OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 128-131

Recensão Crítica

SAVIANO, Roberto (2008). Gomorra. Infiltrado no Império Económico

da Máfia Napolitana, Caderno, 2008, Lisboa, 3ª. Ed.: 351 pp

por René Luis Tapia Ormazábal

Chileno naturalizado português, doutorado em economia pela Universidade Jules Verne de Amiens, especializado em Economia Política da Droga.

Várias publicações e conferências neste campo, com investigações em Off-shores e Corrupção.

Docente em várias universidades de Algarve, Coimbra e Lisboa, estuda actualmente o Crime Organizado

O crime organizado é actualmente a ameaça planetária número um. Na Itália, o 4º país em importância económica da União Europeia, o volume de negócio do crime organizado só é superada pelo conjunto das empresas públicas. Segundo a Confederação Geral do Comércio Italiano, dois terços da riqueza produzida pela economia subterrânea teria origem criminal. Interesses mafiosos controlariam 20% das empresas comerciais e 15% das empresas manufactureiras, representando perto de 15% do PIB (quase 900 biliões de Euros no ano 2.000). O património das máfias ascenderia a 5,5 biliões de Euros, qualquer coisa entre 6% ou 7% da riqueza nacional italiana disponível1.

Depois do assassinato dos irmãos Kennedy, que conheciam e combatiam o crime organizado, surgiram inúmeras publicações sobre “As máfias”. Algumas bem e/ou muito documentadas e ainda outras de uma grande coragem2. Estas e outras características reúnem o muito galardoado livro de Roberto Saviano que comentamos. O autor nasceu em 1979 em Nápoles, terra da “Camorra”, a organização criminosa com maior número de filiados da Europa3. É jornalista, licenciado em filosofia, investigador do crime organizado especializado na “Camorra”, filho de um médico que tinha realizado serviço nas ambulâncias durante a sua juventude em zonas onde morrem cinco pessoas por dia. Num texto despretensioso, rico em adjectivos, vai relatando factos documentados, vividos e recolhidos na terra dos clãs, onde a teoria do direito moderno foi subvertida, onde ninguém pode alinhar contra a camorra (275-76)4. As

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FURET, F., “Economie de la Cosa Nostra”, Banc Public, 116, Janvier 2003 [Em linha], Disponível em: http://www.bancpublic.be.

TAPIA, René, “Corrupção e crime organizado”, Le Monde Diplomatique, Ed. Portuguesa, Junho, 2003, p.2. No país sul-americano onde nasceu o autor destas linhas, o calão utiliza muitas palavras de diferentes línguas (à nativa original acrescentam-se outras segundo a origem dos antigos emigrantes) e “camorra” designa uma discussão acalorada. “Armar camorra” é provocar uma briga.

Em páginas arrepiantes relata como os que se opõem aos desígnios da máfia, tais como jornalistas que não cedem às pressões, presidentes de Câmaras que se opõem ao controlo dos detritos ou das obras

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lembranças que tem do seu pai ajudam a compreender o seu compromisso moral, esta necessidade de conhecer os mecanismos económico-financeiros de afirmação dos clãs como organização empresarial que produz riqueza com sangue e se expande com uma lógica temerária (350-51). Um sistema onde o homicídio é necessário (273).

A primeira lembrança, que tardou em compreender, é o diálogo de adolescente com o seu pai, quando este explica ao filho que entre um filósofo e um médico é o médico que pode decidir sobre a vida das pessoas, decidir salvá-las ou não, fazer o bem quando se pode fazer o mal. “O bem verdadeiro é quando se escolhe fazê-lo porque se pode fazer o mal” (202). Ele só compreendeu esta conversação com a história da segunda lembrança, que foi-lhe contada tantas vezes: quando uma ambulância chegava e o ferido estava no chão mas a polícia ainda não estava presente, não se podia transportá-lo, porque se a notícia se espalhava, os killer5 voltavam, entravam na ambulância e acabavam a sua tarefa (202). Uma vez o seu pai encontrou um rapaz ainda agonizante e transportou-o até o hospital, onde foi salvo, mas contra a opinião dos seus colegas (“Esperamos. Vêm, acabam o serviço e nós levamo-lo”: 203). Nessa noite os killer foram a casa do pai e espancaram-no até não poder aparecer na rua durante dois meses. “Talvez seja também por isso que me licenciei em filosofia, para não decidir no lugar de ninguém” (id.).

