilham uma
concepção universal da ordem pública, dotada de um núcleo normativo fundamental
que é comum aos actores internacionais e instituições para a acção colectiva em prol
de objectivos universais. Para o universalismo, o Direito Internacional deve, pois,
regular de forma abrangente a sociedade internacional nas várias dimensões da
actuação humana que não se confinem à jurisdição do Estado e relativamente aos seus
vários actores, designadamente o indivíduo. Para se atingir este objectivo é necessária
a cooperação e integração parcial entre Estados (idealmente democráticos), num
processo devidamente enquadrado por organizações internacionais.
Os ideais de Kant de um Direito cosmopolita e de uma república mundial fundada na
razão conformam o ponto de partida do entendimento universalista da ordem pública,
hoje dominante e com expressões marcantes na doutrina liberal vigente. O processo
mental subjectivo próprio de cada indivíduo determinado pela razão passa a ser o
elemento comum que fundamenta o universalismo.
A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigência cada
mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos
direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam novas pulsões
constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitucionais nacionais.
Surge, assim, a proposta do constitucionalismo global como forma apologética do
universalismo de racionalidade objectiva. O constitucionalismo global é porventura a
mais importante alteração estrutural dos últimos tempos no âmbito da teoria do Direito
Internacional, tendo vindo a marcar de forma prevalecente o debate na disciplina
(Machado, 2006). No fundo, a proposta do constitucionalismo global oferece uma
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compensação normativa para os défices constitucionais estaduais induzidos pela
globalização (Peters, 2009).
O TPI enquadra-se de forma evidente nesta concepção universalista de matriz liberal. O
que se torna visível a dois veis: por um lado, no exercício da justiça penal para além
do Estado e, por outro, na valorização do indivíduo enquanto sujeito relevante das
relações sociais internacionais.
No que respeita ao primeiro, a acção penal é um poder tradicionalmente característico
do núcleo de soberania do Estado. O TPI significa uma ruptura com este postulado
clássico: o poder penal passa a poder ser exercido também numa ordem que está além
da esfera pública estadual. Este poder penal internacional não carece de uma
autorização pelos Estados. O inquérito, o mandado de detenção ou o julgamento
podem ser despoletados por uma decisão do Tribunal, podendo mesmo ser contrária à
vontade dos Estados que tenham jurisdição primária sobre o caso. Assim é nas
situações em que a jurisdição tenha sido estabelecida pelo Procurador ou pelo Conselho
de Segurança, nos termos do artigo 13.º do Estatuto do TPI, o que pode mesmo
implicar assumir a jurisdição face a Estados que não são Parte no Estatuto. O que se
traduz no reforço da ordem pública internacional dotando-a de uma jurisdição de
competência penal, à semelhança do que acontece nas ordens estaduais.
No que respeita ao segundo aspecto, será de realçar que o Tribunal desenvolve a sua
acção centrado no indivíduo. Desde logo na medida em que prossegue, através da
justiça, os objectivos da protecção e promoção dos direitos humanos e da restrição do
recurso à força e minoração dos seus efeitos ao vel das populações civis. No quadro
do TPI, estes são objectivos que traduzem uma preocupação com a dignidade universal
da pessoa humana, uma preocupação atribuível à comunidade internacional e não tão-
somente ao Estado. Mas a centralização no indivíduo tem também outras
manifestações importantes, como seja a capacidade de intervenção dos indivíduos no
processo penal internacional. Ora, nenhuma das partes no processo é um Estado:
antes, são, por um lado o Procurador e, por outro, o réu
1
. Depois, o inquérito pelo
Procurador pode ter origem em comunicações de organizações não-governamentais, as
quais contribuem, igualmente, na recolha da prova testemunhal e documental. Importa
igualmente sublinhar que um funcionário internacional, o Procurador do TPI, pode por
sua própria iniciativa abrir um inquérito
2
. Finalmente, as vítimas são uma figura
interventiva no processo, assumindo um papel semelhante ao que lhes é atribuído ao
nível penal estadual.
3. Críticas ao TPI e a Resposta do Universalismo
Actualmente têm persistido algumas críticas duras ao TPI relativas aos seus
fundamentos e que, de alguma forma, reflectem uma preocupação com a imposição de
soluções ético-normativas “ocidentais” de matriz liberal. Elas são essencialmente de
duas ordens: estatutária e factual. Tenham elas origem em razões próprias do seu
estatuto jurídico ou em motivações políticas do quotidiano, é possível identificar na
1
A designação dos casos que decorrem perante o TPI reflecte a ideia de um sistema acusatório
internacional em que as partes são o Procurador e o réu. A título de exemplo, o primeiro caso do TPI tem
a designação de Prossecutor v. Thomas Lubanga Dilo.
2
Artigo 15.º do Estatuto do TPI.
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perspectiva universalista uma argumentação que procura rebater aquelas críticas e
sustentar o TPI através de um discurso de racionalidade objectiva.
3.1. A Dependência face ao Conselho de Segurança
A crítica de que a acção do Tribunal se encontra excessivamente dependente do
Conselho de Segurança e que, portanto, é em larga medida determinada por critérios
políticos e o por critérios jurídicos de atribuição de competência, é uma preocupação
que remete para um aspecto estatutário. Efectivamente, o poder do Conselho de
Segurança sobre a acção do TPI encontra-se previsto no Estatuto do Tribunal,
nomeadamente nos seus artigos 13.º e 16.º.
O artigo 13.º, al. b) estabelece que o Conselho de Segurança pode submeter ao
Procurador uma situação em que existam indícios de terem sido cometidos crimes
graves de competência do TPI. Assim, das sete situações em apreciação
3
, duas foram
submetidas por aquele órgão. Este poder conferido ao Conselho de Segurança tem
merecido, desde os trabalhos preparatórios do Estatuto do TPI, várias objecções: desde
a denúncia da perda de independência e credibilidade do Tribunal que tal significa,
passando pela defesa de que o Conselho de Segurança não tem competência em
matéria de justiça penal internacional nos termos da Carta das Nações Unidas ou até
pela acusação de que tal cria uma situação de selectividade no estabelecimento da
jurisdição (Yee, 1999).
Qualquer destas críticas tem subjacente que a submissão de casos ao TPI está sujeita a
critérios de decisão política diferente dos critérios de admissibilidade próprios de um
órgão jurisdicional como o TPI. A tudo isto acresce o facto de dos cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança, três deles a China, os Estados Unidos da
América e a Rússia não serem Parte no Estatuto do Tribunal. Uma vez que dispõem
de direito de veto
4
, qualquer situação que ocorra no seu território ou que envolva
nacionais seus nunca teria, certamente, qualquer possibilidade de ser submetida ao
Tribunal. O que reforça a ideia de que o exercício da jurisdição do Tribunal pode ser
selectivo, em função das dinâmicas próprias do Conselho de Segurança.
O poder do Conselho de Segurança previsto no artigo 16.º do Estatuto é, todavia,
aquele que tem sido apontado como constituindo a ingerência política mais grave. Nos
termos daquela disposição, o Conselho de Segurança pode decidir suspender um
inquérito ou procedimento criminal em curso no TPI por um período de doze meses
renovável. O Conselho de Segurança chegou mesmo a aprovar resoluções conferindo
imunidade em abstracto a pessoas envolvidas em operações de paz ao serviço de um
Estado que não seja Parte no Estatuto do TPI
5
. Pode mesmo ser argumentado que se
trata de uma modificação do Estatuto de Roma pelo Conselho de Segurança (Jain,
2005). O que, por um lado, choca com o propósito de combate à impunidade pelos
mais graves crimes internacionais e, por outro, demonstra todo o alcance da
intervenção que o Conselho de Segurança está disposto a empreender. Várias
organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos têm, aliás, apontado
3
Incluindo a situação relativa à Costa do Marfim cuja admissibilidade se encontra, ao tempo destes
escritos, em apreciação pelo 2.º Juízo de Instrução.
4
Vide artigos 27.º, n.º 3 da Carta das Nações Unidas e 13.º, al. b) do Estatuto do TPI.
5
Vide, por exemplo as Resoluções S/RES/1422, de 12 de Julho de 2002, e S/RES/1487, de 12 de Junho
de 2003.
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a promiscuidade entre acção jurisdicional e lógica política como prejudicial para a
justiça penal internacional (Bourdon, 2000). Poderia, antes, ter sido privilegiado um
mecanismo de concertação e diálogo entre o Conselho de Segurança e o Tribunal
(Bourdon, 2000).
No caso do crime de agressão, o papel do Conselho de Segurança vai ainda mais longe.
A conferência de revisão do Estatuto do TPI, que decorreu em Kampala, em 2010,
introduziu o crime de agressão não definido inicialmente no Estatuto estabelecendo
que o exercício de jurisdição pelo Tribunal depende de uma prévia determinação pelo
Conselho de Segurança de que houve um acto de agressão
6
.
A esta perspectiva crítica do papel do Conselho de Segurança face ao TPI está
subjacente uma preocupação com o exercício de funções por um órgão executivo,
centrado no rculo estrito dos seus membros permanentes e sem verdadeiros
mecanismos de controlo político ou jurisdicional (Kowalski, 2010). Preocupação para a
qual o próprio discurso do universalismo não fornece resposta.
Todavia, uma análise da problemática pela perspectiva do universalismo produz
argumentos que relegam aquelas críticas para um plano secundário e que salientam, ao
invés, a evolução na conformação da ordem blica internacional. Assim, no que se
refere à capacidade do Conselho de Segurança em submeter uma situação ao Tribunal
ela representa, desde logo, a possibilidade do TPI julgar crimes relacionados com
Estados que não são Parte no Estatuto e sobre os quais não poderia de outra forma
exercer a sua jurisdição. Mais do que tudo, a intervenção do Conselho de Segurança
prevista no artigo 13.º, al. b) é um mecanismo que permite contornar a vontade dos
Estados e, assim, alargar a jurisdição do Tribunal. Uma vez que o Parte no Estatuto
apenas 116 Estados, o mecanismo de submissão pelo Conselho de Segurança
assegura, potencialmente, que o Tribunal possa julgar crimes cometidos em qualquer
local por qualquer pessoa. Por outro lado, o Conselho de Segurança tem,
efectivamente, capacidade para assuntos de ordem penal, como aliás argumentou o
Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia no caso Tadić
7
. Um outro argumento
em favor desta opção é de que assim o Conselho de Segurança deixaria de constituir
tribunais penais ad hoc, como aconteceu nos casos da ex-Jugoslávia e do Ruanda
(Cassese, 2008).
No que respeita ao mais polémico poder de suspensão do inquérito ou procedimento
criminal em curso, a narrativa do universalismo argumentará que este foi um
mecanismo de compromisso negocial necessário: haveria que existir um equilíbrio
entre a acção do Tribunal e a responsabilidade principal do Conselho de Segurança na
manutenção da paz e segurança internacionais. Aliás, analisados os trabalhos
preparatórios, o artigo 16.º retira poder ao Conselho de Segurança face ao estabelecido
no projecto de Estatuto elaborado pela Comissão de Direito Internacional que serviu de
base para as negociações
8
. O então artigo 23.º, n.º 3 daquele projecto estabelecia que
o TPI não poderia iniciar qualquer procedimento relativamente a uma situação que
estivesse em apreciação no Conselho de Segurança ao abrigo da capítulo VII da Carta,
6
Vide UN Depository Notification C.N.651.2010.TREATIES-8, 29 November 2010. O Tribunal poderá
exercer a sua jurisdição se o Conselho de Segurança não se pronunciar num prazo de seis meses após a
notificação pelo Procurador da sua intenção em abrir um inquérito relativo a um acto de agressão.
7
Prosecutor v. Duško Tadić, ICTY Appeals Chamber, Decision on the Defense Motion for Interlocutory
Appeal on Jurisdiction, 2 October 1995.
8
Vide International Law Commission (1997). Yearbook of the International Law Commission: 1994, II(2).
New York: United Nations.
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a menos que este decidisse em contrário. Após intensas negociações, no que ficou
conhecido como o “compromisso de Singapura”, foi invertida a forma de intervenção do
Conselho de Segurança, passando este a agir apenas quando pretenda suspendar o
procedimento.
Por outro lado, ainda, é um facto que aao momento o Conselho de Segurança nunca
usou o poder de suspender um inquérito ou procedimento criminal em curso. Alguns
Estados Africanos têm até exercido grande pressão para que o Conselho de Segurança
exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 16.º do Estatuto do TPI, nomeadamente
face à situação do Sudão (Darfur) em que Omar Al Bashir, Presidente do Sudão, se
encontra acusado de genocídio, de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra.
O que demonstraria a responsabilidade e a cautela com que o Conselho de Segurança
encara este seu poder.
Assim, para esta concepção, lidas aquelas disposições no contexto mais abrangente do
exercício da acção penal internacional, a intervenção do Conselho de Segurança resulta
de um consenso necessário para a edificação do TPI, significando um mal relativo,
quando não mesmo um benefício. Seguindo esta linha de raciocínio, e apesar da
abundante literatura que refere argumentos como a vulnerabilidade de nacionais dos
Estados Unidos da América ou até a inexistência de julgamento por júri como causa
para aquele Estado o ser Parte no Estatuto, Schabas defende que o busílis estará
antes na excessiva independência do TPI face ao Conselho de Segurança (2004).
3.2. A Selectividade no exercício da Jurisdição
Uma outra crítica forte que se tem feito ouvir essencialmente ao nível político-
diplomático e que tem gerado alguma hostilidade por Estados Africanos relativamente
ao TPI respeita a um aspecto factual: até ao presente apenas foram submetidas ao TPI
situações relativas a África. Tal denotaria selectividade na acção do Tribunal.
Todas as sete situações referidas ao TPI dizem respeito apenas a Estados Africanos: ao
Uganda, à República Democrática do Congo, à República Centro Africana, ao Sudão
(Darfur), ao Quénia, à bia e à Costa do Marfim. Esta constatação, factual e
indesmentível, tem fomentado a acusação de que o TPI não é imparcial no
estabelecimento da sua jurisdição, acompanhada de denúncias, pelo menos implícitas,
de neo-colonialismo.
Estas acusações têm congregado o protesto de vários Estados de África, mais ou
menos unidos numa posição comum, que se tem manifestado essencialmente através
da União Africana. Na sequência da emissão do mandado de detenção pelo TPI contra
Omar Al Bashir tem-se assistido a uma reacção dura contra a tentativa do Tribunal em
julgar líderes Africanos, designadamente de Estados que não o Parte no Estatuto do
TPI. Na 15.ª Cimeira da União Africana, os seus Estados Membros reiteraram que não
cooperariam com o Tribunal na detenção e entrega de Omar Al Bashir. Por outro lado,
recusaram um estreitamento da cooperação com o TPI ao rejeitarem a abertura de um
gabinete de ligação em Adis Abeba
9
. As viagens do Presidente do Sudão a Estados
terceiros que o Parte no Estatuto do Tribunal têm igualmente gerado alguma tensão.
Na polémica viagem de Omar Al Bashir ao Chade e ao Quénia, o TPI exigiu que aqueles
9
Vide “15th AU Summit – Press Release 104: ‘Decisions on the 15th AU Summit’”, 29 July 2010.
