OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 108-112

Notas e Reflexões

O CONCEITO DE CONFIGURAÇÃO INTERNACIONAL

Luís Moita

Professor Catedrático e Director do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, Director do OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores

e de JANUS.NET, e-journal of International Relations Foi Vice-Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa entre 1992 e 2009

Na sua ambição por observar, compreender e interpretar as realidades sociais, incluindo logicamente as realidades internacionalizadas, em si mesmas e nas suas mudanças, os sociólogos servem-se de utensílios conceptuais mais ou menos consagrados.

Um deles é o conceito de estrutura, largamente utilizado na linguagem corrente e no discurso científico, em especial pela generalidade dos autores que são justamente designados como estruturalistas. A ideia de estrutura parece corresponder ao esforço de busca do travejamento que daria consistência à realidade social e que importaria descortinar para além das aparências observáveis. Essa busca pressupõe que, à maneira dos organismos vivos nos quais o esqueleto serve de sustentação ao conjunto dos órgãos, também nas sociedades humanas teríamos uma rede de relações, uma malha de interacções, sobre a qual assentaria o edifício social.

Recordemos alguns exemplos dispersos. Em linguística, os estruturalistas como Saussure foram precursores deste tipo de pensamento, ao defenderem a concepção da linguagem como estrutura, como sistema de signos. Em antropologia, o estruturalismo de Lévi-Strauss identifica a trama das relações de parentesco como a base de sustentação das sociedades mais antigas. E, à sua maneira, o marxismo também corresponde a uma forma de estruturalismo, já que entende as formações sociais como assentes na rede das relações de produção. Diversas outras ciências, como a matemática ou a psicologia, utilizaram categorias estruturalistas nas suas análises. E são conhecidas as teorias estruturalistas em Relações Internacionais, com relevo para o pensamento de Immanuel Wallerstein.

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O conceito de configuração internacional

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Em termos gerais, o conceito foi aprofundado por Jean Piaget1 para quem na ideia de estrutura estão contidos três factores, a saber, a totalidade, o dinamismo e a auto- regulação. Antes de mais, uma estrutura social é algo de que se pode falar no singular, como um todo, onde os elementos que a compõem formam conjunto, conjunto esse que tem propriedades diferentes dos seus elementos individualmente considerados. Essa totalidade, porém, não sendo estática mas antes dinâmica, gera processos de transformação, desenvolve as suas potencialidades, passa por fases de crescimento, para o que necessariamente despende energias, com tendência para a desagregação. Com efeito, tais processos de transformação provocam, por fim, inevitáveis desequilíbrios, dada a dissipação da energia (entropia) e o consequente desgaste das potencialidades, obrigando assim à existência de dispositivos de compensação com capacidade para corrigir os desequilíbrios, através de mecanismos de auto-regulação. Estes três elementos são assim, segundo Piaget, fundamentais para a compreensão da ideia de estrutura: a formação de um todo coerente, a capacidade adaptativa e transformadora, e os mecanismos de reequilíbrio do conjunto.

Muito próximo deste é o conceito de sistema, tão usado nos diversos ramos científicos e estando no centro de grande número de teorias. Na área das Relações Internacionais são conhecidas as análises sistémicas e a expressão “sistema internacional” tornou-se corrente, mesmo na linguagem não erudita. A teoria dos sistemas tem sido utilizada em diversas interpretações dos processos de internacionalização. Se Morton Kaplan se distinguiu pelo inventário de possíveis sistemas internacionais2, Kenneth Waltz levou este tema ao encontro do pensamento clássico “realista”, aplicando justamente as teorias sistémicas ao estudo das relações internacionais, o que lhe mereceu a classificação de “neo-realista”3.

Voltando, porém, ao conceito de sistema em si mesmo considerado, entre vários outros aprofundamentos do tema podemos registar o de Georges Lerbet4 para quem o sistema acrescenta à estrutura a ideia de interacção com o meio envolvente, uma interacção que se traduz essencialmente na troca de energia entre a estrutura e o ambiente que a rodeia. Entre a totalidade dinâmica em causa e o que lhe é circundante (o “entorno”) dar-se-ia uma permuta regular de interacções, um vaivém de energias e, aí sim, encontraríamos a ideia de sistema, resultante deste novo composto de estrutura mais rede de interacções. Os sistemas podem ser fechados (como as máquinas) ou abertos (como os organismos vivos, tanto biológicos como sociais) e, nestes, a troca de energias pode assumir diversas formas, por exemplo, fluxos materiais ou fluxos de informação. Para alguns, a análise dos processos sistémicos é susceptível de ser feita segundo o modelo cibernético de input, output e feedback, num complexo de acção e retroacção.