A camorra volta a existir após anos de silêncio (115) e nessa circunstância Raufer teve que aprender “o ofício de viver” (185)6 e decidiu compreender como surgia “no coração de Europa” este sistema de poder criminal empresarial (226) “que forja a maior parte da economia da nação”, com um desenho de empresa com vários níveis e lucros em torno de 500 por cento (79), capaz de facturar só com o narcotráfico quinhentos mil euros por dia (133)7. Em capítulos de uma grande objectividade, mas não isentos de emotividade, o autor vai-nos relatando as circunstâncias específicas da região, que se conjugam com os actuais momentos históricos de transformação mundial e o aparecimento de novos fenómenos e processos, que determinam essas “estratégias de extracção”.

Em primeiro lugar a rede logística internacional de comércio de têxtil de haute couture (uma rede comercial mundial, desde a produção ao mercado de outlet, por onde muitas vezes se escoa a droga: 53-58)8, depois as suas ligações com as outras máfias que lhe servem para ser o intermediário privilegiado no tráfico de droga9, a seguir o imprevisto terramoto de 1980, que lhe permite enriquecer com a apropriação dos fundos da

públicas e inclusivamente sacerdotes que a denunciam, são vilipendiados, assassinados e até esquartejados para que não apareça o cadáver. Ou o caso de um mafioso que contrai a SIDA e é assassinado “para que não contagie as filhas dalguma família camorrista” (323).

5Calão em itálico no original.

6“Três mil e seiscentos mortos desde que nasci (1979). A camorra matou mais do que máfia siciliana, mais do que a ‘ndrangheta, mais do que a máfia russa, mais do que as famílias albanesas, mais do que a soma dos mortos feitos pela ETA em Espanha e pelo IRA na Irlanda, mais do que as Brigadas Vermelhas, do que o NAR (Núcleos Armados Revolucionários, grupos de extrema direita…) e mais do que todas as vítimas de Estado ocorridas na Itália. A camorra matou mais do que todos….” (145).

7“Não há estupefaciente que seja introduzido na Europa que não passe primeiro pelo mercado de

Secondigliano” (83).

8Quase no início do texto é-nos narrada a cena comovente vivida em casa de um costureiro que ele

visitava e que trabalha para a máfia por um ordenado de seiscentos euros por mês, quando este vê na televisão uma actriz norte-americana, na noite dos “Óscares” envergar um fato cosido por ele.

9“Em Aliança com os clãs nigerianos e albaneses e os mafiosos ucranianos” (226) “em condições de associar-se directamente aos cartéis sul-americanos” (73).

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reconstrução10, tal como com os da criação duma auto-estrada, factos que coincide com a implosão dos regimes do leste, aos quais tinham servido primeiro de intermediários e depois de guarda pretoriana, conseguindo finalmente apropriar-se desses arsenais11. “Uma supremacia económica que não nasce directamente da actividade criminosa, mas da capacidade de equilibrar capitais lícitos e ilícitos” (242) “… envolvendo também uma pequena burguesia afastada dos mecanismos do crime mas cansada de confiar os seus haveres à banca” (68)12, que encontra “… um desemprego crónico e uma ausência total de projectos de crescimento social” (5) para trabalhar como assalariados na organização, que os protege mas que não sabem por quem são dirigidos. E é-nos colocado um exemplo de construção de um clã mafioso, com todas as suas condicionantes criminais, internacionais, legais e ilegais (p. 228): “matando Mário Iovine em Cascais, Portugal, em 1991… a camorra de Casale tornou-se uma empresa polivalente… em condições de participar em todos os negócios (aplicando) a quantidade de capitais acumulados ilegalmente… Cimento e narcotráfico, racket, transportes, serviços de saneamento e monopólio no comércio e nas imposições de fornecimentos”. Acrescente-se “um dos tráficos intercontinentais mais florescentes que a história do crime alguma vez conheceu. Da China os clãs transportam e distribuem na Europa diversos produtos: Máquinas fotográficas digitais e câmaras de vídeo, utensílios para a construção civil, marcas Bosch, Hammer, Hilti…” (59). Em suma “uma burguesia violenta e feroz que tem no clã a sua vanguarda mais feroz e poderosa (221)13.