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Estados cumprissem o mandado de detenção e entregassem o Presidente do Sudão ao
Tribunal. A União Africana reagiu de forma grave contrapondo com decisões tomadas
por aquela organização e argumentando que ela melhor conhece a realidade da
região
10
, assumindo assim uma atitude de rejeição face a uma ingerência neo-
colonialista. Mais recentemente, a emissão de um mandado de detenção pelo TPI
contra o líder Líbio Muammar Gaddafi levou a União Africana a pedir aos seus Estados
Membros que ignorassem aquele mandado. Como que sintetizando as preocupações de
vários Estado Africanos, o Presidente da Comissão da União Africana, Jean Ping, referiu
que o TPI é discriminatório porque apenas se ocupa de crimes cometidos em África,
ignorando os cometidos pelas “potências ocidentais” no Iraque, Afeganistão e
Paquistão
11
.
Neste sentido, a União Africana tem repetidamente tentado que o Conselho de
Segurança das Nações Unidas suspenda o procedimento que corre no TPI contra Omar
Al Bashir
12
, por via do expediente previsto no artigo 16.º do Estatuto do TPI. Uma vez
que o Conselho de Segurança o se tem mostrado aberto a suspender o
procedimento, a União Africana chegou a propor uma emenda ao artigo 16.º no sentido
de, quando o Conselho de Segurança não queira agir, permitir a transferência daquela
competência para a Assembleia Geral das Nações Unidas
13
onde a suspensão de um
processo gozaria de condições mais favoráveis para ser aprovada.
As motivações para estas críticas são essencialmente políticas. A elas o discurso
radicado no universalismo responde com critérios de estrita observância do Estatuto do
TPI no qual são Parte trinta e dois Estados Africanos, fazendo deste o grupo mais
representado.
Assim, e desde logo, assinala que a complementaridade é um princípio que informa o
exercício da jurisdição pelo TPI. Significa, nos temos do artigo 1.º do Estatuto, que o
TPI é complementar das jurisdições penais nacionais, exercendo a sua jurisdição
apenas quando aquelas não queiram ou não tenham capacidade genuína para julgar. O
não ter capacidade para julgar, que pode determinar a intervenção complementar do
TPI, inclui os casos em que os suspeitos hajam sido abrangidos por uma amnistia
(Cassese, 2008). Esta posição subsidiária face às jurisdições nacionais pretende
igualmente incentivar os Estados a iniciar procedimentos criminais quando estejam em
causa crimes de extrema gravidade (Kleffner, 2008). Este princípio de
complementaridade contrapõe-se à primazia de que gozam os tribunais ad hoc para a
ex-Jugoslávia e para o Ruanda face às respectivas jurisdições penais nacionais.
Logo, se o Tribunal iniciou procedimentos criminais no âmbito daquelas situações em
Estados Africanos fê-lo porque ou foram os próprios Estados a referir a situação – o que
acontecem na maioria das situações
14
– ou porque existiam indícios fortes da prática de
crimes graves de relevância para toda a comunidade internacional e os Estados com
jurisdição primacial não quiseram ou não puderam genuinamente julgar. O facto de o
Tribunal se encontrar a apreciar situações referentes a Estados que não são Parte no
10
Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.
11
Vide Associated Press “African Union calls on Member States to Disregard ICC Arrest Warrant Against
Libya’s Gadhafi”, 2 July 2011.
12
Vide “AU Press Release 118/2010”, 29 August 2010.
13
Vide “Report on the Ministerial Meeting on the Rome Statute of the International Criminal Court (ICC)”,
AU Executive Council Document EX.CL/568 (XVI), 29 January 2010.
14
São os casos do Uganda, da República Democrática do Congo, da República Centro Africana ou da Costa
do Marfim.
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Estatuto como por exemplo o Sudão ou Líbia não pode merecer crítica, na medida
em que tal possibilidade resulta do próprio Estatuto com o intuito de evitar situações de
impunidade.
Posto isto, a acusação de selectividade apenas faria agora sentido se se argumentasse
que outras situações noutras partes do globo deveriam também ser submetidas ao
Tribunal. Neste caso já não estaria em causa a justeza dos casos em apreciação
relativos a situações em África mas antes a injustiça de outras situações permanecerem
impunes. Ademais, a verdade é que foram ou estão ainda a ser examinadas outras
situações pelo Tribunal, em concreto pelo Gabinete do Procurador, incluindo relativas a
outras regiões para além de África, designadamente sobre factos ocorridos no
Afeganistão, na Colômbia, na Geórgia, na Guiné, no Iraque, na Palestina, na Venezuela,
na Nigéria, nas Honduras ou na República da Coreia. O exame preliminar obedece a
critérios gerais e abstractos estabelecidos pelo Procurador com base no Estatuto do
Tribunal
15
, o que impede formalmente qualquer selectividade ou discriminação na
decisão de iniciar ou não procedimentos criminais numa determinada situação.
4. As Insuficiências do Universalismo: Haverá Alternativa?
Os dois grupos de críticas a que se aludiu merecem da narrativa do universalismo uma
resposta aparentemente segura e convincente, formulada em torno de argumentos
lógico-dedutivos e que pretende a sustentabilidade do Tribunal enquanto elemento
estruturante da ordem blica internacional. Contudo, se se fizer deslocar o foco da
crítica para a construção universalista em si, será o quadro teórico da ordem pública
internacional em que se faz situar o Tribunal que estará então a ser posto em causa. O
TPI poderá ver-se desprovido de sustentabilidade teórica e encontrar-se em risco de
desagregação ou pelo menos em risco de vir a ser relegado para um plano secundário
no sistema internacional quando o seu estado de graça terminar.
As críticas, insuficiências e necessidades não cumpridas da teoria universalista, e em
especial no campo do constitucionalismo global, levam à necessidade de sondar novos
caminhos para o Direito Internacional, enquanto ciência jurídica. A abordagem pós-
positivista, nomeadamente a radicada na teoria crítica, já mais desenvolvida noutras
ciências sociais, incluindo nas Relações Internacionais, pode oferecer um caminho para
repensar o Direito Internacional. Em particular no que respeita ao TPI, importará
identificar alguns elementos fundamentais do Tribunal que permitam uma sua leitura e
sustentação além das insuficiências do universalismo.
4.1. As Insuficiências do Universalismo
Desenhar a ordem pública internacional sob a régua e o esquadro do universalismo, e
em especial do constitucionalismo global, observando o estadual, é um processo que se
arrisca a redundar numa promessa falhada para o Direito Internacional e para o
sistema social internacional que procura regular, até porque não é possível estabelecer
um paralelo entre as preocupações e os mecanismos de resposta de um e de outro
(Uruena, 2009). Na ilustração de Koskenniemi, o constitucionalismo global é lido
intuitivamente à imagem do constitucionalismo interno: «tratados multilaterais como
15
Vide “Draft Policy Paper on Preliminary Examinations”, 4 October 2010, www.icc-cpi.int.
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legislação; tribunais internacionais como o poder jurisdicional independente; o
Conselho de Segurança como a polícia» (2005a: 117).
A sedução do projecto do constitucionalismo global deve ser refreada por um exercício
crítico atento. Desde logo, porque no actual quadro das relações sociais internacionais
o projecto se arrisca a potenciar a dinâmica de lógicas de poder, que já influenciam os
mecanismos mais ou menos institucionalizados, mais ou menos informais, das relações
sociais internacionais. Por isso, Zolo alerta para os perigos do constitucionalismo global
centrado na Carta das Nações Unidas que pode redundar numa excessiva concentração
de poderes tornando «a protecção internacional de direitos e a prossecução da paz
ainda mais precárias» (1997: 121). Apesar da dominância do liberalismo, desafectado é
certo de relações de poder simplificadas, a verdade é que as relações sociais
internacionais ainda são dominadas por uma lógica estatocentrica, que procura
influenciar a governação global em função de interesses próprios, formando um “bloco
hegemónico”.
O poder estruturante do liberalismo tem correspondência no Direito Internacional
actual (Koskenniemi, 2005b). A teoria do Direito Internacional tem, aliás, assumido o
Direito (ou a norma) e o poder (ou realidade política) como os dois eixos de referência.
Esta, assim assumida, dupla dimensão do Direito Internacional transformou-o num
imediato instrumento dos Estados e, cada vez mais, como um factor essencial de
conformação da sociedade internacional. Daí decorre uma preocupação em assegurar
um equilíbrio entre Direito e poder, entre legitimação e resistência (Krisch, 2005): por
um lado, assegurar um distanciamento entre o Direito e a realidade política que evite a
apologia política e a liberdade absoluta do Estado; por outro, a aproximação do Direito
à realidade política que evite a utopia de soluções sem correspondência social
(Koskenniemi, 2005b).
A agenda e manifestações liberais estão claramente ainda infiltradas, embora mais
subliminarmente devido à estrutura internacional ser mais complexa por lógicas de
poder. No quadro da concepção universalista, o liberalismo oferece uma capa teórica
que confere uma racionalidade científica que legitima a prossecução dos interesses
individuais pelos Estados com maior capacidade para o fazer leia-se, com maior
poder. A lógica de solução de problemas característica do liberalismo e hoje
predominante na teoria e na prática do Direito Internacional pode servir uma estratégia
de dominação. Assim, actuando como se as estruturas reflectissem efectivamente uma
determinada colectânea de ideias verdadeira e única, resolvem-se os problemas que
afectam o funcionamento das normas, processos e instituições, e consideram-se
inamovíveis as estruturas. De um tal processo resulta a estabilização dessas normas,
processos e instituições, bem como a cristalização das estruturas, que porventura estão
na raiz do problema, sem procurar uma alternativa. O poder e a verdade alimentam-se,
assim, mutuamente (Foucault, 1980).
Contudo este entendimento metodológico, e de certa maneira ideológico, radica numa
premissa incorrecta: a de que a realidade política e social é imutável (Cox, 1981). A
crítica a este modo liberal propicia, como refere Cox, «um guia de acção estratégica
para provocar uma ordem alternativa» (1981: 130).
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4.2. O Pós-Positivismo no Direito Internacional
Para algumas concepções pós-positivistas, o universalismo é possível, e eventualmente
desejável. Mas afasta-se, do ponto de vista epistemológico, da ideia de uma
racionalidade universal que permita a objectivação universal da realidade. A teoria
crítica põe em causa a possibilidade central do conhecimento objectivo, que as
sociedades e os indivíduos são parte de uma ordem natural ou que o conhecimento
apenas pode ser adquirido através da experiência (Hollis, 1996). Proclama, pois, que o
objecto de percepção (a realidade empírica), seja no âmbito das relações jurídicas,
sociais, políticas, económicas ou culturais, é indissociável da sua percepção pelo sujeito
que a procura apreender, analisar e explicar.
A teoria crítica, verificando as insuficiências de ideias de partida de verdade única, bem
como da ontologia e epistemologia universalista ortodoxa, pretende superá-las com
recurso ao conceito central de emancipação. O discurso ético leva a uma maior
liberdade e emancipação, desprendido da camisa-de-forças vestfaliana, que nunca
permite ver verdadeiramente para além do Estado. A alternativa pós-positivista da
teoria crítica tem, assim, capacidade de resistir ao universalismo de base racional
enquanto forma de hegemonia ao lhe conferir uma maior representatividade (Hoffman,
1988). O conhecimento, o discurso, a igualdade de oportunidades ou a justiça são
elementos éticos que servem de blindagem contra a hegemonia.
O pensamento pós-positivista estimula uma leitura multidisciplinar das relações sociais
internacionais, em especial ao nível das Relações Internacionais e do Direito
Internacional. O impulso da teoria crítica aplicada à Ciência Política, em particular às
Relações Internacionais, vem beber a outras ciências sociais onde a teoria social crítica
se encontra mais desenvolvida e mais presente no pensamento específico (George,
1994). Esta é porventura, um dos mais importantes desenvolvimentos na teoria
contemporânea das Relações Internacionais (Richmond, 2008): o abandono da apologia
do eterno presente e a procura de uma maior riqueza teórica (Pureza, 1999).
Ao vel do Direito Internacional o processo de crítica, subjacente à abordagem pós-
positivista, tomou duas grandes linhas distintas: por um lado, a que advoga uma
redefinição teórica, sem cortar totalmente com o sistema existente corrente
influenciada pela Escola de Frankfurt
16
; por outro lado, a que professa uma ruptura
total com a modernidade onde seria impossível aproveitar qualquer base para a nova
teorização necessária
17
. Sem pretender desenvolver este aspecto, que aqui não
encontra lugar, importa, em todo o caso, desmistificar a ideia de que a teoria crítica
implique necessariamente a condenação do Direito Internacional (Carty, 1991) e que,
assim, a desconstrução signifique destruição.
Uma leitura pós-positivista permite afirmar que o Direito Internacional pode ser
diferente daquele que é construído pela teoria e pela prática ortodoxa do liberalismo, e
certamente do realismo. Daqui pode brotar uma nova concepção do Direito
16
Vide entre outros: Habermas, Jürgen (1984). The Theory of Communicative Action, vol. 1: Reason and
the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press; Habermas, Jürgen (1987). The Theory of
Communicative Action, vol. 2: Lifeworld and System – a Critique of Functionalist Reason. Boston: Beacon
Press; Habermas, Jürgen (2008). «A Political Constitution for the Pluralist World Society?». In Jürgen
Habermas (ed.), Between Naturalism and Religion. Cambridge: Polity Press, 312-352.
17
Vide entre outros: Koskenniemi, Martti (2005). From Apology to Utopia: The Structure of International
Legal Argument. Cambridge: Cambridge University Press; Kennedy, David (2004). «Speaking Law to
Power: International Law and Foreign Policy Closing Remarks». Wisconsin International Law Journal.
23(1), 173-181.
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Internacional assente num paradigma pós-positivista: acentuar no Direito Internacional
a dimensão teórica crítica e assim constituir um verdadeiro sistema ético-normativo e
um discurso autorizado legitimador e conformador de uma sociedade internacional
menos oligárquica e mais igual (Pureza, 1998).
A ontologia deste Direito Internacional não é apenas a realidade objectiva ou
“empírica”, mas também a sua representação subjectiva, de base normativa e
intencionalidade transformadora, em que o quotidiano e a empatia são conceitos
operacionais. Um Direito Internacional que pretende ser factor de transformação não
pode simplesmente romper com a realidade política e dela fazer tábua rasa. Precisa
primeiro de a compreender, para depois a desconstruir e então ensaiar uma crítica no
sentido da construção de um sistema alternativo. Por isso, embora haja uma ruptura
com os postulados teóricos das concepções ortodoxas do Direito Internacional, a crítica
não pode contudo alhear-se da realidade objectiva (as normas, os factos, as
instituições, os processos) sobre a qual pretende actuar.
4.3. Elementos para uma Leitura do TPI num Quadro Pós-Positivista
O pensamento pós-positivista, em especial no quadro da teoria crítica, pode levar a
uma desconstrução desagregadora das organizações internacionais actuais,
especialmente se lida por concepções de ruptura do pós-modernismo: Koskenniemi
defende como alternativa à ordem internacional actual o desenvolvimento do Direito
Internacional através do empowerment de grupos independentes fora das organizações
internacionais (2004); Kennedy, por sua vez, defende que o TPI foi “uma ideia”
(Moore, 2005). Sem pretender no presente estudo encetar um diálogo sobre o pós-
modernismo, dir-se-á, contudo que existem alguns elementos do Tribunal que
merecem alguma reflexão sobre se não podem ser aceites e trabalhados segundo uma
abordagem pós-positivista, em especial no âmbito da teoria crítica.