Mas a verdade é que, no vocabulário dos especialistas, quase se desliza imperceptivelmente do conceito de estrutura para o de sistema, como se de sinónimos se tratasse. Por vezes atribui-se à estrutura um sentido predominantemente estático e

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Ver Piaget, Jean (1981) O estruturalismo, (tradução portuguesa de Fernanda Paiva Tomaz), Lisboa: Moraes Editores: 10-20.

Ver Kaplan, Morton (1957). System and Process in International Politics. New York: John Wiley.

Waltz, Kenneth (2002). Teoria das Relações Internacionais (traduzido do inglês por Maria Luísa Felgueiras Gayo), Lisboa: Gradiva.

Ver Lerbet, Georges (1986). De la structure au système: essai sur l’évolution des sciences humaines. Éditions Universitaires, nomeadamente pp. 18-21. Ver também do mesmo autor Approche systémique et production de savoir, Paris: L’Harmattan, 1993.

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ao sistema um sentido essencialmente dinâmico. Basta consultar aquele que é porventura o estudo mais completo sobre a aplicação do conceito de sistema às relações internacionais da autoria de Michael Brecher5, segundo o qual “um sistema possui ao mesmo tempo componentes estáticas e dinâmicas. A estrutura refere-se ao modo como os actores se situam uns em relação aos outros. As suas variáveis fundamentais são o número de actores e a distribuição do poder entre eles. O processo designa as redes de interacção entre os actores de um sistema. As variáveis fundamentais de interacção são o tipo, identificado com o continuum conflito/ cooperação, e a intensidade, que traduz o volume de interacções durante um dado período de tempo. Postula-se a existência de um vínculo entre a estrutura e o processo: cada estrutura possui um processo de interacção; e uma estrutura cria e sustenta interacções regulares” (83)6.

Recordadas estas duas ideias de estrutura e de sistema, talvez a nossa preferência se possa dirigir a uma outra, desenvolvida pelo sociólogo alemão Norbert Elias: o conceito de configuração. Visando superar o dilema de uma sociologia assente nos homens considerados como indivíduos versus uma sociologia dos homens considerados como sociedades, ele propõe o termo “configuração” para significar a situação onde se desenrola a multiforme relação entre indivíduos em ambiente de interdependência, constituindo um conjunto de tensões onde interagem não só as mentes mas as pessoas como um todo, onde estão presentes as acções e as relações recíprocas7, seja qual for a escala a que este relacionamento se realize.

Elias, ao explicitar este utensílio intelectual que é o conceito de configuração, exemplifica pormenorizadamente com a situação de quatro homens que jogam às cartas sentados a uma mesa, formando justamente uma configuração, na medida em que entre eles se dá uma evidente ligação de interdependência: o jogo de cada um está intrinsecamente dependente do jogo de todos os outros. Logo acrescenta, porém, que o termo se aplica “tanto aos grupos relativamente restritos como às sociedades formadas por milhares ou milhões de seres interdependentes”8. Neste sentido, uma turma de alunos, um grupo terapêutico, uma conglomeração urbana, uma nação… representam configurações, graças às redes de interdependências que as constituem. Para designar realidades muito diferentes, desde o pequeno grupo dos parceiros de jogo até ao sistema internacional, é apropriado o termo de configuração.

Seja dito entre parêntesis que esta proximidade de ideias – o jogo, a internacionalização – evoca a aplicação da teoria dos jogos à análise das relações

5Brecher, Michael (1987) “Système et crise en politique internationale” em Korany, Bahgat (org) Analyse des relations internationales, Québec: Gaetan Morin Éditeur/Centre québécois de relations internationales.

6Ver ainda ibidem, na pág. 82: “Um sistema internacional é constituído por um conjunto de actores que estão colocados numa configuração do poder (estrutura), que estão implicados em redes regulares de interacção (processo), que estão separados das outras unidades por fronteiras funcionais de um domínio e cujo comportamento está submetido aos constrangimentos do interior (contexto) e do exterior

(envolvente) do sistema”.

7Ver Elias Norbert (1986). Qu’est-ce que la sociologie? (traduzido do alemão por Yasmin Hoffman), Paris: Éditions de l’Aube, pp. 154-161. “O ‘indivíduo’ e a ‘sociedade’, não constituem, como o actual uso dos termos poderia fazer crer, dois objectos que existem separadamente, quando de facto são níveis

diferentes mas inseparáveis do universo humano” (p. 156).

