OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Bibliográfica

Rajan, Raghuram G. (2011). Linhas de Fractura – As fracturas escondidas que ameaçam a economia mundial. Lisboa: Babel: 429 pp. ISBN 978-972- 22-3024-7 (Tradução de Carla Pedro)

por Amadeu Paiva

Professor no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa

Esta é a edição em português de um trabalho sobre, usando as primeiras palavras do livro1, “o colapso financeiro de 2007 e a «Grande Recessão» que se lhe seguiu” – ou seja, usando agora a palavra entretanto consagrada, sobre a «crise», que abalou o mundo financeiro norte-americano e europeu e, que, dada a configuração da economia mundial acabou por ter reflexos praticamente em todos os sectores da vida social e por todo o mundo e que ainda estamos a viver.

Trata-se, no entanto, de uma obra de leitura enriquecedora, incontornável para quem queira abordar este tema.

Desde logo, pelo curriculum do autor, com um doutoramento em economia no MIT, que o facto de ter sido economista-chefe do FMI, professor de finanças da Universidade de Chicago, e colaborador do governo indiano, como conselheiro e presidente do comité para a regulação do sector financeiro, vencedor do Fischer Black Prize da American Finance Association, o deixa particularmente bem colocado para lidar com o assunto.

Mas também pelo facto de este ter sido um dos economistas que previu esta crise. É frequentemente citado o episódio da sua participação na reunião de 2005 da conferência de Jackson Hole, que anualmente reúne os governadores dos principais bancos centrais e para a qual peritos das áreas de economia e finanças são convidados a apresentar contribuições. O trabalho que apresentou nessa reunião - intitulado Has financial development made the world riskier? - fazia essa previsão e teve visível impacto na audiência por, nas palavras do autor – que conta este episódio na Introdução ,”…não estar sintonizado com o tom geral” que, à época, tinham as discussões sobre temas relativos à indústria financeira.

Trata-se de uma obra incontornável também pelo reconhecimento que o próprio livro entretanto alcançou, tendo sido considerado o melhor livro de negócios do ano de 2010

– Prémio Finantial Times/Goldman Sachs.

1A publicação original é Raghuram G. Rajan, Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy, Princeton University Press, 2010. Não é indicada a edição a partir da qual foi feita a tradução para português.

JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Crítica

Amadeu Paiva

O livro foi escrito para um público mais vasto que os especialistas desta área. É centrado na economia dos Estados Unidos da América2, onde existe aquele que é considerado o sistema financeiro mais sofisticado do mundo.

Assim sendo, a principal questão que me ocorreu quando me solicitaram que fizesse uma apresentação para o janus.net foi saber se um livro acabado de escrever em Fevereiro de 2010, num momento em que a crise ainda não está fechada, centrado na realidade norte-americana, poderia ter interesse para o leitor de língua portuguesa não necessariamente especializado na área, pois caso o fosse, certamente, já o teria lido na edição em inglês. E que contributo poderia dar para o leitor que vive a crise sobretudo na realidade portuguesa e europeia.

O leitor português simplesmente tocado pelas notícias e debates dos meios de comunicação generalistas, pelo convívio social, pela exibição do filme “Inside Job”, pelas referências e mesmo peças de humor que circulam pela internet3, para já não falar no Memorando de Entendimento entre Portugal e a “Troika”4, não achará grande novidade nos assuntos expostos no livro ou até na linguagem. Mas creio que tirará proveito das reflexões que lhe podem ser sugeridas pela leitura e pelas comparações que poderá fazer sobre o que se passa na realidade que se vive, em particular em Portugal e no resto da Europa. Mas que não deixe de ser crítico, pois quer as teses quer os argumentos não são incontestáveis5.

O livro debruça-se sobre as advertências resultantes da crise. Propõe um conjunto de causas para a sua explicação, enquadra-as e analisa-as. Parte dessa análise para apresentar o que considera serem as difíceis escolhas políticas que atacarão as verdadeiras causas desta e de potenciais crises futuras.

O método de abordagem criado pelo autor assenta no conceito de «linhas de fractura», isto é, séries de forças em interacção que provocam enormes tensões que geram crises, à semelhança das linhas de fractura geradas pelo contacto ou colisão das placas tectónicas na superfície terrestre e de que resultam os abalos telúricos.

