OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011)
Artigos
Robert Sutter – Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não? (1-15)
Paula Marques Santos e Mónica Silva A identidade europeia a cidadania
supranacional (16-28)
Ana Baltazar - A disputa do espaço pela Europa – um novo desafio (29-45)
Rafael Calduch Cervera Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión crítica
(46-54)
Amélie Gauthier e Madalena Moita - Aprender a construir uma paz sustentável:
«apropriação local» e práticas de construção da paz. O caso da reforma da justiça no
Haiti (55-72)
Gustavo Cardoso e Cláudia Lamy – Redes sociais: comunicação e mudança (73-96)
João Paulo Feijóo A gestão das pessoas e do conhecimento nas organizações
– os desafios das próximas décadas (97-118)
Notas e Reflexões
Luís Alves de Fraga As R
elações Internacionais, a História e a Estratégia: o conflito
como dinâmica explicativa (119-123)
Manuel Farto e Henrique Morais - A crise portuguesa, o resgate internacional e o
crescimento económico (124-132)
Jorge Malheiros - Portugal 2010: o regresso do País de emigração? (133-142)
Nancy Elena Ferreira Gomes – Bolívar, 200 anos depois (143-147)
Recensões Críticas
Barbé, Esther (Directora) (2010). La Unión Europea más allá de sus fronteras.
Hacia la transformación del Mediterrâneo y Europa Oriental?. Madrid: Tecnos: 196
pp – por Rita Duarte (148-152)
Blair, Tony (2010). A Journey. London: Hutchinson: 718 pp por Evanthia Balla
(153-156)
Rajan, Raghuram G. (2011). Linhas de Fractura As fracturas escondidas que
ameaçam a economia mundial. Lisboa: Babel: 429 pp. ISBN 978-972-22-3024-7
(Tradução de Carla Pedro) – por Amadeu Paiva (157-162)
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EQUILÍBRIO POSITIVO NAS RELAÇÕES CHINA-EUA:
DURADOURO OU NÃO?
Robert Sutter
Professor Visitante na School of Foreign Service da Universidade de Georgetown. Especialista
em assuntos da Ásia e do Pacífico e em política externa dos EUA. Ocupou várias posições
de análise e de supervisão na Biblioteca do Congresso e trabalhou com a CIA, o Departamento de
Estado e a Comissão de Relações Externas do Senado.
Foi Especialista Principal em Política Internacional do Serviço de Investigação do Congresso,
Director Nacional de Inteligência para a Ásia Oriental e o Pacífico do National Intelligence Council do
Governo dos Estados Unidos. Doutor em História e em Línguas do Ásia Oriental pela Universidade de
Harvard e Professor Adjunto nas Universidades de Georgetown, George Washington, Johns Hopkins
e da Virgínia. Tem publicados 18 livros, numerosos artigos e centenas de relatórios governamentais
sobre países da Ásia Oriental e Pacífico e respectivas relações com os Estados Unidos.
Resumo
Os vários exemplos de pressão exercida pela opinião pública chinesa sobre os Estados
Unidos durante 2009 e 2010, acerca de uma vasta gama de questões que envolvem os
Mares perto da China, Taiwan e o Tibete, assim como as disputas económicas, estão
sujeitas a interpretações diferentes, mas, no geral, não parecem perturbar seriamente o
actual equilíbrio positivo entre os Governos Chinês e Norte-americano.
Palavras-chave
Estados Unidos; China; envolvimento; assertividade; push
-back
Como citar este artigo
Sutter, Robert (2011). "Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não?”.
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art1
Artigo recebido em Dezembro de 2010 e aceite para publicação em Março de 2011
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Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não?
Robert Sutter
2
EQUILÍBRIO POSITIVO NAS RELAÇÕES CHINA-EUA:
DURADOURO OU NÃO?
Robert Sutter
Introdução
As relações entre os Estados Unidos e a China surgem como a mais importante relação
bil
ateral do Século XXI. A importância económica global da China e o seu crescente
poder político e militar decorreu numa ordem mundial na qual os Estados Unidos
enfrentavam muitos desafios, mas onde continuava a exercer uma ampla liderança que
reflectia o seu estatuto de superpotência. Até que ponto é que os dois poderes apoiarão
a paz internacional e o desenvolvimento, estreitando as suas ligações de cooperação,
ou se tornarão antagonistas à medida que os seus interesses colidem, ou optarão por
qualquer outro caminho em matéria de assuntos mundiais, continua a ser assunto de
debate entre especialistas e decisores políticos dos dois países.
1
Publicamente, ao longo da presente década, os dirigentes da China e dos Estados
Unidos têm tendido a enfatizar os aspectos positivos da relação, onde se incluem
ligações comerciais e de investimento cada vez mais estreitas conducentes ao
aprofundamento da interdependência económica e interesses convergentes em matéria
de segurança relativamente ao terrorismo internacional, o programa de armas
nucleares da Coreia do Norte, missões de paz da ONU e outros assuntos que envolvem
situações delicadas na Ásia e no mundo. No período pós Mao Zedong (falecido em
1976), a China, apoiada pelos Estados Unidos, avançou muito na adopção de normas
que traduziam um comportamento económico assente no mercado livre e que eram
essenciais para poder gerir com sucesso as condições impostas pela globalização
económica da presente era. A China alterou igualmente a sua política sobre proliferação
de armas de destruição massiva de forma significativa, com vista a uma maior sintonia
com as normais internacionais apoiadas pelos EUA.
Nos últimos tempos, a cooperação EUA-China em matéria de alterações climáticas e
questões ambientais aumentou, e as discussões bilaterais sobre direitos humanos
prosseguem no seio de análises contraditórias sobre os progressos da China em aceitar
as normas internacionais de inspiração norte-americana.
As diferenças entre os EUA e a China relativamente a Taiwan diminuíram com a
chegada de Ma Ying-jeou à Presidência de Taiwan em 2008, que rapidamente fez Tai
mudar de direcção a favor de uma atitude de maior cooperação nas relações com a
China. De uma forma geral e com algumas reservas, o Governo norte-americano aceita
e apoia a China como actor principal nos assuntos mundiais; o Governo chinês acabaria
por aceitar, pelo menos até à data, a ordem internacional vigente na qual os Estados
Unidos assumem um papel preponderante nos assuntos asiáticos e mundiais.
2
1
Aaron Friedberg, “Is China a Military Threat?—Menace, The National Interest (Setembro-Outubro de
2009, 19-25, 31-32.
2
Kenneth Liberthal, “The China-US Relationship Goes Global,” Current History 108: 719 (Setembro de
2009) 243-246.
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A imagem benigna das relações China-EUA que transparece no recente discurso público
das autoridades chinesas e norte-americanas foi reforçada por analistas proeminentes,
especialmente nos Estados Unidos, que destacaram a convergência de interesses entre
os dois países, tendo alguns defendido a necessidade de uma ordem internacional
definida essencialmente pela cooperação entre os dois Governos, a que se chamou uma
ordem mundial "G-2" para o século XXI.
3
Na prática, porém, as relações sino-americanas continuam a ser mais complicadas e
conflituosas do que o recente discurso oficial e os argumentos avançados pelos
analistas a favor de um condomínio internacional sino-americano levaria a crer.
A análise das relações sino-americanas indica a presença de enormes mudanças ao
longo do tempo, com padrões de confronto, animosidade e desconfiança muito mais
prevalentes do que os padrões de concordância e de cooperação.
Paralelamente, nas últimas quatro décadas assistiu-se, em várias ocasiões, a melhorias
notáveis nas relações entre os dois países, na medida em que dirigentes de ambos os
lados se propuseram alcançar benefícios práticos recorrendo a meios pragmáticos. O
facto de a base da cooperação ser frequentemente incompleta, precária e dependente
de uma série de circunstâncias variáveis, tanto internamente como no exterior,
demonstra que, frequentemente, as sociedades e Governos revelam ter posições muito
distintas sobre uma multiplicidade de assuntos críticos em matéria de segurança,
valores e economia. Se olharmos mais aprofundadamente e para além do recente
discurso oficial positivo, a análise dos desenvolvimentos e tendências indicam que as
autoridades, elites e opinião pública dos dois países sentem suspeita e desconfiança
umas das outras e das possíveis intenções negativas, ou das implicações das mesmas,
que afectarão as relações entre os dois países.
4
Equilíbrio positivo nas relações entre os Governos dos EUA e da China
Felizmente para aqueles que procuram uma melhoria nas relações sino-americanas, as
mui
tas diferenças entre os Estados Unidos e a China na primeira década do século XXI
foram frequentemente despoletadas por circunstâncias que levaram a que as duas
lideranças gerissem as suas disputas de forma pragmática, ao mesmo tempo que
procuraram evitar confrontos e, sempre que possível, desenvolver uma base comum.
O processo não foi uniforme ou fácil, mas o resultado foi um equilíbrio positivo entre os
Governos norte-americano e chinês que provavelmente continuará na segunda década
do século XXI, apesar das muitas diferenças e conflitos.
5
Durante este período, ambos
se mostraram relutantes em exacerbar as tensões um com o outro.
A crescente interdependência económica e a cooperação sobre questões chave dos
assuntos asiáticos e mundiais vieram reforçar a tendência de cada Governo em
acentuar os aspectos positivos e manter relações construtivas com o outro. A
emergente situação positiva nas relações sino-americanas serve de base a uma maior
cooperação em matéria de segurança, economia, e outros assuntos e interesses. No
3
Elizabeth Economy and Adam Segal, “The G-2 Mirage,” For
eign Affairs 88:3 (Maio-Junho de 2009) 56-
72.
4
Robert Sutter, U.S.-Chinese Relations: Perilous Past, Pragmatic Present Lanham, Md.: Rowman and
Littlefield, 2010
5
Sutter, U.S.-Chinese Relations, 147-168.
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entanto, as diferenças em assuntos de cariz estratégico, económico e político e outros
interesses também se mantiveram fortes e levantam grandes obstáculos a uma maior
cooperação entre os dois países. Os responsáveis políticos de ambos os lados
continuam a alimentar suspeitas sobre as intenções de cada um, e permanecem em
alerta relativamente a qualquer mudança de circunstâncias em Taiwan, no Japão e na
Coreia do Norte, assim como face a tendências económicas internacionais, políticas
internas nos EUA e na China e outros desenvolvimentos que poderiam complicar
seriamente a relação bilateral.
Assim, surgiu um modelo dualista nas relações EUA-China como parte do equilíbrio
aparentemente positivo nesta década. O modelo envolve, por um lado, uma
participação construtiva e cooperação e, por outro, planos de contingência ou de
prevenção de risco. Tal postura reflecte a combinação acima referida entre
concorrência e suspeitas e convergência e cooperação.
Os planos de contingência e de prevenção chineses e norte-americanos contra o outro
envolvem, por vezes, acções com os respectivos armamentos militares e que
constituem iniciativas separadas que são levadas a cabo em simultâneo com as
respectivas políticas de envolvimento entre os dois países. O dualismo revela-se ainda
na forma como cada Governo usou o envolvimento para estabelecer laços positivos e
de cooperação com o outro, ao mesmo tempo que os utilizavam na construção de
interdependências e teias de relações que têm o efeito de limitar o outro na tomada de
medidas que se oponham aos seus interesses. Apesar de a analogia não ser exacta, as
políticas de envolvimento seguidas pelos Estados Unidos e pela China para com o outro
contêm as suas respectivas "estratégias Gulliver", que se destinam a reprimir
tendências políticas agressivas, assertivas ou negativas do outro país através de teias
de interdependência criadas nas relações bilaterais e multilaterais.
A recente situação positiva nas relações EUA-China baseia-se numa convergência
crescente entre as respectivas políticas de envolvimento e as estratégias Gulliver.
Contudo, o facto é que essas estratégias Gulliver reflectem suspeitas subjacentes e
conflito de interesses que influenciam significativamente os cálculos dos Governos dos
EUA e da China nas relações que mantêm um com o outro.
6
No
início da última metade da década de noventa, os líderes chineses reexaminaram e
reavaliaram a atitude confrontacional que até então haviam mantido face às pressões
exercidas pelos Estados Unidos contra a China e a velha oposição chinesa ao domínio e
à denominada "hegemonia" americana em assuntos asiáticos e mundiais. Essas
pressões e o domínio dos EUA tinham anteriormente sido encarados como contrários
aos interesses chineses, exigindo uma forte oposição e resistência por parte da China.
Isto conduziu a um debate entre especialistas estrangeiros e chineses sobre o
significado desta reavaliação. De acordo com alguns especialistas estrangeiros que
entrevistaram várias autoridades chinesas e especialistas em política externa, os
dirigentes chineses no final da década de noventa adoptaram uma estratégia que
minimizava a oposição e as diferenças relativamente aos Estados Unidos, a favor de
uma abordagem de maior cooperação com o Governo americano. Diz-se que esta
abordagem permaneceu sensível às intromissões norte-americanas nos interesses
6
Este dualismo e respectivas estratégias Gulliver são analisados in Robert Sutter, “China and US Security
and Economic Interests: Opportunities and Challenges,” in Robert Ross e Oystein Tunsjo eds., US-China
EU Relations: Managing The New World Order Londres: Routledge, 2010.
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chineses fundamentais como questão de Taiwan, mas retirou importância às
preocupações chineses relativamente às políticas e atitude dos EUA, concebidas para
solidificar a liderança americana nos assuntos asiáticos e mundiais.
7
Neste contexto, alguns especialistas americanos e chineses consideram que a nova
abordagem de adaptação pragmática dos chineses obteve a aprovação dos EUA e
continuará a obtê-la, resultando numa maior convergência e cooperação nas relações
EUA-China. Alegam que a adaptação chinesa se baseou numa maior maturidade e
confiança por parte dos líderes chineses na forma como lidavam com os Estados Unidos
e os assuntos mundiais. A maturidade e confiança chinesas são encaradas como
resultado do sucesso dos deres chineses na promoção do notável crescimento
económico ao longo de décadas, juntamente com a modernização militar e mudança
social na China. Na verdade, a maturidade e a confiança são interpretadas como
estando por trás da "nova forma de pensar " que alegadamente estava a influenciar o
maior envolvimento chinês em organizações regionais e multilaterais e a
contrabalançar a opinião tradicional chinesa de vitimização pelos poderes externos e
necessidade de estar de sobreaviso para prevenir quaisquer formas de opressão ou
exploração futuras.
8
Uma
escola de pensamento oposta que reúne especialistas chineses e norte
americanos, onde me incluo, acredita que as circunstâncias em torno da política
externa chinesa e da política chinesa relativamente aos Estados Unidos foram e
continuam a ser excessivamente incertas para que seja possível postular uma
verdadeira e duradoura estratégia chinesa de cooperação e convergência com os
Estados Unidos. Tem havido reviravoltas marcantes nas relações sino-americanas,
mesmo após a publicitada decisão dos líderes chineses, na década de noventa, de
adoptar uma política moderada para com os Estados Unidos.
A estabilidade do que se apresenta como uma frágil relação inerente foi contestada na
presente década pela antipatia dos Estados Unidos relativamente às políticas e práticas
chinesas em matéria de segurança, economia e direitos humanos, bem como às
políticas de Taiwan, da Coreia do Norte, do Japão e de outros actores internacionais.
9
Nem
eu nem outros especialistas no grupo nos convencemos que os líderes chineses
estão confiantes e suficientemente maduros na sua nova atitude de moderação para
com os Estados Unidos. Pelo contrário, os deres chineses mostram-se frequentemente
vulneráveis e imprevisíveis na forma como reagem e respondem a certas políticas e
práticas, particularmente por parte do poderoso e por vezes imprevisível Governo dos
Estados Unidos, mas também dos líderes de Taiwan, do Japão, da ssia, da Coreia do
Norte e da Índia, entre outros. Adaptam-se à medida que as circunstâncias se alteram,
pesando a cada instante as vantagens e custos de manterem ou modificarem as suas
políticas para assim poderem manter as principais prioridades da liderança chinesa e
promover o que denominam por “poder nacional abrangente” da China.
Na opinião deste grupo de analistas onde me incluo, nos últimos anos, os líderes
chineses têm apostado em convencer os Estados Unidos e outras importantes potências
7
Avery Goldstein. Ris
ing to the Challenge: China’s Grand Strategy and International Security. Stanford,
Calif.: Stanford University Press, 2005.
8
Evan Medeiros e R. Taylor Fravel, “China’s New Diplomacy,” For
eign Affairs 82:6 (Novembro-Dezembro
2003) 22-35.
9
Susan Shirk, China: Fragile Superpower. New York: Oxford University Press, 2007.Robert Sutter, Chinese
Foreign Relations: Power and Policy since the Cold War Lanham, Md.: Rowman e Littlefield 2007, p. 3-
12.
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mundiais da determinação da China em prosseguir o caminho da paz e do
desenvolvimento. Assim, a nova forma de pensar, traduzida num maior activismo
internacional chinês e na atitude positiva para com organizações multilaterais e a
política mundial realçados, em Dezembro de 2005, no Livro Branco chinês Via do
Desenvolvimento Pacífico da China (China’s Peaceful Development Road) parece ser
apenas uma parte da recente política externa chinesa.
Esta nova forma de pensar positiva e equilibrada aparenta ter por contrapeso um
grande aumento das capacidades militares chinesas, que corre em paralelo e é apoiado
por afirmações nos livros brancos chineses sobre segurança nacional, declarações
oficiais e acções diplomáticas e militares assertivas que indicam claramente que os
líderes chineses estão efectivamente preparados para proteger os seus interesses de
forma intensa e assertiva face a situações que justifiquem esse tipo de medidas.
Entretanto, o novo activismo internacional chinês e a atitude positiva não promovem
uma imagem positiva e benéfica para a China como são interpretados pelos analistas
acima referidos como servindo um objectivo prático importante de promoção das
normas e práticas em organizações internacionais e regionais, tentando atenuar aquilo
que interpretam como sendo os esforços do EUA para "conter" a China e impedir a
ascensão do poder da China. Geralmente consistentes com a imagem da “estratégia
Gulliver” referida anteriormente, os chineses promovem teias de relações de
interdependência que visam prejudicar e dificultar acções unilaterais ou de outro tipo
por parte da superpotência EUA que poderiam interferir em importantes interesses
chineses no mundo e nos assuntos asiáticos.
10
2009-2010- período de “teste” nas relações sino-americanas
Eventos em 2009
Foi neste contexto que o Presidente Barack Obama tomou posse em Janeiro de 2009. O
ano
de 2009 expôs os pontos fortes e fracos do actual envolvimento americano com a
China. O Presidente Barack Obama iniciou o seu mandato enfrentando uma série de
importantes problemas internacionais e internos, mas a política com a China não se
incluía nesses problemas. A campanha do Presidente fora invulgar na medida em que a
política com a China esteve ausente como questão importante do debate. A opinião dos
peritos insistiu junto do novo Governo dos EUA para que prosseguisse o equilíbrio
positivo no envolvimento entre os EUA e a China que se desenvolvera durante os
últimos anos da Administração de George W. Bush.
11
Como referido anteriormente, figuras americanas de relevo encaravam a cooperação
entre a China e os Estados Unidos como a relação mais importante da política
internacional do século XXI. Defendiam o estabelecimento de um condomínio “G-2"
entre Washington e Pequim que dirigisse os assuntos internacionais mais importantes,
incluindo a recessão económica mundial, alterações climáticas, conflito no Afeganistão
10
Phillip Saunders Chi
na’s Global Activism: Strategy, Drivers, and Tools (Washington, D.C.: National
Defense University Press Institute for National Strategic Studies Occasional Paper 4 de Junho de 2006)
8-9.
11
Jacques deLisle, China Policy Under Obama Foreign Policy Research Institute E-Notes 15 de Fevereiro de
2009.
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e Paquistão ou o desenvolvimento de armas nucleares na Coreia do Norte e no Irão. A
Administração Obama foi mais realista quanto ao que se podia esperar da cooperação
com Pequim. Procurou a ajuda da China, assim como a de outras potências, para lidar
com as complexas questões internacionais, e tentou tranquilizar os líderes chineses que
o Governo dos EUA não desafiaria seriamente a China na forma de lidar com questões
sensíveis, tais como o proteccionismo comercial, direitos humanos, o encontro com o
Dalai Lama e a venda de armas a Taiwan. Prosseguiu, no fundo, o modelo desenvolvido
durante a Administração Bush para lidar com as muitas diferenças nas relações EUA-
China, através de diálogo e articulação. Realizaram-se mais de sessenta encontros
bilaterais, incluindo uma reunião anual conduzida pelos Secretários americanos de
Estado e do Tesouro, onde líderes americanos e chineses procuraram gerir as suas
diferenças e alargar a base de cooperação, longe dos holofotes do escrutínio da
comunicação social. Como resultado, a gestão cuidadosa do discurso blico entre os
Governos dos EUA e da China continuou a enfatizar os aspectos positivos do
relacionamento, enquanto as diferenças eram discutidas em reuniões privadas.
12
No
entanto, muitas diferenças importantes tornaram-se claramente perceptíveis à
medida que o ano se desenrolava, sublinhando os limites do envolvimento positivo
entre os EUA e a China. As autoridades chinesas criticaram a estratégia do Governo
Obama no Sudoeste Asiático e evitaram qualquer envolvimento significativo contra os
talibãs. Os deres chineses queixaram-se frequentemente do peso dos EUA na
economia global e fizeram várias alusões à diversificação do mercado dos EUA,
investimento em tulos do Governo americano e utilização do dólar americano. Os
americanos queixavam-se do acesso restrito ao mercado chinês no contexto do enorme
défice comercial com a China e houve alguns movimentos com vista a limitar as
importações chinesas e outras medidas, ripostando a China com uma retaliação
comercial e elevadas taxas proteccionistas.
13
As
autoridades chinesas e norte-americanas esforçaram-se por desenvolver uma base
comum sobre as alterações climáticas, mas os progressos foram limitados e a reunião
internacional de Dezembro em Copenhaga ficou marcada pela animosidade pública
entre as delegações dos EUA e da China. O Presidente Obama fez um esforço
extraordinário de última hora para obter o apoio da China, Índia, Brasil e África do Sul
no acordo limitado que foi estabelecido.
14
A cooperação sino-americana obteve melhores resultados na forma como lidaram com
o segundo teste de armas nucleares e outras provocações levadas a cabo pela Coreia
do Norte, mas as duas potências continuaram a discordar sobre a utilidade de recorrer
à pressão internacional para obrigar a Coreia do Norte a cooperar. Pequim mostrou-se
ainda mais relutante em exercer pressão contra o desenvolvimento nuclear do Irão.
15
As relações militares permaneceram tensas. Os navios da armada chinesa
confrontaram e assediaram navios americanos que patrulhavam as águas
internacionais reivindicadas pela China como zona de soberania no Mar da China
Meridional. A China bloqueou intercâmbios militares durante meses por causa de uma
12
Liberthal, “The China-US Relationship Goes Global.”
13
Bonnie Glaser, “Obama-Hu Summit: Success or Disappointment?” Com
parative Connections 11:4
(Janeiro 2010), 25-35.
14
Charles Babington and Jennifer Loven, “Obama raced clock, chaos, comedy for climate deal,”
www
.ap.com 19 de Dezembr0, 2009 (consultado em 21 de Dezembro, 2009)
15
Mark Landler, “Clinton warns China on Iran Sanctions,” New York Times 29 de Janeiro de 2010
www.nytimes.com (consultado em 23 de Fevereiro de 2010.
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transferência de armas dos EUA para Taiwan no termo do Governo Bush. Os renovados
contactos militares em 2009 ocorreram no meio de fortes advertências chinesas contra
a venda de armas dos Estados Unidos a Taiwan.
16
Neste contexto, as expectativas quanto às relações entre os EUA e a China eram
cautelosas. Os intercâmbios oficiais entre os EUA e a China caracterizaram-se por uma
grande desconfiança mútua, e houve várias manifestações não-governamentais de
repúdio, especialmente no lado americano. A comunicação social americana criticou
duramente a “fraqueza” do Presidente Obama em questões de direitos humanos, trocas
comerciais e outras matérias sensíveis aos americanos por ocasião da sua visita à
China, em Novembro. A grande maioria dos americanos não se deixou impressionar
com as alegadas vantagens do envolvimento com a China e continuou a não aprovar as
medidas adoptadas pelo Governo chinês, encarando a China como uma ameaça
crescente aos Estados Unidos.
17
Ape
sar de importantes, as disputas e diferenças nas relações EUA-China em 2009 não
foram suficientes para perturbar significativamente o modelo duradouro de decisão
pragmática por parte dos líderes chineses e norte-americanos, que se mostraram
decididos em manter um envolvimento contínuo entre os dois países.
A Administração Obama continuou a preocupar-se com um vasto leque de questões
importantes da política externa e interna. Neste quadro, uma disputa significativa com
a China era das últimas coisas que o Governo dos EUA pretendia. Pelo contrário, havia
um forte incentivo em prosseguir nem que fosse um simulacro de cooperação e evitar
conflitos com a China.
O Governo do Presidente Hu Jintao definiu os objectivos de uma política central interna
e externa para a década seguinte centrada na China, que promovia a continuação da
situação internacional em geral, encarada como vantajosa para a China, a fim de
permitir a modernização rápida da China. As vantagens que se poderiam colher neste
período, entendido como uma “oportunidade estratégica” nos assuntos internacionais,
parecia exigir que as relações EUA-China continuassem a mover-se num sentido
positivo.
18
A Administração Hu Jintao envidou esforços na promoção de relações
com
erciais e construtivas com o Governo de George W. Bush. Em 2009, o Governo
chinês garantiu que as suas iniciativas não perturbariam seriamente as vantagens que
advinham para a China em manter, de forma geral, as suas relações positivas com os
Estados Unidos.
Assim, as investidas chinesas contra a vigilância militar dos EUA no Mar da China
Meridional diminuíram. Apesar das críticas e ameaças públicas, os investimentos
chineses em tulos dos EUA continuaram e a dependência chinesa do dólar americano
manteve-se. Embora as autoridades chinesas tivessem previsto que a China se
apoiasse nos consumidores chineses para impulsionar o crescimento económico, os
empresários chineses pareciam determinados em manter e expandir a sua quota no
revitalizado mercado americano. A China também concordou, a vários níveis, com os
argumentos dos EUA sobre a Coreia do Norte, o Irão e as alterações climáticas, e
16
Chris Buckley, “China PLA officers urge economic punch against US,” Reu
ters 9 de Fevereiro de 2010
www.reuters.com (consultado em 12 de Fevereiro de 2010)
17
Glaser, “Obama-Hu Summit.”
18
David Michael Lampton, The Three Faces of Chinese Power Berkely CA: University of California Press, 32-
36.
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retomou contactos militares no activo que haviam sido cortados devido à venda de
armamento ao Taiwan por parte dos Estados Unidos em 2008.
19
Início de 2010
Infelizmente para aqueles que procuram reforçar a imagem positiva de cooperação e
envolvimento entre as duas potências mundiais, o início de 2010 foi marcado por
desavenças. Fevereiro foi um mês particularmente mau. As autoridades chinesas e os
comentários oficiais tomaram a iniciativa incomum de aumentar as críticas e ameaças
contra os EUA perante notícias dos planos de venda de armas a Taiwan. O Governo
chinês sabia que as vendas eram esperadas e que provavelmente tinham sido adiadas
para evitar polémicas antes da visita do Presidente Obama à China, em Novembro de
2009. No entanto, no início de 2010 a comunicação social chinesa estava repleta de
avisos contra a venda. Quando o pacote de vendas de sistemas de armamento
americano, no valor de 6,4 bilhões de dólares, foi publicamente anunciado no início de
Fevereiro, a reacção chinesa foi publicamente forte. As medidas concretas de retaliação
incluíam travar algumas negociações em matéria de defesa, ameaças de represália
contra empresas dos EUA que vendiam equipamento militar a Taiwan e advertências
que a China colaboraria menos com as autoridades dos EUA em importantes questões
internacionais, como as suspeitas em torno do programa de armas nucleares do Irão.
20
O G
overno Obama não escondeu o facto de, em deferência para com a China e devido
à preocupação com a viagem do Presidente a Pequim em Novembro, tinha adiado o
encontro do Presidente com o Dalai Lama para não ter que se reunir com o der
tibetano aquando da visita deste último a Washington, em Outubro de 2009. Assim,
quando a notícia da nova data do encontro entre Obama e o Dalai Lama foi anunciada
em Fevereiro de 2010, as autoridades chinesas e a comunicação social mais uma vez
pareceram intimidar os americanos, advertindo contra a reunião e respectivas
consequências para as relações EUA-China.
21
O e
ndurecimento da atitude da China — posições opostas
Na sequência da por vezes interacção hostil sino-americana na cimeira internacional
sobre alterações climáticas em Copenhaga, e do reduzido êxito dos Estados Unidos em
obter um maior apoio da China aos objectivos internacionais fundamentais americanos
em matéria de alterações climáticas, programa nuclear do Irão, e assuntos
internacionais relacionadas com a questão cambial e o comércio, a posição pública
endurecida da China despoletou uma série de especulações por parte de observadores
da comunicação social e especialistas em assuntos internacionais nos Estados Unidos,
China, e outros pontos da Ásia e do Ocidente. Apesar de frequentemente se esgrimirem
posições e pontos de vista muito variados, o debate gerou-se entre dois grupos
principais.
19
Veja-se as análises trimestrais das relações entre os EUA e a China in Comparative Connections
www.csis.org/pacfor
20
Alan Romberg, “Beijing’s Hard Line against US Arms Sales to Taiwan,” PAC
NET Newsletter #4 3 de
Fevereiro de 2010 www.csis.org/pacfor
21
China warns against Obama-Dalai Lama meeting,” Reuters 3 de Fevereiro de 2010 www.reuters.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 1-15
Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não?
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O grupo mais proeminente alertou para um real ou eventual ponto de viragem na
relação entre a China e os EUA.
22
Os especialistas e analistas que faziam parte deste
grupo tendiam a ver a China em ascensão como tendo alcançado maior poder e
influência nos assuntos mundiais, e que este crescimento faria com que a China
exercesse pressão sobre os Estados Unidos para que fizesse concessões em questões
chave da disputa de longa data, como Taiwan e o Tibete. A "confiança" e
"agressividade" acrescidas da China fazia igualmente com que Pequim tomasse
posições duras nas disputas com os Estados Unidos sobre questões cambiais e
comerciais, práticas de direitos humanos e ciberataques, cooperando também menos
com os esforços internacionais apoiados pelos EUA relativamente ao Irão, Coreia do
Norte e alterações climáticas. Alguns viam a China a assumir a liderança e a definir a
agenda nas relações EUA-China, e os Estados Unidos a adoptarem uma posição mais
fraca e reactiva.
23
Para esses analistas americanos, assim como para outros na Ásia e
no
Ocidente, era normal defenderem uma postura mais dura por parte dos Estados
Unidos frente à China, o que se designou por push-back” americano para conter a
assertividade Chinesa.
24
Contudo, alguns dos especialistas no grupo defendiam que o
Governo Obama, com tanto assunto com que se preocupar, não estava à altura da
tarefa de gerir a nova assertividade chinesa, e previram uma mudança na dinâmica do
poder internacional em assuntos asiáticos e mundiais em detrimento dos Estados
Unidos e a favor de uma liderança chinesa.
25
Os pontos específicos avançados por estes comentadores e especialistas incluíam o
seguinte:
- A China emergiu da crise económica mundial de 2008-2009 mais forte que as
outras grandes potências, incluindo os Estados Unidos, que ficou preso numa
recuperação lenta e com desemprego elevado. No geral, os comentadores na China
e no exterior encararam a economia como a principal causa para a mudança da
liderança dos EUA a favor da China, que na sua opinião estava amplamente em
curso nos assuntos mundiais e asiáticos. De facto, alguns avançavam que o sistema
económico internacional estava a atravessar uma mudança significativa que se
afastava das normas e instituições ocidentais, aproximando-se de regimes
internacionais onde a China desempenharia um papel cada vez mais significativo
que se opunha à ordem liberal ocidental estimulada pelos Estados Unidos.
- Na sua visita à China, em Novembro de 2009, e noutras formas de envolvimento
EUA-China, o Presidente Obama e a sua Administração sublinharam a grande
necessidade de cooperação entre os EUA e a China numa série de questões
internacionais e bilaterais. A agenda política dos EUA salientava a necessidade do
Governo americano trabalhar em estreita colaboração com a China. Nestas
circunstâncias, os especialistas chineses e estrangeiros indicaram que os líderes
chineses se tinham apercebido que a América precisava mais da China do que a
China precisava dos Estados Unidos. No passado, essa opinião foi entendida como
22
David Shambaugh, “The Chinese tiger shows its claws,” Financial Times February 17, 2010 www.ft.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010).
23
James Hoagland, “As Obama bets on Asia, regional players hedge,” Was
hington Post , 11 de Fevereiro de
2010 www.washingtonpost.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010)
24
Kendra Marr, “W.H. takes tougher tone with China, Politico 16 de Fevereiro de 2010 www.politico.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010)
25
Martin Jacques, “Crouching dragon, weakened eagle,” International Herald Tribune 16 de Fevereiro de
2010 www.iht.com (consultado em 23 de Fevereiro de 2010).
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Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não?
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estando por trás dos surtos de pressão chinesa sobre o Governo dos EUA
relativamente a Taiwan e outros assuntos. No caso actual, o Presidente Obama foi
visto como “fraco” e a necessitar de ir ao encontro dos desejos da China que agora
se encontrava em posição de poder fazer maiores exigências e satisfazer menos as
do seu parceiro americano.
- Uma linha de análise neste grupo afirmou que o incentivo que levou os altos
dirigentes chineses a adoptarem políticas mais duras e menos cooperantes com os
Estados Unidos tinha menos a ver com a sua confiança nos assuntos internacionais
e mais a ver com as suas preocupações sobre a gestão das pressões internas
chinesas. As elites chinesas e a opinião pública foram, alegadamente, influenciadas
pelos comentários internacionais e chineses que destacaram a ascensão da China
na sua saída da crise económica, enquanto os Estados Unidos ficavam para trás.
Estes segmentos da opinião chinesa foram acompanhados pelas autoridades
militares e económicas chinesas, assim com outros intervenientes no crescente
perfil internacional da China, que não estavam associados à abordagem geralmente
mais experiente e profissional conduzida pelos responsáveis pela diplomacia externa
chinesa profissional. As forças internas, militares e outras autoridades juntaram-se
à opinião pública e à da elite na pressão por uma maior atenção para com os
interesses chineses e maior resistência às exigências ou pressões exercidas pelos
Estados Unidos. A fim de preservar a estabilidade interna e a continuidade serena
do Governo do Partido Comunista Chinês, a posição assumida por Hu Jintao e
outros líderes foi interpretada como não tendo grande escolha senão aceitar as
exigências das forças internas a favor de uma posição mais dura contra os EUA.
26
O s
egundo grupo de observadores chineses e internacionais assumiu uma posição
muito menos proeminente do que o grupo de comentadores referido acima no início de
2010. Os comentadores e especialistas do segundo grupo reconheceram devidamente a
atitude pública mais assertiva da China em relação a Taiwan e ao Tibete. A reduzida
cooperação da China com os Estados Unidos em assuntos que iam desde a questão
cambial e comércio até às alterações climáticas e ao programa nuclear do Irão foi
igualmente notada. Estes observadores previam um ano difícil para as relações sino-
americanas, sobretudo porque o Governo Obama estava sob pressão das forças
económicas e políticas internas a favor de uma atitude mais firme por parte dos
Estados Unidos contra a China em assuntos relacionados com direitos internacionais,
disputas comerciais e o Irão. Contudo, estes especialistas e comentadores viam maior
continuidade do que mudança nas relações sino-americanas.
27
Discordavam da ideia
que
a China tivesse atingido um ponto em que se sentisse preparada para confrontar a
América em assuntos chave, e que estivesse disposta a colocar em risco uma
deterioração substancial das relações sino-americanas. Alguns destes analistas
encaravam a pressão chinesa relativamente a Taiwan e ao Tibete como “testes” à
determinação americana, semelhantes aos ensaios” que a China aparentava ter
conduzido no Mar da China Meridional, em 2009, e às ameaças que fez nesse ano de se
afastar substancialmente do dólar americano e de desviar o centro da atenção das
26
Edward Wong, “Rift grows as US and China seek differing goals,” New York Times 20 de Fevereiro de
2010 www.nytimes.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010).
27
Minxin Pei, “The Tension is overstated,” International Herald Tribune February 16, 2010 www.iht.com
(consultado em 23 de Fevereiro de 2010); Elizabeth Economy, “The US and China Have at it Again; but
it’s much ado about nothing,” http://blogs.cfr.org 2 de Fevereiro de 2010 (consultado em 12 de
Fevereiro de 2010).
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exportações chinesas do mercado americano. Como foi referido, a interpretação para
o facto de a China ter desistido dessas iniciativas em 2009 foi o ter constatado que as
consequências prejudicariam os interesses chineses na sua generalidade.
28
Entre as razões específicas a favor da continuidade dos esforços chineses para evitar
um conflito substancial e manter o envolvimento positivo com os Estados Unidos
destacam-se as seguintes:
- A dependência da China da economia dos Estados Unidos e a sua dependência da
ordem internacional liderada pelos EUA continuava a ser enorme. A capacidade de
uns Estados Unidos irritados de complicar e prejudicar os interesses chineses na
manutenção da “oportunidade estratégica” fornecida por um ambiente internacional
vantajoso nas primeiras duas décadas do século XXI continuava a ser igualmente
enorme.
- Na década anterior, a China tinha sido obrigada a inverter a sua forte oposição ao
hegemonismo dos Estados Unidos em prol de uma política que oferecesse garantias
aos EUA e associados que a ascensão da China seria pacífica. Fê-lo em grande parte
para evitar que os EUA reagissem e impedissem o crescimento da China,
complicando a sua ascensão, de forma a conduzir ao fim do regime do Partido
Comunista Chinês.
29
A inversão dessa abordagem política teria sido uma medida
mui
to difícil de adoptar pela Administração Hu Jintao nos seus últimos anos, que se
concentrava numa transição harmoniosa de uma geração de liderança para a
seguinte. Dessa forma, o incentivo para a Administração Hu Jintao manter as
geralmente positivas relações sino-americanas foi reforçado pela sucessão
geracional de liderança que se aproximava e terá lugar no 18º Congresso do Partido
Comunista Chinês em 2012. Os preparativos para este evento envolvem amplas
negociações de bastidores sobre política, poder e nomeações que se conduzem
melhor num ambiente em que os deres chineses não são perturbados por assuntos
controversos sérios, para além dos muitos com que têm que lidar em casa e no
exterior, nomeadamente as relações sino-americanas.
- Se a China decidisse confrontar os Estados Unidos, provavelmente optaria pelo
padrão utilizado anteriormente para lidar com iniciativas internacionais contra
adversários reais ou em potência. Este padrão envolve o recurso a cticas de
“frente unida”, através das quais a China se mostra sensibilizada e procura estreitar
laços com outras potências à medida que se prepara para confrontar o adversário, o
“alvo” principal. Contudo, as condições existentes nas relações diplomáticas
chinesas indicavam que a China o mantinha relações particularmente favoráveis
com muitos centros mundiais de poder caso optasse por enfrentar os Estados
Unidos em 2010. Os laços com a Índia, o Japão, a Europa Ocidental, a Coreia do
Sul, a Austrália e, discutivelmente, a Rússia, eram muito variáveis e por vezes
conturbados. À excepção do Japão, as relações eram mais problemáticas e menos
assentes na cooperação do que tinham sido na década anterior.
28
Estes pontos e os referidos nos parágrafos assinalados por marcadores beneficiaram das trocas de
imp
ressões e reuniões extra-oficiais que o autor manteve com vinte e quatro especialistas americanos e
cinco altos funcionários chineses em Washington DC em Fevereiro de 2010.
29
Lampton, Three Faces of Chinese Power 32-34; Robert Sutter, Chinese Foreign Relations: Power and
Policy since the Cold War (segunda edição) Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2010, p. 10.
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Eventos posteriores - equilíbrio positivo sustentado
Os eventos que tiveram lugar no final de 2010 não resolveram o debate entre os
comentadores que viam uma China assertiva disposta a pressionar os Estados Unidos
relativamente às diferenças existentes, e os analistas que pensavam que os líderes
americanos e chineses viam os seus interesses como estando bem servidos através de
políticas e práticas que evitavam o conflito e mantinham um equilíbrio positivo nas
relações entre a China e os Estados Unidos. Contudo, os ziguezagues na atitude
chinesa de desafio às políticas e acções americanas pareciam ter limites. Os altos
dirigentes chineses expressaram claramente a sua preocupação em manter e
desenvolver o equilíbrio positivo nas relações sino-americanas, nomeadamente, dando
início aos preparativos da visita oficial do Presidente HU aos Estados Unidos no início de
2011.
30
Os
americanos ficaram decepcionados com a recusa da China em condenar a Coreia do
Norte pelo afundamento de um navio de guerra sul-coreano, o Choenan, que causou a
morte a 46 marinheiros sul-coreanos. A Coreia do Sul, apoiada pelos Estados Unidos,
procurou punir a Coreia do Norte através de medidas que não chegassem a assumir
contornos de violência, nomeadamente através das Nações Unidas. A China assegurou
que a Coreia do Norte não se tornaria oficialmente o alvo das medidas da ONU. A
Coreia do Sul e os Estados Unidos anunciaram manobras militares nos mares de cada
lado da Península. Pela primeira vez na memória recente, a China opôs-se
publicamente às manobras no Mar Amarelo como constituindo uma ameaça à China. Os
protestos chineses tornaram-se o foco de comentários incisivos nos meios de
comunicação oficiais e não oficiais chineses durante rias semanas. A opinião chinesa
opunha-se particularmente ao envolvimento do porta-aviões americano posicionado no
Japão, o George Washington, nas manobras no Mar Amarelo.
Enquanto isso, as autoridades chinesas expandiam e refinavam em privado e
publicamente a sua preocupação mais recente em apoiar os seus interesses
fundamentais” de forma a incluir reivindicações mais abrangentes, onde se incluíam
grupos de ilhas situadas no Mar da China Meridional igualmente reclamadas por outros
Estados. As supostamente pretensões inflexíveis que envolviam os interesses
“fundamentais” da China abrangiam afirmações unilaterais chinesas e tentativas de
regulamentação de vigilância militar, pescas, prospecção de petróleo e outros direitos
até então utilizados nos Estados Unidos e países vizinhos do Sudeste Asiático, entre
outros.
31
A C
hina colocou-se na defensiva ao reagir às intervenções de líderes americanos,
incluindo uma declaração notável pela Secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, no
encontro anual do Fórum Regional da ASEAN (ARF) em Hanói, em 23 de Julho de 2010,
sobre as tensões recentes no Mar da China Meridional. O Ministro dos Negócios
Estrangeiros da China interpretou a intervenção dos EUA como um ataque à China. A
reunião do ARF também assistiu a um novo compromisso por parte da Presidência dos
EUA, apoiado pela ASEAN, de participar activamente na Cimeira da Ásia Oriental (EAS),
alterando o perfil daquele mecanismo regional e contrariando a preferência da China
por agrupamentos regionais exclusivamente asiáticos.
30
Bonnie Glaser, “U.S.-Chinese Relations,” Comparative Connections 12:3 (Outubro de 2010)
www.csis.org/pacfor.
31
China-Southeast Asia Relations,” Comparative Connections 12:3 (Outubro de 2010)
www.csis.org/pacfor
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Os avanços importantes nas relações militares, entre outras, dos EUA com o Vietname,
expostos durante as celebrações bilaterais, em Agosto, e que envolviam manobras com
um porta-aviões dos Estados Unidos posicionado perto das regiões disputadas no Mar
da China Meridional, vieram complicar ainda mais as previsões regionais da China. O
porta-aviões George Washington era o mesmo navio cuja participação nas manobras
americanas na Coreia do Sul e no Mar Amarelo a imprensa chinesa havia colocado sob
severas objecções. O contingente de navios americanos incluía um torpedeiro avançado
que tinha entrado no porto vietnamita de Danang e que tinha um nome simbólico
importante, The John McCain.
muito que a China adoptara uma abordagem regional baseada no crescimento do
comércio, noutros contactos económicos e na diplomacia bilateral e multilateral
destinada a tranquilizar os vizinhos do Sudeste Asiático e o respectivo agrupamento
regional, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). À medida que as
disputas no Mar da China Meridional com países regionais e os Estados Unidos
ganharam relevo nos últimos anos, a China tornou-se mais assertiva na defesa das
suas pretensões. Destacam-se a adaptação de navios militares para levar a cabo
proibições unilaterais de pesca, a exibição de força das três frotas navais chinesas na
região e a afirmação que as pretensões chinesas às ilhas, águas e recursos do Mar da
China Meridional representavam um “interesse vital para a China que não tolerava
qualquer tipo de compromisso.
As autoridades chinesas e comentários na comunicação social chinesa começaram por
se opor à intervenção dos EUA na reunião do ARF, e a outras iniciativas da política
norte-americana no Sudeste da Ásia, com ataques dirigidos aos Estados Unidos pelas
suas supostas intenções de servir os seus próprios interesses e intenções
desestabilizadoras.
Essas críticas foram efectuadas juntamente com outros ataques públicos por parte da
China contra as manobras militares que se realizavam em simultâneo com as forças
sul-coreanas em retaliação ao afundamento do navio de guerra sul-coreano Cheonan
pela Coreia do Norte.
Posteriormente, algumas das opiniões chinesas desviaram-se da dura abordagem
pública contra os Estados Unidos. A crítica dos EUA e de outros países relativamente às
disputas no Mar da China Meridional e outros assuntos diminuíram. Pelo menos
momentaneamente, parecia que a China continuaria a afirmar publicamente a
necessidade de manter os laços comerciais e uma diplomacia tranquilizadora no
Sudeste Asiático, ao mesmo tempo que defendia as suas pretensões territoriais e
continuava a construir as suas capacidades militares.
Em suma, a China parecia não estar preparada para permitir que as disputas com os
Estados Unidos sobre o Mar da China Meridional, Mar Amarelo, e assuntos afins
aumentassem de forma a poder prejudicar gravemente as relações EUA-China. O
Presidente Hu Jintao e outros líderes chineses fizeram um grande esforço em receber
enviados dos EUA de posição inferior, e transmitiram uma forte mensagem pública de
confiança de que a China iria manter um envolvimento positivo com os Estados Unidos.
Como exemplo dos limites à assertividade chinesa perante os interesses dos Estados
Unidos, destaca-se a atitude de altos dirigentes militares chineses ao inverterem
críticas recentes, dando a entender aos dirigentes americanos e mundiais que a China
procurava retomar trocas militares com os Estados Unidos. Ainda mais importante, o
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Equilíbrio positivo nas relações China-EUA: duradouro ou não?
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Presidente Hu preparou com particular cuidado a sua visita oficial a Washington no
início de 2011.
Bibliografia
Goldstein, Avery (2005). Rising to the Challenge: China’s Grand Strategy and
International Security. Stanford, Calif.: Stanford University Press.
Lampton, David Michael (2008). The Three Faces of Chinese Power Berkeley CA:
University of California Press.
Shirk, Susan (2007). China: Fragile Superpower. New York: Oxford University Press.
Sutter, Robert (2010). U.S.-Chinese Relations: Perilous Past, Pragmatic Present
Lanham, Md.: Rowman and Littlefield.
OBSERVARE
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A IDENTIDADE EUROPEIA – A CIDADANIA SUPRANACIONAL
Paula Marques Santos
Licenciada em Relações Internacionais e Doutora em História das Relações Internacionais.
Dire
ctora da licenciatura de Secretariado de Administração
da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego. Membro da Team Europe.
Mónica Silva
Licenciada e Mestranda em Relações Internacionais.
Docente da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego
Resumo
Pretende-se com esta comunicação apresentar uma reflexão sobre a construção da
cidadania/identidade comunitária europeia, procurando identificar os principais desafios à
consolidação desse vínculo de cidadania e as dificuldades em tornar os indivíduos do espaço
comunitário mais participativos no processo de integração e as instituições europeias mais
próximas do cidadão comum.
Palavras-chave
Cidadania Europeia; Tratado de Lisboa; supranacionalida
de; direitos fundamentais;
cidadania democrática; desafios
Como citar este artigo
Santos, Paula Marques; Silva, nica (2011). "A identidade europeia a cidadania
supranacional”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera
2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art2.
Artigo recebido em Dezembro de 2010 e aceite para publicação em Março de 2011
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A identidade europeia – a cidadania supranacional
Paula Marques Santos e Mónica Silva
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A IDENTIDADE EUROPEIA – A CIDADANIA SUPRANACIONAL
Paula Marques Santos e Mónica Silva
Contextualização
A cidadania europeia tem vindo, nos últimos anos a ganhar um espaço relevante no
deb
ate acerca da importância do seu reforço eficiente para que o próprio
aprofundamento da integração europeia seja possível e passível de aproximar as
instituições aos cidadãos.
De facto, embora Monnet se referisse à construção comunitária como uma união de
homens e não apenas de Estados, apenas na década de 1990
1
com o Tratado da União
Europeia (TUE) e com o Tratado das Comunidades Europeias (TCE) se define
claramente, nos termos do disposto no seu artigo 17º, a qualidade de cidadão da União
esta seria reconhecida a qualquer pessoa que detivesse a nacionalidade de um
Estado-Membro (EM), sendo esta última definida com base na aplicação da legislação
nacional desse mesmo Estado-Membro.
Este conceito de cidadania revestiu-se de imediato de um carácter supranacional e
complementar ao de cidadania nacional. Ou seja, a cidadania da União complementaria
a cidadania nacional, mas não a substituindo, e comportando um conjunto de direitos e
deveres que vêm associar-se aos que decorrem da qualidade de cidadão de um EM
2
.
O e
statuto de cidadania da União implicava, até agora e apenas, para todos os cidadãos
da União uma enumeração de direitos, dos quais destacamos: o direito à livre
circulação e o direito à permanência no território dos EMs; o exercício da
capacidade eleitoral activa e passiva nas eleições para o Parlamento Europeu e nas
eleições autárquicas do EM de residência, nas mesmas condições que os nacionais do
EM em questão; o direito à concessão de protecção diplomática, por parte das
autoridades diplomáticas e consulares de um outro EM, no território do país terceiro
(não membro da UE) em que o EM de que é nacional não se encontrasse representado,
nas condições aplicáveis aos nacionais do EM em causa; o direito de petição ao
Parlamento Europeu e o direito de recurso a um provedor de Justiça nomeado
pelo Parlamento Europeu sobre casos de má administração na actuação das Instituições
e órgãos comunitários (cf. Art. 194.º e 195 do TCE); o direito de se dirigir por
1
Antes da assinatura do TUE e do TCE, houve um trabalho conjunto, com o objectivo de tornar o espaço
comunitário mais coeso. Nos anos de 1990 foram feitos significativos desenvolvimentos para a
conceptualização e implementação da cidadania e da educação para a cidadania na Europa, processo em
que participaram diversas instituições e entidades, incluindo o Conselho da Europa, a Comissão Europeia,
entre outras. O Conselho da Europa envolveu-se com a educação dos direitos humanos e da cidadania
desde os anos de 1980. Exemplo desse esforço, em 1987 a Comissão Europeia iniciou projectos
transnacionais de educação, através do programa Erasmus. A razão comum a todas as iniciativas foi a
promoção de um sentido de identidade e cidadania europeia.
2
Os deveres enunciados serão, por isso, os que decorrem da nacionalidade nacional de cada cidadão, não
exi
stindo qualquer dever acrescido, resultante da cidadania da União, além do respeito pela cidadania
europeia e do dever de se defender essa mesma cidadania.
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A identidade europeia – a cidadania supranacional
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escrito a qualquer das instituições ou órgãos da União numa das nguas dos EMs
e de obter uma resposta redigida na mesma língua (artigo 21.º, terceiro parágrafo, do
TCE); e o direito de acesso aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho
3
e
da Comissão, sob determinadas condições (cf. artigo 255.º do TCE).
Todavia, esses direitos associados à cidadania europeia sempre contiveram restrições
evidentes e óbvias: de acordo com o art. 18, 1 (TCE) “todos os cidadãos da União
têm o direito de mobilidade e residência dentro dos territórios dos Estados membros,
sujeitos às limitações e condições definidas no Tratado e nas medidas de
funcionamento”. Esta reserva refere-se em particular ao interesse legítimo dos EMs
para requerer cobertura social e financeira antes de garantirem a permissão de
residência, para proteger os seus recursos públicos. Por analogia, como evidencia
Besson (2007), estas limitações e reservas aplicam-se a todos os direitos de cidadania
europeia, direitos esses garantidos e limitados pelos Tratados. Esta situação tem sido
objecto de preocupação, que essas limitações podem ser aceites em relação às
liberdades fundamentais económicas, mas não nas áreas social e política. A dificuldade
aumentou a partir do momento em que a jurisprudência comunitária se tornou mais
generosa em garantir a justificação para as limitações nacionais para os direitos da
cidadania europeia do que devia, deixou que estes direitos fossem invocados como uma
das quatro liberdades fundamentais. E, se é verdade que o TJ iniciou uma inédita e
altamente necessária acção ao desenvolvimento de expansão do âmbito material e
pessoal dos direitos de cidadania da UE, esta extensão tem infelizmente sido
compensado pela elaboração de justificações overbroad para as restrições a esses
direitos.
Na sequência da aprovação do Tratado de Lisboa, a mesma
ideia de reforço da
cidadania da União transparece no seu articulado, procurando-se envolver cada vez
mais o cidadão na construção da União e nos processos de tomada de decisão (policy-
making), através de diversos mecanismos e ferramentas (manutenção/reforço de
alguns referidos supra e criação de outros que iremos abordar no ponto seguinte e
que serão a base da nossa análise).