8Op. cit.: 158.

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internacionais9, para já não falar da metáfora do “grandioso tabuleiro de xadrez” escolhida por Brzezinski para título do seu célebre livro10.

Um dos méritos deste conceito tratado por Norbert Elias é o de recordar que os grandes conjuntos sociais, sendo evidentemente colectivos, não deixam de ser humanos. O anonimato das multidões não faz esquecer que elas são formadas por pessoas singulares, elas próprias um todo em si.

Há um domínio onde esta perspectiva se visualiza com particular evidência: as relações internacionais. Estamos habituados a considerar os Estados como agentes privilegiados, senão exclusivos, dessa relações. Somos agora obrigados, como é bem sabido, a acrescentar os papeis de múltiplos actores. Nesse novo inventário, porém, há-de constar também o papel dos indivíduos como actores globais, interagindo poderosamente com os actores colectivos. Pensemos em homens nossos contemporâneos como Mikhaïl Gorbatchev, Karol Woitila ou Nelson Mandela e na influência que tiveram na evolução dos acontecimentos mundiais. Contra um discurso tantas vezes centrado em exclusivo no jogo das “potências”, torna-se útil complementar a análise com as decisões pessoais e as influências individuais. Ao reforçar a importância das pessoas individualmente consideradas, esta perspectiva permite “humanizar” a nossa observação das relações internacionais

Mais ainda: a sociologia dos vastos conjuntos humanos parece assim vinculada a integrar nas suas análises a dimensão da intersubjectividade. A ideia de configuração abrange esse complexo cruzamento de interdependências onde adquirem consistência tanto os indivíduos-em-relação como as sociedades.

Ao incluir a multiplicidade de escalas, o conceito de configuração aponta para essas múltiplas plataformas de comunicação e de interacção onde se desenrolam os factos sociais. Nelas o todo é mais que o somatório das partes. Assim como o concerto de uma orquestra não se limita à sobreposição dos vários instrumentos que a compõem mas pressupõe algo de comum onde cada elemento se integra a nível superior, assim também nas configurações sociais há uma totalidade envolvente, delimitada pela densa rede de interacções e susceptível de dar um acréscimo de sentido a cada uma das suas componentes.

Em suma, o conceito de configuração internacional, porventura mais que os de estrutura ou sistema, pode ser particularmente adequado, enquanto modo de representação, para designar a realidade mundial nas suas várias dimensões: uma totalidade dinâmica, sujeita a transformações de monta, capaz de compensar os seus desequilíbrios críticos através de mecanismos de correcção; nela se adensam os processos de permuta e de interacção, estabelecendo redes de interdependências, onde as próprias pessoas singulares desempenham papeis relevantes.

9Tem particular interesse a leitura de Rusconi, Gian Enrico (org.) (1989), Giochi e paradossi in politica, Torino: Einaudi.

10 Ver Brzezinski, Zbigniew (1997) The Grand Chessboard: American Primacy And Its Geostrategic Imperatives, New York: Basic Books.

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Referências Bibliográficas

Brecher, Michael (1987). “Système et crise en politique internationale” em Korany, Bahgat (org) Analyse des relations internationales, Québec: Gaetan Morin Éditeur / Centre québécois de relations internationales

Brzezinski, Zbigniew (1997). The Grand Chessboard: American Primacy And Its

Geostrategic Imperatives, New York: Basic Books

Elias, Norbert (1986). Qu’est-ce que la sociologie? (traduzido do alemão por Yasmin Hoffman), Paris: Éditions de l’Aube

Kaplan, Morton (1957). System and Process in International Politics. New York: John Wiley

Lerbet, Georges (1986). De la structure au système: essai sur l’évolution des sciences

humaines. Éditions Universitaires, nomeadamente: 18-21

Lerbet, Georges (1993). Approche systémique et production de savoir, Paris: L’Harmattan

Piaget, Jean (1981) O estruturalismo, (tradução portuguesa de Fernanda Paiva Tomaz), Lisboa: Moraes Editores

Rusconi, Gian Enrico (org.) (1989), Giochi e paradossi in politica, Torino: Einaudi

Waltz, Kenneth (2002). Teoria das Relações Internacionais (traduzido do inglês por Maria Luísa Felgueiras Gayo), Lisboa: Gradiva

Como citar esta Nota

Moita, Luís (2010) "O conceito de configuração internacional". Notas e Reflexões,

JANUS.NET e-journal of International Relations, N.º 1, Outono 2010. Consultado

[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol1_n1_not1

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