OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 143-147

NOTAS E REFLEXÕES

BOLÍVAR, 200 ANOS DEPOIS

Nancy Elena Ferreira Gomes

Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa.

Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian.

Professora Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Bolívar 200 anos depois” é o título de uma Conferencia que teve lugar na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), no dia 11 de Outubro de 2010. Este evento, organizado pela UAL e pelo Instituto para a Promoção e Desenvolvimento da América Latina (IPDAL), contou com o apoio das Embaixadas do Panamá e da Colômbia, em Portugal. Foram aqui objecto de debate e reflexão algumas das principais ideias de Simón Bolívar1, nos âmbitos político, económico e social, merecendo destaque aquelas que têm uma dimensão internacional e que foram consagradas como princípios do Direito Internacional: a Segurança e a Defesa Colectiva, o Respeito pela Integridade Territorial dos Estados e a Solução Pacífica de Controvérsias. Mais que uma ideia, aquele que traduzira um dos maiores desejos do “Libertador da América”2, o ideal de Unidade, mereceu também claro destaque. Com efeito, em toda a obra de Bolívar, são inúmeras as vezes que o Libertador cita a palavra “América” como expressão deste ideal. Na maioria dos casos, Bolívar põe a ênfase na ideia da Confederação das Nações Hispano-Americanas.

“Eu desejo mais que ninguém ver formar na América a Maior Nação do Mundo menos pela sua extensão e riquezas que pela sua liberdade e glória”3.

Em 7 de Dezembro de 1824, Bolívar enviou de Lima um convite à Colômbia, México, Argentina, Chile e Guatemala para que participassem num Congresso que teria lugar no Panamá.

1Militar e político Venezuelano, nasceu em Caracas em 1783. Após o fracasso do seu projecto federativo,

com a desintegração da “Gran Colômbia”, Simón Bolívar morre na Colômbia, em 1830.

2Os territórios (antigas colónias da Espanha) libertados por Simón Bolívar correspondem aos actuais Estados da Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia.

3Carta de Jamaica (Resposta de um Americano meridional a um cavalheiro de esta ilha. Kingston, 6 Setembro de 1815). Carta de Simón Bolívar dirigida à Henry Cullen.

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“Parece que se o mundo tivesse de escolher a sua capital o Istmo do Panamá seria assinalado para este augusto destino, colocado como está no centro do globo, olhando por um lado a Ásia e pelo outro a África e a Europa… O Istmo está a igual distância das extremidades e por este motivo, poderia ser o lugar provisório da primeira Assembleia dos Confederados…”4.

No Congresso Anfictiônico5 do Panamá de 1826, Simón Bolívar propõe a assinatura de um Tratado de Aliança ofensiva e defensiva, a demarcação fronteiriça tendo em conta o utis possidetis de 18106, e o uso da conciliação e da mediação na solução dos conflitos. Federico Richa Humbert, Embaixador do Panamá em Portugal7, referiu a importância deste evento, sublinhando que se tratou da primeira Conferencia de Estados que se reúne naquela parte do mundo, e que procurou através da cooperação internacional a solução dos problemas comuns. Porém, a pouca vontade politica por parte de muitos dos governos envolvidos, o desinteresse por parte dos Estados Unidos de América (EUA)8 e, sobretudo, o desenvolvimento dos nacionalismos, iriam condenar esta iniciativa ao fracasso.

“Até a imprensa tem posto o seu grão de areia no descontrolo, ao introduzir o espírito de isolamento em cada indivíduo, porque, predicando o escândalo de todos, tem destruído a confiança de todos… Cada província guarda para si a autoridade e o poder, cada uma deveria ser o centro da nação. Não falaremos dos democratas nem dos fanáticos, também não falaremos das cores, porque ao entrar no abismo profundo destas questões, o génio da razão ficaria sepultado … “9.

Depois de Panamá, foram várias as tentativas que, em vão, insistiram no sonho Bolivariano, em Lima (Conferencias de 1847 e 1865), e em Montevideu (Conferencia de 1888). No lugar de uma Confederação de Nações Americanas – num plano de Igualdade entre todos os Estados – e a partir de 188910 (com a realização da I

4Circular de Lima, de 7 de Dezembro de 1824. In Obras Completas de Bolívar, Vol. II. Caracas: Ministério de Educação Nacional, s.d. p. 52.

5As Ligas Anfictiônicas da Grécia Antiga eram constituídas por indivíduos das várias Cidades-Estado,

associados para renderem culto a uma determinada divindade, tendo em vista a defesa e cooperação mútua. Este tipo de associação – de carácter sagrado – é considerado como precursor da actual ideia de Federação.

6A demarcação fronteiriça dos novos Estados Americanos deveria respeitar à partida, ou seja provisoriamente e antes de um novo tratado, as fronteiras anteriores à independência.