Neste sentido, consideramos de extrema relevância tentar perceber a abrangência do
conceito de cidadania europeia e de que forma ela poderá ser verdadeiramente
operacionalizada para que a dicotomia instituições-cidadão seja um verdadeiro vector
de aprofundamento e de interacção na construção da União, dadas as suas
especificidades ímpares. Quer dizer, se cidadania strictu sensu é um vínculo jurídico
entre o indivíduo e o respectivo Estado, que se traduz num conjunto de direitos e
deveres, necessitamos de conseguir enquadrar este novo vínculo supranacional
estabelecido entre cidadãos e União, tendo sempre em conta a ausência de deveres
directamente imputados a esta relação supranacional, mesmo com a entrada em vigor
do Tratado de Lisboa e da vinculação/obrigatoriedade da Carta dos Direitos
Fundamentais.
De facto, este conceito tem sido alvo de diversas reflexões, tentando-se por um lado
identificar os problemas e preocupações existentes e que evitam a consolidação da
cidadania europeia e, por outro, delinear a definição do conceito, abrangente o
suficiente, para esclarecer este novo tipo de vínculo que extravasa fronteiras nacionais.
Nyers (cf. 2007) apresenta uma síntese de algumas das abordagens e contributos de
3
Entenda-se Conselho de Ministros, de acordo com a numenclatura do Tratado de Lisboa.
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19
alguns investigadores. Destacamos aqui Gerard Delanty que analisa a política da
cidadania europeia e regista algumas preocupações relacionadas com a falta de
solidariedade e justiça social neste modelo emergente de cidadania. Para outros
autores como Aihwa Ong, a preocupação está na questão de saber se as concepções
territoriais de cidadania ainda são actuais e relevantes ou se, actualmente, o conceito
deve encontrar outros significados de acordo com os movimentos globais que marcam
a política contemporânea4. Para Figueroa, por sua vez, a cidadania envolve: um
compromisso para com a sociedade tendo em atenção a sua diversidade; abertura e
solidariedade para com os outros indivíduos e as diferenças; aceitação de todas as
outras pessoas; rejeição de qualquer forma de exploração, tratamento discriminatório
ou racismo (Figueroa, 2000, 57).
Perante todas estas incertezas, não podemos esquecer que, tal como defende Yeatman
(op. cit.), qualquer discussão acerca da cidadania europeia no futuro deve ter sempre
em conta a relação complexa mas duradoura entre soberania e subjectividade, entre a
procura da auto-preservação pelo indivíduo e os Estados e outras entidades que
procuram legitimar a sua autoridade (onde inserimos a UE). Ou seja, o conceito de
cidadania terá de ser reformulado, pois como Preuss realçou “citizenship does not
presuppose the community of which the citizen is a member, but creates this very
community” (apud Osler, 2006).
O grau de realização da cidadania da União alcançado até à data deve-se
preponderantemente (excepção feita à capacidade eleitoral) a uma mera
sistematização de direitos já existentes (sobretudo no referente à liberdade de
circulação, ao direito de permanência e ao direito de petição), assistindo-se agora à sua
consagração no direito primário em nome de um projecto político. Contrariamente ao
observado relativamente à noção de constituição existente nos Estados europeus desde
a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), à cidadania
da União não se encontram associadas quaisquer garantias específicas em matéria de
direitos fundamentais
5
. Embora o n.º 2 do artigo 6.º do TUE se previsse que a “União
res
peitará” os direitos fundamentais consagrados na Convenção Europeia de
Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, bem como pelas
“tradições constitucionais comuns” aos EMs, enquanto princípios gerais do direito
comunitário, o referido artigo não remetia, todavia, para o estatuto jurídico da
cidadania da União (relativo ao direitos fundamentais da União)
6
. Não obstante o
enunciado do n.º 2 do artigo 17.º do Tratado CE, a cidadania da União não comporta,
por isso, quaisquer deveres para os cidadãos da União, o que representa uma diferença
substancial relativamente à cidadania dos EMs, salvo o respeito pelos Direitos
Fundamentais e pelo respeito da cidadania e defesa da UE, como referimos.
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, necessitamos de perceber de que forma
a Carta dos Direitos Fundamentais, com o carácter vinculativo que adquiriu, e as
modalidades de participação directa dos cidadãos no processo de policy-making
(essencialmente com a criação da Iniciativa de Cidadania Europeia) poderão favorecer
4
Ong realça as grandes metrópoles urbanas que acolhem as migrações globais, teorizando como esses
cen
tros se podem tornar numa “zona de mutação da cidadania” onde os castigos e recompensas estão
distribuídos de acordo com os activos que contribuem para a economia urbana. Cf. Nyers, 2007.
5
Procurou-se alterar esta situação com o TL, onde a Carta dos Direitos Fundamentais passou a ser
vin
culativa.
6
Cf. “Os cidadãos da União e os seus direitos”. Fichas Técnicas sobre a União Europeia. [CD-ROM]
Parlamento Europeu: 2009.
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o aumento do envolvimento dos cidadãos na integração europeia, ou seja, de que
forma os mecanismos previstos poderão potencializar efectivamente a defesa dos
cidadãos e a cidadania activa que, segundo a definição de Hoskins, implica a
participação na sociedade civil, comunidade e/ou vida política, caracterizada pelo
respeito mútuo e não-violência e de acordo com os direitos humanos e com a
democracia (Hoskins et al., 2006). Este autor procura demonstrar a heterogeneidade
que se verifica ainda entre os EMs da UE, em termos de cidadania activa, de acordo
com a construção do indicador compósito
7
.
Figura 1 - Indicador compósito da cidadania activa
Fon
te: Hoskins et al
. (2006)
Além disso, será também importante avaliar a capacidade e vontade que cada EM terá
para participar no aprofundamento deste projecto contínuo de experimentação política
que implica a interdependência muito partilhada e a busca de arranjos institucionais
perante contestações e conflitos, dentro de uma comunidade de comunidades. Devido à
adesão à UE, os próprios EMs vêem-se forçados a questionar o conceito de soberania e
de cidadania, aceitando o impacto da Europa na sua organização, instituições e políticas
7
O Indicador compósito da cidadania Activa (Hoskins et al.) foi elaborado com dados de 19 países
europeus e baseado em 63 indicadores, com base no Documento Social Europeu de 2002. O
enquadramento teórico utilizado para construir o índice composto da cidadania activa foi desenvolvido –
em cooperação com o Conselho da Europa por uma rede de peritos europeus e apresentado numa
conferência internacional em Ispra em Setembro de 2006. Os autores estabeleceram diversos itens,
organizados em quatro grandes áreas, nomeadamente: a dimensão da vida política, a dimensão da
sociedade civil, a dimensão da comunidade e a dimensão dos valores. Como se demonstra com o
indicador construído, verificamos uma Europa heterogénea, onde os países nórdicos lideram e os países
do sul apresentam performances positivas apenas em relação aos valores e à vida política, mas
negativas relativamente à sociedade civil e à vida em comunidade. Os cinco países top de acordo com o
indicador compósito são Suécia, Noruega, Dinamarca, Áustria e Bélgica, enquanto que no fim do ranking
estão a Itália, Portugal, Grécia, Hungria e a Polónia. Todavia, os cinco mais bem posicionados não têm as
pontuações mais elevadas nas 4 dimensões. O mesmo se aplica aos menos bem colocados. Por exemplo,
a Polónia tem uma das mais elevadas performances na dimensão dos valores e Portugal fica a meio da
tabela na mesma dimensão.
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e aceitar o facto que as decisões políticas comunitárias não reflectirão exclusivamente
os seus interesses nacionais.
1. A Cidadania europeia no Tratado de Lisboa
O conceito de cidadania, tendo por base o definido nos tratados anteriores, está
explicitamente actualmente definido no artigo do Tratado de Lisboa (TL), que define
que “Em todas as suas actividades, a União respeita o princípio da igualdade dos seus
cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte das suas instituições, órgãos e
organismos. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um
Estado-Membro. A “cidadania da União acresce à cidadania nacional, não a
substituindo” (sublinhado nosso).
O Tratado de Lisboa consagra ainda os princípios fundamentais da igualdade
democrática, da democracia representativa (art. 10º)
8
e da democracia participativa.
Neste Tratado, e exemplo da preocupação para a promoção da democracia
participativa, prevê-se ainda um novo mecanismo de interacção de facto, no artigo
11º, 4, surge um novo direito para os cidadãos da União: “Um milhão, pelo menos,
de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados-Membros, pode
tomar a iniciativa de convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições,
apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos
considerem necessário um acto jurídico da União para aplicar os Tratados”.
A Iniciativa dos Cidadãos Europeus (ICE) torna-se, assim, numa das mais importantes
inovações do TL em termos de cidadania e que, a par dos mecanismos já anteriormente
previstos de interacção com as instituições e órgãos, donde se destacavam o
Parlamento Europeu e o Provedor de Justiça, respectivamente, procura aprofundar a
capacidade do cidadão se envolver pro-activamente no processo de policy-making da
União.
Além da novidade da ICE, a partir de 2009, a Carta dos Direitos Fundamentais passa
também a ser vinculativa, o que demonstra a preocupação em tornar a Europa numa
união mais uniforme em termos sociais. Estes (ICE e carácter vinculativo da Carta)
serão os dois exemplos que procuraremos aprofundar na nossa análise acerca da
construção da identidade europeia.
2. A Carta dos Direitos Fundamentais e a Convenção Europeia para a
Pr
otecção dos Direitos do Homem
De forma, a consagrar os direitos civis, políticos, económicos e sociais, o Tratado de
Lisboa torna também vinculativa a Carta dos Direitos Fundamentais
9
, reconhecendo-lhe
o mesmo valor jurídico dos Tratados, uma nomenclatura de direitos, liberdades e
garantias. Como explica Isabel Camisão, “… constitui um avanço na protecção dos
direitos dos cidadãos europeus…”, e tem a “… vantagem de permitir aos cidadãos
europeus um maior conhecimento e compreensão das garantias que lhe advêm da sua
condição de cidadãos da União.” (www.ieei.pt
, 22.12.09). Confirma a adesão da União
8
De acordo com o 3 do art. 1“todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da
União. As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível”.
9
Os Estados-membros já haviam assinado a Carta em 2000.
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à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem, cujos direitos
fundamentais passam a fazer parte integrante do ordenamento jurídico.
A Carta dos Direitos Fundamentais não será directamente incorporada no Tratado de
Lisboa, mas adquire força jurídica vinculativa nos termos do n 1 do artigo 6.º do
Tratado UE, que confere à Carta o mesmo valor jurídico que é atribuído aos Tratados.
Tal como se estabelece na própria Carta, esta o alarga as competências da União
previstas nos Tratados. Acresce à Carta um protocolo introduzindo medidas específicas
para o Reino Unido e a Polónia, as quais prevêem excepções à natureza juridicamente
vinculativa da Carta perante os tribunais nacionais destes países.
A UE aderirá à Convenção Europeia assim que o 14.º protocolo da CEPDH entrar em
vigor, permitindo que tanto Estados como organizações internacionais se tornem
signatários da CEPDH. Não obstante, o acto de adesão tem de ser ratificado por todos
os Estados-Membros da UE.
A Carta dos Direitos Fundamentais (CDF)
10
consagra os direitos civis, políticos,
eco
nómicos e sociais que assistem a todos os cidadãos da União. Trata-se de uma
nomenclatura de direitos, liberdades e garantias que contribui de forma decisiva para a
consolidação do conceito de cidadania europeia, representando uma sinopse dos
valores comuns dos EMs da União. A Carta tem por desiderato promover a dignidade
humana, ilustrar os direitos fundamentais dos cidadãos europeus, expor os alicerces
intelectuais e jurídicos da União Europeia patenteando-a como uma comunidade de
valores e de direito. Este documento garante que todas as instituições europeias
respeitarão e farão respeitar os direitos fundamentais explanados.
O Conselho Europeu de Colónia, reunido em Junho de 1999, considerou conveniente
reunir num único documento a panóplia de direitos que assistem a todos os cidadãos
do espaço comunitário, de modo a serem clarificados. Pela primeira vez, na história
jurídica do projecto europeu, seria elaborado um documento onde estariam agrupados
todos os direitos fundamentais atribuídos aos cidadãos, que até então se encontravam
dispersos por vários textos jurídicos, constituindo assim, uma autêntica inovação.
Deste modo, o Conselho Europeu conferiu um mandato a uma Convenção para redigir
um projecto de Carta. A Convenção sobre os Direitos Fundamentais da UE seria
instituída em Dezembro do mesmo ano, presidida por Roman Herzog, e contaria com
representantes
11
dos parlamentos nacionais e dos governos dos EMs, deputados do
Parl
amento Europeu e o comissário europeu responsável na matéria. As reuniões da
Convenção
12
foram públicas, e toda a documentação produzida estava disponível on-
line para que os cidadãos pudessem consultar e acompanhar os trabalhos. A escolha do
método utilizado para a elaboração da Carta proporcionou um debate alargado,
originando um documento que reuniu consensos vindo a ser aprovado por uma vasta
maioria em 2 de Outubro de 2000. O Conselho Europeu de Biarritz reunido em 13/14
de Outubro do mesmo ano deu o seu aval unânime ao projecto de Carta e expediu-o ao
Parlamento Europeu e à Comissão Europeia. O Parlamento Europeu e a Comissão
10
Trata-se da mais recente declaração de direitos fundamentais na esfera mundial e a primeira do novo
milénio.
11
Portugal fez-se representar pela eurodeputada Teresa Almeida Garret, pela deputada Maria Eduarda
Aze
vedo, e por Pedro Bacelar de Vasconcelos e Miguel de Serpa Soares (suplente) em representação do
governo.
12
Foram promovidas audiências públicas de representantes da sociedade civil, originando mais de 1500
pro
postas de redacção da Carta. Os parlamentos nacionais encetaram audiências, debates parlamentares
e recolheram opiniões sobre o texto da Carta.
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Europeia deram a sua aprovação em 14 de Novembro e 6 de Dezembro de 2000
respectivamente. Em 7 de Dezembro seguinte, no Conselho Europeu de Nice, os
Presidentes do Parlamento Europeu, Nicole Fontaine, do Conselho, Jacques Chirac, e da
Comissão, Romano Prodi, assinaram a Carta em nome das respectivas instituições. No
momento da sua adopção em Nice foi-lhe reconhecido o valor político. O Tratado
Constitucional
13
previa a sua inclusão integral na Parte II, tornando-a juridicamente
vinculativa.
A Carta vai beber a várias fontes jurídicas sendo fruto do espírito da legislação
existente, derivada do Tratado que institui a Comunidade Europeia, do Tratado da
União Europeia, das tradições constitucionais dos 15 EMs, da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem do Conselho da Europa de 1950, com os seus protocolos adicionais,
da jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem de Estrasburgo, da jurisprudência
do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, da Carta Social Europeia do
Conselho da Europa de 1961, da Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais
dos Trabalhadores de 1989, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, entre outras. A Carta congrega 54
artigos, divididos em 6 capítulos: dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade,
cidadania, justiça.
Não existiu a pretensão de redigir uma Constituição Europeia, nem formular novos
direitos, tão pouco se fez tenção de transferir responsabilidades dos EMs para a
União
14
, o intento era aclarar a legislação existente. A Carta tem o propósito de
cer
tificar os direitos fundamentais individuais, de elucidar que as instituições europeias
e os EMs quando promovem e aplicam o direito da União, e também nas negociações
com países candidatos ou países terceiros, estão vinculados aos direitos fundamentais
dos cidadãos, reafirmar que a União Europeia sempre foi um espaço de valores e
direitos partilhados, e salvaguardar os cidadãos do abuso do poder por parte do Estado.
Houve, também, uma preocupação com os desafios actuais dando assim, relevância à
bioética, a protecção de dados ou o meio ambiente, a defesa do consumidor, e
alertando para a urgência em acabar com a descriminação em razão da raça, do sexo,
da cor ou da religião. Ela constitui um importante instrumento de auxílio de
interpretação para o Tribunal de Justiça Europeu na sua jurisprudência.
A Carta dos Direitos Fundamentais foi solenemente proclamada no dia 12 de Dezembro
de 2007, em Estrasburgo, pelos Presidentes das instituições europeias, não será
directamente incorporada no Tratado de Lisboa, mas adquire força jurídica vinculativa
nos termos do n1 do artigo 6.º do Tratado UE, que confere à Carta o mesmo valor
jurídico que é atribuído aos Tratados. Tal como se estabelece na própria Carta, esta
não alarga as competências da União previstas nos Tratados. Acresce à Carta um
protocolo introduzindo medidas específicas para o Reino Unido e a Polónia, as quais
prevêem excepções à natureza juridicamente vinculativa da Carta perante os tribunais
nacionais destes países. O Tratado de Lisboa vem confirmar a adesão da União à
Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem, cujos direitos
fundamentais passam a fazer parte integrante do ordenamento jurídico. A UE aderirá à
Convenção Europeia assim que o 14.º protocolo da CEPDH entrar em vigor, permitindo
que tanto Estados como organizações internacionais se tornem signatários da CEPDH.
13
Assinado em 29 de Outubro de 2004, não entrou em vigor.
14
A alteração de responsabilidades é um direito e uma função que assiste exclusivamente aos EMs, sob a
forma de alteração aos Tratados.
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Não obstante, o acto de adesão tem de ser ratificado por todos os Estados-Membros da
UE.
Com a Carta os líderes políticos europeus aspiraram passar uma mensagem de
comprometimento com os valores e com o direito para os cidadãos, para os países
candidatos ao espaço europeus, aos países vizinhos e à comunidade internacional em
geral. A Carta dos Direitos Fundamentais não vem conferir novas responsabilidades à
União, nem tão pouco obrigar os EMs a alterarem as suas Constituições, o seu
propósito é enfatizar o respeito pelos valores democráticos, pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais. Desta forma, apraz-nos afirmar que se trata de um
documento inspirador e de referência que espelha a liberdade e o respeito pela
democracia e pelos direitos fundamentais que se vive no seio da União. Como explica
Isabel Camisão, “… constitui um avanço na protecção dos direitos dos cidadãos
europeus…”, e tem a “… vantagem de permitir aos cidadãos europeus um maior
conhecimento e compreensão das garantias que lhe advêm da sua condição de
cidadãos da União.” (www.ieei.pt
, 22.12.09). Este documento é um sinal de que o
projecto de integração europeia empreendido ao longo dos últimos 50 anos foi
alicerçado desde o inicio em valores fundamentais.
3. A Iniciativa de cidadania europeia (ICE) – o artigo 11º, nº 4
15
A introdução da ICE, como referimos, demonstra a vontade plasmada no TL de uma
preocupação para o envolvimento cada vez maior dos cidadãos junto das instituições e,
neste caso, junto da Comissão Europeia especificamente, situação à qual a prática de
realização de consultas públicas à sociedade civil não conseguia responder da forma
mais eficiente
16
.
Pelo artigo 11º, 4 foi instituído um novo mecanismo de promoção da cidadania
activa da União. Por este artigo, um milhão, pelo menos, de cidadãos da União,
nacionais de um número significativo de Estados-Membros, pode tomar a iniciativa de
convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma
proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário
um acto jurídico da União para aplicar os Tratados. Os procedimentos e condições para
a apresentação de tal iniciativa são estabelecidos nos termos do primeiro parágrafo do
15
Para esclarecimento e uniformização, adoptamos a numeração indicada nas versões consolidadas dos
Tratados, publicada no Jornal Oficial da EU C115, de 9 de Maio de 2008, dado que a versão do Tratado
de Lisboa publicada em 17 de Dezembro de 2007, apresenta uma numeração distinta.
16
A Comissão Europeia desenvolveu um espaço electrónico dedicado exclusivamente à consulta da
sociedade civil sobre as temáticas em discussão na Agenda europeia, procurando obter o feedback
necessário dos cidadãos relativamente às mais diversas áreas. Desta forma pretende-se envolver
directamente os cidadãos nos processos de tomadas de decisão. Cf.
http://ec.europa.eu/yourvoice/consultations/index_en.htm.
Outro exemplo de boas práticas, foi a criação pela Comissão de diversos fora temáticos (também on-
line), nos quais os cidadãos podem colocar as suas questões e debater as problemáticas comuns aos
diversos EMs e procurar influenciar os processos de policy-making, bem como as negociação da União
com países terceiros em determinadas parcerias, os direitos dos cidadãos, etc. Como exemplo, podemos
falar do Fórum dos Cidadãos sobre Energia. O Fórum foi lançado pela Comissão em colaboração com
as associações nacionais e europeias dos consumidores, representantes dos EMs, representantes da
Comunidade da Energia, entre outras entidades e tem como principal objectivo proteger os interesses
dos consumidores na formulação das políticas e verificar o respeito pelos direitos dos consumidores na
sua implementação.
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25
artigo 24º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, mas que ainda
necessitarão de regulamentação
17
.
No entanto, apesar do estabelecimento desse mecanismo continuam a existir várias
questões de ordem prática que estão ainda em aberto e às quais têm de ser dadas
respostas rapidamente, para que esse mecanismo se torne efectivo e não deixe de ser
uma oportunidade perdida e letra morta do tratado. Por exemplo, o que se entende
exactamente por "número significativo" de países? Quantas assinaturas têm de vir de
cada um desses países? Qual a idade mínima dos participantes e a quem incumbe
verificar as assinaturas? Quem deve submeter no final a iniciativa? Será que a
Comissão está obrigada a responder ou a tomar a iniciativa? Ou, se concordar com a
pertinência do assunto apresentado, será que pode fazer alguma alteração ao pedido
submetido pelos cidadãos? Qual a real capacidade dos cidadãos de realizarem uma
ICE?
Alguns aspectos práticos da iniciativa de cidadania, como podemos verificar, têm ainda
de ser definidos, e a Comissão Europeia tem procurado reunir as informações e dados
necessários para regulamentar tal medida, de forma a definir regras e procedimentos
mínimos. Nesse sentido, e como a ICE deve estar regulamentada até ao final de 2010,
a Comissão lançou uma consulta pública
18
para recolher opiniões dos cidadãos antes de
ter
minar os seus trabalhos na matéria.
As principais questões que se pretendiam abordar no Livro Verde e na consulta blica
versaram pontos para definir questões práticas e concretas para a realização da ICE:
- mero mínimo de países da UE a que devem pertencer os signatários;
- mero mínimo de signatários por país;
- idade mínima dos signatários;
- aspectos formais e de redacção de uma iniciativa de cidadania;
- regras relativas à recolha, verificação e autenticação das assinaturas;
- prazo para a recolha das assinaturas;
- formas de registo oficial das iniciativas;
- regras em matéria de transparência e de financiamento (aplicáveis aos
organizadores);
- eventual prazo de resposta da Comissão;
- como proceder caso existam várias iniciativas sobre uma mesma questão.
Como podemos verificar, a capacidade e eficiência da ICE ainda não pode ser
efectivamente medida, já que ainda o pode ser aplicada nem sabemos se este
mecanismos se traduzi numa real forma de aproximação e envolvimento dos
cidadãos ao processo de policy making da União. De facto, a complexidade das
exigências para a realização e validade de uma ICE poderá ter um efeito
contraproducente, afastando mais uma vez os cidadãos e deixando a capacidade de
elaboração destes processos para associações e/ou movimentos sociais que, por vezes,
poderão estar mais centrados em atingir os seus objectivos específicos e relegando o
bem comum (e comunitário) da sociedade europeia para segundo plano.
17
A regulamentação da forma de procedimento da ICE deverá estar finalizada até ao final do ano de 2010,
para entrar em vigor em 2011.
18
Cf. Livro Verde sobre a ICE, da Comissão Europeia consulta pública realizada até 31 de Janeiro de
2010.
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Considerações finais
O clima europeu com a Estratégia de Lisboa renovada (Estratégia 2020) e o Tratado de
Lisboa trouxe a coesão social para o centro da agenda da política europeia. A cidadania
europeia é um elemento crucial de toda a estratégia, focando-se nos valores,
democracia representativa e sociedade civil. Mas antes de podermos avaliar a
importância da cidadania europeia e do seu verdadeiro impacto no processo de
integração e aprofundamento europeu, necessitamos saber se os cidadãos se sentem
efectivamente cidadãos da União e se desejam estar no meio desse processo. Ou seja,
se poderemos falar na capacidade de coesão que equivalha a uma identidade europeia.
É evidente que as divergências e as oposições de interesses subsistirão por longo
tempo nesta Europa de 27 Estados, como no interior das sociedades nacionais. A
Europa real é, pois, um grande e longo processo de aprendizagem e de experimentação
à escala continental, com todas as dificuldades e resistências que isso comporta (cf.
Ribeiro, 2009).
A capacidade de acesso à informação disponibilizada pelas instituições e organismos
europeus não implica uma equivalente adesão pelos cidadãos a essa mesma
informação nem a detenção de uma sociedade mais informada, pró-activa e
preocupada com a integração europeia. De facto, falar de cidadania europeia, implica
antes de mais, falar de cidadania nacional e na capacidade que as entidades de cada
país têm para formar cidadãos mais preocupados e envolvidos na vida em comunidade.
Neste sentido, as entidades de ensino superior têm um papel fundamental para a
formação de jovens cidadãos interessados em participar no processo de decisão que
influenciará a nossa vivência em sociedade. A criação de espaços onde os jovens
possam esclarecer as suas vidas e conhecer melhor a união europeia à qual
pertencem e a qual se tornou no espaço por excelência da sua empregabilidade,
competitividade, mas também de concorrência natural. Só através da aposta numa
formação centrada em valores como a cidadania, o voluntariado e a responsabilidade
poderemos esperar que os cidadãos contribuam de uma forma mais activa no processo
de aprofundamento europeu. Ou seja, a aproximação dos cidadãos do processo de
integração fundamenta-se na cidadania activa e na capacidade dos Estados em
promover e reforçar a importância do seu capital social. Tal como Robert Putman
afirma, a cidadania activa está fortemente relacionada com o "envolvimento cívico" que
desempenha um papel crucial na formação do capital social. Ou seja, a busca de
objectivos comuns fornece uma maneira para as pessoas experienciarem a
"reciprocidade" e, assim, ajuda a criar redes apoiadas em valores partilhados. Os veis
elevados resultantes da confiança social promovem uma maior cooperação entre as
pessoas e reduzem as oportunidades de um comportamento anti-social (Putnam,
2000).
O futuro da discussão sobre esta temática passa pelo destaque da importância em
adoptar um processo baseado numa orientação reflexiva para o estudo da cidadania
europeia, ou seja, em vez de procurar estabelecer a primazia de um determinado nível
de cidadania, padronizados consciente ou insconscientemente por influências
ideológicas (cf. Kostakopoulou, Set. 2007), o mais importante será tomar como base o
pressuposto de que a UE e as cidadanias nacionais são interdependentes, examinando
a sua interacção e transformação gradual.
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Com o Tratado de Lisboa, demonstra-se a vontade de transformar uma Europa baseada
na economia para uma Europa dos Cidadãos, uma Europa Social, que procura
transmitir o sentimento de pertença a uma entidade supranacional. De facto, a
cidadania europeia fez repensar o “impossível”, procurando um novo modelo que
conceda aos cidadãos formas de combate à discriminação, à exclusão e à incapacidade
de alcançar a empregabilidade e a estabilidade pessoal e colectiva. Talvez seja este o
caminho para redefinir o conceito de cidadania e responder, simultaneamente, aos
problemas que se enfrentam actualmente, tornando a UE num espaço mais competitivo
e líder ao nível da formação e da cidadania.
Se o principal objectivo da cidadania europeia, enquanto conceito supranacional, é
reforçar a protecção dos direitos e dos interesses dos cidadãos dos Estados-Membros
ao mesmo tempo que pretende reforçar e consolidar a identidade da Europa, criando
um conjunto de direitos e deveres que permita uma maior participação dos cidadãos
europeus no processo de integração, designadamente o direito de residência como um
direito fundamental, incluindo também a participação política dos cidadãos, a protecção
diplomática e consular, o direito de petição, entre outros, a necessidade de se efectivar
e difundir esse sentimento de pertença a uma mesma comunidade torna-se no ponto-
chave do debate sobre esta problemática, procurando identificar metodologias para o
reforço dessa mesma cidadania supranacional.
A cidadania europeia poderá ser reforçada depois do reforço da cidadania nacional
em cada EM, através da formação de cidadãos mais informados e preocupados com a
comunidade onde se inserem, ou seja, através da formação “… all young people acquire
the competencies required for personal autonomy and for citizenship, to enter the
world of work and social life, with a view to respecting their identity, openness to the
world and social and cultural diversity. (UNESCO, 2004, p. 3).
Nesse sentido, caminhamos para a necessidade de implementação dos mecanismos
previstos nos Tratados. De facto, após a votação do Parlamento Europeu em Dezembro
de 2010, o Conselho adoptou a 15 de Fevereiro de 2011 o regulamento sobre a
iniciativa de cidadania europeia. Assim, a iniciativa de cidadania europeia estará
operacional a partir de finais de Março de 2012.
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A DISPUTA DO ESPAÇO PELA EUROPA – UM NOVO DESAFIO
Ana Baltazar
Major da Força Aérea Portuguesa e Professora no Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM).
Pós-Graduações: conducente a Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra na Novas Relações
Internacionais (UAL); e em Gestão de Projecto (Universidade Católica Portuguesa). Concluiu o Curso
Geral de Guerra Aérea (IESM) e o Curso de Estado-Maior Conjunto (IESM). Tem desempenhado
funções de Adjunta para a Logística no Estado-Maior da Força Aérea, Gestora do Programa
de Aquisição de Aeronaves de Instrução. Foi representante da Força Aérea Portuguesa
na OGMA, SA e Planeadora da modificação das aeronaves F-16.
Resumo
Neste artigo estuda-se o desafio da exploração do Espaço pela Europa. Em concreto,
apresentam-se, inicialmente, alguns conceitos técnicos associados à exploração do Espaço
e os conceitos fundamentais à compreensão das Relações Internacionais em particular a
Astropolítica - num meio que alguns pretendem pacífico, mas onde a competição e a
cooperação caminham lado a lado e onde as capacidades militares e civis, por vezes, se
confundem.
De facto, o Espaço, se por um lado, tem características específicas recursos naturais,
recursos artificiais (por exemplo, satélites), dimensão, abrangência relativamente à Terra -
que o tornam alvo de disputa comercial e militar, podendo tornar inevitável uma escalada
ao armamento espacial; por outro, existe a necessidade de acordos e cooperação para que
seja possível desenvolver um tipo de tecnologia extremamente complexa e que requer
recursos humanos, materiais e financeiros avultados.
Quer se associe a capacidades espaciais militares, quer a capacidades espaciais civis,
constata-se que a dependência hoje existente desses meios origina a necessidade de
garantir a sua segurança. O controlo deste meio - tal como dos meios marítimos, terrestres
e aéreos - pode ser essencial para garantir, primeiro, a Segurança Nacional e,
consequentemente, a Segurança Internacional. A forma como a União Europeia o faz, ou
poderá fazer, faz parte do estudo neste ensaio. Para tal é necessário conhecer as
capacidades espaciais europeias, as suas políticas e as suas estratégias.
No final deste ensaio responde-se à pergunta: De que forma a exploração espacial
europeia interfere na Segurança Internacional?.
Pa
lavras-chave
Competição; Cooperação; Espaço; Segurança; União Europeia
Como citar este artigo
Baltazar, Ana (2011). "A disputa do espaço pela Europa um novo desafio”. JANUS.NET e-
journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em
data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art3.
Arti
go recebido em Abril de 2010 e aceite para publicação em Maio de 2011
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A disputa do espaço pela Europa – um novo desafio
Ana Baltazar
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A DISPUTA DO ESPAÇO PELA EUROPA – UM NOVO DESAFIO
Ana Baltazar
Introdução
Este artigo faz parte de uma tese de mestrado, realizada em 2009, com o mesmo tulo
e d
o mesmo autor. Nessa tese, para além do estudo da União Europeia (UE),
estudaram-se as políticas espaciais e as capacidades espaciais dos países com maior
relevo no desenvolvimento de tecnologia espacial, são eles: a China, a ssia e os
Estados Unidos da América (EUA). Ainda nessa tese, desenvolveram-se, em detalhe, os
conceitos cnicos associados ao tema, nomeadamente, o conceito de astropolítica,
força e poder espacial, duplo-uso e ameaça.
“A Disputa do Espaço pela Europa Um Novo Desafio“ induz à reflexão porque é um
facto que as sociedades modernas estão hoje dependentes dos meios espaciais e das
suas aplicações. Cada vez mais, mais países a colocarem satélites em órbita e cada
vez mais, mais países a terem satélites fabricados e lançados por terceiros. Esses
satélites, genericamente, servem multifunções civis e militares que podem ir desde a
facilitação nas comunicações e previsão meteorológica, até à obtenção de informações
precisas para navegação. Derivado desta tomada de consciência - da dependência de
meios - tornou-se necessário, principalmente, para as maiores potências, pensar na
segurança do Espaço. Nos últimos conflitos os meios espaciais têm tido uma enorme
influência nas operações militares. Esta influência sente-se essencialmente ao vel do
tempo de decisão e de resposta militar, tornando tudo – decisões/acções - mais rápido.
Tipicamente, em conflito, os meios espaciais disponíveis são inúmeros e bastante
variados, destacam-se: sistemas de previsão meteorológica; sistemas de comunicações
militares; satélites de vigilância; satélites de posicionamento de armas e lançamento de
mísseis; sistemas de posicionamento; entre outros. Para as Forças Armadas, os
satélites são multiplicadores de força e são ferramentas essenciais ao serviço do
“Comando, Controlo, Comunicações, Computadores, Informações, Vigilância e
Reconhecimento” (C
4
ISR).
Com
o se verá ao longo deste artigo, ter capacidades traz poder e ter poder traz
capacidade de influenciar as decisões na cena internacional. Mas ter meios e não ter a
capacidade de os defender pode-se traduzir numa vulnerabilidade extrema. Desta
forma, os meios espaciais ganham importância estratégica ao poderem, por um lado,
facultar informação essencial e única, por outro, colocar em risco a Segurança
Nacional.
Assim, o assunto Espaço tem uma dimensão civil (ligada aos diversos vectores da
segurança mundial, ao bem estar das populações, à evolução científica da humanidade)
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e uma dimensão militar (que apoio à Defesa e suporta um elevado número de
acções militares) que, por vezes, se fundem na questão do duplo uso.
É essencialmente em torno destes pontos que se aborda o tema “A disputa do Espaço
pela Europa Um novo desafio”. Este desafio, para a Europa, é analisado em
termos de oportunidades/vantagens aos vários veis: Económico, Militar e Político.
Salienta-se que este artigo incide sobretudo na UE como um todo, sendo as suas
políticas a prevalecer, enquadradas pela Política Externa e de Segurança Comum
(PESC), e não as políticas individuais de cada país europeu. No estudo das capacidades
da UE, desenvolve-se uma matriz SWOT - ferramenta de gestão cujas letras
significam Strength (força), Weakness (fraqueza), Opportunities (oportunidades) e
Threats (ameaças).
Para elaboração deste artigo adoptou-se o método de investigação em Ciências Sociais
proposto por Luc Van Champenhoudt e Raymond Quivy (Quivy, 2005). Toda a reflexão
vertida neste artigo vai no sentido de procurar responder à Pergunta de Partida
: De
que forma a exploração espacial europeia interfere na Segurança
Internacional?
1. O Espaço
a. Definição de Espaço
Definir ou delimitar os meios mar e terra ou mesmo o meio aéreo em relação aos
outros dois - terá sido simples na medida em que a separação, entre uns e outros, é
fisicamente visível. No caso do meio Espaço, a situação tem outros contornos, de tal
forma que, na comunidade internacional, ainda não se reuniu consenso para a definição
de espaço exterior (ou espaço sideral). Este facto prende-se, principalmente, com o
não se conseguir definir a fronteira física entre espaço reo e espaço exterior.
Contudo, é importante ter um conceito internacionalmente reconhecido na medida em
que se colocam questões relacionadas, não com a segurança, mas principalmente
com a soberania dos países.
Neste artigo adopta-se, para a definição de Espaço, aquela que embora não esteja
formalmente aceite
1
é a que reúne maior consenso na comunidade científica, tendo
sid
o desenvolvida, em 1957, por Von Karman (Chun, 2006: 14): o Espaço começa a
uma altitude de 100km (já na Termosfera) acima da superfície da Terra. Assim, é
acima da linha de Von Karman que se começam a definir os diversos tipos de órbitas,
que se designam por (Dolman, 2006: 65): LEO (Low Earth Orbit), MEO (Medium Earth
Orbit), HAO (High Altitude Orbit) e HEO (Highly elliptical Orbit).
O conhecimento das órbitas e da mecânica orbital são vitais, uma vez que os objectos,
depois de colocados em órbitas estáveis, não necessitam, praticamente, de combustível
ou energia para se manterem (apenas precisam de alguma energia para corrigir a
órbita em relação a algumas perturbações).
1
A dúvida favorece uma certa flexibilidade política e legal no que concerne ao sobrevoo de objectos
espaciais no espaço aéreo (ou não) de uma outra Nação.
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b. Objectos no Espaço
Como atrás se mencionou, embora se esteja numa fase embrionária do conhecimento
das potencialidades espaciais, existem inúmeras formas de exploração do mesmo e
se faz uso de informação preciosa que é conseguida através de meios colocados no
Espaço. Essa informação é obtida através de diversos tipos de equipamentos que
podem ir desde os satélites, às sondas ou às estações espaciais tripuladas.
Relativamente aos satélites, poder-se-á dizer que são um qualquer objecto que esteja
na órbita da Terra ou de qualquer outro planeta. Os satélites podem ser de dois tipos:
os naturais e os artificiais. Os primeiros o corpos celestes, onde a Lua é o mais
conhecido; os segundos são corpos fabricados e colocados em órbita pelo Homem. De
uma forma genérica, um satélite artificial é um veículo de transferência de informação.
Em 31 de Dezembro de 2007, estavam identificados, como estando em órbita, 3.208
2
sat
élites, de variadíssimos países (Portugal tem apenas um totalmente seu, lançado em
1993, actualmente inoperativo), sendo a Rússia aquela que maior número possui
(42%) logo seguida dos EUA (31%). A Europa apenas detém 7% dos satélites
(MEHURON, 2009: 60).
As sondas (num total de 119) são naves espaciais não tripuladas, com a finalidade de
explorar, por exemplo, outros planetas. Neste caso são os EUA que têm em maior
número (51%), seguidos da Rússia (com 29%) e da Europa com 7% (MEHURON, 2009:
60).
As estações espaciais são estruturas que foram transportadas para o Espaço, por
outros meios, sendo concebidas para terem seres humanos a bordo. Foi a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, nos anos 70, o primeiro país a desenvolver este tipo
de programas, nomeadamente, através do Salyut. Actualmente, e desde Outubro de
2000, existe no Espaço a Estação Espacial Internacional que, em 15 Junho de 2010,
cumpriu a sua vigésima quarta expedição (a bordo com um russo e dois norte-
americanos).
Para além dos objectos atrás abordados, existe também, em grande mero
(identificados cerca de 30.342 objectos
3
), o lixo espacial.
Estes objectos são de
capital importância, na medida em que podem provocar sérios danos nos satélites em
órbita, nas estações orbitais e nos próprios astronautas. Uma das formas possíveis dos
satélites se protegerem, em parte, do lixo espacial é através de blindagens protectoras,
contudo estas medidas tornam os satélites mais pesados e com maior custo.
c. Tratados
Do ponto de vista jurídico, o Espaço, em contraste com o espaço reo, é aberto a
todos (Couteau-Begarie, 2003: 865).
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem vindo a desenvolver um trabalho intenso,
em termos de legislação enquadrante, para as questões relacionadas com a utilização
do Espaço, com particular ênfase na tentativa da não militarização do meio. O Comité
para a Utilização Pacifica do Espaço Exterior, com sede em Viena, é o único fórum para
2
Não estando, necessariamente, todos operacionais.
3
SATCAT Boxscorehttp://www.celestrak.com/satcat/boxscore.asp (consultado em 8 deJunho de 2010).
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o desenvolvimento dessa legislação. Desde a sua criação, concluiu cinco
instrumentos legais e cinco conjuntos de princípios que regulam uma série de regras
relativas, por exemplo, à apropriação do espaço exterior e às actividades de controlo de
armas (UNOOSA, 2007). De uma forma geral, em todos eles, promove-se o conceito de
que a investigação e as actividades no Espaço, ou do Espaço, devem ser realizadas em
colaboração com outras nações e com a perspectiva de bem-estar geral.
O Tratado para o Espaço Exterior (TEE) é o primeiro tratado a servir de referência para
a análise jurídica das actividades espaciais. Este estabelece os princípios jurídicos
fundamentais e as proibições relevantes para o Espaço. Nos seus dois primeiros artigos
é definida a estrutura básica, declarando que as nações possuem a liberdade de
investigação científica no espaço exterior e que o Espaço e os objectos exteriores
celestes (como a Lua) não são propriedade. Os artigos 3º e 4º praticamente restringem
as actividades militares espaciais. No mesmo tratado legisla-se que a Lua e os outros
corpos celestes podem ser utilizados para fins pacíficos, não podendo ser equipados
com bases militares ou usados para testar armas. Contudo, poderão ser usados para
pesquisa científica ou na exploração pacífica (UNOOSA, 2002).
d. Astropolítica
A Astropolítica é conceito relativamente recente que relaciona o espaço exterior e a
tec
nologia que lhe está associada, com o desenvolvimento de orientações políticas,
militares e estratégicas (Dolman, 2006: 15).
Neste artigo, considera-se o modelo astropolítico do estratega militar, norte-americano,
Everette C. Dolman. Para ele, a Astropolítica é a grande estratégia que não se resume
apenas à aplicação da força militar, inclui também a diplomacia, a propaganda, as
operações secretas, a informação e as transacções económicas (Dolman, 2006: 146). A
Terra reduz-se a um único componente de uma abordagem total, que, embora
importante, em alguns casos é apenas um componente periférico (Dolman, 2006: 1)
com características astropolíticas importantes (Dolman, 2006: 61): a sua massa, órbita
e interacções com outros fenómenos. Para Dolman, a humanidade está a entrar na era
em que a tecnologia, as comunicações, a inovação e a exploração do espaço exterior
são as estradas para a prosperidade e para a abundância. A sua tese é uma
aproximação realista que maximiza a prospecção e a exploração espacial em prol de
todos, invertendo a corrente internacional de desconfiança na exploração espacial
(Dolman, 2006: 183).
Este autor defende também que a militarização do Espaço através de uma força militar
capaz de manter o controlo efectivo do mesmo, reconhecida, não arbitrária e eficiente,
poderá, por um lado, pelo efeito de desencorajamento, evitar a corrida ao armamento
espacial; por outro, como os programas espaciais militares são a coluna vertebral de
muitas operações espaciais civis (por exemplo, capacidade de lançamento), resultar em
vantagens económicas em áreas como as telecomunicações, a navegação e os satélites
meteorológicos (Dolman, 2006: 162). No seu modelo considera que a Astropolítica se
divide em quatro regiões astropolíticas que se inter-relacionam (Dolman, 2006: 69): a
Terra, o espaço terrestre, o espaço lunar e o espaço solar.
No modelo proposto por Dolman pode-se, no futuro, configurar uma relação de forças
na busca da preponderância mundial. Os que forem capazes de controlar as regiões
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astropolíticas, poderão utilizar formas de coacção do tipo económica, relevantes em
áreas referentes, por exemplo, às rotas comerciais ou ao controlo de recursos; ou do
tipo militar, relativamente a operações na Terra. Nos conflitos mais recentes, ter o
controlo de satélites de comunicações, observação e localização permitiu aos norte-
americanos e seus aliados terem vantagem nas operações levadas a cabo.
2. A Europa
a. Estratégia da Europa para o Espaço
A Europa reconhece que o Espaço tem uma dimensão estratégica importante (ESDA,
200
8). Em particular, os meios espaciais são centros de gravidade militares e, como
tal, deverão ser protegidos, na medida em que se tornam potenciais alvos. Um ataque
ao sistema espacial de um país poderá tornar as suas Forças Armadas cegas, surdas e
mudas. Mas, na verdade, a UE não está em condições nem provavelmente tem
interesse - de ser militarmente predominante no Espaço. Desta forma, a
armamentização o será uma opção viável, quer pelos custos associados, quer pela
controvérsia que geraria internamente. Assim, e podendo-se tornar tima da
armamentização de outros países, o Council of the European Uniontornou público, a
3 de Dezembro de 2008, um rascunho sobre o código de conduta para o Espaço
(General Secretariat, 2008) que pretende levar a outras nações do mundo. No
essencial, a UE pretende deixar o Espaço livre de armas, tornando-se pioneira nesta
forma de abordar a questão. Também, neste documento, se menciona a importância do
desenvolvimento de tecnologia espacial na evolução da economia, das sociedades e da
cultura das nações. Contudo, reconhece-se que as capacidades espaciais são vitais para
a Segurança Nacional e para a manutenção da paz e da Segurança Internacional.
Assim, apela-se aos acordos internacionais para, entre outros: influenciar o uso pacífico
e seguro do Espaço onde se definam as regras - desde que para fins pacíficos - para a
liberdade de acesso ao Espaço; e preservar a segurança e a integridade dos objectos
espaciais em órbita.
Este passo europeu é uma forma de demonstrar que a Europa é um actor estratégico,
significativo, nas questões do Espaço. Espera-se que seja uma opção viável, mas o
será se as grandes potências espaciais o aceitarem o que, certamente, não será fácil de
acontecer. Este código pretende, entre outras coisas, regular os testes anti-satélites e a
produção de lixo espacial.
b. Capacidade espacial europeia
Actualmente, dos 376 satélites comerciais operacionais em órbita, a França foi
res
ponsável pelo lançamento de 122 (Figura A), ou seja, 32% (33% foram lançados
através dos russos e 24% dos norte-americanos). De acordo com a Figura A, pode-se
observar que também se efectuaram alguns lançamentos relacionados com satélites
militares (11%) e governamentais (10%). Estes lançamentos - na sua maioria (89%)
para a GEO - foram efectuados no Guiana Space Centre, através de vários tipos de
lançadores Ariane.
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Figura A – Satélites lançados pela França
Fon
te: (UCS, 2009)
No que diz respeito aos satélites que pertencem a países da UE - não necessariamente
lançados ou produzidos por estes - existem actualmente operacionais 114 satélites de
um total de 888. Esses satélites estão, a maior parte, em órbitas LEO (43,9%) e GEO
(45,6%) uma pequena minoria nas MEO (2,6%) e na HEO (7,9%) (Figura B).
Figura B – Satélites europeus lançados, por classe de órbit
a
Fonte: (UCS, 2009)
Da
Figura C constata-se que, de uma maneira genérica, é a partir de 1999 que se o
salto para outro tipo de satélites que não os quase exclusivamente comerciais. Os
satélites operacionais inteiramente comerciais continuam a ser em maior número
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(42%), contudo verifica-se, a partir daquela data, uma maior diversidade de
aplicações, destacando-se os 21% inteiramente militares pertencentes, essencialmente,
ao Reino Unido, à França e à Alemanha (para comunicações, vigilância, reconhecimento
e ELINT).
Figura C – Satélites europeus lançados, por tipo de utilizadores
Fonte: (UCS, 2009)
Dess
es 114 satélites operacionais europeus, apenas 15 (entre 1990 e 2009) são da
European Space Agency (ESA) ou em parceria (um de pesquisa lançado na HEO com a
China, um científico lançado na LEO com os EUA e um de física espacial lançado na HEO
com os EUA e a ssia). Como se observa na Figura D são satélites essencialmente
governamentais e nenhum militar.
Figura D – Satélites pertencentes à ESA
Fonte: (UCS, 2009)
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Da análise realizada às capacidades espaciais europeias, observa-se que existe
duplicação de esforços entre os países europeus, havendo mesmo os que têm políticas
de desenvolvimento de meios autónomos, levando à duplicação, em algumas áreas,
particularmente nos satélites de observação e de comunicações.
c. Análise SWOT
Neste parágrafo, elabora-se uma análise SWOT relativamente à tecnologia espacial da
UE.
Esta análise deriva, não do exposto nos parágrafos anteriores, mas também da
tese que deu origem a este artigo.
1) Forças
Ambição política:
Em ganhar e manter acesso independente ao Espaço
Ter influência na cena internacional espacial
Parcerias EDA/ESA
Vasta gama de programas, com o associado domínio de altas tecnologias:
Científicos
Meteorológicos
Navegação (Galileo)
Ambientais (Global Monitoring and Environmental Security - GMES)
Estação de lançamento própria na Guiana Francesa
Competitiva no sector comercial
Capacidade de monitorização meteorológica e de controlo ambiental
Indústria espacial
2) Fraquezas
Assimetria de capacidades entre os diferentes países (França e Alemanha
destacam-se)
Não possuem capacidade de efectuarem missões espaciais tripuladas
Pouco competitivos no sector de lançamentos
Falta de identidade europeia
Ausência de doutrina de Segurança Europeia para o Espaço
Países europeus com programas espaciais autónomos
Diversidade e divergência de interesses a interferirem na decisão de projectos
comuns (por exemplo, nos mecanismos de early-warning)
Capacidade económica/investimento
Aceitabilidade pública em investimentos associados a programas espaciais de
duplo uso
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3) Oportunidades
Afirmação internacional:
Prestígio
Credibilidade
Intervenção nas decisões políticas mundiais
Controlo das capacidades dos outros países através da cooperação com esses
Desenvolvimento tecnológico e económico
Tecnologias de duplo uso
Complementaridade de capacidades e informação
Projecto Galileo
Parcerias através de:
Partilha de custos
Partilha de conhecimento
Partilha de informação
Estimular a economia global
Emprego no sector espacial
4) Ameaças
Duplo uso pela dificuldade de controlo
Dependência tecnológica de terceiros
Dependência no acesso à informação
Desconhecimento das intenções de alguns actores
Armamento com capacidade de destruição de meios espaciais
Lixo espacial
Transferência de conhecimento para potenciais adversários comerciais ou
políticos
Dificuldade de entendimento mundial sobre os mecanismos de early-warning
China, Rússia e EUA a vel comercial (competição) e de segurança
(possibilidade de controlo e destruição de capacidades espaciais)
Da análise SWOT conclui-se que ter Poder Espacial, ou seja, ter meios espaciais que
multipliquem as forças existentes, permitirá à UE ter a capacidade de influenciar outros
actores da cena internacional, nomeadamente em questões tão importantes como a
regulamentação das actividades espaciais. Para além disso, ter Poder Espacial poderá
tornar a Europa um centro de gravidade capaz de atrair grandes parceiros para
cooperação, aumentando as capacidades e a viabilidade de novos projectos.
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A Europa para enfrentar desafios que envolvam o Espaço poderá combinar vários
elementos que lhe garantam vantagens diplomáticas, económicas, militares e culturais.
Designadamente: ter acesso ao Espaço, ser competitivo, ter sistemas globais de
navegação, ter capacidade de exploração do Espaço, ter capacidade científica espacial e
ter capacidade de gestão de tráfego espacial. Relativamente à segurança há, de facto,
dois tipos de ameaças possíveis: por um lado, a não intencional (incidentes e acidentes
através, por exemplo, de lixo espacial); por outro, o armamento espacial. A UE, ao
desenvolver as suas capacidades e potencialidades espaciais pode e deve ter influência
na discussão das políticas espaciais internacionais de forma a garantir um meio pacífico
no Espaço.
3. A Disputa do Espaço
a. O desafio Europeu
O estudo do desafio espacial para a UE pode ser abordado sobre diversas perspectivas:
a m
ilitar, a económica e a política.
Perspectiva militar
Garantir que os sistemas espaciais militares existentes estão seguros e que servem as
necessidades não é um objectivo, cem por cento, tangível, mas é definitivamente um
desafio face à sua importância e relevância. Ainda para mais, quando a ameaça é
imprevisível dada a variedade de situações que podem conduzir à danificação ou perda
desses sistemas. O que pode ajudar a evitar ou a controlar estas situações, passará por
ter sistemas de early-warning capazes de detectar qualquer ameaça. É necessário
também ter a capacidade de garantir que se têm alternativas caso aconteça, por
exemplo, um “apagão” nos sistemas que são utilizados pelas forças militares.
Numa perspectiva militar a UE deverá promover a cooperação, na medida do possível,
no desenvolvimento de tecnologia espacial militar. A cooperação interna permite
reduzir os custos e a externa permite, para além dessa redução, a partilha de
tecnologia e o conhecimento daquilo que os outros – por vezes, adversários ou
competidores - estão a desenvolver. Assim, numa organização onde não interesse
em promover conflitos, é com a cooperação militar que, de certa forma, se podem
controlar os outros actores. Esta postura, bem coordenada, poderá servir os interesses
da UE na sua política de segurança e defesa materializada na PESD, nas missões que
esta desenvolve, em particular nos conflitos fora de área em que o suporte dos meios
espaciais é determinante para o cumprimento da missão, destacando-se o suporte ao
C
4
ISR.
Pers
pectiva económica
A abordagem da UE é mais orientada para o mercado. A tecnologia espacial tem um
papel chave no desenvolvimento da economia nacional e, por isso, deverá fazer parte
da ambição da União. Como abordado, os programas espaciais levam ao
desenvolvimento tecnológico, por sua vez a tecnologia leva à industrialização e a
industrialização leva ao desenvolvimento económico. Tornar o sector espacial
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competitivo é um objectivo da UE e de alguns países que a constituem. Isso consegue-
se recorrendo, como observado anteriormente, a cooperações com outros países, mas,
dever-se-ão procurar, na medida do possível, nichos de mercado onde se seja capaz de
fazer a diferença.
É também importante garantir orçamentos que suportem projectos complexos e ter o
acordo dos rios países da UE. Assim, esta organização deve procurar projectos que
sejam necessários à organização e que sejam exequíveis no prazo e com os custos
estabelecidos de início. Este é um desafio que se prende, também, com a credibilidade
da organização no sistema internacional.
