OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 153-156

Recensão Bibliográfica

Blair, Tony (2010). A Journey. London: Hutchinson: 718 pp.

por Evanthia Balla

Doutorada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Católica de Lisboa, Mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Reading, Reino Unido, e Mestre em Política Internacional pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. Professora Auxiliar no Departamento de Direito da Universidade Portucalense.

Investigadora no OBSERVARE (UAL) e no Instituto Jurídico Portucalense.

Desde o dia em que deixou o cargo, em Junho de 2007, Tony Blair nunca esteve realmente longe dos holofotes. Isto deve-se principalmente ao facto da controvérsia em torno da guerra do Iraque em 2003 permanecer intacta, e porque as perguntas sobre os motivos e razões por trás da decisão de Blair ainda não obtiveram resposta.

Actualmente, após um período de deliberado silêncio, as memórias de Blair A Journey (Uma Viagem) permite-lhe ter uma palavra a dizer e justificar-se1. Na verdade, o livro inclui testemunhos de vários acontecimentos da sua vida privada, como o sentimento devastador causado pela perda da mãe, com quem mantinha uma ligação especial, ou a surpreendente relação com o álcool.

No entanto, no que respeita ao homem político, o livro aparenta ser um relato pessoal de um líder num determinado período de tempo que expõe a sua visão e decisões, e um instrumento que preserva o seu legado, justificando a guerra contra o Iraque e a sua lealdade ao New Labour.

Blair descreve o seu primeiro dia no cargo, inexperiente mas decidido a fazer a diferença. Desde o início, estabeleceu um relacionamento pessoal estreito e cordial com o povo britânico, particularmente após a morte da princesa Diana, quando o seu discurso realmente captou o sentimento do público.

Contudo, o relacionamento entre Blair e o público não iria durar muito tempo devido ao falso prospecto da Guerra do Iraque, que assinalaria o ponto mais baixo de sua popularidade. Após a publicação da autobiografia de Blair, os jornais britânicos concentraram-se sobretudo na sua relação de rivalidade com Gordon Brown. Ao lado de Gordon Brown e de Peter Mandelson, Blair era, efectivamente, a força motriz por trás do New Labour. No entanto, só em Junho de 2007, no final do seu mandato, é que Blair

1Kettle, Martin (2010). “World exclusive Tony Blair interview”, The Guardian, Quarta-feira, 01.09.2010.

Disponível em: http://www.guardian.co.uk/politics/2010/sep/01/tony-blair-a-journey-interview

Consultado em: 31.01.2011

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cederia finalmente a Brown. E Brown, de facto, tinha trabalhado com muita habilidade política de forma a garantir que não haveria nenhum rival na sucessão.

Embora a política interna assuma um papel importante no livro de Blair - a campanha do partido trabalhista de 1997 foi disputada quase exclusivamente com base na política interna – é a política externa que realmente define a década de Blair no governo entre 1997 e 2007. E é sua actuação controversa no cenário mundial que efectivamente capta o espírito do leitor estrangeiro.

Blair admite que “o meu despertar para a política interna prolongou-se ao longo do tempo. Provavelmente só tive plena voz sobre a reforma interna no último mandato. O meu despertar para a política externa foi, por contraste, abruto, por ocasião do Kosovo.2 Esta bem sucedida intervenção militar iria influenciar as suas decisões futuras relativamente à Serra Leoa, Afeganistão e, sobretudo, Iraque. Blair é um intervencionista liberal, e não retira nada do que disse no seu discurso em Chicago, em 22 de Abril de 1999, e da sua doutrina da comunidade internacional intervencionista liberal3. Começando pela realidade da interdependência numa época de globalização, e de um mundo onde eventos em locais remotos podem ter efeitos imediatos na nossa segurança nacional, Blair argumenta que a intervenção para derrubar um regime ditatorial despótico pode ser justificada em função da natureza do regime, e não apenas da ameaça imediata ao interesse nacional.

No entanto, a doutrina Blair desafiou as noções de soberania nacional e os princípios de não-intervencionismo que remontam à Paz de Vestefália de 1648. Surgiria para justificar a abordagem ao Afeganistão e ao Iraque, onde se travariam batalhas numa escala diferente. Como resultado, ele sabe que o seu legado histórico será provavelmente associado aos resultados finais dessas guerras, e, por esse motivo, dedica um espaço considerável no livro a defender o aventureirismo militar, especialmente no Iraque.

Tenho reflectido muitas vezes se terei estado errado. Peço-vos igualmente que reflictam sobre a possibilidade de eu ter estado certo.4

O livro contém longos excertos sobre os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2011 em Nova Iorque e Washington. Na sua opinião, esta foi decididamente uma guerra, e uma que tinha que ser combatida de forma distinta de qualquer outra. Precisamente, foi uma batalha ideológica que opôs os costumes e modus vivendi do fanatismo religioso aos de um sistema de governo secular e iluminado que, pelo menos no Ocidente, acreditava na liberdade, igualdade e democracia.5

Blair não diz que não lutou pelo interesse nacional britânico. Contudo, o que afirma ser o ponto focal da política externa actual é a globalização, pois acredita que a característica que define o mundo de hoje é a sua interdependência e que, a menos que articulemos uma política comum global baseada em valores comuns, corremos o risco de o caos ameaçar a nossa estabilidade económica e política.