7Convidado a participar como orador, na Conferencia “Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o

IPDAL, em 11 de Outubro de 2010.

8Entre as causas do desinteresse Norte-Americano podemos destacar, a insistência de Simón Bolívar em dois assuntos, a independência de Cuba e do Porto Rico; e a abolição do tráfico de escravos, na América

Hispana.

9Carta de Simón Bolívar, dirigida ao General José António Páez, em 8 Agosto de 1826.

10I Conferencia Pan-americana (EUA, 1889-1890), II Conferencia Pan-americana (México, 1902), III Conferencia Pan-americana (Brasil, 1906), IV Conferencia Pan-americana (Argentina, 1910), V Conferencia Pan-americana (Chile, 1923), VI Conferencia Pan-americana (Cuba, 1928), VII Conferencia

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Conferencia Pan-americana, promovida por Washington), cria-se o “Sistema Inter- Americano”. Trata-se de um sistema claramente hierárquico que adopta como principais instrumentos jurídicos, o Tratado Inter-Americano de Assistência Recíproca (TIAR, 1947) e a Organização dos Estados Americanos (OEA, 1948). O ideal Bolivarianismo cede, assim, perante o realista Monroismo11.

O projecto de criação de uma Comunidade Ibero-Americana de Nações foi outro dos assuntos debatidos na ocasião da Conferencia “Bolívar 200 anos depois”. Fernando Garcia Casas12 lembra-nos que foi nos anos de 1970, quando a Espanha propôs a criação de uma Comunidade Ibero-Americana (CoIBA) com o claro objectivo político de promover a democracia na região. Com efeito, o fim das ditaduras em Portugal e na Espanha, e o processo de democratização que ganhou impulso nos finais da década de 1980 na América Latina, próximo do fim da Guerra Fria13, criaram as melhores condições para um compromisso entre Espanha e Portugal e as suas ex-colónias. Quando foi convocada a I Cimeira Ibero-Americana em 1991, manifestou-se entre as partes uma euforia sem precedentes por tratar-se da primeira ocasião – depois de Panamá em 1826 – em que os Estados Latino-Americanos, sem contar com a presença dos EUA, conseguiriam reunir-se.

Foro de diálogo e concertação política entre os países Ibéricos e a América Latina com grandes potencialidades, sobretudo nas áreas politica, social e também económica, o projecto da CoIBA depara-se hoje, como vários outros esquemas de cooperação e ou integração, com sérias dificuldades. Contribuem nesse sentido factores tais como o crescente peso político dos vínculos bilaterais em detrimento dos multilaterais14; a crescente heterogeneidade ideológica, politica e económica dos Estados que conformam a região; e mais uma vez, a emergência do nacionalismo invocado muitas vezes, por “governos populistas” perante aquilo que consideram ser novas formas de hegemonias externas.

A América Latina, 200 anos depois, é considerada uma zona ampla de paz. Com um crescimento do PIB, de 6% (2010) e uma relativa bonança – derivada sobretudo das exportações de matéria-prima – a região está imersa num processo de democratização que, apesar de incipiente, se estende por todo o território, com a excepção de Cuba. Cabe aqui destacar o caso paradigmático do Brasil, considerado já como uma potência emergente, que reivindica mais “voz” e mas “democratização” nas grandes instâncias decisórias mundiais (Conselho de Segurança, FMI, BM, G20…), ao mesmo tempo que a

Inter-americana (Uruguai, 1933), VIII Conferencia Inter-americana (Peru, 1938), IX Conferencia Inter- americana (Colômbia, 1948).

11O Monroísmo representa a visão Norte-Americana do Pan-Americanismo, fundada no predomínio dos EUA sobre os demais Estados americanos. A sua primeira manifestação foi precisamente a mensagem presidencial de James Monroe, enviada ao Congresso dos EUA, em 1823, onde defende a ideia “A América para os Americanos”, ou seja, longe dos interesses europeus.

12Fernando Garcia Casas, Director de Gabinete do Secretário-geral Ibero-Americano. Convidado a participar como orador, na Conferencia “Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o IPDAL, em 11 de Outubro de 2010.

13Com o fim da Guerra-fria, a América Latina deixa de ser, claramente, uma das prioridades da Política Externa dos Estados Unidos.

14Note-se que o projecto ALCA foi adiado e no seu lugar, foram celebrados vários acordos bilaterais entre os EUA e alguns países Latino-Americanos como a Colômbia, o Chile e o Peru. As relações entre os blocos regionais UE-Mercosul ou UE-CAN parecem estagnadas. Mais dinâmicas são as relações entre a UE e o Brasil ou a UE-Chile. Entretanto, o Mercosul avança e recua, consoante as dificuldades e os problemas que vão surgindo entre os Estados Membros.

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sua diplomacia busca uma maior integração Sul-Americana e um papel de líder regional15.