Pers
pectiva política
O primeiro desafio político que se coloca à UE é o de integrar as políticas individuais de
cada Nação, produzindo um projecto político espacial comum - aceite e seguido por
todos - sem projectos individuais paralelos. De facto, as tendências actuais seguem
duas vias: por um lado, a política espacial é nacional, ou seja, está associada à política
de cada país, sendo a política de defesa ainda mais nacionalista; por outro, as
tecnologias espaciais civis têm vindo a ser desenvolvidas segundo uma aproximação
europeia comum, onde a ESA tem tido um papel preponderante ao chamar a si grande
parte dos projectos desde a sua coordenação à sua produção. Obter uma política
espacial comum europeia civil e militar - permitirá aumentar as capacidades globais
europeias; partilhar custos e eliminar ou evitar sistemas espaciais em duplicado (o
mesmo tipo de função mas pertencentes a países europeus diferentes). Para além
disso, o contributo dos diversos países europeus com diferentes conhecimentos e
áreas de interesse aumenta o contributo global levando a que se possa desenvolver
mais e melhor. Em resultado disso, a UE pode diminuir a sua dependência
relativamente a outros actores. O caso do sistema Galileo é disso um exemplo, ou seja,
desenvolve-se uma nova capacidade europeia que libertará os europeus da
dependência do sistema norte-americano Global Positioning System (GPS).
Depois é necessário identificar o que é essencial e quais são as capacidades mínimas
que a UE considera dever ter no Espaço para questões de segurança e defesa. Sem
dúvida que a UE tem de ter capacidade independente, pelo menos para comunicar,
observar, localizar, obter informações e early-warning. As tecnologias espaciais são
para ser consideradas um meio de suporte político decisivo da cena internacional, onde
o investimento em tecnologia pode significar capacidade independente de decisão e
controlo.
b. A Segurança Internacional
Neste artigo tem vindo a demonstrar-se que as necessidades de segurança espacial
est
ão ligadas ao processo tecnológico espacial. Se por um lado, os meios espaciais
devem ser utilizados para proteger as populações, os seus diversos recursos e os
diferentes territórios, por outro, servem também para manter as próprias estruturas
tecnológicas (as baseadas na Terra e no Espaço). Estes sistemas oferecem soluções
extremamente versáteis numa dimensão internacional. As sociedades dependem hoje,
aos vários níveis, dessas soluções o que torna a sua protecção uma questão de
Segurança Nacional ou, no caso europeu, de Segurança Europeia. De facto, o sector
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espacial ajuda a definir o conceito de segurança da UE, não no que contribui para a
segurança dos cidadãos, mas também para o rumo que se quer dar no
desenvolvimento de tecnologia.
A UE nos seus documentos sobre tecnologia espacial toma uma abordagem mais
orientada para o meio civil e menos para o meio militar. A própria ESA tem, no seu
preâmbulo, que a sua missão tem fins pacíficos. E a política europeia de segurança
assenta no princípio de “ajudar na segurança e defender a estabilidade” que está, por
seu lado, em sintonia com a orientação política de não agressividade no uso de
tecnologia. Contudo, o programas como o GMES, relacionados primeiramente com a
segurança em geral dos cidadãos, que aproximam a política espacial europeia na sua
vertente civil à defesa europeia. Este tipo de desenvolvimento mostra como as novas
tecnologias espaciais representam um novo passo no processo político onde, para além
de se aumentarem as capacidades, fomenta-se um projecto político comum.
É certo que os governos europeus necessitam de novas capacidades militares para
cumprir todos os objectivos da PESD, nomeadamente para responder às missões de
Petersberg. A tecnologia espacial poderá ser uma forma de o conseguir sem ter que
desenvolver grandes capacidades, ou seja, sem ter que investir.
Relativamente à tecnologia espacial surgem, à UE, três cenários possíveis de actuação:
primeiro, pode tornar-se uma participante activa na corrida ao armamento; segundo,
pode comportar-se como um actor passivo, ou seja, uma figurante sem qualquer
interferência no desenrolar dos acontecimentos; ou pode, como terceiro cenário,
tornar-se uma protagonista no desenvolvimento tecnológico espacial e no
desenvolvimento de normativos que advoguem a prevenção. Aparentemente, parece
ser este último o cenário escolhido, na medida em que se tem feito um esforço em
desenvolver acordos internacionais que regulem as actividades no Espaço. O código de
conduta, por exemplo, é importante na medida em que pode incentivar à cooperação
internacional, ao crescimento económico, à exploração e, ao mesmo tempo, pode
diminuir o risco de incidente tornando esse meio mais seguro. o existindo este tipo
de regulamentação, aumenta a possibilidade de existir armamento espacial, os satélites
ficam em maior risco e o lixo espacial aumenta. Este tipo de acordo pode ainda facilitar
o controlo de material de duplo uso. São climas de desconhecimento de capacidades e
de desconfiança relativamente às intenções dos Estados que pode tornar inevitável a
escalada ao armamento.
Contudo, o que será de todo aconselhável é que os europeus mostrem
internacionalmente que têm uma posição e uma identidade no que diz respeito à
segurança espacial, em sintonia com os seus valores, objectivos e políticas. Mas é
também essencial que o papel que tiverem seja guiado pelas intenções expressas na
Estratégia de Segurança Europeia, ou seja, baseado no multiculturalismo, na
cooperação, na diplomacia, na combinação entre meios militares e civis e na promoção
de Estados de Direito.
De facto, a UE ao longo dos últimos anos tem tido um pensamento sério e
independente sobre a segurança espacial. Esta preocupação advém de uma consciência
de que, para já, não tem capacidade para se tornar predominante, em termos
militares, no Espaço e, provavelmente, não terá, sequer, essa intenção. Contudo, isso
não significa que não tenha meios militares no Espaço, pois alguns países europeus
desenvolveram satélites militares (de observação, de telecomunicações, entre outros),
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na certeza porém de que as armas espaciais não fazem parte da estratégia da União.
Uma estratégia que levasse à armamentização seria demasiado radical para se
desenvolver a nível nacional e demasiado delicada para se desenvolver em cooperação.
De uma forma geral parece prudente proteger os meios, bem como travar a
propagação de qualquer tecnologia que possa ser potencialmente uma ameaça para os
meios espaciais. Qualquer tipo de tecnologia que seja desenvolvida para atacar meios
espaciais é extremamente prejudicial para a UE ao poder destruir satélites civis e
militares. Mas o desenvolvimento de capacidades espaciais alternativas às
existentes, principalmente norte-americanas, é outro contributo para a segurança que
deverá ser explorado pela UE.
Em suma, e respondendo à questão de partida De que forma a exploração espacial
europeia interfere na Segurança Internacional?sugere-se a leitura do esquema
da Figura E que procura sistematizar um conjunto de reflexões trazidas através deste
artigo. Considera-se que o objectivo (alvo) a atingir é manter o Espaço seguro, sendo
que segurança (no centro do alvo) pressupõe que não haja a possibilidade de haver
armamento espacial e a ameaça do lixo espacial seja reduzida. Assim, e da análise
realizada anteriormente, sugere-se que a estratégia (seta) da UE, para a segurança
espacial europeia e internacional, tenha um trajecto influenciado pelas seguintes linhas
de orientação:
Desenvolvimento de propostas europeias de acordos internacionais, em formato
de Tratado, Convenções e/ou Códigos de Conduta que, essencialmente, favoreçam
a clareza das actividades espaciais, promovam o controlo do lixo espacial e
favoreçam as parcerias;
Identificação de uma política espacial comum aceite pelos diferentes países da
UE que levará a uma identificação clara de quais são as capacidades que se
pretendem desenvolver e em que moldes;
Estabelecimento do maior número de parcerias possíveis, com outros países e a
organizações (NATO), que possam contribuir para o aumento de conhecimento
tecnológico e, mesmo contribuir para o conhecimento das capacidades de parceiros
(pode diminuir o risco de agendas escondidas);
Desenvolvimento de esforços no sentido das nações financiarem os projectos que se
considerarem essenciais para a Segurança da União e, consequentemente, da
Segurança Internacional.
As quatro linhas de orientação devem, em conjunto, dar a robustez técnica que a UE
necessita para, primeiro, poder ser independente, em termos tecnológicos, do grande
poder norte-americano; segundo, ter Poder Espacial. Esse Poder Espacial pode ser
usado como ferramenta política para influenciar a condução do futuro do Espaço, ou
seja a tecnologia espacial suportando as políticas de segurança e defesa da UE.
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Figura E – Representação gráfica para a Segurança no Espaço
Com este artigo conclui-se que a corrida ao armamento no Espaço, e a inerente
possibilidade de este se tornar um campo de batalha, pode ser evitada. Todos têm
bastante a perder, mas os que têm maior capacidade são também os que têm maior
fragilidade.
Pode-se estar no momento ideal para travar uma escalada ao armamento espacial cujo
efeito, não sendo necessariamente tão letal como outros, pode afectar o dia-a-dia das
populações civis e militares e, certamente, abalar a Segurança Internacional.
Con
clusões
O artigo em apreço incidiu sobre o tema A disputa do Espaço pela Europa Um
novo desafio”. Das leituras realizadas, considera-se que o avanço no Espaço pode
colocar novos desafios nas Relações Internacionais ao pretender-se controlar o acesso
a determinados recursos, ao colocarem-se novas oportunidades comerciais espaciais
que poderão influenciar a utilização militar do Espaço, ao valorizar-se o Poder Espacial.
De facto, a história diz-nos que as fronteiras exploradas e ocupadas pelos seres
humanos estiveram (estão), em alguma ocasião, debaixo de conflito. A questão será se
o Espaço escapará a essa tendência.
Iniciou-se a investigação, como o próprio tulo induz, partindo do pressuposto que o
Espaço era um meio desafiante para uma Europa que pretende crescer política e
economicamente. Mas, e como disse, em Novembro de 2001, o Director Geral da ESA
António Rodotá Encontramo-nos apenas no amanhecer da era espacial”. A exploração
do Espaço fazendo parte do imaginário da antiguidade efectivamente, tem pouco
mais de 50 anos, sendo ainda um meio, a vários níveis, desconhecido.
ESPAÇO SEGURO
Acordos Internacionais
Política Espacial Comum
Parcerias
Investimento
Robustez Técnica
Robustez Política
Poder Espacial
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Actualmente, ter tecnologia espacial, saber tratar a informação recebida e aplicá-la,
representa uma nova fonte de Poder. O Poder Espacial, através das suas capacidades,
traduz-se, em termos militares, num multiplicador de força. Em torno da utilização de
tecnologia espacial, está a protecção dos sistemas, a gestão da informação e o
tratamento da mesma para que se torne válida e decisiva. O antecipar dos
acontecimentos poderá evitar o conflito, limitar os ataques ou evitar os erros.
A UE, actor central deste estudo, tem capacidades espaciais relevantes no contexto
internacional. Contudo, algumas dessas capacidades são pertença dos países que a
constituem e não são capacidades, efectivas, daquela União.
Esta diferente abordagem dos países europeus, em particular dos membros da UE, leva
a que haja duplicações de capacidades e limitações no desenvolvimento de
determinados programas por falta de verbas ou de consenso quanto à necessidade.
Parte da razão porque isto acontece está relacionada com o facto destes países lidarem
com a sua segurança de uma forma autónoma e não numa visão europeia global.
Os actuais projectos da EU - sistema de navegação Galileo, sistema de vigilância
ambiental GMES e desenvolvimento dos lançamentos - tornam a UE tecnologicamente
independente de outros países. A independência é, claramente, vantajosa em termos
de segurança ainda que sejam programas civis mas, também, em termos
económicos ao permitir o desenvolvimento e o crescimento interno da organização.
Estas novas capacidades que advêm da tecnologia espacial tornam a organização
economicamente mais forte e podem dar à UE o Poder que necessita para ser influente
nas decisões espaciais.
A disputa a que se assiste, não é, pelo menos para já, uma disputa armada, mas é uma
disputa económica e política. A UE (ou os países que a constituem) tem, de uma forma
geral, objectivos primários que a motivam a investir nestas áreas tecnológicas, tais
como: adquirir independência tecnológica, desenvolver-se economicamente, aumentar
as capacidades e a credibilidade dos programas espaciais e cooperar.
O desafio da UE está, primeiro, em ter uma política espacial comum europeia civil e
militar. Depois disso, esta organização deve identificar o que é essencial e qual a
estratégia a adoptar para o conseguir.
Em suma, e respondendo à pergunta colocada no início do artigo, é através de
acordos internacionais, de uma política espacial europeia comum, de parcerias
e de financiamentos que a UE poderá contribuir para um Espaço livre e pacífico.
Assim, tal como com o armamento nuclear, os efeitos causados pela utilização de
armamento espacial podem ser excessivos numa altura em que a exploração científica
ainda se sobrepõe à exploração militar.
Bibl
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OBSERVARE
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Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 46-54
NUEVO CONCEPTO ESTRATÉGICO DE LA OTAN: UNA VISIÓN CRÍTICA
Rafael Calduch Cervera
Catedrático en Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales. Es Director de la
Faculdad de Ciencias de la Información (Universidad Complutense de Madrid), Director
del Instituto Complutense de Estudios Internacionales y Membro del Consejo de Gobierno
de la Universidad Complutense de Madrid. Ha ocupado diversos puestos académicos,
incluyendo Profesor “Jean Monnet” del Curso de Instituciones Comunitárias, Director do Master
de Relaciones Internacionales y Comunicación, Director del Curso de Experto en Información
Internacional de los Países del Sur (Universidad Complutense de Madrid), Coordinador del Area de
Europa Central y Oriental en el Master del Centro Superior de Estudios de la Defensa Nacional
(CESEDEN). Doctor en Ciencias Políticas y Económicas (Universidad Complutense de Madrid).
Condecoración de la “Cruz al Mérito Aeronáutico con distintivo blanco”.
Resumo
Los cambios ocurridos después de la adopción del anterior concepto estratégico de la OTAN
en 1999 obligaron a revisar su definición de los objetivos, amenazas y riesgos, así como a
determinar las capacidades de la organización en una época dominada por la crisis
económica y por los recortes en los presupuestos de defensa de sus miembros.
En esta ocasión, la elaboración del concepto estratégico fue iniciada por una propuesta de
una comisión de expertos y por un debate público que necesariamente transformaron el
texto final en un documento diplomático y no en un documento verdaderamente útil para
orientar la planificación estratégica durante la próxima década.
Esta diferencia entre las metas establecidas por el documento y la realidad de los medios
disponibles en la OTAN se observó de inmediato en la cuestión del sistema de gestión de
crisis, para lo cual la organización no dispone de estructuras y medios civiles. Tampoco es
evidente que esta limitación pueda resolverse mediante la cooperación con la UE. La
participación de la OTAN en la misión internacional de Libia se la primera prueba para
conocer la validez y eficacia de este nuevo concepto estratégico.
Palavras-chave
OTAN; Nuevo Concepto Estratégico; Defensa; Seguridad Mun
dial; Gestión de crisis
Como citar este artigo
Cervera, Rafael Calduch (2011). "Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión
crítica”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art4.
Artigo recebido em Abril de 2011 e aceite para publicação em Maio de 2011
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Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión crítica
Rafael Calduch Cervera
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NUEVO CONCEPTO ESTRATÉGICO DE LA OTAN: UNA VISIÓN CRÍTICA
Rafael Calduch Cervera
1. La necesidad de un nuevo concepto estratégico de la OTAN
Los importantes cambios acaecidos en la Sociedad Internacional desde que se formuló
el
Concepto Estratégico en el Consejo Atlántico de Washington en 1999, aconsejaban
una revisión y actualización de los objetivos, medios y capacidades de la Alianza para
las primeras décadas del siglo XXI
1
.
Entre los principales cambios que han propiciado la formulación del Nuevo Concepto
Estratégico, merece destacarse el impacto de los atentados del terrorismo yihadista del
11-S de 2001 en Estados Unidos y sus repeticiones el 11-M de 2004 en España y el 7-J
de 2005 en el Reino Unido. Directamente relacionado con el terrorismo yihadista ya se
realizó una revisión de las prioridades de la OTAN en la Cumbre de Praga (2002) para
destacar la amenaza terrorista internacional
2
.
También hay que tener presente los efectos de la ampliación de la Alianza a los países
de Europa Central y Oriental que no sólo ha supuesto un notable incremento de sus
miembros, con la consiguiente complicación del sistema de decisión por consenso, sino
que ha generado una nueva dinámica de relaciones con Rusia y ha incrementado la
importancia de algunas amenazas ya existentes como la criminalidad internacional
organizada.
No menos importante es la participación de la OTAN en la misión ISAF (International
Security Assistance Force in Afghanistan) ha sido decisiva para conocer las capacidades
pero también las limitaciones de las operaciones expedicionarias que la Alianza puede
asumir en los próximos años.
La reaparición de la piratería en nuevos escenarios geopolíticos, como las aguas del
Indico y de las costas de Somalia, ha servido para restaurar la seguridad marítima
como una de las prioridades aliancistas que habían sido ignorada o postergada en
anteriores conceptos estratégicos.
Pero todos estos sucesos no habrían bastado por sí solos para llevar a cabo la
formulación de un nuevo Concepto Estratégico. Era necesario además el impulso
político surgido con la Administración norteamericana del Presidente Obama y la
necesidad de compatibilizar el futuro de la OTAN con los cambios introducidos por el
1
El Concepto Estratégico de la OTAN formulado en 1999 puede consultarse en:
http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_27433.htm (consultado el 07/04/2011)
2
Véase la Declaración de la Cumbre de Praga en: http://www.nato.int/docu/pr/2002/p02-127e.htm
(consultado el 07/04/2011)
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Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión crítica
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Tratado de Lisboa en la Política Exterior y de Seguridad Común, especialmente en sus
dimensiones diplomática y militar
3
.
Todo ello en un contexto de aguda crisis económica internacional que está obligando a
los gobiernos aliados, pero especialmente a los de las potencias hegemónicas, a revisar
sus propias estrategias nacionales de defensa, como acaba de ocurrir en el Reino
Unido
4
.
2. El proceso de elaboración del Nuevo Concepto Estratégico
A diferencia de los conceptos estratégicos formulados en 1991 y 1999, el proceso de
ela
boración de este nuevo concepto demuestra que en la voluntad de los aliados estaba
presente la necesidad de involucrar a las opiniones públicas en su preparación con el fin
de garantizar una legitimidad política originaria del documento final pero también al
precio de sacrificar el rigor conceptual y la precisión de contenidos que este tipo de
documentos exige.
De acuerdo con la posición oficial de la propia Alianza, la elaboración del concepto
estratégico se desarrolló en tres fases en algún caso coincidentes:
A - Fase de Reflexión (Julio 2009 – Marzo 2010)
Incluyó la creación de un grupo de 12 expertos, presididos por la Embajadora
norteamericana Madeleine Albright, que realizaron la elaboración de un borrador tras
contrastar sus análisis iniciales con expertos de todos los países aliados a través de la
celebración de 5 seminarios sobre: Cuestiones Generales; Asociaciones de la OTAN;
Transformación de estructuras, fuerzas y capacidades; Aproximación integral a la
gestión de crisis
5
.
B -
Fase de Consultas (Septiembre 2009 – Marzo 2010)
Paralelamente, el grupo de expertos llevó a cabo consultas con todos los gobiernos
aliados con el fin de contrastar los resultados que se derivaban de sus análisis y de los
seminarios con las posturas oficiales, tratando de encontrar los temas y puntos de
acuerdo entre todos ellos, con vistas a la redacción final de su informe.
3
Los textos del Tratado de la Unión Europea y del Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea se
encuentran en: http://eur-lex.europa.eu/JOHtml.do?uri=OJ:C:2010:083:SOM:EN:HTML (consultado el
07/04/2011)
4
Ver A Strong Britain in an Age of Uncertainty: The National Security Strategy (2010) en:
http://www.analisisinternacional.eu/archivo/viejos/ID13.pdf y también Securing Britain in an Age of
Uncertainty: The Strategic Defence and Security Review (2010) en:
http://www.analisisinternacional.eu/archivo/viejos/ID14.pdf (consultados el 07/04/2011)
5
El Grupo de Expertos estaba integrado por: Honorable Madeleine K. Albright (Estados Unidos); Sr. Jeroen
van der Veer (Países Bajos); Embajador Giancarlo Aragona (Italia); Embajadora Marie Gervais-Vidricaire
(Canadá); Honorable Geoff Hoon (Reino Unido); Embajador Ümit Pamir (Turquía); Embajador Fernando
Perpiñá-Robert Peyra (España); Embajador Dr Hans-Friedrich von Ploetz (R.F. de Alemania); Sr. Bruno
Racine (Francia); Embajador Aivis Ronis (Letonia); Profesor Adam Daniel Rotfeld (Polonia); Embajador
Yannis-Alexis Zepos (Grecia).
El Informe elaborado por este grupo de expertos puede verse en:
http://www.nato.int/nato_static/assets/pdf/pdf_2010_05/
20100517_100517_expertsreport.pdf
(consultado el 07/04/2011)
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Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión crítica
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C - Borrador del Nuevo Concepto Estratégico y negociación final
(Septiembre – Noviembre 2010)
El Informe elaborado por el Grupo de Expertos y presentado oficialmente al Secretario
General de la OTAN, sirvió como base para que éste elaborase la Propuesta sometida a
la negociación de los gobiernos y, finalmente, al documento aprobado en la Cumbre de
Lisboa del 19 de Noviembre de 2010
6
.
3. Principios y tareas centrales
El Nuevo Concepto Estratégico reitera, como los anteriores, que el fundamento último
de
la Alianza descansa en la comunidad de valores que impera entre sus miembros y
destinada a defender los principios de: la libertad individual; la democracia; los
derechos humanos y el Estado de derecho.
Para ello se definen cuatro categorías de tareas centrales que la OTAN debe ser capaz
de desarrollar y que afectan a:
1. La defensa colectiva
2. La gestión de crisis
3. La seguridad cooperativa
4. El proceso continuo de reforma, modernización y transformación
4. El entorno estratégico internacional: amenazas y riesgos
Como en toda formulación estratégica, una vez determinados los principios y tareas
ese
nciales, resulta necesario definir el conjunto de amenazas y riesgos a los que la
Alianza debe hacer frente en los próximos años.
Tal y como sucedió en los documentos precedentes, se reconoce que la amenaza de un
ataque generalizado, tanto convencional como nuclear, contra los países aliados
constituye un escenario muy poco probable, aunque no imposible, y que desde luego
ya no está directamente relacionado con la capacidad militar de la extinta Unión
Soviética ni con los procesos de transición de los países comunistas europeos que
desencadenaron las guerras balcánicas.
Se incluyen cuatro amenazas que no figuraban en los documentos estratégicos
anteriores: los ataques cibernéticos; los ataques con misiles contra la población o los
territorios de los países aliados; la delincuencia organizada y los graves problemas
medioambientales o de salud pública.
Pero tan importante como las nuevas amenazas estratégicas que se incorporan son las
que aparecían recogidas en el concepto estratégico de 1999 y que han desaparecido del
documento actual: el hundimiento del orden político que da lugar a los estados fallidos;
las políticas de regímenes opresores y el caos económico. Resulta evidente que a la
vista de los cambios que está experimentando el mundo árabe y de los efectos de la
crisis sobre las economías de algunos países aliados como Grecia, el Reino Unido,
6
El texto del Nuevo Concepto Estratégico se encuentra en: http://www.nato.int/lisbon2010/strategic-
concept-2010-eng.pdf (consultado el 07/04/2011)
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Nuevo concepto estratégico de la OTAN: una visión crítica
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España, Italia o Portugal, no se puede pensar que semejantes omisiones hayan sido
acertadas.
5. Medios y capacidades
Definidas las amenazas a las que deberá hacer frente la Alianza, , con mejor o peor
acierto, el Nuevo Concepto Estratégico pasa a determinar los medios y capacidades que
considera imprescindibles para llevar a cabo sus tareas centrales.
Los principales medios establecidos son los siguientes:
1. Una combinación de fuerzas nucleares y convencionales;
2. El establecimiento de unas fuerzas convencionales fuertes, móviles y
desplegables tanto con carácter defensivo como expedicionario;
3. La realización conjunta entre los aliados de entrenamientos, ejercicio,
planificación e intercambio de información;
4. La participación de todos los países aliados en la planificación de las acciones
nucleares, el estacionamiento de fuerzas nucleares en tiempos de paz y la
formulación de las disposiciones de mando, control y consulta;
5. La cooperación con Rusia y otros socios euro-atlánticos;
6. La coordinación planificada de las capacidades nacionales de ciberdefensa y la
adopción de un sistema centralizado de protección de la OTAN contra los ataques
cibernéticos;
7. El análisis coordinado entre los aliados de las amenazas terroristas y la adopción
de las capacidades militares adecuadas para la lucha antiterrorista;
8. El mantenimiento de los presupuestos de defensa, a pesar de la crisis, para que
las FAS dispongan de los medios suficientes para desempeñar las misiones
asignadas;
9. La adopción de una posición general de la OTAN frete a la emergencia de nuevas
amenazas;
La disponibilidad de estos medios debe sustentar el desarrollo de las siguientes
capacidades aliancistas:
1. La capacidad de mantener operaciones conjuntas importantes (major operations)
concurrentes con varias operaciones de pequeña envergadura (minor operations)
tanto para garantizar la defensa colectiva comno para llevar a cabo la gestión de
crisis a distancia estratégica;
2. La capacidad de defender a las poblaciones y territorios aliados contra ataques
con misiles balísticos;
3. La capacidad de una defensa efectiva con las amenazas o ataques con armas
NBDR;
4. La habilidad para prevenir, detectar, defenderse y recuperarse de los
ciberataques;
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5. La capacidad para detectar y defenderse del terrorismo internacional;
6. La capacidad de contribuir a la seguridad energética, incluyendo la protección de
infraestructuras críticas, las áreas de tránsito y las líneas de distribución;
7. La capacidad de evaluación del impacto sobre la seguridad del desarrollo de
nuevas tecnologías.
6. La seguridad mediante la gestión de crisis ¿una tarea imposible para
la
OTAN?
Uno de los aspectos s problemático del Nuevo Concepto Estratégico es el referido a
la gestión de crisis, establecida como una de las tareas centrales de la Alianza.
En efecto, tras destacar que las crisis y los conflictos suponen una amenaza directa
para las poblaciones y territorios de la Alianza y que la experiencia de los Balcanes y
Afganistán imponen la adopción de una aproximación integral (comprehensive
approach) que incluya la prevención, la gestión y la estabilidad y reconstrucción post-
conflicto con el empleo de medios políticos, civiles y militares, el documento estratégico
reconoce que la superioridad de la OTAN se concentra en las capacidades militares,
mientras que tan sólo aspira a alcanzar an appropriate but modest civilian crisis
management capabilityque permita a las fuerzas militares de la Alianza disponer de
un instrumento de enlace con los medios civiles desplegados sobre el terreno por otros
actores y agencias internacionales
7
.
Sin duda, la OTAN carece de una estructura político-civil adecuada para asumir la
dirección de la gestión de crisis en sus aspectos civiles y humanitarios, pero sobre todo
para liderar los procesos de estabilización y reconstrucción tras los conflictos armados.
Tampoco es previsible que a corto plazo desarrolle tal estructura con el suficiente grado
de eficacia para sustituir o complementar la que ya está disponible en el marco de
Naciones Unidas o de la Unión Europea.
En semejantes circunstancias, la inclusión de esta tarea central obliga a la Alianza a
recurrir a la colaboración con tales organismos o, alternativamente, a aceptar la
atribución de las tareas de ayuda humanitaria y reconstrucción civil a las fuerzas
militares, corriendo el riesgo de provocar un fracaso de la misión debido a la falta de
preparación de las fuerzas armadas para desempeñar este tipo de tareas. Un dilema
estratégico que debería haberse evaluado más detenidamente en sus consecuencias
antes de haberlo incluido en el documento final con la evidente intención de convertirlo
en un documento políticamente correcto de cara a las opiniones públicas.
7
Center for Security Studies (ETH-Zurich) - Co
mprehensive Approaches to International Crisis
Management.- CSS Analyses in Security Policy, vol. 3, 42 (October, 2008), ver en:
http://kms1.isn.ethz.ch/serviceengine/Files/ISN/93229/i
publicationdocument_singledocument/460f9c24-
18c1-45fa-8e14-62b9c0a37682/en/css_analysen_nr42-2008_e.pdf (consultado el 07/04/2001)
Centro Internacional de Toledo para la Paz - Civilian Dimension of International Crisis Management in
Spain: Commitments, Alternatives and Advantages.- CITpax Document nº5 (February 2006). Ver en:
http://www.fride.org/download/OTR_CrisisMang_ENG_feb06.pdf.pdf (consultado el 07/04/2011)
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7. Valoración crítica del Nuevo Concepto Estratégico a la luz del nuevo
sistema de seguridad mundial
Una valoración adecuada de este Nuevo Concepto Estratégico requiere no sólo la
consideración de su contenido, sino también su contrastación con el nuevo sistema de
seguridad mundial que se viene desarrollando durante las dos últimas décadas para
evaluar su adecuación o no a dicho sistema.
Desde la descomposición de la Unión Soviética y la intervención multinacional en Irak
tras la invasión de Kuwait, la seguridad mundial ha ido poco a poco evolucionando
desde la bipolaridad con disuasión nuclear hacia un sistema de seguridad colectiva con
intervencionismo promovido por las grandes potencias militares.
De una parte, la eclosión de las misiones de pacificación promovidas por Naciones
Unidas, que sigue gozando de la primacía de legitimidad política y de exclusividad legal,
ha servido para reforzar la dimensión colectiva de la seguridad mundial
8
.
Sin
embargo, resulta también constatable que no siempre esa seguridad colectiva de
Naciones Unidas se puede aplicar ya sea porque lo impide el sistema de veto que
impera en el Consejo de Seguridad o bien porque no siempre las países, especialmente
las grandes potencias, están dispuestos a aportar las tropas de las que carece la
organización mundial.
El incremento del número y la duración de las misiones de pacificación ha obligado,
cada vez más, a involucrar a las potencias regionales en el proceso de decisión y
ejecución de tales misiones. Es frecuente constatar la presencia en estas misiones de
tropas indias, brasileñas, pakistaníes, sudafricanas, canadienses, españolas,
holandesas, portuguesas, etc., reforzando y complementando las funciones de las
tropas norteamericanas, rusas, británicas o francesas.
Paralelamente, los intereses geoestratégicos, políticos y económicos de las grandes
potencias mundiales no siempre coinciden con los del resto de la comunidad
internacional. En semejantes circunstancias y ante la incapacidad para lograr que se
apruebe una Resolución del Consejo de Seguridad que respalde sus actuaciones
militares, se han generalizado las intervenciones internacionales, ya sean unilaterales o
colectivas, dirigidas a proteger los intereses de dichas potencias en un determinado
país o región.
Los casos de Kosovo (1999); Irak (2003); Enduring Freedom (2001) en Afganistán o
las más recientes de Líbano (2006) y Georgia (2008) acreditan, mucho más que
cualquier argumento, la realidad de la dimensión intervencionista del vigente sistema
de seguridad mundial.
La OTAN ha ido definiendo su actuación estratégica en este contexto internacional de
acuerdo unas veces con criterios pragmáticos, como en la intervención militar en
8
.- Para un análisis de la evolución experimentada por la doctrina de las Naciones Unidas respecto de las
misiones de pacificación, véanse los documentos del Secretario General:
An Agenda for Peace. Preventive diplomacy, peacemaking and peace-keeping. (17 Junio 1992). A/47/277
- S/24111
Suplemento de “Un Programa de Paz”: Documento de posición del Secretario General presentado con
ocasión del cincuentenario de las Naciones Unidas. (25 Enero 1995). A/50/60 S/1995/1.
Un mundo más seguro: la responsabilidad que compartimos. Informe del Grupo de alto nivel sobre las
amenazas, los desafíos y el cambio.- Asamblea General (2 Diciembre 2004) A/59/565.
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Kosovo, y otras de acuerdo con los criterios de legalidad internacional como en el caso
de ISAF.
A la luz de la evolución de la Alianza durante estas dos últimas décadas, podemos y
debemos realizar una valoración del nuevo documento estratégico destacando tres
características esenciales: a) su dimensión política y declarativa; b) su imprecisión y c)
su carácter incompleto.
En sentido estricto no es un documento estratégico o, al menos, no en la misma nea
de sus predecesores ya que no encontramos un apartado sobre las orientaciones para
las fuerzas de la Alianza que incluya de un modo concreto aspectos tan relevantes
como: las misiones concretas que deben realizar las fuerzas militares, las orientaciones
para el dispositivo de fuerzas, las características cuantitativas y cualitativas de las
fuerzas convencionales y de las fuerzas nucleares necesarias; la estructura de mando;
etc.
Se puede argumentar que todos estos aspectos se incluirán en los documentos que
desarrollan el Nuevo Concepto Estratégico, pero habrá que convenir que su ausencia en
el documento principal minimiza su importancia y supone un cambio de posición
respecto de las estrategias aliancistas de 1991 y 1999.
Es también un documento impreciso porque como ya hemos señalado ignora algunas
de las amenazas vigentes que habían sido recogidas en documentos anteriores; incluye
amenazas como las medioambientales o sanitarias cuya gestión es prioritariamente
nacional, como se está comprobando en la catástrofe nuclear de Japón, sin especificar
los medios disponibles ni los criterios de coordinación que habrían de seguirse; hace
referencia a un sistema de gestión de crisis sin especificar los órganos, procedimientos
ni capacidades civiles requeridas y, finalmente, alude la necesidad de una
complementariedad de funciones con la UE, sobre todo en la gestión de crisis y la
seguridad cooperativa, pero sin hacer una alusión, siquiera fuese general, a las
directrices con las que deberá desarrollarse dicha complementariedad.
Por último, es un documento incompleto por varias razones. En primer lugar no se
extraen las lecciones aprendidas de las experiencias en los Balcanes y Afganistán para
determinar los criterios políticos y estratégicos necesarios para establecer el alcance y
los límites de las misiones en las que intervenga la OTAN. En segundo término,
tampoco existe una valoración estratégica precisa y diferenciada de las regiones
fronterizas de la Alianza como son el Magreb, el Cáucaso; Oriente Próximo y Oriente
Medio. Tampoco se contemplan algunas misiones que por su frecuencia, su importancia
y su naturaleza mixta (defensiva y expedicionaria) deberían haberse recogido de forma
explícita, como son las operaciones de protección y rescate de ciudadanos de países
aliados residentes en países en conflicto bélico o en situaciones de catástrofe. En último
lugar aunque no menos significativa es la omisión de las relaciones que la Alianza
deberá mantener respecto de organizaciones como la OSCE o ante propuestas como la
formulada por el Presidente ruso Medvedev de establecer una Tratado de Seguridad
Europea.
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8. Conclusiones
Como balance final, cabría señalar que el Nuevo Concepto Estratégico traduce con
bastante fidelidad el conjunto de fortalezas y debilidades que aquejan actualmente a la
OTAN.
Entre las fortalezas destacan:
1. Las capacidades, la organización (Estados Mayores) y la experiencia militar que
convierten a la OTAN en la alianza más eficaz que ha existido en el último medio siglo;
2. Buena parte de esa eficacia se debe a la participación de tres de las principales
potencias militares mundiales que además gozan de una combinación de medios
convencionales y nucleares;
3. Ello ha dotado a la OTAN no sólo de una creíble y eficaz capacidad de disuasión, sino
también de una demostrada capacidad de proyección de fuerza a escala regional y
mundial.
Pero la Alianza también presenta algunas apreciables debilidades que con el tiempo han
ido limitando su protagonismo internacional y ampliando las dudas sobre su razón de
ser frente al desarrollo de las nuevas coaliciones multilaterales ad hoc como alternativa
estratégica a medio o largo plazo. Entre estas debilidades podemos señalar:
1. La hegemonía militar mantenida históricamente por Estados Unidos, que ha lastrado
el desarrollo de las capacidades militares de los aliados europeos y de su voluntad
política de asumir las cargas que impone la defensa regional y mundial, en un momento
en que Washington desplaza cada vez más sus prioridades estratégicas hacia el Pacífico
y no hacia el área euro-atlántica;
2. El insuficiente desarrollo institucional de la estructura política de la Alianza, en
comparación con la estructura militar, que está incapacitando a la OTAN, de un modo
constante, para asumir y adaptarse a las nuevas realidades diplomáticas y estratégicas
mundiales;
3. La creciente discrepancia de intereses geoestratégicos entre los aliados que unida al
sistema de decisión por consenso está originando un bloqueo político interno que se
complicará todavía más con la entrada de nuevos miembros como Ucrania o Georgia.
Si estas debilidades no se reconocen y abordan para su resolución, la elaboración de
nuevos conceptos estratégicos no resolverá la ya apreciable tendencia de la OTAN a
convertirse en un mera agencia de gestión militar carente de voluntad política y de
visión de futuro. Algo que todavía se está a tiempo de evitar a pesar del Nuevo
Concepto Estratégico de 2010.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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APRENDER A CONSTRUIR UMA PAZ SUSTENTÁVEL:
“APROPRIAÇÃO LOCAL” E PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ.
O CASO DA REFORMA DA JUSTIÇA NO HAITI
Amélie Gauthier
Consultora independente no Centro Norueguês de Consolidação da Paz - Norwegian Peacebuilding
Center (Noref) em projecto sobre Juventude e Violência Armada em cenários de pós-conflito. Foi
investigadora na área da paz, segurança e direitos humanos da Fundación para las Relaciones
Internacionales y el Diálogo Exterior - FRIDE. Mestre em Cooperação Internacional e Gestão de
Projectos do Instituto Ortega y Gasset (Madrid), com licenciatura em Administração Internacional e
Finanças pela École des Hautes Études Commerciales (HEC) de Montreal. Anteriormente, foi analista
política para a Embaixada do Canadá em Madrid. Foi investigadora assistente no livro
Perspectives from the Front Lines de George E. Irani, Vamik D. Volkan, Judy Carter (2006).
Madalena Moita
Investigadora portuguesa a terminar a sua tese de doutoramento sobre "As Nações Unidas e
Construção da Paz - os casos do Haiti e da Guatemala" na Universidade Complutense de Madrid
(Espanha). Mestre em Estudos da Paz e da Guerra em Nova Relações Internacionais (UAL) com
licenciatura em Ciências Políticas e Relações Internacionais (Universidade Nova de Lisboa, Portugal).
Consultora da FRIDE (Fundación para las Relaciones Internacionales y el Diálogo Exterior) e de outras
instituições, como o NOREF (Centro Norueguês de Consolidação da Paz) e o Instituto Internacional da
Paz, centrando-se em processos de paz e de reconstrução pós-conflito. Actualmente trabalha para a
Comissão Europeia em diversos projectos sobre a Sociedade Civil.
Resumo
O debate sobre a apropriação local na política de constru
ção da paz é relativamente recente,
fruto da reflexão sobre a eficácia da ajuda e da sustentabilidade. Ao debruçarmo-nos sobre
a sua aplicação no terreno, como no caso do Haiti, torna-se evidente que a sua inclusão na
doutrina de construção da paz de todos os grandes doadores não teve correspondência a
nível estratégico e operacional. Este artigo é o resultado de uma pesquisa no terreno sobre
a forma como o conceito de "apropriação local" nos esforços de construção da paz é posta
em prática e percebido pelas diferentes partes interessadas. As autoras centraram-se na
reforma da Justiça em curso no Haiti antes do terramoto de Janeiro de 2010 para melhor
compreender a dinâmica entre os actores internacionais e locais, desde a fase de definição
de políticas até à sua aplicação a nível nacional.
Palavras-chave
Construção da Paz; Estado de Direito; Justiça; Haiti; Apropriação
Como citar este artigo
Gauthier, Amélie; Moita, Madalena (2011). "Aprender a construir uma paz sustentável:
«apropriação local» e práticas de construção da paz. O caso da reforma da justiça no Haiti”.
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art5.
Artigo recebido em Outubro de 2010 e aceite para public
ação em Março de 2011
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Aprender a construir uma paz sustentável: «apropriação local» e práticas de construção da paz.
O caso da reforma da justiça no Haiti
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APRENDER A CONSTRUIR UMA PAZ SUSTENTÁVEL:
“APROPRIAÇÃO LOCAL” E PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ.
O CASO DA REFORMA DA JUSTIÇA NO HAITI
1
Amélie Gauthier e Madalena Moita
O Haiti é um estudo de caso interessante na investigaçã
o da evolução das intervenções
internacionais nos conflitos violentos. No país verificou-se como estas têm mudado com
a natureza da guerra, desde a chegada de uma primeira operação de manutenção da
paz (peacekeeping) no início dos anos noventa à missão integrada de construção da
paz (peacebuilding) multidimensional do novo Milénio.
Apesar destas novas abordagens, nas últimas duas décadas, o retorno da violência
continua a evidenciar as limitações das intervenções externas nos processos de
construção da paz. O debate entre académicos e profissionais associa a sua falta de
sustentabilidade ao facto das estratégias e políticas experimentadas serem
fundamentalmente incentivadas por forças externas (normalmente grandes potências
regionais ou internacionais ou organismos multilaterais) incapazes de serem
suficientemente sensíveis às especificidades de cada contexto.
Quando as políticas impostas externamente não têm bons resultados a longo prazo
na ausência de compromissos dos governos locais e de aceitação popular –, as relações
assimétricas entre os actores nacionais e internacionais começa a ser questionada e a
necessidade de um maior envolvimento da população local nos processos de tomada de
decisões priorizados. O conceito de “apropriação localemerge, nestas circunstâncias,
como fonte de legitimidade internacional, mas também como uma solução para tornar
mais eficientes as intervenções internacionais.
O debate sobre este conceito está hoje presente no diálogo entre os principais actores
nestas matérias, das grandes organizações multilaterais aos principais doadores de
ajuda ao desenvolvimento. Tem, no entanto, estado concentrado sobretudo no
refinamento de um discurso político sobre a consolidação da paz, sem uma reflexão
consequente sobre a forma como estes processos são postos em prática no terreno. O
objectivo deste estudo é conduzir o debate para o nível do terreno, para tentar
compreender como princípios gerais orientadores, como a “apropriação”, se
transformam em práticas do dia-a-dia.
1
Este artigo é produto de uma pesquisa realizada em colaboração com o Chr. Michelsen Institute e
financiado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e pelo Centro Norueguês de Consolidação da Paz
(NOREF). Embora os resultados finais tenham sido apresentados em Maio de 2010, a pesquisa foi
concluída antes do terramoto no Haiti, em Janeiro de 2010. Se é verdade que a calamidade mudou as
prioridades da ajuda ao desenvolvimento no Haiti, os autores acreditam que as políticas sobre o Estado
de Direito terão também de ser parte da agenda da reconstrução. Os autores esperam que este artigo
possa ser útil, neste contexto, não só para compreender a apropriação local nos esforços de consolidação
da paz geral, mas também para tirar algumas lições do passado no Haiti, que podem ser úteis no
projecto de reconstrução.
Os autores gostariam de agradecer o apoio do Jacob Ole Sending como coordenador do projecto pela
assistência constante durante o período da pesquisa, bem como ao Chr. Michelsen Institute pela sua
colaboração com a FRIDE. Além disso, os autores também gostariam de estender os seus
agradecimentos aos actores locais e internacionais que aceitaram participar do estudo.
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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Em termos gerais, este estudo pretende estimular a reflexão sobre como o conceito de
“apropriação local é compreendido e materializado no plano político, estratégico e
operacional. Procura compreender melhor a dinâmica entre os actores internacionais e
locais, de uma primeira fase de definição das políticas à sua aplicação aos níveis
nacionais. Procura verificar em que condições as políticas de consolidação da paz o
locally conceived and led (Bendix e Stanley, 2008: 95) e como ambos os actores,
externos e internos, entendem este conceito.
Em termos mais concretos, centra-se nas políticas de protecção do Estado de Direito
(Rule of Law) no Haiti: um conjunto específico de políticas de consolidação da paz que
tem sido uma prioridade para os actores externos no país. Entre as várias políticas de
reforma do Estado de Direito, os autores optaram por centrar-se na reforma da Justiça,
fundamental para os doadores como pilar inequívoco da reconstrução do Estado.
A reforma da Justiça no Haiti segue hoje um roteiro baseado no Documento da
Estratégia Nacional de Crescimento e Redução da Pobreza (DSNCRP, pela sua sigla em
francês)
2
de Novembro de 2007, que estabelece cinco prioridades para a reforma:
1.
Reestruturação e modernização do Ministério da Justiça e da Segurança Pública;
2. Restauração do sistema judiciário;
3. Melhoramento do acesso aos tribunais e a um sistema judicial eficaz;
4. Reabilitação e desenvolvimento consistente do sistema das prisões, e
5. Modernização da legislação.
A aceitação do Documento como ponto de partida para a reforma é um exemplo
paradigmático da operacionalização internacional do conceito de apropriação, quando,
na realidade, este traduz uma perspectiva restrita do mesmo. Com esta investigação,
os autores tentaram encontrar as limitações e as oportunidades do processo de
construção da paz no Haiti a partir de algumas das questões levantadas por esta
abordagem internacional na promoção da apropriação local.
Para começar, “apropriação local haitiana” pode ter significados muito diferentes,
daquela que está circunscrita aos seus líderes políticos a uma apropriação mais ampla,
de cidadania. No Haiti, a instabilidade governamental e a constante mutação destas
políticas deveriam sugerir a necessidade de procurar outras fontes de apropriação: da
dos profissionais do sector da Justiça e dos funcionários que irão aplicar essas políticas,
à apropriação pela população, que terá de as cumprir diariamente. Se a “apropriação”
em si tem múltiplas dimensões – nomeadamente nos três níveis acima referidos:
político, estratégico e operacional ao observar a sua aplicação a um ambiente
específico, é fundamental considerar a heterogeneidade e a complexidade tanto dos
beneficiários como dos “construtores da paz”
3
. No mesmo sentido, deve-se analisar a
“abo
rdagem internacional como um conjunto de culturas e práticas de trabalho de
actores profundamente dissemelhantes, daqueles que são mais próximos à cooperação
2
Document Stratégique National pour la Croissance et la Réduction de la Pauvreté disponível em:
http://www.mpce.gouv.ht/dsncrpfinal.pdf
3
Sobre o uso da palavra “construtores da paz”: traduzido do termo inglês peacebuilder é uma palavra
utilizada em diversos documentos desta temática e usado para descrever os profissionais que trabalham
num contexto de pós-conflito em áreas específicas da construção da paz como o Estado de direito, a
segurança, a reconciliação, etc.
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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para desenvolvimento aos que priorizam a consolidação da segurança e da paz num
sentido estrito.
A conjugação de todas estas diferentes variáveis deve ser considerada ao abrir um
debate sobre a apropriação, sem pretensões de idealizar o conceito, mas centrando-nos
nas possibilidades que este pode trazer na materialização de processos de construção
da paz mais sustentados.
Metodologia
Para esta investigação, os autores combinaram diferentes abordagens, a fim de
ana
lisar a dinâmica das interacções internacionais-locais na definição e implementação
da reforma da Justiça no Haiti, seguindo quatro das cinco prioridades definidas pelo
DSNCRP. Após uma revisão bibliográfica prévia, os autores prepararam um conjunto de
entrevistas abertas semi-estruturadas dirigidas aos representantes das principais
entidades internacionais nas suas respectivas sedes. Numa segunda etapa, prepararam
uma visita ao país para entrevistar
4
:
- Actores judiciais nacionais;
- Os principais doadores do Haiti na reforma da Justiça: a MINUSTAH
5
, o PNUD
6
, os
Estados Unidos, a União Europeia e o Canadá
- As agências de implementação: o National Centre for State Courts (NCSC), o
International Legal Assistance Consortium (ILAC) e a Organisation Internationale de
la Francophonie (OIF)].
- Organizações da sociedade civil.
Este artigo i começar por apresentar o contexto normativo do conceito de
“apropriação”, seguido por um breve diagnóstico do Sistema Judiciário no Haiti e
algumas reflexões sobre a forma como o conceito é compreendido tanto por quem o
operacionaliza como pelos beneficiários.
a. Contexto Normativo
A
narrativa geral sobre a construção da paz herdou o conceito de “apropriação local”
das políticas de cooperação para o desenvolvimento, quando este emergiu da
constatação do fracasso da ajuda nos anos 90. Em 1996, o documento Shaping the 21
st
Century: The Contribution of Development Co-operation do CAD OCDE
7
fez referência à
necessidade de respeitar a “apropriação local” do processo de desenvolvimento
(Kuehne, 2008). O termo era usado então com o sentido de “participação local” ou de
“empoderamento local”.
O debate sobre a eficácia da ajuda tem enfatizado, em anos mais recentes, a
importância da participação local como um factor tanto de legitimidade como de
sustentabilidade das intervenções internacionais. As principais entidades e países
doadores de ajuda ao desenvolvimento afirmam que os beneficiários locais devem
4
A participação dos autores num projecto paralelo permitiu-lhes participar num seminário em Port-au-
Prince sobre os desafios políticos da reforma do sistema judicial, organizado após a investigação no
terreno (Junho 2009).
5
Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti.
6
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
7
Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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participar na elaboração das políticas que irão mudar a sua maneira de viver, o
apenas porque é mais ético abandonar um tipo de relação paternalista herdado do
colonialismo (Donais, 2008: 6), mas também por razões de eficiência a longo prazo.
Os documentos estratégicos e de doutrina sobre a consolidação da paz começaram a
incluir referências à apropriação local. No entanto, em termos operacionais, este
conceito não está tão bem definido.
Para este estudo, os autores aceitaram a definição sugerida por Annika S. Hansen e
Wiharta Sharon:
“local ownership embraces the recognition that a justice and security sector reform
process is of integral concern to the local population and that local actors should have a
say in formulating the outcomes of the process [...]It should, wherever possible, build
on existing judicial systems and legal traditions and reflect the culture and values of the
country in question. It should also reaffirm international law, norms and standards.
Local ownership cannot be treated as an absolute but instead must be implemented to
different degrees that range from local acceptance and support for the reform process
to local control over decision-making.” (Hansen and Wiharta, 2007: 17)
Dia
gnóstico do sistema judicial e do plano de reforma
Esta secção analisa e responde a uma das principais questões lançadas nas entrevistas:
Como descreveria o problema ou desafio central no Haiti e, mais precisamente, no
sector da Justiça?
Um dos principais problemas salientados foi a interferência do Poder Executivo, de
políticos e outros grupos no sistema judiciário. A ausência de um órgão independente
do governo, com orçamento próprio para gerir os tribunais, nomear os juízes e
magistrados, e acompanhar a conduta dos mesmos torna o sistema judiciário
vulnerável a todo o tipo de interferências. Foram também salientados conflitos de
autoridade entre o governo e o Presidente sobre o controlo do Ministério da Justiça
8
.
Con
trolar o sistema judicial é do interesse de muitos, o que converte este sector numa
arena muito politizada e corrupta.
Outro aspecto frequentemente mencionado foi a debilidade das infra-estruturas
disponíveis. Os tribunais estão muito degradados, com pouco mobiliário e ainda menos
instrumentos de trabalho essenciais, como os códigos civil e penal em francês e crioulo
e computadores e arquivos para armazenar as informações dos julgamentos. Os
recursos materiais representam um componente que para a comunidade internacional é
relativamente fácil financiar, mas suficiente para a Justiça começar a funcionar de
forma adequada e eficiente. Alguns doadores estão relutantes em financiar
directamente o material sem o desenvolvimento de uma matriz e de um plano de
sustentabilidade. Na verdade, a questão dos bens móveis é um ponto de divisão entre
os actores locais e internacionais, porque os haitianos defendem a necessidade de
recursos e equipamentos para poder executar o seu trabalho. Os actores internacionais
reconhecem essas necessidades, mas argumentam também que as melhorias materiais
não vão tornar a Justiça mais eficaz e transparente.
8
Entrevista a um advogado, Port-au-Prince, 31 de Março, 2009.
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Aprender a construir uma paz sustentável: «apropriação local» e práticas de construção da paz.
O caso da reforma da justiça no Haiti
Amélie Gauthier e Madalena Moita
60
A falta de recursos é particularmente grave no que respeita aos recursos humanos. A
maioria dos actores jurídicos não têm formação adequada para as suas
responsabilidades e terão sido nomeados devido a laços pessoais ou políticos. O
problema é tão grave como alguns juízes não saberem ler e escrever em algumas áreas
remotas do Haiti. Este é um problema que não é específico do sector judicial, mas geral
a todo o país. A fuga de cérebros é um obstáculo complexo que tem tornando o país
altamente dependente de conhecimentos técnicos estrangeiros.
No contexto particular que nos importa, a administração da Justiça e o funcionamento
dos tribunais são fortemente afectados. Especialmente, na área de processos criminais,
onde uma tendência para serem bloqueados pela multiplicação de pronunciamentos
sobre assuntos civis, causando longos períodos de detenção pré-julgamento e tornando
os processos extremamente longos. Algumas Organizações o-governamentais (ONG)
no Haiti estão a trabalhar para reunir informações detalhadas sobre cada detido e sobre
os procedimentos legais postos em prática. Este exercício ajudará a identificar as
dificuldades nos processos de detenção e julgamento e a situação particular em que
cada detido se encontra. Embora exista um grande número de relatórios sobre os
problemas do sistema judiciário, parece haver lacunas importantes na informação
disponível sobre cada caso, sobre o perfil de cada juiz, assim como nas informações
estatísticas sobre o funcionamento dos tribunais.
A falta de informação é ainda agravada pela desconexão existente entre a capital e as
áreas rurais. Algumas das maiores ONG locais como o Réseau National de Défence des
Droits de l’Homme têm representantes em cada província, que se assumem como
informantes-chave da situação em cada região. O Groupe de travail sur la réforme de la
Justice, criado por Decreto presidencial em Fevereiro de 2009 também inclui
funcionários em cada província, o que tem sem dúvida melhorado as relações entre a
capital e as zonas mais remotas. Ainda assim, o actor mais informado a nível nacional é
a MINUSTAH devido à sua presença estável em todo o território.