2A Journey, p. 223

3Blair, Tony (1999). “Doctrine of the International Community”, Discurso no Clube Económico de Chicago. Disponível no sítio da Downing Street: http://www.number10.gov.uk/Page1297 Consultado em: 10.02.2011

4A Journey, p. 374

5Ibid, p. 346

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Evanthia Balla

E, na prática, os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington, de 11 de Março de 2004 em Madrid, e de 21 de Julho de 2005 em Londres, provam claramente que o terrorismo pode bater-nos à porta e fazer milhares de vidas inocentes, sem qualquer aviso prévio.

Para Blair, o inimigo tem que saber que estamos determinados a agir. Esta opinião impulsionou drasticamente sua política no Afeganistão, assim como no Iraque.

Para se vencer desta maneira não bastou, nem basta, simplesmente ter uma estratégia militar para derrotar um inimigo que luta contra nós. Requer todo um novo quadro geopolítico. Requer nation-building6. […] teve que ser travada num plano elevado – os nossos valores contra os deles […] Quer gostem da ideia ou não, a partir de agora estamos envolvidos em nation-building. 7

Àpergunta se o Iraque está melhor agora do que no tempo de Saddam, Blair responde: claro que sim. Em 1979, quando Saddam assumiu o poder, o Iraque era mais rico do que Portugal. Em 2003, a população dependia da ajuda alimentar em 60%. Actualmente, o PIB per capita no Iraque é três vezes superior ao que era em 2003.8

Contudo, Blair não examina criticamente o desafio prático colocado pelo processo de nation-building (construção de nações), simplesmente reafirmando que se deve pagar um preço na batalha contra o terrorismo e o radicalismo islâmico. Embora tenha demonstrado coragem na guerra do Iraque, a guerra em si foi um fracasso. Com efeito, não houve fundamentação legitimadora desse esforço, nem por parte das Nações Unidas (ONU), nem da opinião pública. Não foram encontradas armas de destruição maciça (ADM) na posse do regime de Saddam. E, decisivamente, não houve planos para a reconstrução posterior e estabilização do país. A divisão entre xiitas e sunitas aumentou em todo o mundo muçulmano. A situação no Irão também se tornou mais agressiva.

Além disso, o argumento a favor de uma nova comunidade internacional é forte e Blair tem-no afirmado claramente muitas vezes. Tem havido alguns sucessos notáveis, como na Serra Leoa e no Kosovo. Contudo, essa comunidade só surgirá através do exemplo e da persuasão, e não mediante recurso à guerra, pelo que a tentativa de impor valores ocidentais em estados remotos através da força armada está condenada ao fracasso.

Na sua autobiografia, Blair admite que, contrariamente ao que se pensava, o Iraque não dispunha de qualquer programa activo de ADM, mas não deixa de repetir os mesmos argumentos relativamente às razões pelas quais voltaria a fazer o mesmo, como a tirania do regime de Saddam, as violações do direito internacional, a ameaça à segurança dos países vizinhos e do mundo em geral.

O livro não revela os sentimentos de Blair sobre as demissões e as centenas de milhares de pessoas que marcharam em protesto na Grã-Bretanha e em todo o mundo. A lista dos que não concordaram com a invasão e ocupação do Iraque era longa, e incluía personalidades que durante anos lutaram pela liberdade pessoal e pela justiça, como Nelson Mandela.

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AJourney, p. 349 Ibid, p. 357 Ibid, p. 378-379

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Evanthia Balla

Quando terminei de ler o livro de memórias de Tony Blair, continuei a considerá-lo um líder enigmático, pois podemos ser facilmente inspirados pelos seus valores e concepções filosóficas sobre a política moderna. Simultaneamente, poderemos sentir- nos profundamente desapontados com a sua aceitação incondicional da política dos EUA e abordagem intervencionista no Iraque.

Para Clausewitz9, coragem moral e determinação é o que faz um grande estratega. Amemo-lo ou odiemo-lo, Blair possui ambas. Ao fim ao cabo, a sua Viagem foi decididamente tanto um triunfo da pessoa sobre a política como um triunfo da política sobre a pessoa10.

Como citar esta Recensão Bibliográfica

Balla, Evanthia (2011). Recensão Crítica de Blair, Tony (2010). Uma viagem (A Journey). Londres: Hutchinson: 718 pp., JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_rec2.

9Clausewitz, Carl von (1984). On War, Princeton: Princeton University Press.

10A Journey, p. 691

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