Os dois grupos de cticas a que se aludiu anteriormente, hoje muito audíveis,
poderiam, e em certa medida são, também alimentados pelo discurso da teoria crítica.
Contudo, existem elementos que caracterizam de forma fundamental o TPI e que
podem servir de ponto de partida para informar uma construção pós-positivista que
acolha o Tribunal num discurso de emancipação e transformação ancorado em ideais
radicados na dignidade da pessoa humana. A figura do Procurador e o papel da
sociedade civil são exemplos de tais elementos, a que aqui apenas se pretende aludir
enquanto proposta para reflexões posteriores.
O Procurador, ou melhor, o Gabinete do Procurador
18
, é responsável por receber
informações sobre crimes da competência do Tribunal a fim de as examinar e para
conduzir investigações e exercer a acção penal junto do Tribunal. O Procurador goza de
autonomia em relação ao Tribunal e de independência na determinação de iniciar um
inquérito, de investigar e de acusar indivíduos pela prática dos crimes sob jurisdição do
TPI, sempre sujeito, naturalmente, a posterior apreciação pelo juízo competente. No
que respeita a crimes cometidos no território ou por um nacional de um Estado que é
Parte no Estatuto, o Procurador exerce aqueles poderes motu proprio. Esta é, aliás,
considerada uma das conquistas importantes para as organizações não-governamentais
de defesa dos direitos humanos e para as vítimas (Bourdon, 2000).
18
Nos termos do artigo 42.º do Estatuto do TPI, o Procurador preside ao órgão “Gabinete do Procurador”.
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A figura do Procurador do TPI não encontra paralelo no sistema internacional. Trata-se
de um funcionário internacional que exerce uma competência penal, de forma
independente, podendo investigar, acusar e ordenar a detenção de indivíduos de
qualquer nacionalidade, independentemente do seu cargo oficial e até da vontade
concreta dos Estados. O estatuto do Procurador e as suas competências constituem um
elemento de ruptura com a ordem vestfaliana. Por outro lado, o exercício autónomo
das suas competências contribui para o desenvolvimento do sistema social
internacional por via de postulados ético-normativos centrados na dignidade da pessoa
humana.
Por seu turno, organizações e indivíduos da sociedade civil têm deixado uma marca
decisiva no Tribunal, essencialmente relativamente a três aspectos: a constituição do
TPI, a colaboração na investigação e recolha de provas, e ainda na promoção do papel
do Tribunal e do objectivo de universalidade do seu Estatuto. Os dois primeiros
aspectos merecem uma especial referência.
O contributo da sociedade civil na criação do Tribunal e mesmo na elaboração do seu
Estatuto constitui um marco na formação do Direito Internacional e na constituição de
organizações internacionais (Glasius, 2006). É significativo que na conferência
diplomática que adoptou, em Roma, a 17 de Julho de 1998, o Estatuto do TPI
estivessem acreditadas duzentas e trinta e sete organizações não-governamentais
provenientes de todo o mundo
19
. Aquelas organizações tiveram mesmo influência
directa na redacção de algumas das disposições do Estatuto através de uma actuação
comunicativa nos trabalhos (Struett, 2008).
A intervenção de organizações não-governamentais na comunicação de informações
sobre crimes de jurisdição do TPI
20
e na investigação de casos é um outro aspecto que
mostra a relevância da sociedade civil no funcionamento do Tribunal. As organizações
não-governamentais sempre tiveram um contacto muito próximo e imediato com
violações graves de direitos humanos, documentando-as e denunciando-as. O contacto
privilegiado com timas e testemunhas tem sido de grande importância na sua
protecção e na recolha de prova. O seu contributo para a denúncia e para a
investigação de alguns casos pode, pois, ser decisivo (HRF, 2004). De referir que a
atribuição expressa pelo artigo 15.º. n.º 2 do Estatuto de um papel às organizações
não-governamentais constitui um marco na institucionalização internacional da
sociedade civil. É igualmente significativo que aquelas informações sejam tratadas pelo
Gabinete do Procurador ao qual compete, pelo menos numa primeira fase, qualificar a
sua relevância no contexto de um inquérito ou de um procedimento criminal.
A estes dois elementos de reflexão se poderia acrescentar um outro que respeita ao
conteúdo do princípio da complementaridade de jurisdição do TPI. Trata-se de
desenvolver a aplicação deste princípio no sentido de procurar formas locais, incluindo
formas tradicionais quando existam, de realização da justiça. Existe, aliás, uma
tendência recente para a matização do diálogo entre paz versus justiça no quadro do
Tribunal e o consequente enfoque na procura de novas formas de justiça de
proximidade (Ambos et al., 2009) complementares ao TPI.
19
Vide UN Document A/CONF.183/INF/3, 5 J’une 1998.
20
Até Maio de 2011 o Gabinete do Procurador havia recebido cerca de 4898 comunicações com algum tipo
de conexão com a jurisdição do Tribunal. Fonte: TPIwww.icc-cpi.int.
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5. Conclusão
A criação do TPI deve ser perspectivada não apenas como uma inovação mas, acima de
tudo, como uma conquista civilizacional em prol da defesa da dignidade da pessoa
humana e da promoção da paz. O longo caminho percorrido tem contribuído também
para uma mudança de paradigma do Direito Internacional e das Relações
Internacionais cujo foco se vai afastando dos Estados e se vai recentrando no indivíduo.
Todavia, este é um longo caminho que se está ainda a percorrer.
Ao fim de quase dez anos de funcionamento do Tribunal, os resultados leia-se, sem
rodeios, condenações – são ainda inexistentes, contribuindo para o avolumar das
críticas e para alimentar um discurso de cepticismo até algum tempo esmagados
pelo entusiasmo quase desmedido que rodeava o Tribunal, quer ao vel académico
quer ao nível político-diplomático ou ainda da sociedade civil. As críticas estruturais que
lhe são apontadas, designadamente relativas à sua dependência face a um órgão
oligárquico do realismo e que representa uma ordem caduca o Conselho de
Segurança e sobre a sua actuação selectiva tendo, até hoje, como alvo único os
Estados Africanos, corroem os seus fundamentos. A acusação que está subjacente a
estas críticas é a da imposição global de padrões ético-normativos de matriz liberal.
Mesmo se a crítica de selectividade seja inspirada até mais numa lógica particularista
estatocentrica do que segundo uma perspectiva universalista, a verdade é que é a
ordem pública internacional conforme perspectivada pelo universalismo que é posta em
causa. As respostas do universalismo são eficazes, mas passam nos testes de
resistência apenas na estrita medida da insuficiência do próprio universalismo.
O TPI vive ainda o seu estado de graça. Contudo, o risco de marginalização tem vindo a
aumentar. A conferência de revisão de Kampala de 2010 foi um aviso: o sol ainda não
se tinha posto no Lago Vitória no último dia da conferência e existiam divergências
quanto à aplicação do que havia sido aprovado. Aliás, até hoje nenhum Estado se
vinculou às emendas então adoptadas, incluindo a relativa à tipificação do crime de
agressão.
A reflexão sobre os ideais que sustentam o TPI deve ser permanente de modo a criar
um discurso de legitimação ética que lhe confira efectiva capacidade de resistência e de
transformação. Mas para que haja legitimação, é preciso antes de tudo que aconteça a
crítica, a desconstrução e a desocultação. Por isso também, a esperança no TPI possa
estar ligada à esperança na reflexão crítica e na vontade de todos os actores
internacionais nela participarem.
As considerações apresentadas no presente estudo são propostas que pretendem
contribuir para uma reflexão sobre a sustentabilidade teórica do TPI no actual quadro
universalista de matriz liberal. Na sequência, aceitar que o TPI possa ser em
determinada medida desenvolvido segundo uma perspectiva pós-positivista, e não
simplesmente marginalizado, é importante não apenas para o próprio Tribunal como
também para o desenvolvimento de uma teoria do Direito Internacional que em
conjunto com as Relações Internacionais receba o impacto das insuficiências do
universalismo jurídico de matriz liberal e seja capaz de oferecer uma alternativa viável,
emancipadora e transformadora. Determinar se tal é verdadeiramente possível poderá
passar por uma análise contextualizada a partir dos elementos de reflexão propostos.
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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 119-134
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OBSERVARE
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Notas e Reflexões
BRICS: BRASIL, POTÊNCIA EMERGENTE
Nancy Elena Ferreira Gomes
email: ngomes@ual.pt
Doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, com Bolsa da Fundação
Calouste Gulbenkian. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Técnica de Lisboa.
Licenciada em Estudos Internacionais pela Universidade Central de Venezuela. Professora Auxiliar
no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, desde 1995.
Investigadora integrada do OBSERVARE. Desempenhou funções de Consultoria e Gestão de
bolsas na Fundação Gulbenkian entre 2001 e 2007.
Com mais de 150 participantes da Europa e América Latina, realizou-se nos dias 7 e 8
de Abril de 2011, o Simpósio Internacional "Os BRICs: Brasil, potência
emergente". O evento teve lugar no Centro de Estudos Brasileiros, em Salamanca,
Espanha, e foi organizado também pelo Instituto Ibero-Americano (Universidade de
Salamanca) e o Instituto de Latino-América (Academia de Ciências, Rússia), no âmbito
da rede do Conselho Europeu de Investigações Sociais sobre América Latina (CEISAL:
que reúne 50 instituições Europeias de estudos Latino-Americanos).
Neste encontro debateu-se o papel do Brasil no contexto político e económico
internacional, sob diversas perspectivas e em relação a uma grande variedade de
temas. Seguem algumas conclusões e notas complementares:
1. A economia Brasileira cresceu 7.5% em 2010, e segundo as
projecções mais recentes, nos próximos cinco anos o país
deverá crescer a uma taxa anual próxima de 5%. Mas os
indicadores económicos não correspondem necessariamente
com os indicadores sociais no sentido do desenvolvimento.
Apesar de, nos últimos 10 anos, ter reduzido a sua
percentagem de pobreza de 38% para 25% segundo as
estatísticas apresentadas pela CEPAL o Brasil continua a
padecer de sérios problemas como a desigualdade social.
No seu relatório sobre Desenvolvimento Humano para a América Latina e Caribe (2010)
o Brasil aparece colocado na posição 73 dos 169 países cujos dados disponíveis
relativos à saúde, educação e renda, permitiram elaborar o quadro comparativo
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BRICS: Brasil, potência emergente
Nancy Elena Ferreira Gomes
136
apresentado pelo PNUD.
1
O Brasil enfrenta ainda o sério desafio da violência interna: o
Instituto para a Economia e Paz, que publica anualmente um Índice Global de Paz
(IGP), medindo indicadores de segurança e violência no mundo, coloca o Brasil (2011)
em 74º lugar num ranking de 153 países (os primeiros do ranking são considerados os
países mais pacíficos).
2
2. O Brasil aparece hoje na cena internacional cada vez mais
consciente do seu potencial de poder e dos seus interesses.
Entre os objectivos da sua politica externa encontramos: mudar
a estrutura da Governança Mundial (sobretudo aos níveis
politico e económico), e participar nos centros mundiais de
decisão politica.
O Atlântico Sul – onde se localiza a grande reserva petrolífera do pré-sal – e a
Amazónia com fronteiras porosas para o narcotráfico surgem como grandes
prioridades na agenda de segurança do Brasil. Assim, entre os objectivos da Politica
Externa Brasileira encontramos a consolidação do Atlântico Sul como Zona de Paz
(Resolução 41/11 da AG ONU, de 27-10-1986) longe dos conflitos que se desenvolvem
noutras partes do mundo e fora dos esquemas de defesa colectiva que actualmente
existem, como a OTAN. De igual forma, ganha relevo pela necessidade de vigiar a
Amazónia e as suas fronteiras com 10 Estados vizinhos a troca em matéria de
segurança assim como o intercâmbio castrense, no âmbito do Comide Defesa Sul-
Americano. Outros temas de grande importância na agenda de Política Externa
Brasileira são: a Cooperação Sul Sul e as novas Parcerias, como por exemplo, com
vários países de África
3
. Com efeito, segundo o último Relatório de Cooperação Sul
Sul (2010) da SEGIB
4
, ao longo de 2009, os países Ibero-Americanos participaram em
881 projectos de Cooperação Horizontal Sul Sul Bilateral. O Brasil, ao lado do México
e da Argentina, tiveram participações superiores a 10%. Torna-se evidente também o
grande investimento por parte do Brasil em África, pelo aumento do número de
embaixadores em distintos países do continente para além do esforço (fundos)
destinado à cooperação para o desenvolvimento. “Hoje o Brasil pode ser considerado
como um novo país doador”
5
. Destacam-se outros temas como o das Migrações e a
Integração Regional.
3. Quanto a integração regional, a UNASUL visto mais como um
prolongamento politico do MERCOSUL tem vindo a ganhar
prioridade entre os objectivos de politica externa do Estado
Brasileiro. O Brasil promove assim aquilo que parece ser uma
1
PNUD. [Consultado em 10-07-2011]. Disponível em:
http://hdrstats.undp.org/es/paises/perfiles/BRA.html
2
IEP. [Consultado em 10-07-2011]. Disponível em : http://www.economicsandpeace.org/WhatWeDo/GPI
3
Mário Vilalva, Embaixador do Brasil em Portugal, na primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre o
Brasil, que decorreu na sede do IDN, em Lisboa, em 26-04-2011.
4
SEGIB. [Consultado em 6-06-2011]. Disponível em: http://segib.org/actividades/files/2010/12/Inf-coop-
sul-sul-2010.pdf
5
ABC. [Consultado em 10 de Julho de 2011]. Disponível em:
http://www.abc.gov.br/lerNoticia.asp?id_Noticia=606
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BRICS: Brasil, potência emergente
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Integração sem ou com baixa institucionalidade que lhe permita
agir com certa flexibilidade e de forma autónoma. A grande
novidade neste campo de actuação é o investimento que tem
vindo a fazer em prol da integração física.
A integração dos mercados seguindo o modelo europeu parece pouco viável numa
região constituída por Estados cujos principais sócios estão fora (EUA ou a China). Do
ponto de vista político, a persistência de certos nacionalismos também condiciona este
tipo de projectos porque “a Integração pressupõe também a diluição de soberanias
estatais”
6
. Mas é dentro da região, sobretudo na América do Sul, que para os
produtos manufacturados Brasileiros ganham uma relativa competitividade o que vai ao
encontro do objectivo de projecção das indústrias nacionais. Existe pois uma visão
consensual por parte de alguns sectores no Brasil, sobre a importância de revitalizar
primeiro a sua relação com os seus vizinhos e a partir dlançar-se para a plataforma
global. Nesse sentido são já vários os projectos de infra-estrutura física em andamento.
Há mais de 80 financiamentos Brasileiros dirigidos a projectos e obras de infra-
estrutura na América do Sul, totalizando cerca de US$ 10 biliões em projectos
aprovados
7
.
