OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN:
Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp.
TELEVISÕES GLOBAIS, HISTÓRIA ÚNICA
Francisco Rui Cádima
Professor Associado com Agregação do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.
ÉCoordenador do Mestrado de Novos Media e Práticas Web, Coordenador do Curso de Licenciatura e membro da Comissão Executiva do
Éinvestigador do CIMJ, Centro de Investigação Media e Jornalismo.
Resumo
Vivemos uma era complexa, ainda difusa, de transição dos sistemas de fragmentação audiovisual, específicos do cabo e dos satélites, para os sistemas de hiperfragmentação de ambiente web. Neste processo as televisões transnacionais estão em relativa perda, mas por enquanto ainda detêm canais de distribuição poderosos nas principais áreas estratégias do globo, com excepção daquelas onde, por motivos de censura ou pela ordem totalitária, nem sempre podem penetrar.
Democracia; Geopolítica; Jornalismo; Local/Global; Televisão Transfronteira
Como citar este artigo
Cádima, Francisco Rui (2010) "Televisões globais; História única". JANUS.NET
Artigo recebido em Maio de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2010
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TELEVISÕES GLOBAIS, HISTÓRIA ÚNICA
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«(...) Devido a escritores como Chinua Achebe e Camara Laye eu passei por uma mudança mental na minha percepção da literatura.
Chimamanda Adichi
Tal como sucedeu com Chimamanda Adichi, que só começou a ter uma visão mais próxima da sua Nigéria natal quando começou a ler literatura africana - nomeadamente Chinua Achebe e Camara Laye - assim o mundo muçulmano só começou a reconhecer melhor a sua própria imagem televisiva e a sua própria história recente após a criação da rede do Quatar, a Al Jazeera. No entanto, não se pode dizer que, nessa matéria, de uma experiência diversa, pletórica e definitiva se trate.
A Al Jazeera, que significa «a ilha» em árabe, arranca a 1 de Novembro de 1996, pretendendo ser uma espécie de CNN para o mundo islâmico. Contudo, só após o 11 de Setembro começa a ser mais conhecida no Ocidente, mas quase nunca pelas boas razões ocidentais. O novo mensageiro narrava os factos em função desse «outro», em tempos dito «infiel», e tanto bastava para que o Norte determinasse a morte desse alienígena. Bush e Blair
Essa mensagem, ou «massagem», como preferia Marshall McLuhan, está aí, impante, desde a era da fragmentação do modelo audiovisual europeu e
1Jeremy Scahill, «The War on Al Jazeera», The Nation online, December 1, 2005. [Em linha] [Consultado em 2 de Maio de 2010], Disponível em: http://www.thenation.com/doc/20051219/scahill. This article appeared in the December 19, 2005 edition of The Nation.
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década do novo século, a esta era de fragmentação corresponde um tempo de hiperfragmentação dos sistemas televisivos, que na Europa se aproxima dos 10 mil canais de televisão, entre generalistas, cabo, satélite, tv's locais, web tv's, mobile e outras. A questão é que a diversidade da oferta e a qualidade dos conteúdos não cresce proporcionalmente à progressão exponencial do número de canais e plataformas. Pelo contrário: ter mais canais significa, tendencialmente, redifusão constante dos mesmos conteúdos ou de conteúdos em tudo idênticos, mas sobretudo uma contínua reciclagem da mensagem do centro para pacificar, normalizar, ou pelo menos consensualizar, em torno de um plano geral comum, a periferia. O que farão então de diferente, de diverso, os grandes canais internacionais constituídos em torno de objectivos comuns e sobre estratégias de internacionalização e de disseminação linguística e cultural, como a BBC, a RTPi, a CNN e outras? E que real alternativa local/global constituem essas novas «ilhas» como a
Um relatório produzido por Deborah Horan2, no âmbito do CIMA - Center for International Media Assistance, vem
Local/Global
Éum facto que não pode haver globalização sem os media e também, obviamente, sem os novos media e as redes de comunicações. Sendo os sistemas de media centrais no processo da globalização, é certo que boa parte das teorias da área das ciências da comunicação, das teorias críticas às do «imperialismo cultural», têm procurado ver o
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Deborah Horan, Shifting Sands: The Impact of Satellite TV on Media in the Arab World. CIMA, Washington, D.C., March 29, 2010. A Report to the Center for International Media Assistance at the National Endowment for Democracy. [Em linha], Disponível em:
Deborah Horan, op. cit., pp.