Considera que estas linhas de fractura são, na realidade, sistémicas, afastando-se, assim, das explicações, que classifica de simplistas, segundo as quais a crise seria explicada apenas pelo comportamento de personalidades ou instituições específicas.

Além de uma “Introdução” e de um “Epílogo”, o livro divide-se em dez capítulos. Nos primeiros sete, expõe os três conjuntos de linhas de fractura que considera. Os três últimos capítulos são dedicados às reformas e outras medidas de política que propõe.

Essas três séries de linhas de fractura são as que resultam do contacto (i) entre a política e os mercados financeiros; (ii) entre países, especialmente entre as economias

2Deixa-se uma referência a uma útil obra com uma visão “não-americana” do sistema financeiro, baseada na experiência dos países europeus: Dewatripont, Mathias; Rochet, Jean-Charles; Tirole, Jean (2010).

Balancing the bank: global lessons from the financial crisis. Princeton University Press.

3 Uma bem interessante é Subprime Crisis de Bird and Fortune (http://www.youtube.com/watch?v=mzJmTCYmo9g)

4Veja-se, a propósito, o comentário sobre as obrigações de dívida coletarizada e do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), de Zingales, Luigi publicado em Negócios Online, em 7 de Janeiro de

2011, sob o título A alquimia financeira da Europa (http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=461849)

5A este propósito é interessante tomar conhecimento das críticas de Paul Krugmam a algumas das tese e

alguns dos argumentos expendidos no livro por Rajan (http://www.nybooks.com/articles/archives/2000/sep/30/slump-goes-why/) e da resposta do próprio Rajan (http://forums.chicagobooth.edu/faultlines?entry=24)

158

JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Crítica

Amadeu Paiva

que consomem em demasia, como os Estados Unidos, e as que consomem insuficientemente, como a Alemanha e o Japão e, cada vez mais, a China; e (iii) entre diferentes tipos de sistemas financeiros existentes no mundo, especificamente, entre os sistemas financeiros transparentes e sem favorecimentos - de que os que existem nos Estados Unidos e o Reino Unido são realidades próximas - e os sistemas financeiros menos transparentes de grande parte do resto do mundo, uma vez que por funcionarem com base em princípios diferentes e estarem sujeitos a formas de intervenção governamental distintas, tendem a distorcer o funcionamento de cada um dos outros sempre que se financiam uns aos outros.

O exemplo mais importante do primeiro tipo de linha de fractura que é destacado é aquela que resulta da crescente desigualdade de rendimentos nos Estados Unidos – que o autor atribui aos insuficientes resultados da indiferenciada socialização da educação e da aprendizagem em geral, a qual vem gerando défices no capital humano que a economia americana requereria - e da pressão política que foi criada no sentido da facilitação do crédito.

Nesta situação, a resposta política ao aumento da desigualdade foi usar o crédito como um paliativo: um consumo que não é suportado por um rendimento insuficiente pode sê-lo pelo crédito acessível. “Os benefícios – crescimento do consumo e mais empregos

foram imediatos, adiando-se para o futuro a factura a pagar” (p. 24). O autor discute, em particular, o controverso tema da política de promoção do acesso alargado à aquisição de casa própria.

Um outro caso de linha de fractura resultante do contacto entre a política e os mercados financeiros, a que o autor dá enorme importância pelos efeitos que considera nefastos, é precisamente sobre a forma como a política monetária norte-americana é influenciada por considerações de ordem política, na mesma linha da facilitação do crédito, para responder a uma situação em que a retoma económica se faz sem aumento de empregos, num país em que a duração dos subsídios de desemprego é curta e os benefícios com os cuidados de saúde não existem para os desempregados. Então, uma política de juros baixos estimula a criação de emprego, mas, num mercado financeiro desregulado, acaba por ter efeitos nefastos ao provocar o aumento do preço das matérias-primas, do preço dos activos que não são remunerados pelo juro, da tendência para o sector financeiro assumir mais riscos, de facilitar o crédito.

Ultrapassando a mera lógica económica, “a retoma económica tem tudo a ver com os empregos, não com a produção, e os políticos estão dispostos a facultar estímulos orçamentais e monetários à economia até os postos de trabalho começarem a reaparecer” (p. 34).