4. Muito para além da relação de simpatia, manifesta
publicamente, entre o Hugo Chávez e Lula da Silva, e agora
com a Dilma Rousseff, uma clara convergência ou
conciliação “conveniente” entre o que parecem ser os
interesses económicos e comerciais Brasileiros (que também
são geoestratégicos) e os interesses político ideológicos
Venezuelanos traduzidos no apoio politico externo necessário
para garantir o não isolamento do seu regime.
O desafio do Brasil, em relação à Venezuela, o vai certamente no sentido de evitar o
contágio da “ideologia Bolivariana” porque na medida em que os países da região vão
dando sinais positivos em aspectos como o fortalecimento das instituições
democráticas, segurança jurídica para os investimentos estrangeiros, liberdade dos
meios de comunicação, etc., o projecto político ideológico de Hugo Chávez encontra
sérias resistências
8
. Num dos cenários em prospectiva, criados pela Professora
Venezuelana Elsa Cardozo, o governo de Hugo Chávez poderá radicalizar-se na mesma
medida que as pressões internas a favor de mudanças aumentem (na Venezuela em
2010, as taxas de inflação chegaram a superar os 29%, existe uma escassez de
produtos como a carne, açúcar e café e um alto grau de violência interna), o que
poderá implicar uma radicalização na concepção e execução da sua agenda de
segurança. Isto significa que assuntos como o conflito político com os EUA e por
6
Andrés Malamud, investigador do ICS, especialista convidado na mesa redonda “A América Latina frente
ao espelho da sua integração”, que decorreu na sede da UAL, no dia 27-05-2011.
7
Mais informação em: http://www.itamaraty.gov.br/temas/balanco-de-politica-externa-2003-2010/1.1.6-
america-do-sul-infraestrutura
8
Sérgio Augusto de Abreu e Lima Florêncio Sobrinho analisam o potencial de expansão politica do modelo
de Democracia Participativa, no livro coordenado por Arturo Oropeza Garcia “Latinoamerica frente al
espejo de su Integración 1810-2010”, pp. 179-195.
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BRICS: Brasil, potência emergente
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extensão com os países que na região são os seus claros aliados – e a guerra
assimétrica irão ganhar ainda mais importância na lista das prioridades da agenda de
segurança Venezuelana. Como consequência poderemos assistir a uma fragmentação
ou enfraquecimento dos esquemas de cooperação de segurança e por fim da integração
regional
9
. Assim o desafio do Brasil parece ser outro, até onde o Brasil poderá exercer o
papel de “moderador” perante um cenário de conflitualidade e polarização como este.
5. A maioria dos especialistas alerta para o desafio que representa
para uma potência revisionista e com vocação universal como o
Brasil, diminuir a sua dependência da China e manter o
crescimento económico.
Entre 2000 e 2010, as exportações do Brasil para a China aumentaram de US$ 1.1
bilião 2% do total das exportações do Brasil para US$ 30.8 biliões 15% do total.
Quanto as importações Brasileiras da China, estas cresceram de US$ 1,2 bilião – 2% do
total para U$ 25.6 biliões 14% do total.
10
A China converteu-se assim no principal
parceiro do Brasil e um elemento de grande relevância para a manutenção do superavit
Brasileiro
11
. Todavia, o grosso das exportações Brasileiras para a China está constituído
fundamentalmente por commodities
12
, o que torna este tipo de parceria primária e
insustentável a longo prazo. Mas esta relação de dependência, defendem alguns,
também é recente e relativa se considerarmos que a colocação da China na posição de
maior destino das exportações Brasileiras foi alcançada em 2009, quando
ultrapassou os Estados Unidos, e que o comércio com a China representa actualmente
1/5 das relações comerciais externas Brasileiras. O desafio principal, insiste-se, se
mais o de não se deixar levar pelo entusiasmo da actual conjuntura.
6. Na mesma medida que a politica externa do Brasil se globaliza,
as relações com os EUA e com a Europa deixam de ser
prioritárias. O que leva a pensar a muitos analistas, na
necessidade de rever o padrão de relacionamento entre estes
países.
Cabe aqui uma reflexão de Alfredo Valladão onde refere que “… as relações Brasil
Europa não podem mais se contentar simplesmente de celebrar velhos laços culturais,
reiterar valores comuns ou facilitar negócios. E, ainda menos, manter o padrão
paternalista da ajuda ao desenvolvimento. Está na hora de começar a estabelecer uma
interlocução mais madura, de igual para igual, baseada na promoção de interesses e
9
Elsa Cardozo, Brasil y Colombia en la Agenda de Seguridad de Venezuela. Ildis. 2006 [Consultado em
11-07-2011]. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/caracas/50461.pdf
10
IPEA, As Relações Bilaterais Brasil – China: A Ascensão da China no sistema mundial e os desafios para o
Brasil. [Consultado em 28-06-2011]. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110408_estudochinaipeamre.pdf.
11
O comércio com a China representou para o Brasil um superavit de US$4.600 milhões em 2009 (20% do
superavit total).
12
O padrão de exportações do Brasil para a China concentra-se fundamentalmente em dois produtos
básicos, minerais de ferro não aglomerados e os seus concentrados e grãos de soja.
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objectivos compartidos
13
. Assim temas como a Educação, o Comércio, o Tráfego
Aéreo, a Pirataria, o Atlântico sul, a Energia, a Cooperação Naval, a Cooperação com
África, as Missões de Paz e os Direitos Humanos, poderão vir a ser incluídos na agenda
do actual relacionamento.
7. O Brasil não se pode afirmar como potência global se o
investir no poder militar.
Com efeito, segundo dados apresentados pelo SIPRI, o volume de gastos em defesa do
Brasil (2010) está na ordem de 1.6% do PIB, por debaixo do investimento que nesta
área realizam por exemplo, os EUA (4.8%), a Índia (2.7%) ou a China (2.1%)
14
. Ainda,
os estudos comparados realizados nesta área, destacam que o Brasil, para além de
investir pouco, está mal equipado e apresenta uma razão entre efectivos e
equipamentos que torna ineficaz a força do país
15
. Nas suas considerações finais
apresentadas durante o Simpósio, Júlio César Rodríguez afirma que “a ausência de
capacidades materiais militares do Brasil para configurar-se como der regional e
potência global afectam os objectivos de médio e longo prazo do país e que as
alternativas ao desenvolvimento militar são poucas, sendo as principais: a aliança com
os EUA, o abandono do protagonismo ou a percepção da digitalização como fonte de
horizontalização de capacidades, a fim de gerar forças dissuasórias”
16
.
8. É fundamental a concertação de posições por parte dos países,
quanto aos valores que deverão primar numa sociedade
multipolar ou pluripolar
17
como a de hoje. Neste sentido a
promoção e defesa de certos valores como o Respeito pelos
Direitos Humanos passam inexoravelmente pelo acordo dos
principais países democráticos. Cabe aqui ao Brasil um papel
importante a desempenhar como “Potência Emergente”.
O voto do Brasil a favor da nomeação de um relator especial para investigar a situação
dos Direitos Humanos no Irão, durante a sessão do Conselho de Direitos Humanos da
ONU, no passado dia 24 de Março, poderá significar não uma mudança da ctica da
13
Alfredo Valladão, professor da Universidade Sciences Po-Paris, convidado a participar nos XVII Cursos
Internacionais de Verão de Cascais (tema: “O Brasil e a Politica Internacional), organizados pelo IPRI,
que teve lugar no Centro Cultural de Cascais, em 24-06-2010.
14
SIPRI. [em linha]. [consultado em 6 de Junho de 2011]. Disponível em:
http://www.sipri.org/research/armaments/milex/factsheet2010
15
Eugénio Diniz, citado por Júlio César Cossio Rodríguez, durante a apresentação da comunicação “Brasil,
Integração Regional e factores estratégicos algumas considerações”, no Simpósio “BRIC: Brasil potencia
emergente”.
16
Júlio César Cossio Rodriguez, investigador do ICS/UL, participante no Simpósio “BRIC: Brasil potencia
emergente”, com a comunicação “Brasil, Integração Regional e factores estratégicos algumas
considerações”.
17
O professor espanhol Rafael Calduch Cervera define a polaridade de uma sociedade internacional como
“a capacidade efectiva de um ou vários actores internacionais para adoptar decisões, comportamentos
ou normas internacionais aceites pelos restantes actores e através das quais alcançam ou garantem uma
posição hegemónica na hierarquia internacional”.
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BRICS: Brasil, potência emergente
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“potência emergente”
18
mas um sinal positivo em prol da manutenção de uma ordem
internacional que contemple estes mesmos valores.
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Como citar esta Nota
Gomes, Nancy Elena Ferreira (2011). "BRICS: Brasil, potência emergente". Notas e
Reflexões, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_not1
18
Lembremos que durante a sua gestão, Lula da Silva defendeu sempre o programa nuclear do Irão e
opôs-se às sanções internacionais contra esse país.
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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 141-143
Notas e Reflexões
A COOPERAÇÃO EUROPA/ÁFRICA
Hermínio Esteves
email: hcesteves@gmail.com
Licenciado em Ciências Históricas pela Universidade Livre de Lisboa,
Mestre em Relações Internacionais pelo ISCSP/UTL.
Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa na área da História Colonial.
Docente da Universidade Autónoma de Lisboa.
Quando falamos de cooperação, no âmbito da Economia e da Sociologia, consideramos
uma forma de colaboração entre indivíduos ou organizações visando alcançar objectivos
comuns segundo regras ou métodos consensuais. A cooperação pode, também, resultar
numa forma de colaboração entre Estados que procuram atingir determinados
resultados em estreita colaboração, minimizando os custos, esforços e meios que cada
um teria que despender.
No século XX, e no âmbito das relações entre as potências coloniais e as suas colónias,
desenvolveram-se mecanismos de cooperação que vieram a envolver os Estados
africanos e a Comunidade Europeia, visando em primeiro lugar manter as relações
tradicionais entre os primeiros e os segundos sem deixar de cumprir as obrigações que
estavam implícitas na condição de membros desta organização.
Para muitos países africanos, a cooperação representava, eventualmente, a única saída
para a resolução de muitos dos seus problemas, quer fossem de cariz económico,
social, cultural ou de outro tipo.
Todavia, a cooperação para e com o continente africano, não surgiu apenas no âmbito
da CEE. Na viragem para a década de 50, procurou-se pôr de pé um projecto de
cooperação que contou com a participação de Portugal, da Grã-Bretanha, Bélgica,
França, Rodésia do Sul e África do Sul.
Em 7 e 8 de Setembro de 1949 teve lugar em Londres uma Conferência que visava a
criação da Comissão de Cooperação Técnica em África ao sul do Saara. Para
representar Portugal, o Ministério das Colónias nomeou o Capitão de Fragata M. M.
Sarmento Rodrigues, professor da Escola Superior Colonial. “Em 2 de Setembro foi-me
dado conhecimento da minha nomeação como representante do Ministério das Colónias
a uma conferência que se devia realizar em Londres, em 7 e 8 de Setembro, a convite
do Governo do Reino Unido, para a criação de um comité intergovernamental destinado
a coordenar a cooperação técnica entre os países a seguir indicados, França, Portugal,
Reino Unido, Rodésia do Sul e União da África do Sul (Actas da CCTA, Arquivo do
Ministério dos Negócios Estrangeiros). A sua constituição, datada de 1950, visava dotá-
la de capacidade jurídica e política na ordem internacional através duma Convenção
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A Cooperação Europa/África
Hermínio Esteves
142
que viria a ser discutida ao longo das diversas sessões que decorreram nos anos
imediatos.
No sentido de se dotar a organização dos mecanismos necessários ao seu
funcionamento, realizaram-se diversas sessões tendo como anfitriões os diferentes
países membros. Assim, viria a ter lugar em Lisboa, com início a 25 de Junho de 1953,
a Sessão da “Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara” (CCTA),
em que participarão além dos delegados portugueses, representantes da Bélgica,
França, Grã-Bretanha, Rodésia do Sul e União Sul-Africana, a qual se espera revista de
grande e merecido relevo” (Arquivo do MNE, 2º Piso, Armário 17, Maço 25).
A 18 de Janeiro de 1954 foi assinado o acordo que criava a CCTA. A 24 de Dezembro
de 1954, em Londres, procedeu-se à ratificação da CCTA pelos seguintes países: África
do Sul, Federação da Rodésia e Niassalândia e Grã-Bretanha. Por parte de Portugal,
esse acordo foi aprovado, para ratificação, por resolução da Assembleia Nacional de 23
de Abril de 1954 e promulgado pelo Presidente da República, em 1 de Maio último
(Diário do Governo, I Série, de 1 de Maio de 1954).
O funcionamento da CCTA assentava numa base jurídica definida ao longo das diversas
sessões, ficando assim definido:
O Artigo I estabelecia que a criação da “Comissão de Cooperação Técnica em África ao
sul do Saara (adiante designada por «Comissão»), que será assistida pelo Conselho
Científico da África ao sul do Saara, e sob cuja égide funcionarão os seguintes
organismos: a Repartição Interafricana de Doenças Epizóticas, e a Repartição
Interafricana da Tsé-Tsé e dos Tripanossomíases, a Repartição Interafricana dos Solos
e da Economia Rural, o Instituto Interafricano do Trabalho, o Serviço Pedológico
Interafricano, bem como outros organismos de cooperação em África ao sul do Saara
que a Comissão eventualmente designar.”
A Comissão seria composta pelos Governos signatários ou «Governos Membros». Cada
Governo podia nomear, para o representar, um delegado e o número de suplentes e de
conselheiros que entendesse necessário (Artigo II).
A Comissão o possuía poderes executivos e não tomava quaisquer decisões por
maioria. As “Recomendações” que apresentava deviam ser adoptadas por unanimidade
de todos os governos membros.
Dada a crescente actividade deste organismo e de acordo com uma “Recomendação”
aprovada na 5ª Sessão, realizada em Cape Town, em Janeiro de 1952, a CCTA viria a
ser dotada de um Secretariado Permanente. O Secretariado Geral era dirigido por um
Secretário Geral, coadjuvado por um Secretário Adjunto, sendo as despesas do
Secretariado divididas em proporções variáveis, entre os governos membros.
A fim de manter a ligação com o Secretariado, cada Governo Membro nomeava um
agente, que normalmente assegurava as ligações entre o Governo e o Secretariado
(Artigo III).
A competência territorial da Comissão abrange todas as regiões da África continental e
insular pelas quais os Governos Membros sejam repensáveis, situadas a sul de uma
linha que, partindo do oceano Atlântico, se estende ao longo do paralelo 20º norte até
à fronteira nordeste da África Equatorial Francesa, e daí segue as fronteiras nordeste e
este da África Equatorial Francesa, a fronteira nordeste do Congo Belga, as fronteiras
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Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 141-143
A Cooperação Europa/África
Hermínio Esteves
143
setentrionais dos territórios da Uganda e do Quénia e a fronteira oriental deste último
até ao oceano Índico.
Entre as actividades promovidas pela CCTA, contam-se a realização de rias
conferências intra-africanas que recomendaram a criação de “Bureaux” comuns de
informação técnica.
Quatro desses “Bureaux” foram assim estabelecidos:
- Bureau Inter-Africano das Doenças Epizóoticas (IBED);
- Bureau Inter-Africano dos Solos (BIS);
- Bureau Permanente Inter-Africano da Tsé-Tsé e Tripanosomíase (BPITT)
- Instituo Inter-Africano do Trabalho (ILI).