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fenómeno como um processo de homogeneização, mas também é certo que o problema não pode ser reduzido a uma polémica entre os cépticos e os neoliberais ou outros adeptos da globalização. Como dizia Appadurai (2004: 32) «globalização não implica necessariamente ou sequer frequentemente homogeneização ou americanização». As questões são, naturalmente, mais complexas, havendo argumentos fortes, quer nas teorias críticas, quer também nas perspectivas mais favoráveis, ou seja, nas teses da hibridez cultural, dos estudos de audiência e de recepção, da cosmopolitan social democracy, da diversidade, da
éque fornecem (...) vastos e complexos repertórios de imagens, narrativas e etnopaisagens a espectadores de todo o mundo, e nelas estão profundamente misturados o mundo da mercadoria e o mundo das notícias e da política» (Appadurai, 2004:
Outros preferem manter uma interpretação crítica do actual modelo,
A verdade é que mesmo no campo oposto, entre o pensamento liberal, também se encontram argumentos fortemente críticos.
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relaciones públicas de las empresas y de los ministerios, y así se cierra el círculo de las fuerzas motrices de la sociedad de la desinformación (...). Los medios – considerados desde hace tiempo como «cuarto poder» crítico (!) junto al legislativo, el ejecutivo y el judicial – se han convertido como los anteriores en puro multiplicador de la desinformación» (Otte, 2010:
Esta ordem do superficial que passa pela informação global, atingiu há muito a própria dimensão cultural do fenómeno televisivo. O exemplo limite é o do mercado ibero- americano, onde o exemplo do caso português não deixa de ser deprimente. A ficção de fluxo no espaço
4Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Lorenzo Vilches (coords.), Anuário Obitel 2008 - Mercados globais, histórias nacionais, Rio de Janeiro: GloboUniversidade, 2008:
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RTP Internacional
No início de 2010 o deputado socialista Paulo Pisco questionava no Parlamento a prática do serviço público de televisão, através de um requerimento sobre a programação da RTPi e da RTP África. Considerava não haver, no caso da RTPi «um jornalismo de e para as comunidades, nem tão pouco é visível a promoção e reconhecimento dos muitos valores que existem nas comunidades». Tão pouco o canal público conseguia suscitar «o interesse das novas gerações de portugueses espalhados pelo mundo», faltando «a dimensão cívica e política fundamental para a afirmação das nossas comunidades».5 Em relação à RTP África reconhecia ainda não existir «uma verdadeira promoção da cooperação e dos laços históricos e culturais» entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa.
ARTPi surge a 10 de Junho de 1992, então apenas dirigida à Europa com uma emissão de apenas seis horas. Em 1997 surge a RTP África. Actualmente a RTPi é uma rede global, está presente em diversos sistemas digitais, no cabo e noutras plataformas, atingindo uma audiência de cerca de 20 milhões de espectadores, mas sempre muito criticada pelo esquecimento do pulsar das comunidades propriamente ditas, pela pouca expressão da herança cultural portuguesa, à revelia do próprio contrato de concessão, e pela difícil coabitação com países onde há claros défice de pluralismo. Em 1998 surge a SIC Internacional e em 2010 a ERC aprova o projecto TVI Internacional.
Depois das grandes fases de diáspora dos portugueses até aos anos 60, o aparecimento de um canal internacional da cultura portuguesa três décadas mais tarde peca desde logo por clamoroso atraso. Daí que tivessem que ser os meios locais, muitas das vezes promovidos pelas próprias comunidades portuguesas, nomeadamente em França, a exercer desde logo essa função tão adiada pelo operador público português.
Sobre muitos destes temas surgia entretanto a obra Les Portugais de France face à leur télévision. Médias, migrations et enjeux identitaires, de Manuel Antunes da Cunha6.
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«Deputado socialista questiona estratégia da RTPi e RTP África», Público online/Lusa, 6 de Janeiro de
2010. [Em linha] [Consultado em 25 de Maio de 2010], Disponível em:
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«identidade discursiva» da RTPi: «Tradition et modernité, culture populaire et érudite façonnent le cadre énonciatif de la chaîne de souveraineté. (...) Les rubriques sur le tourisme, la nature, la langue, la gastronomie et la culture populaire, entre autres, esquissent une représentation plus traditionnelle de la portugalité. Dans cette quête des origines, les fictions à caractère historique évoquent des récits et des archétypes fondateurs, tandis que les émissions consacrés au football, au fado et à la religion réactualisent le mode portugais d'être au monde» (Cunha, 2009: 329).
Mas como referia o deputado Paulo Pisco, outros aspectos críticos se colocam, como por exemplo, o défice de pluralismo, político, cultural etc., sobretudo no contexto das emissões destinadas às áreas geopolíticas mais complexas. E no nosso caso, nas relações com África em particular.
Em relação a Angola, Vicente Pinto de Andrade7 pôs claramente o dedo na ferida: «(...) Ainda há um longo caminho a percorrer no sentido da instituição plena de um regime democrático. A governamentalização e partidarização dos meios públicos de comunicação social são a nota mais negativa do regime político actual. Não é por acaso que continuam as restrições à extensão do sinal da Rádio Ecclésia (Emissora Católica de Angola). Angola é o único país da África de língua oficial portuguesa onde as imagens e os sons da RTP África e da RDP África não chegam “directamente” às nossas casas (...)».