Karl Marx resumiu “na violência e o dinheiro” as alavancas fundamentais para a acumulação primitiva do Capital (cf. Livro I, capítulo 24, epígrafe 6 de “O Capital”). Estava a referir-se ao Estado nas origens de capitalismo. Nesta época de crise sistémica14, em que “o velho não acaba de morrer e o novo ainda não nasceu” (Gramsci), as máfias não se substituem ao Estado, são paralelas a ele, sintetizam essas alavancas necessárias “na acumulação de grandes capitais” (309)15 onde” a ferocidade é o verdadeiro valor do comércio: renunciar a ela significa perder tudo” (319). Nestes

10”O terramoto dos anos 80 destrói o Valle di Lauro, a chuva de cem mil milhões de liras para a reconstrução dá origem a uma burguesia empreendedora camorrista” (175).

11“A camorra, mal caiou a cortina socialista, encontrou-se com os dirigentes dos partidos comunistas em desagregação… Conhecedores da sua crise, os clãs adquiriram informalmente aos Estados do Leste – Roménia, Polónia, ex-Jugoslávia – depósitos inteiros de armas, pagando durante anos as despesas dos guardas, aos seguranças, aos oficiais adjuntos à manutenção dos recursos militares. Em suma, uma parte da defesa daqueles países foi mantida pelos clãs. No fundo, a melhor maneira de esconder as armas é mantê-las nas casernas. Assim, durante anos…. os boss tiveram como referencia não o mercado negro de armas, mas os depósitos dos exércitos do Leste à sua completa disposição” (191). “A questão das armas é mantida escondida nas tripas da economia, fechada num pâncreas de silêncio. A Itália gasta em armas vinte e sete mil milhões de dólares (é o oitavo orçamento militar do mundo. R.T.). Mais dinheiro do que a Rússia, o dobro de Israel…. três mil e trezentos milhões é o volume de negócios das armas nas mãos da camorra, ‘ndrangheta, Cosa Nostra e Sacra Corona Unita (217).

12“A nova burguesia camorrista de Casale transformou a relação de extorsão numa espécie de serviço adicional, o racket numa participação na iniciativa da camorra. Pagar uma mensalidade ao clã pode significar conceder-lhe exclusivamente dinheiro para os seus negócios, mas ao mesmo tempo pode significar receber protecção económica com a banca, camiões a tempo, agentes comerciais respeitados. O racket como uma aquisição de serviços imposta” (60).

13 “As investigações estavam a levar à confiscação progressiva dos bens de Dante Passarelli quando este foi encontrado morto, em Novembro de 2004. … Com a sua morte todos os bens, que teriam passado para as mãos do Estado, regressaram à família. …. Os clãs não permitem erros” (246).

14“Tudo tinha mudado nos últimos anos. Tudo. Inesperadamente. Repentinamente”(26).

15“O volume de negócios que a família Schiavone gere é quantificável em cinco mil milhões de euros. O poder económico total do cartel das famílias Casalesi entre bens imóveis, herdades, acções, liquidez, empresas de construção, fábricas de açúcar, cimenteiras, usura, tráfico de droga e de armas, gira em torno dos trinta mil milhões de euros” (229).

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René Luis Tapia Ormazábal

dias, em que começa a falar-se em corrupção16, textos como este que apresentamos, de grande riqueza analítica e factual, são úteis e necessários. Opor-se à barbárie precisa de algo mais que “a coragem da verdade” de que falava Hegel. Roberto Saviano vive oculto, sob protecção policial.

Como citar esta Recensão Crítica

Ormazábal, René Tapia (2010). Recensão Crítica de SAVIANO, Roberto (2008). Gomorra. Infiltrado no Império Económico da Máfia Napolitana, Caderno, 2008, Lisboa, 3ª. Ed.: 351 pp, JANUS.NET e-journal of International Relations, N.º 1, Outono 2010. Consultado [online]

em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol1_n1_rec3

16O exemplo do tratamento das lixeiras e dos resíduos tóxicos enquanto negócio da máfia e as relações desta com os políticos, os funcionários públicos, o empresário e os licenciados desempregados na função de expert em ambiente, é paradigmático.

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