Por proposta do Governo Português viria a criar-se um “Bureau Inter-Africano de
Estatística”, e também ao alargamento das actividades do BPITT a outras doenças
tropicais, vindo assim de encontro também a uma sugestão portuguesa da sua
substituição por um “Bureau Sanitário”, de forma a englobar todas as doenças que
afectavam as populações africanas.
Cada Estado membro participava nas despesas de funcionamento da CCTA de acordo
com as suas capacidades financeiras. Dadas as tradicionais dificuldades económicas do
Estado português, verificou-se sempre a preocupação de que a nossa participação se
situasse dentro das nossas capacidades, ou dos parâmetros estabelecidos pelo Governo
de Lisboa.
Este modelo de cooperação teria beneficiado significativamente a África subsariana, se
a marcha da História não tivesse alterado as relações entre as potências coloniais
europeias e as suas colónias africanas, ditadas pelo movimento das independências,
iniciado em 1957, quando a colónia britânica do Costa do Ouro se tornou no Ghana
independente. A febre independentista que varreu o continente africano durante a
década de sessenta, viria a pôr um ponto final no colonialismo africano, substituindo
apenas as colónias portuguesas durante pouco mais de uma década, até ao 25 de Abril
de 1974. Em Maio de 1961 surge a República da África do Sul, consagrando a exclusão
de todos os não brancos de toda a participação na vida política, com a implementação
do apartheid e consequente isolamento político deste país no panorama internacional.
Como foi referido, a cooperação Europa/África viria a ser retomada posteriormente,
dando origem a uma política de cooperação decorrente das Convenções de Yaundé e de
Lomé, política essa que envolvia igualmente os Estados das Caraíbas e Pacifico, os
países ACP. Trata-se, todavia, duma forma diferente de cooperação. Podemos, por isso,
interrogar-nos sobre o significado que a CCTA podia ter representado para a África
subsariana.
Como citar esta Nota
Esteves, Hermínio (2011). "A Cooperação Europa/África". Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado
[online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_not2
OBSERVARE
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Notas e Reflexões
A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – O
papel do Tribunal de Justiça da União Europeia
Cristina Crisóstomo
email: anacristinaborges@zonmail.pt
Licenciada em Direito (UAL), Mestre em Direito (Faculdade de Direito de Lisboa),
Pós Graduada em Direito Comunitário e Direito da Integração (Instituto Europeu Faculdade de
Direito de Lisboa). Docente universitária e coordenadora da Pós Graduação em Direito Bancário e
dos Seguros. Tem larga experiência como consultora e formadora, tem colaborado com as mais
diversas entidades, designadamente DECO, INA, CES e Ordem dos Advogados e em projectos
transnacionais. É Perita do Comité Económico e Social Europeu para as questões do Direito do
Consumo e Direito Bancário e da Odysseus Academic Network
– Observatório da Liberdade de Circulação de trabalhadores.
O texto originário dos tratados constitutivos das três comunidades Europeias não
incluíam qualquer referência à tutela dos direitos fundamentais. O direito comunitário
originário pretendia ser mais um “bill of powers” do que um “bill of rights”. Entendia-se
não ser esse o objecto dos tratados constitutivos das comunidades
1
, fazendo parte, por
um lado, dos textos constitucionais dos Estados Membros e, por outro, do âmbito das
atribuições do Conselho da Europa
2
.
Porém, o processo de integração europeu conduziu à criação de uma estrutura jurídica
supranacional, muito para além do que estava previsto nos Tratados Constitutivos e
acabaria por gerar, tanto uma situação de potencial conflito com os Direitos
Constitucionais nacionais, quanto a necessidade de procurar mecanismos que permitam
à interpenetração das distintas ordens jurídicas. Originalmente concebido de forma
sectorial e adstrito apenas às áreas económicas e comerciais, adquiriu com o tempo,
uma dimensão bem mais ampla do que a concebida pelos seus fundadores. Ao longo
deste processo, a questão jurídica sempre foi fundamental, isto porque a instituição de
um Mercado Comum (objectivo original da Comunidade Económica Europeia em 1957)
pressupôs não apenas etapas “negativas” de integração regional, tais como a abolição
de barreiras alfandegárias e não alfandegárias ao comercio interno do bloco, mas
também etapas “positivas”, tais como a elaboração de um acervo jurídico comum em

1
Tratado que instituí a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), Tratado que instituí a
Comunidade Económica Europeia (1957) e Tratado que instituí a Comunidade da Energia Atómica (1957)
2
Fundado em 5 de Maio de 1949, tem como principal propósito a defesa dos direitos humanos, o
desenvolvimento e a estabilidade político-social da Europa. No seio desta organização foi instituído o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a quem cabe a aplicação da Convenção Europeia dos Direitos
Humanos.
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A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
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145
áreas como a proteção dos trabalhadores, do consumidor e do meio ambiente, entre
outros. Por outro lado, a integração europeia sempre possuiu uma forte componente
jurídica, na medida em que desde o início foi “rule oriented”, ou seja, baseada em
procedimentos que ocorrem dentro de parâmetros jurídicos, os quais restringiram,
sensivelmente, a utilização de mecanismos meramente políticos no relacionamento
mútuo dos Estados-membros.
Sob a perspectiva jurídico-institucional, a característica do processo de integração mais
surpreendente sempre foi, sem dúvida, a supranacionalidade que indica também uma
situação política sui-generis, em que Estados soberanos aceitam a imposição de
decisões tomadas pela organização, mesmo quando estas não correspondem aos seus
interesses particulares. A dinâmica de integração e a progresso dos Tratados
Constitutivos ampliou consideravelmente a transferência de competências, tanto
quatitativas quanto qualitativas, dos Estados em favor da União. A UE dispõe
atualmente de competências em sectores que se estendem da agricultura, siderurgia,
energia atómica, concorrência, política do trabalho, social, fiscal, económica e
monetária, política comercial e de desenvolvimento, pesquisa e tecnologia, educação,
transportes, cultura, meio ambiente, até as disposições sobre política externa, de
segurança e de defesa comum, e políticas de emigração e asilo. Desta forma, as
competências e os deveres da UE abrangem quase todos os sectores de atuação
estatal, expandindo-se, em larga medida, para além dos limites de uma integração
meramente sectorial ou económica, incluindo a zona sensível dos direitos
fundamentais.
Desde cedo se constatou a necessidade de criar um sistema eficaz de proteção dos
direitos fundamentais a nível comunitário no qual a elaboração de um catálogo de
direitos fundamentais seria parte essencial, catálogo esse ausente dos Tratados
instituidores das comunidades.
O AUE
3
, que constituiu a primeira alteração de grande envergadura dos tratados
originários, revê o Tratado da Roma com o objectivo de relançar a integração europeia
e concluir a realização do mercado interno. Veio alterar as regras de funcionamento das
instituições europeias e alarga as competências comunitárias, nomeadamente, no
âmbito da investigação e desenvolvimento, do ambiente e da política externa comum,
no qual se inscreveu, no preâmbulo do ato, pela primeira vez, uma fórmula genérica de
declaração de direitos:
DECIDIDOS a promover conjuntamente a democracia, com base
nos direitos fundamentais reconhecidos nas constituições e
legislações dos estados-membros, na Convenção de Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta
Social Europeia, nomeadamente a liberdade, a igualdade e a
justiça social…
4
.
Ainda assim, entre avanços e recuos, só com o Tratado de Maastricht se viria a
concretizar uma tutela mais ou menos efetiva de direitos fundamentais no seio da

3
Assinado no Luxemburgo a 17 de Fevereiro de 1986.
4
Preâmbulo do Acto Único Europeu.
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A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
Cristina Crisóstomo
146
União, plasmada no então artigo F, nº 2 que passou a vincular a União Europeia ao
respeitos dos “direitos fundamentais tal como os garante a convenção europeia de
salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (…) e tal como
resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados–Membros, enquanto
princípios gerais do direito comunitário”.
Acresce que a previsão de um estatuto de cidadania da União, reconhecido a todos os
cidadãos dos Estados-membros e envolvendo a titularidade de certos direitos, incluindo
direitos políticos (artigos 17º a 22º do Tratado da Comunidade Europeia) constituiu um
catálogo de modificações importantes, alargadas, no seu âmbito de aplicação, pelos
Tratados de Amesterdão e de Nice, mas que falharam o objectivo de dotar as
comunidades europeias de um catálogo de direitos fundamentais.
Porém, a elaboração de um catálogo de direitos fundamentais só ficou decidida no
Conselho Europeu de Colónia de 3 e 4 de Junho de 1999, cujas especificidades ficaram
estabelecidas no anexo IV ao Documento das conclusões da Presidência, de onde
destacamos a seguinte passagem:
“... Na presente fase da evolução da União, impõe-se elaborar
uma carta dos direitos fundamentais na qual fiquem
consignados, com toda a evidência, a importância primordial de
tais direitos e o seu alcance para os cidadãos da União”.
Pretendia-se, assim, tornar visíveis os direitos dos cidadãos e para os cidadãos,
mediante um catálogo de direitos fundamentais dotado de primazia normativa, força
jurídica vinculativa e aplicabilidade directa, não se pretendia, no entanto, alterar as
competências comunitárias em matéria de direitos humanos. O conteúdo da futura
carta deveria reflectir o acquis comunitário e europeu em matéria de direitos
fundamentais e deveria conter três grandes categorias de direitos:
Os direitos e liberdades pessoais, tal como garantidos pela Convenção Europeia
para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e nas
tradições constitucionais comuns aos Estados-membros.
Os direitos próprios dos cidadãos comunitários, no fundo os direitos associados
ao estatuto de cidadania da União e por esta razão reservados aos cidadãos dos
Estados-membros ( já previstos no Tratado que institui a Comunidade
Europeia).
Os direitos de natureza económica e social, tal como estavam consagrados na
Carta Social Europeia e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais
dos Trabalhadores.
Por outro lado, a elaboração da Carta seria participada pelas principais instituições da
União e contaria com o contributo dos parlamentos nacionais.
Numa primeira análise ao projecto de catálogo de direitos fundamentais, podemos
retirar desde logo duas conclusões: que a Carta não foi concebida com o intuito de
ampliar as competências da União e que o Conselho Europeu de Colónia tornava bem
explícito que a questão de atribuir carácter vinculativo à Carta ficaria adiada sem prazo
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específico ao afirmar: “...Posteriormente, estudar-se-á a oportunidade e,
eventualmente, o modo como a Carta deverá ser integrada nos Tratados...”.
Desta forma, assumiu-se um compromisso meramente político sem carácter
vinculativo.
A 15 e 16 de Outubro do mesmo ano, em Tampere, foi concretizado o enunciado no
Conselho de Colónia e decidida a constituição de uma convenção para a elaboração da
Carta projectada em Colónia, convenção essa que pela primeira vez juntou, num
processo directo, o contributo dos representantes dos governos e parlamentos
nacionais para a elaboração do direito da União. Tendo reunido pela primeira vez em
Dezembro desse ano e aprovado o projecto final em 2 de Outubro de 2000 em Nice.
Todo o processo de redacção dos direitos fundamentais, na forma de Carta, foi
desenvolvido por representantes dos governos nacionais, da Comissão Europeia e por
deputados dos parlamentos nacionais e europeu. Presidido por Roman Herzog, ex-
presidente da RFA e do respectivo Tribunal Constitucional alemão, este processo
apresenta uma inovação, uma vez que se assistiu à participação dos parlamentos
nacionais e dos governos nacionais, reforçando, desde logo, ao nível do processo
decisório, a visibilidade e a legitimidade do catálogo de direitos fundamentais, bem
como a expressão das várias sensibilidades europeias.
Com efeito, o Conselho Europeu de Tampere fixou o princípio da publicidade dos
debates e dos documentos apresentados, assim, todos os documentos da presidência
da Convenção, bem como todos os contributos dos participantes e de outros grupos se
encontram disponíveis na internet.
A Convenção concluiu os seus trabalhos e apresentou o projecto de Carta na sua
versão final em 2 de Outubro de 2000, a fim de permitir ao Conselho Europeu debater
o texto no decorrer da cimeira informal de 13 e 14 de Outubro de 2000, em Biarritz,
tendo obtido parecer favorável. De igual modo, o Parlamento Europeu também se
pronunciou favoravelmente sobre o texto, a 14 de Novembro de 2000 e a 7 de
Dezembro, do mesmo ano, desta forma a Carta dos Direitos Fundamentais foi
proclamada pelas três instituições.
A Carta resulta da existência de um acervo em matéria de protecção dos direitos
fundamentais, quer ao nível dos Estados-membros e das suas tradições constitucionais,
que consubstancia os princípios gerais de direito comunitário, quer ao nível
internacional, com o novo paradigma de soberania assente na necessidade de partilhar
responsabilidade na tutela destes direitos. Pretende, ainda, plasmar os direitos de
cidadania europeia, designadamente, a Carta Comunitária dos Direitos Sociais
Fundamentais dos Trabalhadores e a Carta Social Europeia, dando assim consagração
formal à vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça no âmbito dos Direitos
Fundamentais. Transforma-se num instrumento jurídico comunitário, gozando da sua
tutela e sindicância e ultrapassando a esfera meramente estadual.
As principais funções cometidas à Carta são funções de carácter geral, enquanto
instrumento que legitima a acção política da União e o correspectivo aumento da
segurança jurídica e a necessária visibilidade e aproximação dos cidadãos a este
acervo.
Porém, podemos ainda identificar objectivos específicos, a Carta enquanto mecanismo
de controlo e de regulação do exercício das competências comunitárias, sendo que tal
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não significa o aumento das competências da União, mas antes a forma como elas
devem ser exercidas, permitindo assim a sindicância por parte das instâncias
jurisdicionais competentes.
A vinculação formal à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a respectiva
submissão ao controlo do Tribunal de Justiça, bem como a clarificação da
compatibilidade entre a Carta e as Constituições nacionais, não pressupõe modificações
no direito constitucional nacional, mas antes surge como critério de interpretação.
Ainda enquanto critério de orientação, nas relações da União e restante comunidade
internacional, designadamente, ao nível da Política Externa e a Segurança Comum, nas
relações com países terceiros e mais especificamente nas relações com os Estados do
alargamento.
Finalmente, a Carta garante a salvaguarda de direitos já existentes ao nível da
Convenção e desta forma gera uma correspondência e integração destes direitos no
acervo da União.
Não obstante a sua proclamação solene no Conselho Europeu de Nice em 2000, a Carta
manteve a sua natureza jurídica não vinculativa até 2007, altura em que o Tratado de
Lisboa lhe conferiu força obrigatória reconhecendo o seu valor jurídico ao nível dos
Tratados.
Aliás, neste domínio, o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em Dezembro de 2009,
já previa a adesão à Convenção, estando a Comissão munida de um mandato para este
efeito, assim o programa de Estocolmo, adoptado pelo Conselho Europeu de 11 de
Dezembro de 2009, previa também ele, a adesão rápida da União à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, consolidando desta forma o quadro jurídico de
protecção dos direitos fundamentais no acquis da União. O programa plurianual de
Estocolmo
5
(vigora entre 2010 e 2014) tem como missão aprofundar os avanços
alcançados no âmbito do Espaço de Liberdade Segurança e Justiça e concentrar a
atenção nos interesses e necessidades ligados à cidadania. O desafio consistirá em
alcançar um equilíbrio entre a necessidade de assegurar o respeito dos direitos e
liberdades fundamentais do individuo e a necessidade de garantir a segurança na
Europa. Por outro lado, o Programa de Estocolmo prevê que a União Europeia adira
“rápidamente” à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, tendo a Comissão Europeia apresentado um projecto de
decisão do Conselho da União Europeia no sentido de a autorizar a negociar o acordo
de adesão da União à Convenção.