Sobre esse outro défice que tem a ver justamente com o pulsar das comunidades da diáspora e a sua quase ausência na RTP Internacional,
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Vicente Pinto de Andrade, «A futura Constituição angolana», Correio do Patriota online, 5/8/2008, [Em linha] [Consultado em 25 de Maio de 2010], Disponível em: http://www.correiodopatriota.com/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=339
Fernando Carlos Moura (2010). «A Construção da identidade de uma comunidade imigrante portuguesa na Argentina (Escobar) e a Comunicação Social». Tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação. Departamento de Ciências da Comunicação - FCSH/UNL, Maio.
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A RTPi é assim entendida como meio privilegiado para o reforço do vínculo identitário quer na comunidade, quer na sua ligação à origem, mais difícil se torna definir qual o contributo efectivo dos media para o reforço da identidade, embora se sustente a identidade como construção, como consciência colectiva, percepção comum, e daí a importância de uma nova responsabilidade social dos media e dos jornalistas.
E face à dessintonia entre a oferta e a procura em matéria de televisão global, ganha todo o sentido a questão da declinação da programação para determinadas comunidades com características diferenciadas e a necessidade de ouvir estas mesmas comunidades e de produzir, em consequência, programas localmente. Dessa forma se evitaria a tendência para o discurso oficial, de certa forma hegemónico, para a massa «global», e não diferenciado como é competência designadamente das televisões públicas nas suas emissões internacionais.
Há abordagens interessantes que se podem fazer nessa sequência, como pensar as televisões globais, com as suas algo etnocentristas ou mais ou menos oficiais realidades/histórias locais/nacionais (da origem), exactamente ao contrário do que sucede com os media locais e regionais que tendem a ter estratégias editoriais de tipo nacional/global. Mas mais complexo do que isso, é a possibilidade de as televisões globais terem, em regra, as suas histórias únicas, lógicas editoriais ensimesmadas que abordam sobretudo o mesmo e não esse outro da experiência da diáspora e menos ainda as comunidades e vozes das margens: as diásporas dentro da diáspora, que apenas encontra alternativa nesses «bairros virtuais» de que falava Appadurai (2006), sendo certo que essa margens conquistam novos passos de inclusão sobretudo com os novos media e não tanto com os media tradicionais. A produção de localidade e a reprodução cultural desterritorializada nas novas etnopaisagens não se faz, naturalmente, sem contradições nem impasses dada a «disjuntura entre estes processos e os discursos e práticas mediatizados pelos meios de comunicação de massas» (Appadurai, 2004: 263).
CNN
A CNN actualmente
Rebecca MacKinnon é actualmente professora do Centro de Jornalismo e Estudos da Media na Universidade de Hong Kong e é
9Rebecca MacKinnon, «The
Disponívelem: http://cyber.law.harvard.edu/blogs/gems/techjournalism/WORLDWIDECONVERSATION.pdf
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MacKinnon
Nesse início dos anos 90, então com vinte e pouco anos, Rebecca tinha ainda todos os sonhos do mundo e o seu idealismo
Da sede da CNN em Atlanta, os editores diziam a Rebecca que não tinha havido tempo para passar a entrevista na emissão nacional, mas a verdade é que esse foi um dia calmo demais para a CNN na América. A alta prioridade dos editores não foi para o
A história de Rebecca MacKinnon é a todos os títulos elucidativa, nesta caso pela razão inversa do que se passa com os canais transnacionais que procuram levar a sua mensagem aos quatro cantos do mundo, mas que neste caso específico da CNN USA se concretiza no facto de algumas mensagens, que são editadas nalgum remoto «canto do
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mundo», dificilmente se poderão repercutir internamente, nos USA, isto porque no plano nacional do que se trata é de preservar a boa imagem e a «impoluta» política. Sheldon Rampton explicava estas coisas desta maneira: «Any serious contemplation of the process by which the United States went to war in Iraq tells us that propaganda is still a powerful force in shaping public opinion»10 Apesar de Obama e do seu novo ciclo comunicacional, a verdade é que o broadcast continua a ser, ainda hoje, o meio de comunicação dominante, o que também quer dizer que as velhas estratégias de propaganda das décadas das grandes guerras continuaram vivas nas guerras regionais do início do novo século. O que significa que nem no tempo longo, na longa duração, se resolvem os problemas da «história única» e dos novos e velhos etnocentrismos geopolíticos.
Referências bibliográficas
Antunes da Cunha, Manuel (2009). Les Portugais de France face à leur télévision. Médias, migrations et enjeux identitaires. Rennes: Presses Universitaires de Rennes
Appadurai, Arjun (2004). Dimensões Culturais da Globalização. A modernidade sem peias. Lisboa: Teorema
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Sennett, Richard (2006). A Cultura do Novo Capitalismo. Lisboa: Relógio de Água
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