A segunda série de linhas de fractura emana do contacto entre as economias com elevados níveis de consumo e as economias com relativamente menores níveis de consumo. No primeiro caso, teríamos os Estados Unidos, que no livro são referidos como tendo, por escassez relativa de poupança, financiado “… as suas despesas, em 2006, pedindo empréstimos sobre 70% das poupanças mundiais excedentes” (p. 363). No segundo caso, o autor refere especialmente a Alemanha, o Japão e a China, países que basearam o seu crescimento nas exportações, que detêm, portanto, capacidade excedentária de produção relativamente ao seu consumo interno e que satisfizeram, durante os finais da década de 1990 e na década de 2000, uma parte importante da procura nos Estados Unidos.

159

JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Crítica

Amadeu Paiva

Neste âmbito, localiza o autor, uma segunda linha de fractura: a excessiva dependência dos países com crescimento assente nas exportações vis à vis os consumidores estrangeiros, o que fragiliza a economia global pela pressão que estes países exercem sobre os países importadores para manterem os ritmos de consumo, uma vez que o seu mercado interno, protegido e ineficiente, não tem capacidade, por si, para promover o crescimento das suas economias.

A última série de linhas de fractura desenvolve-se no contacto entre os diferentes tipos de sistemas financeiros.

Do exposto no livro sobre esta temática, destacam-se três grupos de considerações.

O primeiro lida com ”o volúvel financiamento estrangeiro”, pondo ênfase nas razões pelas quais, no processo de busca de financiamento por parte dos “países em desenvolvimento”, as tensões e as consequências do confronto entre os seus sistemas financeiros “menos transparentes”– pelo papel da intervenção dos bancos e dos governos - e os sistemas financeiros “mais transparentes” dos financiadores, contribuíram para que aqueles países se transformassem em exportadores líquidos, deixando de contribuir para a absorção da oferta excedentária global.

O segundo discorre sobre uma das debilidades dos sistemas financeiros “transparentes e sem favorecimentos”: a de os investidores confiarem, sem grande escrutínio, na sua segurança, nos ratings que atribuem aos activos neles transaccionados bem como nos preços de mercado que neles se formam, o que os deixa desprevenidos quando algo funciona menos bem.

Finalmente aborda as explicações para o comportamento dos agentes financeiros que contribuíram para o despoletar da crise, levando-os a abusar na tomada de risco

As medidas de política para remediar e sobretudo evitar futuras crises, apresentadas nos capítulos VIII, IX e X, deixam, de alguma forma, uma sensação de insatisfação.

Atente-se na forma como são apresentadas logo na “Introdução”:

“Não há soluções milagrosas. As reformas exigirão uma cuidadosa análise e, por vezes, uma entediante atenção aos pormenores. Analisarei este assunto (…), focando-me em abordagens mais abrangentes. As minhas propostas …Se forem implementadas, poderão transformar substancialmente o mundo onde vivemos e fazê-lo sair do caminho de aprofundamento das crises para um caminho de maior estabilidade económica e política, bem como de cooperação. (…) As reformas exigirão que as sociedades mudem o seu modo de vida, a forma como crescem e a maneira como fazem as suas escolhas. Implicarão um significativo sofrimento de curto prazo, mas em troca teremos ganhos enormes e generalizados a longo prazo. Estas reformas são sempre difíceis de vender à opinião pública, pelo que não são muito atractivas para os políticos. Mas o custo de nada fazer é talvez um agravamento da turbulência que vivenciámos recentemente, pois as linhas de fractura, a não serem verificadas, só tenderão a aprofundar-se ainda mais.” (p. 42).

Quando as lemos, algumas parecem superficialmente apresentadas; algumas consequências colaterais, negligenciadas; e escassas as que pareceriam ser necessário tomar, em especial fora do campo estritamente monetário e financeiro. Com a agravante de que algumas não foram aplicadas e outras foram-no de forma tão

160

JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Crítica

Amadeu Paiva

enviesada que não permitem garantir que, na sua formulação inicial, teriam sido eficazes.