6
O estatuto da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, só recentemente e, com a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ficou claro no seio da ordem jurídica
comunitária, em bom rigor, em Março de 2010.
Para trás, ficou uma longa experiência, baseada na jurisprudência do Tribunal de
Justiça de aplicação dos direitos fundamentais.
Na verdade, o escopo essencialmente económico dos tratados, ainda que alienando a
questão da proteção dos direitos fundamentais, permitiu que, por força das regras de

5
Adoptado pelo Conselho Europeu a 11 de Dezembro de 2009, EUCO 6/09 – Conclusões.
6
Documento de Reflexão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre determinados aspectos da adesão
da União Europeia à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais.
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conformação das liberdades económicas, os direitos, tutelados pela ordem jurídica
comunitária, se repercutissem na esfera jurídica dos cidadãos europeus. Ainda que
indireta e instrumentalmente, estes direitos foram sendo regulados e assumindo um
papel fundamental no acervo comunitário, nomeadamente, o direito à não
discriminação em razão da nacionalidade, o direito de livre circulação e de acesso ao
exercício de uma profissão ou atividade económica no território de um Estado-membro
e a liberdade de estabelecimento, da mesma forma que eram previstos alguns direitos
económicos e sociais, como a igualdade de salário entre homem e mulheres.
Na ausência de uma declaração de direitos, coube ao Juiz comunitário, partindo de uma
apreciação casuística, a definição de um modelo comunitário de tutela dos direitos
fundamentais.
Importa, assim, analisar o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia na jurisdição
dos direitos fundamentais que antecipou a expressa consagração destes direitos como
uma verdadeira política comunitária, resultado do carácter vinculativo que o Tratado de
Lisboa atribui à carta.
A evolução da sua jurisprudência ilustra a contribuição do Tribunal de Justiça para a
criação de um espaço jurídico que diz respeito aos cidadãos, protegendo os direitos que
a legislação da União lhes confere em diferentes aspectos da sua vida quotidiana. Desta
forma, ao decidir que o respeito dos direitos fundamentais é parte integrante dos
princípios gerais de direito, cujo respeito lhe incumbe garantir, contribuiu também de
forma considerável para o aumento dos níveis de protecção desses mesmos direitos
O Tribunal de Justiça da União incluí o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e tribunais
especializados, cabe ao TJUE, composto por estas três jurisdições, a principal missão de
apreciar a legalidade dos actos da União e assegurar o integral cumprimento dos
Tratados bem como zelar pela interpretação e aplicação uniforme do direito da União.
O TJUE ao longo dos anos foi criando, através da sua jurisprudência, a obrigação dos
legisladores, das administrações e dos juízes nacionais aplicarem plenamente o direito
da União no interior das respectivas esferas jurisdicionais e de protegerem os direitos
conferidos aos cidadãos europeus. Esta jurisprudência consolidou o princípio do
primado do Direito Comunitário e do efeito direto do direito da União Europeia.
O aprofundamento normativo do processo de integração, intimamente relacionado com
a afirmação do primado e do efeito direto, como critérios básicos de articulação entre a
ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas nacionais, inculcou na generalidade
das normas comunitárias a característica da imediatividade. O primado e o efeito direto
da norma comunitária conferem ao particular o direito de exigir a sua aplicação em
detrimento da norma nacional contrária.
Acontece, porém, que como destinatário direto do comando normativo comunitário, o
particular pode vir a ser afectado na sua qualidade de titular de direitos reconhecidos
pela Constituição nacional ou pelas convenções internacionais aplicáveis,
designadamente no que toca aos Direitos Fundamentais.
Assim, o Tribunal de Justiça viu-se perante um dilema, abdicar do primado sempre que
estivesse em causa a força vinculativa dos Direitos Fundamentais, ou, não abdicar da
natureza incondicional e absoluta da exigência do primado. Da análise da
Jurisprudência do Tribunal de Justiça, podemos afirmar que, num primeiro momento,
se optou por uma visão agnóstica, por mais relevantes que fossem os direitos
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A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
Cristina Crisóstomo
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fundamentais na sua forma constitucional ou internacional, o juiz comunitário não os
reconhecia como parâmetros de apreciação da validade dos atos comunitários.
O Tribunal de Justiça entendeu que deveria zelar pela imposição do primado e a
eliminação de quaisquer excepções que o pudessem relativizar ou enfraquecer, ainda
que sacrificando preceitos constitucionais sobre direitos fundamentais ou regras
internacionais sobre Direitos do Homem, não permitindo ao individuo a invocação da
sua constituição ou de instrumentos internacionais para se opor à aplicação de um ato
comunitário potencialmente restritivo de Direitos Fundamentais. Desta forma, o
Tribunal de Justiça rejeitou a tutela autónoma dos Direitos Fundamentais.
Podemos afirmar que o Tribunal violava o próprio Tratado, na medida em que, o art.
19º do TUE concebe o tribunal como o órgão de “garantia do respeito do direito”. Ora,
por legado histórico ou por força da experiência constitucional vigente, o direito
consubstancia a proclamação e a tutela efetiva dos Direitos Fundamentais.
Esta posição do Tribunal de Justiça sofre uma alteração importante, com o Acórdão de
12 de Novembro de 1969, proferido no caso Stauder, que consubstancia a passagem
de uma fase ”agnóstica” para uma fase de reconhecimento ativo dos Direitos
Fundamentais, “… compreendidos nos princípios gerais do direito comunitário, cujo
respeito é assegurado pelos tribunais
7
.
A “comunitarização” dos Direitos Fundamentais, por referência aos princípios gerais de
direito, já tinha sido aventada pelo advogado Geral Lagrange no caso Comptoirs. Por
outro lado, não podemos deixar de sublinhar que é o próprio Tratado, no art. 340º
(TUE) que reconhece os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-membros em
matéria de responsabilidade extra contractual.
No domínio sensível dos Direitos Fundamentais iria revelar-se extremamente profícuo o
recurso aos princípios gerais de direito como técnica de integração e autonomização de
direitos e liberdades consagrados nos sistemas nacionais. Trata-se até de uma proteção
reforçada, dado que os princípios gerais primam sobre o direito comunitário derivado e
sobre os próprios Tratados sempre que acolham direitos inerentes à dignidade da
pessoa humana, os quais pela sua força ético-jurídica são insusceptíveis de derrogação.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça vem dar um contributo importante para a
determinação de uma noção material de princípios gerais de direito ínsitos nas
tradições constitucionais dos Estados-membros e integrados na estruturas e nos
objectivos do acervo comunitário
8
.
O Tribunal de Justiça avoca para si, em colaboração com os tribunais nacionais, a tutela
dos Direitos Fundamentais, dando início a uma terceira fase na jurisprudência
comunitária
9
, caracterizada pela determinação de um critério materialmente amplo de
Direitos Fundamentais. As tradições constitucionais comuns, as próprias constituições
dos Estados-membros, bem como os instrumentos internacionais relativos aos Direitos
do Homem, aos quais os Estados-membros hajam aderido ou cooperado, formam um
vasto conjunto normativo de revelação dos Direitos Fundamentais que devem ser
garantidos pelo juiz comunitário em cooperação com os tribunais nacionais. Como

7
Acórdão Stauder,Proc.29/69, de 12 de Novembro de 1969, Relatório TJC 1969, pág. 419.
8
Acórdão Internationale Handelsgesellsschaft, Proc. 11/70, de 12 de Dezembro de 1970, Relatório do
TJC1970, pág.1125.
9
Acórdão Nold II, Proc. 4/73, de 14 de Maio de 1974, Relatório TJC 1974, pág. 491.
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princípios gerais de direito, a sua força vinculativa na ordem jurídica não depende de
qualquer denominador comum, não sendo a maior ou menor aceitação dos Estados-
membros o seu critério de identificação, mas sim a sua adequação funcional. Sendo a
União Europeia uma entidade de poderes limitados, segundo o princípio da competência
por atribuição, a interpretação do âmbito das competências explicitas e implícitas, no
que toca à proteção dos Direitos Fundamentais só poderá corresponderá a esse espaço
de atuação normativa.
O reconhecimento ativo dos Direitos Fundamentais levou a que possamos encontrar na
jurisprudência do Tribunal de Justiça referências diretas ao Direito Internacional como
fonte destes direitos garantidos pelo juiz comunitário
10
. A primeira menção expressa à
Carta Europeia Direitos Homem surgiu no caso Rutili
11
ao considerar que as limitações
aos poderes dos Estados-membros em matéria de política de estrangeiros, são a
manifestação de um princípio mais geral consagrado nos artigos 8º, 9º, 10º e 11º da
CEDH e no artigo 2º do protocolo nº 4.
Para além das múltiplas referências expressas à CEDH e protocolos adicionais, o TJUE
reconheceu num acórdão de 1991 que a CEDH “reveste um significado particular“ entre
os princípios gerais de direito cuja tutela é assegurada pela ordem jurídica comunitária.
A imperatividade dos direitos do Homem na ordem jurídica comunitária legitima
igualmente o poder do juiz comunitário para, em cooperação com o juiz nacional,
proceder à fiscalização dos atos legislativos e regulamentares dos Estados-membros.
Porém, o Tribunal de Justiça confirmou o seu propósito de limitar a fiscalização da
compatibilidade do direito nacional com a CEDH àquelas disposições que executam
normas comunitárias ou que estabelecem excepções às liberdades comunitárias, não
lhe cabendo sindicar a compatibilidade com a CEDH de uma lei nacional que se situa no
domínio da competência do legislador nacional.
A relevância da tutela dos Direitos Fundamentais na jurisprudência do Tribunal de
Justiça, como parte integrante dos princípios gerais de direito, cujo respeito é
assegurado quer pelo juiz comunitário, quer pelo juiz nacional, poderá ser entendido
como uma forma de recepção material.
Verifica-se, com efeito que as disposições relativas a Direitos Fundamentais, foram
integradas nas tradições constitucionais dos Estados-membros e desta forma, em
particular, a CEDH, foi recebida e incorporada na ordem jurídica comunitária como
parte integrante dos princípios gerais de direito. Assim, o juiz comunitário interpreta e
aplica os Direitos Fundamentais, de fonte nacional e convencional, segundo as regras e
os critérios próprios do direito comunitário. O juiz comunitário não se comprometeu
com uma qualificação jurídica de vigência dos Direitos Fundamentais no ordenamento
comunitário, mas, na sua jurisprudência constante sobre a relevância e o sentido dos
Direitos Fundamentais, aponta para a sua recepção material.
Num acórdão recente sobre matéria da concorrência no qual, estando em causa o
direito de não testemunhar contra si próprio, protegido pela presunção de inocência
prevista no art. 6º, nº 2, da CEDH, o Tribunal Geral concluiu que “não tem competência

10
No caso Van Duyn (Proc. 41/74, de 4 de Dezembro de 1974, Relatório do TJC, pág.1337) caracterizou-se
o direito de entrada e de residência dos nacionais no seu próprio Estado como um princípio de Direito
internacional.
11
Acórdão Rutili, Proc. 36/75, de 29 de Outubro de 1974, Relatório do TJC, pág. 1219.
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para apreciar a legalidade de um inquérito em matéria de direito da concorrência à luz
das disposições da CEDH, na medida em que estas não fazem parte, enquanto tais do
direito comunitário”, ressalvando, contudo e segundo a jurisprudência constante, que
os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais de direito cujo
respeito é assegurado pelo juiz comunitário”. Posição diferente seria adoptada hoje
dado que, por força do Tratado de Lisboa, a CEDH se tornou vinculativa.
Podemos afirmar que a promulgação da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia não acresce competências à UE em matéria de Direitos Fundamentais, nem
veio revelar novo património de valores comuns em que se funda a União, mas atribui
uma nova legitimidade à tutela destes direitos que, pela solidariedade da forma,
legitimidade democrática da elaboração, importância da codificação e sistematização e
pelo simbolismo inerente a um catalogo que visa exprimir os princípios e direitos,
constituem um pilar fundamental numa comunidade política.
O acervo jurisdicional de proteção dos Direitos Fundamentais europeu seja ou não
perfeito ou sequer correto e justo, constituí-se como um primeiro passo, para a tutela
dos Direitos Fundamentais dos cidadãos europeus e a salvaguarda contra violações da
sua esfera jurídica por parte das autoridades de detém prerrogativas de poder.
Porém, o casuísmo e a insegurança jurídica não se ajustam à defesa daquilo que é o
mais profundo da natureza humana: a dignidade do homem e os valores fundamentais
que daí decorrem.
Nesta matéria, deve caminhar-se para um aprofundamento progressivo de um
ordenamento jurídico autónomo, superior, que se quer coeso e uniforme, que não
desrespeite, na medida do possível, a soberania dos Estados, mas que,
inevitavelmente, acaba por restringir a liberdade de atuação estadual em domínios que
serão cada vez mais amplos e extensos.
Dessa forma, com a expressa consagração dos Direitos Fundamentais, como uma
verdadeira política comunitária, ao torna-la vinculativa, com o Tratado de Lisboa, as
instâncias com legitimidade política e competência institucional deram um passo em
frente para a proteção dos Direitos Fundamentais. Por outro lado, libertaram o TJUE de
uma posição de constrangimento, entre a escolha da aplicação da Carta ou da defesa
da integração europeia e resolvem, definitivamente, a questão da legitimidade do TJUE
quanto à tutela destes direitos.
A Carta deixa de ter um papel meramente simbólico-constituinte e passa a fixar
princípios teleológicos inerentes á União Europeia, traduzindo-os em Direitos
Fundamentais. Com a obrigatoriedade conquistada, a Carta dá um salto qualitativo,
afirmando que não se destina apenas a cristalizar e enunciar os direitos mas,
efectivamente, a garantir uma proteção adequada em face da esfera dos poderes
públicos europeus.
O carácter de universalidade, presente na Carta, demonstra que um dos seus
objectivos seria exactamente o de disseminar pelos cidadãos europeus o conhecimento
necessário para que possam exigir e garantir uma proteção efetiva dos seus direitos.
Neste sentido, vem responder à necessidade de divulgação e informação destes direitos
juntos dos seus destinatários.
Em suma, a Carta aproxima e divulga o catálogo de Direitos Fundamentais junto dos
cidadãos, reforçando a sua segurança jurídica.
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No preâmbulo da Carta podemos verificar, desde logo, a proclamação dos valores
comuns à União (a dignidade do ser humano, a liberdade, a igualdade, a solidariedade,
…), a afirmação de princípios fundamentais (princípio da democracia e do estado de
direito, princípio do respeito pelos direitos fundamentais do ser humano, principio da
subsidiariedade...), a promoção dos valores fundamentais (respeito pela diversidade
das culturas, tradições e identidade dos povos da Europa, desenvolvimento equilibrado
e sustentado da economia, progresso social, evolução tecnológica e científica), a
reafirmação da observância das tradições constitucionais dos Estados-membros, da
Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, da Carta Social, bem como o respeito pela jurisprudência do TJUE e do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a submissão da Carta à sindicância do TJUE
e dos tribunais nacionais dos Estados-membros.