O acesso desigual à Justiça é identificado como uma questão crítica, especialmente
para 60% dos haitianos que vive nas áreas rurais. Para muitos, aceder a um tribunal
ou uma esquadra da polícia exige várias horas ou dias de transporte. Os conflitos são
resolvidos localmente: os cidadãos depositam a sua confiança na chefia da polícia ou no
representante comunitário eleito localmente (quando estão presentes), ou numa figura
religiosa, seja católica, protestante ou pertencente à hierarquia vudu. Embora seja
difícil definir estes meios de resolução como casos típicos de “justiça informal”, tal
como acontece nos estados africanos
9
, os métodos de resolução de conflitos nestas
áre
as rurais estão definitivamente fora dos parâmetros oficiais jurídicos estabelecido
pelos códigos civil e penal. A legitimidade da deliberação decorre do prestígio da pessoa
que toma a decisão ou sentença
10
. No entanto, ao mesmo tempo que ajuda a manter
uma convivência pacífica (os casos de violência nas áreas rurais são esporádicos em
comparação com a capital), os métodos e ritmos saem do quadro legal do respeito
pelos direitos humanos.
Os sentimentos expressados pelos haitianos sobre a Justiça formal são de medo e
desconfiança. É de entendimento comum que os juízes, como funcionários públicos do
9
Os sistemas jurídicos informais africanos são geralmente caracterizados por fortes estruturas tribais,
onde a hierarquia está fortemente definida, a supremacia do chefe é reconhecida e a sua decisão
respeitada.
10
Entrevista a um advogado, Port-au-Prince, 31 de Março, 2009
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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Estado com a responsabilidade de servir os cidadãos, muitas vezes servem os seus
próprios interesses. Não brio, ética profissional ou princípios que orientem os juízes
e o seu trabalho, e estes são frequentemente acusados de corrupção. A desconfiança,
desrespeito e suspeição entre os cidadãos e as instituições judiciárias são alarmantes, e
gerar um nível mínimo de confiança é já de si um imenso desafio.
b. O plano da reforma
O DSCRP é o documento mais relevante no sentido em que estabelece as prioridades
da
reforma e mais ainda permite aos internacionais intervir no quadro de um programa
governamental. Tem, no entanto, várias limitações. Por um lado, as prioridades o
demasiado amplas e o Documento não estabelece uma estratégia para atingir os
objectivos. Por outro lado, uma vez que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública
gere um orçamento para as três reformas (Polícia, Justiça e prisões), a maior parte do
orçamento acaba por ser destinado à reforma da Polícia, que tem apresentado
resultados positivos e alcançado um certo consenso tanto junto dos haitianos como dos
actores internacionais.
Dentro deste quadro geral, os principais doadores no Haiti têm os seus próprios planos,
visões e estratégias sobre a reforma. Esforços de coordenação são constantes e
diferentes mecanismos têm sido postos em prática. Infelizmente existem ainda muitas
lacunas em matéria de coordenação. A MINUSTAH, o PNUD, a OIF, o NCSC, o ILAC, a
União Europeia e os Estados Unidos, são os principais actores internacionais no âmbito
da reforma da Justiça. uma certa divisão nas áreas de trabalho numa tentativa de
reduzir sobreposições, mas que criando uma separação entre as actividades de cada
entidade tem levado à dispersão do impacto das acções no seu conjunto. Os projectos
são financiados, por vezes, para responder a necessidades imediatas, mas estão
frequentemente isolados uns dos outros e desconectados de um objectivo final de uma
Justiça mais eficiente.
Falta à partida um consenso ao vel dos doadores, que estão em desacordo sobre o
modelo da reforma (francês, latino-americano, americano) a implantar, privilegiando o
seu próprio modelo em detrimento de outros. Os haitianos estão também muito
divididos e um consenso é difícil ou quase impossível de alcançar. O Grupo de Trabalho
Presidencial sobre o seguimento da reforma, que funciona de forma independente do
Ministério da Justiça e das várias outras comissões com as suas respectivas equipas
diferentes, é um bom exemplo das divisões existentes no seio da sociedade haitiana.
Neste clima de desordem sobre a direcção fundamental da reforma, pequenos
progressos requerem um constante esforço de diálogo, consulta e mediação. Sem
mencionar a actuação de grupos que se opõem totalmente à reforma que beneficiam
do actual estado disfuncional da Justiça.
Alguns progressos foram alcançados na área do reforço do poder judicial com a votação
da lei que estabelece o quadro jurídico para o estatuto e competências do Conselho
Superior do Poder Judiciário. A abertura da Escola de Magistratura vai também
colmatar as lacunas na formação dos juízes e magistrados
11
. O acesso à assistência
leg
al tem sido substancialmente melhorada com um programa do Assistance Bureau
11
Vários magistrados concluiram já cursos básicos e uma gama completa de cursos de especialização está
a ser disponibilizada pela Director da Escola da Magistratura, com a ajuda da Organização Internacional
da Francofonia, entrevista em Port-au-Prince, Abril de 2009.
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estabelecido em quase todas as províncias. A eficiência dos tribunais e o reforço do
Ministério tem melhorado em algumas áreas com a ajuda de voluntários das Nações
Unidas. Embora os avanços sejam significativos, ainda não fazem a diferença no
alcance de uma Justiça eficiente, acessível e credível. Por outro lado, a sustentabilidade
destas pequenas reformas também é questionável.
Como compreendem os construtores da paz e os actores locais a
“apropriação”?
c. Da esfera política para o terreno
No
caso do Haiti, pela análise de documentos-chave das políticas dos grandes doadores
é fácil identificar a inclusão do termo “apropriação local” como directriz fundamental no
estabelecimento de relações entre internacionais e parceiros locais.
Ao nível político, onde as prioridades dos doadores são estabelecidas, documentos
genéricos são usualmente formulados, alguns deles muito sintéticos, que definem um
ponto de partida claro e simples que deve ser posteriormente adaptado a cada contexto
específico, ao nível estratégico. É comum os doadores apresentarem um quadro-padrão
para as intervenções internacionais no campo da construção da paz. Um bom exemplo
disso são as cinco páginas de orientações da Comissão Europeia sobre as políticas para
o reforço do Estado de Direito (CE, 2009). Este tipo de documento é geralmente
preparado por especialistas internacionais generalistas nas respectivas sedes.
O relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre o Estado de Direito, de 2004,
também corresponde a esta realidade, incluindo a “apropriação” como uma directiva
fundamental. Ao mencionar este conceito, sublinha: We must learn as well to eschew
one-size-fits-all formulas and the importation of foreign models, and, instead, base our
support on national assessments, national participation and national needs and
aspirations (UN, 2004).
No entanto, destas declarações de intenções à aplicação da “apropriação local aos
níveis estratégico e operacional um longo caminho a percorrer. Provavelmente por
ser essencialmente um agente de desenvolvimento, o PNUD é de facto um dos
doadores que tem orientações mais claras para os construtores da paz no terreno, em
termos de apropriação. Num relatório sobre as políticas de fortalecimento do Estado de
Direito em situações de conflito e pós-conflito” refere:
“[As] a development agency, UNDP Rule of Law programming is not only guided by
national ownership, as a principle, but this principle is also embedded in UNDP
execution modalities. Nationally-owned needs assessments are central to UNDP
programming design. Partnership and coordination with national partners is essential to
this process (UNDP, 2008).”
Mas, em termos gerais, a literatura dos doadores em matéria de apropriação é mais
ambígua quando descemos do vel político para o nível operacional. A USAID, por
exemplo, criou um guia que estabelece os procedimentos para os seus funcionários
elaborarem análises prévias a um país a fim de estabelecerem políticas específicas de
fortalecimento do Estado de Direito. Este guia afirma: “the post-conflict rebuilding
process is challenging and complex. It requires strategies that promote local ownership
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and financial sustainability, and that develop local capacity quickly” (USAID, 2008).
Mais adiante, o mesmo guia apresenta recomendações sobre a melhor forma de obter
informações sobre o contexto político e histórico do país, ou sobre os papéis dos
principais intervenientes para que os seus funcionários possam realizar uma correcta
avaliação do sector da Justiça. O dilema surge quando este mesmo relatório afirma
também queif the rule of law is a universal principle, then supporting the rule of law is
not necessarily imposing foreign ideas on a society”.
De certa forma, este exemplo serve para demonstrar uma operacionalização
frequentemente dúbia da “apropriação local”. Em vez de aprender com os actores
nacionais quais devem ser as prioridades, os profissionais estrangeiros no terreno
fazem um esforço para adquirir conhecimentos específicos de cada país, a fim de
entender como melhor podem promover a “apropriação local” geralmente
significando aceitação e responsabilização – das políticas internacionais.
Com efeito, o vel estratégico corresponde a uma fase de transição difícil que exige a
conciliação entre os princípios dos doadores e as demandas dos países em
desenvolvimento. Nesse momento de transição, especialistas que beneficiam de um
conhecimento mais profundo sobre o país devem realizar manobras elásticas para
ajustar as políticas decididas na sede à realidade e vice-versa, naquilo a que Schlichte e
Veit chamam policy bending (Schlichte e Veit, 2007). A solução encontrada pelos
doadores para facilitar esta correspondência foi encorajar a formulação de um plano
local de desenvolvimento num documento de estratégia por país, que serva para
orientar as políticas da ajuda. No Haiti, esse documento corresponde ao DSNCRP.
Antes de mais, é certamente relevante assinalar que durante a realização das
entrevistas, os autores foram constantemente solicitados a explicar o significado do
conceito de “apropriação local”, destacando uma generalizada falta de familiaridade
com o termo.
Mas nessas entrevistas com os doadores, o alinhamento com o DSNCRP emergiria
como um dos quatro principais indicadores de apropriação. A par com esta regra
primordial, as políticas seriam consideradas “locais” se preenchessem pelo menos um
dos seguintes critérios:
a) a assinatura do governo num acordo específico,
b) o facto do governo contribuir com parte dos recursos (humanos ou financeiros)
ou
c) o compromisso governamental de assegurar a continuidade do projecto.
Na verdade, os quatro critérios enumerados pressupõem que o governo possa
appreciate the benefits of the policies and to accept the responsibility for them
(Boughton e Mourmouras, 2002: 3). Sugerem afinal que a “apropriação local” é mais
uma consequência, do que o ponto de partida do processo, e mais, que esta é
exclusivamente centrada no Estado, desconsiderando as aspirações e participação dos
cidadãos.
Com efeito, o instrumento fundamental da apropriação local – o DSNCRP –é agora visto
por vários actores nacionais como produto de um poder executivo sem êxito: o governo
de 2007 de Jacques-Édouard Alexis, que foi retirado do poder. Os haitianos não
reconhecem o Documento como um plano verdadeiramente nacional, mas
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externamente concebido, ou, na melhor das hipóteses como um produto misto de
haitianos e da comunidade internacional
12
. Além disso, poucos actores locais
reconhecem a adequação do Documento e o actual governo dificilmente o aceita como
o plano primário de onde traçar políticas públicas concretas. A procura de uma matriz
orientadora é também perturbada com o surgimento de novos documentos, como o
mais recente relatório de Paul Collier para o Secretário-Geral das Nações Unidas
(Collier, 2009), com sugestões de alternativas económicas para o Haiti, que vem criar
confusão nas prioridades nacionais estabelecidas anteriormente.
Considerar-se a “apropriação local” um sucesso quando se segue um plano órfão como
o DSNCRP levanta também o dilema sobre que apropriação está a ser assegurada. Os
governos estão em permanente mudança e o têm um plano de desenvolvimento
coerente e consensual. Hoje ninguém assume a responsabilidade pela execução do
DSNCRP, sendo sobretudo um bom ponto de partida para os doadores. A falta de
continuidade do governo corrói a apropriação local, especialmente se os actores
internacionais têm restrições ao nível dos procedimentos na busca de parceiros mais
permanentes, como poderiam ser os profissionais da Justiça, ou mesmo plataformas
mais amplas da sociedade civil.
d. Qual é então a visão do governo sobre a apropriação local?
Qu
ando confrontado com essa questão, o governo ou os funcionários nacionais
parecem estar ainda menos familiarizado com o conceito, provavelmente por terem
menos acesso ao jargão do desenvolvimento quando comparado com os actores
internacionais. Mas quando, em termos mais específicos, lhes foi perguntado se
consideravam que as políticas de reforma da Justiça eram basicamente iniciadas pelos
doadores ou nacionalmente formuladas, tinham menos dúvidas em afirmar que as
decisões tem sido sempre, em última análise, haitianas.
Com um roteiro órfão nas mãos e uma estratégia global fraca para a reforma da
Justiça, o governo mantém um diálogo permanente com os doadores para seleccionar
as ofertas internacionais que melhor servem as necessidades mais imediatas para
melhorar o sistema. Vários entrevistados externos diriam que estas negociações são
mantidas até os actores internacionais persuadirem o governo a aceitar as suas
propostas. A duplicidade de percepção é bastante contraditória: os haitianos vêem-se
como os principais actores na tomada de decisão, enquanto os actores internacionais se
vêem a convencer os haitianos de uma forma ou de outra.
No final, sem recursos financeiros suficientes, o governo acaba por aceitar as propostas
dos doadores, num equilíbrio entre a soberania nacional e os constrangimentos
financeiros
13
. No Haiti, isto gera uma disputa entre os actores internacionais, que têm
rec
ursos e são pressionados para ver resultados, e uma espécie de resistência nacional,
que reflecte uma falta de estratégia e de vontade política, que tenta a táctica de fazer a
independência nacional prevalecer sobre a imposição internacional.
12
Entrevista a um funcionário da alta esfera governamental, Port-au-Prince, 3 de Abril 2009.
13
O Haiti gera cerca de 11% do PIB em receitas, o que o torna muito dependente de financiamento
externo. Country Report, The Economist Intelligence Unit, novembro de 2008, p. 8.
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e. As opiniões da sociedade civil
Quanto à sociedade civil, a grande maioria dos entrevistados não foram consultados
para a elaboração do DSNCRP e geralmente não revelam qualquer conhecimento sobre
o conteúdo do Documento.
As entrevistas com as organizações da sociedade civil (OSC) também mostraram que
as suas prioridades em termos de Estado de Direito são positivamente diferentes das
estabelecidas pela DSNCRP ou das visões dos actores internacionais. Quando
perguntadas sobre o que devem ser as prioridades em termos de Justiça, as OSC
manifestaram preocupações mais ligadas aos direitos sociais e económicos como a
igualdade de género ou o direito à alimentação –, muitas delas claramente ausentes
dos programas dos doadores internacionais para o reforço do Estado de Direito. Além
disso, identificam como principais obstáculos a um sólido sistema de Justiça o rculo
vicioso da impunidade e da corrupção que corroem a credibilidade das instituições, dois
temas que também são, de forma geral, evitados pelos doadores.
As OSC sentem-se, em certo sentido, à margem da reforma da Justiça por não terem
sido consultadas pelos actores nacionais ou internacionais durante a definição das
prioridades para esse sector. Alguns doadores afirmaram terem financiado o governo
para acções de consulta à sociedade civil, mas os espaços de diálogo entre o Estado e
os cidadãos organizados são extremamente fracos ou inexistentes. Também é verdade
que as OSC nem sempre aceitam colaborar com o governo, agindo mais como uma
força de oposição do que um parceiro estratégico a trabalhar para um bem comum.
Esta tendência pode encontrar as suas origens em vários factores: de uma tradição
histórica de práticas pouco democráticas e divisões políticas enraizadas, a uma
dificuldade cultural dos haitianos em estender nculos de solidariedade para além do
seu rculo familiar, ambos explicados por anos de ditadura e um comportamento
consequente de sobrevivência também alimentado pela competição por fundos da
cooperação internacional.
Este fenómeno de auto-exclusão é ainda mais agravado quando se trata de trabalhar
com a MINUSTAH. As reacções dos haitianos à Missão da ONU são muito variáveis:
enquanto a maior parte dos entrevistados partilha a opinião de que deve continuar no
terreno por garantir a segurança no país, muitos questionam, no entanto, o perfil dessa
presença no que concerne a temas de maior sensibilidade política. Todos reclamam
também o imperativo último da soberania nacional. Neste quadro, alguns questionam
se a presença deve continuar a ser ainda de cariz predominantemente militar, sendo
que opiniões mais radicais recusam qualquer presença acusando a Missão de ser uma
força de ocupação.
Em termos de Estado de Direito e da reforma da Justiça, a MINUSTAH partilha o
protagonismo internacional com a USAID, ambos reconhecidos pela grande maioria dos
entrevistados. Mas o facto de que a Missão no Haiti se esteja a desviar nas suas
funções primeiras de manutenção da segurança para funções mais profundas de
institucionalização e de capacitação do Estado, assumindo também uma actuação mais
próxima à da ajuda ao desenvolvimento, tem criado algumas dificuldades no seu
relacionamento com os haitianos.
Quanto às questões organizacionais, o facto da MINUSTAH estar a tentar mudar o seu
papel, mantendo simultaneamente a componente militar significativa e uma cultura de
trabalho do DPKO o Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU –,
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afecta também a sua imagem. Algumas dificuldades foram detectadas na tentativa de
articular duas culturas e linguagens de trabalho diferentes, entre os instrumentos de
construção da paz e os de desenvolvimento, naquilo a que se chama uma missão
integrada.
Essa duplicidade de culturas também se reflecte na operacionalização da “apropriação”.
Enquanto vários agentes judiciais de veis muito diferentes e de todas as regiões
aparentaram estar na sua maioria satisfeitos com a colaboração “harmoniosa” com os
funcionários do PNUD, esta não foi, contudo, uma regra geral para o sistema da ONU
no país. De facto, em termos gerais, entidades diferentes empregam também práticas
muito distintas, do fazer o trabalho ao trabalhar com.
Esta questão foi levantada no que toca à distinção entre as práticas de construção da
paz e do desenvolvimento. Se a sustentabilidade e a apropriação são princípios hoje
privilegiados no sector da cooperação, na área da promoção da paz medidas de curta
duração e correcções pidas têm tido efeitos perversos e têm sido criticadas pela sua
insustentabilidade e efeitos contra-producentes.
f. A experiência das agências de implementação
Ao
nível operacional, no âmbito das agências de implementação que põem em prática
projectos concretos financiados pelos doadores, a familiaridade com o conceito da
apropriação foi um pouco diferente. Os representantes das três grandes instituições – o
National Centre for State Courts (NCSC), o International Legal Assistance Consortium
(ILAC) e a Organisation Internationale de la Francophonie (OIF) – afirmaram não
apenas conhecer, mas estabelecerem o princípio como uma orientação fundamental
para o seu trabalho.
A maioria deles foram escolhidos pelos doadores por terem experiência prévia no
campo da reforma da Justiça em países em desenvolvimento. Todos eles admitiram que
os seus financiadores lhes permitem uma flexibilidade considerável na formulação das
estratégias de implementação de cada projecto e alguns até referiram terem sido
contactados antes da formulação do projecto pelo seu conhecimento técnico específico.
Todos foram adquirindo alguma familiaridade com o contexto haitiano, pois, embora
realizando projectos sobretudo de curto prazo, têm estado em contacto com o país há
vários anos.
Têm vindo a desenvolver projectos inovadores por todo o país numa estreita relação
com a realidade no terreno, tais como a criação de um sistema de arquivo judicial ou o
fornecimento de motocicletas para os juízes de paz, para que estes possam chegar a
áreas remotas para resolver pequenos problemas judiciais.
Um profundo processo de consulta e a garantia do governo de, gradualmente, suportar
os custos financeiros dos projectos são para estas organizações os principais
indicadores de que o projecto é conduzido localmente, ou seja de que há “apropriação”.
As três organizações admitiram, no entanto, que o seu critério básico de sucesso é
responder aos resultados estabelecidos pelos doadores, mesmo quando o governo,
como acontece frequentemente, não dá continuidade ao projecto.
Apesar de uma maior facilidade na operacionalização do conceito, alguns dos
representantes referiram no entanto que, quando o Estado de Direito está em causa,
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especificamente em áreas técnicas, a apropriação é uma prioridade relativa e que
actores internacionais devem assumir a iniciativa para que se verifiquem progressos na
reforma da Justiça.
Os principais obstáculos à apropriação
Uma análise contextualizada das entrevistas, à luz daquele que é um cenário político e
social muito particular não do país, como do papel de cada um dos actores e das
dinâmicas entre eles desenhadas, permite auferir alguns dos principais desafios à
operacionalização do conceito de apropriação.
g. Limitações locais
Os
haitianos acostumaram-se historicamente a uma presença internacional de monta.
A elite política foi acumulando conhecimento sobre o funcionamento das operações de
manutenção de paz, sobre o papel e os interesses dos doadores. A interacção com o
pessoal internacional tem facilitado uma cultura de diálogo e partilha, tornando possível
uma convivência e uma negociação mais fluida. No entanto, o fracasso de intervenções
internacionais anteriores gerou um sentimento de frustração e desconfiança. Resta
mencionar que a MINUSTAH é a sétima Missão das Nações Unidas no país. Para alguns,
esta presença terá gerado entre as elites haitianas uma atitude passiva, de quase-
resistência.
O primeiro factor apontado como obstáculo à apropriação é a limitada capacidade local.
A primeira opção de jovens profissionais haitianos formados é sair do país, ou trabalhar
para entidades internacionais, que ofereçam uma remuneração mais elevada. O deficit
da capacidade dos recursos humanos locais encontra fundamentalmente origem num
sistema de educação muito débil no Haiti, do vel básico ao universitário. Como
resultado, as organizações locais, sejam da sociedade civil ou de órgãos
governamentais padecem de graves carências de recursos humanos qualificados.
Outro factor sublinhado é a dificuldade na tomada de decisões e na implementação por
parte dos quadros haitianos. Mas esta procrastinação pode ser também vista como uma
forma de resistir à predominância internacional na definição das políticas no âmbito da
reforma da Justiça. Na sua obra Pays en dehors, Bartholomy refere-se à abertura e
empatia iniciais dos haitianos nas negociações com estrangeiros, mas os actores
internacionais aprenderam que, tal como o actor refere, essa atitude não significa
necessariamente que eles vão aprovar ou dar seguimento ao acordado.
A falta de continuidade dentro do governo tem provado ser um obstáculo no processo
da reforma. Nos últimos quatro anos, houve cinco Ministros da Justiça e da Segurança
Pública. Os novos ministros tendem a modificar, ignorar ou reinventar as políticas
definidas pelo seu predecessor. A ausência de um consenso nacional que poderia ser
mantido no tempo à passagem dos governos com a ajuda da sociedade civil deixa os
esforços internacionais vulneráveis à mudança e ao exercício da democracia.
Uma dinâmica fluida entre a sociedade civil e a esfera parlamentar é ainda inexistente.
Sem qualquer tipo de mecanismos de prestação de contas e de controle sobre o
governo e sobre os membros do Parlamento mais além das eleições, a democracia vê-
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se limitada. A sociedade civil é caracterizada pela sua fraca capacidade de articulação
com os poderes soberanos e de formulação de propostas e soluções.
Um outro entrave à apropriação e a um processo mais amplo de transformação social
será a falta de vontade política do Presidente, do governo e da elite. O Presidente não
acredita no Estado”
14
e usa tácticas como “dividir para reinar” com os doadores para
complicar e dificultar a coordenação de trabalho, numa base multilateral. Um sistema
de Justiça eficaz tornaria todos os haitianos iguais perante a lei e poria em risco uma
certa elite e os esquemas vigentes de corrupção e clientelismo. O Presidente tem, por
exemplo, sido pressionado pela comunidade internacional para escolher o presidente do
Supremo Tribunal, o que daria um impulso à reforma e à criação do Conselho Superior
da Magistratura desde Novembro de 2007. O sector aguarda ainda, no entanto, por
essa decisão.
h. Limitações internacionais
Nu
ma situação complexa de transição para um funcionamento democrático do Estado,
envolvendo a criação de instituições, de competências e de uma cultura de Estado de
Direito, os actores da consolidação da paz e do desenvolvimento devem trabalhar em
conjunto (Hansen e Wiharta de 2007 : 5).
Tem sido demonstrado que os períodos pós-conflito são política e socialmente mais
voláteis. O cenário político recente no Haiti é, nesse sentido, fascinante. Nos últimos
três anos, o governo caiu duas vezes incluindo o Ministro da Justiça, que tinha
trabalhado lado a lado com a MINUSTAH sobre as leis sobre a independência do
sistema judicial. Com um novo governo, um novo ministro é nomeado, rejeitando por
inércia ou indiferença os anteriores progressos. Simultaneamente, duas comissões
presidenciais foram criadas, a par com duas outras no quadro do Ministério da Justiça.
A comunidade internacional tem que lidar com a multiplicação de actores, dividida
entre prestar apoio ao governo ou ao Presidente e desencorajada com demasiadas
manobras políticas e uma insuficiente capacidade de implementação. Diante destes
desafios, a comunidade internacional está obrigada a trabalhar com personalidades e
não com instituições. A sustentabilidade dos seus programas neste ambiente instável é
extremamente complexa.
Mas neste quadro enrevesado, os doadores defrontam-se com importantes limitações
técnicas e financeiras. O primado dos resultados céleres tem sido apontado como
altamente prejudicial dada a pressão exercida pelos doadores às agências de
implementação. Consequentemente, os resultados são medidos quantitativamente e
não tomam em consideração outras variáveis de sucesso, tal como apropriação.
Frequentemente, esta é sacrificada em nome dos resultados.
Os programas podem funcionar alguns anos, mas uma vez que a prazo as prioridades
dos doadores mudam consideravelmente (também eles voláteis às suas próprias
opiniões púbicas e eleitorado e a um contexto internacional mais amplo), dependendo
dos resultados que vão apresentando, estes programas são muitas vezes encerrados.
Um exemplo concreto foi o projecto do julgado de paz itinerante nas províncias do sul
do Haiti mencionado anteriormente. Os juízes foram fornecidos com motocicletas para
14
Entrevista a um funcionário das Nações Unidas, 20 de Outubro 2009.
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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chegar às populações remotas. A demanda efectiva dos juízes pelas populações
ultrapassou de longe as expectativas, mas infelizmente o programa foi encerrado
porque o financiamento não incluía o pagamento da gasolina. Conseguir acostumar a
população a estes serviços, mas sem planear a sustentabilidade destes projectos, cria
novas necessidades, sem garantir os meios para lhes continuar a dar resposta.
Os instrumentos de prestação de contas e de avaliação da transparência disponíveis
são profundamente assimétricos entre locais e actores internacionais. Os actores
internacionais exigem sobre os locais um controlo de fundos cerrado e são severos na
exigência de transparência. Mas muitos haitianos entrevistados salientaram a falta
destes mecanismos ao seu dispor, que ultrapasse uma avaliação de resultados feita
pelos doadores em função das metas por eles mesmos estabelecidas. Demandam assim
mecanismos de prestação de contas nacionais sobre a intervenção dos doadores. Como
dizia um entrevistado: quantos mais projectos dispendiosos e ineficazes temos que
tolerar?
15
Foi
salientado que a apropriação figura na maioria dos documentos doutrinários sobre a
construção da paz de todos os principais doadores. No entanto, permanece bloqueada
nos discursos políticos como um conceito e uma boa prática sem uma tradução efectiva
na implementação ou nas estratégias no terreno. Isto foi ilustrado sintomaticamente
pela falta de familiaridade com o conceito dos construtores da paz internacionais e
também porque, ao referirem-se ao Estado de Direito, alguns realmente tomaram-no
como um valor democrático universal e, portanto, deliberadamente ignoraram a
necessidade de apropriação.
Uma parte considerável do problema reside na falta de uma definição consensual e na
controvérsia existente em torno do conceito, e na falta de orientações sobre como se
deve materializar no terreno. O conceito não é absoluto, nem toda a apropriação é boa
apropriação: seleccionar parceiros locais é crucial, filtrando aqueles que realmente
representam a vontade da população em geral. Os actores internacionais têm-se
centrado sobretudo na colaboração com o governo, por facilidade de procedimento.
Mas, na verdade, as políticas de estrita “iniciativa governamental” saídas desta parceria
não têm correspondido às expectativas reais da população, erodindo a legitimidade do
governo, bem como a internacional. Ainda que seja fundamental o reforço do Estado, a
vacuidade de abordagens complementares iniciadas na base (bottom-up) vai diminuir o
apoio dos cidadãos. Em termos de sustentabilidade uma abordagem estritamente
baseado no Estado tem os seus custos porque no final é a população que terá de
manter ou rejeitar a paz e os processos de construção do Estado, que não existe
poder do Estado democrático sem o consentimento e a aceitação das populações.
Os métodos mais utilizados para promover a apropriação são processos de consulta,
embora mesmo estes tenham sido limitados e meramente pontuais. Alguns doadores
apoiaram a consulta às populações, afirmando que tinha fundos reservados para o caso
do governo querer realizar auscultações sobre a reforma da Justiça. No entanto,
acabaram por declarar depois que a consulta não tinha tido lugar, o que era positivo
uma vez que os Haitianos estavam mal preparados para um tal exercício
16
. Em alguns
cas
os, os actores locais sentiram que a consulta ou a participação na elaboração de um
15
Entrevista a um representante da sociedade civil, Port-au-Prince, 13 de Abril 2009.
16
Entrevista a um representante de um dos países doadores, Port-au-Prince, 30 de Março 2009.
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O caso da reforma da justiça no Haiti
Amélie Gauthier e Madalena Moita
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documento servia mais para legitimar as políticas de iniciativa internacional do que
para realmente auscultar segmentos mais amplos da população haitiana.
A intervenção dos doadores através das agências de implementação que têm
capacidade para executar programas de grande monta é também uma forma de
contornar a apropriação e evitar que trabalhem directamente com a sociedade civil.
Usurpa assim às OSC e à população o direito a participar na reforma da Justiça e a
desempenhar o seu papel na influência das políticas públicas.
Os obstáculos à apropriação são inúmeros, da vontade política dissimulada, às
limitações técnicas e à volatilidade política. O conceito deveria ser desenvolvido não
a vel político mas também a nível estratégico e operacional para reflectir a natureza
complexa dos períodos de transição. Os esforços internacionais de consolidação da paz
não podem estar limitados a uma profecia auto-realizável; deve ser um compromisso
de longo prazo com ferramentas flexíveis a cada contexto.
Con
clusões
Este estudo sobre como “Aprender a construir uma paz sustentável” teve como
objectivo analisar a forma como conceitos-chave das políticas, das orientações, das
boas práticas são definidos, traduzidos e aplicados em situações concretas no terreno.
Vários factores foram identificados como obstáculos à apropriação. Estes centraram-se
principalmente na capacidade e vontade política dos haitianos, por um lado, e nas
restrições de procedimentos dos actores internacionais.
Na base destes problemas técnicos e de terreno, uma questão essencial foi levantada:
se a comunidade internacional estará realmente preparada para permitir que os actores
locais determinem os resultados dos processos de reforma. Apropriação real significa
aceitar não apenas as soluções mas também os processos que podem não estar de
acordo com os modelos ocidentais (Hansen e Wiharta, 2007: 5). Implica abdicar das
premissas erróneas de que o conhecimento universal é mais importante do que o
conhecimento local e de que a legitimidade internacional é mais importante do que a
legitimidade interna (Sending, 2009).
O facto é que a solução para os dilemas da apropriação que emergiram desta pesquisa
não são facilmente corrigíveis. Um sentimento de frustração impera da verificação da
incompatibilidade actual entre os procedimentos-padrão internacionais e a necessidade
de deixar amadurecer os processos de desenvolvimento e de reconstrução pós-conflito
nacionais. O primado dos resultados céleres surge como um dos principais factores de
divergência: considerando que as intervenções de construção da paz são ainda
concebidas para curtos períodos de tempo, num país como o Haiti onde soluções
rápidas são inconcebíveis e inviáveis dado o mau estado das instituições um apoio e
um compromisso a longo prazo são fundamentais. A apropriação exige a identificação
de necessidades, a elaboração de prioridades e estratégias, a participação na
formulação de políticas através de um contributo activo nos processos de consulta, e o
desenvolvimento de mecanismos de prestação de contas. A evolução da narrativa da
construção da paz é positiva, mas insuficiente se não for acompanhada por uma
reforma institucional sólida das Nações Unidas e das agências de desenvolvimento que
permita mudar o paradigma rígido e uniforme para várias abordagens sensíveis e
adaptáveis a cada contexto.
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O caso da reforma da justiça no Haiti
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A comunidade internacional no âmbito da reforma da Justiça poderia reorientar a sua
estratégia e as suas práticas para que aquela adquirisse a legitimidade imprescindível à
futura sustentabilidade dos resultados. Melhorar o relacionamento dos cidadãos com o
aparelho de Justiça e do Estado e conhecer melhor as necessidades dos cidadãos
seriam certamente factores relevantes a considerar. Reforçar a apropriação local
poderia ser um meio importante para alcançar estes objectivos e garantir alguns dos
progressos feitos até agora no Haiti.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
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REDES SOCIAIS: COMUNICAÇÃO E MUDANÇA
Gustavo Cardoso
Coordenador do Mestrado em CCTi (IUL), investigador (CIES-IUL) e professor de Media
e Sociedade (ISCTE–IUL). Desenvolve trabalho com Departamento de Comunicação
e Estudos da Performativos da Universidade de Milão. Tem cooperado internacionalmente
em redes europeias de investigação com IN3 (Internet Interdisciplinary Institute) em Barcelona,
com o WIP (World Internet Project) na USC Annenberg, COST A20 “The Impact of the Internet
on Mass Media”, COST 298 “Broadband Society” e COST 609 “Transforming Audiences”. Conselheiro
da Sociedade da Informação e políticas de telecomunicações para a Presidência da República
Portuguesa (1996-2006) e em 2008 foi escolhido pelo Fórum Econômico Mundial como “Young Global
Leader. Co-editor, com Manuel Castells, do livro “Sociedade em Rede: do Conhecimento à Acção
Política” e Editor Associado do journal IJOC (USC Annenberg) e do journal IC&S (Routledge). É
membro dos painéis de avaliação do European Research Council e da European Science Foundation.
CLÁUDIA LAMY
Mestranda em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação (ISCTE-IUL), licenciada em
Direito na Faculdade de Direito (Universidade de Lisboa). Desenvolve trabalho de investigação
nas áreas da Comunicação Política e dos Novos Media em instituições como o OberCom
(Observatório da Comunicação), o LINI-ISCTE (Lisbon Internet and Networks Institute),
o CIES-ISCTE, o CIMDE-IPL (Centro de Investigação Media e Democracia), e a ERC
(Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Entre os seus trabalhos publicados contam-se
abordagens sobre o Pluralismo nos Media, a Literacia Mediática, e o Activismo Político online.
Resumo
As redes sociais virtuais vieram oferecer a possibilidade de um debate aberto e plural, onde
todos os que detenham a necessária literacia e meios podem participar na criação e difusão
de informação. Pressionando agentes políticos e determinando a agenda de muitos media,
os utilizadores demonstram estarmos ante uma plataforma ideal para a criação de
verdadeiros movimentos sociais ou de eventos mais ou menos fugazes, como manifestos ou
campanhas virtuais. Não obstante, para que consigamos compreender o papel das redes
sociais virtuais no mundo actual, haverá que responder previamente a algumas questões.
Estaremos ante um novo modelo comunicacional, onde o produto da interactividade
“desinteressada” cria uma aura de confiança na informação divulgada, por vezes bem
superior à presente nos old media? Será essa interactividade a possibilidade de combate a
um desprendimento crescente do cidadão ante a res publica? Teremos no jornalismo do
cidadão, veiculado através das redes sociais virtuais, a consagração de um verdadeiro
quarto poder? Por outro lado, poderemos apelidar as diversas acções colectivas a que temos
assistido de verdadeiros “movimentos sociais”? O artigo que se segue pretende abordar
estas e outras questões que se colocam no intricado mundo do social cibernético.
Palavras-chave
Movimento social; redes sociais; Inte
rnet; comunicação em rede; comunicação política
Como citar este artigo
Cardoso, Gustavo; Lamy, Cláudia (2011). "Redes sociais:
comunicação e mudança”.
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art6.
Arti
go recebido em Setembro de 2010 e aceite para publicação em Março de 2011
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Redes sociais: comunicação e mudança
Gustavo Cardoso e Cláudia Lamy
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REDES SOCIAIS: COMUNICAÇÃO E MUDANÇA
Gustavo Cardoso e Cláudia Lamy
Introdução
A comunicação e os med
ia em geral não são apenas janelas para o mundo. Pelo
contrário, constituem fontes de mudança, valores, atitudes, formas de encarar o
mundo, ideologias, olhares sobre o “outro”, mundos e futuros possíveis.
A televisão foi, ou ainda é, a caixa que mudou o mundo; os jornais lançaram sementes
de mudança de antigos para novos regimes; e, mesmo num tempo mais próximo,
jornais, rádio e televisão contribuíram, desde Portugal, para mudar Timor-Leste
(Cardoso, 2006). A Internet, os seus blogs e as redes sociais deram-nos outros olhares
sobre o Irão; nos EUA a escolha de um candidato a vice-presidente foi anunciado via
SMS; em Moçambique a revolta popular de Setembro de 2010 foi organizada via SMS e
acompanhada em Maputo e no mundo via Facebook.
Esperámos cerca de 50 anos para ver surgir uma nova tecnologia de comunicação que
viesse colocar em causa a importância da televisão na nossa sociedade: designamo-la
por Internet. A razão pela qual ela colocou em causa a ideia de supremacia mediática
da TV tem muito a ver com a sua oferta de informação, entretenimento, comunicação e
espaço comercial, mas não só. Tal como a televisão, também a Internet evoluiu e,
nessa evolução, acabou por se tornar um instrumento formidável de comunicação e
mudança. Não existem países iguais, só tecnologias iguais, e embora a Internet sempre
tenha sido um espaço social de comunicação - e não apenas um espaço de informação
- ao adoptarmos a denominação Web2.0 colocámo-nos perante a possibilidade de a
nossa maior motivação para o uso da Internet ser a comunicação. Esse outro olhar
sobre o papel da comunicação nas sociedades informacionais (Castells, 2009) permitiu-
nos constatar o papel da comunicação em múltiplos eventos de mudança social que ao
longo dos últimos anos temos presenciado nos mais diversos espaços geográficos e
sociais. Embora existindo múltiplos exemplos de apropriação das denominadas “redes
sociais” em contextos de mudança, escolhemos nesta análise focar o exemplo da
eleição de Mahmoud Ahmadinejad no Irão e os protestos assumidos em torno do
“Movimento Verde”. A escolha deste exemplo obedeceu à busca de um evento que
pudesse ser paradigmático da apropriação social da mediação nas redes sociais, mas
que também permitisse a comparação com outros exemplos como foram os protestos
de Setembro de 2010 em Moçambique e a eleição de Barack Obama em 2008. Pois,
não através a utilização da campanha eleitoral nos spin diários da TV e nas redes
sociais se faz a mudança. Existem outros contextos para além da sociedade Norte
Americana e Europeia onde a experimentação decorre. muitas outras práticas de
comunicação possíveis em direcção à mudança social. Mas, se em teoria todos
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podemos usar a comunicação da Internet para mudar as práticas e representações
sobre o que nos rodeia, na prática uma rie de escolhas prévias a fazermos. Essas
escolhas são essencialmente escolhas de como pensar a nossa relação com a mediação
e qual o grau de intervenção que pretendemos ter. Como nos demonstra Jonathan
Taplin no seu blog
1
depende de s a forma como queremos relacionarmo-nos com o
mundo, observando apenas, ou pensando o mundo e o nosso papel nele. No entanto,
queiramos ou não assumir um papel activo na mudança, ela está em curso, como
explica Manuel Castells (2009). Para este autor, a relação entre poder e comunicação
nunca foi tão directa e o primeiro passo para exercer esse poder é compreender como
hoje ele funciona. Esta análise procura ser um contributo para essa auscultação.
I. Comunicação em rede e Redes Sociais
Todas as sociedades o caracterizadas por modelos de comunicação e não apenas por
mod
elos informacionais (Wolton, 1999; Colombo, 1993; Himanen, 2006; Castells 2006;
Cardoso 2006). As nossas sociedades de informação, têm assistido à emergência de
um novo modelo comunicacional. Um quarto modelo que se pode acrescentar aos três
modelos anteriores e que podem ser colocados em ordem cronológica, em termos dos
seus ciclos de afirmação social (Ortoleva, 2004).
O primeiro modelo tem sido definido como comunicação interpessoal, que assume a
forma bidireccional entre duas ou mais pessoas dentro de um grupo. O segundo
modelo, também profundamente enraizado nas nossas sociedades, assenta numa
comunicação de um-para-muitos, onde um indivíduo envia uma única mensagem para
um grupo limitado de pessoas. O terceiro modelo, com o qual detemos uma menor
experiência em termos históricos, resume-se à comunicação em massa, onde, graças à
utilização de tecnologias específicas de mediação, uma única mensagem pode ser
enviada a uma massa de pessoas, i.e., é encaminhada para uma audiência de
dimensão desconhecida que, como tal, é ilimitada ab initio (Cardoso 2008; Thompson,
1995).
O quarto modelo comunicacional, que parece caracterizar as nossas sociedades
contemporâneas, é formado pela capacidade de globalização comunicacional,
juntamente com a interligação em rede dos meios de comunicação de massa e
interpessoais e, consequentemente, pela emergência de mediação em rede sob
diferentes padrões de interacção. Esses padrões poderão tomar a forma de Auto-
Comunicação de Massa (Castells, 2009), que tem lugar quando utilizamos o Twitter,
blogs ou SMS; de Comunicação Interpessoal Multimédia, que acontece quando usamos
o MSN ou o Google Chat ou mesmo o Skype; de Comunicação Mediada de Um para
Muitos, quando usamos o Facebook com os nossos "amigos"; e, claro está, os casos de
comunicação de massa e comunicação interpessoal não mediada. Todos esses padrões
têm por base os supra-citados modelos de comunicação e que, através da evolução da
mediação, permitem reconfigurá-los num novo modelo comunicacional.
A organização dos usos e interligação em rede dos media inseridos nesse novo modelo
de comunicação encontra-se directamente relacionada com os diferentes graus de
interactividade permitidos pelos meios de comunicação actuais (Cardoso 2008).
1
V.g.: http://jontaplin.com/
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Se é verdade que temos construído modelos comunicacionais nas nossas sociedades, é
igualmente verdade que os principais paradigmas comunicacionais formatam o que um
determinado sistema de media poderá ser (Cardoso 2008). Os nossos actuais
paradigmas comunicacionais parecem ser construídos em torno de uma retórica
baseada, essencialmente, na importância da imagem em movimento, combinada com a
disponibilidade das novas dinâmicas de acesso à informação, com novos e inovadores
papéis, agora também eles entregues aos utilizadores, e com profundas alterações nos
modelos de informação e entretenimento.
Os nossos conteúdos - sejam eles notícias, informação ou entretenimento - parecem
ter mudado graças à presença de conteúdos fornecidos pelos próprios utilizadores de
media e não apenas as empresas de comunicação per si, dando origem à co-existência
de diferentes modelos de informação para diferentes blicos. Mas não somente a
informação noticiosa se alterou: o mesmo aconteceu com o entretenimento.
A inovação nos modelos de entretenimento reflecte-se, quer na disponibilidade de
conteúdos gerados pelos utilizadores, quer nas alterações introduzidas pelas empresas
de media aquando da sua procura de novos conteúdos e "formatos", das suas
experiências com o esbater de fronteiras entre géneros tradicionais de programação e
as novas abordagens aos valores sociais (tais como a privacidade e a reserva da vida
privada), juntamente com as mudanças no seio da apropriação social do tempo, espaço
e ética, que se reflectem na forma como são contadas as histórias e escritos os guiões.
O modelo comunicacional desenvolvido nas sociedades de informação, onde o
paradigma de organização social predominante assenta na rede (Castells, 2002) é
apelidado de Comunicação em Rede (Cardoso, 2009). Este modelo não substitui os
anteriores, tendendo antes a interligá-los, produzindo novos formatos de comunicação
e permitindo novas formas de facilitar a capacitação, logo, a autonomia comunicativa.
Nas sociedades de informação, onde a rede é um elemento central da organização, um
novo modelo comunicacional tem vindo a tomar forma: um modelo caracterizado por
uma nova rede interpessoal, de um para muitos e de massa, que conecta públicos,
participantes, utilizadores, empresas de difusão e editoras sob uma matriz de rede
mediática.
Num ambiente comunicação em rede, a mediação (Silverstone, 2006), as dietas
mediáticas (Aroldi & Colombo, 2003), as matrizes de media (Meyrovitz, 1985) e o
sistema de comunicação em si (Ortoleva, 2004) têm sido transformados. Essas
transformações nas relações entre os diferentes meios de comunicação, que
actualmente experienciam mais uma interligação em rede do que uma verdadeira
convergência - seja em termos de hardware, serviços ou redes - fazem da mediação
uma experiência integrada, combinando o uso de diferentes meios: do telefone à
televisão, do jornal ao jogo de vídeo, da Internet à rádio, do cinema ao telemóvel,
colocando os utilizadores, as suas práticas e as necessárias literacias, uma vez mais, no
centro da análise (Livingstone, 1999; Cardoso, 2007; Cardoso, 2008).
É neste contexto que o uso das redes sociais se desenvolve, ora como auto-
comunicação de massa, como no caso do Twitter, ora de comunicação mediada de um
para muitos, como acontece com o Facebook.
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II. Serão as “Redes Sociais” da internet Redes Sociais?
Ainda não está desvelado o fim e potencial dessas grandes redes sociais virtuais, mas
sem dúvida elas afectam e promovem modos de relação
(Machado & Tijiboy, 2003).
O estudo das redes, iniciado no domínio das Ciências Exactas com a Teoria dos Grafos
de Ëuler, traduziu-se no domínio das Ciências Sociais em três modelos: o modelo de
redes aleatórias, o modelo de mundos pequenos e o modelo de redes sem escala
(Recuero 2004: 4).
O modelo de redes aleatórias, de Erdös e Rényi, explica o funcionamento da rede social
através da metáfora da festa: bastaria uma conexão entre cada um dos convidados de
uma festa para que todos estivessem conectados ao final dela (Recuero, 2004: 4).
Assim, a partir de um indivíduo comum a todos, desenvolve-se um cluster, conjunto de
pessoas interligadas, ligação esta que permite uma relação futura entre vários clusters.
o modelo dos mundos pequenos de Granovetter, distingue laços sociais, separando
laços tidos como fortes (entre amigos próximos) e fracos (entre meros conhecidos): se
os primeiros unem pessoas que partilham interesses, criando clusters ou
comunidades, os segundos permitem não apenas a interacção entre indivíduos
pertencentes a clusters distintos mas também entre as comunidades a que pertencem,
criando desse modo uma rede social (Recuero, 2004: 5-6). A partir desta visão, Watts
e Strogatz demonstraram quão fácil é a conexão entre elementos de diferentes
comunidades: a distância média entre quaisquer duas pessoas no planeta não
ultrapassa um número pequeno de outras, bastando para a sua interacção que alguns
laços aleatórios entre grupos tenham lugar (Buchanan, 2002).
O modelo das redes sem escala surge como crítica à visão de Watts: as redes não têm
na sua base uma aleatoriedade inerente mas leis específicas, como a de conexão
preferencial ("rich get richer”) (Barabási, 2003). Por outro lado, as redes não são
igualitárias e os mundos não são pequenos, em virtude da existência de elementos
altamente conectados (hubs). Ora, qualquer indivíduo preferirá conectar-se a outro que
apresente um elevado número de ligações, pois tal permitir-lhe-á aceder a todas elas.
Tal comprova a existência de uma conexão preferencial: os hubs serão os “ricos que
mais enriquecem” uma vez que, possuidores de um panóplia imensa de contactos,
serão também os mais procurados por aqueles que o rodeiam (Recuero, 2004: 6).
Mas poderemos nós transpor esses modelos para as redes sociais online?
No modelo de redes aleatórias parece existir a mais-valia da explicação da conexão
entre hubs e demais intervenientes através da aleatoriedade afinal, os primeiros
apenas contactam os demais para promoção do seu perfil, ignorando as características
e interesses destes últimos. Não obstante, nem todos os convites nas redes sociais
assentam nesta premissa: muitos baseiam-se em interesses próprios, como
reencontrar amigos, estabelecer contactos profissionais ou procurar eventuais relações
amorosas (Recuero, 2004: 7 e segs.).
No modelo dos mundos pequenos, o grau de separação entre membros de uma rede
social online é muito pequeno, é um facto, mas não porque tal seja uma regra baseada
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em dois tipos de laços (fracos e fortes): sê-lo-á devido à existência de indivíduos que
vêem na acumulação de contactos um fim em si mesmo, ainda que jamais interajam
com aqueles a quem Recuero apelida de “amigos de todo o mundo” ou Barabási de
hubs, “pessoas altamente conectadas, com um imenso mero de amigos, que
contribuem significativamente para a queda da distância entre os indivíduos no
sistema” (Barabási, 2004: 7 e segs.).
Relativamente ao modelo das redes sem escala, Recuero defende ser impossível
aplicá-lo em toda a sua amplitude dada a inexistência de uma conexão preferencial:
serão os hubs a convidar aleatoriamente outros utilizadores para a sua lista de
contactos e não o inverso, em prol do seu objectivo único (a "colecção de perfis”).
Perante a ausência de qualquer interacção que não a inicial, poderemos ter estes
elementos como pertencentes a uma verdadeira rede social? (Recuero, 2004: 7 e
segs.).
A análise e explicação do funcionamento das redes virtuais apenas a partir dos modelos
aplicados às redes não mediadas pela Internet afigura-se difícil: pois muitas das suas
características não se enquadram ou contrariam mesmo as premissas dos modelos
apresentados. No entanto, tal não invalida a existência de redes sociais no meio online,
elas existem a partir do momento em que os indivíduos nesse contexto desenvolvem
actividades em conjunto. Estaremos apenas perante uma realidade que adapta ao seu
contexto, limitações e mais valias o interesse das ligações sociais, partilhadas por todos
os seus utilizadores (Cardoso, 2003; Schroeder, 2005: 2). Falar de formas de relação
social na Internet é discutir como os cidadãos apropriam as novas possibilidades de
comunicação, como se posicionam face às suas vantagens e dificuldades. Ou, como
afirma Bennett, é a interacção entre a Internet e seus utilizadores e, por seu turno,
as suas interacções em contextos sociais materiais - que constituem a matriz dentro da
qual podemos localizar o poder dos novos media na criação de diferentes espaços de
discurso e de coordenação de acções (2003:18).
Alguns autores nada vêem de excepcional nestas novas redes, que não passarão de
formas de sociabilidade transpostas para novas plataformas: é, por exemplo, a opinião
de Wellman, para quem a Comunicação Mediada por Computador é apenas uma das
muitas tecnologias utilizadas pelas pessoas através das quais as redes de comunidades
existentes comunicam" (Hamman, 1998). Claro está que Wellman se baseia na
premissa de que grande parte dos contactos virtuais terão como propósito serem
transpostos para a vida offline, o que nem sempre acontece: muitos dos laços virtuais
tendem a ser mantidos nesses mesmos espaços, podendo nunca passar para o
contacto presencial, inclusivamente devido à distância geográfica (Recuero, 2004: 9).
No debate sobre a territorialidade das comunidades na Internet é sugerida uma
distinção entre comunidades online e comunidades virtuais. Associada a comunidades
online encontra-se a recriação no ciberespaço espaço sem a dimensão e
características do espaço sico de locais aos quais se encontravam associadas
comunidades offline. associada a comunidades virtuais encontra-se a formação de
comunidades no ciberespaço sem qualquer correspondência com um espaço físico pré-
existente, ou seja, pontos de encontro para todos quantos partilhem um mesmo
conjunto de interesses, mas cuja reunião numa mesma localização cibernética não é
possível dada a distância geográfica ou outros constrangimentos (Cardoso, 1999).
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Partindo do cruzamento da análise entre as teorias das redes e a dimensão empírica
associada aos sítios denominados Social Networking Sites (SNS) como o Facebook, Hi5,
Orkut ou microblogging, como o Twitter, parece claro que estamos perante redes
sociais na acepção de espaços de interacção social e de criação de autonomia.
III. A prática social em rede na internet
Existe uma pergunta base no contexto de análise das redes sociais na Internet: o que
faz
emos nós com as redes sociais? Entre as possibilidades tecnológicas e os reais usos
todo um processo de domesticação (Silverstone, 1994) que marca para onde a
tecnologia evoluíra nos seus usos. A figura seguinte mostra-nos o tipo diversificado de
usos, no contexto dos SNS, que podemos encontrar em Portugal
Fig I – “Quais as ferramentas que mais utilizas na tua rede social?”
Fonte: CIES ISCTE, A S
ociedade em Rede, 2010
N=1255 (total de respostas); n=35 (utilizadores de Internet e plataformas de redes
sociais)/ 25% do total de respostas; 56% de utilizadores de Internet.
Desse contexto de usos ressalta uma divisão possível em actividades de fortalecimento
de laços sociais para com amigos e conhecidos (Mensagens, Chats, Alertas de
Aniversários, Escrita na Parede), gestão de capital social (Procura de Amigos, Envio de
Presentes, Jogos, Criação de grupos) entretenimento (Quizzes e Testes), expressão
identitária (Colocação de deos) e intervenção social (Apoio a Causas). Este artigo i
incidir essencialmente sobre a dimensão de intervenção social nas redes da Internet.