A América Latina hoje, lembra ainda Fernando Garcia Casas, enfrenta todavia, sérios desafios, como a luta contra a pobreza. Em efeito, 32,1% dos Latino-Americanos ainda permanecem em situação de pobreza e 12,9% são considerados indigentes. Isso corresponde a 180 milhões de pessoas pobres, dos quais 72 milhões na indigência. Segundo a Comissão Económica para a América Latina (Cepal), a pobreza continua a afectar mais as crianças e adolescentes que outros sectores da sociedade16. E apesar do balanço dos ultimos sete anos ser positivo, a América Latina continua a ser a região mais desigual do mundo. Segundo o primeiro Relatório de Desenvolvimento para a América Latina e o Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a desigualdade é persistente, e tende a eternizar-se em áreas onde a mobilidade social é baixa e representa um obstáculo ao progresso no desenvolvimento humano 17. Por outro lado, pese a inexistencia de conflitos interestaduais que possam evoluir para conflitos armados ou guerras, outras ameaças não tradicionais à segurança como o narcotráfico e a violência urbana, tornam hoje esta região uma das menos seguras do planeta18.

A este cenário complexo e cheio de incertezas quanto ao futuro, Jorge Volpi19 acrescenta o pouco conhecimento cultural ou desconhecimento total uns dos outros e o desaparecimento de todo ou quaisquer rasgo distintivo Latino-Americano. Segundo o escritor mexicano, a América Latina protótipo, marcada no imaginário ocidental como a terra dos ditadores, dos guerrilheiros e do realismo fantástico, tem vindo a desvanecer- se com o tempo. Não possuindo força real, a identidade Latino-Americana é desafiada constantemente por países como o México – vinculado por completo aos Estados Unidos e ao Canadá – onde toda a lógica de povoamento, de política e economia vai dirigida para o norte e já não para o sul. Contudo, é no Sul que encontramos incipientes mecanismos de integração que começam a funcionar20. Volpi fala-nos de um cenário provável para o futuro, um Continente com dois grandes blocos regionais, um na América do Norte, que poderá absorver eventualmente as Caraíbas, e um no Sul, com o Brasil como principal centro de gravitação.

15A I Cimeira América Latina e Caraíbas (33 países), realizada na Costa de Sauipe (Bahía) em Dezembro de 2008, e o compromisso alcançado para constituir una Organização de Estados Latino-Americanos e das Caraíbas parece um sensível revés para as políticas exteriores de Espanha e os Estados Unidos e um triunfo genuíno para o Brasil, de quem partiu a iniciativa.

16Ver Relatório CEPAL (2010), “Panorama Social de América Latina 2010”.

17Ver Relatório PNUD (2010), “Agindo para o Futuro: Quebrando o Ciclo de Desigualdade entre Gerações”.

18Segundo o Gabinete das Nações Unidas contra a droga e o delito (UNODOC), estima-se que a volta de 40% do total mundial dos crimes violentos, são praticados na América Latina e Caraíbas.

19Jorge Luis Volpi Escalante, escritor mexicano (vencedor do II Prémio de Ensaio Debate-Casa de América de 2009, pelo seu livro "El insomnio de Bolívar”). Convidado a participar como orador, na Conferencia “Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o IPDAL, em 11 de Outubro de 2010.

20A União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), está constituída pelos doze países da América do Sul. O tratado constitutivo foi assinado em Brasília, em 23 de Maio de 2008. Para além dos Conselhos de Chefes de Estado, Ministros das Relações Exteriores e Delegados, foram criados sete Conselhos Ministeriais sectoriais, que promovem a integração e cooperação nas áreas de: energia; saúde; defesa; infra- estrutura e panejamento; desenvolvimento social; luta contra o narcotráfico; e educação, cultura,

ciência, tecnologia e inovação.

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ARENAL, Celestino (Coord.) (2009). España y América Latina 200 años después de la Independencia. Valoración y Perspectivas. Real Instituto Elcano. Madrid. ISBN 978-84- 936991-0-9. pp. 391

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BOLÍVAR, Simón (s.d.). “Circular de Lima”, de 7 de Dezembro de 1824. In Obras Completas de Bolívar (Compilação e notas de Vicente Lecuna), Vol. II. Caracas: Ministério de Educação Nacional

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Outros

CEPAL (2010). “Panorama Social de América Latina 2010”. [Consultado em 15 de

Janeiro de 2011]. Disponível em http://www.eclac.org/noticias/paginas/8/33638/101130_PanoramaSocial- 30noviembre-final.pdf

PNUD (2010). “Agindo para o Futuro: Quebrando o Ciclo de Desigualdade entre

Gerações” [Consultado em 17 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.idhalc- actuarsobreelfuturo.org/site/plantilla.php

Como citar esta Nota

Gomes, Nancy Elena Ferreira (2010). "Bolívar: 200 anos depois". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011.

Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_not4.

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