O capítulo VIII é sobre a reforma do sector financeiro, na qual considera como questão principal levar o sector privado a avaliar novamente o risco de maneira adequada, sem partir do princípio que o governo intervirá.

“Terá de se incentivar o uso da transparência para fazer com que a população interessada monitorize a relação entre o governo – ou o regulador – e o sector financeiro. Grande parte daquilo que proponho fica aquém das expectativas daqueles que desejam soluções drásticas.” (p. 326).

Apresenta então, uma lista de medidas que não serão certamente estranhas ao leitor e que de uma maneira geral foram amplamente referenciadas na comunicação social, cuja implementação foi tentada ou mesmo concretizada, relacionadas com as remunerações e os incentivos aos gestores de empresas financeiras, as distorções na avaliação do risco, a gestão das expectativas de intervenção governamental; o fim dos subsídios e privilégios governamentais às instituições financeiras; uma regulação à prova de ciclos, com características de abrangências, não discriminação e eficácia em termos de custos; a concorrência e a inovação…

Interessante é sugerir que “uma possibilidade é manter as garantias de depósito para os bancos de pequena dimensão e devendo eles, em troca, pagar um justo prémio de seguro, reduzindo-as progressivamente no que diz respeito aos bancos de maior dimensão, até que sejam progressivamente eliminadas” (p. 322).

O capítulo que leva por título “Melhorar o aceso às oportunidades na América”, apresenta as propostas de reformas para a economia norte-americana, que, como seria de esperar, pelo destaque dada às respectivas linhas de fractura, são relativas à melhoria da qualidade do capital humano e ao fortalecimento da rede de segurança quer para a protecção no desemprego, quer para o acesso aos cuidados de saúde, à segurança das pensões de reforma, à mobilidade laboral, e, marginalmente, ao estímulo à poupança e à política fiscal.

No último capítulo (“A repetição da fábula das abelhas”) disserta um pouco sobre as relações económicas internacionais na actualidade, e o papel das organizações multilaterais e, em particular, o posicionamento da China neste contexto, sem que se perceba quem e como se pode levar a cabo uma alteração do status quo.

Duas notas finais:

Pode discutir-se se esta crise é mais ou menos semelhante a outras anteriores ou se é completamente diferente. Também a leitura deste livro ajuda a reflectir sobre isso. Pelo menos aparentemente, quando se folheia descontraidamente um livro sobre história financeira, os traços gerais de todas as crises são bastante parecidos. Será que o germe da crise na indústria financeira tem carácter congénito e crónico? Atente-se, por exemplo, nesta descrição referente a um facto passado no século XVIII: “Varsóvia organizara grande comércio de letras, mas que tinha por base e por objectivo a usura dos banqueiros. A fim de obter dinheiro que podiam emprestar aos grandes senhores perdulários a 8% e mais, buscaram e encontraram fora do país crédito com letras de favor, isto é, que não tinham por base comércio algum de mercadorias, e que o sacado estrangeiro aceitava indulgente enquanto não falhavam as remessas obtidas por meios

161

JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162

Recensão Crítica

Amadeu Paiva

dessa especulação. Com a falência de Tepper e de outros banqueiros de Varsóvia, de alta reputação, pagaram caro por esse negócio”6.

Pode discutir-se também “…se o sector financeiro realmente contribui para o processo de crescimento económico e de bem-estar ou se é apenas um elemento secundário, em grande medida irrelevante, e que só faz com que a sua presença seja periodicamente sentida quando implode.” (p. 282).

Conviria não ter dúvidas relativamente a qualquer destes dois temas.

Como citar esta Recensão Bibliográfica

Paiva, Amadeu (2011). Recensão Crítica de Rajan, Raghuram G. (2011). Linhas de Fractura – As fracturas escondidas que ameaçam a economia mundial. Lisbon: Babel: 429 pp. ISBN 978-972-22-3024-7 (Tradução de Carla Pedro), JANUS.NET e-

journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_rec3.

6J. G. Büsch, Theoretisch-praktisehe Darstellung der Handlung..., 3ª ed., Hamburgo, 1808, volume II, pp.232s, citada em Karl Marx, O Capital, Livro 3, vol. 5, Editora Civilização Brasileira / Centro do Livro Brasileiro.

162