Existem evoluções bastante significativas no que respeita à redes sociais online, em
especial no tocante à propagação da informação e à sua fiabilidade: a título de
exemplo, a CNN afirmou temer mais a concorrência de redes como o Facebook ou o
Twitter que a das demais cadeias televisivas
2
. A confiança neste tipo de fontes parece
2
V.g.: http://www.agenciafinanceira.iol.pt/empresas/media-cnn-facebook-twitter-hi5-agencia-
financeira/1146270-1728.html
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ter vindo a incentivar a sua utilização, suplantando a procura de informação noutros
media.
Claro está que nunca poderemos esquecer estarmos a analisar o mundo cibernético e
não a realidade mundial como se sabe, a televisão e os seus conteúdos continuam a
ser aqueles aos quais os cidadãos dão primazia, nomeadamente pelo acesso facilitado
que têm à tecnologia utilizada e pela desnecessidade imediata de literacia específica.
Dado o crescimento exponencial das redes promovidas pelo Facebook e Twitter,
necessitamos compreender melhor a sua oferta.
Tal como outras redes sociais, o Facebook permite a criação de um perfil, nele sendo
inserida informação pelo utilizador, desde dados como nome, idade ou estado civil, a
informação como opções ideológicas, políticas, ou causas abraçadas. Existem
mecanismos de manutenção de privacidade nesta rede, quando não mesmo o
anonimato: a utilização de nicknames, a não colocação de fotos ou elementos pessoais,
não parecendo as opções mais comuns, são possibilidades reais.
Os utilizadores podem apoiar causas, instituições ou pessoas, tendo igualmente a
oportunidade de se juntarem a fóruns de discussão e debate. Podem ainda comunicar
através de mensagens assíncronas (a priori, apenas visíveis para os mesmos), de um
chat, e mediante posts públicos, acessíveis a todos os seus contactos. Nestes, os
contactos directos do utilizador (ou indirectos, se assim determinado) poderão
comentar o seu conteúdo, tendo ainda a possibilidade de partilhá-lo.
Actualmente, o Facebook é a rede social na Internet que reúne um maior número de
adeptos (517.480.460 utilizadores a nível mundial, 149.976.980 indivíduos inscritos
apenas na Europa
3
), suscitando uma tal devoção a ponto de suscitar a emergência de
com
portamentos patológicos
45
. Fruto deste sucesso, as suas receitas publicitárias têm
vindo a aumentar de forma exponencial, ultrapassando as melhores expectativas: em
2009, atingiram 800 milhões de dólares, com um lucro quido de dezenas de milhões
6
.
O F
acebook assume-se assim como comunicação mediada de um para muitos”, pois
cada utilizador sabe quem são os seus “amigos”, pois autoriza a sua “amizade”.
após a aceitação do próprio pode ele começar a ser “amigo” de quem o convida.
o Twitter evidencia outras características, constituindo uma forma de microblogging
7
baseada na publicação instantânea de textos até 140 caracteres, o Twitter permite a
utilização de mensagens instantâneas de texto, essencialmente para partilha de
experiências e opiniões entre comunidades de cidadãos (Java, Song, Finin & Tseng,
2007: 2; Miard, 2009: 2). Mas nem todos o utilizam de forma idêntica: se uns surgem
como fontes constantes de informação e comentário, outros apenas assistem à difusão
de opiniões, sem uma participação activa.
De acordo com um estudo realizado relativamente a estes microbblogers, os posts mais
comuns centram-se na rotina diária, no que o utilizador se encontra a fazer no
3
V. g.: http://www.facebakers.com/countries-with-facebook/
4
Clínicas para tratar obsessão: http://www.ionline.pt/conteudo/52583-viciados-no-facebook-ja-ha-
clinicas-tratar-obsessao.
5
V.g.: http://www.facebakers.com/countries-with-facebook/
6
V.g.:http://www.tvi24.iol.pt/media-e-comunicacoes/facebook-r
edes-sociais-media-internet-agencia-
financeira/1171052-5239.html.
7
Distingue-se do blogging, nomeadamente, pelo facto de apenas permitir um parco número de caracteres
e por se encontrar relacionado com uma frequência de actualizações muito superior à do blogging (Java,
Song, Finin & Tseng, 2007: 2).
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momento, e qual o seu estado de humor (Java, Finin, Song & Tseng, 2007: 6/7).
relativamente a conversações, o existe qualquer possibilidade de resposta directa a
um post colocado por uma terceira pessoa, tal como acontece com o Facebook, razão
pela qual os utilizadores optaram por usar o mbolo “@”, seguido do username do
utilizador com quem querem comunicar.
Também a difusão de informação diária constantemente actualizada constitui uma das
mais interessantes aplicações do Twitter, tendo provado permitir uma sensibilização
muito rápida da população utilizadora, para além de constituir um modo simples para
aqueles que não têm outras formas de comunicar a sua indignação ante regimes
ditatoriais ou restritivos da liberdade de expressão
8
(Correia, s/d: 4). De facto, com a
con
vergência dos media, é agora possível a utilização do telemóvel para o envio de
mensagens em substituição do acesso à homepage, permitindo a divulgação dos mais
variados conteúdos a partir de qualquer local.
Claro que toda esta facilidade de acesso e não restrição de conteúdos detém
implicações menos positivas: o perigo da desinformação, em especial de propagada
pelos hubs mais fortes; rumores são rapidamente repetidos e amplificados através
desta rede, em especial se gerados ou partilhados pelos membros com mais contactos.
Entre adeptos e pessimistas, ambos com fortes argumentos relativamente à matéria
em apreço, a verdade é que as redes sociais na Internet e noutros espaços de
mediação, como as redes telefónicas, nos obrigam a repensar o social e o político nas
sociedades do séc. XXI. O que motiva os indivíduos a participar em novas formas de
relacionamento social através da mediação?
A ideia de uma plataforma em que todos os cidadãos são convidados a debater, de
modo racional, as questões da sociedade onde se inserem, favorecendo o fluxo da
informação e conhecimento, constitui o ideal de quarto poder: os media, em geral,
deveriam efectivar-se como tal, permitindo que as vozes populares alcançassem os
poderes decisores (Hartley, 1992) a materialização da visão Habermasiana de esfera
pública, da ágora ateniense ou do townhall da Nova Inglaterra, algo que não parece
ocorrer nos dias de hoje (Cardoso, 2003). Esta exigente mas desejável visão dos media
foi grandemente criticada, em especial porque jamais seria igualitária: se, outrora,
apenas os burgueses literados poderiam aceder aos conteúdos dos jornais, de forma a
fomentar a troca de ideias, também agora apenas uma elite conseguiria participar
plenamente numa tal instância.
Perante este estado da arte, alguns autores vêem nos novos media em geral, e nas
redes sociais online em particular, uma forma não apenas de atingir o debate não
conseguido nos media tradicionais, mas um modo de realização da participação cívica,
onde interesses comuns permitem a angariação de opiniões, decisões e intervenções
em matérias específicas. Em parte, tal parece encontrar algum eco: como aponta
Castells, “na arena internacional, estão a crescer novos movimentos sociais
transfronteiriços na defesa das causas das mulheres, dos direitos humanos, da
preservação do ambiente e da Democracia política, fazendo da Internet uma
ferramenta essencial para disseminar informação, organizar e mobilizar (2002: 475)
8
A organização Reporters Sans Frontières (v.g. http://en.rsf.org/ ) luta pela liberdade de imprensa. Com
sede em Paris, tem representações em vários países, sendo o seu site, construído em três idiomas, é
um roteiro sobre agressões cometidas por governos autoritários contra jornalistas e órgãos de
comunicação social (Moraes, 2001:8).
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Esta possibilidade é ainda mais relevante se atentarmos ao desalento ante a vida
política e ao descrédito crescente na Democracia
9
e nas suas instituições. Discutir,
deliberar, aplicar decisões seriam vertentes transpostas ou partilhadas entre as
instituições da Modernidade e os cidadãos, através da Internet (Cardoso, 2003). De tal
modo que, dispostos a reconquistar novos públicos e simpatizantes, os media de massa
e as elites políticas já mostraram o seu interesse em aderir à comunicação mediada por
computador, em especial às redes sociais. Como afirma Castells, o estudo da
transformação das relações de poder no novo espaço comunicacional deve considerar a
interacção entre os actores políticos, agentes sociais e o negócio dos media
(2007:254).
A utilização destas redes também provou ser uma hábil forma de comunicar sem deixar
rasto, útil em países em que a comunicação ainda é alvo de censura explícita, como
acontece na China ou em Myanmar (Ekman, 2007: 39). De facto, torna-se mais difícil a
censura ou manipulação de informações por parte de grupos políticos ou lobbies: a
transmissão de informação horizontal, muitas das vezes em directo, pelos cidadãos cria
uma aura de verdade muito distinta da que, actualmente, povoa o mundo político
(Castells, 2007:251).
Esta forma de “jornalismo comunitário” é ainda simplificada pela actual convergência
de plataformas
10
: a possibilidade de colocar uma qualquer informação no mundo web
atr
avés do telemóvel ou fazendo a convergência de conteúdos através de redes online
presta-se não somente a uma maior globalização da interacção social através das redes
virtuais, como permite a circulação quase simultânea de qualquer facto que mereça a
atenção do seu emissor. Aliás, a utilização do telemóvel para propagação de imagens e
consequente sensibilização da comunidade internacional se mostrou essencial em
situações o distintas como o caso de Seattle ou dos protestos iranianos ou
moçambicanos.
Na arena da Internet, organizações e pessoas se congregam para mudar algo nos mais
diferentes temas e perspectivas, lutando por visibilidade e projectando as suas
consequências. Como afirma Moraes, a Internet vem dinamizar as lutas das entidades
civis a favor da justiça social num mundo que globaliza desigualdades de toda ordem.
(…) A maioria dessas entidades visa o fortalecimento da sociedade civil no processo de
universalização de valores e direitos democráticos. Congregar interesses e
necessidades concretas ou simbólicas, promovendo acções em prol da cidadania
(2001:2). As redes sociais representam, assim, um papel extremamente relevante no
tocante a grupos social, económica ou politicamente excluídos, dando voz a minorias ou
permitindo a angariação de meios e a constituição de redes que partilhem os seus fins.
As organizações utilizam a Internet desde muito para mais fácil e gratuitamente
difundirem os seus propósitos e acções, e angariarem o maior número de associados.
Com estas práticas nasceram ferramentas de intervenção como as campanhas virtuais,
9
Segundo o Eurobarómetro, no tocante a Portugal, “apenas 40 por cento dos inquiridos consideram-se
satisfeitos com o funcionamento da democracia nacional, em comparação com uma média europeia de
53 por cento. Os níveis de satisfação com o funcionamento da democracia nacional são superiores
apenas aos de Estados-membros do alargamento (NEM-12) como a Eslováquia (40%), a Eslovénia
(37%), a Hungria (23%), a Letónia (21%), a Bulgária (21%), a Roménia (18%) e a Lituânia (18%)”
(Sumário Executivo, 2009, pág. 4).
10
Mais de 70 milhões de europeus acedem à Internet através do seu telemóvel, fazendo-o uma vez por
sem
ana e durante uma hora diária em média - Estudo da European Interactive Advertising Association
(EIAA), v.g. http://dn.sapo.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=1512132&seccao=Tecnologia.
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os grupos de discussão, os manifestos online e os murais de links, criando uma arena
complementar de mobilização. A possibilidade de uma abrangência sem limitações
impostas por gatekeepers (como acontece na televisão ou na imprensa) torna a
Comunicação Mediada por Computador (CMC) extremamente relevante para todos os
cidadãos e ONG que tenham como objectivos a denúncia, a pressão e a
consciencialização política
11
(Moraes, 2001: 3; Bennett, 2003: 3). As ONG virtuais
começaram também a potenciar a sua interligação com o objectivo de repartirem
competências, recursos, custos e espaços, sendo que cada incorpora novos
usuários, os quais se convertem, potencialmente, em produtores e emissores de
informações (Moraes, 2001:3). Não existem dúvidas que as redes sociais vieram
permitir um debate mais aberto e pluralista, oferecendo-se enquanto fomentadores de
uma participação cívica e política que parece esmorecer (Cardoso & Neto, 2003).
Se é através do fenómeno da globalização que corremos riscos de uniformização do
pensamento e da análise crítica, também é este fenómeno que permite que regiões
outrora distantes se tornem acessíveis a todos: os seus problemas, as suas vitórias, os
seus movimentos sociais o somente são difundidos como podem encontrar
simpatizantes em locais distantes do globo. Detemos, desta forma, um conjugar entre
questões singulares, pensadas a título local, e um mundo global: de facto, os cidadãos
pensam no contexto das suas realidades próprias, mas recorrem a meios virtuais para
a sua difusão, agindo de modo global (Castells, 2007:249). Assim, a Internet e as
demais tecnologias, tais como os telemóveis e o vídeo digital, capacitam as pessoas
para a organização da política de uma forma que supera os limites de tempo, espaço,
identidade e ideologia, resultando na expansão e coordenação de actividades que,
possivelmente, não ocorreriam através de outros meios (Bennett, 2003: 6).
As redes activistas em torno de causas têm sido abordadas de modo diferente por
diversos autores, existindo quem nelas veja um “exército em rede” (Holstein, 2002,
n.p.) ou uma “máfia inteligente” (Rheingold, 2002). Não obstante, Bennett chama a
atenção para a dificuldade em aceitar em tais visões, mais bélicas ou aproximadas de
grupos de interesse, quando a organização não institucional e a inexistência de uma
hierarquia a respeitar constituem elementos essenciais para a compreensão do trabalho
em rede das comunidades activistas (2003: 9 e segs.). Como tal, o autor propõe a
abordagem apresentada por Gerlach e Hines denominada SPIN: falamos de redes que
sejam segmentadas, policêntricas e integradas :
segmentadas, dada a fluidez das suas fronteiras em relação a organizações formais,
grupos o institucionalizados e activistas singulares, onde a cooperação é uma
constante;
policêntricas, uma vez não existirem deres mas sim centros de coordenação das
actividades das redes;
integradas, dada a sua estrutura horizontal, pressupondo o activismo por parte de
todos os membros.
O primeiro caso estudado de uma movimentação popular organizada através da
Internet teve lugar em Seattle, em 1999, aquando da reunião da Organização Mundial
11
Veja-se o caso da Amnistia Internacional, uma das primeiras ONGs a aderir a utilizar a Internet: em
2001, dispunha de um milhão de membros em 160 países e de 50 websites (Moraes, 2001:7).
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do Comércio. O mundo assistiu não somente à manifestação de cerca de cinquenta mil
pessoas que encheram as ruas de Seattle num protesto contra o neoliberalismo, mas
também a protestos em 82 outras cidades, incluindo EUA, Europa e América do Sul
(Bennett, 2003: 25; Moraes, 2001: 9).
Nestes casos, a Internet demonstrou-se essencial quer para a organização das
manifestações, quer para a transmissão e difusão global dos eventos. Deste modo, o
protesto ganhou uma força global, determinando a agenda setting dos mass media e,
consequentemente, da opinião pública. Como resultado, as cúpulas políticas foram
obrigadas a cancelar o encontro, mostrando que as forças “perdedoras” do sistema
económico haviam conseguido, através de uma relação de conflito, conquistar o poder
que reivindicavam (Della Porta e Diani, 2006: 167).
IV. A comunicação em rede e os movimentos sociais
Um movimento social é a tentativa colectiva, por um determinado número de pessoas,
de
alteração de indivíduos ou instituições e estruturas sociais
(Zald and Ash, 1966).
O activismo parece hoje uma prática regular bem recebida pelos utilizadores das redes
sociais: causas ambientais, defesa de direitos humanos ou reacção ante factos políticos
são alvo de frequente atenção Mas será ele o reflexo de movimentos sociais ou
simplesmente o somatório de um conjunto de actos individuais de protesto partilhados?
Muitos autores têm procurado definir aquilo a que, entre as várias acções colectivas
possíveis, comummente se apelida de movimento social. Esta reflexão tem gerado, ora
maior exigência na descrição dos elementos que compõem tal realidade (criando
noções mais ou menos abertas), ora a negação do próprio conceito
12
.
Para
Della Porta e Diani (2006: 20), os movimentos sociais compreendem
necessariamente três componentes: relações de conflito; redes intrincadas entre os
actores envolvidos; e uma identidade colectiva, duradoura, que vai para além da
vontade singular ou do mero evento delimitado no tempo. Detenhamo-nos nestes
aspectos.
Aquando da eclosão de um movimento social, os indivíduos encontram-se envolvidos
em relações de conflito com adversários claramente identificados, ambos procurando o
controlo de um mesmo objecto. Deste modo, aqueles directamente envolvidos em
movimentos sociais deverão ser considerados desafiadores/defensores da autoridade
institucional existente, seja ela de índole política, corporativa, religiosa ou educativa
(Snow, Soule & Kriesi, 2007: 8/9).
A definição de estratégias, a coordenação de iniciativas e a regulação das condutas
individuais dependem de permanentes negociações entre indivíduos e organizações
envolvidas, desenvolvidas através de contactos estabelecidos em redes informais. Esta
12
A título de exemplo, é esta a posição de Dieter Opp, quando afirma preferir a noção de grupo de protesto
à de movimento social, definindo-o como uma colectividade de actores que pretendem alcançar o seu
objectivo ou objectivos partilhados, influenciando as decisões de um alvo (2009: 41).
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organização pode assumir diversos tipos e graus, mas em nenhum caso um indivíduo,
por si só, representa um movimento dado que este último pressupõe a existência de
vontades comuns de diferentes actores.
Finalmente, estes actores partilham uma identidade colectiva que traduz um
compromisso com a causa para de um determinado número de protestos ou do
cúmulo de algumas campanhas específicas (Snow, Soule & Kriesi 2007: 10/11). Assim,
como afirmam Della Porta e Diani (2006: 23), a dinâmica de um movimento social
encontra-se em curso quando episódios individuais de acção colectiva são percebidos
enquanto componentes de uma acção mais duradoura, em vez de discretos eventos
(…).
Ainda que uma Democracia representativa pressuponha representados os interesses
dos cidadãos, não deixa de ser visível a desilusão destes últimos face às organizações
políticas institucionalizadas, conduzindo ao desenvolvimento de novas formas de
participação (Cardoso & Neto, 2003: 108). A par de ferramentas institucionais há muito
utilizadas, como o trabalho prestado a partidos políticos ou a participação em reuniões
politizadas, surgem novos meios de realização da política como assinatura de petições,
boicotes, ocupações, manifestações, cortes de trânsito e greves não sindicalizadas
(2006: 166), algumas das quais começam a ser, quando não iniciadas, pelo menos
divulgadas através das redes sociais.
O conceito de protesto é, também ele, controverso. Constituindo uma das formas de
acção colectiva, não é a única, nem possui necessariamente um intuito radical ou
conflituoso, antes assumindo-se como meio de acção não-ortodoxo que visa a
mobilização da opinião pública para exercício de pressão sobre os decisores políticos
(Della Porta e Diani, 2006: 165).
Isto reconduz-nos à questão da origem dos movimentos sociais: dada a influência que
detêm, as organizações próximas do poder não recorrem a este tipo de estratégia.
Pelo contrário, o protesto é uma fonte política dos não poderosos (Lipsky, 1965):
àqueles comprometidos com uma causa comum e que visam pressionar os seus
“opositores” institucionalizados impõe-se dar visibilidade às suas acções de modo a
angariar a simpatia da opinião pública.
O apoio de causas no quadro das redes sociais surge normalmente como resultado da
acção de grupos formais, ou informais, com capacidade de mobilização de outrem, pois
o seu sucesso depende da capacidade de passar a palavra e conseguir que terceiros
desencadeiem uma acção que, pelo menos, resulte em apoio público de uma dada
posição. O argumento que aqui podemos deixar é o de que os apoios a casusas nas
redes sociais possuem características de relações de conflito, redes de menor ou maior
integração entre os envolvidos e a formação de uma identidade colectiva. Este último
ponto, que podemos considerar mais controverso, encontra eco quando a adesão passa
a ser listada nos perfis individuais de cada um dos que dão o seu apoio e, como tal,
parte partilhável da identidade pessoal face a terceiros. Pode-se assim argumentar que
os movimentos sociais também se forjam na Internet nas redes sociais.
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V. De Washington a Teerão, passando por Maputo: as redes entre o
simbolismo e a acção
“Percebe-se que as redes sociais virtuais são canais de grande fluxo na circulação de
informação, vínculos, valores e discursos sociais, que vem ampliando,
delimitando e mesclando territórios”
(Machado & Tijiboy 2003)
A utilização da Internet durante a campanha eleitoral de Barack Obama, em 2008, tem
sido muitas vezes referenciada, sendo apontada como uma das principais razões do
sucesso eleitoral do actual Presidente dos EUA. O site da campanha, a presença de
Obama nas várias redes sociais – em particular no Facebook - a mailing list de
apoiantes, entre outros aspectos, marcaram fortemente esta campanha, a qual se
tornou de algum modo num modelo inspirador das várias candidaturas que desde então
têm ocorrido um pouco por toda a Europa. (Plouffe, 2009). De alguma forma
poderíamos argumentar que o modelo de campanha de Obama foi apropriado e
reinventado no contexto pós-eleitoral iraniano de 2009, assumindo a forma de
movimento social gerado nas redes sociais e trazido para as ruas da capital Teerão.
Perante o resultado das eleições de Junho de 2009 Mahmoud Ahmadinejad declarado
vencedor duas horas após o encerramento das urnas –, a população iraniana rebela-se
por conceber fraudulento o resultado. Apoiando o principal líder da oposição, o
candidato reformista Mir Hussein Mousavi, os cidadãos organizam-se no apelidado
Green Movement
13
, até hoje activo contra todos os esforços da polícia estatal
14
.
Pera
nte as reacções populares e os sentimentos partilhados nas mesmas, pretendemos
demonstrar não somente a existência de um verdadeiro movimento social transposto e
desenvolvido através das redes sociais online mas também a existência de
comunidades virtuais que o utilizam enquanto ferramenta de protesto. Aliás, a
essencialidade da CMC é de tal modo evidente que os próprios visados pelo movimento
não apenas censuram as informações veiculadas como chegam mesmo a inviabilizar as
conexões das redes em momentos fulcrais da política interna.
Antes de mais, a relação de conflito instalada entre aqueles que detêm o poder e a
autoridade institucionalizada (no presente caso o governo de Ahmadinejad e o
Conselho dos Guardiães que validou a sua alegada vitória) e aqueles que pretendem
afastar o mesmo poder de tais mãos, em prol de uma mudança de regime (o que inclui,
claro está, o apenas Mousavi e todos os seus apoiantes políticos, como os cidadãos
que, nas ruas de Teerão e nas redes sociais online, exigem a realização de um novo
escrutínio).
A forma de organização de todos aqueles que pretendem a impugnação das eleições é,
de facto, baseada numa rede informal: sem qualquer tipo de hierarquia pré-estipulada
ou relações de origem vertical, os cidadãos defendem os seus interesses comuns numa
13
V. g.: http://translate.google.pt/translate?hl=pt-
PT&sl=en&tl=pt&u=http%3A%2F%2Fwww.cbsnews.com%2Fstories%2F2010%2F06%2F10%2Fopinion%
2Fmain6568553.shtml&anno=2
14
A Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) declarou que cerca de duas mil pessoas foram
detidas em apenas 15 dias de protestos: http://aeiou.expresso.pt/musavi-insiste-em-novas-eleicoes-no-
irao=f523600
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relação democrática de igualdade o que, obviamente, nunca porá em causa o poder
de iniciativa mais ou menos presente em cada um dos elos existentes. Mousavi poderá
incitar ao protesto mas não dependem dele todas as iniciativas ligadas ao Movimento
Verde. Quanto muito, constituirá um hub mas nunca poderá ser tido como um der nas
relações entre as comunidades que professam o interesse comum da Democracia e do
pluralismo no Irão.
Tão importante quanto as anteriores referências, temos bem presente uma identidade
colectiva: não falamos de um protesto passageiro, de uma manifestação única:
estamos perante um sentimento colectivo, partilhado por massas, de que a justiça de
um processo político deverá sobrevir. Para tal, esforços são reunidos, o criadas
formas de comunicação entre todos os apoiantes (singulares ou colectivos), o
desenvolvidos relatos pessoais para que, globalmente, todos possam acompanhar o
desenrolar dos acontecimentos políticos e sociais no Irão.
A consciencialização crescente da essencialidade do mundo político virtual não tem
lugar somente entre cidadãos: os próprios media tradicionais começam a prestar
atenção aos conteúdos divulgados por comunidades virtuais, às petições que circulam
através delas, às manifestações pacíficas que vão sendo organizadas por esta via. Na
verdade, a atenção a mobilizações por parte daqueles não é muita: dedicados ao
“agora” e esquecendo a contextualização da informação, as acções activistas que não
consubstanciem protestos ou manifestações violentas raramente captam a atenção dos
media, o que implica, não raro, um completo desconhecimento dos fins ou pretensões
das organizações envolvidas por parte do receptor mediático (Bennett, 2003: 3).
O facto de o Twitter ter sido o canal de alerta para a fraca cobertura dos media
tradicionais sobre o Movimento Verde parece-nos demonstrativo do anteriormente
advogado. De facto, a 13 de Junho de 2009, quando começou a escalada dos
protestos, ignorada pelos media iranianos, no Twitter, a informação corria em tempo-
real
15
. Referindo-se especificamente à CNN, a rede criou um movimento de
gat
ewatching em que cidadãos questionavam a qualidade e verdadeiras intenções da
informação veiculada pelos media. Influenciada ou não por este alerta, a verdade é que
as atenções têm sido redobradas por parte daquela empresa (De Tolledo, s/d: 5).
Assim sendo, o agenda setting dos activistas junto dos meios de comunicação social em
geral pode produzir transformações no modo como se estabelecem prioridades nos
mass media (Correia, s/d: 4/5) a forma de favorecer as estórias” esquecidas, as
fontes marginalizadas e o retorno à sociedade civil e às suas dinâmicas informais em
prejuízo da informação pré–fabricada e seleccionada, concentrada nos mecanismos
institucionais” (s/d: 5 e segs.).
A tal acresce o facto de os interesses políticos e económicos nem sempre se afastarem
do meio da Comunicação Social, chegando mesmo a coincidir com os dos opositores do
movimento social (Moraes, 2001: 4; Castells, 2007: 250). É o caso iraniano:
manipulando os media nacionais, que apenas podem veicular manifestações de apoio a
Ahmadinejad, o actual líder chegou a proibir a cobertura dos protestos pelos media
internacionais
16
. Zuckerman acredita mesmo que a razão pela qual os social media são
15
V. g.: Twitter: Uma janela para o Irão: http://aeiou.visao.pt/twitter-uma-janela-para-o-irao=f513147
16
Perante o anúncio de uma manifestação, as carteiras profissionais dos jornalistas que trabalham para
media estrangeiros foram declaradas inválidas por um período de 48 horas:
http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/551691
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tão interessantes reside no facto dos meios de comunicação internacionais não
possuírem correspondentes no terreno
17
.
Conscientes do dinamismo destas comunidades que utilizam os novos media como um
dos principais veículos de interacção, as forças apoiantes de Ahmadinejad têm operado
de duas formas distintas: não censuram conteúdos e inviabilizam a utilização de
sites, blogs
18
, redes sociais virtuais e ada rede telefónica móvel, como encarceram
os responsáveis pela veiculação de informação que não seja vista como favorável ao
regime
19
. E tal consciência não teve lugar apenas após o icio dos protestos, pois de
out
ro modo não se justificaria a suspensão do Twitter horas antes das eleições
20
.
Relativamente a este tipo de censura, os utilizadores de CMC têm procurado advertir
para formas de difusão de informação, em especial quando utilizados os dois tags mais
comuns: IranElection e gr88 (referência à Green Revolution e ao actual ano no
calendário persa: 1388)
21 22
. Nestes casos, aconselham-se os utilizadores do Twitter a
não revelar o seu IP, a não denunciar de qualquer modo o nome ou localização de uma
fonte genuína do Movimento Verde, ou mesmo a responder de forma impetuosa, uma
vez que as forças de segurança se encontram a utilizar a mesma rede social
23
.
Assim, parece inegável que o Governo Iraniano de Ahmadinejad teme os media em
geral e as redes sociais online em particular: de facto, não se censuram pólos que não
detêm qualquer poder no espectro interno ou internacional. Ainda que tal não advogue
a essencialidade daquelas, parece inegável que a censura, em especial em momentos
fulcrais da política, indiciam uma importância, nem que seja em potência.
Tal como em outros movimentos sociais ou demais acções colectivas, também no caso
do Irão as redes sociais online têm sido fortemente utilizadas. Se atentarmos às
mesmas, veremos um vasto conjunto de comunidades virtuais, partilhando uma
finalidade comum, numa relação de igualdade e lealdade entre os seus elementos, o
recorrendo a quaisquer hierarquias; onde o espaço é muitas vezes ultrapassado,
transpondo-se as questões nacionais para a realidade internacional; e onde a
deliberação conjunta é realizada frequentemente através de mediação cibernética. Com
este tipo de comunicação (de muitos para muitos), cidadãos e ONG têm conseguido
mobilizar apoiantes por todo o mundo, alinhando acções de protesto mundiais ou
recolhendo assinaturas para petições, permitindo visibilidade global a uma questão
nacional.
Um caso demonstrativo da importância da rede social online Twitter teve lugar a 15 de
Junho de 2009, quando se colocou a possibilidade de suspensão do funcionamento da
rede para a sua manutenção. Ante a preocupação sentida pelos utilizadores iranianos e
17
V. g.: http://www.businessweek.com/technology/content/jun2009/tc20090617_803990.htm
18
Ante a organização de um protesto estudantil, “as autoridades bloquearam a maioria dos sites de
estudantes”: http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/551691
19
“Na sequência dos protestos contra a reeleição de Mahmud Ahmadinejad , quatro mil pessoas foram
detidas, entre elas, mais de cinquenta bloguers e jornalistas”:
http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/541076
20
V.g.: http://boingboing.net/2009/06/15/iranian-election-upr.html
21
Os dois únicos hashtags considerados legítimos e utilizados pelos bloggers neste contexto são
ir
anelection and #gr88; os demais podem induzir à diluição da conversação
http://www.boingboing.net/2009/06/16/cyberwar-guide-for
-i.html
22
A título de exemplo: ao acedermos à página de Mousavi no Twitter, podemos ler: #iranelection In case
of the arrest of any of the Green movement’s leaders, take to the streets in Tehran: Enghelab to Azadi.
Tell everyone. (10:50 PM Dec 30th, 2009)
23
V.g.: http://www.boingboing.net/2009/06/16/cyberwar-guide-for-i.html
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os seus seguidores por todo o mundo, dado terem decorrido apenas dois dias desde a
divulgação do resultado das eleições e do início dos protestos, os responsáveis pelo
Twitter optaram por adiar o procedimento
24
. Tal preocupação parece plausível quando
observamos que uma das mais populares páginas do Twitter, contando com mais de
25.631 seguidores, dedicada ao candidato reformista
25
. A título de curiosidade, refira-
se que Mousavi detém igualmente um perfil no Facebook
26
, onde reúne 3.966
contactos, um canal no Youtube
27
, cujas entradas chegam às quase 70.000
visualizações, e uma página no Flickr, onde reúne fotos dos protestos que têm lugar em
seu nome
28
.
Fig.
II - Perfil de Mir Hossein Mousavi no Facebook
Fonte: http://www.facebook.com/home.php?#!/mousavi?ref=search
Não obstante, vários autores defendem não nos encontrarmos perante uma verdadeira
revolução dos meios utilizados para a concertação dos movimentos sociais, mas antes
perante uma crescente utilidade para a visibilidade global, por vezes apenas fruto de
um determinado contexto internacional.
Acreditamos ser impossível justificar todo o desenvolvimento e coordenação de um
movimento social através de redes online. Mishra advoga que o número de cidadãos
que utilizam este tipo de redes é demasiadamente parco quando comparado com o
tamanho dos protestos a que temos vindo a assistir
29
. E se é verdade que o cidadão se
encontra munido de meios que permitem o relato pessoal de experiências e o acesso a
todo o tipo de informação e valores partilhados por determinadas comunidades
(Castells, 2007: 256), não é menos verdade que nem todos terão acesso a estas
plataformas. Deve, contudo, ser salientado o peculiar caso iraniano: com uma
24
V.g.: http://www.businessweek.com/technology/content/jun2009/tc20090617_803990.htm
25
V.g.: http://twitter.com/mousavi1388
26
V.g.: http://www.facebook.com/mousavi1388
27
V.g.: http://www.youtube.com/mousavi1388
28
V.g.: http://www.flickr.com/photos/mousavi1388
29
V.g.: http://www.businessweek.com/technology/content/jun2009/tc20090617_803990.htm
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população muito jovem (média de 26,4 anos de idade
30
), mais de 23 milhões de
iranianos possuíam ligação à Internet em 2007 e 29.77 milhões tinham telemóvel
31
números relevantes quando a população iraniana em 2008 era de pouco menos de 66
milhões (De Tolledo, s/d: 4).
Toda esta análise deve ser moderada pelo facto de que, como acontece nas demais
comunidades online, muitos dos participantes são meros espectadores que aderem a
um grupo do Facebook ou acolhem um contacto no Twitter sem, de facto,
materializarem esse apoio no mundo da política offline (Chong, 2009: 18). É mais
razoável afirmar que apenas alguns dos cidadãos utilizam o Twitter para a organização
de protestos no Irão, sendo os blogs, SMS e mesmo a comunicação offline meios mais
comuns para a organização interna.
Não devemos esquecer que nem todos os envolvidos se mostram interessados numa
participação activa nas redes sociais online: os “coleccionadores de perfis”, que
raramente procuram a interacção com os seus contactos, são disso exemplo. A
contrario, também temos verdadeiros “promotores de debate público”, como já notado
por alguns autores: “observa-se nas redes agentes estratégicos que funcionam como
dinamizadores do fluxo de informações e interconexões, que estimulam o debate,
propõem, desafiam os demais membros do grupo chamando-os à participação e geram
ou aliviam tensões na articulação das diferenças” (Machado & Tijiboy, 2003:4). Tal
como acontece na sociedade não mediada pela Internet, a participação activa não
interessa a todos os cidadãos, pelo não devemos esperar interacção e interesse por
parte de todos os envolvidos nas redes sociais. Não devemos olvidar que são as
pessoas a utilizar as plataformas digitais para realizarem os seus propósitos e não o
inverso: através delas, poderão ser suscitadas curiosidades, poderá ser possível
informar e mesmo educar. Mas as redes nunca poderão sobrepor-se à vontade humana
na sua utilização: há que mostrar as possibilidades e ter consciência de que não
passam disso mesmo. No fundo, a verdadeira questão reside em saber se os
utilizadores fazem das comunidades virtuais um meio para se fazerem ouvir quando
mais nenhum outro o permite, se apenas repercutem online as atitudes que
apresentam offline, ou se os anteriores desinteressados no debate público criam novos
interesses e aptidões para participarem socialmente.
Contudo, a mobilização e a publicitação internacional dos acontecimentos muito
deverão àquela rede social, permitindo igualmente a ligação com os exilados políticos
(Chong, 2009: 18): como afirma Correia, um dos mais importantes elementos da
comunicação mediada por computador é a sua habilidade para permitir o diálogo de
muitos com muitos e a sua capacidade para facilitar comunicação entre grupos e
indivíduos geograficamente dispersos” (Correia, s/d: 4).
Mas nem todos os resultados na utilização desta e de outras rede virtuais são positivos:
o proliferar sem limites da informação corre o risco de, em vez de informar, criar o caos
informativo. No fundo, falamos de uma confusão generalizada e da emergência de
certas formas de autismo (Rheingold, 1993), na multiplicação de visões pessoais, de
informações pouco fidedignas ou com intuitos menos claros que poderá conduzir àquilo
que Correia apelida de “ausência de reflexividade paralisada pelo novo valor fetiche que
constitui a velocidade em tempo real” (s/d: 6). A esfera pública enquanto concretização
30
V.g.: http://www.middleeastdirectory.com/cs_iran.htm
31
V.g.: http://www.middleeastdirectory.com/cs_iran.htm
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democrática encontra, de facto, um óbice: o chamado fosso digital, o sentido crítico
que nos permita deslindar a informação do ruído ou o conhecimento das “leituras
baseadas apenas num qualquer senso comum” tornam-se tanto ou mais
imprescindíveis na concretização da Democracia através das redes online (idem, 2006:
401; Correia, s/d: 6 e segs). No entanto, parece-nos seguro considerar a hipótese que
a informação sobrevive fora do contexto das notícias e da mediação exclusiva dos
jornalistas. o vivemos numa realidade da comunicação de massa nem num contexto
da sua total irrelevância. A comunicação em rede (Cardoso 2009) pressupõe a
convivência e interdependência, não de modelos comunicativos, mas também de
diferentes actores, sejam eles utilizadores, jornalistas ou participantes (Silverstone,
2006).
VI. Até onde chegam as vozes?
Como vimos, o debate e o fluxo de informação parecem constituir, por si só, uma mais
val
ia. Não obstante muitas das opiniões proferidas nas redes sociais na Internet
pretenderem a alteração do status quo, quererão ser ouvidas pelos poderes em geral:
mas serão consequentes? Silveirinha acredita que não: na ciber-organização, pelo
facto de as pessoas o desenvolverem acções face-a-face, laços fortes de ’grupos de
afinidade’, podem limitar-se a manter uma espécie de ’públicos virtuais’, sem poder de
acção e de influência, substituindo simplesmente a batalha política pela ciberluta, mais
ou menos inconsequente (s/d: 12). Também Boyd defende a inexistência de uma
relação directa entre a informação veiculada através das novas tecnologias e aqueles
que deveriam ser os seus destinatários: embora a tecnologia forneça um fórum público
no qual as pessoas possam expressar diferentes pontos de vista político, isso não
garante que tais opiniões sejam ouvidas" (2005: 3). Segundo a autora, embora parte
da população tenha sido aliciada a participar politicamente através das redes virtuais, a
verdade é que as novas tecnologias não têm permitido que tais vozes atinjam, em
regra, as cúpulas políticas (2005: 7). No caso em apreço, a análise não é fácil e os
resultados não são pacíficos. Antes de mais, porque teremos que analisar que
resultados são pretendidos e, no fundo, o que significa participação política para cada
um de nós. A informação e o debate, sem um fim que não sejam eles mesmos, deverão
ser descurados? Facto é que, por esta via, a autoridade iraniana é questionada, o poder
dos “insiders” é posto em causa e os opositores perdem simpatias. Não obstante,
estarão as vozes indignadas a atingir o seu objectivo primário i.e., recuperar de novo
o exercício de voto e o desintegrar do governo de Ahmadinejad? De acordo com Chong,
o actual regime começa a revelar algumas fissuras: a libertação de alguns prisioneiros,
de forma a demonstrar a boa vontade islâmica, ou mesmo o modo como tem lutado de
modo ineficaz contra a divulgação internacional de informação, demonstrando alguma
fragilidade ante os cidadãos revoltosos e os seus apoiantes, poderão conduzir, quiçá, a
uma alteração futura da realidade política e social iraniana. No entanto, tal não passa
de mera especulação, muito em prol do facto de Ahmadinejad deter a seu favor um
regime militar (Chong, 2009:24). A este propósito, Boyd relembra que a Democracia
não poderá ser olhada em termos puramente quantitativos, ou baseados nas
instituições tidas por agentes políticos per se, sendo o próprio processo um elemento
de extrema relevância: é importante incentivar o contacto e a influência entre diversos
grupos sem, contudo, esmagar o indivíduo. As pessoas devem ser capazes de
encontrar significado pessoal no processo (2005:11).
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O Movimento Verde iraniano representa também um exemplo prático da adopção de
um modelo comunicativo em rede, em que múltiplas tecnologias de mediação são
articuladas entre si e em torno de um dado objectivo. Podemos assim dizer que no
contexto de protesto existem representações sobre o papel que cada media poderá ter
i.e. as matrizes de media (Meyrovitz, 1985) no atingir de objectivos de autonomia
política. A par dessas representações estratégias de autonomia comunicativa
baseadas em dietas de media (Colombo, 1993) que combinam diferentes redes
tecnológicas com o objectivo de gerir redes sociais, seja através do bluetooth do
telemóvel, da rede de telemóveis ou da Internet. O caso iraniano aqui analisado
demonstra também a predominância da rede social sobre a rede tecnológica, como é
exemplificado pela adopção do bluetooth após o corte de envios na rede telefónica para
o uso de SMS: nesse contexto a população usou o bluetooth para distribuir vídeos e
flyers digitais em locais públicos como os cinemas, parques ou transportes. De algum
modo as mesmas lógicas podem ser detectadas nos protestos em Moçambique de
Setembro de 2010 onde, após o anúncio do aumento de preços de bens essenciais
como o pão, uma mensagem de SMS começou a circular apelando ao protesto. Essas
mensagens acabaram por se traduzir em protestos e depois conflito com as autoridades
nas ruas de Maputo e de outras zonas do ps, tendo resultado em vários mortos.
Como forma de gestão desse conflito aparentemente o governo ou as próprias
empresas, antes de anunciar o não aumento de preços, bloquearam durante algumas
horas o envio de SMS permitindo apenas a comunicação de voz e de dados de acesso à
Internet. Os protestos moçambicanos permitiram também o surgir de práticas
informativas baseadas na articulação entre jornais e redes sociais, como no caso do
jornal @verdade. Durante as horas de maior tumulto nas ruas de Maputo, um jornalista
do @verdade e amigos do Facebook, tanto do jornal como do jornalista, trocavam a
partir da rua via Blackberry ou de computadores de casas e escritórios informação
sobre os locais seguros e sobre a dimensão dos protestos em diferentes zonas da
cidade. O jornalista mediava e dava também a quem estava no Facebook a certificação,
ou validação, da informação que ia chegando. Por sua vez, esse espaço de partilha no
Facebook levou ao surgir de uma campanha pela paz em Moçambique e foi também
através do @verdade nessa rede social que se questionava sobre quem tinha um dado
operador e conseguia ou não enviar mensagens.
De algum modo, o caso moçambicano demonstra-nos uma realidade dual no que se
refere às redes sociais. Por um lado, alguns têm apenas acesso às redes de telemóvel e
não às redes de Internet móvel dado o custo de equipamentos e ligações de dados
esses são também aqueles que nas ruas protestam contra o custo de vida. Por outro
lado temos os que usam as outras redes sociais, neste caso o Facebook, para
compreender o que está a acontecer em torno do protesto e como não ser apanhado
pelo mesmo. Por último, temos o Governo e as empresas de telecomunicações que
podem gerir que tipo de uso pode ser permitido em termos de acessos, controlando as
portas de acesso à comunicação.
O que os três exemplos geográfica e socialmente diferenciados (EUA, Irão e
Moçambique) nos revelam é um presente onde germina, independentemente de onde
estamos ou de onde olhamos, um espaço de Comunicação em Rede e é pensando a
partir desse paradigma que poderemos compreender como se apoia causas e se
protesta no nosso tempo.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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A GESTÃO DAS PESSOAS E DO CONHECIMENTO NAS ORGANIZAÇÕES
– OS DESAFIOS DAS PRÓXIMAS DÉCADAS
João Paulo Feijoo
Consultor em Qualidade, Processos de Negócio, Capital Humano e Gestão da Mudança,
e Country Manager para Portugal da Finalta. Docente convidado em programas de formação
de executivos e de pós-graduação (UAL). Quadro superior do Millennium bcp (1990-2005),
onde dirigiu áreas de qualidade, formação e desenvolvimento de carreiras, recrutamento,
coordenação de agências e comunicação interna. Fundou e dirigiu a Eureko Academy
(1994-96). Foi membro e presidente do Eureko Human Resources Activity Group (1997-2002).
Cursou Engenharia Mecânica no IST em Lisboa. Frequentou um grande número de cursos e seminários
no domínio dos Recursos Humanos e da gestão, em Portugal e no estrangeiro, com destaque para
Seminário para a Alta Direcção do BCP (INSEAD) e Programa de Alta Direcção de Empresa (AESE).
Este artigo foi escrito de acordo com o novo Acordo Ortográfico
Resumo
As caraterísticas das organizações e a forma como elas gerem o capital humano serão
condicionadas, nos próximos 15 a 20 anos, pela evolução de oito processos com uma
presença global: o primado do conhecimento, a globalização, o envelhecimento
populacional, a importância do papel da mulher, o contrato psicológico, a erosão da
autoridade tradicional, e a emergência de novos valores organizacionais. Estes oito
condicionantes são analisados, e apontadas as suas tendências de evolução.
Estes processos estão a conjugar-se para transformar as organizações da segunda e terceira
décadas do século XXI em estruturas mais complexas e mais plurais, com fronteiras mais
difusas, arquiteturas abertas e dispersas, e forças de trabalho escalonadas em vários níveis
de envolvimento que comunicam entre si e com o exterior por meio de redes globais.
Estas organizações colocam desafios inéditos à gestão de pessoas, como as consequências
do aumento da idade da reforma, ocupação e a produtividade dos colaboradores idosos, o
convívio entre três gerações na força de trabalho, a inteligência intercultural, a evolução das
motivações, o significado do mérito, a gestão do talento em organizações abertas, e as
novas formas de liderança requeridas num contexto mais igualitário, mais fluido e mais
disperso.
A situação portuguesa é abordada à luz das semelhanças e das diferenças em relação quer à
evolução dos condicionantes analisados, quer às medidas recomendadas para o caso geral.
São identificadas as suas peculiaridades, e discutido o impacto que poderão ter sobre as
políticas e práticas de gestão de pessoas a adotar no período em apreço..
Palavras-chave
Gestão das pessoas; capital humano; economia do conheci
mento; redes globais;
organizações abertas
Como citar este artigo
Feijoo, João Paulo (2011). "A gestão das pessoas e do c
onhecimento nas organizações
os desafios das próximas décadas”. JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol.
2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_art7.
Artigo recebido em Setembro de 2010 e aceite para publi
cação em Março de 2011
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A gestão das pessoas e do conhecimento nas organizações – os desafios das próximas décadas
João Paulo Feijoo
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A GESTÃO DAS PESSOAS E DO CONHECIMENTO NAS ORGANIZAÇÕES
– OS DESAFIOS DAS PRÓXIMAS DÉCADAS
João Paulo Feijoo
Compreender a mudança
No dealbar da segunda década do século XXI, o mundo enfrenta um conjunto de
des
afios sem precedentes na história da humanidade: esgotamento dos recursos
alimentares e energéticos, alterações climáticas, destruição dos habitats,
sobrepopulação, urbanização e envelhecimento global, alterações profundas na ordem
política e económica mundial.
Estes fenómenos conjugam-se para provocar profundas alterações em todos os aspetos
das nossas vidas: na forma como nos relacionamos com os nossos familiares, colegas e
amigos, na forma como nos deslocamos e como comunicamos, na forma como
consumimos e nos alimentamos, na forma como trabalhamos e descansamos.
Esta dinâmica de mudança transforma inevitavelmente as organizações enquanto
agentes económicos e instituições sociais, afetando de forma significativa os fatores
missão, produtos, intervenientes, recursos, cultura que definem e condicionam a sua
atividade. Estas transformações estão também a exigir respostas inovadoras na forma
como as organizações gerem o seu capital humano – os seus trabalhadores e o
conhecimento por eles detido e aplicado no exercício da sua atividade.
Para compreender o sentido e o alcance destas respostas é necessário identificar os
fenómenos que mais diretamente impactam a realidade organizacional e as suas
políticas e práticas de gestão do capital humano.
A escolha destas causas é sempre subjetiva e não exaustiva, e condicionada pela visão
e pelas preferências do autor. Houve contudo a preocupação de selecionar processos
suficientemente discretos e autónomos, que não constituam duas facetas de uma
mesma realidade, e suficientemente ncronos para que os seus efeitos se façam sentir
durante um mesmo período de 10 a 20 anos. A escolha recaiu sobre os seguintes oito
fenómenos:
- A importância crescente do conhecimento como fator de produção
- A globalização
- O envelhecimento global
- A evolução tecnológica (em particular, mas não exclusivamente, no domínio das TIC
- tecnologias de informação e comunicação)
- A importância crescente do papel da mulher nas organizações
- A alteração do contrato psicológico entre o trabalhador e a organização
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A gestão das pessoas e do conhecimento nas organizações – os desafios das próximas décadas
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- A erosão das formas de autoridade tradicional
- A emergência de valores como a responsabilidade social das organizações (RSO) e o
equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar (work-life balance)
Como se pode verificar, apesar de autónomos, estes fenómenos são em larga medida
interdependentes: estão ligados por uma teia complexa de efeitos conjuntos, com
múltiplas e variadas instâncias de reforço ou de amortecimento tuo, tais ondas à
superfície de um plano de água cujas cristas se sobrepõem e cujas cavas se afundam à
medida que se entrecruzam.
Os fatores em presença
a. O predomínio do conhecimento como fator de produção
A
segunda metade do século XX assistiu ao nascimento dos knowledge workers, ou
“trabalhadores do conhecimento”: trabalhadores cuja atividade exige a aplicação de
conhecimentos especializados adquiridos por meio de uma educação formal
prolongada. Tem existido desde sempre uma elite intelectual dedicada a atividades
saber-intensivas médicos, professores, cientistas, juristas mas a massificação de
uma classe laboral com aquelas caraterísticas teve início apenas após a Segunda
Guerra Mundial, e nas próximas duas décadas ela tornar-se-á certamente o grupo
profissional mais numeroso.
O conhecimento é hoje o fator de produção mais importante e mais escasso, e as suas
propriedades determinam as caraterísticas das chamadas “sociedade do conhecimento”
e “economia do conhecimento”,
O conhecimento é especializado. A sua incorporação num produto final implica por isso
a intermediação de uma qualquer forma de organização que assegure a necessária
interdisciplinaridade. Até muito recentemente, a forma mais eficiente era a empresa
funcionalmente integrada, centralizada e concentrada. A natureza imaterial do
conhecimento, a existência de um mercado global de talento e as possibilidades criadas
pelas TIC estão hoje a fazer emergir alternativas radicalmente inovadoras: alianças,
organizações abertas e em rede, envolvimento dos clientes e fornecedores (co-criação,
crowdsourcing), etc.
O conhecimento torna-se rapidamente obsoleto. Esta “perecibilidade” obriga a uma
formação permanente, ao longo da vida, em complemento da formação inicial. A
distinção entre estudo” e “trabalho” como duas etapas da vida sucessivas e estanques
tenderá a desaparecer nas próximas décadas. Para não se desatualizar, para estar em
forma” como um atleta de alta competição, o conhecimento tem de ser constantemente
aplicado, o que exige uma quantidade de oportunidades muitas vezes fora do alcance
de departamentos especializados. A solução poderá ser a autonomização e posterior
fusão dessas unidades, de maneira a poderem prestar serviços a várias organizações e
adquirirem a escala indispensável para serem suficientemente bons no seu ramo.
O conhecimento é facilmente transmissível. Ao contrário dos stocks de matérias-
primas, das instalações e das máquinas, é difícil confiná-lo num lugar: no final do dia
de trabalho, sai pela porta da organização com o trabalhador que o detém. As
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tentativas para converter o conhecimento tácito em conhecimento explícito, ou seja,
para o codificar e descrever de forma a autonomizá-lo do indivíduo que o detém,
esbarram sempre em dificuldades intransponíveis de interpretação e de
contextualização. Além disso, a sua natureza imaterial permite a sua rápida difusão à
distância, hoje imensamente facilitada pela existência de redes globais.
Na verdade, os trabalhadores do conhecimento tendem a identificar-se cada vez mais
com a sua especialidade do que com a organização em que a exercem. Graças à
revolução das TIC, cada vez lhes é mais fácil relacionar-se com outros “profissionais do
mesmo ofício” pertencentes a outras organizações. A sua primeira lealdade está a
transferir-se da organização em que trabalham para o “ofício” que exercem.
O facto de o conhecimento ser detido pelos trabalhadores e não pelas organizações
significa, ironicamente o cumprimento da profecia marxista da apropriação coletiva dos
meios de produção. Paradoxalmente, porém, estes permanecem firmemente na posse
do capital, por intermédio dos fundos de pensões e outros veículos de investimento das
poupanças desses mesmos trabalhadores, que controlam a maioria do capital de muitas
empresas (Drucker, 2001).
b. A globalização
A
globalização é o processo de integração das economias nacionais numa economia
transnacional, por meio de fluxos de bens (comércio internacional), de capitais, de
pessoas (turismo, migrações), e do conhecimento.
Este processo intensificou-se a partir do final da década de 80 com a entrada de três
mil milhões de novos consumidores, produtores e aforradores na economia global de
mercado, em consequência da dinâmica gerada pela desagregação do bloco soviético,
do final das “guerras por procuração” entre aquele e o bloco ocidental e da abertura da
China.
Esta expansão foi suportada pela liberalização do comércio internacional e dos fluxos de
capitais e pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação
(TIC) que, ao reduzir drasticamente os custos de transação, tornaram dispensáveis os
modelos organizacionais baseados na centralização, na concentração e na integração
vertical, e possibilitaram a externalização e deslocalização de vastos segmentos das
cadeias de valor para países ou regiões de mão-de-obra mais barata, levando a um
enorme aumento da capacidade produtiva global.
O resultado foi um crescimento espetacular da criação de riqueza, que conduziu a uma
melhoria generalizada das condições de vida da população mundial.
A globalização fez surgir um mercado global de trabalho, em que o talento compete
entre si à escala planetária. Este mercado é potenciado pela escassez que começa a
fazer-se sentir em consequência do envelhecimento demográfico e do desalinhamento
entre o output dos sistemas educativos e as necessidades da economia, e revela-se
especialmente dinâmico nos dois extremos do espetro de qualificações os
trabalhadores menos qualificados por um lado, e os técnicos altamente especializados e
os quadros diretivos de topo por outro alimentando quer a imigração de
trabalhadores pouco qualificados para as economias mais desenvolvidas, quer o
fenómeno mais recente da “fuga de cérebros”.