A Carta reúne, assim, um conjunto de direitos pessoais, como os direitos civis e
políticos, direitos dos cidadãos consagrados nos tratados e direitos económicos e sociais
fundamentais, aplicando, de forma clara, o princípio da universalidade e da
indivisibilidade dos direitos. Quanto á sua sistemática, não realiza a distinção, até
então estabelecida nos textos europeus internacionais, entre direitos civis e políticos de
um lado, e direitos económicos e sociais de outro, mas opta pela enumeração de todos
os direitos e liberdades de acordo com alguns fundamentos essenciais, como dignidade
humana, liberdades fundamentais, igualdade entre as pessoas, solidariedade, cidadania
e justiça. Estando, no fundo, sistematizada em torno de bens jurídicos essenciais como
os mencionados anteriormente.
Desta forma e pela primeira vez, todos os direitos que se encontravam dispersos por
diversos instrumentos legislativos, como legislação nacional e convenções
internacionais do Conselho da Europa, das Nações Unidas e da Organização
Internacional do Trabalho, entre outros citados, foram reunidos num único documento.
Conferindo visibilidade e clareza aos Direitos Fundamentais, a Carta contribui para
desenvolver o conceito da União política, bem como para aprofundar um espaço
europeu de liberdade, segurança e justiça.
Para o futuro e relativamente à aplicação da Carta, importa conferir-lhe credibilidade e
apostar numa ampla divulgação do seu conteúdo, cumprindo, assim, um dos objectivos
do projecto, dar-lhe visibilidade. Por outro lado, os princípios consagrados na Carta
devem servir como critérios de orientação para o desenvolvimento das políticas da
União e como parâmetros para a actividade das instituições comunitárias.
Destacamos algumas iniciativas recentes que reportamos como um avanço na proteção
dos Direitos Fundamentais e na aplicação da Carta, em Setembro de 2002, foi criada
uma rede de peritos independentes, em matéria de direitos humanos, na sequência de
uma recomendação do Parlamento Europeu. Estes mesmos peritos apresentaram o seu
primeiro relatório sobre a situação dos Direitos Fundamentais na União Europeia e
respectivos Estados-membros em 31 de Março de 2003. O relatório apresenta uma
síntese dos relatórios nacionais elaborados por cada um dos peritos e contém
recomendações destinadas às instituições e aos Estados-membros. A rede foi
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financiada como acção preparatória
12
, com uma duração limitada a três anos que não
pode ser renovada.
Ainda em Fevereiro de 2007, foi criada a Agência dos Direitos Fundamentais da União
Europeia (FRA)
13
, com sede em Viena, cujo principal objectivo consiste em fornecer
informação, prestar assistência e disponibilizar competências às instituições
comunitárias e nacionais no domínio dos Direitos Fundamentais. A agência coordena a
sua acção, estabelecendo uma rede de cooperação com a sociedade civil, trocando
informações, partilhando conhecimentos e assegurando uma estreita colaboração entre
outras agências e as partes interessadas. Também estabelece relações institucionais ao
nível internacional, europeu e nacional, designadamente com o Conselho da Europa, a
organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), as agências
comunitárias competentes, as organizações governamentais e os órgãos públicos,
incluindo as instituições nacionais de defesa dos direitos humanos.
Procura-se assim uma análise dos principais problemas da cada Estado, permitindo que
a União possa, cada vez mais, agir em conformidade com a necessidade e o interesse
dos seus membros, procurando a efectividade das suas decisões e a aplicação coerente
de medidas no domínio dos Direitos Fundamentais.
Concluindo, a Carta reforça a segurança jurídica no que diz respeito à proteção dos
Direitos Fundamentais, proteção essa que até à data era apenas garantida pela
jurisprudência do Tribunal de Justiça e pelo artigo 6º do Tratado da União Europeia.
Por esta razão, não podemos, deixar de destacar o papel que a jurisprudência
desempenhou quanto à determinação rigorosa dos contornos jurídicos da Carta e para
a maturação de um sistema de proteção de Direitos Fundamentais. Este papel do
Tribunal é e era tão importante que a Carta se viria a tornar obrigatória mediante a sua
interpretação, como fonte integrada nos princípios gerais do direito comunitário. Nesse
sentido, a Carta estaria destinada a ser incorporada nos Tratados, mais cedo ou mais
tarde, o que acabou por se concretizar com o Tratado de Lisboa.
Numa altura em que as relações internacionais se pautam quer pela sua complexidade,
quer pela diversidade dos seus intervenientes e se caracterizam pela existência de
múltiplas ordens jurídicas que se interpenetram, resultando numa ordem normativa
dispersa e fragmentada, a consagração da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia adquire uma especial relevância.
Com a sua aplicação de forma vinculativa, terminou o debate sobre a sua
obrigatoriedade, restando, claro, que os Estados, os cidadãos e os magistrados devem
considerar o seu conteúdo como critério de decisão e de aplicação de todas as políticas
públicas.
Bibliografia:
Direito, Sérgio Saraiva (2002). A Carta dos Direitos Fundamentais e a sua relevância
para a Protecção dos Direitos Fundamentais na União Europeia. Lisboa: Universidade de
Lisboa

12
Em conformidade com o artigo 49º do Regulamento Financeiro (Regulamento nº1.605/2002 do
Conselho).
13
Pelo Regulamento 168/2007 do Conselho de 15 de Fevereiro que cria Agência dos Direitos Fundamentais
da União Europeia.
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10ªEdição. ISBN 978-019-92-10907-0
Como citar esta Nota
Crisóstomo, Cristina (2011). "
A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia – O papel do Tribunal de Justiça da União Europeia"
. Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_not3
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ANEXO
O Tribunal de Justiça da União Europeia
Tem origem a 10 de Dezembro de 1952 com a instituição do Tribunal de Justiça da
CECA, no Luxemburgo. Através do Tratado de Paris em 1951, posteriormente,
adoptado pelos Tratados de Roma em 1957, foi criado o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias, a fim de garantir uma aplicação fiel e homogénea do direito
comunitário por parte dos seus Estados-membros.
Com a criação das comunidades nasceu um novo direito, autónomo, destinado a
regular as relações não somente entre os Estados membro, como ainda, entre as suas
instituições, empresas e os próprios cidadãos.
Desde a criação, em 1952, o Tribunal de Justiça da União Europeia encerra em si a
função jurisdicional administrativa, internacional, constitucional, laboral, cível, fiscal e
aduaneira, é a jurisdição responsável pela interpretação e aplicação uniformes do
direito comunitário. O TJUE colabora com as autoridades judiciárias nos Estados-
membros com vista a assegurar a aplicação uniforme do direito comunitário, actuando
como intérprete o responsável supremo do ordenamento jurídico comunitário. No
âmbito das suas competências contenciosas, sejam elas resultantes ou não dos
Tratados, dirime litígios entre instituições, órgãos ou organismos da UE, entre Estados-
membros, entre Estados- membros e instituições, entre órgãos ou organismos da UE e
entre particulares e instituições da União.
O Tribunal de Justiça constitui assim a autoridade judiciária da União Europeia e sua
missão consiste em garantir “ o respeito do direito na interpretação e aplicação” dos
Tratados, em colaboração com os órgãos jurisdicionais dos Estados membros.
O Tribunal de Justiça da União Europeia, é composto por três jurisdições: O Tribunal de
Justiça, o Tribunal Geral (criado em 1988) e o Tribunal da Função Pública (criado em
2004).
O Tribunal de Justiça é composto por 27 juízes e 8 advogados gerais. Os juízes e os
advogados gerais são designados de comum acordo pelos governos dos Estados-
membros, após consulta de um comité encarregado de dar parecer sobre a adequação
dos candidatos propostos ao exercício das funções em causa. Os seus mandatos são de
seis anos, renováveis. São escolhidos de entre pessoas que ofereçam todas as
garantias de independência e possuam a capacidade requerida para o exercício, nos
respectivos países, de altas funções jurisdicionais e que tenham reconhecida
competência.
Os juízes do Tribunal de Justiça elegem de entre si o presidente por um período de três
anos, renovável. O presidente dirige os trabalhos do Tribunal de Justiça e preside às
audiências e deliberações das maiores formações de julgamento.
Os advogados gerais assistem o Tribunal. Cabe-lhes apresentar publicamente, com
toda a imparcialidade e independência, pareceres jurídicos, denominados “conclusões”,
nos processos para os quais tenham sido nomeados.
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O tribunal de Justiça pode funcionar em Tribunal Pleno, em Grande Secção (13 juízes)
ou em secções de cinco ou de três juízes.
Ao Tribunal Pleno compete apreciar situações particulares previstas pelo Estatuto do
Tribunal de Justiça ( designadamente quando deve declarar a demissão do Provedor de
Justiça Europeu ou ordenar a demissão compulsiva de um comissário europeu que
tenha deixado de cumprir os deveres que lhe incumbem) e quando considerar que uma
causa reveste excepcional importância.
Reúne-se em Grande Secção sempre que um Estado-membro ou uma instituição que
seja parte na instância o solicite, bem como em processos particularmente complexos
ou importantes.
Os outros processos são apreciados em secções de cinco ou três juízes.
O Tribunal Geral é composto por, pelo menos, um juiz por Estado membro (27 em
2007). Os juízes são nomeados de comum acordo pelos governos dos Estados-
membros, após consulta de um comité encarregado de dar parecer sobre a adequação
dos candidatos. Os seus mandatos são de seis anos, renováveis. Designam de entre si,
por um período de três anos, o presidente do Tribunal. Nomeiam um secretário para
um mandato de seis anos.
Os juízes exercem as suas funções com toda a imparcialidade e independência.
Contrariamente ao Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral não dispõe de advogados gerais
permanentes. Essa função pode, no entanto, ser excepcionalmente confiada a um juiz.
O Tribunal Geral funciona em secções compostas por cinco ou três juízes ou, em certos
casos, com juiz singular. Pode igualmente funcionar em Grande secção (treze juízes) ou
em Tribunal Pleno, quando a complexidade jurídica ou a importância do processo o
justifiquem. Mais de 80% dos processos submetidos à apreciação do Tribunal Geral são
julgados por secções de três juízes.
O Tribunal Geral é competente para conhecer: das ações e recursos interpostos pelas
pessoas singulares ou colectivas contra os atos das instituições e dos órgãos e
organismos da União Europeia de que seja destinatários ou que lhes digam diretamente
e individualmente respeito) bem como contra os atos regulamentares (que lhes digam
diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução) ou ainda contra uma
abstenção destas instituições, órgãos e organismos. Trata-se, por exemplo, do recurso
interposto por uma empresa contra uma decisão da Comissão que lhe aplica uma
coima; dos recursos interpostos pelos Estados-membros contra a Comissão, ou, dos
recursos interpostos pelos Estados-membros contra o Conselho em relação a atos
adoptados no domínio dos auxílios de Estado, às medidas de defesa comercial e aos
atos através dos quais o Conselho exerce competências de execução
O Tribunal da Função Pública da União Europeia é composto por sete juízes nomeados
pelo Conselho, por um período de seis anos renovável, após convite para a
apresentação de candidaturas e parecer de um comité composto por personalidades
escolhidas de entre antigos membros do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral e
juristas de reconhecida competência.
Ao nomear os juízes, o Conselho deve garantir que a composição do Tribunal da Função
Pública seja equilibrada e assente na mais ampla base geográfica possível de cidadãos
dos Estados membro e dos regimes jurídicos nacionais representados.
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Os juízes do Tribunal da Função Pública designam entre si, por um período de três anos
renovável, o respectivo presidente.
O Tribunal da função Pública reúne em secções de três juízes. Todavia, quando a
dificuldade ou a importância das questões de direito o justifiquem, um processo pode
ser remetido ao Tribunal Pleno. Além disso, em certos casos e à luz do seu
regulamento de Processo, o Tribunal pode decidir em Secções de cinco juízes ou como
juiz singular. Os juízes nomeiam um secretário por um mandato de seis anos.
A título contencioso o Tribunal da Função Pública é, no âmbito da instituição
jurisdicional da União, a jurisdição especializada no domínio do contencioso da função
publica da União Europeia, competência anteriormente exercida pelo Tribunal da Justiça
e, a partir da sua criação em 1989, pelo Tribunal de Primeira Instância. É competente
para conhecer, em primeira instância, dos litígios entre as Comunidades e os seus
agentes, por força do disposto no artigo 270º do TFUE. Estes litígios têm por objecto
não só questões relativas às relações laborais propriamente ditas (remuneração,
evolução de carreira, recrutamento, medidas disciplinares, etc...) mas, igualmente, ao
regime de segurança social (doença, reforma, invalidez, acidentes de trabalho, abonos
de família, etc...). Dispõe ainda de competência para os litígios entre qualquer órgão ou
organismo e o seu pessoal, para os quais a competência é atribuída ao Tribunal de
Justiça da União Europeia ( por exemplo os litígios entre Europol, o Instituto de
Harmonização do Mercado Interno (IHMI) ou o Banco Europeu de Investimento e os
respectivos agentes). Em contrapartida, não tem competência para conhecer dos
litígios que opõem as administrações nacionais aos respectivos agentes.
No que toca aos mecanismos contenciosos, a acção de incumprimento visa fiscalizar o
cumprimento pelos Estados-membro das obrigações que lhes incumbem por força do
direito da União. O recurso ao Tribunal de Justiça é precedido de um procedimento
prévio desencadeado pela Comissão e que consiste em dar ao Estado-membro a
possibilidade de responder às imputações que lhe são feitas. Se tal procedimento não
levar o Estado a pôr termo ao incumprimento, pode ser intentada no Tribunal de Justiça
uma acção por violação do direito da União
Essa acção pode ser intentada pela Comissão (é, na prática, o caso mais frequente) ou
por um Estado-membro. Se o Tribunal de Justiça declarar o incumprimento, o Estado
em causa terá de lhe pôr termo sem demora. Se, após a propositura de nova acção
pela Comissão, o Tribunal de Justiça declarar que o Estado-membro em causa não deu
cumprimento ao seu acórdão, pode condená-lo no pagamento de um montante fixo ou
numa sanção pecuniária compulsória. Todavia, em caso de não comunicação das
medidas de transposição de uma directiva à Comissão, o Tribunal de Justiça pode, sob
proposta desta última, aplicar uma sanção pecuniária ao Estado membro em causa,
logo na fase do primeiro acórdão de incumprimento.
Outro mecanismo importante é o recurso de anulação, através deste tipo de recurso, o
recorrente pede a anulação de um acto de uma instituição de um órgão ou de um
organismo da União (designadamente um regulamento, uma directiva, uma decisão)
por estarem feridos de irregularidades face ao direito comunitário. Tem como principal
objectivo eliminar da ordem jurídica comunitária actos viciados. Ainda no que toca à
fiscalização da legalidade comunitária, a acção de omissão permite fiscalizar a
legalidade da inação das instituições, de um órgão ou de um organismo da União. Este
tipo de acção só pode, porém, ser intentada depois de um procedimento de pré-
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contencioso, sendo a instituição em causa convidada a agir. Quando a legalidade da
omissão for declarada, compete à instituição visada por termo ao incumprimento
através de medidas adequadas.