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A esta mobilidade internacional de “ciclo longo” que acrescentar as carreiras
internacionais compostas por expatriações de maior ou menor duração, bem como todo
o tipo de viagens de negócios, e ainda o que se poderá designar por “mobilidade
virtual”, isto é, o contacto regular com trabalhadores de outros países e culturas sem
necessidade de deslocação física, potenciado pelo predomínio do “trabalho do
conhecimento” e suportado pelas novas TIC.
Todos estes tipos de mobilidade estão a fazer emergir um ambiente de trabalho
caraterizado por um alargamento brutal das redes de relações e uma exposição
intercultural sem precedentes – que paradoxalmente tem sido acompanhado pela
adoção acrítica de uma cultura organizacional e de um modelo de gestão de matriz
anglo-saxónica, cujas caraterísticas não raras vezes se revelam desajustadas às
culturas nacionais em presença.
c. O envelhecimento global
Do
s oito fenómenos escolhidos como condicionantes do futuro da gestão das pessoas, o
envelhecimento global é o que se apresenta com um maior grau de certeza, pois todos
os desenvolvimentos que vão determinar a evolução da população mundial nas
próximas duas ou três décadas já ocorreram e são conhecidos.
Este problema não é exclusivo dos países ditos desenvolvidos. Trata-se de um processo
global, que embora tenha começado mais cedo naqueles, em marcha nas economias
emergentes onde de resto vai desenrolar-se com muito maior rapidez.
Na China, o índice de fertilidade é de 1.79 – bastante inferior aos 2.1 do limiar de
substituição; aliás, só se mantém acima daquele valor em algumas províncias do
interior, pois nas províncias mais desenvolvidas do litoral não ultrapassa 1.5. Na
Índia, o nível de fertilidade nacional ainda é de 2.81; contudo, a fertilidade caiu
abaixo do limiar de substituição num conjunto de estados com uma população
combinada superior a 200 milhões de pessoas.
Uma população em rápido envelhecimento e uma força de trabalho cada vez mais
escassa levam a um aumento do cio de dependência. Prevê-se que na Europa a
população ativa (15-64 anos) se reduza em 20.8 milhões de indivíduos entre 2005 e
2030, e a proporção de dependentes idosos aumente de 1 por cada 4.2 para 1 por cada
2.4 ativos
1
entre 2000 e 2030,
1 No Japão, onde o envelhecimento se fará sentir de forma ainda mais acentuada, o agravamento será de
1/3.8 para 1/1.9 ativos
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Ilustração 1 – Comparação das quotas (percentagem) das faixas etárias 0-14,
0-24, 65+ e 85+ na população total, EU-25, EUA e Japão, 2000-2050
Ilustração 2 – Rácio de dependência (idosos) total de indivíduos com 65+
ano
s / total de indivíduos com 15-64 anos
A im
igração a partir de países com uma demografia ainda pujante tem vindo assim a
intensificar-se, e presença de elevados números de trabalhadores imigrantes nas
sociedades mais ricas será uma constante nas próximas décadas.
Estes fluxos transnacionais, embora necessários, não serão suficientes para manter a
população ativa em níveis capazes de assegurar algum crescimento económico. Em
Fonte: Eurostat 2004 Demographic Proj. (Baseline scen.); UN World Population Prospects (2002 Rev. - Medium variant)Fonte: Eurostat 2004 Demographic Proj. (Baseline scen.); UN World Population Prospects (2002 Rev. - Medium variant)
MundoOceâniaÁsia
(outros)
JapãoÍndiaChinaÁfricaAmérica
Latina
América
do Norte
Europa
(outros)
CCEU25
Fonte: UN World Population prospects (2002 Rev. - Medium Variant); For EU25 : Eurostat 2004 Demographic Projection
(Baseline scenario); CC= BG, RO, HU, TR
MundoOceâniaÁsia
(outros)
JapãoÍndiaChinaÁfricaAmérica
Latina
América
do Norte
Europa
(outros)
CCEU25
Fonte: UN World Population prospects (2002 Rev. - Medium Variant); For EU25 : Eurostat 2004 Demographic Projection
(Baseline scenario); CC= BG, RO, HU, TR
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alguns países, é tal a escala do problema que a proporção de imigrantes em relação à
população autóctone levaria a uma inevitável reação xenófoba por parte destas
últimas
2
. Por outro lado, os excedentes demográficos nos países de origem tenderão a
reduzir-se, em consequência do seu próprio envelhecimento e desenvolvimento
económico.
Parece pois inevitável o aumento da idade da reforma, que apesar de impopular
(sobretudo entre os trabalhadores mais velhos!), é uma medida inevitável e justificada,
uma vez que a “longevidade saudável” têm vindo a aumentar continuamente: a
generalidade dos indivíduos atinge a atual idade de reforma de boa saúde e em
condições de continuar a trabalhar, e manter-se-á assim durante algum tempo.
Muito provavelmente, com o prolongamento da vida ativa, a transição para a reforma
tornar-se-á mais gradual, com uma redução progressiva do tempo de trabalho e
períodos de alternância entre atividades profissionais remuneradas e períodos de
inatividade. Este fenómeno parece já estar em curso, impulsionado pela necessidade:
nos Estados Unidos a taxa de emprego na faixa etária dos 65-74 anos era de 18.5%
em 2003, comparada com apenas 5.6% na União Europeia, onde a proteção social é
maior.
Esta transição se acompanhada pela mudança e diversificação do nculo entre a
organização e o trabalhador, que passará de trabalhador dependente e permanente
integrado na força de trabalho “core” a trabalhador temporário, “boomerang”
3
,
pre
stador de serviços, consultor mais ou menos independente, trabalhador das
organizações fornecedoras e clientes, etc. Neste contexto, é possível que os
trabalhadores mais experientes e qualificados, com maior capacidade de liderança e
menor aversão ao risco decidam (e sejam encorajados a) dedicar-se aos seus próprios
projetos de empreendedorismo, eventualmente a partir algum tipo de relacionamento
com sua anterior organização.
Num outro plano, passarão pela primeira vez a coexistir sistematicamente três
gerações na força de trabalho da maioria das organizações. O relacionamento entre
elas o confronto entre os respetivos valores, a divisão do trabalho, a relação
hierárquica irá marcar profundamente a vida da organização e alterar de forma
radical os dados da gestão das pessoas.
d. A evolução tecnológica
Os
meios de comunicação à distância nascidos do rápido desenvolvimento das TIC e da
ubiquidade global da internet desde o correio eletrónico ao instant messaging, da
videoconferência aos serviços de banda larga, dos sites de pesquisa às redes sociais
estão na base de uma das maiores revoluções na forma como as organizações se
estruturam e funcionam.
2 Estima-se por exemplo que em 2020 a Alemanha tenha de acolher anualmente um milhão de imigrantes
em
idade ativa (sem contar com eventuais familiares) para manter a população ativa a um nível
constante.
3 Diz-se dos reformados que são esporadicamente convocados pelos seus anteriores empregadores para
colmatar faltas temporárias de trabalhadores qualificados. Empresas como a Boeing e a Procter & Gamble
chamam regularmente engenheiros e quadros intermédios reformados para substituir colegas mais jovens
durante períodos de férias ou para integrar equipas de projeto.
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As TIC permitem que as organizações se libertem das suas barreiras sicas e ganhem
acesso a reservas de talento que de outra forma dificilmente conseguiriam mobilizar,
como especialistas baseados em locais distantes e jovens mães ou idosos que preferem
trabalhar a partir de casa. São ainda mais importantes as possibilidades abertas pelo
abatimento das próprias barreiras mentais, que permitem explorar um capital humano
situado muito para além da sua força de trabalho “convencional”: as organizações
abertas”, a “open innovation”, as “x-teams”, a “co-criação”, o “crowdsourcing” são
algumas das buzzwords presentemente na moda que designam esta capacidade inédita
de envolver clientes, fornecedores, stakeholders em geral e mesmo simples
simpatizantes, nos processos de inovação, desenvolvimento e produção.
As organizações do futuro serão assim estruturas cada vez mais abertas e difusas,
constituídas por várias coroas concêntricas em que se movimentam “produtores”
ligados à organização por vários tipos de nculos e de modalidades de envolvimento:
trabalhadores a tempo inteiro e em regime de exclusividade, temporários, reformados,
prestadores de serviços, trabalhadores de organizações fornecedoras e subcontratadas,
clientes, consultores, etc. Estes vários tipos de “produtores” podem movimentar-se
entre umas coroas e outras à medida que o seu envolvimento se intensifica ou se
atenua, e na maioria dos casos as suas contribuições não exigem a sua presença física
continuada.
Os retornos decrescentes da “curva de experiência” pica das organizações tradicionais
estão a ser substituídos pelos ganhos crescentes da “curva de colaboração” própria das
redes abertas (Hagel e Brown, 2010): em vez de tender para um limite à medida que a
experiência “interna” se vai acumulando, o valor criado tende a crescer sempre que
novos membros se juntam à rede e contribuem com a sua experiência e as suas ideias.
Apesar dos mecanismos de controlo e censura que alguns estados procuram impor, o
acesso à informação e a própria produção de conteúdos continuam a democratizar-se.
Em vez de depender passivamente dos conteúdos fornecidos por agregadores (e.g.
cadeias de televisão, jornais impressos ou online...), o consumidor de informação pode
usar diretamente as funcionalidades das redes (motores de pesquisa, alertas, feeds,
tweets, etc.) para selecionar e agregar aqueles que lhe interessam; melhor ainda,
qualquer pessoa pode publicar conteúdos por ela criados (notícias, artigos, comentários
e opiniões, deos, etc.). Este colossal fluxo de informação tem evidentemente uma
qualidade muito desigual, mas é continuamente enriquecido, filtrado e depurado por
constantes contributos e críticas.
Esta utilização de uma lógica “pull” em vez de uma lógica “push” tenderá a aplicar-se a
todo o tipo de recursos, à medida que as novas tecnologias dão aos indivíduos uma
escolha cada vez mais ampla e, sobretudo, a possibilidade de reagir com flexibilidade a
acontecimentos imprevistos e de explorar de forma criativa as oportunidades por eles
criadas, sem ficarem amarrados a planos e previsões criados por terceiros (Hagel e
Brown, 2008).
Nas novas organizações do século XXI, o valor passou a residir no conhecimento, e o
conhecimento cria tanto mais riqueza quanto mais é partilhado; a “proteção” desse
conhecimento, numa lógica de acumulação e de sigilo, resulta invariavelmente na sua
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degradação. É o fluxo de conhecimento, e não o seu “stock”, que está na origem da
criação de valor
4
.
Esta nova lógica representa uma total revolução na cultura de muitas organizações, e o
fim do equívoco de que o poder resulta do acesso privilegiado à informação. Uma
caraterística sintomática das organizações bem-sucedidas será o fato de as suas
hierarquias estarem relativamente mal informadas, que nunca poderão ambicionar
dominar todos os fluxos de informação que atravessam a organização.
e. A ascensão socioprofissional da mulher
A
entrada das mulheres no mercado formal de trabalho assume uma dimensão massiva
na segunda metade do século XX, em consequência da terciarização da economia e do
declínio do emprego no setor secundário.
De um modo geral, o crescimento da participação feminina na economia traduz-se na
melhoria do estatuto social e familiar da mulher e está associado à aquisição de direitos
civis e políticos, à melhoria do acesso à educação, e ao aumento das suas qualificações.
Cerca de dois terços dos nos novos empregos criados nas últimas décadas em todo o
mundo são preenchidos por mulheres, que acumulam um poder de compra crescente
estimando-se que sejam responsáveis por cerca de 80% de todas as decisões de
compra – e têm maior sucesso escolar que os homens.
Contudo, a participação das mulheres na economia, na sociedade e na política em
de igualdade com os homens continua a ser uma miragem em vastas extensões do
globo. Mesmo nos países mais desenvolvidos, as mulheres ganham menos do que os
homens, são mais afetadas pela precariedade e pelo desemprego, e continuam
conspicuamente ausentes dos lugares de topo na economia e na política.
Na União Europeia (UE-27), um estudo realizado em 2009 sobre a composição dos
órgãos executivos de topo de uma amostra de 599 empresas representativas das
maiores empresas cotadas dos vários países revelou que 3% dos presidentes e 11%
dos membros dos conselhos de administração ou equivalentes eram do sexo feminino.
A situação é semelhante no que respeita ao exercício de atividades políticas, como
mostra o gráfico da ilustração 3: com exceção dos Países Nórdicos, a percentagem de
mulheres nos parlamentos nacionais anda à volta dos 20%, e nos Países Árabes cai
mesmo abaixo dos 10%.
4 A informação que importa manter sob reserva – e.g. determinados detalhes críticos sobre novos produtos
em desenvolvimento – representa uma fração muito pequena da informação que circula na organização e
através das suas fronteiras, e não põe em causa o princípio geral de abertura enunciado.
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Ilustração 3 – Percentagem de mulheres em parlamentos nacionais em todo o
mundo (2010)
Fonte: Inter-parliamentary Union
As
dificuldades enfrentadas pelas mulheres resultam essencialmente de dois
obstáculos. O primeiro é um problema objetivo e tem a ver com as responsabilidades
ligadas à família e a sobrecarga das tarefas domésticas, que podem variar de acordo
com fatores culturais, mas estão sempre presentes.
O segundo assenta em mitos e preconceitos quanto à capacidade e motivação das
mulheres para desempenhar funções ao mais alto nível: estão menos comprometidas
com as suas carreiras, não têm disponibilidade para viajar nem para trabalhar as horas
necessárias, o temperamento feminino não tem as caraterísticas certas, as mulheres
não são suficientemente assertivas (ou, pelo contrário, são demasiado agressivas), etc.
A superação destes obstáculos é imprescindível para realizar o formidável potencial
existente na plena participação da mulher da economia e na sociedade, em igualdade
com o homem. As mulheres representam metade da humanidade, e não existe
qualquer prova de que a inteligência, a energia e outras qualidades estejam
desigualmente distribuídas entre os sexos; as mulheres beneficiam de uma educação
cada vez melhor em muitos países igual ou superior à dos homens. A assunção do
papel a que têm direito reforçará a diversidade e pluralidade da força de trabalho, e
acarretará mudanças em muitos aspetos da cultura organizacional, incluindo os
modelos de liderança, a comunicação interna e externa, a natureza e a resiliência do
“contrato psicológico”, a responsabilidade social, e o work-life balance.
f. A alteração do contrato psicológico
Na
segunda metade do século XX, este contrato psicológico ou seja, as crenças, as
perceções, as expectativas e as obrigações informais recíprocas entre o trabalhador e a
organização que o emprega evoluiu no sentido de um conjunto de garantias tuas
visando assegurar a paz e a estabilidade laboral: em troco da promessa de segurança e
estabilidade do emprego, de tratamento equitativo e de proteção social, os
0.0% 10.0% 20.0% 30.0% 40.0% 50.0%
Países Nórdicos
Americas
Europa (OSCE) - com Países Nórdicos
Europa (OSCE) - sem Países Nórdicos
Ásia
África Subsahariana
Pacífico
Países Árabes
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trabalhadores comprometiam-se a manter-se razoavelmente dóceis, a permanecer leais
e fiéis à organização, a aceitar a separação entre a sua vida profissional e a sua vida
privada, e a alienarem ao empregador a gestão da sua carreira.
Este acordo tácito está presentemente sujeito a tensões insuportáveis, e deixou
mesmo de fazer qualquer sentido para as gerações que mais recentemente entraram
na vida ativa.
A responsabilidade cabe em primeiro lugar às próprias organizações, cujo
comportamento nas últimas duas ou três décadas
5
lay-offs, d
ownsizings, reformas
antecipadas, redução da proteção social
6
, aumento da precariedade... configura uma
denúncia unilateral dos termos deste acordo. È certo que muitas destas medidas eram
inevitáveis no quadro de uma economia global cada vez mais competitiva, e que
provavelmente resultaram na salvaguarda de muitos empregos. Mas não deixam de ser
encaradas pelos trabalhadores como uma quebra de compromisso que não teve origem
em nenhum comportamento repreensível por parte destes últimos.
Por outro lado, nos últimos sessenta ou setenta anos, a relação entre a longevidade
das tecnologias, das organizações e das carreiras inverteu-se por completo. Ainda na
primeira metade do século XX, uma determinada tecnologia (e.g. transporte de
mercadorias por via marítima) tinha um horizonte de aplicação igual ou superior à
“esperança de vida” da generalidade das organizações que a exploravam, e estas
empregavam nesse negócio sucessivas gerações de trabalhadores cujas atividades
pouco se alteravam com o tempo. Na atualidade, para não desaparecerem, as
empresas nascidas para explorar uma determinada tecnologia têm de se reconverter
sucessivamente a outras tecnologias que substituíram a inicial. Ao longo de uma vida
ativa de 40 anos (e dentro em breve de mais!), o trabalhador é obrigado a atualizar-se
permanentemente e, mesmo assim, assiste ao desaparecimento das organizações em
que trabalhou, ou à sua transformação a um ponto em que deixam de ter lugar para
ele.
Toda esta dinâmica de destruição e reconversão “schumpeteriana”, todas estas
constantes fusões e aquisições, transmitem-lhe uma noção de vulnerabilidade das
organizações e a suspeita de que, mesmo que estas queiram, não serão capazes de
cumprir as suas promessas de estabilidade e segurança do emprego por tempo
suficiente.
Conforme discutido mais adiante na secção sobre os valores emergentes, o aumento de
participação das mulheres significou o fim da aceitabilidade de subalternização da vida
pessoal e familiar, e a primazia conquistada pelo trabalho do conhecimento substituiu a
lealdade para com a organização pela identificação mais forte com o grupo profissional.
Por sua vez, a nova geração nascida a partir de 1980 que nesta última década começou
a entrar na vida ativa a “Geração Y parece orientar-se por valores que privilegiam
a realização nas três vertentes profissional, familiar e pessoal em detrimento da
segurança e do sucesso financeiro a curto prazo, e subordina a sua lealdade a qualquer
organização a padrões éticos exigentes.
5 Muitos autores situam a génese deste processo no início dos anos 80, com a vaga de liberalização e
des
regulamentação iniciadas respetivamente nos Estados Unidos e no Reino Unido pelos governos Reagan
e Thatcher, então recentemente eleitos.
6 Ver p.ex. a conversão dos planos de pensões de “benefício definido” para “contributo definido” que tem
sido levada a cabo um pouco por toda a parte nos últimos dois ou três anos.
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Tudo isto conduz à emergência de um novo tipo de contrato psicológico, em que a
lealdade à organização o é determinada pela promessa de estabilidade e
segurança, mas condicionada por expectativas de desenvolvimento, de
empregabilidade e realização profissional.
g. A erosão das formas tradicionais de autoridade
Na sua forma tradicional, a autoridade é legitimada pelo estatuto, e o
nec
essariamente pela competência. Esta forma de autoridade ainda hoje perdura em
inúmeras organizações – em particular nas organizações familiares de menor dimensão
onde impera a personalidade do patriarca, e mesmo em grandes organizações
fortemente marcadas pelo carisma do seu fundador – mas é, por toda a parte, cada vez
mais posta em causa pela convergência de múltiplos desenvolvimentos verificados na
economia e na sociedade.
Nas organizações conhecimento-intensivas, a hierarquia assenta na competência
demonstrada, pois o trabalhador do conhecimento tem uma extrema dificuldade em
aceitar outra fonte de autoridade que não seja o próprio conhecimento. Esta hierarquia
é também eminentemente plástica: em função do problema enfrentado, a autoridade
transita para aquele ou aqueles cuja competência coloca em melhores condições de
liderar.
A arquitetura aberta destas organizações, a sua dispersão geográfica e diversidade
cultural, e a natureza informal do relacionamento de muitos dos intervenientes na
produção do conhecimento prestadores de serviços, membros de comunidades de
prática, e mesmo clientes torna extremamente difícil a projeção da autoridade pelos
meios convencionais de coerção e punição. As redes colaborativas costumam por isso
ser fortemente igualitárias, e costumam funcionar satisfatoriamente com uma divisão
de responsabilidades meramente funcional e um mínimo de coordenação formalmente
atribuída.
A geração mais nova, por sua vez, atribui grande importância à dimensão ética da
autoridade, cuja legitimidade dependerá não das caraterísticas da pessoa que dela
está investida competências, capacidade relacional, etc. – mas sobretudo da bondade
das suas intenções. Esta exigência tem vindo a acentuar-se, naturalmente, na
sequência da revelação de sucessivos escândalos, fraudes e outros episódios menos
dignificantes que ao longo da última década têm vindo a destruir a reputação de líderes
outrora prestigiados.
Todos estes processos têm sido potenciados pela crescente ubiquidade do modelo de
gestão anglo-saxónico, que encoraja um tipo de relacionamento mais aberto e informal
entre superiores e subordinados. Este modelo, porém, provém de uma matriz cultural
igualitária e apreciadora da responsabilidade individual, e encontra dificuldades de
implantação em culturas mais coletivistas e de maior “distância de poder” (Hofstede,
1991).
Em síntese, está a verificar-se uma crescente rejeição da autoridade imposta a partir
do exterior, em benefício de uma autoridade aceite em função das caraterísticas e
sobretudo das intenções do líder: a sua competência, a sua capacidade para assegurar
a informação e os recursos necessários para o êxito da missão comum, o seu carisma,
a sua postura ética e a aceitabilidade dos seus objetivos.
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h. Os valores emergentes
A preocupação com a ética não se limita aos fundamentos da autoridade. Nos últimos
anos tem-se assistido a um protagonismo crescente de temas como a responsabilidade
social das organizações (RSO), a importância da realização pessoal no trabalho, e o
equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar (work-life balance). Por
detrás de algum aproveitamento oportunista, parece existir uma preocupação genuína
com estes temas.
A reivindicação de um maior equilíbrio entre as exigências da profissão e da vida
familiar resulta em grande parte do aumento da participação feminina na força de
trabalho, e tem por fundamento a procura de um maior equilíbrio entre os papéis do
homem e da mulher tanto no trabalho como na família e a melhoria a qualidade de vida
familiar.
Por outro lado, aqueles valores correspondem de perto ao ideário da geração “Geração
Y”. As desta geração (ver e.g. Pew Research Centre, 2007) revelam algo paradoxal. Por
um lado, trata-se de uma geração marcadamente narcísica, criada num ambiente
fortemente protetor e paternalista que lhe instilou a crença de ser verdadeiramente
especial. Crescida durante o boom económico dos anos 80 e 90, beneficiou de padrões
de consumo e de uma educação incomparavelmente melhores do que os dos seus pais,
e é contemporânea do advento da competição baseada na qualidade de serviço e da
afirmação dos direitos do cliente. Está habituada a exigir, e tem uma aguda
sensibilidade à marca – ao ponto de ser exímia no branding pessoal.
Por outro lado, porém, muitos destes jovens adultos viram os seus pais ficarem sem
emprego na turbulência das re-estruturações ocorridas naquelas duas décadas, e o
momento da sua entrada na vida ativa coincidiu com as sucessivas crises económicas
que abalaram o início do século XXI, e com as incertezas relativas ao advento de uma
nova ordem mundial de que os ataques de 11 de Setembro de 2001 constituem um
marco simbólico. Sobretudo na Europa, o fraco crescimento económico e o desemprego
estão a dificultar-lhes o acesso a um trabalho suficientemente gratificante e adiar a sua
saída de casa dos pais.
A conjugação destes eventos levou-os a re-equacionar as suas prioridades de vida e a
trazer para os lugares cimeiros o tempo disponível para a vida pessoal, a natureza
intrínseca do trabalho, a realização pessoal e o crescimento profissional. Ambicionam
inserir-se em organizações cujos valores estejam alinhados com os seus próprios
valores pessoais, e acreditam que elas devem ter preocupações sociais.
No domínio da política e dos costumes por exemplo em relação a questões como a
homossexualidade, as famílias não convencionais, a imigração e as relações
interculturais exibem uma atitude mais cosmopolita e mais tolerante do que qualquer
das gerações anteriores.
No trabalho são impacientes e têm uma elevada autoestima, são fortemente orientados
para a inovação e para as tecnologias, e apreciam o trabalho em equipa e a interação
em redes informais. Manifestam uma intensa relutância por atividades cujo valor
acrescentado não conseguem descortinar. Querem sentir-se a progredir, e precisam de
estímulo e reconhecimento frequentes. Não compreendem nem aceitam restrições no
acesso à informação e a contactos no exterior da organização.
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É esta geração, com estes valores, que iconviver na força de trabalho não com uma,
mas com as duas que a antecederam a chamada “Geração X” e os “Baby Boomers”
cujos valores e prioridades diferem por vezes substancialmente dos seus.
Ilustração 4 – Prioridades relativas das três gerações
Prioridade relativa atribuída ao
trabalho ou à família
Baby-boomers Geração X Geração Y
Trabalho 22%
13%
13%
Ambos 37%
35%
37%
Família 41%
52%
50%
Fonte: Generation and Gender in the Workplace, 2002
O futuro da gestão de pessoas
A complexidade e intensidade dos fatores em presença dão a escala das
transformações que a gestão das pessoas terá de sofrer para responder eficazmente às
novas realidades.
i. Gerir a escassez
Nas organizações conhecimento-intensivas que estão a dominar a economia global, o
talento é o bem mais escasso.
Esta escassez tem duas origens: a erosão cada vez mais rápida dos conhecimentos
gerada pelo constante avanço da ciência e da técnica, e a retração da força de trabalho
provocada pelo envelhecimento e declínio populacional. Cada uma destas causas exige
respostas específicas.
A constante erosão da base de conhecimentos exigirá a generalização da aprendizagem
ao longo da vida. A formação terá de deixar de ser encarada como um recurso escasso,
e pelo contrário oferecida em abundância. Contudo, os métodos, os formatos e os
canais de distribuição usados serão radicalmente diferentes dos que hoje existem. O
elevado risco de desatualização dos conteúdos desencorajará os programas de
formação longos e abrangentes, concebidos como investimentos pesados ex-ante
destinados a produzir efeito durante um período relativamente longo. Estes programas
serão substituídos por módulos mais curtos e de realização mais assídua, cujos
conteúdos terão maior probabilidade de produzir um retorno aceitável durante o
período em que se mantiverem atuais.
A fragmentação e modularização dos conteúdos facilitarão também a personalização
das aprendizagens, permitindo uma variedade quase ilimitada de combinações capazes
de satisfazer as necessidades específicas de cada formando. A oferta de formação
estará também omnipresente na rede global, sob os mais diversos formatos e de
acordo com as mais diversas conveniências: texto convencional, hipertexto, e-learning,
animações, deos, podcasts, roteiros de realização, interação online com os
formadores, etc.
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A modularização e a ubiquidade dos conteúdos permitirão que a aprendizagem passe a
organizar-se segundo uma lógica pull em que os indivíduos localizam, selecionam e
combinam os recursos que correspondem em cada momento às suas necessidades, e
abandone a lógica push em que agregadores especializados decidem que conteúdos são
necessários para todo um grupo de indivíduos, em função de previsões centralizadas e
de “necessidades médias” cada vez mais falíveis e desajustadas em consequência da
incerteza e diversidade crescentes.
As preocupações centrais da formação deslocar-se-ão do planeamento centralizado
para a disponibilização do acesso aos conteúdos e das ferramentas de autodiagnóstico
e identificação de necessidades pelo próprio indivíduo. A produção de conteúdos estará
cada vez mais externalizada, e incorporará um contributo cada vez maior dos próprios
utilizadores agindo como “prosumidores”
7
de formação. Acima de tudo, as
org
anizações de sucesso terão de ser verdadeiras “organizações aprendentes”, capazes
de gerar, mobilizar e difundir conhecimento em todas as suas atividades.
As medidas para combater a escassez da força de trabalho - imigração, prolongamento
da vida ativa - foram enunciadas na secção sobre o envelhecimento global, tal como
algumas das suas possíveis consequências na vida das organizações e na gestão do seu
capital humano.
O adiamento da idade da reforma suscita ainda uma outra questão extremamente
sensível a da remuneração no troço final da carreira. Em concreto, a regra de que a
esta cresce (pelo menos em valor unitário) até ao final da vida ativa tede ser re-
examinada. Não se trata de que os trabalhadores mais idosos sejam menos produtivos;
pelo contrário, sabe-se hoje que o declínio de certas funções cognitivas com a idade é
compensado pela experiência. Contudo, a combinação entre o aumento da oferta nesta
faixa etária e a competição entre ela e a geração mais jovem, genericamente mais bem
preparada, pressionarão inevitavelmente as remunerações da primeira. Ora, esta
tendência colide com a oferta de incentivos pecuniários atualmente praticada para
encorajar o adiamento da reforma.
j. Gerir a pluralidade
As
organizações do futuro movimentar-se-ão num ambiente de extraordinária
pluralidade.
O termo é aqui usado expressamente para denotar um conceito mais amplo e mais rico
do que o da simples “diversidade”. Esta pluralidade manifesta-se em vários contextos e
dimensões. É possível falar:
- Da pluralidade da força de trabalho, caraterizada por múltiplas dimensões de
diversidade: a diversidade cultural originada pelos fluxos sicos globais (imigração,
expatriações, viagens) e pela interação remota entre dos trabalhadores de países e
culturas diferentes; a diversidade geracional provocada pelo convívio inédito entre
três gerações; a representação mais equilibrada de homens e mulheres em todas as
instâncias das organizações; e por fim, para além da força de trabalho no sentido
7 Esta faculdade de produção de conteúdos pelos próprios consumidores, tal como o envolvimento dos
clientes nos processos internos das organizações, representa a realização da profecia do “prosumidor”
(i.e. simultaneamente produtor e consumidor) proposta por Toffler (1980).
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convencional, a diversidade de inputs e envolvimentos da constelação de
stakeholders que juntam o seu contributo ao dos trabalhadores.
- De uma pluralidade funcional, presente na diversificação e desmassificação das
atividades dos trabalhadores.
- De uma pluralidade estrutural e geográfica, decorrente da internacionalização, da
especialização ou mesmo externalização de algumas operações, e das
idiossincrasias das unidades de negócio que entram e saem do perímetro da
organização ao sabor de sucessivas fusões, aquisições e alienações; e também da
possibilidade de os trabalhadores do conhecimento desempenharem eficazmente as
suas funções independentemente do local onde se encontrem.
- E até mesmo de uma pluralidade cronológica, visível na coexistência de partes da
organização que se encontram em diferentes fases do seu percurso rumo aos novos
paradigmas.
Esta pluralidade representa uma formidável fonte de riqueza, e as organizações
vencedoras serão aquelas que melhor conseguirem mobilizá-la.
O desenvolvimento da inteligência intercultural passará pois a ser uma prioridade da
gestão das pessoas. É indispensável que os trabalhadores saibam não valorizar a
diferença, mas também dominar os instrumentos necessários para lidar com ela e dela
tirar partido: línguas estrangeiras, comunicação interpessoal, aplicações e plataformas
de comunicação, conhecimento das caraterísticas das diferentes culturas, e tantos
outros. Apesar dos constantes preitos à valorização da diferença e ao desenvolvimento
da sensibilidade intercultural, a distância a percorrer é enorme: quantos colaboradores
de empresas ocidentais (ou mesmo quantos executivos) com negócios em países
islâmicos têm consciência de que o fim de semana nesses países calha à sexta-feira e
ao sábado? E quantos conseguem citar os cinco princípios fundamentais do Islão?
Será também indispensável passar de uma atitude dominante de antagonismo para
outra de procura ativa da vantagem recíproca: nas organizações abertas, a criação de
valor depende fortemente da confiança entre os vários tipos de “produtores” que
trocam conhecimento através das suas fronteiras – os clientes que participam na
inovação, os profissionais da mesma especialidade que contribuem com soluções
técnicas, e até mesmo dos concorrentes que colaboram na definição de normas e
standards vantajosos para todos na lógica de “coopetição” preconizada por Toffler
(1980).
Em síntese, poder-se-ia afirmar que, perante os desafios e as oportunidades da
pluralidade, o papel da gestão das pessoas deverá consistir não tanto na procura dos
equilíbrios necessários para garantir a coesão, mas na criação de desequilíbrios
controlados suscetíveis de alimentar as diferenças para delas extrair valor, sem
contudo nunca deixar ultrapassar os limites a partir dos quais a coesão seja posta em
causa.
k. Gerir as motivações e o mérito
Na
s organizações abertas e plurais, os fatores de motivação são seguramente muito
dis
tintos entre os diversos grupos que as compõem. A identificação e a compreensão
destas motivações é essencial para orquestrar eficazmente todo o potencial presente
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nesta “força de trabalho alargada”. Gerir pessoas significa facultar a todas elas estas
chaves essenciais para compreender o outro e com ele colaborar. Na organização do
futuro, a gestão das motivações não poderá ser uma reserva de competência do der.
A natureza aberta e horizontal do trabalho colaborativo exige que todos os
trabalhadores consigam entender aquilo que faz correr todos aqueles com quem se
relacionam.
É um lugar-comum defender a meritocracia como princípio estruturante das relações de
poder e autoridade nas organizações. O problema está na definição de “mérito”. Com
uma dose de ironia, poder-se-ia dizer que o “mérito” reside nos comportamentos e
atitudes que são premiados pela elite dirigente, que vão do contributo objetivo para a
criação de valor à “dedicação à empresa” (leia-se “número de horas trabalhado”), à
lealdade a determinados círculos e à obediência acrítica aos superiores. Mas isso não é
verdade, pois os fundamentos do mérito são um dos mais poderosos fatores de
atratividade de uma organização: onde o mérito estiver na afinidade com a elite,
estarão os amigos; e onde ele estiver na obediência acrítica, só serão atraídos e retidos
“yes men”.
A organização do futuro será muito exigente quanto aos fundamentos do mérito. Em
primeiro lugar, evidentemente, a contribuição para a criação de valor. Mas a par desta,
todos os comportamentos e atitudes exigidos pelo seu funcionamento: tolerância e
valorização da diferença, capacidade de comunicação em todos os contextos,
autonomia e iniciativa, procura das vantagens tuas, curiosidade e aprendizagem
permanente, ética. Porque sem estes, aquele valor não pode ser criado. (E para
muitos, não vale a pena ser criado.)
l. Gerir fluxos de talento em vez de st
ocks
O modelo convencional de gestão do talento obedece a uma lógica de acumulação.
Uma vez adquirido, o talento deve ser preservado e retido a todo o custo incluindo
diversas formas mais ou menos manifestas de aliciamento e chantagem e a perda
para o exterior é considerada uma rotura litigiosa entre a organização e o trabalhador.
Nestas circunstâncias, é legítimo ocultá-lo do exterior, para evitar a cobiça alheia; a
participação em reuniões, conferências e eventos afins, tal como a filiação em grupos
ou associações profissionais, são desencorajadas, e a pertença a redes sociais é motivo
de anátema. A própria formação é preferencialmente conduzida na própria organização,
para minorar o risco de contacto com elementos externos.
Este modelo não serve, evidentemente, as necessidades da economia do
conhecimento.
Não é possível hoje em dia conceber o desenvolvimento do talento em ambiente
fechado. Por razões apresentadas, a atualização e enriquecimento das competências
do trabalhador do conhecimento exigem o seu relacionamento permanente com uma
rede que se estende muito para além das fronteiras da sua organização.
Por outro lado, os novos termos do contrato psicológico que aliás nascem em parte
de uma reação contra uma visão o paternalista retiram todo e qualquer sentido às
estratégias de acumulação e preservação do talento.
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Os novos modelos de gestão das pessoas têm pois de passar a incorporar a gestão do
talento para além das fronteiras da organização uma mudança radical de
mentalidades, atendendo a que a rotura litigiosa deve ser substituída por uma saída
amigável, e em certos casos mesmo recomendada pela organização. Na organização do
futuro, a existência de talento benevolente, disponível e reconhecido para com a
organização é um ativo de valor inestimável e facilmente superior ao da sua eventual
retenção. A preservação de um bom relacionamento entre as partes vai permitir que
ele faça parte das redes da organização, que seja parceiro na partilha de
conhecimento, fonte de oportunidades de negócio e de ideias inovadores, e contribuinte
de soluções técnicas dentro da sua especialidade.
Gerir fluxos de talento significa pois, sucessivamente:
1. Compreender os tempos, os ritmos e as motivações de carreira de cada trabalhador
do conhecimento, e detetar os momentos em que uma transição faz sentido para
ele
8
;
2. Se
necessário, tomar mesmo a iniciativa de lhe recomendar essa transição: uma
recomendação fundamentada e coerente, ajustada aos projetos do trabalhador,
reforçará a sua gratidão e benevolência futura, mesmo que não se concretize; além
disso, permite controlar melhor o risco de perda direta para a concorrência, que
pode dificultar as possibilidades de cooperação futura;
3. Manter e acarinhar o contacto para além das fronteiras da organização
m. Uma nova liderança
Tal como agora, os líderes das organizações do século XXI também terão a
responsabilidade de motivar e desenvolver os trabalhadores do conhecimento,
orquestrar a sua colaboração, e orientar as suas carreiras mas terão de o fazer de
forma muito diferente.
Os trabalhadores do conhecimento têm uma visão essencialmente igualitária acerca de
si mesmos. Acreditam que os contributos valem pela sua qualidade objetiva e não pelo
estatuto de quem os produz. A natureza do seu trabalho é mais autónoma, e exige-lhes
maior iniciativa. As chefias não têm qualquer hipótese de conhecer toda a informação
que circula entre os seus subordinados, e muito menos de a controlar e filtrar como
forma de exercer o poder. Estes esperam por isso dos seus deres orientação,
estímulo, e os recursos necessários para fazerem o seu trabalho, mas não uma
intervenção fortemente prescritiva ou um controlo apertado da sua atividade.
A influência exercida pelos líderes te por isso que assentar na capacidade
demonstrada de agir de acordo com aquelas expectativas. Estará mais próxima da
auctoritas dos Romanos a autoridade dos sábios, que convencem pela pertinência e
pela justeza dos seus argumentos, com base na credibilidade do seu testemunho do
que da potestas, ou direito dos magistrados eleitos de exercer coerção e de aplicar
punições.
8 Esta capacidade é razoavelmente dominada pelas organizações que praticam uma rotação interna
sistemática. A diferença está na possibilidade de a “rotação” se fazer para o exterior.
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A liderança baseada na auctoritas terá um papel fundamental na relação entre
gerações. O prolongamento da vida ativa, a transição gradual para a reforma, e a
migração dos trabalhadores mais velhos para funções de aconselhamento e apoio
traduzir-se-á numa perda objetiva do poder que antes exerciam. Os quadros mais
idosos serão gradualmente substituídos nas suas funções de chefia por outros mais
novos, mas como permanecerão ao serviço da organização acabarão por ser chefiados
estes, no exercício de cargos que os primeiros tinham anteriormente ocupado. É
duvidoso que aqueles alguma vez aceitem uma autoridade dos mais novos assente no
poder de coerção e de punição. Estes terão de conquistar e merecer essa autoridade a
partir do mérito demonstrado e este, no sentido aqui defendido, será sinónimo de
competência e de resultados, mas também de lealdade, de humildade e de rigor ético.
uma maneira de aprender esta forma de liderar: é aprendendo a ser liderado.
Certamente, desde logo, aprendendo com o exemplo dos bons deres, mas também
com tudo aquilo que não deve ser feito, com os comportamentos que, em vez de
granjearem a adesão do subordinado, suscitam nele a revulsão e a oposição: a
arrogância, deslealdade para com os subordinados, o egoísmo, a incapacidade para
dizer não aos próprios superiores, a falta de rigor ético numa palavra, a falta de
caráter. Este treino do followership (ou “seguidança”) da aos candidatos a futuros
líderes uma perspetiva muito mais rica da exigência ética e humana da liderança.
Esta exigência traduz-se, em síntese, no respeito pelas pessoas e por cada pessoa. E
no respeito pelos seus valores e interesses, sejam eles o serviço à comunidade, a
defesa do ambiente, ou a simples fruição de mais tempo com a família.
Mas para respeitar é preciso conhecer, e conhecer significa relacionar-se, expor-se, e
reconhecer a individualidade e especificidade do outro. Ora, a natureza plural e
dispersa da organização do século XXI dificulta muito consideravelmente esta
descoberta: como conhecer alguém com quem só contactamos por e-mail ou por
telefone? Que vive e trabalha a milhares de quilómetros de distância, que fala outra
língua, e cuja cultura é tão diferente da nossa?
Este é certamente um dos grandes desafios da gestão das pessoas nas próximas
décadas: ajudar a que, apesar de todos os obstáculos e dificuldades, os trabalhadores
sejam reconhecidos como pessoas de carne e osso, com as suas ambições e as suas
frustrações, as suas convicções e as suas angústias, as suas alegrias e as suas
tristezas, o seu passado e o seu futuro e não como meras representações abstratas
numa base de dados, cuja verdadeira realidade nenhuma quantidade de informação,
por maior que seja, conseguirá captar.
A situação em Portugal
A problemática da gestão das pessoas em Portugal não difere muito, na sua essência,
do
panorama apresentado.
Trata-se de uma economia fortemente terciarizada, em que o emprego no setor dos
serviços cresceu de 33% para 61% da população ativa entre 1974 e 2009 um valor
típico das economias pós-industriais. É também uma pequena economia aberta,
exposta aos ventos da globalização e integrada num espaço de livre circulação de
mercadorias, pessoas e capitais, na qual operam várias empresas multinacionais.
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A sua população é das mais envelhecidas, mas com indicadores comparáveis aos de
outros países do Sul da Europa, e a sua taxa de fertilidade está abaixo da média da
União Europeia.
Apesar de nos últimos anos ter acolhido um considerável número de imigrantes,
continua a ser uma fonte de emigração de trabalhadores pouco qualificados para
economias mais desenvolvidas, mas nos últimos anos tem visto crescer a “fuga de
cérebros” em consequência da dificuldade que os jovens altamente qualificados têm em
encontrar empregos compatíveis com as suas expectativas.
No domínio das TIC apresenta indicadores comparáveis aos de muitos outros países
desenvolvidos (penetração da internet e dos serviços de banda larga, adesão a redes
sociais...).
Tem uma das mais elevadas taxas de participação feminina na economia, uma das
mais baixas diferenças salariais da União Europeia (9.2%), e um elevado output de
diplomados do sexo feminino (64%), mas no acesso das mulheres a lugares cimeiros
na economia e na política compara desfavoravelmente com os seus pares.
Uma história de instabilidade económica, uma tradição de dependência do poder, um
baixo índice de individualismo e um elevadíssimo índice de aversão ao risco (Hofstede,
1991) levam a que a estabilidade do emprego por conta de outrem seja fortemente
valorizada em detrimento da iniciativa e do empreendedorismo., o que de resto é
reforçado pela rigidez das leis laborais.
A autoridade é marcada por uma elevada distância de poder (Hofstede, 1991), patente
na aceitação social da desigualdade de estatuto, nas fórmulas de deferência usadas, e
na existência de uma elite dirigente bastante fechada em consequência da pequena
dimensão do meio e das relações forjadas na vida política e académica.
De um modo geral, os novos valores organizacionais mostram dificuldade em
implantar-se. A preocupação com o work-life balance é subordinada à necessidade de
assegurar um rendimento familiar suficiente, que mantém homens e mulheres
afastados de casa durante longas horas, agravadas pelo tempo gasto em deslocações
nos grandes centros urbanos. A dificuldade de emprego entre os jovens mantêm-nos a
viver em casa dos pais até muito tarde, esvaziando aquele conceito de todo e qualquer
sentido. A RSO não parece suscitar grande entusiasmo e é vista de forma algo cética,
mesmo na sua vertente ambiental (conforme atestam os veis de reciclagem
comparativamente baixos); o voluntariado vegeta, apesar de episódios esporádicos de
forte adesão a causas vistas como nobres (e.g. campanhas do Banco Alimentar contra
a Fome, e Operação “Limpar Portugal” em Março de 2010).
Perante este panorama, não se afigura que as orientações para a gestão das pessoas
em Portugal deva ser muito diferente da preconizada no capítulo anterior. no
entanto alguns aspetos que merecem ser relevados.
No que se refere à gestão da pluralidade, a sociedade portuguesa parece ser
suficientemente tolerante para aceitar e tirar partido de uma muito maior exposição à
diversidade. Absorveu sem grande desconforto várias centenas de milhar de imigrantes
nos últimos vinte anos, apesar da discriminação visível contra algumas comunidades
(africanos pobres, ciganos) e mesmo esta parece desaparecer ao nível das relações
entre indivíduos. Ainda assim, não devem ser poupados esforços no sentido de uma
verdadeira educação intercultural das novas gerações, por meio da aprendizagem de
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línguas, de intercâmbios, de viagens, de períodos de estudo ou trabalho no estrangeiro,
de pertença a redes sociais internacionais, etc.
Algumas das caraterísticas culturais da sociedade portuguesa em particular o baixo
índice de individualismo e a tradição de dependência (seja ela da família, do
empregador ou do Estado), a atribuição causal externa, a forte aversão ao risco, a
inveja, e a elevada distância de poder o certamente dificultar algumas daquelas
orientações.
O baixo individualismo e a aversão ao risco tenderão também a desencorajar a
mobilidade profissional e a preservar o contrato psicológico na sua versão paternalista.
Simetricamente, o desenvolvimento de uma atitude mais aberta em relação aos fluxos
de talento colidirá frontalmente com o primado do coletivo sobre o indivíduo, com a
preferência pela evitação de incertezas e ambiguidades, e com a inveja para com
alguém que conseguiu uma situação melhor. Por estas razões, exigirá um esforço muito
maior. O mesmo se passará com a procura proativa de vantagens mútuas.
Tal como a aversão ao risco e a apetência pela dependência desencorajarão os
trabalhadores mais velhos a encetar projetos de empreendedorismo no troço final das
suas carreiras, também a distância de poder e a valorização do estatuto poderão
dificultar a convivência e a colaboração intergeracionais.
O advento de uma liderança assente na auctoritas terá dificuldade em vencer a barreira
da distância de poder.
Todos estes problemas serão agravados pela natureza do tecido empresarial português,
em que 95% das empresas empregam menos de 10 trabalhadores e têm
maioritariamente uma estrutura familiar. Pura e simplesmente, estas micro-
organizações não têm a dimensão nem os recursos suficientes para por em prática as
medidas preconizadas no capítulo anterior, ainda que muitas delas se movimentem
na economia do conhecimento. A única exceção poderia ter a ver com a liderança, já
que a pequena dimensão facilita a aproximação entre os trabalhadores e o patrão; a
falta de preparação deste (a maioria tem habilitações ao nível do 1º ciclo do Ensino
Básico), a sua insensibilidade ao que significa liderar, e a atitude fortemente
paternalista típica das culturas coletivistas são porém obstáculos de monta.
A situação está no entanto longe de ser desesperada. As dificuldades o apenas de
natureza quantitativa, e são superáveis com o esforço e o investimento apropriados.
Várias das maiores organizações presentes no país, sejam de origem nacional ou
multinacionais estrangeiras, adotam muitos dos princípios e práticas aqui
preconizados.
A boa gestão das pessoas na economia do conhecimento é possível em Portugal.
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Notas e Reflexões
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS, A HISTÓRIA E A ESTRATÉGIA:
O CONFLITO COMO DINÂMICA EXPLICATIVA
Luís Alves de Fraga
Dou
torado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL)
Mestre em Estratégia pelo ISCSP - UTL
Licenciado em Ciências Político-Sociais pelo ISCSP - UTL
Coronel da Força Aérea Portuguesa (Reformado)
Professor no Departamento de Relações Internacionais
da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL)
Desde sempre a explicação do relacionamento entre os Estados foi fundamental para a
condução da política externa de cada um. Saber como defender melhor os interesses
próprios para evitar expor vulnerabilidades à cobiça e vontade alheias foi determinante,
ao longo dos tempos, para os encarregados das negociações as levarem a bom termo
com o menor prejuízo possível. A tomada de decisão fazia-se rodeada de cautelas,
depois de o decisor ouvir os seus mais prudentes e avisados conselheiros. Tratava-se
de homens experientes e hábeis no conhecimento e manobra da teia de intrigas que
rodeava o negócio em questão ou o interesse em jogo. A experiência e a habilidade
ganhavam-nas na prática vivida ou no estudo da história passada. Esta estimulava
estratagemas e razões invocadas ou consequências. Enfim, com experiência vivida ou
estudo aprofundado, negociar era uma arte que passava pela descoberta das intenções
alheias e pela dissimulação dos interesses próprios. Sempre foi assim e vai continuar a
ser assim. Todavia, o século XX trouxe-nos uma novidade: o estudo das relações
internacionais ganhou foros científicos e marcou o seu lugar dentro das universidades,
quando se começou a tentar definir-lhe contornos de sistemas explicativos das
motivações e dos comportamentos dos actores que participam na arena internacional.
Na senda de uma explicação académica do que se deve entender por relações
internacionais, Jacques Huntzinger diz-nos que elas «[…] têm por objecto o estudo
científico da vida internacional»
1
, mas, em função da extrema complexidade que esta
envo
lve, esclarece que «As relações internacionais são a ciência dos factos sociais
internacionalizados»
2
. A última afirmação permite-nos englobar como actores
rele
vantes da vida internacional, mais do que os Estados, outras entidades que chegam
1
Huntzinger, Jacques (1991) Introdução às Relações Internacionais, (tradução portuguesa de Carlos
Aboim de Brito), Lisboa: PE – Edições: 9.
2
Idem, op. cit. 11.
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As Relações Internacionais, a História e a Estratégia: o conflito como dinâmica explicativa
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a condicionar a acção e os movimentos daqueles. Ou seja, os pólos da dinâmica da
relação internacional extravasaram o âmbito tradicionalmente fechado das
chancelarias, para se deslocarem noutros campos bem diversos dos que à
diplomacia respeitavam. Nesta perspectiva, especialmente a partir da segunda metade
do século XX, multiplicaram-se os centros de decisão e os centros de poder na vida
internacional. Esta multiplicação determinou, também, uma clara ampliação do
potencial de conflitualidade nas relações internacionais. Temos, assim, que, para
satisfazer a primeira proposição de Huntzinger (estudo científico da vida internacional),
por força da ampliação dos actores com relevância internacional, a condição científica
obriga a maiores rigores, pois estão dispersos os centros decisórios, interpenetrando-se
os interesses e, por conseguinte, as potenciais situações de conflito. E é importante,
em nossa opinião, levar em conta que a relação internacional como toda a relação
podendo passar pela cooperação, passa, também, pelo conflito latente ou declarado.
Iríamos, até, mais longe, afirmando que a conflitualidade é o quadro primário no qual
se desenrolam as relações internacionais, porque dissimulado na relação está o
interesse, e este, porque em confronto com outro, gera o potencial conflito que as
partes em presença evitarão para encontrarem o plano de cooperação. Por
conseguinte, podemos concluir que o estudo científico das relações internacionais visa,
em última análise, a compreensão e explicação das relações de poder que dinâmica e
dialecticamente se estabelecem entre os actores da vida internacional.
Marcel Merle chama a atenção para o modo como os historiadores e os politólogos
olham para as relações internacionais e deixa-nos esta mensagem muito clara: «[…] o
seu papel [o dos historiadores] consiste em restabelecer o passado e não em explicar o
presente. A ciência política é […] mais ambiciosa quanto aos seus objectivos e mais
limitada quanto aos seus meios, que se propõe exactamente relatar não somente as
coisas do passado como também do presente, não dispondo entretanto do recuo nem
das fontes de documentação das quais o historiador benefici
3
. Por outras palavras,
para
este teórico das relações internacionais, uma barreira entre o passado e o
presente que, geralmente, não é transposta pelos historiadores, compartimentando,
assim, os campos de análise e os saberes de uns e de outros.
Ora, Merle coloca uma questão que, quanto a nós, é fundamental: a dificuldade que o
politólogo tem em aceder às fontes. E essa é tanto maior quanto mais complexa é a
vida internacional, pela existência de inúmeros pólos de decisão dispersos por inúmeros
centros decisórios. Deste modo, é mais fácil fazer história do que fazer estudos
científicos das relações internacionais pois, a primeira faz-se conhecendo e
antecipadamente os intervenientes e os resultados, ou seja, sabendo ou podendo
saber através de um estudo dinâmico e interactivo dos actores históricos a teia de
conflitos e de cooperações que se desenrolaram em determinado momento para
provocar uma certa e conhecida reacção. Esta facilidade permite concluir que o
conhecimento histórico é mais fiável porque assente na dissecação de um corpus
inerte e ultrapassado — do que o conhecimento científico das relações internacionais, já
que este resulta de uma análise hodierna, carecendo de fontes garantidamente
genuínas e provenientes de todos os centros de decisão.
Claro que, no desempenho do seu trabalho, levanta-se ao historiador uma vida
constante: estará ele na posse de toda a informação que determinou um
3
Merle, Marcel (1981). Sociologia das Relações Internacionais, (tradução brasileira de Ivone Jean),
Brasília: Editora Universidade de Brasília: 40.
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acontecimento? Terá o tempo ou o homem subtraído informação que lhe daria um
outro entendimento do passado? Essa é a dúvida que ele consegue sobrepujar
através da colocação de hipóteses que encontrem suporte possível na documentação
que lhe resta. Note-se que esta incerteza tem um paralelo metodológico na
problemática que se põe ao investigador das relações internacionais, pois também ele,
por não ter acesso a todas as fontes e centros de decisão, tem de trabalhar com
hipóteses. Estas, para o politólogo, por via da multiplicação dos centros de decisão na
arena internacional, serão mais falíveis e menos consistentes do que as usadas pelo
historiador. nas relações internacionais uma fluidez que não existe na história. Por
isso, ao olhar para história e para as relações internacionais, enquanto formas
científicas de conhecer e explicar o passado e o presente, percebemos que aquela é um
excelente auxiliar destas, porque o presente finca-se, de uma maneira ou de outra, nos
entendimentos ou nos desentendimentos de antanho. É difícil que ocorram factos em
uma qualquer actualidade desgarrados de todo um conjunto de razões antecedentes.
Assim, o trabalho científico no âmbito das relações internacionais, para ser
absolutamente bem compreendido, terá de levar em conta o trabalho do historiador,
mas este último não se pode limitar, quando faz história, ao relato dos factos; tem de ir
mais além e procurar a explicação justificativa do acontecimento. Ora, como vimos,
a relação social, seja ela limitada a um pequeno grupo ou tendencialmente global
entrando assim no domínio da relação internacional está, por natureza dos
interesses em jogo, sempre disposta a tornar-se conflitual. Compreender a relação
passa, por conseguinte, por entender a dialéctica que a ditou e que lhe determina, em
cada instante, as fases que podem conduzir à cooperação ou à ruptura da relação
pacífica.
No horizonte do trabalho científico do historiador e, também, no do politólogo que se
debruça sobre as relações internacionais, deve perfilar-se uma ciência que se
transferiu, recentemente, das academias militares para as universidades por se lhe ter
alargado o âmbito de compreensão e de aplicação: a estratégia. Um dos muitos autores
tidos como clássicos, o general Beaufre, procurando fugir à definição estritamente
militar de estratégia, embora confinando-a também ao plano político, propôs o seguinte
conceito: «[…] a arte da dialéctica das vontades que empregam a força para resolver o
seu conflito»
4
. Compreender a estratégia é, como facilmente se depreende da anterior
defi
nição, compreender, por um lado, o conflito e, por outro, a dialéctica das vontades,
já que, para o efeito do nosso objectivo, deixamos de lado o emprego da força, pois ela
pode, afinal, ganhar outros contornos que não os militares ou sicos, na medida em
que o conflito pode ser, também, de natureza diversa
5
. Julgamos estar em condições
para, assim, tentar ensaiar uma definição mais geral e, portanto, mais abrangente:
estratégia será a arte da dialéctica das vontades em confronto para resolver o conflito
que as opõe
6
. Então, estudar a estratégia corresponderá a estudar a dialéctica das
vontades que se confrontam
7
.
4
Beaufre, General (1980). Introduccion a la Estratégia, (tradução castelhana de Cármen Martin de la
Escalera e Luis Garcia Árias), Madrid: Ediciones Ejercito: 49.
5
Tome-se em consideração que o conflito mais comum, nos tempos que correm, é o de natureza
econ
ómica e a este respeito o general Gil Fiévet escreveu uma admirável comparação que intitulou Da
Estratégia Militar à Estratégia Empresarial, publicado entre nós, no ano de 1993, editado pela Editorial
Inquérito e traduzido por Isabel St. Aubyn.
6
Em tempos, adoptámos a seguinte definição: estr
atégia é a ciência que estuda, nas suas múltiplas
facetas, os conflitos sociais humanos e as formas de os resolver ou limitar. (A Estratégia, a História e as
Relações Internacionais. Revista Militar. N.º 7/8 (Julho/Agosto de 1992): 495. Realçamos neste conceito
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Para completar a nossa reflexão sobre a importância da articulação da história e da
estratégia no estudo científico das relações internacionais, nos falta perceber que o
ponto de convergência de todas as análises — histórica, estratégica e política — terá de
ser o conflito, tendo em conta que este, até se tornar evidente, passa por uma escala
que vai da cooperação onde ele é inexistente até à guerra onde ele ganha
todos os contornos que o definem como fundamentalmente dialéctico. Tome-se o
conflito ou a situação pré-conflitual como elemento de análise, estude-se-lhe a
dialéctica que lhe é intrínseca, recorrendo à estratégia, e, julgamos, tanto o historiador
como o politólogo estarão em condições para explicar a dinâmica do passado e do
presente. Esse ensaio o praticámos aquando da execução da dissertação de
mestrado em Estratégia
8
e, de forma mais mitigada, quando fizemos toda a
inve
stigação para a tese de doutoramento
9
. Em ambos os trabalhos centrámos a nossa
atenção nos diversos cenários conflituais internos ou externos de modo a perceber e
explicar como foi sendo beneficiado ou prejudicado o interesse nacional português nas
vertentes internas e externas. Ou seja, todo o tipo de conflito que se desenhou na e
para a sociedade portuguesa entre 1914 e 1918 foi alvo da nossa atenção para explicar
comportamentos políticos internos e externos.
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Política de Guerra: 1916-1918, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
o facto de a estratégia, para além do mais, ser uma ciência que tem em vista a forma de resolver os
conflitos.
7
Embora não tenhamos dúvidas sobre esta perspectiva, ocorre-nos, contudo, complementá-la com a
afirmação feita por Ana Paula Garcês e Guilherme d’Oliveira Martins (Os grandes Mestres da Estratégia:
Estudos Sobre o Poder da Guerra e da Paz): «Jogo de inteligência para uns ou de pragmatismo para
outros, ensaio permanente de acerto-erro ou regime de expedientes, […]. Certo é que quem primeiro
codifica as leis da guerra, Sun Wu, […], enfatiza que a excelência guerreira é vencer os conflitos sem
necessidade de usar a força» (p. 22). E damos especial atenção e esta ideia daquele general chinês, que
terá vivido no século V a. C., pois nela se sintetiza, de facto, o nosso raciocínio.
8
Fraga, Luís Alves de (2001). O Fim da Ambiguidade: A Estratégia Nacional Portuguesa de 1914-1918,
Lisboa: Universitária Editora. A tese apresentada, no ano de 1990, no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Política da Universidade Técnica de Lisboa, tem o título Portugal e a Primeira Grande Guerra:
Os objectivos Políticos e Estratégia Nacional: 1914-1916 e está depositada na Biblioteca Nacional, em
Lisboa. Trata-se do estudo pioneiro feito em Portugal e no estrangeiro onde, por recurso à análise da
conflitualidade existente, se demonstra que a participação de Portugal na Grande Guerra resultou da
existência de razões internas e externas determinantes da conveniência da beligerância activa no conflito
mundial.
9
Idem (2010). Do I
ntervencionismo ao Sidonismo. Os Dois Segmentos da Política de Guerra: 1916-1918,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. Trata-se de um estudo com duas vertentes: uma,
descritiva do esforço militar para participar na Grande Guerra; outra, dos cenários de conflitualidade
interna e externa que contribuíram para a perda de importância política e militar da participação de
Portugal na 1.ª Guerra Mundial.
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As Relações Internacionais, a História e a Estratégia: o conflito como dinâmica explicativa
Luís Alves de Fraga
123
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Como citar esta Nota
Fraga, L
uís Alves de (2010) "As Relações Internacionais, a História e a Estratégia: o
conflito como dinâmica explicativa". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da
última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_not1.
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Vol. 1, n.º 2 (Primavera 2011), pp. 124-132
Notas e Reflexões
A CRISE PORTUGUESA, O RESGATE INTERNACIONAL E O CRESCIMENTO
ECONÓMICO
Manuel Farto
Professor Associado no Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa
(UTL). Licenciado em Economia pelo ISEG, Doutor em Economia pela UTL por equivalência do
doutoramento em Histoire de la Pensée Économique, obtido na Universidade de Paris-X, Nanterre.
É Professor Visitante da Universidade de Orléans (França) e da Universidade Federal da Paraíba
(Brasil), e subdirector da revista JANUS (UAL/Público). Exerceu vários cargos públicos,
designadamente de Chefe de Gabinete do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações
e Subdirector Geral do Ensino Superior e académicos, tendo sido Vice-Presidente do Conselho
Directivo do ISEG. Participou em várias conferências nacionais e internacionais e publicou vários
artigos em revistas e livros. Os seus principais interesses de investigação são: Macroeconomia,
Economia Internacional, História do Pensamento Económico e Politica económica.
Henrique Morais
Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Mestre em Economia
Internacional (ISEG). Docente na Universidade Autónoma de Lisboa (cursos de Gestão e Relações
Internacionais) e na Universidade do Algarve (MBA de Finanças Empresariais). Assessor do Banco de
Portugal, no Departamento de Reservas e Mercados.
Actualmente encontra-se requisitado pela CP, E.P.E. para desempenhar funções de Vogal do Conselho
de Administração da CP Carga, SA. Colaborador em revistas e anuários na área da economia,
designadamente no Janus – Anuário de Relações Exterior (UAL/Público).
O modelo em que assentou o crescimento da economia nas últimas décadas está
esgotado, podendo este esgotamento ser observado pela estagnação do crescimento
económico na última década, pelo agravamento dos desequilíbrios, e em particular
pelas dificuldades crescentes em assegurar o financiamento da economia e do estado
em condições aceitáveis.
E, não se pense que a situação será mais cil para Portugal por nos encontramos
inseridos num clube de países ricos. Na verdade, estamos convictos de que uma
política económica, e em especial uma política monetária, com carácter menos
restritivo, por parte das entidades europeias poderia facilitar e aligeirar o movimento
de transição da economia portuguesa para um novo modelo, mas é preciso não ter
ilusões sobre os limites da solidariedade deste clube onde estamos inseridos.
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
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A crise que vivemos presentemente, surgida na confluência de uma crise de contornos
internacionais com fundamentos nacionais, apresenta-se com uma complexidade
particular pelas restrições que impendem sobre a economia portuguesa. À necessidade
de mudanças profundas e coerentes, implementadas com bom senso e diálogo, junta-
se agora uma incontornável urgência.
1. A economia portuguesa e as restrições actuais
A política monetária não depende de nós e pode não ser a mais favorável. Mais, dado o
pes
o e influência da Alemanha, uma aceleração da economia alemã, nada improvável,
pode conduzir a alterações da política monetária num sentido contrário aos nossos
interesses. Se a esta eventual ausência de sincronia acrescentarmos alguma ortodoxia
anti-inflacionista, que nos é particularmente desfavorável no actual contexto, temos
fundadas razões para temer os efeitos da política monetária da zona euro sobre a
nossa economia, designadamente com a persistência de uma política de moeda forte.
Mesmo o financiamento da nossa economia até agora fortemente dependente da boa
vontade do Banco Central Europeu poderá vir a defrontar-se em breve com dificuldades
adicionais.
A política orçamental está e permanecerá limitada pelo Programa de Estabilidade e
Crescimento, o qual deveganhar no futuro um carácter ainda mais rígido por efeito
da grave crise da vida soberana verificada em vários países da União Europeia, com
todo um conjunto de limitações, obrigações e penalizações que se anunciam. As
restrições serão ainda maiores para a economia portuguesa com as consequências que
se adivinham.
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Luxemburg
o
C
hipre
Portugal
Espanha
Finlândia
Fran
ça
Itália
Holanda
Irlanda
Bélgica
Alemanha
Á
ustria
Grécia
Malta
Eslovénia
Eslováquia
Mundo
Área do euro
União Europeia
1986
-
1989
1990
-
1999
2000-2010
15º
, só Itália pior...
Gráfico 1 - Produto Interno Bruto - taxa variação anual
%
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
126
O menor crescimento tendencial dos nossos principais parceiros, designadamente a
Espanha, constitui igualmente um factor adicional a dificultar o incremento das nossas
exportações e a reposição de alguns dos desequilíbrios perdidos.
O contexto externo à União Europeia é igualmente muito difícil para uma economia
como a portuguesa, pouco competitiva e com fraca tradição exportadora. O
desenvolvimento da globalização com crescente importância dos pses emergentes
acresce a concorrência sobre a nossa economia surgindo com cada vez mais força em
áreas e produtos onde assumimos alguma relevância. A concorrência dos novos
Estados da União Europeia e emergentes (comércio, atracção do Investimento Directo
Estrangeiro, partilha das ajudas comunitárias e deslocalização empresarial) constitui
um desafio tremendo para a capacidade competitiva da nossa economia e uma
dificuldade acrescida para dar início a uma retoma em condições sustentáveis.
Por seu lado, os custos de trabalho elevaram-se e existem por via da globalização
muitas outras alternativas que afectam muito negativamente a atractividade do país
face ao investimento internacional e mesmo nacional. Acresce que, como resulta dos
acordos europeus e das dificuldades por que passa a própria Europa, os fundos
comunitários não deixarão de se reduzir proximamente.
Neste quadro, a geografia periférica, referida, manifesta-se com mais força,
dificultando a localização de novas empresas e pressionando fortemente novos
processos de deslocalização. É de crer igualmente que os próprios sistemas de apoio à
actividade económica se distanciem dos padrões europeus dificultando ainda mais o
incentivo a investir e a produzir o que conduzirá a uma tendência para que os
equilíbrios se ajustem em patamares inferiores do produto, riqueza e qualidade de vida
e bem-estar. E, o esqueçamos, a este propósito, que em termos de rendimento per
capita a nossa economia continua a comparar mal com a restante Europa.
20
70
120
170
220
270
Luxemburgo
Holanda
Áustria
Irlanda
Bélgica
Alemanha
França
Finlândia
Espanha
Grécia
Itália
Chipre
Eslovénia
Malta
Portugal
Eslováquia
Gráfico 2 - PIB per capita em paridades de poder de compra - 2009
área do euro = 100
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
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A crise social que tende a aprofundar-se, com todo um cortejo de miséria e sofrimento,
a fragilidade dos poderes constituídos no actual quadro político e a falta de tradição de
diálogo social, sereno e profícuo, dificultará em muito a possibilidade de um pacto
social, de grande importância nas condições actuais, minará a coesão social e conduzirá
muitos portugueses a retomarem os caminhos incertos da emigração.
2. As perspectivas futuras ou os trabalhos de Hércules
À crise de produtividade e competitividade que se exprimia no alargamento tendencial
dos
desequilíbrios, a crise internacional adicionou uma insuficiência da procura que
destruiu uma parte significativa do aparelho produtivo, com inúmeras falências de
empresas e aumento brutal do desemprego. Infelizmente, a estas juntou-se finalmente
uma crise de vida soberana que obriga a políticas pró-cíclicas que continuarão a
destruir a capacidade produtiva e a gerar desemprego. A recessão e estagnação
parecem ter por consequência boas condições para se estabelecerem sustentadamente,
conduzindo os portugueses a um empobrecimento generalizado.
Numa tal situação, urge levar a cabo um programa de ajustamento estrutural e
crescimento que reduza drasticamente os desequilíbrios mais imediatos e prossiga uma
política que permita ultrapassar os bloqueios mais fundamentais e construir um modelo
de crescimento sustentado que garanta uma taxa de crescimento anual da economia
tendencialmente acima de 2,5%. . Sem cumprirmos este objectivo dificilmente se
poderão acomodar as consequências dos desequilíbrios passados e restaurar os
equilíbrios fundamentais num quadro de coesão social.
Assim, o rumo que assumimos e que supomos ter um largo consenso entre os
economistas pode ser o do crescimento do produto, da produtividade e da
competitividade, dando à economia portuguesa uma nova característica: a de produtor
internacional.
Neste sentido, uma reorientação da oferta para os bens transaccionáveis, em especial
para exportação para novos países e regiões de crescimento potencial mais elevado,
constitui a primeira linha de orientação fundamental. O estímulo à exportação de bens
e serviços torna-se um eixo de orientação permanente utilizando todos os instrumentos
susceptíveis de produzirem resultados neste domínio, desde o desenvolvimento de uma
política de crédito e de seguro de crédito à exportação até à atribuição de benefícios
fiscais e implementação de uma diplomacia económica agressiva.
Esta orientação requer o desenvolvimento de estratégias e operações empresariais
mais sofisticadas, que implicam uma acentuada melhoria da capacidade do país em
termos de inovação e produtividade exigindo, por seu lado, um aumento da
qualificação dos empresários e trabalhadores e a implementação de políticas públicas
activas e selectivas.
Para resolver um problema é necessário primeiro identificá-lo. E, no caso dos factores
de produção, conviria percebermos que as fragilidades dos empresários e dos
trabalhadores portugueses não radicam apenas em questões de organização, mas
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
128
também na sua qualidade intrínseca, que pode ser melhorada com mais e melhor
formação.
A melhoria do ambiente de negócios, designadamente com o funcionamento atempado
do sistema judicial, bem como a eliminação dos estrangulamentos em matéria de infra-
estruturas como o novo aeroporto ou as ligações ferroviárias e rodoviárias dos nossos
portos ao hinterland espanhol devem fazer parte do conjunto de correctas prioridades a
estabelecer.
Não será inadequado apoiar especificamente alguns sectores, em particular quando
exista algum consenso sobre a matéria, sobretudo quando se tratem de sectores ainda
em consolidação e longe da maturidade, como as energias renováveis ou o automóvel
eléctrico, ou que possam estar associados a recursos algo particularizados como o mar
ou a alimentação mediterrânea, onde possam existir ou vir a ser criadas vantagens
comparativas/ competitivas. Neste sentido, a re-industrilização competitiva e o
desenvolvimento do potencial da fileira agro-industrial surgem como orientações a
implementar.
Uma oferta competitiva e de dimensão superior exige uma melhoria da capacidade de
captar investimento nacional e internacional por parte da nossa economia. Mais e
melhor investimento aumentarão a actividade económica, o produto, o emprego e o
rendimento. É bom não esquecer que uma política de investimento é simultaneamente
uma política de crescimento e de emprego, talvez a que tem efeitos mais sustentados e
reais. Sem a criação de oferta de empregos a melhoria da qualificação e formação por
si poderão não alcançar os objectivos desejados. Uma tal orientação exige políticas
selectivas dirigidas não apenas ao investimento nacional mas igualmente à atracção do
investimento internacional.
Estando o investimento blico fortemente limitado no presente contexto ele deve ser
muito selectivo e bem direccionado para ultrapassar estrangulamentos estruturais
existentes que dinamizem o investimento privado. O investimento público na inovação
e tecnologia, modernização e desenvolvimento deverá ser reforçado no futuro como
meio de induzir igualmente um crescimento sustentado do investimento privado nesta
área e mais geralmente na economia.
Do nosso ponto de vista, mais do que criar às empresas expectativas mais favoráveis
de despedimentos mais baratos no futuro, urge agir nos factores que podem influenciar
directamente os investimentos em Portugal, designadamente nos custos e impostos.
A reestruturação fiscal poderá constituir um instrumento indispensável para incentivar
o investimento. Num país sem moeda e política monetária próprias e com limites a uma
gestão orçamental exuberante dadas as restrições existentes (impostas pelo
endividamento excessivo), a política fiscal constitui um instrumento fundamental para a
orientação dos recursos. Assim, o facto de o ps deter uma carga fiscal elevada não
nos deve levar à inércia fiscal defendendo simplesmente a sua manutenção.
Isto significa uma orientação no sentido de reduzir muito significativamente os custos
da actividade empresarial e de discriminar positivamente a nível fiscal as empresas e
trabalhadores que contribuem para a consolidação das nossas contas externas. Este
choque poderia vir a incorporar uma alteração no sistema de financiamento da
Segurança Social com uma significativa redução das contribuições empresariais
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
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compensada por aumentos de impostos ou taxas na área do consumo e em sectores
até agora favorecidos.
No momento presente a estratégia de desenvolvimento exige ainda do lado da oferta o
controlo dos custos salariais, embora naturalmente com participação dos trabalhadores
nas melhorias que se venham a registar na produtividade. Uma legislação laboral mais
flexível na gestão do tempo de trabalho poderá igualmente contribuir para melhorar a
eficiência das empresas. Todavia, é preciso notar, os salários e a legislação laboral não
têm constituído bloqueios de monta ao crescimento económico em Portugal, nem a sua
deterioração em desfavor dos trabalhadores constituirá uma condição do
desenvolvimento futuro.
Basta notar, em relação aos salários, que o crescimento médio dos salários nominais na
função blica foi de 3.4% entre 2000 e 2009 confronta com uma inflação média no
período de 2.6% o que denuncia a fraqueza do argumento que responsabiliza os
desequilíbrios orçamentais pelos aumentos dos salários. Mais, a redução média dos
salários da função pública de 5% prevista para 2011 implicará que entre 2000-2011
teremos assistido a um aumento dos salários reais de 1.9%, i.e., menos de 0.2% ao
ano! Nada que se compare com os 6.6% de crescimento real (média anual) na década
de 90, ou os 6.8% na década de 80.
É preciso notar nesta altura que o desenvolvimento do sector de bens transaccionáveis
necessário para atingir o nível de crescimento adequado da economia, a que aludimos
anteriormente, pode revelar-se insuficiente se apenas insistirmos na vertente
exportadora. Na verdade, a urgência e profundidade da reorientação da oferta, exigidas
pela amplitude actual dos desequilíbrios, torna necessário simultaneamente um amplo
processo de aumento da produção nacional que substitua produtos actualmente
importados. Nem o facto de existirem múltiplas dificuldades na sua implementação
nem o seu carácter démodé” devem obstar às mudanças de comportamentos e
atitudes que o permitam!
Em relação à procura torna-se, pois, necessário alterar atitudes e comportamentos de
modo a reduzir importações e estimular aumentos do consumo que se dirijam
especialmente para produção nacional. Algumas substituições de importações podem
ser operacionalizadas de imediato, exigindo apenas vontade. A maior parte dos países
desenvolvidos têm induzido comportamentos e atitudes proteccionistas informais, tão
operativas e eficientes como as prescrições tradicionais, obviamente incompatíveis com
as economias abertas de hoje.
Neste sentido, alguns impostos podem ter que aumentar, penalizando o consumo, para
que outros possam descer de forma significativa para permitir reduzir os custos das
empresas e alavancar o investimento. Note-se, de resto, que o consumo privado tem
crescido na última década muito acima do PIB com forte incidência na importação.
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
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No domínio da reforma institucional é indiscutível que alguns progressos foram
realizados, entre os quais destacaríamos dois: a redução de burocracia com várias
acções dignas de nota e a reforma da segurança social, retirando-a de uma trajectória
clara de insustentabilidade. Todavia, em muitos outros domínios as tentativas de
reformas foram frustradas, como na Administração Pública, ou produziram resultados
totalmente opostos, como é o caso da justiça.
No curto prazo, é indispensável reduzir a dimensão e o custo do Estado, aumentando a
sua eficiência. O controle da despesa pública, eliminando despesas inúteis, reduzindo o
número de institutos, mantendo apenas os de cariz técnico ou de regulação e reduzindo
o número de funcionários, são r exemplos de medidas que urge implementar. A
racionalização do funcionamento do sector blico autónomo, promovendo
designadamente um quadro de controlo físico e financeiro das PPPs que permita reduzir
os enormes estragos por elas causados ao país, constitui seguramente uma exigência
nacional. Levar a cabo uma política de orçamentação de base zero poderia igualmente
constituir um instrumento disciplinador da despesa pública.
Um sector fundamental para que se possa prosseguir uma estratégia de
desenvolvimento sustentado é o da justiça. No passado, o principal defeito da justiça
era a morosidade e ineficiência, designadamente em sectores fundamentais para o
desenvolvimento da economia. No presente, pressente-se e especula-se sobre
anomalias muito mais graves, como a politização da justiça, o que coloca em causa o
terceiro pilar do Estado de Direito e descredibiliza o próprio país. . Sem a introdução de
uma clara ruptura institucional neste sector que possa ser percebida exteriormente
dificilmente a atractividade da economia portuguesa poderá ser alterada.
Gráfico 3
-
Consumo Privado
4,4
2,6
3,6
1,6
-4
-2
0
2
4
6
10
12
14
1961 1967 1973
1979 1985 1991 1997 2003 2009
Média da Década (%)
Consumo Privado (tca)
%
8
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
131
A educação e formação aos diversos veis continuam a ser uma limitação ao
desenvolvimento do país, apesar dos importantes progressos e de muita despesa feita
nesta área. Em qualquer caso, a melhoria da sua qualidade e a elevação da qualidade
dos nossos recursos humanos deve persistir como uma linha de orientação
incontornável. Medidas simples como o reforço dos horários no sistema escolar de
algumas disciplinas como a matemática, português e ciências podem permitir alterar
em muito os resultados actuais.
3. A necessidade e limites do apoio externo
Não desconhecemos o elevado custo social de muitas das medidas propostas, que por
iss
o tenderão permanentemente a ser adiadas. Mas acreditamos que o seu
protelamento terá graves consequências para o país. O risco de o nosso actual modelo
de funcionamento entrar em colapso, com a consequente necessidade de medidas
muito mais gravosas, do ponto de vista do bem-estar da população, cresce a cada dia.
A este propósito, ao preparar um texto para o JANUS 2011 em Outubro de 2010
escrevíamos: É por esta razão que sublinhamos a urgência e é também em nome
dessa urgência que entendemos ser inadiável o recurso a ajuda externa para enfrentar
a presente situação. É nossa convicção que um programa desta natureza não poderá
ser executado num ambiente de dependência total dos chamados mercados, i.e., num
permanente assédio de especuladores internacionais pressionando de maneira usurária
o preço do dinheiro”.
Igualmente neste quadro afirmámos então: Por tudo isto, o recurso ao Fundo
Monetário Internacional deve ser considerado sem qualquer preconceito e numa óptica
de custo/benefício cujo saldo reputamos de positivo. Porque ajudaria a criar um quadro
estável para a política económica numa perspectiva, digamos de três anos, porque
permitiria acrescer a credibilidade das políticas a nível nacional e internacional,
reduzindo o custo das difíceis medidas a implementar e porque o envelope financeiro
seria menos oneroso do que a persistência no financiamento através dos mercados.
Confessaríamos, é certo, os erros da nossa política económica precedente mas essa
realidade já não passa despercebida a ninguém”.
A perda de tempo transformou um pedido de apoio num resgate internacional. Apesar
disso, a negociação que presentemente decorre com a “troica internacional” não altera
fundamentalmente a orientação que temos vindo a propor. Pelo contrário. É necessário
ter em conta que as políticas propostas por aquelas entidades internacionais não
deixarão de se pautar por uma orientação de carácter cosmopolita
1
limitada e
ins
uficiente para corresponder à dupla ambição da Economia política nacional: o
ajustamento das contas nacionais (públicas e externas) e a retoma de um crescimento
sustentado da actividade económica.
A implementação de um programa deste tipo requer um grande esforço de concertação
por parte dos parceiros sociais, rompendo coma tradição e procurando encontrar novos
caminhos de consenso. No entanto, na sua ausência e independentemente dos apoios
externos a que tenhamos que recorrer nesta fase, torna-se indispensável que
empresários, trabalhadores e governantes compreendam a verdade elementar de que
1
List, Friedrich (2006). Sistema Nacional de Economia Política. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
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A crise portuguesa, o resgate internacional e o crescimento económico
Manuel Farto e Henrique Morais
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não estrada real para o crescimento sustentado da economia e melhoria do bem-
estar dos portugueses e se unam em torno de um acordo social coerente, clarividente e
pragmático. Só assim, e se tal for feito com urgência, evitaremos o caminho das trevas
que se perfila neste momento no horizonte.
Como citar esta Nota
Farto, Manuel; Morais, Henrique (2011) "A crise portuguesa, o resgate internacional e
o crescimento económico". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_not2.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Notas e Reflexões
PORTUGAL 2010: O REGRESSO DO PAÍS DE EMIGRAÇÃO?
1
Jorge Malheiros
Professor associado do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
da U
niversidade de Lisboa. Investigador do Centro de Estudos Geográficos.
Desenvolve trabalho na área das migrações internacionais com destaque para questões de
gestão de fluxos, de integração social e económica dos migrantes, dos problemas da segregação
e das relações transnacionais das comunidades imigradas
Durante cerca de 15 anos, entre icios da década de 90 e meados do presente
decénio, a emigração portuguesa adquiriu um estatuto de quase invisibilidade na
abordagem dos fenómenos migratórios associados a Portugal, tanto por parte de
políticos, como de académicos. A imigração, para muitos sinónimo de país
desenvolvido, que num contexto de modernização e crescimento económico, não
assegurava emprego para todos os autóctones como necessitava de colmatar diversos
défices sectoriais (desde os “clássicos” como os verificados na construção civil, nas
obras públicas ou no emprego doméstico até aos “novos” como a agricultura, alguns
segmentos da indústria e cada vez mais o comércio retalhista), assumiu quase todo o
espaço reservado nas agendas política, académica e social ao fenómeno das migrações
internacionais.
As evidências empíricas demonstram bem este processo, tendo sido criado neste
período uma entidade governamental destinada a tratar das questões da integração
dos imigrantes o Alto-Comissário para a Integração e Minorias Étnicas (ACIME), em
1995; transformado em Alto-Comissariado em 2001, com um substancial reforço de
competências e verbas e, posteriormente, no Alto-Comissariado para a Imigração e
Diálogo Intercultural (actual ACIDI, IP), que criou dois Centros Nacionais para dar
respostas a este público complementados com uma rede de 87 Centros Locais. Em
simultâneo, a Rede Consular portuguesa foi “optimizada”, tendo-se reduzido o quadro
de proximidade relativamente a diversos núcleos de concentração dos emigrantes
portugueses, o que é sintomático de alguma desvalorização da emigração, como atesta
igualmente o progressivo desaparecimento dos mecanismos de recolha e difusão de
informação regular sobre os stocks e fluxos migratórios portugueses (os dados do
Inquérito aos Movimentos Migratórios de Saída IMMS deixaram de ser
disponibilizados pelo INE a partir de 2003 e poucos meses foram publicadas
estimativas da emigração no contexto das Estatísticas Demográficas; os Censos quase
1
In memoriam de Maria Ioannis Baganha, investigadora notável da área das migrações, inspiradora de
muitos de nós e, sobretudo, uma verdadeira amiga.
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Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 133-142
Portugal 2010: o regresso do País de emigração?
Jorge Malheiros
134
excluem a emigração), apenas contrariados com a criação do Observatório da
Emigração, em 2008.
Embora alguns políticos venham, recentemente, chamar a atenção para o facto,
supostamente normal, de Portugal ter uma “dupla natureza, de país de origem e de
país de destino de fluxos migratórios”
2
(Vitorino, 2007: 20), isto acontece apenas no
momento em que os relatos e os dados relativos ao número de saídas, mesmo que
incompletos e com hiatos, apontam para um crescendo e uma diversificação da
emigração. Efectivamente, nos anos 90 ou na primeira metade do presente decénio,
quando os valores do IMMS estimavam saídas da ordem dos 27 a 28 000 indivíduos
anualmente (como aconteceu no período 1995-1999, em 2002 ou em 2003) e as
remessas dos emigrantes suplantavam o volume dos fluxos comunitários e ainda
representavam 3% do PIB (agora correspondem a cerca de metade), a miopia da
agenda política relativamente à questão dos fluxos emigratórios era significativa, sendo
apenas concedida uma atenção tímida à denominada diáspora, consolidada, antiga e
numerosa (com um valor situado entre 2,5 e quase 5 milhões, consoante se
contabilizem naturais de Portugal ou pessoas de origem portuguesa)
3
, como atestam,
ent
re outros, o ressurgimento do Conselho das Comunidades Portuguesas (1996
4
) e a
promulgação da legislação que estendeu com restrições, é certo - o direito de voto
nas eleições presidenciais aos portugueses residentes no exterior, em 1997.
Mas, como referimos acima, o posicionamento da academia nacional também reflectiu,
ao longo deste período, este processo de invisibilização da emigração portuguesa.
Enquanto o número de teses e trabalhos de investigação sobre imigração se multiplicou
de modo quase exponencial nos últimos 15 anos, os estudos sobre emigração
minguaram. Apenas como elemento ilustrativo, é significativo que a base bibliográfica
sobre emigração portuguesa do Observatório da Emigração faça referência à publicação
de apenas 17 livros sobre esta temática em Portugal, enquanto no âmbito exclusivo do
Observatório da Imigração foram publicados, em apenas metade deste período, cerca
de 40 títulos sobre diferentes facetas da imigração para Portugal (e ficam de fora as
dezenas de obras publicadas por centros de investigação e editoras…)
5
.
E e
sta desproporcionalidade no tratamento dos dois fenómenos também passou para a
comunicação social nacional, que multiplicou as notícias sobre imigração e minorias
étnicas entre meados dos anos 90 e a segunda metade do presente decénio. Como
atestam Ferin Cunha e Santos (2006; 2008)
6
nos seus estudos sobre a presença deste
fenómeno na imprensa e na televisão, entre 2003 e 2005, o mero de notícias é
crescente, o que justifica a afirmação de que estas questões “entraram definitivamente
como temática nos jornais televisivos” (Ferin Cunha e Santos, 2008: 100). Já a
2
Vitorino, A. (2007) “Introdução aos relatórios dos workshops realizados no âmbito do Fórum Gulbenkian
de Imigração” in Vitorino, A. (coord.), Imigração: Oportunidade ou Ameaça? – Recomendações do Fórum
Gulbenkian Imigração, Princípia, Estoril, 2007, p.19.
3
Pires, R.P. (coord.) (2010), Portugal: Atlas das Migrações Internacionais, Tinta da China, Lisboa, p.92.
4
O primeiro Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) foi criado em 1980 e exerceu a sua actividade
como órgão consultivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros entre 1981 e 1987, tendo sido
desactivado no ano seguinte. O actual foi criado em 1996 pela Lei n°48/96 de 4 de Setembro. Sobre
este assunto, ver Aguiar, M. M. (2009) “O Conselho das Comunidades Portuguesas e a representação dos
emigrantes”, in Padilla, B.e Xavier, M. (org.), Migrações, n.º 5, Lisboa: ACIDI, pp. 257-262.
5
Não se consideraram, em qualquer das fontes de informação utilizadas como referência, publicações de
car
ácter histórico, dedicadas exclusivamente a movimentos migratórios anteriores a meados do século
XX.
6
Ferin Cunha, I. e Santos, C.A, (coords.) (2006),
Media, Imigração e Minorias Étnicas II. Lisboa, ACIME e
Ferin Cunha, I. (2008) e Santos, C. A. (coords.) Media, imigração e minorias étnicas: 2005-2006, Lisboa,
OI/ACIDI, 2008.
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Portugal 2010: o regresso do País de emigração?
Jorge Malheiros
135
emigração portuguesa, embora tenha sido objecto regular de notícia ao longo deste
período, tende a aparecer de modo mais esporádico na comunicação social nacional,
verificando-se um tradicional incremento nos meses de verão, quando os emigrantes
regressam a Portugal para passarem o período estival.
Naturalmente, pode perguntar-se se o reforço da visibilidade da imigração nas agendas
política e pública no período considerado não é amplamente justificado, por um lado
pelo significativo crescimento e diversificação (regional, nas formas de inserção
profissional…) dos fluxos de entrada, sobretudo nos anos de transição do século e, por
outro, pela necessidade de dar uma resposta social eficaz ao fenómeno assegurando,
em simultâneo, igualdade de direitos, controlo da eventual xenofobia nacional e
condições de integração justas. Embora estejamos cientes de que sim, isto não justifica
o apagamento da emigração enquanto fenómeno social e político que, efectivamente,
continuou a ocorrer na sociedade portuguesa no decénio de 90 do século passado e nos
primeiros 10 anos do presente. Efectivamente, o que parece ter-se verificado, para
além do normal balanço em direcção à imigração suscitado pelo crescimento
significativo e repentino do fenómeno, corresponde a um processo de uma certa
invisibilização social do fenómeno emigratório em Portugal, sobretudo na sua dimensão
fluxos, largamente promovido pelo poder político a que se associaram a academia, a
comunicação e outros poderes -, que o rotulou como algo de um passado que se queria
esquecer, porque supostamente significaria pouco desenvolvimento, fraca dinâmica de
emprego, atraso…
Mas, como veremos nas próximas linhas, a emigração portuguesa manteve-se sempre,
tendo as redes sociais que lhe servem de suporte sido activadas com maior intensidade
a partir de meados deste decénio, quando o modelo económico adoptado para o
crescimento do país nos últimos anos começou a dar claros sinais de esgotamento.
A evolução recente da emigração lusa – intensidades, destinos e perfis
Se a emigração portuguesa se manteve activa nos anos 90, é no último decénio que as
vár
ias fontes a que temos acesso começam a dar sinal de um reforço no número de
saídas, no contexto de um processo que conjuga a activação de novos destinos (e.g.
Reino Unido e Espanha, com mais intensidade entre finais do decénio passado e 2007;
Angola, nos últimos três anos), com a reanimação de redes migratórias pré-existentes,
como as do Luxemburgo ou da Suíça.
Em termos concretos, embora o existam dados actuais exactos sobre os fluxos da
emigração portuguesa, os valores existentes apontam para um volume que o deverá
estar distante das 70.000 saídas anuais, na segunda metade do presente decénio. Este
número, que é elevado e cresceu cerca de 30% da primeira para a segunda metade
dos anos 10 do presente século (Quadro 1), tem de ser interpretado à luz de dois
factores que o diferenciam da situação ocorrida na década de 60 e início de 70 do
século passado: por um lado, o quadro de mobilidade alterou-se significativamente,
ocorrendo uma porção significativa da emigração no espaço de livre circulação da União
da Europeia; por outro, uma parte substancial desta emigração assume uma lógica
temporária e não definitiva, facto que também é favorecido pelas possibilidades de livre
circulação.
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Quadro 1 - Fluxos de entrada de portugueses nos principais destinos
(médias 2005/06 e 2008/2009)
Média
(05-06)
Média
(08-09)
Taxa de
variação
05/06-08/09
Alemanha 3395
4341
27,9
Espanha 16993
13298
-21,7
Holanda 1021
1993
95,3
Luxemburgo 3779
4531
19,9
Reino Unido 10705
12605
17,7
Andorra 2438
722
-70,4
Suiça 12290
15629
27,2
Angola 156
12631
7996,5
EUA 1267
859
-32,2
Brasil 536
694
29,4
TOTAL 52577
67302
28,0
Notas: Holanda e Luxemburgo (2005/2006 e 2008); Angola (2006 e 2008/2009). Não existe informação para
França.
Fonte: Observatório da emigração (compilação de dados baseada em várias fontes)
Esta relevância do carácter temporário da emigração é suportada, o só pelos dados
do Inquérito aos Movimentos Migratórios de Saída (IMMS) divulgados pelo INE até
2002 e 2003, e que apontavam uma percentagem deste tipo de fluxos correspondente
a cerca de ¾ do total, mas também pelo facto de Portugal ser um dos 6 países do
Espaço Económico Europeu com maior volume de colocações no exterior
7
em 2007
(Figura 1). Isto demonstra que os portugueses continuam a utilizar o espaço europeu
como destino emigratório e, sobretudo, como espaço de movimento laboral, tendo este
processo sofrido um incremento nos últimos anos.
Contudo, uma análise dos principais países de destino, com excepção da França para a
qual não é possível obter dados sobre os fluxos anuais, mostra que não a Europa
não é o único destino relevante da emigração portuguesa, como mesmo dentro deste
ocorreram alterações. Na verdade, a emergência de Angola como destino crescente da
emigração portuguesa após 2005/2006 (Quadro 1), é o melhor exemplo do processo
actual de recomposição relativa dos destinos da mobilidade internacional de
portugueses, que podem tirar partido de países emergentes, com taxas de crescimento
económico elevadas, nomeadamente aqueles que têm o português, o espanhol ou
inglês como línguas oficiais e que manifestam carências ao nível de mão-de-obra com
qualificações intermédias (ou mesmo elevadas) em sectores como a construção civil, as
obras públicas ou o turismo.
7
As colocações no exterior reguladas pela União Europeia correspondem a “trabalhadores que, por um
per
íodo de tempo limitado, exercem a sua actividade profissional num país que não aquele onde
habitualmente trabalham”. Exclui indivíduos que trabalham por conta própria ou que, por sua própria
iniciativa, procuram emprego fora do seu país, dizendo portanto respeito aos activos que as próprias
empresas deslocam temporariamente para o estrangeiro, para desenvolverem o seu trabalho. A este
propósito, ver Directiva 96/71/EC do Conselho Europeu e Eurofound (2010), Posted Workers in the
European Union. Dublin, European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions.
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Figura 1 - Colocações no exterior em 2007 - países do Espaço Económico
Europeu com 5000 e mais colocações
0
50
100
150
200
250
300
Fran
ç
a
Polónia
Aleman
h
a
Rep. C
h
eca
Ho
la
n
da
P
o
r
t
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l
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Lux
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b
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Reino Unido
Espan
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H
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Dinamarca
Eslon
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Sui
ç
a
E
st
ó
ni
a
Romén
i
a
Finlândia
S
u
écia
B
u
l
r
ia
Li
t
u
â
n
ia
x 1000
Mas esta recomposição dos destinos emigratórios dos portugueses também ocorreu na
própria Europa, emergindo entre inícios do presente decénio e a crise de 2008, a
Espanha (principal destino dos fluxos de portugueses) e o Reino Unido, como espaços
muito atractivos para os oriundos de Portugal. Nestes casos, contudo, as qualificações
dos portugueses parecem assumir um carácter assimetricamente dicotómico, uma vez
que a percentagem relativa elevada de activos a desempenharam profissões muito
qualificadas (quase 20% no Reino Unido; cerca de 11% em Espanha) é
contrabalançada pelo valor relativo ainda mais elevado daqueles que desempenham
actividades não qualificadas (23,5 e cerca de 26%, respectivamente – Quadro 2).
Quadro 2 - Elementos comparativos dos stocks de emigrant
es portugueses em
França, Luxemburgo, Espanha e Reino Unido, 2000 (algumas características
básicas)
França Luxemburgo
Espanha
Reino
Unido
Quadros superiores do público e privado e dirigentes 3,4
2,6
7,1
12,1
Profissões intelectuais e científicas 2,0
1,4
3,6
7,4
Pessoal dos serviços e vendedores 2,9
8,8
17,3
26,7
Operários e afins 51,4
34,1
23,8
5,7
Trabalhadores não qualificados 8,4
32,9
23,5
25,9
Percentagem de pop. Com ensino superior 4,1
2,9
7,5
19,3
Percentagem de mulheres 48,7
47,2
51,7
50,8
Percentagem de pop. 15-24 nos maiores de 15 3,8
14,3
11,1
17,4
Fonte: OECD - DIOP - Database on Immigrants in OECD countries
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Dos destinos europeus mais tradicionais, a Suíça, maior receptor de fluxos de
portugueses, assume destaque, para além do Luxemburgo (e, em menor grau,
Andorra) que, dadas as suas dimensões demográfica, se têm de considerar destinos
relevantes da actual emigração portuguesa. Já a França – apesar da carência de
informação – e a Alemanha, que no período mais intenso das obras públicas de
reconstrução dos Estados da antiga RDA, chegou a ser um dos dois ou três principais
destinos dos portugueses, perderam algum do protagonismo de outrora.
Em ntese, a emigração portuguesa apresenta números com significado, ainda fornece
contributos relevantes para o PIB nacional, apesar do ligeiro decréscimo observado
após 2007 e que tem de ser atribuído às consequências da crise económica em muitos
dos principais lugares de destino (2588,5 milhões de euros em 2007; 2281,9 em 2009,
que correspondiam a cerca de 1,4% do PIB) e, apesar de continuar a utilizar as redes
sociais existentes em muitos países (Suíça, Luxemburgo, Andorra, França…),
evidenciou um processo de recomposição que tira partido, em simultâneo, das
proximidades geográficas e histórico-culturais (Espanha; Angola) e das dinâmicas
económicas regionais num quadro de globalização e de facilitação das mobilidades à
escala global.
Figura 2 - Estruturas etárias dos fluxos de portugueses (02/0
3 e 08/09)
Adic
ionalmente, os perfis dos emigrantes portugueses parecem estar a sofrer
alterações as modificações estruturais no perfil das qualificações dos cidadãos
nacionais associadas ao crescimento do desemprego entre os jovens, muitos dos quais
qualificados, contribuem para o ligeiro rejuvenescimento (Figura 2) e a diversificação
dos tipos de “emigrante português”. Hoje, embora prevaleça a sobre-masculinização
dos fluxos, a presença das mulheres é crescente, ultrapassando os 40% nos dados
avançados pelo INE para 2008 (figuras 3a e 3b).
0%
20%
40%
60%
80%
100%
2002/2003
2008
> 44 anos
30-
44 anos
15-
29 anos
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Figuras 3a e 3b - Composição por sexos da emigração portuguesa
2002/03 e 2008
Fonte: INE, Estatísticas Demográficas 2003, 2004 e 2010
Qua
nto aos modos de inserção profissional, para além das diferenças associadas às
características e oportunidades dos mercados de trabalho dos vários destinos, verifica-
se a existência de uma componente vulnerável relevante, com baixos níveis de
instrução que se insere nos segmentos não qualificados do mercado de trabalho e,
também, de uma componente com qualificações médio-baixas e intermédias que, nos
países de destino mais recentes (Espanha e, sobretudo, Reino Unido), está muito mais
presente no sector dos serviços do que nos países de emigração antiga (França,
Fluxo emigratório português segundo o sexo, 2002-2003
Mulheres
Homens
Fluxo emigratório português segundo o sexo, 2008
Mulheres
Homens
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Luxemburgo), onde a construção civil e, em menor grau, a indústria transformadora
são dominantes. Para além destas, é crescente a presença de emigrantes qualificados
nos novos destinos (Quadro 2), o que atesta uma nova face da emigração portuguesa.
Embora seja simplista falar de uma “fuga de cérebros”, em 2000, Portugal aparecia
como o 3º país da UE com maior taxa de emigrados entre os licenciados (13%)
8
, sendo
cada vez mais significativo o número de jovens altamente qualificados que, no quadro
de qualquer das etapas da fileira formação pós-graduada-projecto/estágio-inserção no
mercado de trabalho, não regressam ao país. Por outro lado, o prolongamento da
situação de estagnação económica com sistemático crescimento do desemprego,
associado aos elevados níveis de precarização do trabalho e à lenta reconversão de um
modelo produtivo tradicionalmente assente em mão-de-obra intensiva e barata,
poderão acentuar mais ainda o número de saídas e, sobretudo, coarctar o eventual
“vai-e-vem” dos qualificados.
O perfil contemporâneo dos emigrantes portugueses: das malas de
car
tão às malas de couro acompanhadas por pastas de executivo e
sacos desportivos
O emigrante português contemporâneo tende a inserir-se mais no quadro dos fluxos
temporários do que definitivos, é essencialmente jovem (mais de 55% têm menos de
30 anos) e predominantemente do sexo masculino, embora as mulheres
representem mais de 40% dos fluxos. Os indivíduos com veis de instrução baixos ou
médio-baixos ainda parecem ser os mais numerosos, o que conduz a formas de
inserção profissional em segmentos pouco qualificados da indústria transformadora ou
da construção civil. Contudo, é crescente o número de jovens com níveis de instrução
médios e elevados que está a emigrar, o que se reflecte numa maior presença no
sector do comércio e serviços e, também, nas profissões mais qualificadas (comparem-
se, no quadro 2, as percentagens de quadros superiores e profissionais
científicos+técnicos nos países de emigração mais antigos França e Luxemburgo -,
onde não ultrapassam os 6%, com as percentagens dos mesmos grupos profissionais
em Espanha - cerca de 11% - e no Reino Unido – quase 20%).
Esta diversificação nos perfis, mais jovens, mais mulheres, mais qualificados, tem sido
acompanhada por modificações nos destinos principais. Desde o decénio de 90 do
século XX que o Reino Unido se afirmou como um destino preferencial na UE, tendo a
Espanha emergido como o principal receptor na presente década (média anual de
quase 18 000 emigrantes portugueses entre 2005 e 2009). Dos países tradicionais de
emigração, a Suíça continua a ser um espaço fundamental (média anual para o período
referido um pouco acima das 14 000 pessoas), detendo os fluxos direccionados para
Alemanha, Luxemburgo, Andorra, Bélgica e Holanda algum significado, ainda que muito
inferior ao observado no caso helvético.
Fora do espaço europeu, foi o crescimento económico de Angola e o seu processo de
modernização que mais atraíram fluxos emigratórios de portugueses, sobretudo a partir
do momento após 2007 - em que a crise económica veio atenuar as saídas para
destinos como a Espanha.
8
Pires, R.P. (coord.) (2010), Portugal: Atlas das Migrações Internacionais, Tinta da China, Lisboa, p.94.
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141
E o futuro? Da emigração como drama à emigração como mais-valia…
Atendendo aos cenários de evolução da economia portuguesa que têm sido traçados
para os próximos anos, a emigração portuguesa não tenderá a reduzir-se sendo mesmo
muito provável que se acentue no curto prazo, designadamente no quadro da livre
circulação comunitária, sobretudo se alguns dos estados onde existem redes
migratórias lusas recuperarem da crise num prazo mais curto do que Portugal e se
outros países com os quais as ligações sócio-culturais são intensas mantiverem ou
acelerarem os seus ritmos de crescimento económico e modernização, como é o caso
de Angola ou mesmo do Brasil. Adicionalmente, outros países emergentes podem vir a
tornar-se destinos de emigração qualificada e técnica, como é o caso da China,
designadamente se alguns factores facilitadores se vierem a conjugar (reforço dos
investimentos recíprocos, maior número de jovens a aprender mandarim, melhor
aproveitamento de Macau como porta de entrada na China). Por último, destinos
tradicionais distantes menos afectados pela crise (e.g. Canadá) podem também ser
reactivados, para além de ser previsível que o quadro de circulação migratória (prática
de períodos de trabalho temporário em diversos destinos) de muitos profissionais
portugueses, não só se mantenha, como se possa mesmo acentuar.
Em termos de fluxos, as expectativas apontam para valores anuais relativamente
elevados em termos absolutos (entre 75 e 100 000), que correspondem a cerca de 1,3-
1,8% dos activos portugueses, com uma componente crescente de qualificações
intermédias e elevadas (se bem que não necessariamente dominante), muitos deles
com um carácter marcadamente temporário, o que significa uma alternância ao longo
do ano entre Portugal e destinos externos. Sumariamente, a curto prazo, parece estar-
se perante uma tendência para a dupla diversificação i) a dos destinos migratórios,
mitigada pelo facto das redes sociais dos portugueses actuarem como propulsores de
movimentos para destinos tradicionais; ii) a dos perfis dos emigrantes, atenuada pelas
qualificações relativamente baixas dos indivíduos mais velhos
9
.
Emb
ora estes valores possam, num primeiro olhar, ser entendidos como algo quase
dramático, no fundo uma perda económica (em termos de mão-de-obra) e demográfica
para o país, tal como aconteceu nos anos 60 e início de 70 do século passado, tal
interpretação deve ser sujeita a uma análise mais profunda. Efectivamente, os
contextos de globalização e integração europeia marcam hoje uma situação
completamente distinta da que se verificava 40-50 anos atrás, o que significa que
economias pequenas, abertas e periféricas como a portuguesa estão inevitavelmente
sujeitas a posicionar-se enquanto receptoras e emissoras de mão-de-obra, no quadro
do reforço das interdependências económicas e da mobilidade internacional da mão-de-
obra, sobretudo no espaço de livre circulação, mas não apenas neste.
Perante esta inevitabilidade da emigração, pelo menos no curto-médio prazo, o desafio
coloca-se ao nível do modo como esta deve ser incorporada nas políticas internacionais.
Se a opção passar por um “disfarçar” dos fluxos (porque emigração significa atraso;
porque é uma evidência do crescimento desemprego, etc.), relegando-os para a
periferia da agenda política e não criando as condições necessárias para uma circulação
de qualidade (valorização das remessas financeiras, mas também das mais-valias
9
Segundo o INE, em 2008, os maiores de 44 anos ainda representavam cerca de 16% do fluxo (figura 3).
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associadas à experiência e reforço das qualificações dos jovens emigrantes; efectivação
de acordos entre empresas e centros de investigação portugueses e estrangeiros que
tenham emigrantes como ponte; manutenção de serviços consulares que garantam
uma assistência eficaz às comunidades; efectivação de acordos bilaterais ou
multilaterais ao nível da CPLP sobre movimentos migratórios…), então a perda pode ser
significativa. Se, pelo contrário, a emigração ocupar um lugar visível na agenda política
- o que significa conferir-lhe, igualmente, respeito e valorização social no espaço
público -, assumindo Portugal que uma importante “nação móvel que pode
contribuir para o desenvolvimento do país, então os emigrantes poderão constituir-se
como uma mais-valia para o difícil processo de recuperação económica e, sobretudo, de
recomposição da auto-estima nacional.
Como citar esta Nota
Malh
eiros, Jorge (2010). "Portugal 2010: o regresso do País de emigração?". Notas e
Reflexões, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera
2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_not3.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
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Notas e Reflexões
BOLÍVAR, 200 ANOS DEPOIS
Nancy Elena Ferreira Gomes
Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa.
Bol
seira da Fundação Calouste Gulbenkian.
Professora Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa.
“Bolívar 200 anos depois” é o título de uma Conferencia que teve lugar na
Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), no dia 11 de Outubro de 2010. Este evento,
organizado pela UAL e pelo Instituto para a Promoção e Desenvolvimento da América
Latina (IPDAL), contou com o apoio das Embaixadas do Panamá e da Colômbia, em
Portugal. Foram aqui objecto de debate e reflexão algumas das principais ideias de
Simón Bolívar
1
, nos âmbitos político, económico e social, merecendo destaque aquelas
que têm uma dimensão internacional e que foram consagradas como princípios do
Direito Internacional: a Segurança e a Defesa Colectiva, o Respeito pela Integridade
Territorial dos Estados e a Solução Pacífica de Controvérsias. Mais que uma ideia,
aquele que traduzira um dos maiores desejos do “Libertador da América”
2
, o ideal de
Uni
dade, mereceu também claro destaque. Com efeito, em toda a obra de Bolívar, são
inúmeras as vezes que o Libertador cita a palavra “América” como expressão deste
ideal. Na maioria dos casos, Bolívar põe a ênfase na ideia da Confederação das Nações
Hispano-Americanas.
“Eu desejo mais que ninguém ver formar na América a Maior
Nação do Mundo menos pela sua extensão e riquezas que pela
sua liberdade e glória”
3
.
Em 7 de Dezembro de 1824, Bolívar enviou de Lima um convite à Colômbia, México,
Argentina, Chile e Guatemala para que participassem num Congresso que teria lugar no
Panamá.