No que concerne à reapreciação das decisões, pode ser interposto no Tribunal de
Justiça um recurso, limitado às questões de direito, dos acórdãos e despachos do
Tribunal Geral. Se o recurso for admissível e procedente, o Tribunal de Justiça anula a
decisão do Tribunal Geral. Caso o processo esteja em condições de ser julgado, o
Tribunal de Justiça pode decidir definitivamente o litígio. Caso contrário, deve remeter
o processo ao Tribunal Geral, que fica vinculado pela decisão proferida sobre o recurso.
Outro mecanismo de reapreciação permite que as decisões do Tribunal Geral sobre os
recursos interpostos das decisões do Tribunal da Função Pública da União Europeia
possam ser rapreciadas a título excepcional pelo Tribunal de Justiça, nas condições
previstas no Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de justiça da união Europeia.
Finalmente o TJUE exerce competência consultiva sob a forma de pareceres sobre
compatibilidade dos Tratados internacionais com o Direito Comunitário, art. 218º do
Tratado de Lisboa
O Tribunal de Justiça, desenvolve ainda uma acção de cooperação judiciária, no âmbito
do reenvio a título prejudicial, trabalhando em colaboração com todos os órgãos
jurisdicionais dos Estados- membros.
Para garantir uma aplicação efectiva e homogénea da legislação da União e evitar
interpretações divergentes, os juízes nacionais podem, e por vezes devem, dirigir-se ao
Tribunal de Justiça a fim de solicitar esclarecimentos sobre a interpretação do direito da
União, permitindo-lhes ainda verificar a conformidade da respectiva legislação nacional.
O pedido de decisão prejudicial pode igualmente ter como finalidade a fiscalização da
legalidade de um acto de direito da União.
O Tribunal de Justiça responde mediante acórdão ou despacho fundamentado e o
tribunal nacional destinatário fica vinculado pela interpretaçãoo dada. O acórdão do
Tribunal de Justiça vincula também os outros órgãos jurisdicionais nacionais a que seja
submetido um problema idêntico.
É também no âmbito do processo de reenvio prejudicial que qualquer cidadão europeu
pode solicitar que sejam esclarecidas as regras da União que lhe dizem respeito. De
facto, embora o processo de reenvio prejudicial só possa ser desencadeado por um
órgão jurisdicional nacional, as partes já presentes nos órgãos jurisdicionais nacionais,
os Estados membros e as instituições da União podem participar no processo perante o
Tribunal de Justiça. Foi deste modo que alguns grandes princípios do direito da União
foram enunciados a partir de questões prejudiciais, designadamente, a jurisprudência
do desenvolvimento da tutela dos direitos plasmados na Carta Europeia dos Direitos do
Homem.
Como citar esta Nota
Crisóstomo, Cristina (2011). "A Tutela da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia – O papel do Tribunal de Justiça da União Europeia". Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 2, Outono 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n2_not3
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 2 (Outono 2011), pp. 160-164
Recensão Crítica
Kagawa, Fumiyo et Selby, David (ed) (2011). Education and
Climate Change. Living and learning in interesting times. New York:
Routledge: 259 pp. ISBN10: 0-415-80585-6
por Brígida Rocha Brito
email: brigidabrito@netcabo.pt
Doutorada em Estudos Africanos pelo ISCTE–IUL.
Professora de Ambiente e Relações Internacionais; Cooperação Internacional e
Mundo Contemporâneo no Departamento de Relações Internacionais
da Universidade Autónoma de Lisboa,
Subdirectora de JANUS.NET, e-journal of International Relations.
Investigadora do OBSERVARE (UAL) e do Centro de Estudos Africanos (ISCTE-IUL).
Professora Auxiliar Convidada no Departamento de Sociologia da Universidade de Évora.
“Education and Climate Change. Living and learning in interesting times” é um
livro de co-autoria, coordenado por Fumiyo Kagawa e David Selby, publicado em 2010
pela Routledge.
A abordagem inicial ao livro resulta do interesse despertado por duas razões principais,
sendo que, mesmo individualmente, qualquer uma delas é válida e suficiente obrigando
a uma leitura atenta: por um lado, o tema central do livro; e, por outro lado, os
curricula dos autores. Assim:
1. A primeira razão radica no tema em discussão que, indiscutivelmente, apresenta
grande actualidade a abordagem pedagógica face às alterações climáticas a vel
mundial, tendo presente os múltiplos impactos para a vida humana nas suas
diferentes dimensões (saúde, segurança alimentar, produção económica vária, ...).
De forma implícita, a análise remete para a importância das Relações Internacionais
no contexto da problemática ambiental, considerando a sustentabilidade como o
objectivo central. Mas, neste livro, o inverso também é verdadeiro, ou seja, a
pertinência das questões ambientais para as Relações Internacionais, visto que
todos os exemplos apresentados e discutidos são perspectivados a partir de uma
leitura holística;
2. A segunda razão prende-se com os coordenadores, co-autores do livro e do
prefácio. Fumiyo Kagawa é coordenadora de investigação no Centre for Sustainable
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Futures da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, e David Selby é Professor na
Universidade de Mount St. Vincent, no Canadá, e Director do Sustainability
Frontiers, um Centro de Investigação virtual sobre alterações climáticas e educação
sustentável. Para além dos coordenadores, o livro conta com textos da autoria de
professores de Universidades de renome internacional e investigadores de Centros
de Investigação mundialmente reconhecidos pelos seus pares
1
. O Prefácio é da
autoria do Bispo Desmond Tutu, Prémio Nobel da Paz em 1984. Nas primeiras
palavras do Prefácio, reforça a ideia que as alterações climáticas, além de globais,
têm uma causa humana, sendo, mais do que fundamental, urgente adoptar e
implementar um conjunto alargado de medidas, adequadas por área sectorial,
assumidas por todos os Estados e envolvendo a população mundial com sentido de
responsabilidade. Desmond Tutu define as alterações climáticas como uma das
principais crises mundiais promovidas pela Humanidade, que se tem vindo a revelar
de forma desequilibrada no que respeita aos impactos.
“Climate change is the greatest human-induced crisis facing the
World today. It is totally indiscriminate of race, culture and
religion. It affects every human being on the Planet. But, so far,
its impacts have fallen disproportionately. In response to
climate change, the World «adaptation» has become part of
standard vocabulary” (pp: XV)
Sendo uma obra de co-autoria, o interesse que desperta é alargado, permitindo
confrontar diferentes perspectivas sobre a mesma problemática e, em simultâneo,
relacionar áreas temáticas, cruzar indicadores, complementar leituras e reinventar
metodologias tendentes ao aspirado conceito de sustentabilidade.
Este livro tem, antes de mais, um sentido pedagógico permitindo ao leitor uma
aprendizagem fundamentada sobre as questões ambientais, por um lado, numa
reflexão teórica crítica, por outro lado, na explicação técnica e científica dos processos
que conduzem às alterações climáticas, bem como das suas consequências e, por fim,
na partilha de experiências de investigação prosseguidas e concluídas pelos respectivos
autores.
1
Virginia Cawagas (Professora Associada da United Nations University for Peace, Costa Rica), Darlene
Elower (Professora Associada na Universidade de Victoria, Canada), Ian Davis (Professor na Universidade
de York), George Seja Dei (Professor Catedrático na Universidade de Toronto, Canada), Edgar González-
Gaudiano (Investigador sénior na Universidade Autónoma de Nuevo Leon, México, e membro da
Comissão de Educação e Comunicação da União Internacional de Conservação da Natureza, UICN),
Magnus Haavelsrud (Professor na Norwegian University of Science and Technology em Trondheim,
Noruega), Bud Hall (Director do Office of Community-based research da Universidade de Victoria,
Canada), Heila Lotz-Sisitka (Professor Catedrático em Educação Ambiental e Sustentabilidade na
Universidade de Rhodes, África do Sul), Pablo Meira Cartea (Professor a Universidade de Santiago de
Compostela, Espanha), James Pitt (Investigador sénior na Universidade de York, Reino Unido), Jane Reed
(Coordenadora do International Network for School Improvement do London Centre for Leadership,
Universidade de Londres), Janet Richardson (Professora na Universidade de Plymouth, Reino Unido), Toh
Swee-Hin (Professor e Director da Griffith University Multi Faith Centre, Austrália), Margareth Wade
(Professora da Universidade de Plymouth, Reino Unido).
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O livro está organizado em doze textos
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de análise temática que, apesar das
especificidades de cada abordagem, apresentam um conjunto de preocupações
comuns, maioritariamente centradas no conceito de sustentabilidade sócio-ambiental
de âmbito mundial. Todos os autores apresentam consenso acerca de três grandes
questões: 1) a urgência que o tema requer, implicando reflexão, debate, redefinição
metodológica e intervenção global; 2) a metodologia participativa com envolvimento
activo de todos, desde o cidadão comum ao governante; 3) o objectivo da
sustentabilidade, com referência permanente para as novas gerações.
Uma das grandes preocupações evidenciadas ao longo dos doze textos reside na
estratégia a adoptar após a tomada de consciência de que, além das alterações
climáticas serem uma realidade incontestável, promovem impactos de agravada
dimensão que se mantém ao longo do tempo. A estratégia defendida, sendo comum a
todas as perspectivas, centra-se numa Educação Ambiental consciente e responsável,
assumida por todos, independentemente da origem ou local de residência, da
disponibilidade económica e financeira ou da cultura de referência.
Face à tomada de consciência de que as mudanças climáticas são globais e
mundialmente abrangentes, existe a necessidade de criar um novo universalismo
(Haavelsrud, 2010: 57 e seguintes) fundamentado numa concepção dinâmica da
Humanidade, orientada por objectivos comuns (“commonality”), entre os quais a Paz,
recorrendo a uma metodologia de “aprendizagem transformativa”.
A nível internacional, o diálogo é também considerado global (Sisitka, 2010: 73 e
seguintes) pela urgência de identificar respostas contextualizadas para os problemas
decorrentes das alterações climáticas. Esta ideia fundamenta-se, por um lado, na
percepção de que os impactos sócio-ambientais negativos, incluindo as dinâmicas
económica e política, são cada vez mais intensos e de difícil resolução; por outro lado,
na constatação que os que mais sentem os efeitos das alterações climáticas não são os
mesmos que mais as promovem; e, por fim, na tomada de consciência que as
consequências das alterações climáticas são de tal forma estruturantes que o que está
em causa é a continuidade da vida de todo o Planeta. Assim, é equacionada a relação
entre as alterações climáticas, a equidade e a justiça, eliminando-se, de certa forma, a
concepção convencional de fronteiras territoriais, incorporando metodologias educativas
e capacitadoras, transnacionais e globais, visto que os problemas sentidos têm também
estas dimensões.
A estratégia educativa é concebida de forma transversal como uma oportunidade de
repensar atitudes e comportamentos mas também de reorientar prioridades e
objectivos no que se considera serem “tempos interessantes” (Kagawa et Selby, 2010).
Esta é uma época considerada única porque marcada tanto pelas múltiplas alterações
do clima, como pela possibilidade de moldar consciências, aprender com os erros
2
Os doze textos são: 1) Climate change education and communication: a critical perspective on obstacles
and resistances; 2) Go, go, go, said the Bird: sustainability-related education in interesting times; 3)
Peace learning: universalism in interesting times; 4) Climate injustice: how should education respond?;
5) The environment, climate change, ecological sustainability, and antiracist education; 6) Learning in
emergencies: defense of Humanity for a livable World; 7) Sustainable democracy: issues, challenges and
proposals for citizenship education in an age of climate change; 8) School improvement in transition: an
emerging agenda for interesting times; 9) Critique, create and act: environmental adult and social
movement learning in an era of climate change; 10) Transforming the ecological crisis: challenges for
faith and interfaith education in interesting times; 11) Public health threats in a changing climate:
meeting the challenges through sustainable health education; 12) Weaving change: improvising global
wisdom in interesting and dangerous times.
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anteriores, estimulando ainda para um processo transformativo a nível individual e
social (de grupo, qualquer que ele seja), que apela para princípios éticos e morais,
produzindo impactos positivos no sentido de um envolvimento (engajamento) efectivo
e activo que tende para uma “resposta espelho” (Kagawa et Selby, 2010: 5 e
seguintes). A “resposta espelho” é apresentada de forma muito clara, sendo
evidenciada pela percepção comprovada de que as alterações climáticas resultam em
parte de actividades humanas não planeadas, ou sem estudos de impacto associados,
mas também pela constatação que os efeitos destas alterações são sentidos pelas
comunidades humanas de forma, eventualmente, tão radical que põem em causa a
sustentabilidade, mais do que económica ou puramente ambiental, da vida humana.
Esta ideia de “resposta espelho” ultrapassa os princípios convencionais do
determinismo ambiental, sendo particularmente defendida no sentido pedagógico,
independentemente dos grupos envolvidos (crianças, jovens, adultos, grupos sócio-
profissionais específicos, gestores e empreendedores, políticos e governantes, ...). A
estratégia educativa assim concebida abrange a sociedade no seu conjunto, seja a um
nível micro ou macro, neste caso considerando também a dinâmica mundial. Esta ideia
é várias vezes apresentada por referência a Al Gore:
“It gives us an opportunity to experience something that few
generations ever have the privilege of knowing: a common
moral purpose compelling enough to lift us above our
limitations” (Gore apud Kagawa et Selby, 2010: 4)
Sendo um dos elementos que apresenta consenso em todas as análise apresentadas, a
estratégia educativa implica a capacidade de envolvimento participativo, podendo
diferenciar-se em “education for sustainable contraction” ou “education for sustainable
moderation” (Selby, 2010: 41 e seguintes), sendo ambas tendentes a metodologias
alternativas de intervenção para uma reinversão dos efeitos das alterações climáticas
no longo prazo.
A abordagem metodológica participativa tendente à criação e reforço da cidadania
activa não é nova, mas a leitura relacional entre a participação e a cidadania ambiental
global, promovida a nível internacional como veículo para ultrapassar situações de
crise, é inovadora (Davies, 2010: 128 e seguintes). Da mesma forma, este processo de
aprendizagem sócio-ambiental, que capacita e cria “novos” cidadãos, que vivem os
problemas a partir de uma dimensão local mas conscientes da globalidade inerente, é
essencialmente crítico, criativo e vocacionado para a acção, ou intervenção (Clover,
2010: 162), afastando-se das leituras puramente teóricas e descritivas, ou ainda das
listagens de intenções sem aplicação prática (Reed, 2010: 141 e seguintes) e que ficam
na História como documentos bem construídos em texto mas que, pelas mais diversas
razões, não foram aplicados.
A problemática ambiental, na qual as alterações climáticas se enquadram, passa assim
a ser entendida como um paradigma de aprendizagem com potencial para promover a
transformação social, fundamentado em princípios sistémicos e holísticos (Swee-Hin,
2010: 180 e seguintes), ou seja, orientado por critérios integradores que remetem para
a ética local, nacional, regional e sobretudo internacional. Estes elementos são, uma
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vez mais, orientados pelo diálogo crítico e construtivo, regulado por valores com o
objectivo de assegurar a sustentabilidade da vida a nível mundial.
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