1
Militar e político Venezuelano, nasceu em Caracas em 1783. Após o fracasso do seu projecto federativo,
com a desintegração da “Gran Colômbia”, Simón Bolívar morre na Colômbia, em 1830.
2
Os territórios (antigas colónias da Espanha) libertados por Simón Bolívar correspondem aos actuais
Est
ados da Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia.
3
Carta de Jamaica (Resposta de um Americano meridional a um cavalheiro de esta ilha. Kingston, 6
Setembro de 1815). Carta de Simón Bolívar dirigida à Henry Cullen.
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Bolívar: 200 anos depois
Nancy Elena Ferreira Gomes
144
“Parece que se o mundo tivesse de escolher a sua capital o
Istmo do Panamá seria assinalado para este augusto destino,
colocado como está no centro do globo, olhando por um lado a
Ásia e pelo outro a África e a Europa… O Istmo está a igual
distância das extremidades e por este motivo, poderia ser o
lugar provisório da primeira Assembleia dos Confederados…”
4
.
No C
ongresso Anfictiônico
5
do Panamá de 1826, Simón Bolívar propõe a assinatura de
um Tratado de Aliança ofensiva e defensiva, a demarcação fronteiriça tendo em conta o
utis possidetis de 1810
6
, e o uso da conciliação e da mediação na solução dos conflitos.
Federico Richa Humbert, Embaixador do Panamá em Portugal
7
, referiu a importância
deste evento, sublinhando que se tratou da primeira Conferencia de Estados que se
reúne naquela parte do mundo, e que procurou através da cooperação internacional a
solução dos problemas comuns. Porém, a pouca vontade politica por parte de muitos
dos governos envolvidos, o desinteresse por parte dos Estados Unidos de América
(EUA)
8
e, sobretudo, o desenvolvimento dos nacionalismos, iriam condenar esta
iniciativa ao fracasso.
“Até a imprensa tem posto o seu grão de areia no descontrolo,
ao introduzir o espírito de isolamento em cada indivíduo,
porque, predicando o escândalo de todos, tem destruído a
confiança de todos… Cada província guarda para si a autoridade
e o poder, cada uma deveria ser o centro da nação. Não
falaremos dos democratas nem dos fanáticos, também não
falaremos das cores, porque ao entrar no abismo profundo
destas questões, o génio da razão ficaria sepultado … “
9
.
Depo
is de Panamá, foram várias as tentativas que, em vão, insistiram no sonho
Bolivariano, em Lima (Conferencias de 1847 e 1865), e em Montevideu (Conferencia de
1888). No lugar de uma Confederação de Nações Americanas num plano de
Igualdade entre todos os Estados – e a partir de 1889
10
(com a realização da I
4
Circular de Lima, de 7 de Dezembro de 1824. In Obras Completas de Bolívar, Vol. II. Caracas: Ministério
de Educação Nacional, s.d. p. 52.
5
As Ligas Anfictiônicas da Grécia Antiga eram constituídas por indivíduos das várias Cidades-Estado,
associados para renderem culto a uma determinada divindade, tendo em vista a defesa e cooperação
mútua. Este tipo de associação – de carácter sagrado – é considerado como precursor da actual ideia de
Federação.
6
A demarcação fronteiriça dos novos Estados Americanos deveria respeitar à partida, ou seja
provisoriamente e antes de um novo tratado, as fronteiras anteriores à independência.
7
Convidado a participar como orador, na Conferencia “Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o
IPDAL, em 11 de Outubro de 2010.
8
Entre as causas do desinteresse Norte-Americano podemos destacar, a insistência de Simón Bolívar em
doi
s assuntos, a independência de Cuba e do Porto Rico; e a abolição do tráfico de escravos, na América
Hispana.
9
Carta de Simón Bolívar, dirigida ao General José António Páez, em 8 Agosto de 1826.
10
I Conferencia Pan-americana (EUA, 1889-1890), II Conferencia Pan-americana (México, 1902), III
Con
ferencia Pan-americana (Brasil, 1906), IV Conferencia Pan-americana (Argentina, 1910), V
Conferencia Pan-americana (Chile, 1923), VI Conferencia Pan-americana (Cuba, 1928), VII Conferencia
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Bolívar: 200 anos depois
Nancy Elena Ferreira Gomes
145
Conferencia Pan-americana, promovida por Washington), cria-se o “Sistema Inter-
Americano”. Trata-se de um sistema claramente hierárquico que adopta como
principais instrumentos jurídicos, o Tratado Inter-Americano de Assistência Recíproca
(TIAR, 1947) e a Organização dos Estados Americanos (OEA, 1948). O ideal
Bolivarianismo cede, assim, perante o realista Monroismo
11
.
O projecto de criação de uma Comunidade Ibero-Americana de Nações foi outro dos
assuntos debatidos na ocasião da Conferencia “Bolívar 200 anos depois”. Fernando
Garcia Casas
12
lembra-nos que foi nos anos de 1970, quando a Espanha propôs a
cri
ação de uma Comunidade Ibero-Americana (CoIBA) com o claro objectivo político de
promover a democracia na região. Com efeito, o fim das ditaduras em Portugal e na
Espanha, e o processo de democratização que ganhou impulso nos finais da década de
1980 na América Latina, próximo do fim da Guerra Fria
13
, criaram as melhores
condições para um compromisso entre Espanha e Portugal e as suas ex-colónias.
Quando foi convocada a I Cimeira Ibero-Americana em 1991, manifestou-se entre as
partes uma euforia sem precedentes por tratar-se da primeira ocasião depois de
Panamá em 1826 em que os Estados Latino-Americanos, sem contar com a presença
dos EUA, conseguiriam reunir-se.
Foro de diálogo e concertação política entre os países Ibéricos e a América Latina com
grandes potencialidades, sobretudo nas áreas politica, social e também económica, o
projecto da CoIBA depara-se hoje, como vários outros esquemas de cooperação e ou
integração, com sérias dificuldades. Contribuem nesse sentido factores tais como o
crescente peso político dos vínculos bilaterais em detrimento dos multilaterais
14
; a
crescente heterogeneidade ideológica, politica e económica dos Estados que conformam
a região; e mais uma vez, a emergência do nacionalismo invocado muitas vezes, por
“governos populistas” perante aquilo que consideram ser novas formas de hegemonias
externas.
A América Latina, 200 anos depois, é considerada uma zona ampla de paz. Com um
crescimento do PIB, de 6% (2010) e uma relativa bonança derivada sobretudo das
exportações de matéria-prima a região está imersa num processo de democratização
que, apesar de incipiente, se estende por todo o território, com a excepção de Cuba.
Cabe aqui destacar o caso paradigmático do Brasil, considerado como uma potência
emergente, que reivindica mais “voz” e mas “democratização” nas grandes instâncias
decisórias mundiais (Conselho de Segurança, FMI, BM, G20…), ao mesmo tempo que a
Inter-americana (Uruguai, 1933), VIII Conferencia Inter-americana (Peru, 1938), IX Conferencia Inter-
americana (Colômbia, 1948).
11
O Monroísmo representa a visão Norte-Americana do Pan-Americanismo, fundada no predomínio dos
EUA sobre os demais Estados americanos. A sua primeira manifestação foi precisamente a mensagem
presidencial de James Monroe, enviada ao Congresso dos EUA, em 1823, onde defende a ideia “A
América para os Americanos”, ou seja, longe dos interesses europeus.
12
Fernando Garcia Casas, Director de Gabinete do Secretário-geral Ibero-Americano. Convidado a
participar como orador, na Conferencia “Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o IPDAL, em 11
de Outubro de 2010.
13
Com o fim da Guerra-fria, a América Latina deixa de ser, claramente, uma das prioridades da Política
Ext
erna dos Estados Unidos.
14
Note-se que o projecto ALCA foi adiado e no seu lugar, foram celebrados vários acordos bilaterais entre
os
EUA e alguns países Latino-Americanos como a Colômbia, o Chile e o Peru. As relações entre os
blocos regionais UE-Mercosul ou UE-CAN parecem estagnadas. Mais dinâmicas são as relações entre a UE
e o Brasil ou a UE-Chile. Entretanto, o Mercosul avança e recua, consoante as dificuldades e os
problemas que vão surgindo entre os Estados Membros.
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ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 143-147
Bolívar: 200 anos depois
Nancy Elena Ferreira Gomes
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sua diplomacia busca uma maior integração Sul-Americana e um papel de líder
regional
15
.
A América Latina hoje, lembra ainda Fernando Garcia Casas, enfrenta todavia, sérios
desafios, como a luta contra a pobreza. Em efeito, 32,1% dos Latino-Americanos ainda
permanecem em situação de pobreza e 12,9% são considerados indigentes. Isso
corresponde a 180 milhões de pessoas pobres, dos quais 72 milhões na indigência.
Segundo a Comissão Económica para a América Latina (Cepal), a pobreza continua a
afectar mais as crianças e adolescentes que outros sectores da sociedade
16
. E apesar
do
balanço dos ultimos sete anos ser positivo, a América Latina continua a ser a região
mais desigual do mundo. Segundo o primeiro Relatório de Desenvolvimento para a
América Latina e o Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), a desigualdade é persistente, e tende a eternizar-se em áreas onde a
mobilidade social é baixa e representa um obstáculo ao progresso no desenvolvimento
humano
17
. Por outro lado, pese a inexistencia de conflitos interestaduais que possam
evoluir para conflitos armados ou guerras, outras ameaças não tradicionais à segurança
como o narcotráfico e a violência urbana, tornam hoje esta região uma das menos
seguras do planeta
18
.
A este cenário complexo e cheio de incertezas quanto ao futuro, Jorge Volpi
19
acrescenta o pouco conhecimento cultural ou desconhecimento total uns dos outros e o
desaparecimento de todo ou quaisquer rasgo distintivo Latino-Americano. Segundo o
escritor mexicano, a América Latina protótipo, marcada no imaginário ocidental como a
terra dos ditadores, dos guerrilheiros e do realismo fantástico, tem vindo a desvanecer-
se com o tempo. Não possuindo força real, a identidade Latino-Americana é desafiada
constantemente por países como o México – vinculado por completo aos Estados
Unidos e ao Canadá onde toda a lógica de povoamento, de política e economia vai
dirigida para o norte e já não para o sul. Contudo, é no Sul que encontramos
incipientes mecanismos de integração que começam a funcionar
20
. Volpi fala-nos de um
cen
ário provável para o futuro, um Continente com dois grandes blocos regionais, um
na América do Norte, que podeabsorver eventualmente as Caraíbas, e um no Sul,
com o Brasil como principal centro de gravitação.
15
A I Cimeira América Latina e Caraíbas (33 países), realizada na Costa de Sauipe (Bahía) em Dezembro
de 2008, e o compromisso alcançado para constituir una Organização de Estados Latino-Americanos e
das Caraíbas parece um sensível revés para as políticas exteriores de Espanha e os Estados Unidos e um
triunfo genuíno para o Brasil, de quem partiu a iniciativa.
16
Ver Relatório CEPAL (2010), “Panorama Social de América Latina 2010”.
17
Ver Relatório PNUD (2010), “Agindo para o Futuro: Quebrando o Ciclo de Desigualdade entre Gerações”.
18
Segundo o Gabinete das Nações Unidas contra a droga e o delito (UNODOC), estima-se que a volta de
40% do total mundial dos crimes violentos, são praticados na América Latina e Caraíbas.
19
Jorge Luis Volpi Escalante, escritor mexicano (vencedor do II Prémio de Ensaio Debate-Casa de América
de 2009, pelo seu livro "El insomnio de Bolívar”). Convidado a participar como orador, na Conferencia
“Bolívar 200 anos depois”, organizada pela UAL e o IPDAL, em 11 de Outubro de 2010.
20
A União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), está constituída pelos doze países da América do Sul. O
tratado constitutivo foi assinado em Brasília, em 23 de Maio de 2008. Para além dos Conselhos de Chefes
de Estado, Ministros das Relações Exteriores e Delegados, foram criados sete Conselhos Ministeriais
sectoriais, que promovem a integração e cooperação nas áreas de: energia; saúde; defesa; infra-
estrutura e panejamento; desenvolvimento social; luta contra o narcotráfico; e educação, cultura,
ciência, tecnologia e inovação.
.
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Nancy Elena Ferreira Gomes
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Referências Bibliográficas
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y los países de América latina y el Caribe” in Foro Euro Latino Americano de Centros de
Análisis. Fundación Carolina. Madrid
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Independencia. Valoración y Perspectivas. Real Instituto Elcano. Madrid. ISBN 978-84-
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BOERSNER, Demetrio (1996). Relaciones Internacionales de América Latina. Editorial
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BOLÍVAR, Simón (s.d.). “Circular de Lima”, de 7 de Dezembro de 1824. In Obras
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Brasileiro Relações Internacionais. Universidade de Brasília. ISBN 85-88270-05-6.
Outros
CEPAL (2010). “Panorama Social de América Latina 2010”.
[Consultado em 15 de
Janeiro de 2011]. Disponível em
http://www.eclac.org/noticias/paginas/8/33638/101130_PanoramaSocial-
30noviembre-final.pdf
PNUD (2010). “Agindo para o Futuro: Quebrando o Ciclo de Desigualdade entre
Gerações” [Consultado em 17 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.idhalc-
actuarsobreelfuturo.org/site/plantilla.php
Como citar esta Nota
Gomes, Nancy Elena Ferreira (2010). "Bolívar: 200 anos depois". Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_not4.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 148-152
Recensão Bibliográfica
Barbé, Esther (Directora) (2010). La
Unión Europea más allá de sus
fronteras. Hacia la transformación del Mediterrâneo y Europa
Oriental?. Madrid: Tecnos: 196 pp.
por Rita Duarte
Licenciada em Relações Internacionais e Mestranda em
Estudos da Paz e da Guerra na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL).
Assistente no Departamento de Relações Internacionais e no
OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores, da UAL.
A obra que nos propomos analisar, La Unión Europea más allá de sus fronteras Hacia
la transformación del Mediterrâneo y Europa Oriental? é a materialização de um
projecto de investigação de três anos, dirigido pela Professora Esther Barbé, e realizado
no âmbito do Observatório de Política Externa Europeia do Institut Universitari d'Estudis
Europeus da Universitat Autònoma de Barcelona. Esther Barbé é professora de
Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Barcelona e coordenadora de
programas de investigação, no Instituto de Barcelona de Estudos Internacionais.
A coordenação deste livro foi da responsabilidade de Anna Herranz Surrallés,
coordenadora do Observatório de Política Externa Europeia e investigadora do Institut
Universitari d'Estudis Europeus, que colaborou também no projecto de investigação.
Este estudo reflecte ainda o trabalho directo de mais 13 investigadores na sua maioria
professores na Universidade Autónoma de Barcelona mas também outros académicos,
tais como Eduard Soler i Lecha, Coordenador do Programa para o Mediterrâneo da
Fundação CIDOB.
Estruturalmente o livro está dividido em sete capítulos, sendo que o primeiro se
diferencia dos restantes por fundamentar o objectivo da obra. Neste capítulo são
suscitadas as questões e identificadas as variáveis que definem o quadro analítico deste
estudo, além de nos serem justificados os critérios relativos à escolha dos estudo de
casos abordados.
Os capítulos seguintes vão procurar responder às questões levantadas, com base na
análise e comparação dos diversos estudos de caso tidos em consideração (273 no
total). Estes estudos de caso o examinados à luz de uma comparação de duas
dimensões: uma de carácter temático e outra de carácter geográfico. Assim, cada um
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Recensão Crítica
Rita Duarte
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dos seis capítulos seguintes diz respeito a um dos seis grandes sectores temáticos
escolhidos para análise: o comércio, o meio ambiente, a energia, a política externa, a
política de migração e a boa governação. E em todos os capítulos, é analisada a relação
que a União Europeia (UE) estabelece em cada um destes sectores com sete dos seus
Estados vizinhos, a saber: Argélia, Marrocos, Rússia, Ucrânia, Moldávia, Geórgia e
Turquia.
A escolha por estes países reflecte uma lógica geográfica que procura abranger Estados
vizinhos do leste e do sul. Mas procura também incluir diferentes posturas dos Estados
vizinhos face à União Europeia, já que inclui um Estado em processo de adesão
comunitária a Turquia –, países que ambicionam vir a aderir à União caso da
Ucrânia e da Moldávia –, ou países que pretendem colaborar com a UE numa relação de
igualdade, como a Rússia ou a Argélia.
A escolha dos sectores temáticos procura abranger matérias claramente
“comunitarizadas pela União como o comércio e o meio ambiente –, políticas com um
carácter maioritariamente intergovernamental como a política externa e a política de
boa governação –, mas também áreas intermédias como a política de migrações e a
política energética” (p. 33).
Contexto internacional
Os autores de La
Unión Europea más allá de sus fronteras enquadram este estudo de
investigação no contexto actual da estrutura de poder internacional, de carácter
multipolar, onde a União Europeia tem vindo a perder influência, em paralelo com a
emergência de uma liderança de um G-2 sino-americano. Mas este estudo chama a
atenção desde o início de que a interpretação neo-realista, ao atribuir a polaridade
exclusivamente a Estados, torna-se redutora quando aplicada à UE, que a sua
caracterização como potência não está associada à sua natureza mas ao
reconhecimento da sua actuação como potência. Pelo contrário, os autores destacam a
crescente importância que o multilateralismo tem vindo a assumir, nomeadamente com
o efeito indiscutível das instituições nesse sistema internacional. No caso da União
Europeia, com a adopção da Estratégia Europeia de Segurança desde 2003, o
multilateralismo tornou-se o seu ponto de referência identitário como actor
internacional, tendo desde então desenvolvido a noção de multilateralismo eficaz que
implica uma ordem internacional institucionalizada e baseada no direito.
Com base neste enquadramento multilateral e de perda de influência da UE, e sabendo
que a ambição da UE é, desde 2001 com a Declaração de Laeken, desempenhar o
papel de actor (potência) global, os autores levantam a dúvida: será a União Europeia
uma “hegemonia normativa regional” (p. 17), na qual a sua acção passa por um
“bilateralismo como prática da sua Política Europeia de Vizinhança que não é mais do
que uma forma de ocultar o unilateralismo que marca as relações da UE com os seus
vizinhos” (p. 18), ou será antes uma “potência normativa” que assenta a sua política
externa em “princípios e valores universais mais do que em interesses materiais” (p.
21)?
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Que convergência normativa?
A relevância dada nesta questão à vizinhança da UE tem origem, por um lado, no
próprio Tratado de Lisboa que destaca a importância dos países da vizinhança da UE
(com quem esta deve estabelecer relações de preferência) e, por outro, em averiguar
se o domínio da União no âmbito regional lhe permite garantir o seu reconhecimento
como potência a nível global. Os autores o assim analisar o contributo da UE para a
promoção da segurança a nível regional mas centrar-se, principalmente, na estratégia
adoptada para estabelecer as relações com os seus Estados vizinhos do leste e do sul.
Este é o ponto de partida para a grande análise que o estudo nos apresenta: com o
intuito de aproximar sistemas institucionais, jurídicos e políticos distintos, qual a
estratégia de convergência que a União promove? As relações da União Europeia face
aos seus vizinhos são assimétricas, nas quais estes últimos sofrem um processo de
europeização e estão sujeitos aos interesses e à transferência unilateral das normas
daquela instituição ou, o processo de relacionamento é mais complexo e outros
modelos passíveis de ter em consideração? Os autores pretendem demonstrar que esta
última opção é mais consentânea com a realidade e defendem que no ambiente
complexo e flexível do sistema internacional se “articulam níveis normativos – bilateral,
europeu, internacional e variáveis explicativas poder, legitimidade que permitem
construir diferentes modelos de convergência normativa entre a UE e os seus vizinhos –
coordenação, europeização, internacionalização –” (p. 18). Os estudos de caso
utilizados para esta análise, que, relembramos, estabelece uma dupla comparação nas
dimensões temática e geográfica, vão permitir identificar empiricamente qual o modelo
que se aplicou em cada situação e porquê.
Assim, além do modelo de convergência designado como europeização, que implica a
adopção parcial ou total da legislação comunitária caso da Turquia no seu processo
de adesão –, existem outros dois modelos de convergência: internacional e bilateral.
Genericamente, os autores identificam a existência do modelo internacional quando a
“política de convergência se baseia em normas desenvolvidas por outras instituições
internacionais” (p. 25), e o como exemplo os diversos Planos de Acção da Política
Europeia de Vizinhança que citam convénios, regulações, protocolos e normas de
instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas, ou regionais, como
o Conselho da Europa ou a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. O
terceiro modelo normativo baseia-se numa convergência de políticas através de
“normas elaboradas bilateralmente entre a União e o país vizinho, para se adaptar à
situação em causa” (p. 25).
Ressalvando-se assim que, segundo esta obra, a transferência do acervo comunitário
para os seus vizinhos é apenas uma de três possibilidades para delinear um processo
de convergência de políticas, é necessário então perceber quais as variáveis que os
autores designam por independentes –, que influenciam a escolha do modelo de
convergência no qual se irá basear a relação da União Europeia com cada um dos seus
Estados vizinhos.
Essas variáveis independentes são o poder negocial da UE e a percepção tua de
legitimidade por parte do Estado vizinho. O poder negocial da União Europeia refere-se
“à sua capacidade em proporcionar incentivos ou desincentivos (sanções políticas ou
económicas, por exemplo), suficientes aos países vizinhos para que estes adoptem as
normas delineadas pela União” (p. 27). Partindo de uma racionalidade de
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custo/benefício, esta variável implica uma escolha por parte do Estado vizinho entre o
benefício esperado pela incorporação das normas da UE e o custo que irá ter pela sua
implementação.
A segunda variável, a percepção mútua de legitimidade, “refere-se ao grau de
coerência entre as normas proporcionadas pela UE e o ambiente normativo existente
no país vizinho” (p. 28). Esta variável tem por base uma abordagem construtivista que
defende a adopção por um actor de novas normas, sempre que estas forem
consideradas adequadas ao contexto social desse actor. Por sua vez, esta variável é
influenciada pelo “i) grau de identificação do país vizinho com a União como
comunidade a aderir, tenha esta sido reconhecida ou não pela União; ii) autoridade que
o país vizinho atribui à União Europeia como promotora de normas e; iii) se o processo
de definição dos padrões de convergência é visto pelo país vizinho como unilateral ou
se é resultado de uma consulta adequada aos actores relevantes nos países vizinhos”
(p. 28).
Em consequência, a escolha do modelo de convergência mais adequado a cada situação
vai depender da relação que se estabelece entre o modelo em causa e estas variáveis
independentes. À luz destes factores, os autores vão definir três hipóteses de trabalho
para a escolha do modelo de convergência, estabelecendo que a convergência através
das normas da União Europeia será o modelo mais exigente, e implica um forte poder
negocial da UE e uma boa percepção de legitimidade por parte do estado parceiro. Por
sua vez, partem do princípio que a convergência através das normas internacionais
poderá ser considerado um modelo menos oneroso já que as normas das organizações
internacionais são mais genéricas e abrangentes que as da UE, mas implica igualmente
uma forte percepção de legitimidade das normas internacionais (maior que a atribuída
a possíveis congéneres europeias), e implica também um bom poder negocial da UE. E,
por último, que o modelo menos invasivo e mais legítimo do ponto de vista do Estado
vizinho será o modelo de convergência através de normas desenvolvidas
bilateralmente. Este modelo coordenação é aplicado quando o poder negocial da UE
e a percepção de legitimidade são baixos e geralmente reflecte “uma combinação
equilibrada dos interesses e visões políticas de cada uma das partes implicadas” (p.
30).
A análise empírica
Este conjunto de factores modelos de convergência, variáveis independentes, áreas
tem
áticas e Estados vizinhos – demonstra a dificuldade em estabelecer à priori o
modelo de convergência a adoptar. Para mais, é-nos demonstrado que a cada um dos
diferentes modelos de convergência corresponde um impacto e um modo de interacção
diferentes e, os diferentes exemplos retirados dos estudos de caso, tornam-se
desconcertantes para quem procurar estabelecer um conjunto de regras pré-definidas
para aplicação de cada método de convergência.
No capítulo III, por exemplo, dedicado às questões energéticas, os autores
demonstram que apesar de o principal modelo de convergência ser feito através das
normas europeias (muitas vezes devido ao vazio normativo internacional), a aceitação
dessas normas europeias não implica uma europeização imediata mas antes uma
“reforma gradual e selectiva” (p. 82) nos sectores energéticos dos países analisados.
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Por sua vez, a política de imigração e de asilo referida no capítulo VI, demonstra-nos
inclusive que, dentro de uma mesma área temática, podem ser aplicados diferentes
modelos de convergência, que no subsector da imigração ilegal a União Europeia
promove fundamentalmente a convergência através da europeização, no subsector da
imigração legal a convergência é feita através de normas bilaterais e, ainda, em
matéria de asilo, é feita uma convergência combinada entre normas internacionais e
normas da UE.
No que diz respeito à influência das variáveis independentes, é-nos demonstrado que
no caso da boa governação, no capítulo VII, o modelo de convergência é afectado não
só consoante a temática mas também consoante o país em questão, já que por
exemplo, a Argélia, que tem um poder de negociação muito alto devido aos recursos
energéticos, torna-se um “parceiro relutante” (p. 171) em relação à Política Europeia
de Vizinhança e procura manter uma relação num nível de cooperação entre iguais.
O caso específico da Argélia demonstra que apenas 5% das relações com a UE são
efectuadas através de uma convergência mediante as normas comunitárias (p. 177),
sendo dada uma forte prevalência às normas negociadas bilateralmente. Pelo contrário,
é-nos demonstrado que em países onde o poder de negociação da União Europeia é
maior, como é o caso da Ucrânia e da Moldávia que afirmaram a sua aspiração à
adesão à UE, a europeização é o modelo de convergência mais frequente.
Conclusão
Esta obra é bastante rica em exemplos práticos que respondem às questões levantadas
no
seu icio. As conclusões obtidas contrariam a teoria que a União Europeia age de
forma unilateral, que o modelo de convergência com base nas normas comunitárias
é o menos frequente (a única excepção é o caso da Turquia, dada a sua situação de
país em processo de adesão). De facto esta análise vai demonstrar que “as normas da
UE figuram como padrões de convergência em apenas 23% dos casos examinados,
uma percentagem inclusivamente menor que a das normas negociadas bilateralmente”
(p. 181). O modelo de convergência mais frequente é feito com base nas normas
internacionais devido às variáveis independentes: reflecte um menor poder negocial por
parte da UE e tem maiores probabilidades de serem percepcionadas como legítimas
junto do Estado vizinho.
Nesta perspectiva, a acção da União Europeia na relação com os Estados vizinhos não
encaixa no conceito identificado inicialmente de “hegemonia normativa regional”.
Apesar de se constatar que a sua Política Europeia de Vizinhança foi criada com o
intuito de convergência através das normas da União, a União Europeia está “sujeita a
uma série de constrangimentos internos e externos(p. 190), tal como qualquer actor
internacional. Num momento crítico da construção europeia como o que estamos a
presenciar, estas reflexões são, sem dúvida, de grande utilidade.
Como citar esta Recensão Bibliográfica
Duart
e, Rita (2011). Rece
nsão Crítica de Barbé, Esther (Directora) (2010). La Unión
Europea más allá de sus fronteras. Hacia la transformación del Mediterrâneo y Europa
Oriental?. Madrid: Tecnos: 196 pp., JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_rec1.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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Recensão Bibliográfica
Blair, Tony (2010). A Journey. London: Hutchinson: 718 pp.
por Evanthia Balla
Dout
orada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Católica de
Lisboa, Mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Reading, Reino Unido, e Mestre
em Política Internacional pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. Professora
Auxiliar no Departamento de Direito da Universidade Portucalense.
Investigadora no OBSERVARE (UAL) e no Instituto Jurídico Portucalense.
Desde o dia em que deixou o cargo, em Junho de 2007, Tony Blair nunca esteve
realmente longe dos holofotes. Isto deve-se principalmente ao facto da controvérsia em
torno da guerra do Iraque em 2003 permanecer intacta, e porque as perguntas sobre
os motivos e razões por trás da decisão de Blair ainda não obtiveram resposta.
Actualmente, após um período de deliberado silêncio, as memórias de Blair A Journey
(Uma Viagem) permite-lhe ter uma palavra a dizer e justificar-se
1
. Na verdade, o livro
inclui testemunhos de vários acontecimentos da sua vida privada, como o sentimento
devastador causado pela perda da e, com quem mantinha uma ligação especial, ou
a surpreendente relação com o álcool.
No entanto, no que respeita ao homem político, o livro aparenta ser um relato pessoal
de um líder num determinado período de tempo que expõe a sua visão e decisões, e
um instrumento que preserva o seu legado, justificando a guerra contra o Iraque e a
sua lealdade ao New Labour.
Blair descreve o seu primeiro dia no cargo, inexperiente mas decidido a fazer a
diferença. Desde o início, estabeleceu um relacionamento pessoal estreito e cordial com
o povo britânico, particularmente após a morte da princesa Diana, quando o seu
discurso realmente captou o sentimento do público.
Contudo, o relacionamento entre Blair e o público não iria durar muito tempo devido ao
falso prospecto da Guerra do Iraque, que assinalaria o ponto mais baixo de sua
popularidade. Após a publicação da autobiografia de Blair, os jornais britânicos
concentraram-se sobretudo na sua relação de rivalidade com Gordon Brown. Ao lado de
Gordon Brown e de Peter Mandelson, Blair era, efectivamente, a força motriz por trás
do New Labour. No entanto, só em Junho de 2007, no final do seu mandato, é que Blair
1
Kettle, Martin (2010). World exclusive Tony Blair interview”, The Guardian, Quarta-feira, 01.09.2010.
Disponível em: http://www.guardian.co.uk/politics/2010/sep/01/tony-blair-a-journey-interview
Consultado em: 31.01.2011
JANUS.NET, e-journal of International Relations
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Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 153-156
Recensão Crítica
Evanthia Balla
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cederia finalmente a Brown. E Brown, de facto, tinha trabalhado com muita habilidade
política de forma a garantir que não haveria nenhum rival na sucessão.
Embora a política interna assuma um papel importante no livro de Blair - a campanha
do partido trabalhista de 1997 foi disputada quase exclusivamente com base na política
interna é a política externa que realmente define a década de Blair no governo entre
1997 e 2007. E é sua actuação controversa no cenário mundial que efectivamente
capta o espírito do leitor estrangeiro.
Blair admite que “o meu despertar para a política interna prolongou-se ao longo do
tempo. Provavelmente tive plena voz sobre a reforma interna no último mandato. O
meu despertar para a política externa foi, por contraste, abruto, por ocasião do
Kosovo.
2
Esta bem sucedida intervenção militar iria influenciar as suas decisões futuras
re
lativamente à Serra Leoa, Afeganistão e, sobretudo, Iraque. Blair é um
intervencionista liberal, e não retira nada do que disse no seu discurso em Chicago, em
22 de Abril de 1999, e da sua doutrina da comunidade internacional intervencionista
liberal
3
. Começando pela realidade da interdependência numa época de globalização, e
de um mundo onde eventos em locais remotos podem ter efeitos imediatos na nossa
segurança nacional, Blair argumenta que a intervenção para derrubar um regime
ditatorial despótico pode ser justificada em função da natureza do regime, e não
apenas da ameaça imediata ao interesse nacional.
No entanto, a doutrina Blair desafiou as noções de soberania nacional e os princípios de
não-intervencionismo que remontam à Paz de Vestefália de 1648. Surgiria para
justificar a abordagem ao Afeganistão e ao Iraque, onde se travariam batalhas numa
escala diferente. Como resultado, ele sabe que o seu legado histórico será
provavelmente associado aos resultados finais dessas guerras, e, por esse motivo,
dedica um espaço considerável no livro a defender o aventureirismo militar,
especialmente no Iraque.
Tenho reflectido muitas vezes se terei estado errado. Peço-vos igualmente que
reflictam sobre a possibilidade de eu ter estado certo.
4
O l
ivro contém longos excertos sobre os ataques terroristas do 11 de Setembro de
2011 em Nova Iorque e Washington. Na sua opinião, esta foi decididamente uma
guerra, e uma que tinha que ser combatida de forma distinta de qualquer outra.
Precisamente, foi uma batalha ideológica que opôs os costumes e modus vivendi do
fanatismo religioso aos de um sistema de governo secular e iluminado que, pelo menos
no Ocidente, acreditava na liberdade, igualdade e democracia.
5
Blair não diz que não lutou pelo interesse nacional britânico. Contudo, o que afirma ser
o ponto focal da política externa actual é a globalização, pois acredita que a
característica que define o mundo de hoje é a sua interdependência e que, a menos
que articulemos uma política comum global baseada em valores comuns, corremos o
risco de o caos ameaçar a nossa estabilidade económica e política.
2
A Journey, p. 223
3
Blair, Tony (1999). “Doctrine of the International Community”, Discurso no Clube Económico de Chicago.
Dis
ponível no sítio da Downing Street: http://www.number10.gov.uk/Page1297 Consultado em:
10.02.2011
4
A Journey, p. 374
5
Ibid, p. 346
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ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 153-156
Recensão Crítica
Evanthia Balla
155
E, na prática, os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e
Washington, de 11 de Março de 2004 em Madrid, e de 21 de Julho de 2005 em
Londres, provam claramente que o terrorismo pode bater-nos à porta e fazer milhares
de vidas inocentes, sem qualquer aviso prévio.
Para Blair, o inimigo tem que saber que estamos determinados a agir. Esta opinião
impulsionou drasticamente sua política no Afeganistão, assim como no Iraque.
Para se vencer desta maneira não bastou, nem basta, simplesmente ter uma estratégia
militar para derrotar um inimigo que luta contra nós. Requer todo um novo quadro
geopolítico. Requer nation-building
6
. […] teve qu
e ser travada num plano elevado os
nossos valores contra os deles […] Quer gostem da ideia ou o, a partir de agora
estamos envolvidos em nation-building.
7
À pergunta se o Iraque está melhor agora do que no tempo de Saddam, Blair
responde: claro que sim. Em 1979, quando Saddam assumiu o poder, o Iraque era
mais rico do que Portugal. Em 2003, a população dependia da ajuda alimentar em
60%. Actualmente, o PIB per capita no Iraque é três vezes superior ao que era em
2003.
8
Contudo, Blair o examina criticamente o desafio prático colocado pelo processo de
nation-building (construção de nações), simplesmente reafirmando que se deve pagar
um preço na batalha contra o terrorismo e o radicalismo islâmico. Embora tenha
demonstrado coragem na guerra do Iraque, a guerra em si foi um fracasso. Com efeito,
não houve fundamentação legitimadora desse esforço, nem por parte das Nações
Unidas (ONU), nem da opinião pública. Não foram encontradas armas de destruição
maciça (ADM) na posse do regime de Saddam. E, decisivamente, não houve planos
para a reconstrução posterior e estabilização do país. A divisão entre xiitas e sunitas
aumentou em todo o mundo muçulmano. A situação no Irão também se tornou mais
agressiva.
Além disso, o argumento a favor de uma nova comunidade internacional é forte e Blair
tem-no afirmado claramente muitas vezes. Tem havido alguns sucessos notáveis, como
na Serra Leoa e no Kosovo. Contudo, essa comunidade só surgirá através do exemplo e
da persuasão, e não mediante recurso à guerra, pelo que a tentativa de impor valores
ocidentais em estados remotos através da força armada está condenada ao fracasso.
Na sua autobiografia, Blair admite que, contrariamente ao que se pensava, o Iraque
não dispunha de qualquer programa activo de ADM, mas não deixa de repetir os
mesmos argumentos relativamente às razões pelas quais voltaria a fazer o mesmo,
como a tirania do regime de Saddam, as violações do direito internacional, a ameaça à
segurança dos países vizinhos e do mundo em geral.
O livro não revela os sentimentos de Blair sobre as demissões e as centenas de
milhares de pessoas que marcharam em protesto na Grã-Bretanha e em todo o mundo.
A lista dos que não concordaram com a invasão e ocupação do Iraque era longa, e
incluía personalidades que durante anos lutaram pela liberdade pessoal e pela justiça,
como Nelson Mandela.
6
A Journey, p. 349
7
Ibid, p. 357
8
Ibid, p. 378-379
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Recensão Crítica
Evanthia Balla
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Quando terminei de ler o livro de memórias de Tony Blair, continuei a considerá-lo um
líder enigmático, pois podemos ser facilmente inspirados pelos seus valores e
concepções filosóficas sobre a política moderna. Simultaneamente, poderemos sentir-
nos profundamente desapontados com a sua aceitação incondicional da política dos
EUA e abordagem intervencionista no Iraque.
Para Clausewitz
9
, coragem moral e determinação é o que faz um grande estratega.
Amemo-lo ou odiemo-lo, Blair possui ambas. Ao fim ao cabo, a sua Viagem foi
decididamente tanto um triunfo da pessoa sobre a política como um triunfo da política
sobre a pessoa
10
.
Como citar esta Recensão Bibliográfica
Ball
a, Evanthia (2011). Recensão Crítica de Blair, Tony (2010). Uma viagem (A Journey).
Londres: Hutchinson: 718 pp., JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1,
Primavera 2011. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_rec2.
9
Clausewitz, Carl von (1984). On War, Princeton: Princeton University Press.
10
A Journey, p. 691
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 2, n.º 1 (Primavera 2011), pp. 157-162
Recensão Bibliográfica
Rajan, Raghuram G. (2011). Linhas de Fractura As fracturas escondidas
que ameaçam a economia mundial. Lisboa: Babel: 429 pp. ISBN 978-972-
22-3024-7 (Tradução de Carla Pedro)
por
Amadeu Paiva
Professor no Departamento de Relações Internacionais
da Universidade Autónoma de Lisboa
Esta é a edição em português de um trabalho sobre, usando as primeiras palavras do
livro
1
, “o colapso financeiro de 2007 e a «Grande Recessão» que se lhe seguiu” ou
seja, usando agora a palavra entretanto consagrada, sobre a «crise», que abalou o
mundo financeiro norte-americano e europeu e, que, dada a configuração da economia
mundial acabou por ter reflexos praticamente em todos os sectores da vida social e por
todo o mundo e que ainda estamos a viver.
Trata-se, no entanto, de uma obra de leitura enriquecedora, incontornável para quem
queira abordar este tema.
Desde logo, pelo curriculum do autor, com um doutoramento em economia no MIT, que
o facto de ter sido economista-chefe do FMI, professor de finanças da Universidade de
Chicago, e colaborador do governo indiano, como conselheiro e presidente do comité
para a regulação do sector financeiro, vencedor do Fischer Black Prize da American
Finance Association, o deixa particularmente bem colocado para lidar com o assunto.
Mas também pelo facto de este ter sido um dos economistas que previu esta crise. É
frequentemente citado o episódio da sua participação na reunião de 2005 da
conferência de Jackson Hole, que anualmente reúne os governadores dos principais
bancos centrais e para a qual peritos das áreas de economia e finanças o convidados
a apresentar contribuições. O trabalho que apresentou nessa reunião - intitulado Has
financial development made the world riskier? - fazia essa previsão e teve visível
impacto na audiência por, nas palavras do autor que conta este episódio na
Introdução ,”…não estar sintonizado com o tom geral” que, à época, tinham as
discussões sobre temas relativos à indústria financeira.
Trata-se de uma obra incontornável também pelo reconhecimento que o próprio livro
entretanto alcançou, tendo sido considerado o melhor livro de negócios do ano de 2010
– Prémio Finantial Times/Goldman Sachs.
1
A publicação original é Raghuram G. Rajan, Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World
Economy, Princeton University Press, 2010. Não é indicada a edição a partir da qual foi feita a tradução
para português.
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Recensão Crítica
Amadeu Paiva
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O livro foi escrito para um blico mais vasto que os especialistas desta área. É
centrado na economia dos Estados Unidos da América
2
, onde existe aquele que é
considerado o sistema financeiro mais sofisticado do mundo.
Assim sendo, a principal questão que me ocorreu quando me solicitaram que fizesse
uma apresentação para o janus.net foi saber se um livro acabado de escrever em
Fevereiro de 2010, num momento em que a crise ainda não está fechada, centrado na
realidade norte-americana, poderia ter interesse para o leitor de língua portuguesa não
necessariamente especializado na área, pois caso o fosse, certamente, o teria lido na
edição em inglês. E que contributo poderia dar para o leitor que vive a crise sobretudo
na realidade portuguesa e europeia.
O leitor português simplesmente tocado pelas notícias e debates dos meios de
comunicação generalistas, pelo convívio social, pela exibição do filme “Inside Job”,
pelas referências e mesmo peças de humor que circulam pela internet
3
, para o
fal
ar no Memorando de Entendimento entre Portugal e a “Troika”
4
, não achará grande
novidade nos assuntos expostos no livro ou até na linguagem. Mas creio que tirará
proveito das reflexões que lhe podem ser sugeridas pela leitura e pelas comparações
que poderá fazer sobre o que se passa na realidade que se vive, em particular em
Portugal e no resto da Europa. Mas que não deixe de ser crítico, pois quer as teses quer
os argumentos não são incontestáveis
5
.
O livro debruça-se sobre as advertências resultantes da crise. Propõe um conjunto de
causas para a sua explicação, enquadra-as e analisa-as. Parte dessa análise para
apresentar o que considera serem as difíceis escolhas políticas que atacarão as
verdadeiras causas desta e de potenciais crises futuras.
O método de abordagem criado pelo autor assenta no conceito de «linhas de fractura»,
isto é, séries de forças em interacção que provocam enormes tensões que geram
crises, à semelhança das linhas de fractura geradas pelo contacto ou colisão das placas
tectónicas na superfície terrestre e de que resultam os abalos telúricos.
Considera que estas linhas de fractura são, na realidade, sistémicas, afastando-se,
assim, das explicações, que classifica de simplistas, segundo as quais a crise seria
explicada apenas pelo comportamento de personalidades ou instituições específicas.
Além de uma “Introdução” e de um Epílogo”, o livro divide-se em dez capítulos. Nos
primeiros sete, expõe os três conjuntos de linhas de fractura que considera. Os três
últimos capítulos são dedicados às reformas e outras medidas de política que propõe.
Essas três séries de linhas de fractura são as que resultam do contacto (i) entre a
política e os mercados financeiros; (ii) entre pses, especialmente entre as economias
2
Deixa-se uma referência a uma útil obra com uma visão “não-americana” do sistema financeiro, baseada
na experiência dos países europeus: Dewatripont, Mathias; Rochet, Jean-Charles; Tirole, Jean (2010).
Balancing the bank: global lessons from the financial crisis. Princeton University Press.
3
Uma bem interessante é Subprime Crisis de Bird and Fortune
(http://www.youtube.com/watch?v=mzJmTCYmo9g)
4
Veja-se, a propósito, o comentário sobre as obrigações de dívida coletarizada e do Fundo Europeu de
Estabilização Financeira (FEEF), de Zingales, Luigi publicado em Negócios Online, em 7 de Janeiro de
2011, sob o título A alquimia financeira da Europa
(http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNE
WS_V2&id=461849)
5
A este propósito é interessante tomar conhecimento das críticas de Paul Krugmam a algumas das tese e
alguns dos argumentos expendidos no livro por Rajan
(http://www.nybooks.com/articles/archives/2000/sep/30/slump-goes-why/) e da resposta do próprio
Rajan (http://forums.chicagobooth.edu/faultlines?entry=24)
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que consomem em demasia, como os Estados Unidos, e as que consomem
insuficientemente, como a Alemanha e o Japão e, cada vez mais, a China; e (iii) entre
diferentes tipos de sistemas financeiros existentes no mundo, especificamente, entre os
sistemas financeiros transparentes e sem favorecimentos - de que os que existem nos
Estados Unidos e o Reino Unido são realidades próximas - e os sistemas financeiros
menos transparentes de grande parte do resto do mundo, uma vez que por
funcionarem com base em princípios diferentes e estarem sujeitos a formas de
intervenção governamental distintas, tendem a distorcer o funcionamento de cada um
dos outros sempre que se financiam uns aos outros.
O exemplo mais importante do primeiro tipo de linha de fractura que é destacado é
aquela que resulta da crescente desigualdade de rendimentos nos Estados Unidos
que o autor atribui aos insuficientes resultados da indiferenciada socialização da
educação e da aprendizagem em geral, a qual vem gerando défices no capital humano
que a economia americana requereria - e da pressão política que foi criada no sentido
da facilitação do crédito.
Nesta situação, a resposta política ao aumento da desigualdade foi usar o crédito como
um paliativo: um consumo que o é suportado por um rendimento insuficiente pode
sê-lo pelo crédito acessível. “Os benefícios crescimento do consumo e mais empregos
foram imediatos, adiando-se para o futuro a factura a pagar” (p. 24). O autor
discute, em particular, o controverso tema da política de promoção do acesso alargado
à aquisição de casa própria.
Um outro caso de linha de fractura resultante do contacto entre a política e os
mercados financeiros, a que o autor enorme importância pelos efeitos que considera
nefastos, é precisamente sobre a forma como a política monetária norte-americana é
influenciada por considerações de ordem política, na mesma linha da facilitação do
crédito, para responder a uma situação em que a retoma económica se faz sem
aumento de empregos, num país em que a duração dos subsídios de desemprego é
curta e os benefícios com os cuidados de saúde não existem para os desempregados.
Então, uma política de juros baixos estimula a criação de emprego, mas, num mercado
financeiro desregulado, acaba por ter efeitos nefastos ao provocar o aumento do preço
das matérias-primas, do preço dos activos que o são remunerados pelo juro, da
tendência para o sector financeiro assumir mais riscos, de facilitar o crédito.
Ultrapassando a mera lógica económica, “a retoma económica tem tudo a ver com os
empregos, não com a produção, e os políticos estão dispostos a facultar estímulos
orçamentais e monetários à economia até os postos de trabalho começarem a
reaparecer” (p. 34).
A segunda série de linhas de fractura emana do contacto entre as economias com
elevados níveis de consumo e as economias com relativamente menores veis de
consumo. No primeiro caso, teríamos os Estados Unidos, que no livro o referidos
como tendo, por escassez relativa de poupança, financiado “… as suas despesas, em
2006, pedindo empréstimos sobre 70% das poupanças mundiais excedentes” (p. 363).
No segundo caso, o autor refere especialmente a Alemanha, o Japão e a China, países
que basearam o seu crescimento nas exportações, que detêm, portanto, capacidade
excedentária de produção relativamente ao seu consumo interno e que satisfizeram,
durante os finais da década de 1990 e na década de 2000, uma parte importante da
procura nos Estados Unidos.
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Neste âmbito, localiza o autor, uma segunda linha de fractura: a excessiva dependência
dos países com crescimento assente nas exportações vis à vis os consumidores
estrangeiros, o que fragiliza a economia global pela pressão que estes países exercem
sobre os países importadores para manterem os ritmos de consumo, uma vez que o
seu mercado interno, protegido e ineficiente, não tem capacidade, por si, para
promover o crescimento das suas economias.
A última série de linhas de fractura desenvolve-se no contacto entre os diferentes tipos
de sistemas financeiros.
Do exposto no livro sobre esta temática, destacam-se três grupos de considerações.
O primeiro lida com ”o volúvel financiamento estrangeiro”, pondo ênfase nas razões
pelas quais, no processo de busca de financiamento por parte dos “países em
desenvolvimento”, as tensões e as consequências do confronto entre os seus sistemas
financeiros “menos transparentes”– pelo papel da intervenção dos bancos e dos
governos - e os sistemas financeiros “mais transparentes” dos financiadores,
contribuíram para que aqueles países se transformassem em exportadores líquidos,
deixando de contribuir para a absorção da oferta excedentária global.
O segundo discorre sobre uma das debilidades dos sistemas financeiros “transparentes
e sem favorecimentos”: a de os investidores confiarem, sem grande escrutínio, na sua
segurança, nos ratings que atribuem aos activos neles transaccionados bem como nos
preços de mercado que neles se formam, o que os deixa desprevenidos quando algo
funciona menos bem.
Finalmente aborda as explicações para o comportamento dos agentes financeiros que
contribuíram para o despoletar da crise, levando-os a abusar na tomada de risco
As medidas de política para remediar e sobretudo evitar futuras crises, apresentadas
nos capítulos VIII, IX e X, deixam, de alguma forma, uma sensação de insatisfação.
Atente-se na forma como são apresentadas logo na “Introdução”:
“Não soluções milagrosas. As reformas exigirão uma cuidadosa análise e, por vezes,
uma entediante atenção aos pormenores. Analisarei este assunto (…), focando-me em
abordagens mais abrangentes. As minhas propostas …Se forem implementadas,
poderão transformar substancialmente o mundo onde vivemos e fazê-lo sair do
caminho de aprofundamento das crises para um caminho de maior estabilidade
económica e política, bem como de cooperação. (…) As reformas exigirão que as
sociedades mudem o seu modo de vida, a forma como crescem e a maneira como
fazem as suas escolhas. Implicarão um significativo sofrimento de curto prazo, mas em
troca teremos ganhos enormes e generalizados a longo prazo. Estas reformas são
sempre difíceis de vender à opinião pública, pelo que não são muito atractivas para os
políticos. Mas o custo de nada fazer é talvez um agravamento da turbulência que
vivenciámos recentemente, pois as linhas de fractura, a o serem verificadas,
tenderão a aprofundar-se ainda mais.” (p. 42).
Quando as lemos, algumas parecem superficialmente apresentadas; algumas
consequências colaterais, negligenciadas; e escassas as que pareceriam ser necessário
tomar, em especial fora do campo estritamente monetário e financeiro. Com a
agravante de que algumas não foram aplicadas e outras foram-no de forma tão
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enviesada que não permitem garantir que, na sua formulação inicial, teriam sido
eficazes.
O capítulo VIII é sobre a reforma do sector financeiro, na qual considera como questão
principal levar o sector privado a avaliar novamente o risco de maneira adequada, sem
partir do princípio que o governo intervirá.
“Terá de se incentivar o uso da transparência para fazer com que a população
interessada monitorize a relação entre o governo – ou o regulador – e o sector
financeiro. Grande parte daquilo que proponho fica aquém das expectativas daqueles
que desejam soluções drásticas.” (p. 326).
Apresenta então, uma lista de medidas que não serão certamente estranhas ao leitor e
que de uma maneira geral foram amplamente referenciadas na comunicação social,
cuja implementação foi tentada ou mesmo concretizada, relacionadas com as
remunerações e os incentivos aos gestores de empresas financeiras, as distorções na
avaliação do risco, a gestão das expectativas de intervenção governamental; o fim dos
subsídios e privilégios governamentais às instituições financeiras; uma regulação à
prova de ciclos, com características de abrangências, não discriminação e eficácia em
termos de custos; a concorrência e a inovação…
Interessante é sugerir que “uma possibilidade é manter as garantias de depósito para
os bancos de pequena dimensão e devendo eles, em troca, pagar um justo prémio de
seguro, reduzindo-as progressivamente no que diz respeito aos bancos de maior
dimensão, até que sejam progressivamente eliminadas” (p. 322).
O capítulo que leva por título “Melhorar o aceso às oportunidades na América”,
apresenta as propostas de reformas para a economia norte-americana, que, como seria
de esperar, pelo destaque dada às respectivas linhas de fractura, são relativas à
melhoria da qualidade do capital humano e ao fortalecimento da rede de segurança
quer para a protecção no desemprego, quer para o acesso aos cuidados de saúde, à
segurança das pensões de reforma, à mobilidade laboral, e, marginalmente, ao
estímulo à poupança e à política fiscal.
No último capítulo (“A repetição da fábula das abelhas”) disserta um pouco sobre as
relações económicas internacionais na actualidade, e o papel das organizações
multilaterais e, em particular, o posicionamento da China neste contexto, sem que se
perceba quem e como se pode levar a cabo uma alteração do status quo.
Duas notas finais:
Pode discutir-se se esta crise é mais ou menos semelhante a outras anteriores ou se é
completamente diferente. Também a leitura deste livro ajuda a reflectir sobre isso. Pelo
menos aparentemente, quando se folheia descontraidamente um livro sobre história
financeira, os traços gerais de todas as crises são bastante parecidos. Se que o
germe da crise na indústria financeira tem carácter congénito e crónico? Atente-se, por
exemplo, nesta descrição referente a um facto passado no século XVIII: “Varsóvia
organizara grande comércio de letras, mas que tinha por base e por objectivo a usura
dos banqueiros. A fim de obter dinheiro que podiam emprestar aos grandes senhores
perdulários a 8% e mais, buscaram e encontraram fora do país crédito com letras de
favor, isto é, que não tinham por base comércio algum de mercadorias, e que o sacado
estrangeiro aceitava indulgente enquanto não falhavam as remessas obtidas por meios
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dessa especulação. Com a falência de Tepper e de outros banqueiros de Varsóvia, de
alta reputação, pagaram caro por esse negócio”
6
.
Pode discutir-se também “…se o sector financeiro realmente contribui para o processo
de crescimento económico e de bem-estar ou se é apenas um elemento secundário, em
grande medida irrelevante, e que faz com que a sua presença seja periodicamente
sentida quando implode.” (p. 282).
Conviria não ter dúvidas relativamente a qualquer destes dois temas.
Com
o citar esta Recensão Bibliográfica
Paiva, Amadeu (2011). Recensão Crítica de Rajan, Raghuram G. (2011). Linhas de
Fractura As fracturas escondidas que ameaçam a economia mundial. Lisbon:
Babel: 429 pp. ISBN 978-972-22-3024-7 (Tradução de Carla Pedro), JANUS.NET e-
journal of International Relations, Vol. 2, N.º 1, Primavera 2011. Consultado [online] em
data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol2_n1_rec3.
6
J. G. Büsch, Theoretisch-praktisehe Darstellung der Handlung..., ed., Hamburgo, 1808, volume II,
pp.232s, citada em Karl Marx, O Capital, Livro 3, vol. 5, Editora Civilização Brasileira / Centro do Livro
Brasileiro.